O corredor das incertezas

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Depressão. Aos 75 anos, Henriqueta Picolli teme pela propriedade onde criou os quatro filhos

incertezas

fotos luiz evangelista/nd

O corredor das

notícias do dia

Florianópolis, segunda-feira, 18 de março DE 2013

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#PautaND

A série #PautaND marca os sete anos do Notícias do Dia. As reportagens com esta identificação são bandeiras do ND que o leitor poderá acompanhar ao longo do tempo.

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Traçado incerto. Antonio Carlos Garcia e o filho têm se incomodado com as visitas dos técnicos

BR-101. Moradores das localidades a serem cortadas pelo traçado do contorno viário temem pelo futuro PAULO CLÓVIS SCHMITZ pc@noticiasdodia.com.br @PC_ND

Nosso temor é não encontrar uma casa boa por causa dos altos preços dos imóveis em Biguaçu.” Rafaela Helena Freitas de Assis, dona de casa

Quem anda pelo interior dos municípios da Grande Florianópolis não imagina que vales tomados por arrozais e colinas que lembram o impressionismo de Claude Monet, ladeados por encostas intocadas de Mata Atlântica, terão a placidez trocada pelo roncar estrepitoso dos caminhões. Quando ficar pronto o contorno viário projetado para tirar parte do tráfego da BR-101 do miolo da região metropolitana, talvez daqui a dois ou três anos, o tom imaculado dessas paisagens terá sido conspurcado. Contudo, basta circular pelas vilas da região para descobrir que a obra ainda é uma incógnita para a maioria dos moradores. Os que querem a estrada e os que receiam perder o que têm por sua causa são assaltados por mais dúvidas do que certezas. As perguntas começam pelo traçado – que já tem piquetes de sinalização, mas que não foi ainda oficializado e nem comunicado às famílias – e seguem na imponderabilidade das indenizações, so-

bre as quais existem apenas boatos. Para a maioria, sair de onde nasceu e onde estabeleceu família ou negócio é uma provação muito grande. Há gente que perde o sono porque sabe que parte da propriedade vai ser varrida pela rodovia. As pessoas apontam onde a estrada vai passar, fazem comentários esparsos, mas o pouco que sabem é o que viram na televisão. “Deixo tudo nas mãos de Deus”, diz Henriqueta Picolli, 75 anos, que criou os quatro filhos num sítio da Estiva, em Biguaçu, e teme perder a terra e a tranquilidade quando a obra começar. Antonio Carlos Garcia, 70, dono de uma bela propriedade no caminho de Três Riachos, recebeu equipes de funcionários de diferentes empresas que inventariaram os bens de sua casa, mas ouviu informações desencontradas sobre o desenho do trecho, que a princípio o obrigaria a demolir tudo e procurar outro imóvel. Ele domesticou a machado aquele ambiente inóspito de dezenas de hectares, e hoje não sabe que destino será dado a ele. Só tem certeza de que, “do começo ao fim, meu terreno vai ser cortado pela estrada”.

Uma vida com eucaliptos, grama e animais

Depressão e medo de perder tudo

Rodovia vai estimular negócios na região Mesmo com o drama de muitas famílias, é fácil encontrar moradores que vêem o contorno viário como uma oportunidade de crescimento dos negócios na região a ser cortada pela rodovia, que vai reencontrar a BR-101 em Palhoça. Este é o caso de Carlos Elton Pereira, empregado

Dúvida. Rafaela Helena de Assis vai ter a casa demolida

de uma propriedade onde são engordadas 400 cabeças de gado perto de Sorocaba, no interior de Biguaçu. “A fazenda será atingida, mas é bom porque vai destrancar a 101”, diz ele, afirmando que o patrão, Edivan Sandi, também pensa dessa forma. A dona de casa Rafaela Helena Freitas de Assis vê a obra com um misto de preocupação e esperança. Morando perto do futuro trevo da nova rodovia com a estrada dos Três Riachos, ela sabe que sua casa de madeira será demolida, mas acredita numa indenização compensadora que lhe permita adquirir outra residência para viver com o filho pequeno e o marido, que trabalha com a entrega de gás e água. “Nosso temor é não encontrar uma casa boa por causa dos altos preços dos imóveis em Biguaçu”, afirma.

Moirões. Estrada com sinalização

Na Estiva, onde o contorno viário vai começar, no sentido Norte, o consenso é de que a obra está muito atrasada e de que as promessas feitas há duas semanas, quando um contrato foi assinado em Brasília, não podem ser levadas ao pé da letra. Ali, às margens do rio Inferninho e a poucas de centenas de metros da BR-101, a vida segue arrastada, e a pressa parece ser a mesma daqueles que vêm postergando há anos a construção de uma rodovia essencial para a segurança da população da Grande Florianópolis. “Nunca houve reuniões com a comunidade, o que sabemos é de ouvir falar”, diz o motorista Márcio Madeira Delfino, que mora na vila. Microempresário, Adelson Adriano pertence a uma família que reside há mais de um século na Estiva. Hoje, eles e os vizinhos reclamam mais de uma fábrica de farinha de osso que infesta o ar da região do que das indefinições acerca da alça de contorno. Mais adiante um pouco fica a casa de dona Henriqueta Picolli, que entrou em depressão ao saber que o chão onde passou a maior parte da vida está condenado. Jânio, um dos filhos que criam gado ali, lamenta não poder investir em qualquer benfeitoria enquanto a Autopista Litoral Sul não se pronunciar sobre o desvio – a concessionária da BR-101 se limita a pedir documentos atestando a posse da terra. E não é incomum encontrar casas à venda ao longo das estradas vicinais que ligam Biguaçu a Antonio Carlos.

