Corredor dos Boiadeiros

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CORREDOR DOS BOIADEIROS

JORGE ALBERTO NABUT

Uma publicação da

Uberaba 2014 Corredor dos Boiadeiros

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– Não a recusa do contemporâneo, mas o prazer incomensurável da convivência com a ancestralidade. – As manhãs eram então caiadas de branco e tudo o que aparecia coloria; mesmo a boiada levantado o pó que aboiava no ar a coloratura do chão. - Do lado de cá da rua se avistava o campo, cujo vento assoprava o cheiro da lida na roça. Labuta diferente daquela que tinha aqui na cidade, naquela idade. Atravessei a rua com vontade de espiar o que havia de lá, e o olhar inverso, no regresso. O resultado dessa travessia é o tempo de duração da jornada por este Corredor dos Boiadeiros. O Autor

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Ficha Técnica: Planejamento Gráfico: Jorge Alberto Nabut Diagramação: Távola Comunicação Foto da capa: Marcelo Cordeiro Impressão: Gráfica 3 Pinti Uberaba/2014

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APRESENTAÇÃO Meu caríssimo Jorge Alberto Nabut Com minhas desculpas por ter demorado em devolver os originais de seu livro Corredor dos Boiadeiros, venho à sua presença, em primeiro lugar, agradecê-lo pela sua generosidade para que eu pudesse conhecer, em primeira mão, aquilo que em minha opinião será um sucesso, não só pelo estilo escorreito de sua escrita, como também pela história verdadeira que me atrevo a afirmar quase nenhum uberabense conhece. Eu, por exemplo, desde minha tenra infância, mesmo residindo na pequena Campo Florido, visitava com frequência a cidade de Uberaba, que era na realidade o centro convergente de todas as cidades do Triângulo Mineiro, incluindo a hoje famosa, por méritos próprios, Uberlândia. Aliás, cabe aqui um reparo histórico. Nas décadas de 40 e 50, pelo menos, Uberaba era a terceira cidade do Estado de Minas Gerais, só perdendo para a capital Belo Horizonte e Juiz de Fora, considerada e chamada de “Manchester Mineira”, em comparação, um pouco exagerada, diga-se, com a cidade que concentrava o maior número de indústrias na Inglaterra. Mudei-me de Uberaba após minha formatura, exatamente no dia 2 de janeiro de 1957, portanto, há 57 anos. Porém, nunca deixei de frequentá-la assiduamente, em todos esses anos, e nem extinguir o meu amor por esta cidade. Fico, portanto, com a impressão de que os políticos, administradores e os homens capitalistas da cidade, que existiam em número bem expressivo, não cuidaram levar nossa cidade a se manter no pódio anterior, como já citado acima. Não sei, realmente, qual o lugar que Uberaba ocupa atualmente no ranking das cidades mineiras, mas me parece que está mais próxima do décimo do que do terceiro de antigamente. Isto posto, devo dizer a você meu caro amigo, que seu livro me traz informações que eu jamais havia tomado conhecimento. Eu sabia do movimento de gado na cidade de Uberaba, mais pelo livro do campo-grandense Dr. Paulo Coelho Machado do que por qualquer livro ou publicação feita aí. Por exemplo: eu tinha conhecimento da Corredor dos Boiadeiros

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presença do Visconde de Taunay por ocasião da Guerra do Paraguai, mas não sabia que sua estada aí tivesse sido bastante longa e, também, de suas observações sobre a cidade. Aqui, em Mato Grosso do Sul, existe uma cidade não muito longe com a fronteira do Paraguai, que se chama Guia Lopes da Laguna (*). Creio que foi por ali que o Visconde de Taunay retirou os fatos para escrever o seu famoso livro A Retirada da Laguna. Voltemos ao livro. Eu desconhecia completamente a existência do local chamado Cachimbo, tão comentado em sua obra, e também que ali existia um corredor boiadeiro. Todavia, com os fatos narrados agora por você, lembro-me bem que na minha infância fui fazer piquenique com os nadadores da Associação Esportiva e Cultural de Uberaba na pedreira de Antenor Gomes, que ficava às margens do rio Uberaba. Conheci pessoalmente o senhor Antenor e dois dos seus filhos, o Djalma e o Gilberto. Ambos jogavam vôlei no Uberaba Tênis Clube, rival do Jockey Club, onde eu jogava basquete. Já o Nenê Gomes eu conheci melhor, pelo seu trabalho de mascates de zebu, um dos maiores ou talvez o maior de sua época. Há pouco tempo, inclusive, fui levado por primo, aí residente, para conhecer um loteamento da antiga chácara do senhor Nenê. Outra coisa que gostaria de comentar e que, mesmo sendo criado em fazenda e a vida toda trabalhando com gado, desconhecia os vários toques de berrante: mineiro, paulista, goiano e mato-grossense. Só posso lhe dizer que aqui em Mato Grosso do Sul, principalmente no Pantanal, é ainda uma grande ferramenta do trabalho para os condutores de boiadas que fogem dos preços altíssimos dos caminhões, optando por esse transporte muito mais barato... Nesse sentido, devo informar-lhe ainda que a palavra “sinuelo”, usada por você em seu livro, é oriunda de um costume ainda muito usado em nosso Estado. Compõe-se de uma dupla de bois castrados, treinados para buscar boiadas que se embrenhavam nas matas, tornando-se ferozes como bichos, e também para atravessar os grandes rios, pois se jogavam à frente da manada. Existe também por aqui, e deveria existir nos tempos de antanho, a figura do “boi de piranha”, que consistia em sacrificar dois animais em piores condições, retalhando-os para sair bastante sangue e assim eram jogados nos rios para que as piranhas os transformassem em cadáveres. Desta for08

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ma, o restante do rebanho atravessava o rio sem perigo. Outra coisa que seu livro me despertou foi quando eu ia para Uberaba com meus seis ou sete anos e me encantava com os apitos da velha Oeste, Rede Mineira de Viação, que ia para Belo Horizonte, e também da Mojiana, que ia para Uberlândia e Araguari, vinda de Campinas. Sua estação ficava no fim da rua Artur Machado e sua construção, muito bonita, diferia das demais da cidade. A Oeste de Minas ficava nas imediações da antiga fábrica de calçados Zebu, ou perto dali. Dado à precariedade de seus serviços, a viagem a Belo Horizonte era um verdadeiro suplício e aventura, que o povo, na sua sabedoria, trocava suas iniciais apostas em seus vagões R.M.V. (Rede Mineira de Viação) por R.M.V. (Ruim Mas Vai). Já a Mojiana era mais requintada e usada para viagens a Ribeirão Preto, Campinas e São Paulo. Em 1952, fiz parte da delegação do Jockey Club que foi a Goiânia jogar basquete e vôlei. Embarcamos na estação da Mojiana às 15h30, em direção à cidade de Araguari, onde pernoitamos, seguindo na madrugada do dia seguinte para Goiânia. Nossa viagem foi feita pela Estrada de Ferro Goiás, na época presidida pelo Cel. Mauro Teixeira, futuro governador de Goiás, residente em Araguari. Volto a outra parte do livro, onde você entrevista o meu colega de Ginásio Borges de Araújo, irmão do Dr. Randolfo Borges Júnior e do Fausto Borges de Araújo. No meu tempo de menino, o Romeu era excelente jogador de futebol. Deixando de estudar, voltou para suas origens, transformando-se numa figura nacional, através do catira, uma dança muito disseminada em Minas Gerais e talvez no estado de Goiás, que foi inicialmente povoado por mineiros. Aqui no Mato Grosso do Sul, até a década de 90, a música típica era a paraguaia. Em todos os bailes, mesmo os mais chiques, predominavam as danças de guarânias e polcas. Também o chamamé, uma música oriunda da cidade de Corrientes, entrou pelo Paraguai e chegou ao Mato Grosso do Sul. Segundo consta, esta é a verdadeira música argentina. O tango é somente cultivado na Província de Buenos Aires e, a partir de 1990, com a migração em massa dos gaúchos, essas músicas que eram (*) Uberaba presta homenagem semelhante àquele que deu direção a tropas brasileiras em direção a Mato Grosso, dando nome a uma rua de Guia Lopes. (Nabut). Corredor dos Boiadeiros

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tão populares em nosso Estado foram substituídas pelo vanerão. Quase não se ouve mais a música paraguaia por aqui. E se há um povo que cultiva suas tradições são os gaúchos. No tocante aos frigoríficos, analisados por você, o Anglo, de origem inglesa, foi instalado na cidade de Barretos (SP) e foi catalizador das boiadas paulistas, mineiras e goianas. Inclusive, vários fazendeiros se transferiram para Barretos para ficar mais perto das boiadas que vinham de Goiás e Minas. O gado chegava àquela cidade por comitivas a cavalo, fazendo com que a cidade se tornasse um entreposto, onde os invernistas paulistas compravam seus bois para engorda. Desta tradição, anos mais tarde, surgiu a Festa do Peão, hoje internacional. Com o passar do tempo, a movimentada Barretos viu seu centro de supremacia boiadeira ser transferido para a cidade de Araçatuba, que até hoje concentra o maior número de invernistas do Sudeste e Centro-Oeste brasileiros. Para lá mudaram levas de boiadeiros mineiros que se tornaram os maiores produtores de boi gordo do País. Cito, entre outras, a família Aguiar Ribeiro, oriunda de Estrela do Sul; as famílias Lemos e Melo, de Passos (MG), Ovídio Miranda de Brito, de Uberaba; Resek (Nametala Resek), talvez o que mais tinha boiadas; Garon Maia, Juquinha Maia, Hélio Pereira, Aníbal Ferreira e o mais famoso de todos, Sebastião Ferreira Maia (vulgo Tião Maia), saído da cidade mineira de Passos, juntamente com seus irmãos Garon e Juquinha Maia. Tião Maia tornou-se um nome internacional. No regime Militar foi perseguido por ser amigo de Juscelino Kubitscheck. A família de dona Sara (esposa do presidente da República) era de Passos. Por esta razão, Tião mudou-se para a Austrália, onde se tornou grande proprietário de terras, de gado e de frigorífico. Posteriormente, mudou-se para Las Vegas, dedicando-se à construção de casas e mantendo sua fortuna. O empresário voltou ao Brasil já doente, falecendo pouco depois. Frise-se que foi ele quem construiu o primeiro e o único frigorífico de Araçatuba, chamado T. Maia. Sempre ligado ao ramo, trabalhei durante sete anos no frigorífico Cotia, propriedade de Ovídio Miranda de Brito. De 1975 a 1981, trabalhei no frigorífico Bordon, de Campo Grande, e, finalmente, no ano de 1982, no Bom Beef, situado no município de Vinhedo, saindo em 1983 para a Secre10

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taria de Fazenda do Estado do Mato Grosso. Penso que já me estendi demais e só me resta repetir os meus agradecimentos ao prezado amigo, desejando-lhe sucesso e esperando novos livros, que sua capacidade intelectual e inteligência podem perfeitamente produzir. Com amizade recente, mas fraterna, abraço-o cordialmente Thiago Franco Cançado

Secretário de Estado das Finanças de Mato Grosso do Sul em três gestões.

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INTRODUÇÃO Muitas gerações de uberabenses testemunharam a passagem de grandes boiadas que desfilavam imponentes pelas ruas da cidade, vindas do até então longínquo Mato Grosso. As comitivas eram conduzidas por tropeiros e, geralmente, no inverno. Quando as condições eram extremamente favoráveis, o tempo de percurso, entre ida e volta, durava cerca de quatro meses. Porém, em condições desfavoráveis, esse tempo se elevava para algo em torno de seis meses. O gado chegava a perder de 30 a 40% do seu peso. Os animais que conseguiam sobreviver às dificuldades da longa caminhada, perfazendo em torno de 20 quilômetros por dia, recuperavam-se em pastagens por diversos meses e, após readquirirem seu peso, eram levados para abatedouros de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em muitas conversas familiares, ouvi do meu tio, o uberabense nato Mário Arruda Mendes, histórias fantásticas dessas travessias, que passaram a fazer parte do meu imaginário e a despertar meu interesse pelo assunto. Este meu retorno ao passado ratifica as conceituações de Le Goff, que, desde a década de 20, defendia que a Ciência Histórica também é feita de incontáveis “eu vi, eu senti”. Por isso, fico muito à vontade para registrar, nesta Apresentação, o retorno a um passado factual: meu encontro, proporcionado pelo tio Mário, com um antigo tropeiro que havia tocado muitas boiadas nesse trajeto, se não me engano, Antônio Boaventura. Com ele conversei longas horas. Era um homem de fala mansa e gestos simples, mas de grande conhecimento do seu ofício. Ele tinha dedicado parte de sua vida a um trabalho de que gostava muito e, mesmo tendo-lhe deixado muitas sequelas, falava com muito orgulho sobre o fato de ter sido um tropeiro respeitado e que ajudara a descortinar os sertões do Brasil. E eu, ao ouvir seus relatos, tão ricos em detalhes, chegava a me transportar para aqueles tempos, contagiando-me com as lembranças que eram dele, mas que representavam a memória coletiva de nossa gente. Em um de seus relatos ouvi descrições detalhadas sobre como se dava a travessia das reses que vinham de Mato Grosso; contou-me o velho tropeiro que esse gado, na sua maioria, era criado extensivamente sob as leis da natureza e, por falta de manejo do homem, era animal bravio, quase selvagem. Aprendi, ainda, que os animais tinham estrutura física pequena, Corredor dos Boiadeiros

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não tinham bom porte, embora fossem portadores de longos e finos chifres; sua pelagem era avermelhada, sendo mais peludos na testa e no rabo, este mais se assemelhando a uma vassoura. Eram animais de feio aspecto e que, ao chegar à zona urbana, geravam pânico nos transeuntes, com quem dividiam os logradouros públicos. O comércio de gado na região entre o Triângulo Mineiro e Mato Grosso uno é muito antigo. Os primeiros registros dão conta de que, por volta de 1835, um tal de Manuel Bernardo conduziu até Cuiabá uma vara de setenta suínos, que foram tangidos de Uberaba, além de uma tropa de bestas, dando início a um intercâmbio entre essas regiões, pois esse mesmo Manuel, ao voltar para Minas, veio conduzindo uma boiada de propriedade de fazendeiros cuiabanos. Esse intercâmbio de gado acabou se intensificando com o tempo. Deste modo, esforços foram sendo despendidos para a abertura de uma trilha que possibilitasse aos pecuaristas vender seus excedentes. O caminho bordejava o sopé da Serra de São Lourenço, transpunha o rio Piquiri e daí rumava para as cabeceiras do Sucuriú e do Paranaíba, continuando, após a travessia deste, até Uberaba. Foi por esse caminho íngreme que se iniciou o comércio regular de gado entre Cuiabá e Uberaba. Pouco mais tarde, teve início o processo de concentração urbana, fenômeno que começou a ser registrado no Brasil no princípio do século XIX, tendo como resultado, principalmente, o desenvolvimento comercial, estimulado tanto pela abertura dos portos como pelo aparecimento de atividades econômicas urbanas e, mais tarde, pela expansão das áreas de cultivo do café nas Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. A pecuária, no processo de colonização do Brasil, sempre desempenhou o papel de economia subsidiária; assim foi no ciclo do açúcar, durante a mineração, e, por último, no ciclo do café, quando o Brasil era uma monarquia politicamente independente. Demonstrando-se incompatível com o criatório bovino, essa região acabou por conduzir a uma ampliação do mercado da carne, incorporando regiões até então marginalizadas do comércio do Centro Sul do Império. A nova realidade permitiu que o gado do sul do antigo Mato Grosso, como já acontecia com o do norte, fosse comercializado com produtores do Triângulo Mineiro, em especial por uberabenses, tradicionalmente invernistas, e, depois, levado para abate na capital administrativa. A colonização do Pantanal sul-mato-grossense se fazia com uma 14

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corrente oriunda do norte, formada, sobretudo, por cuiabanos, poconeanos e livramentanos que conheciam as relações que se estabeleciam entre os tropeiros mineiros e os produtores mato-grossenses. Assim, não demorou muito para que os primeiros chegassem à Bacia dos rios Miranda e Aquidauana e, desse modo, grandes propriedades rurais, com expressivos rebanhos de bois magros, foram surgindo. Logo foi sendo estabelecido um importante canal de mercantilização entre os invernistas mineiros e os criadores do Pantanal sul-mato-grossense. O gado sulino era conduzido para Uberaba e, mais tarde, comercializado nos abatedouros próximos. Os tropeiros apareciam, geralmente, uma vez por ano e, quase sempre, no inverno, de maio a julho, e os fazendeiros começavam a reunir o gado com pelo menos trinta dias de antecedência. O isolamento e a distância do sul de Mato Grosso em relação aos centros mais dinâmicos do País tornaram o pantaneiro um produtor dependente dos tropeiros mineiros, que eram poucos e sabiam tirar proveito dessas fragilidades. À medida que esse comércio foi se desenvolvendo, possibilitou-se a abertura de uma nova trilha, em direção ao rio Piquiri. O novo traçado encurtou, em muito as longas jornadas e foi estabelecido, acompanhando-se os rebordos da costa do Planalto de Maracaju. Tomou direção do Sertão dos Garcia, passando pelo atual município de Campo Grande, daí seguindo para Coxim, fazenda Camapuã, até Santana de Paranaíba, de modo a atingir o caminho de Uberaba, encurtando ainda mais o percurso que demandava Uberaba ao Pantanal sul-mato-grossense; os tropeiros passaram a atravessar o rio Paranaíba, abaixo da Barra do rio Grande, e iniciaram viagens periódicas a essas paragens, fazendo negócios de gado com produtores estabelecidos às margens dos rios Miranda, Ivinhema e Apa. A partir do fim do ano de 1864, tem início um dos maiores conflitos militares da América do Sul, a Guerra da Tríplice Aliança. Nesse mesmo ano, o Paraguai lançou um ataque sobre Mato Grosso, com duas colunas: uma fluvial e outra terrestre. O desenrolar dos acontecimentos interrompeu um promissor processo de desenvolvimento econômico na região do Pantanal sul–mato-grossense. Durante quase cinco anos, desapareceram, por completo, as relações comerciais entre os tropeiros mineiros e os produtores matogrossenses. À exceção de Santana do ParanaCorredor dos Boiadeiros

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íba, na fronteira de Minas Gerais e Goiás, todos os núcleos urbanos do sul do antigo Mato Grosso foram destruídos pelas tropas invasoras. A principal fonte de riqueza regional, a pecuária bovina, voltada para o abastecimento parcial das Províncias do Sudeste, foi grandemente afetada pela guerra e, sobretudo, por uma epidemia que atingiu os cavalos: a peste das cadeiras. A guerra provocou a desorganização da produção, uma vez que os proprietários em fuga abandonaram suas terras, contribuindo para que os rebanhos passassem à condição de selvagem. À medida que a situação do pós-guerra foi se normalizando, os produtores do Pantanal sul-mato-grossense passaram a estreitar relações com seus pares, sobretudo com os mineiros de Uberaba, e começaram a incorporar novas técnicas ao processo de produção, cujo contínuo aumento fez crescer a especialização da própria pecuária. Com relação ao manejo, pouca coisa mudou, mas a grande reavaliação foi o melhoramento do padrão racial do rebanho, na busca do aumento do seu desfrute e da produtividade. Desde o último quartel do século XIX, os produtores de Uberaba passaram a importar da Índia o gado zebu, cuja característica era a rusticidade. Os animais se adaptavam muito bem ao clima tropical, podiam ser criados extensivamente, não dependiam de muitos cuidados e se revelaram extremamente precoces, fortes para o trabalho no campo, além de ser de rápida reprodução. Numa região em que as propriedades rurais ainda estavam mergulhadas em primitivos processos de exploração de riquezas, essa raça bovina, originária da Índia, que passou a ser conhecida entre nossa gente como zebuína, encaixou-se, perfeitamente, ao atendimento das necessidades dos criadores de Mato Grosso. A partir do final do século XIX, surge um novo tropeirismo: são aqueles homens que, partindo de Uberaba, chegam a essas plagas com alguns tourinhos, tropas de mulas e de cavalos, para trocar pelas boiadas que ocupam os vastos campos do Pantanal sul-mato-grossense. Esta minha breve introdução não tem outra intenção senão a de reafirmar a importância do trabalho do meu queridíssimo Jorge Alberto Nabut, chamando a atenção para o fato de que nos acostumamos a expli16

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car, historicamente, os progressos da pecuária apenas pela sua melhoria genética e, também, pelo manejo das cercas, das vacinas preventivas de doenças e de todos os demais elementos que consolidaram o processo de sua exploração em todo o Brasil. Jorge Nabut optou por fazer o contrário: sua historicidade parte do papel do homem simples, do trabalhador humilde que enfrentou a vida difícil, seus embates com a natureza, as intempéries, o calor, o frio, as noites mal dormidas, em que os seus rebanhos ficavam ameaçados pelos conhecidos estouros de boiadas. Retrata as longas distâncias percorridas por essa gente, seus modos peculiares de agir, de falar e pensar e que se constituirão em componentes importantes que vão marcar a vida de mineiros de Uberaba e da região Sul do antigo Mato Grosso. A temporalidade histórica de Jorge Nabut está focada na figura do homem tropeiro, tão importante no processo da integração de Minas Gerais com Mato Grosso do Sul, construtor de uma parcela representativa da integração brasileira e que, indelevelmente, marcou a história dos dois Estados. A obra Corredor dos Boiadeiros é, sem sombra de dúvida, uma contribuição valiosa, para que possamos reavivar a memória de um dos mais auspiciosos acontecimentos que marcaram o processo de colonização do Brasil. É certo que a história não é capaz de antever futuros, mas não se podem imaginar esses emaranhados de estradas que rasgam o País nos dias de hoje e nem tampouco a quantidade de cidades que surgiram em todo o Brasil sem que se faça uma reverência à figura do tropeiro, pois, ao abrir trilhas e parar para descansar e dar descanso às suas tropas de animais, em tempos passados, estava traçando os caminhos do desenvolvimento socioeconômico do nosso País. Creio que as memórias que Jorge Alberto Nabut traz a público nesta obra ainda não esgotaram todo o seu conhecimento, seu saber, que desejou proporcionar aos seus amigos, admiradores, colegas, acadêmicos e familiares. Mas afirmo que este livro é, também, um convite aos novos pesquisadores regionais e brasileiros, servindo de fio condutor para outros estudos sobre esse tema; seguindo o caminho de uma luz investigativa e reveladora sobre muitos documentos hoje considerados perdidos, mas que, uma vez descobertos, poderão elucidar uma primeira parte temporal Corredor dos Boiadeiros

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que não foi abordada neste trabalho: o período anterior à Guerra da Tríplice Aliança. Esta minha afirmativa, na verdade, traduz meu sentimento de admiração, respeito e amizade por Jorge Alberto Nabut, já que lhe estou lançando o desafio de dar continuidade à sua tarefa de investigação histórica. Cumprimento-o, Jorge Alberto Nabut. E deixo registradas aqui algumas palavras de nossa conversa quando me visitou em um hotel da cidade de Uberaba, no ano passado, e que, como bem afirmou o historiador e general Nelson Wernek Sodré, em sua obra Oeste: ensaio sobre a grande propriedade pastoril. A pecuária não deixa registros de sua presença devido à sua pobreza material. “Só a tradição oral e a pura tradição oral mantêm a eternidade desses feitos poderosos”. Tenho certo de que o autor, com brilhantismo, entrevistou o maior número possível de tropeiros e que suas experiências estão muito bem postas nesta obra, divulgando os mais preciosos valores da nossa terra. Prof. Dr. Paulo Marcos Esselin Historiador Pós-Doc em História pela Universidade de São Paulo. Professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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AGRADECIMENTO Ao entregar este trabalho aos leitores e, por acaso, aos pesquisadores, como eu, agradeço a todos aqueles que me apoiaram durante minhas pesquisas, seja me fornecendo dados, passando as informações possíveis, ou lendo meu trabalho e me dando ânimo para lavá-lo à frente e publicá-lo. Em nome destes, agradeço a Thiago Franco Cançado, por três vezes secretário de Estado da Agricultura de Mato Grosso do Sul, que assina a apresentação desta obra, e ao historiador Paulo Marcos Esselin, da Universidade Federal de Campo Grande, desejoso que meu trabalho se prolongasse até esta capital. Nem sempre as representações políticas são apontadas como elementos de sustentação cultural. Ao contrário destas, a Câmara Municipal de Uberaba sempre colocou entre suas realizações políticas o apoio significativo à produção do conhecimento e às iniciativas ligadas à criatividade artística. Mais uma vez ela honra seu cumprimento com a história e a cultura de nossa cidade, inserindo esta obra entre suas realizações no plano cultural. Através de seu presidente, Elmar Goulart, meus sinceros agradecimentos pela publicação de meu livro. À Prefeitura Municipal de Uberaba, por intermédio do prefeito Paulo Piau, que coloca a Cultura na pauta de sua administração, o meu agradecimento, que é também extensivo à ABCZ – Associação Brasileira dos Criadores de Zebu - parceira necessária pela abordagem desta obra - através da diretoria de Luiz Cláudio Paranhos. Agradecimentos também ao casal Marília e deputado federal Marcos Montes, Agropecuária Integral através de Tânia Bichuette, parceiros que deram ao lançamento de Corredor dos Boiadeiros um significativo apoio. De antemão, o agradecimento ao leitor que segue a trajetória dos boiadeiros ao longo dos capítulos deste Corredor. Jorge Alberto Nabut, abril de 2014.