Enquanto ajusta os tocos de eucalipto na carrocinha puxada a trator, com a ajuda do filho que leva o seu nome, Antonio Carlos Garcia fala das idas e vindas desse penoso processo que é a implantação do contorno viário de Florianópolis. Ele passou a vida dando forma àquela faixa de terra que mescla reflorestamento com plantação de grama para venda aos moradores da cidade. De uma hora para outra, o patrimônio material e afetivo a que se apega com fervor pode ser destroçado pelas máquinas e invadido por quatro pistas de asfalto, ruído interminável e a insegurança que chega com a pressa e a velocidade – palavras que não constam do dicionário dos moradores locais. “A princípio, a estrada seguiria o traçado do gasoduto que abastece as empresas do Sul”, conta Garcia. Depois de uma audiência pública realizada em Biguaçu, ele descobriu que sua propriedade, que tem casa de dois pisos, celeiro, galpão e muitos animais, estava justamente no trajeto planejado para o anel viário. “São mais de 60 hectares onde sempre lidei com gado, plantações e eucaliptos”, afirma. “Vejo que a obra é necessária, mas como e onde vou comprar um terreno igual? Já me acostumei a estar dentro do pasto e aparecer uma equipe para tomar nota de tudo, sem pedir licença”. O mesmo acontece em casa, até que dias atrás chegou um grupo sem crachás, medindo tudo outra vez e dizendo que o traçado já não seria o mesmo. O certo é que próximo de sua casa haverá um entroncamento do anel viário da BR-101 com a rodovia municipal que segue até Três Riachos. Isso implicará na demolição de até dez residências e afetará também famílias de poucas posses. “Como vão começar as obras em setembro se ninguém foi indenizado?”, pergunta Antonio Garcia. Para piorar, muitos proprietários não têm a documentação em dia, o que tende a retardar as negociações.

Caminhoneiro torce pela rapidez da obra

Menos terra. Vilson José da Silva, o Dão, ao lado da mulher: sem a nascente

‘Vou ficar sem meu pastinho’, diz agricultor Na Rússia, no limite do município de Antonio Carlos, a via de contorno vai mexer com várias propriedades antes de cortar o morro da Forquilha e entrar nos domínios de São José. A referência dos moradores são as torres de alta tensão – e quem mora perto delas está na alça de mira da Autopista Litoral Sul, responsável pela execução da obra. “Até queria a estrada, mas ela vai acabar com o nosso sossego”, diz Heriberto João da Silva, que planta grama e perderá cerca de um hectare (cerca de 10 mil metros) por causa da reserva de domínio da rodovia. Na mesma indefinição está o agricultor Vilson José da Silva, o Dão, que tem apenas 20 cabeças de gado e sabe que vai perder, além de terra,

Vejo que a obra é necessária, mas onde e como vou comprar um terreno igual?” Antonio Carlos Garcia, produtor rural em Biguaçu

o contato com uma nascente de água que ficará para além das pistas de rolamento. “Vou ficar sem o pastinho do morro”, reclama, olhando para cima. Pior é o caso de um vizinho que preparou o chão de uma marcenaria e a concessionária mandou parar tudo. “Se fosse o terreno da Dilma (Rousseff), não teria acontecido isso”, ironiza Dão. Também existe a possibilidade de o parque aquático Vô Ná, já em São José, ser afetado porque o traçado da estrada corta justamente o vale que vem depois do Morro da Forquilha. Bem cuidado, o empreendimento poderá perder os equipamentos, os chalés, a vegetação, as cachoeiras – e até os peixes que fazem a alegria das crianças nos fins de semana.

Entre os que torcem pela rápida construção da alça de contorno da Grande Florianópolis está o caminheiro Luiz Henrique da Silva, que presta serviços no transporte de petróleo da unidade da Petrobrás em Biguaçu para a distribuidora RDP. Por conta da sobrecarga da BR-101, a rodovia estadual que liga Antonio Carlos a Biguaçu se torna um funil semelhante aos de outros acessos na região, como os do bairro Forquilhinha e do SC-407, que vem de São Pedro de Alcântara. “O anel vai desafogar o trânsito para todos”, acredita ele, mesmo sem apostar que a obra saia tão cedo. Hoje, alguns caminhões menores que saem abastecidos da Petrobrás fazem um inacreditável desvio por Forquilha, em São José, onde é preciso vencer estradinhas estreitas e irregulares e transpor um morro perigoso após a localidade de Santa Cruz (também chamada de Rússia), na divisa com Antonio Carlos. Apesar dos riscos, Silva acha que vale a pena. “Para sair daqui e ir até Palhoça são 36 quilômetros; pelo atalho, apenas 15”.

Na paciência. Luiz Henrique da Silva (E) sofre com as filas e quer a alça de contorno pronta o quanto antes


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