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PREFÁCIO 1 A MEMÓRIA DO LUGAR A posição ideal para visualizá-lo é ter a urbe às costas. O trajeto que margeia o limite norte de Uberaba, delimitado à esquerda pela ponte do rio do mesmo nome da cidade, dando acesso à direção de Uberlândia, e à direita pela estação de Amoroso Costa, da Companhia Mojiana de Estradas de Ferro, um percurso de oito quilômetros, este é o Corredor dos Boiadeiros. Aparentemente sem significado, o trecho começa a ganhar sentido quando se observa que ele corre no limite físico entre campo e cidade, confrontando e harmonizando tipos de vida adversos, alinhando a longa tradição dos usos e costumes rurais aos novos padrões de vida urbana e a uma surpreendente e inovadora atividade comercial e industrial, que projeta, além dos limites regionais, a importância econômica ali gerada. Mas a confrontação vai além de uma e outra banda da via, passando a posicionar, frente a frente, padrões de vida de uma época e de outra, do passado e do presente. O movimento das tropas e boiadas, razão de ser do Corredor dos Boiadeiros, não passa indiferente à economia do lugar, embora se destine, quase sempre, a outras e distantes localidades. O rastro deixado pelo volumoso transitar de animais e de tropeiros ativa um comércio que corre paralelo à via e que passa a ganhar importância à medida que vai sendo inventariado. Estas e outras observações são levantadas por este autor, interessado nas questões da microrregião para melhor entendimento de uma realidade mais ampla e abrangente. O presente trabalho revela o trânsito rico e intenso entre Uberaba e Campo Grande, distantes 1.000 quilômetros uma da outra. A capital de Mato Grosso (do Sul) era atingida através da estrada traçada pelos boiadeiros, em meses de viagem, e denotava influência que a cidade triangulina exercia no Triângulo Mineiro e no Centro-Oeste do País. Parte importante da geografia do Corredor dos Boiadeiros, na área urbana de Uberaba, o Alto do Cachimbo era cortado por ele. Além do comércio e trânsito do gado, o pequeno e esquecido bairro desenvolvia importantes indústrias, ligadas ao processamento de grãos e de produtos largamente 20

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produzidos na região. Desta forma, o Corredor e, por extensão, o Cachimbo não ficariam limitados à semelhança de outros bairros. O Cachimbo integra os relatos do Visconde de Taunay, no conturbado período da Guerra do Paraguai, e este fato o tornou mais notável. Quanto à metodologia do trabalho, este autor se posicionou de forma semelhante quando da pesquisa que resultou na publicação do livro Fragmentos Árabes, de 2002, no qual ele revela a expressiva presença da colônia libanesa em Santa Juliana, também no Triângulo Mineiro, e, em sequência e consequência, em Uberaba. Trata-se da utilização da história oral, o relato de pessoas que vivenciaram os fatos narrados, vários deles publicados em entrevistas no Jornal da Manhã, onde trabalha este autor. Obviamente, há necessidade de confrontar as entrevistas feitas e, aí, prevalecem o bom senso e a capacidade de discernimento do leitor. Mas a cada informante falecido é um tesouro que se fecha para a história. Fica sempre um peso na consciência quando procuramos por alguém e esta pessoa já faleceu. O que ela sabia levou consigo. E ponto final. A quase totalidade do que se pode historiar (fazer história, no dizer de “Aurélio”; fazer o relato histórico, embelezar com ornatos, narrar, contar, enfeitar, historiar um portal, historiar uma roupa, segundo “Houaiss”) em Fragmentos Árabes (livro que antecedeu a este) e, agora, em Corredor dos Boiadeiros tem origem na tradição oral e, sem ela, as obras não existiriam. Jornalista de profissão, este autor tem a prática e o prazer do diálogo com o interlocutor, bem como a técnica de enxugamento das falas ao limite necessário, sem lhes tirar a essência. Por lidar com tradição oral, o escritor fica à vontade para inserir trechos de manifestações da cultura popular, gênero representativo da vida sertaneja e, por ser poeta, trazer seus versos para complementar a informação desejada, a ambiência de um lugar ou o perfil de um personagem. Corredor dos Boiadeiros é sua primeira investida no universo sertanejo, certamente um débito para quem é natural do Sertão da Farinha Podre e a cidade de Uberaba, a Capital Mundial do Zebu, também considerada, em tempos remotos, como “boca do sertão”, ou seja, no limite entre realidades antagônicas: o centro urbanizado e o sertão incomensurável. No extremo norte do bairro do Fabrício, na cidade mineira de Uberaba, região que, desde o primeiro quartel do século XIX se denominou de CaCorredor dos Boiadeiros

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chimbo, tendo ali se arranchado tropas brasileiras em direção à Guerra da Tríplice Aliança, na campanha que mais tarde se denominou de A Retirada da Laguna, fica a mais bucólica via da cidade: a rua Panamá (rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha). Ela é o frágil limite entre campo e cidade, onde um e outra se namoram, trocam gentilezas mútuas, se interagem. A derradeira fronteira entre a urbe e a pradaria respeita seus limites entre o que é urbano, do lado de cima, e o que é campestre, da banda de baixo, embora este esteja com os dias contados, por causa da especulação imobiliária, que invade grandes áreas de todo o entorno da cidade. O logradouro se resume a um trecho do Corredor dos Boiadeiros, que, em outros tempos, dava passagem às boiadas vindas do “fundo” do Triângulo Mineiro, de Goiás e de Mato Grosso e, também, ao gado que daqui saía naquelas e noutras direções. Na área urbana e no sentido campo–cidade, o Corredor tinha início na antiga ponte de Pedro Lucas, sobre o rio Uberaba (saída para Uberlândia), percorria uma série de ruas, tirando o bairro de sua rotina, até chegar à estação ferroviária de Amoroso Costa, onde parte do gado embarcava com destino a São Paulo (capital e interior) e a Belo Horizonte. A gare integrava a rede da Companhia Mojiana de Estradas de Ferro, que inaugurou a estação de Uberaba em abril de 1889. Segundo depoimentos, 1975 foi o ano limite do trânsito das boiadas passando pelo alto do Cachimbo. O período fecha o ciclo das viagens por terra e inicia a chegada, definitiva, do caminhão como instrumento de transporte de gado. Sensíveis coincidências aconteceram durante esta narrativa sobre o Corredor dos Boiadeiros. Nos anos 70 e 80 havíamos entrevistado alguns cidadãos, cujas atividades profissionais eram ligadas diretamente à lida do gado, como boiadeiros, chacareiros, tocadores de berrantes, comerciantes e fregueses, artesãos que trabalhavam na manufatura de artefatos de ferro, couro, chifre de boi e crina de cavalo. Esses depoimentos deram substrato e razão especial a esse trabalho. Junte-se a eles uma série de outros, recentes, mas de mesmo significado, principalmente relatos de ex-moradores do local evocativo de uma vida ativa e saudável ligada ao campo, em vivendas e chácaras, que surpreendem por suas histórias ainda quase palpáveis. Da admiração por uma rua com perfil ainda bucólico nasce um trabalho que tenta entender as razões e consequências do trânsito intenso de boiadas por um recorte urbano, tendo como temas paralelos o comércio de 22

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gado, a indústria, o comércio varejista, todos eles dinamizados pelas picadas primitivas abertas no sertão e pela modernidade trazida pela ferrovia que nos afastava da Minas barroca e nos aproximava da região mais progressista do País, no início do século XX: o Estado de São Paulo.

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Capítulo

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MEMÓRIAS DO CACHIMBO I

A FRONTEIRA ENTRE CAMPO E CIDADE Cachimbo é um buraco fundo (De um morador do lugar)

Mirrada, no entardecer, a luz se dilui em ouro ao se fundir com a poeira levantada pela boiada rumo à pousada noturna. Foto – Luiz Andrade Corredor dos Boiadeiros

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CACHIMBO NO LIMIAR DO LUGAR Denominada de Cachimbo, desde meados do século XIX, quando é citada pelo Visconde de Taunay, que aqui esteve durante a Guerra do Paraguai, a região, ainda registrada na imprensa local, no início do século XX, foi sendo absorvida pelo processo de urbanização, tendo sido posteriormente loteada. Cachimbo era um campo aberto, no fundo do alto do Fabrício, onde é hoje a Vila São José. Apesar de não constar da história que se ensina nas escolas, foi cenário de uma passagem da História do Brasil. Em 1865, foi organizado em Uberaba o Corpo Expedicionário (Expedição da Laguna). De julho a setembro daquele ano, as tropas vindas do Rio de Janeiro, sob o comando do coronel Manuel Pedro Drago, e as mineiras, vindas de Ouro Preto, sob o comando do coronel José Antônio da Fonseca Galvão, estiveram em Uberaba, preparando o avanço para o Estado de Mato Grosso, para atingir e atacar o Paraguai, pelo norte. Era a Guerra do Paraguai esgotando a população e as finanças de quatro países vizinhos. O exaustivo trajeto foi percorrido a pé pelas tropas brasileiras, por terras fluminenses, paulistas, mineiras, mato-grossenses e paraguaias, na seguinte ordem: Rio – Santos – São Paulo – Pouso das Taipas – Ponte de Jundiaí – Campinas – Moji-Mirim – Vila de Casa Branca – Uberaba – Monte Alegre – Pouso de Passa Três – Valinhos – Rio dos Bois – Baús – Coxim – Morros – Taboca - Vila de Miranda e Forte da Bela Vista, na República Paraguaia. MEMÓRIAS DO VISCONDE DE TAUNAY Uma ave de porte, como o urubu, que alça voos muito altos e plaina nas alturas, mantendo as asas abertas – que lhe permitem equilíbrio ao entrar nas corredeiras do vento e facilitam deslocamentos descendentes e ascendentes, sem grande esforço –, tem condições de ver a imensidão do cerrado, o verde-claro das pastagens e, à medida que vai baixando, a cidade com seus cheiros fortes e peculiares, as casas entre arvoredo, o matadouro exalando aca atrativa dos bofes das vacas abatidas, o restolho dos porcos e cabritos sacrificados e jogados nos quintais, as ruas movimentadas com a chegada das tropas suadas vindas da Corte, de Ouro Preto e de São Paulo. Curiosa, a ave negra pousa 26

– “Deixando, a 1º de abril de 1865, o Rio de Janeiro, como oficial da Comissão de Engenheiros anexa à coluna do coronel Manuel Pedro Drago, que devia socorrer o sul de Mato Grosso, invadido pelos paraguaios, partiu Alfredo D’Escragnolle Taunay com a firme intenção de praticar à risca o preceito camoniano relativo à utilização, diária, diuturna, da espada e da pena”. – Visconde de Taunay

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– Lembra Paulo Marcos Esselin que a força expedicionária que partiu de Uberaba com o propósito de libertar Mato Grosso e que foi imortalizada no livro A Retirada da Laguna, pelo Visconde de Taunay, sofreu todas as privações, devido à ausência de animais de sela. - Durante a estada no Coxim, morreram quase todos os muares, não escapando um só cavalo, atingidos pela peste das cadeiras. – Visconde de Taunay.

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na cumeeira de uma casa do largo da Matriz, onde o movimento é intenso. Aguçada pelo fato que lhe traz novidades olfativas, ela agacha para ganhar impulso e decola em voo rápido até a margem dos córregos, onde a carniça de cachorro ou até mesmo de uma besta sagrada por ter se estropiado num buraco fundo lhe promete o repasto do dia. Em solo, o observador que tudo vê e tudo anota é Visconde de Taunay fez do Rio de Janeiro a Mato Grosso, acompanhando as tropas brasileiras, por ocasião da Guerra da Tríplice Aliança, conhecida como Guerra do Paraguai. Escritor, engenheiro militar e parlamentar do Império, Taunay esteve integrado às Forças brasileiras como membro oficial da Comissão de Engenheiros anexa à coluna do coronel Manuel Pedro Drago, que tinha como destino o Sul de Mato Grosso. Nas suas Cartas da Campanha de Mato Grosso – 18651866, ele descreve, com informações preciosas, todo o percurso das tropas que estiveram aquarteladas em Uberaba, por algum tempo. Os relatos de guerra notabilizaram vários escritores, pela observação humanista, seja pela crueza dos confrontos, seja pelas descrições de fatos do cotidiano, que tanto relevo adquirem com os avanços da sociedade e as mudanças de hábitos. Em Cartas da Campanha de Mato Grosso, o Visconde de Taunay fala da curiosidade de chegar a Uberaba e da presença de tropas brasileiras nesta cidade: “Tínhamos real ansiedade em chegar a Uberaba, desejosos de conhecer os elementos da Brigada Mineira, que ali viera a ter de Ouro Preto, sob o comando do coronel José Antônio da Fonseca Galvão, e estava à nossa espera. Aqui estavam aguardando a nossa vinda os corpos fixos (21 de linha) e o policial de Minas Gerais e o Batalhão de Voluntários Número 17. São pouco mais de mil e duzentos homens, segundo ouvi dizer”. “Uberaba, situada na aba de extensos chapadões, ergue-se pela encosta de dois deles, o que faz com que suas ruas sejam sobremodo regulares em seu nivelamento péssimo. Há, porém, um tal ou qual respeito pelas boas regras do alinhamento. Quanto ao calçamento, ainda dele não se encontra o mínimo vestígio na cidade. Têm as casas mesquinha aparência e são quase sempre de pau a pique, empregando com profusão a aroeira, que abunda pelas vizinhanças e é madeira de lei de primeira ordem”. “Há uma curiosidade digna de nota em Uberaba: a abundância das fon27


tes que de toda parte brotam de uma rocha branca, a que dão o nome de ‘bolha de sabão’. É impermeável e serve de condutor à água dos chapadões vizinhos. O líquido brota nos pontos mais baixos, numa camada de conglomerados de ferro que se sobrepõe à tal bolha de sabão e é muito porosa”. Foi em Uberaba que se organizou o corpo expedicionário para a Campanha de Mato Grosso contra os paraguaios, expedição que teve seu epílogo na famosa Retirada da Laguna. “Acampara a coluna expedicionária à meia légua da cidade, num lugar espaçoso, chamado Cachimbo, juntando-se aí os batalhões em casco, que tinham vindo conosco, à bela e bem organizada Brigada trazida de Ouro Preto pelo coronel José Antônio da Fonseca Galvão (a um quarto de légua de Uberaba, junto à Brigada Mineira, cujos batalhões têm bom aspecto)”. “Foi aí que, pela primeira vez, vi este velho chefe militar, o qual tinha, não sei por que, o apelido de Pastorinha. Nós, da Comissão, ocupamos as salas e cômodos da Câmara Municipal, por cima da cadeia, no canto do largo da Matriz com a rua do Comércio, a mais importante da cidade”. “Uma coisa que incomoda muito é a terrível terra seca pulverizada que o vento levanta e então tudo cobre, sobretudo quando passa uma tropa de cargueiros. O pó é constante, vermelho, muito fino, penetra por toda a parte, insinua-se, tornando-se incomodativo quanto possível. À passagem das tropas de cargueiros, formidável polvadeira nos cobria. Há falta de mantimentos, os fazendeiros dos arredores plantam pouco, apenas para o consumo da cidade. Assim, a exportação de cereais é muito diminuta. Toda a riqueza da zona consiste na criação; daqui saem grandes pontas de gado, que se destinam ao Rio de Janeiro. Ultimamente, os boiadeiros as tangem de preferência para Campinas e São Paulo, por causa das condições do monopólio da carne verde, que os prejudica”. “Em Uberaba, na cidade, há hoje umas duas mil e quinhentas almas e o seu enorme município terá dez vezes isto em população. Estamos alojados na Câmara Municipal, a mais bela casa da cidade. Foi-nos oferecida pelas autoridades locais”. Anotando tudo o que se passava no avanço pelo sertão, em cartas familiares, Taunay volta a falar do Cachimbo, no mesmo livro citado, quando as tropas levantam acampamento para seguir rumo ao Paraguai: “Afinal, procedem-se os preparativos para a nossa partida: empacota28

“As boiadas que, anteriormente rumavam para Uberaba em troca de sal e outros artigos de importação, entraram a seguir para o Sul, a saciar a fome dos batalhões aguerridos”. – Corrêa Filho.

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-se, carregam-se as bestas que seguem viagem e a artilharia se põe a caminho. Deixamos Uberaba no dia 4 de setembro. Drago, seguido de seu Estado Maior, saiu da cidade, foi ao acampamento receber as despedidas das pessoas gradas da cidade”. “Apareceu-nos, então, o dr. Des Genettes, a cavalo, carregando a sua fardinha esquisita de cirurgião da Guarda Nacional, feio, muito miudinho, magro, com os olhos esbugalhados, sobre os quais havia enorme pala de boné. Como estava exótico! Pronunciou um discurso engasgado, com assaz pronunciado sotaque francês. Estava tão comovido que os joelhos lhe tremiam. E tanto que se ouvia o tinir dos estribos sobre o argolão da cilha de seu animal. Desejou-nos “bonne chance” e muitos louros. Assim, deixamos o acampamento do Cachimbo e a cidade de Uberaba, onde nos demoramos nada menos de 47 dias, desde 18 de julho a 4 de setembro”. “De Uberaba seguimos rumo de noroeste, por meio de campos descobertos com vestígios de recentes queimadas, onde há, às vezes, belos capões, verdadeiros oásis de verdura, de onde quase sempre saem córregos e ribeirões. Campos e mais campos, a perder de vista, onde há plantas arbustivas; as cássias e solanáceas, muito nossas conhecidas das terras de São Paulo. As frutas-de-lobo, de que se faz doce no gênero da marmelada, escasseiam; os buritis é que se multiplicam, e muito. Junto ao córrego do Caçu nos acampamos à base de uma colina, onde havia enorme quantidade dessas lindas palmeiras. Os sertanejos não se enganam. Sempre que avistam buritis sabem que por perto deve haver água”.

“O gado vindo de Mato Grosso e Goiás, ao chegar a Santana do Paranaíba, já em terras do Triângulo Mineiro, era carimbado como sendo de origem mineira, o que deixava raivosos goianos e mato-grossenses”. – Esselin Corredor dos Boiadeiros

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Capítulo

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MEMÓRIAS DO CACHIMBO II

A boiada atravessava as ruas sertanejas, muitas vezes surgidas às margens dos Corredores. - Coleção Jaede de Toledo Corredor dos Boiadeiros

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A LEMBRANÇA COMO REGISTRO Neste capítulo, foram inventariados depoimentos de várias pessoas, em épocas distintas: o terceiro quartel do século XX e o século presente. Por ter tratado de diversos temas relacionados à cultura local e regional, em matérias publicadas nas décadas de 1970 e 1980, este autor criou um acervo próprio e disperso no tempo, mas hoje coeso na presente edição. Em depoimento dado ao autor em 1988, Benedito da Silva, 69 anos, é chofer de praça desde 1934, trabalhou na praça da Mojiana antiga (então localizada na atual rua Menelick de Carvalho), no Ponto Católico, ao lado da Catedral; no Ponto Azul, ao lado do Bazar Azul; na confluência da avenida Leopoldino de Oliveira com a rua Artur Machado, conhecida como Esquina do Enjeitei ou do Barulho. Há 30 anos, faz ponto na avenida Presidente Vargas, estacionado na subida do morro, defronte ao Hotel Modelo. Nascido e criado nas imediações do Cachimbo, na sede de uma chácara conhecida como Casa de Pedra, hoje situada na rua Espanha, Benedito relembra sua infância: “Meu pai, Apolinário da Silva, construía as casas de pedra tapiocanga. Essas pedras vinham do Cachimbo, em carros puxados por carneiros. A nossa casa era referência para quem ia por aquelas bandas do Cachimbo, do Fabrício. Minha mãe, Sá Delfina, era parteira (tinha o chapéu e o cilhão para montar a cavalo e assistir mulheres da roça, na hora do parto. Era a “chefona” do Fabrício. Organizava a reza do terço, todo sábado, nos pés do cruzeiro do Cachimbo, que ficava no meio dum campo, e hoje eu nem sei dele. O terço era tirado por uma viúva doente, aleijadinha, que cobrava dois mil réis por terço tirado. Era uma rendazinha que ela tinha para viver. Nos terços tinha muito canto e, ao final de cada um, faziam o sorteio dos festeiros do sábado seguinte. Ele levava os foguetes e ela, as velas, que colocavam no altar, armado à tarde por minha mãe e suas amigas. O terço se rezava no fim do dia”. “Lembro-me de que uma vez minha mãe chamou um carapina para reformar o cruzeiro. Ele reformou tudo. No Cachimbo tinha a serraria dos Calcagno e um pasto nos fundos, que acabou sendo loteado. O Cachimbo virou vila”. 32

Este Alto aqui era chamado de Cachimbo por causa de que os homens antigos, que usavam barbas longas e bigodes pontudos, viviam a fumar grandes cachimbos. – Pedro Argondizzi, morador do lugar.

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UM ANTIGO MORADOR Internado no Hospital Santa Helena (desativado em 2007), ele está sofrendo de mal na coluna. Antônio Ferreira da Silva, também em depoimento dado ao autor deste livro, em 1988, mais conhecido por Antônio Candinha ou Antônio da Prefeitura, onde ele trabalha desde 1920, deve ser o mais antigo morador do Cachimbo, onde nasceu em 1901. Ele se esquece da dor e procura dimensionar a geografia da região Cachimbo: “O Cachimbo é aquela parte rente à linha velha da Mojiana. Começa na rua da Mojiana, no bar Cordeiro (rua João Pinheiro, esquina com padre Francisco Rocha), passa a máquina de arroz do Augusto Araújo, a serraria dos Correia, vira, sobe, passa o Albergue, o Pedro Solé, o curtume, a chácara de Nenê Gomes, a do Sergipano; tudo isso era o Cachimbo. O Ceres era no Cachimbo. Perto dali do Ceres tinha pagode, uma tolda armada no campo. Tinha o cruzeiro, do tempo do meu avô. No Cruzeiro, antes de descer para a cidade, as congadas e os moçambiques dançavam ali, com muito respeito”. Quem dá noção da área compreendida pelo Alto do Cachimbo é Pedro Argondizzi, em depoimento dado ao autor deste livro, em 2013: “Da avenida Lucas Borges até a rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha, tudo isso era o Cachimbo”. VILA SÃO JOSÉ A CIDADE SE ESPARRAMA Um dos primeiros loteamentos feitos em Uberaba – o primeiro, Vila Carlos Machado, de 1893, foi projetado e realizado por Crispianiano Tavares, engenheiro da Mojiana, responsável pelas obras de implantação dos trilhos da ferrovia na cidade e região, no bairro Boa Vista, acima da estação ferroviária –, a Vila São José deu início ao processo de urbanização da região do Cachimbo. Lançado no início dos anos 1940, o empreendimento se manteve no limite entre cidade e campo, até a segunda década do século XXI, quando do outro lado da rua Panamá (Carlos Tasso Rodrigues da Cunha) começam as (poucas) edificações. A uma centena de lotes somava-se a construção da igreja de São José – logo em seguida, igreja de São José e São Judas Tadeu e, finalmente, Corredor dos Boiadeiros

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somente São Judas. As imagens de São José e São Judas eram colocadas em nichos laterais, tendo ao centro, no altar-mor, um crucifixo sobre altar em degraus, lembra Márcio Salge, em depoimento dado em 21/10/12, segundo o gosto art déco da época. Em depoimento de 21/10/2012, o empresário Eurípedes de Almeida rememora: “Vim para cá em 1941, com meus pais. Eu tinha quatro anos, passei toda minha vida aqui. Onde construíram a igreja de São Judas era o primeiro campo do Fabrício. Quando chegaram os capuchinhos para construir a igreja é que construíram o campo na rua Vital de Negreiros, onde está até hoje. Meu pai, Messias, era caminhoneiro e, quando se aposentou, tornou-se corretor, chegando a vender muitos terrenos aqui no Cachimbo. Quando viemos para cá, a cidade terminava lá embaixo, na rua Lucas Borges. Eu estudava, então, próximo daqui, na rua Colômbia, na escola do Militino dos Santos, um professor que era negro e manco. Fiz até o quarto ano primário. O curso de Admissão e o Ginásio, no período noturno, no Colégio Triângulo. Eu já tinha 10 anos de idade, vinha a pé do colégio até aqui, na maior escuridão. A avenida Almirante Barroso era um breu total e a gente aproveitava as luzes das poucas casas que havia lá para enxergar o caminho”. CRUZEIRO DO CACHIMBO UM MARCO “Um dia desses (publicação de 28/05/1988), um amigo, Henri Brandão, levou-me para conhecer um cruzeiro que há num lugar chamado Cachimbo. Foi o que bastou para que eu identificasse o local onde as tropas brasileiras erigiram um cruzeiro para as celebrações religiosas. Embora não cite esse cruzeiro, o Visconde de Taunay registra atividades religiosas nesse local”, conforme se segue: “Nesse acampamento do Cachimbo assisti, num domingo, a uma missa campal, que me produziu grande emoção. Não pude reter as lágrimas quando – formadas as forças em semicírculos em redor de uma barraquinha, ornada de folhas de palmeiras –, ao levantar da hóstia, símbolo da suprema humildade, romperam todas as músicas, o “Hino Nacional” e cor34

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netas, clarins e tambores tocaram marcha batida em continência ao general chefe, ao passo que a artilharia salvava”. Erguido no local chamado Córrego do Cachimbo, o cruzeiro, segundo o senhor João Luís dos Santos (João Mapuaba), “foi construído por intenções a Santo Eustáquio, protetor dos feridos de guerra, e ao Divino Espírito Santo”, informa o boletim (ver Boletim) de 27/05/1988, da Fundação Cultural de Uberaba, que complementa: “Por iniciativa da Secretaria Municipal de Educação e Cultura, Fundação Cultural e do Arquivo Público (de Uberaba), num trabalho conjunto, o Cruzeiro do Cachimbo foi tombado como patrimônio histórico, restaurado e trasladado para um novo local: praça João de Vito, no mesmo alto do Fabrício.” Em nota enviada ao jornal uberabense Cidade Hoje, este autor comenta: “Estando, então, à frente da Fundação Cultural de Uberaba, procurei, inutilmente, junto à Secretaria de Obras deste município, criar uma atividade cultural em torno do cruzeiro do Cachimbo. Sendo impossível a realização deste projeto, tentei, também em vão, levar o Cruzeiro para lugar público, fato somente realizado agora, em 1988. Fazendo parte do pouco dinâmico Conselho Consultivo do Patrimônio Municipal, encarregado de orientar o Poder Executivo sobre os bens a serem tombados em Uberaba, fiz questão de incluir o Cruzeiro do Cachimbo entre eles”. Ainda na reportagem sobre o Cruzeiro do Cachimbo, este autor comenta: “Se até meados do século XX o Cruzeiro do Cachimbo era local de peregrinação, cuja base era aguada por penitentes, que levavam, juntamente com flores, em potes, o precioso líquido, na esperança de conseguir chuva; se o Cruzeiro do Cachimbo ficava até então solto num campo aberto, como bem disse Gabriel Toti, no seu poema Uberaba de Uma Vez”: Os cruzeiros de São Benedito Das Mercês, do Cachimbo Com os braços abertos, E ao redor, desertos. “Eu me lembro muito do Cruzeiro do Cachimbo, na rua América, onde Corredor dos Boiadeiros

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residia o Sebastião Mapuaba (Sebastião Silvestre Santos), que ensaiava o congado ali”, diz Antônio Alexandre do Amaral, em entrevista feita em 11/08/2012. Com o crescimento da cidade, tornou-se inevitável o loteamento da área onde o cruzeiro se situava. A peça religiosa integrou-se a um dos terrenos do empreendimento. E no quintal de uma casa da rua América ele logo ficou escondido entre os galhos de uma mangueira. Aos poucos, foi esquecido dos devotos que a ele recorriam para orações. Felizmente, os proprietários tiveram o bom senso de não destruí-lo. Seu aspecto é de muito desgaste, provocado pelo tempo, embora seja feito de madeira de lei, provavelmente de aroeira. Conserva ainda os tradicionais elementos iconográficos da Paixão de Jesus, comuns nos cruzeiros tradicionais, como o galo, que cantou três vezes durante a traição de Pedro, que negou aos soldados romanos conhecer o Mestre; o martelo, a lança e o torquês, utilizados para pregar, lancetar e despregar Jesus, bem como o tecido a cobrir-lhe a nudez e o resplendor, já desaparecido, símbolo da Ressurreição. (Matéria deste autor publicada no Jornal da Manhã, 28/05/1988). À frente do Museu de Arte Sacra, conseguimos, logo em seguida ao descobrimento e com aval dos proprietários da residência onde se encontrava, que o Cruzeiro do Cachimbo fosse dali retirado e restaurado, para ser integrado a uma localidade pública da região; o que foi feito, mais tarde, pelo Arquivo Público de Uberaba, que o instalou na praça João De Vito, onde foi parcialmente incendiado por vândalos. Foi então recolhido ao depósito do Museu de Arte Sacra, sendo restaurado por Adriano Luís de Sousa. Desde então, nunca mais foi reintegrado à praça pública, o que deve ser feito, o mais breve possível, de preferência na praça Magalhães Pinto, defronte ao quartel do Quarto Batalhão de Polícia Militar de Minas Gerais, numa referência a seu passado histórico. TERNO BATALHÃO DO NORTE – “Todos ainda se ressentem da morte do velho moçambiqueiro. O gentil, meigo e grandalhão seu Olício Francisco Vieira. No céu suburbano, a lua surge gorda e prosa. Debaixo dos varais estendidos no quintal, sentado na 36

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boca da cisterna, o repórter vê os ensaios do Batalhão do Norte. Um terno fundado em 26 de abril de 1949, na rua D. Pedro II, mais conhecida como rua dos Cachorros. Em 1976, por ocasião da morte de seu Olício, o terno passou para a direção de Avelino Aparecido Dionísio (26 anos). O Batalhão é um terno diferente dos demais da cidade. Ele tem roupas e adereços especiais. Os congadeiros carregam, como chapéus na cabeça, barcos de papel muito enfeitados. E muitas penas. Roupas muito bordadas. É também conhecido como o terno do sainha, pois os homens usam uma saia sobre a calça comprida. Convém notar que este complemento lhes confere um caráter especial na hora da dança, aumentando o efeito da movimentação, colorindo as ruas da cidade de vermelho e branco”. – “O Batalhão do Norte, embora sediado no alto da Boa Vista, é vizinho do Fabrício e, por extensão, do Cachimbo”. De madrugadinha, quando vai buscar a rainha na porta da casa dela, seu Olício canta: Rainha conga Esse é o Barco do Norte Ele veio te buscar. Rainha Conga Rainha do Indomar, Chegou o negro congo. Agora, vamos. Saravá! Aí, é bisado pelos demais congadeiros. Depois, seu Olívio canta para o rei: Ô sinhô, rei, Me dê sua licença. Ô dia 13 de maio, Ô dia 13 de maio, Me dê sua licença Pra fazê a sua festa. O Batalhão do Norte leva viola, sanfona, cavaquinho e percussão. O comando, como os demais, é por apito. Corredor dos Boiadeiros

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“Só de ver a caixa bater, vai voltando os versos todos na cara, respondeu seu Olício quando perguntado como faz para se lembrar de todos os versos que puxa no cortejo pelas ruas da cidade, no dia 13 de maio”. “Eu era moleque e saía no terno de Moçambique de seu Olício, mas tinha também o terno do Sebastião Mapuaba” diz Antônio Francisco de Faria em depoimento de junho de 2012. TERNO DE CONGADO DE DO SEBASTIÃO MAPUABA Residente na rua América, a cerca de 100 metros do Cruzeiro do Cachimbo, homem profundamente religioso, o negro Sebastião Mapuaba levava seu terno de congado verde-amarelo II a reverenciar o que para os católicos representa o sofrimento de Jesus e a redenção da Humanidade. Diante do cruzeiro, os congadeiros manifestavam seu fervor, cantando e dançando, com reverência. O empresário Eurípedes de Almeida recorda bem de ver o terno de Sebastião Mapuaba batendo caixa e cantando versos, diante do Cruzeiro. E nos anos de 1980, em ocasiões como esta, os congadeiros e moçambiqueiros de Uberaba costumam cantar: Tremeu a terra Tremeu a Cruz Tremeu o mundo inteiro Mas não tremeu Jesus. CONSIDERAÇÕES Pelo que foi exposto neste capítulo e pelo que se fará nos seguintes, principalmente naqueles dedicados às vivendas, à indústria e ao comércio, compondo o trajeto do Corredor, bem como suas adjacências, os sítios, as pequenas fazendas e com o representativo desenvolvimento industrial e comercial no local e na redondeza, pode-se analisar a importância do mesmo para o crescimento econômico e urbanístico de Uberaba, que não era uma cidade dedicada somente ao comércio zebuíno. 38

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Capítulo

03

TROPEIROS E BOIADAS Os peões usavam paletós claros, hábito urbano, para conduzir o gado pelas fazendas.

Cenas e vistas de Goiás 2, por Henrique Silva, Revista KOSMOS, Outubro 1907 Corredor dos Boiadeiros

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Vou contar pra vocês Minha vida boiadeira, Abracei com muito amor Esta espinhosa carreira. Vivia correndo mundo Tomava chuva e poeira, Tomava sol e serenos Dormindo pelas cocheira, Bebendo água na guampa, Comendo boia tropera. Hoje num viajo mais Encerrei minha Carrera, Só resta uma saudade, Minha vida boiadêra. Meus amigos serestêro Da grande terra mineira, Que guardaro o berrante Por lembrança derradêra, O berrante que eu tocava Pro menino da portêra. Caminho das Tropas “À tarde, o eco dum aboiado rolou pelo fundo da várzea, ondulando dolentemente de quebrada em quebrada, num despertar intenso de saudade... Eram boiadeiros que lá passavam, na estrada batida. O vaqueiro velho não saiu, então, como de costume, ferrão em punho, perneiras e guarda-peito, escorreito de desempenado, no rosilho campeador, a dar a mão de ajuda àqueles forasteiros que lá iam, em demanda das terras distantes e das feiras ruidosas dos sertões mineiros d’além Paranaíba”. – Hugo de Carvalho Ramos. 40

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Do Chapadão do Bugre “O frio aumentava. O rio já amanhecia com os barrancos esbranquiçados de orvalho, a água vagarosa e fumacenta – certeiros sinais de geada, lá pela primeira lua de junho. O trânsito das comitivas pelo Porto do Paiol Queimado crescia por essa temporada, época em que voltavam do pantanal. Um dia repontavam, boiada trás boiada, ror de gado atropelado pelas marchas de muitos meses, desfeito pela dura maceguinha sem sustância do chapadão. Com as comitivas, vinha a peleja para os pobres de siá Preta e seu João – cismava José de Arimatéia. Fornecer comida a que horas da noite, o porto atravancado de camaradagem e tropa, os currais entupidos de boi – a balsa num ir-e-vir sem descanso. Mas os dois velhos se conformavam: bastantinha criação no terreiro, a lavourinha do gasto bem ali no fresco do barranco... E seu Americão Barbosa protegia: da Fazenda do Sassafrás vinha de tudo: rapadura e o café em coco, banha, o sal, querosene. Farinha e sabão de cinza, até o azeite de candeia, isso a danada da siá Preta, ela mesma, é quem fazia”. – Mário Palmério. Das Caçadas de Vida e de Morte “Moleque Zé Anjo, na guia você tem que ter atenção. A tropa, o gado, os bois de carro, tudo o que vem atrás vai no seu rastro e confiança. Por isso é preciso você aboiar, chamar a tropa, barulhar o caminho na frente, a mode assustar cobra ou bicho do mato que pode aparecer de repente, com alvoroço, ou assustar ou esparramar a nossa traia. Guia não é só pra mostrar caminho!” – João Gilberto Rodrigues a Cunha. Onipresentes na literatura brasileira, os buritis pontilham, soberanos, as dobras da paisagem sertaneja, atraídos pelos filetes de água que formam brejos e lhes ensopam as raízes sedentas. Fotos – Renato Peixoto

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Nos Caminhos das Boiadas “A poeira que avistávamos era grande. Já estávamos entrando no período das chuvas, mas estas estavam ridicas – a terra ainda estava seca. Íamos calados. Seu Lucas, na frente, esporeando, sem cessar, a besta pedrês, bem tosada. O Corredor dos Boiadeiros que eu conhecia tão bem ia sair em Sacramento. Daí para a frente era tudo novidade”. “O sol já tinha derrubado, com o seu calor, o orvalho que madrugada tão carinhosamente havia depositado nas pontas do capim mimoso. No curralão 41


de lasca estavam os animais que vieram à procura de sal, pela madrugada, e que o índio, sorrateiramente fechara. Umas quinze mulas que, no ano interior, pisadas, magras e aguadas, não puderam acompanhar as boiadas. Seriam um estorvo e, com certeza, morreria na travessia de oeste para leste. Assim, antes de partir, foram sangradas com fremo na jugular da taba do pescoço. E, agora, estavam ali, gordas, com ventas dilatadas, a correr com o rabo estendido e soprando pelas narinas”. – Joaquim Adolfo de Carvalho Borges. AS PAINAS DE ABRIL “No início das secas, chão umedecido, a floração não se restringe aos canteiros defronte às casas: vai do passeio público às capoeiras, ainda não queimadas, até se manifestar, explícita, no fundo do quintal do meu avô Miguel Abdanur, onde imensa paineira é a edificação mais alta da cidade, visto que, em abril, vêm das roças as assustadoras boiadas, abanando, no chão das ruas uma poeira que engasga e faz as casas desaparecerem em nuvens avermelhadas. Cruzando a cidade, por uma besteira qualquer, um estampido sem sentido, o gado pode disparar – vem, daí, o desespero de pensar em uma criança pisoteada. Os peões, como raios, galopam para a dianteira, freando e acuando a boiada que, na disparada, trepida o chão, abala a terra, abrindo rachaduras nos muros de taipa da Rua de Baixo. Esta fricção no solo acorda as raízes da árvore que, sugando a seiva profunda, acabam por despertar, na copa da frondosa paineira do quintal de meu avô, um dilúvio rosado de florações que, toda ela, não é senão um grande jardim erguido para os céus de Dores de Santa Juliana. - Jorge Alberto Nabut

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O CAMINHO DAS TROPAS QUANDO A POEIRA BAIXAVA... Um frio ardido se diverte correndo pelo mato, brincando de pique com seus iguais, retorcendo mais ainda as árvores do cerrado, fazendo o gado encolher a cabeça e os homens se juntarem para perto da fogueira, que se contorce incansavelmente, com suas lamparinas acesas a alumiar a cara deles, uma por uma, com a luz tremeluzindo e soltando fagulhas no espaço negro retinto. Cada homem toma uma posição em torno do fogo, que o lugar e a tralha que levam consigo permite: se aquecendo debaixo da capa, sentado sobre os calcanhares, riscando o chão arenoso com uma varinha, como um lápis que não sabe escrever, só desenhar; um, precavido, alisa a arma, sua companheira certeira, todos de orelha em pé, atentos aos casos do João Onofre Martins, o Pirulito Berranteiro. “Uma vez, gastamos 66 dias, de Uberaba a Campo Grande. Uma tropa para ir daqui a Rondonópolis precisa mais ou menos de uns vinte e cinco burros; dois para cada peão, porque numa viagem longa assim, peão não vai de cavalo, vai montado nos burros. Lá em Mato Grosso, o medo dos bichos faz a gente dormir trepado nas árvores, se acomodando nas forquilhas. A gente tira as redes e com ela se amarra nos galhos. Uma só fogueira é pouco. A gente acende umas quatro ou cinco fogueiras na ‘ronda viva’. Tudo isso por causa das onças. Teve uma onça que acompanhou o cozinheiro e, passando por um atalho pra pegá ele, logo ali na frente, assustou os burros que sentiro o chêro azedo dela e saíram na carreira, aprontando um barulhão danado, esparramando as panelas e os pratos, uma bagunça que assustou a própria pintada”. Caindo de sono e doido pra dormir, um peão pergunta: “T’amo muito longe d’Uberaba? T’amo não. Umas três légua. A gente acorda ali pelas quatro hora, toma café, arriba, almoça nos Faneco e chegamo na cidade de manhanzinha do dia seguinte, atravessamo o Corredor dos Boiadêro, a tempo de deixá a boiada de frente da estação de trem. Ela pernoita no curral de Amoroso Costa; no outro dia, é só esperá a hora de embarcar os animal, tudo, no trem”. Só os vigias da tropa e as corujas ainda continuam de olhos arregalados; eles, de olho em qualquer ameaça que possa aparecer, uma cobra peçonhenta, Corredor dos Boiadeiros

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uma onça faminta, elas, virando a cabeça da esquerda para a direita em busca do que comer, pois é à noite que elas saem à caça. As seriemas começam com aquele diálogo de pergunta e resposta, gritando para ser ouvidas a distância. O gado e os homens se põem de pé para mais uma jornada que o café forte da manhã anima. É dia e a boiada já ‘envai’, longe, quieta, fazendo uma curva para desviar da grande paineira, florida e perfumada neste abril da Semana das Dores. VIDA DE PEÃO Ouvindo falar que uma grande boiada está para chegar e que vai passar pelo Corredor dos Boiadeiros, um jornalista do Rio de Janeiro que veio passar as férias aqui, não se aguentando de curiosidade e querendo fotografar e entrevistar gente da comitiva, pegou um carro emprestado com o pai de seu amigo que o hospeda e foi ao encontro da boiada. Encontrou-a pastando e os homens da comitiva, na hora da boia, debaixo de um óleo, uma das árvores mais frondosas do cerrado. – Bom dia, meus senhores. – Diiia... – Eu gostaria de falar com o senhor Pirulito Berranteiro. – Sou eu, sim senhor... tá falano com ele – Estou fazendo uma matéria para ser publicada no jornal e gostaria de uma entrevista com o senhor. – Às suas ordens. Aqui é meio desconfortável, mas a gente se ajeita. – Quando duas boiadas se encontram, uma não pode ver a outra. De longe, os berranteiros de cada boiada se comunicam e cada um informa pro outro quantas cabeças de gado tem a sua boiada, quantos bois lá envão! Pra você ver, eu pego o berrante e toco: Laaaaari! Laaaaari! Laaaaari! laaaaarai! E o berranteiro de lá responde: Laaaaari! Laaaaari! Laaaaarai! Quer dizer que a minha boiada tem uns 1.500 bois e a dele tem uns mil. Aquele que tiver a menor boiada retira ela da estrada e escon-

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de. Então, a boiada que eu tô nela passa, e eu vou tocando a Ave-Maria, ao que o outro responde com o mesmo repertório. Sempre na saída da boiada eu toco a Ave-Maria” – João Onofre Martins, o Pirulito Berranteiro.

Peão José Carvalho Filho (José Baiano) nos anos 20.

“O berranteiro tem um toque certo para cada hora. Tem o batido (toque) mineiro, o mais bonito, mais comprido e mais lento; o goiano; o batido paulista; o batido barretense, que é mais repicado; o de Goiás, que é floriado, tremido, uns tremidos diferente; o do Mato Grosso, que é floriado e repicado; o paraguaio, que é igual ao das folias de reis; tem o batido de berrante dos bugres – esses moreninhos, baixinhos, do mato –, usado na região de Campo Grande pra baixo, perto de Jussara, divisa do Paraguai... Todos os toques são diferentes. E o berranteiro tem de saber os toques. Existe um controle que, se um berranteiro for ruim, o outro vem e toma o berrante dele. E deixa eu te explicar: batido é o toque grosso. Mas, no estouro da boiada, o toque é grosso e fino”. Relando a boiada, os boiadeiros vão se revezando, como um bando de pássaros, ora um está lá na dianteira, outra hora cá atrás, trocando informações sobre as ocorrências e os imprevistos que vão surgindo pela frente. “Óia. Uma boiada para ir, daqui a Rondonópolis precisa de mais ou menos uns vinte e cinco burros. Dois para cada peão. Durante vinte e cinco anos transportei boiada por este Brasil afora. Daqui de Uberaba para Mato Grosso, Alto Araguaia, Alto Garça, Rondonópolis, Campo Grande. A maior viagem que fiz foi de Uberaba a Rondonópolis. Três meses e meio levando 1.500 cabeças de gado”. “A função do berranteiro principia antes da saída da boiada. Ele entra no curral e passa, ali, uma meia hora, tocando para o gado, até ele se acostumar com os toques. Se não, quando você vai tocar, ele se assusta e estoura. Em seguida, vem o toque de saída. Segue viagem. A tropa segue na frente, com os burros emparelhados, chamados cargueiros: dois burros carregam quatro bruacas cobertos pelos dobros, espécie de sacola de lona e sola afiveladas com cintos. Cada boiadeiro tem o seu dobro e sobre esta tralha vem o tilim, um couro curtido que cobre a carga, amarrado com tiras de couro que passam pela barriga do animal”. “Na dianteira da tropa, o personagem indispensável: o cozinheiro que

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segue com a trempe, as panelas, os pratos e xícaras esmaltados e os bules, uma para o café, outro para o chimarrão, mais dois caldeirões e a baciinha, além dos espetos para churrasco. Logo que termina o café, o cozinheiro segue na frente da tropa para encontrar o primeiro ‘corgo’, distante dali umas duas léguas, onde ele para e vai preparar o cumê de toda a gente”. “Numa viagem distante, o cheiro do gado, o bafo do gado, prega na roupa do vaqueiro de tal maneira que o gado percebe quando o homem faz parte ou não da tropa. Se o cheiro do hômi for diferente, o gado estranha”. “Já toquei berrante feito de cabaça, não de chifre, mas, hoje, tá difícil encontrá um desses. O som do berrante de cabaça é diferente, mais rúim, mais esparramado; o de chifre é mais firme. Um chifre muito volteado é bonito, mas não tem o mesmo som do mais simples. Dos diversos toques de berrante, cada um tem sua serventia. Pra peãozada acordar de manhã cedo, chamar a boiada, dar sinal nas encruzilhadas, pra almoçá ou pra jantá, um toque pra saída, outro pra chegada, pra juntar a boiada ou pra quando ela estourar”. Um dos grandes receios dos tropeiros é o estouro da boiada, que põe em risco a população de uma cidade e, quando está no campo, ela se dispersa em todas as direções, dando imenso trabalho para reajuntá-la. “Quando a boiada estoura é preciso “reguachar” ela: achar um lugar limpo pra ela parar. Ali eu chego com a pinhola, um chicotão cheio de argolas, dando estalos no ar, feito revólver, sem deixar o chicote bater no chão, dando voltas na frente da tropa, que fica com medo dos estalos e sossega. Na ponta da pinhola fica a iapa, trançada com cordinha de bacalhau ou de embira de coqueiro”. A TRAVESSIA DO RIO “Seu Lucas ia passando pelo gado e acenando para os peões. Quando chegamos à Serra das Sete Voltas, a primeira boiada já tinha começado a descer. Ali, uma ramificação da Serra da Canastra, cabeceira do rio São Francisco. De onde estávamos avistávamos o rio Grande, ou melhor, pedaços do rio. As serras que o margeavam, com ciúme da beleza de suas águas, escondiam pedaços do rio, que, em curvas, ia rumo ao poente até o Mato Grosso. Seis quilômetros abaixo, entramos numa estrada que ligava Espírito Santo com Ibiraci, atravessando o rio Grande pela ponte dos Peixotos, feita de aroeira. 46

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Seu Lucas preferia jogar a boiada n’água. Além de bem mais barato, era perto de Cássia. O pedágio da ponte era mais caro e, do lado de Ibiraci, era montanhoso e de muita pedra. A boiada fora quase toda comprada embaixo da serra de Maracaju, para o lado do Pantanal, onde fora criada, e depois, para endurecer os cascos, fora trazida para ali. Acostumada com a água, não teria problemas. Já havia atravessado os rios Pardo, Verde, Sucuriú e Paranaíba. Mais um rio não faria diferença, embora os três primeiros fossem estreitos. Fungando, ia a boiada nadando, com a cabeça de fora. Pouco a pouco, o restante ia entrando na seringa e daí para o rio. Agora eram centenas de cabeças. Os canoeiros, do lado de baixo, aboiavam, acalmando os bois. O berrante, lá da ‘barrancada’, repicava. De vez em quando, subia rio acima uma neblina que encobria tudo”. - Descrição de Joaquim Adolfo de Carvalho Borges. NO RASTRO DA MEMÓRIA Na maior e mais movimentada avenida da cidade de Uberaba, a Leopoldino de Oliveira, num sobrado discreto, Francisco Cavalcante do Nascimento (Veríssimo, MG, 25\12\1913) é um homem tranquilo, educado, humorado, o brasileiro gentil celebrado por Aurélio Buarque de Holanda. Os cem anos de inacreditável atividade não lhe curvaram as costas, não lhe deram tremor às mãos e, de maneira impressionante, não lhe afetaram a memória remota e nem a memória recente. Ele tem os cem anos distribuídos como numa régua, sobre cuja planura e precisão as décadas, os anos e os dias se dividem com igualdade de espaço para armazenamento dos fatos

Desde o Descobrimento, o carro de bois foi o meio de transportes fundamental na conquista das mais diversas regiões do País. Coleção Museu do Zebu. Corredor dos Boiadeiros

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vividos ao longo de tanto tempo, como se fossem centímetros e milímetros. Joaquim Cavalcante conta os casos de sua existência com serenidade, numa sequência lógica, sem titubear, nem mesmo no “andamento” de cidades por onde passou, levando boiadas por São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás e Mato Grosso (do Sul e Tocantins) e outras cidades de Minas Gerais. A aposentadoria lhe deu a calma, irreconhecível nos tempos atribulados de boiadeiro. Num tempo em que não havia estradas de rodagem que ligassem o Norte e o Nordeste ao sul do País, os baianos vieram a pé de Vitória da Conquista, fornecendo mão de obra para as lavouras, a abertura de estrada, a construção da cidade de Conquista, no Triângulo Mineiro, nome dado devido à origem remota daquela gente valente. Alguns maranhenses foram mais audaciosos ainda. Vieram do Maranhão, muito mais distante ainda. No século XVIII, o bispo Dom Frei Manuel da Cruz veio de barco, a cavalo e a pé de São Luís até Minas Gerais, ocupar a Diocese de Mariana, maior que países da Europa. No século XIX, o pai de Joaquim Cavalcante também veio do Maranhão, a pé, para trabalhar com gado e no comércio de gado. A bravura de nordestinos às vezes resulta em livro, como no caso do bispo, ou caem no anonimato, como aconteceu com os baianos de Conquista, ou o boiadeiro Joaquim Cavalcante. Bem, vamos entrar no sobrado, que o sol está ardido aqui de fora. “Meu pai, Joaquim Cavalcante, veio a pé do Barra do Corda, no Maranhão, até aqui, chegando a Uberaba, em 1887. Começou a trabalhar com os Borges e morreu no meio deles. Por isso, tenho orgulho dos maranhenses, um povo corajoso. Ele foi empregado dos Machado Borges e acabou sendo companheiro deles. Aprendeu a ser homem aqui”. “Estudei um pouco na minha cidade de Veríssimo, até o terceiro Primário. O quarto ano fiz em Uberaba, na Escola de Alceu Novais, onde a professora se interessou por mim. Saí de Veríssimo com 16 anos de idade, acompanhando meu pai, que era boiadeiro, na minha primeira viagem. Saímos de Veríssimo no dia 29 de novembro de 1909, numa viagem até o Mato Grosso. Eu recebia 140 mil réis para trabalhar com ele de peão de boiadeiro. A gente viajava a cavalo, tocando a boiada, levando zebu. Passamos por Rio Preto e Porto do Tabuado, Quitéria, Três Lagoas, Campo Grande, Aroeira, Ponta Porã, Bela Vista, Aquidauana e Porto Soares, na divisa com a Bolívia. 48

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De lá, voltamos por Corumbá. Em Rio Negro, no Mato Grosso, falhamos seis meses, pastoreando o gado. Nesse tempo aprendi a contar boi. Lá, um belo dia, um fazendeiro mandou eu contar os bois e eu mostrei a ele que sabia. O zebu estava começando no Brasil e meu pai ia até o Prata para comprar os animais de diversos fazendeiros, como o Gentil Macedo. Mas o povo não conhecia o zebu, não queria saber de zebu. Mesmo assim, meu pai trocou zebu por gado de corte. Foi uma peleja para dispor do gado. Então, voltamos em 1931”. “Em Veríssimo fui trabalhar com Joaquim Carlos da Silva e Pedro Salomão, vendendo zebu para eles no estado de São Paulo, viajando a cavalo por Rio Preto, Tupã, Rancharia, Lençóis, Garça, Marília, Bauru... Tudo era pequeno naquela época. Conheci bastante São Paulo. O tempo foi passando, ajuntei um dinheirinho e mais adiante comprei tropa pequena. Para o senhor ver uma tropa grande precisa até de 20 burros, às vezes precisa até mais, quando a boiada tem até mil cabeças de gado”. “Em 1932, fiz o Tiro de Guerra que ficava numa casinha ruim, na rua Carlos Rodrigues, no fundo do Hospital São José. Era lá também que os alunos do Diocesano faziam o Tiro. Quem comandava era o sargento Aristóteles. Juramos Bandeira no dia 19 de dezembro daquele ano. Então, fui trabalhar para o Rodolfo Machado Borges, um dos maiores homens desta cidade de Uberaba. Vendemos muito zebu para Minas e São Paulo. Em 1933, 1934, trabalhei para vários fazendeiros. Um fazendeiro comprava 500, mil bois, e era preciso levar o gado para a fazenda dele. Eu fazia esse serviço e recebia por dia ou por marcha. Trabalhei também como comissário. Fui aprendendo as manias do povo, a fazer negócios e a enfrentar os perigos. Era perigoso viajar naquela época e é perigoso até hoje. Mas não tinha ladrão como hoje. O sujeito roubava e matava, mas só por causa do dinheiro. Em nem toda comitiva andava armada, pois não era todo boiadeiro que tinha dinheiro para comprar um revólver 32 ou 38. Eu ia bem armado, com um Smith”. “Em primeiro de janeiro de 1962, montei a tropa para viajar de Uberaba até o Maranhão. Eram 30 burros e dois cargueiros com os mantimentos e a roupinha para a gente vestir. Comprei a tropa do Adolfo Andrade. Saímos de Uberaba, passamos por Uberlândia, Araguari, Anápolis, Ceres, Uruaçu, Porangatu, Gurupi, Araguaína e Ponte do Estreito – lugar que divide Goiás com Maranhão. Peguei esta viagem por 10 mil contos, mas lá eles não Corredor dos Boiadeiros

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podiam receber o gado, não tinham ordem para receber zebu. Foi preciso carta do governador para liberar a passagem. Então, a viagem teve de continuar. Fomos para Imperatriz, Santo Antônio e Lago do Junco. Lá entreguei o gado e por causa da distância maior que tivemos de percorrer, ganhei mais dois contos de réis. Voltei em 24 de julho de 1962. Gastei dois dias nessa viagem, de avião e de ônibus. Na ida, foram 184 dias. Ganhei dinheiro como nunca pensei em ganhar. Só fazendeiro tinha 12 contos de réis. Quando cheguei ao Banco do Brasil com o dinheiro, os “nego” ficavam me olhando. Um homem naquele tempo não tinha coragem de fazer o que fiz a cavalo, gastando até seis meses de viagem. O Lamartine Mendes fez, mas de navio. Mas eu tinha Deus e Nossa Senhora d’Abadia comigo. Com o dinheiro que ganhei comprei a minha casa e a chácara no Chuá”.

As seriemas emitem mensagens nas paisagens queimadas que desarticulam o equilíbrio ecológico. Fotos - Jairo Chagas.

A ÚLTIMA VIAGEM “Com a quebradeira do zebu, em 1944, as coisas ficaram difíceis. Em 1948 eu parei de mexer com zebu. Eu também tomei prejuízo, tinha um gado financiado. Vendi tudo o que tinha e paguei tudo o que devia. Fiquei sem nada. Um amigo do grande boiadeiro Chiquito Rosa, arrasado com a quebra do zebu, suicidou-se, saltando da ponte do rio Grande. Eu e meu cunhado Armelindo Armelo da Silva, casado com minha irmã. Mas tive tempo de escolher minha mulher, Alda Morais Reis Cavalcante. Eu ‘pisava alto’, escolhi uma mulher boa, bonita, formada no Colégio Nossa Senhora das Dores. Com ela tive quatro filhos. Hoje só me resta a Lúcia”. “Então, fui trabalhar com o Garibaldi Arantes, cunhado de Mário Palmério. Ele abriu o cofre e me disse: o dinheiro está aí, vá comprar gado. Eu comprava gado em Uberaba, Tupaciguara, Uberlândia, Ituiutaba e Prata para vender no estado de São Paulo, principalmente na cidade de Novo Horizonte, onde eu “abria as malas” para mostrar a mercadoria. Onde tinha um gadinho eu comprava. Também trabalhei para o Torres Homem (Rodrigues da Cunha) que era um homem muito bom. Para ele fiz uma das melhores viagens, em 1968, levando 1.401 vacas; 1.200 solteiras e 201 paridas. Gastei nessa viagem 72 dias no estado de São Paulo, próximo ao Paraguai. Viajei a cavalo, de ônibus, de trem e de avião. Conheço muito os estados de São Paulo, Goiás, Mato Grosso e, também, de 1972 a 1975, o Rio Grande do 50

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Sul, onde vendi zebu para o Alírio Silva, indo de caminhão de Veríssimo até Vacaria, Alegrete, na divisa com a Argentina. Fiz duas viagens a cavalo para Tomás Rodrigues da Cunha, indo de Uberaba a Curitiba, Londrina, Garapuava e Ponta Grossa”. “Para a sociedade Nova Era, presidida pelo Wagner Sabino, com sócios daqui e de São Paulo, em 1975, levei duas mil cabeças de novilhas em quatro viagens, com 500 animais cada uma. Embarcava os animais na estação de Amoroso Costa, passava pelas estações de Ribeirão Preto, Campinas, Mayrink, Bauru, Araçatuba, Campo Grande, Porto Soares, San José, na Bolívia, e, enfim, de Santa Cruz de la Sierra. Foi uma viagem diferente, um luxo - os tropeiros fardados (uniformizados) - e deu um lucro danado para os organizadores”. “Uma das minhas últimas viagens que fiz foi para o Fernandino Assumpção, outro homem muito bom, genro do Mário Palmério, sócio de Hugo Arantes. Peguei o gado dele em São Luís de Monte Belo, em Goiás, e levei para Três Lagoas, em Mato Grosso. Até Goiânia, fui de ônibus, e em Monte Belo encontrei-me com minha tropa que tinha saído de Uberaba, tocada pelo meu tropeiro, José Pinto, hoje já falecido. Viajei muito a cavalo, sozinho, daqui a Veríssimo, daqui para Prata. Fui gerente do Parque Fernando Costa, de 1961 a 1971. Quando eu me aposentei, comprei uma chacrinha e fui tomar conta do que é meu. Ali eu tenho 70 vacas nelore e quem gerencia sou eu”. SAUDADE BRAVA! Francisco Cavalcante parou de trabalhar aos 80 anos. Há 20 leva vida de aposentado, exercendo a memória com rara habilidade. Sentado à mesa de jantar, às vezes ele tem o olhar vago, talvez em busca da sequência de viagens que fez dele um homem notável. Perguntado se sente saudades dos tempos de boiadeiro, o corpo magro, embora rijo, parece fraquejar; o rosto desce em direção às mãos apertadas e apoiadas sobre o tampo do móvel de imbuia, o sangue sobe-lhe à cabeça e os olhos marejados se avermelham à dianteira das lágrimas: “Eu penso no que eu era, no que fiz, no que fui e no que sou hoje... Eu fiz muito. Hoje não sou nada”. Corredor dos Boiadeiros

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É sim, caro Francisco Cavalcante! O senhor é o verdadeiro depositário da memória de milhares de trabalhadores anônimos que deram seu trabalho e sua vida ao remapeamento do País, a ativar o comércio de gado em regiões inóspitas, a entrelaçar municípios e Estados díspares e distantes e a exercitar, como tantos iguais ao senhor, a influência comercial e cultural de Uberaba por estes Brasis anônimos. O senhor é a voz daqueles milhares de peões e boiadeiros e trabalhadores mortos no anonimato.

O pôr do sol emite sinais esfarelados de quebra e queda de luz, mudança de horário, de climas e afazeres, alastrando um silêncio simbólico e pegajoso. Fotos - Jairo Chagas.

“No dia primeiro de julho, saímos da fazenda Tijuco, município de Uberaba. A tropa com cargueiros havia saído dias atrás para Vacaria, no sul de Mato Grosso. A outra, com os peões efetivos, já devia estar lá pras bandas da cidade de Areias. Antes do rio Paranaíba, nós já havíamos passado pelos cargueiros e pela tropa solteira. Os peões que vinham de Uberaba não eram muitos. Em Campo Grande contrataríamos os que fossem necessários. Muitos deles vinham a pé, com uma varinha de ferrão e sandália de couro cru nos pés”. - Joaquim Adolfo de Carvalho Borges. Oi, saudade, Saudade me desatina, Tenho saudade tamanha Lá do Estado de Minas, Tenho saudade das montanhas, Tenho saudade das campinas, Por andar em terra estranha A saudade me amofina. Adeus, Estado de Minas, Vou embora pra Goiás, Os olhos que me viram hoje Amanhã não me veem mais, Vou embora aborrecido Dando suspiros e ais.

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MERCADO EM UBERABA

“Foi fácil verificar que o gran-

de negócio de Mato Grosso era o gado, que inclusive servia de moeda na região. Raramente se realizava a dinheiro um negócio maior. Fazia-se a permuta de mercadorias pelo gado que era conduzido a Uberaba, depois a Barretos, para a venda aos invernistas”. – Paulo Coelho Machado. BAIANO NA COMITIVA

“Querubina

namorava

um

baiano da comitiva do boiadeiro Lucas Borges. Um caboclo louco e derramado de ciúmes. Ao chegar de uma de suas longas viagens, correu para a casa da amada. Encontrou-a nos braços de outro homem, que ao avistar o peão e perceber-lhe o intento, desapareceu de cena, num golpe de mágica. Inconformado, o baiano atira, impiedosamente, contra a bela Querubina, nua e tiritante sobre a cama. Em seguida, pulou a janela, foi à fazenda Cerradinho, subtraiu uma mula da comitiva e tomou o rumo de Uberaba”. – Paulo Coelho Machado.

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MEMÓRIA DE MASCATE Aos oito anos de idade, ele começou a trabalhar com seu pai, João Batista Flores, natural de Sacramento, mas que veio cedo para Uberaba. “Dos oito filhos, ele é o mais velho e o maior companheiro do pai”, diz Dário Mendes Oliveira: “Meu pai ia ao Estado de São Paulo vender burros, tropa de oito a dez animais, nas regiões de Igarapava, Miguelópolis, Guaíra, e por lá ficava de dois a três meses. Quando ele parou de trabalhar no ramo, eu tinha entre 15 e 16 anos e passei a viajar em companhia de outros peões, como o Zé Baiano. Éramos peões e eu aprendi com eles a amansar burro e nunca deixar de ser tropeiro. Trabalhei para vários fazendeiros, inclusive Garibaldi Adriano, para quem fiz os últimos serviços. Saía daqui com meus companheiros, tocando a boiada até Araçatuba, São José do Rio Preto, Barretos. A gente ia em direção da Água Comprida, atravessava o rio Grande, numa balsa, e entrava no estado de São Paulo. A gente montava em burro, animal mais resistente. Naquele tempo não existia caminhão boiadeiro e era uma tropa atrás da outra. Às vezes, não tinha nem pasto para o gado. Só terra! O gado adoecia. Dava aftosa nele. Lá (nas cidades paulistas) tinha invernada para engordar os animais”. Dário fez várias viagens integrando comitiva que ia a Patrocínio, Monte Carmelo e Araxá para trazer gado até Uberaba: “O dono da comitiva contratava os peões e a cada um deles correspondiam uns cem bois. Na frente, iam dois ou três cargueiros, levando material da cozinha. Eles faziam o café da manhã, o almoço e a janta – arroz, feijão, farinha e carne seca. Às vezes, conseguiam mandioca, frango. A comitiva era uma somatória de peões. Além dos cargueiros, tinha o “ponteiro”, com o berrante, que ia na frente da boiada; o que ia do lado; o “culatreiro”, que ia a pé, atrás dos animais, tocando os mais doentes; o ‘peão especial’, que era aquele que tinha a função de contar os animais no fim do dia. Era o ‘contador’. Às vezes, numa boiada de 700 bois, faltava um. Aí entrava o ‘arribador’, que tinha a função de buscar o animal perdido no cerrado, às vezes ‘engarranchado’ numa cerca ou caído num buraco. Esse caboclo tinha que ser espeto, bom laçador, para trazer o animal de volta”. – “Os ‘ricão’ daqui, sócios dos frigoríficos, é que empreitavam o capa53


taz para formar a comitiva. Eles mesmos iam de automóvel, de Fordinho. O capataz, responsável pelo transporte do gado, formava a comitiva e ia, por exemplo, até Carmo do Paranaíba para buscar boiada. Até de Paracatu vinha comitiva trazendo boiada”. De família de peões, Dário ouvia falar do avô, Francisco de Oliveira, natural da região de Soberbo, nome de um córrego que desaguava no rio das Velhas, entre Araxá e Sacramento. Francisquinho, como era chamado, ia até o interior de São Paulo (provavelmente, Casa Branca), em carro de bois, para buscar sal. “E em noite de Sexta-Feira da Paixão, muita gente tinha medo de assombração, lobisomem... Os mais velhos diziam que se juntavam debaixo do carro, cercado de couro de vaca, para se defender da mula-sem-cabeça, que, de noitão, vinha naquele ‘tropelo’, arrodeava tudo aquilo e seguia em frente. Por lá, cruzamos com comitiva de Buriti Alegre. Os goianos também levavam boiada para São Paulo. O ritmo era lento. Uma boiada cansada não andava mais que uma légua, uma légua e meia por dia. Embarcamos muito gado na estação de Amoroso Costa, que seguia para Teófilo Otoni, Belo Horizonte. Diante dela tinha o grande pouso de boiada”. Os anos 50 foram época de mudanças, que se estenderam até a década seguinte. Atento às transformações, em 1964, Dário tirou carteira de motorista e passou a viajar com caminhão, contratado por vários compradores, inclusive de gado de criar. Normalmente, a boiada era formada por gado de corte. Dirigindo caminhão, Dario foi de Uberaba a São Luiz do Maranhão, contratado pelo fazendeiro Marcos Machado Borges, genro de Lamartine Mendes. “Naquele tempo não tinha um palmo de asfalto nas rodovias. Eram terra pura e estrada ruim. Mesmo assim, cheguei a São Luiz com um lote de 18 búfalos, levados daqui. Passei por Pirapora, Montes Claros, Divisa Alegre, Jequié, Vitória da Conquista, Feira de Santana, Juazeiro/Petrolina, em Pernambuco; Picos e Teresina, no Piauí; Caxias, Bacabal e, finalmente São Luiz, no Maranhão. Isso por volta de 1963/64”. Sentindo as dificuldades do trabalho, Dário mudou de profissão. Dos tempos da “boiada de estrada” e dos caminhões gaiolas boiadeiros, restaram somente um chapéu de feltro e um cinto. “Se tivesse continuado com aquilo, já tinha morrido há muito tempo”, avalia o lúcido entrevistado. 54

NEGOCIANTE ...Neste ambiente aprendi muita coisa, observando meu avô, Arlindo Carvalho a negociar a venda de gado, horas e horas, na cerca do curral, regateando cada tostão, fechando o negócio por partes. Primeiro, aparta-se o gado por padrão de qualidade e peso (definir o peso sem balança...) e vai-se negociando cada lote, separadamente. Uma batalha se vence por partes ou se ganha comendo pelas beiradas. Quando tudo parecia encerrado e que não haveria negócio, uma nova chance é reaberta. Até que, no final da tarde, um vencia o outro pelo cansaço e a venda estava feita. – Maurício Muniz Barreto de Carvalho. (JM Magazine 45).

Boiada saindo da fazenda do Pinto, de Artur de Castro Cunha, em Campo Florido, tomando direção de Barretos, em São Paulo. - Revista Zebu, 1943. Corredor dos Boiadeiros


CARTÃO DE PRATA “Homenagem ao herói e tropeiro Chiquinho Cavalcante, pelo seu centenário. Um justo reconhecimento de seus amigos da ACUR - Associação das Comitivas de Uberaba e Região. “ Uberaba, dezembro de 2013

“Não traga a tropa, afrouxa. A viagem é longa demais! No dia primeiro de julho, saímos da fazenda Tijuco, município de Uberaba. A tropa com cargueiros havia saído para Vacaria, no Sul de Mato Grosso, dias atrás. A outra, com os peões efetivos, já devia estar lá pelas bandas da cidade de Areias. Antes do rio Paranaíba, nós já havíamos passado pelos cargueiros e pela tropa solteira”. - Joaquim Adolfo de Carvalho Borges. PIEDADE DO RIO GRANDE Nascido em 1946, em Piedade do Rio Grande, em Minas Gerais, ainda dos tempos coloniais, a terceira cidade no curso do Rio Grande, que brota bonito na Serra da Mantiqueira, Gilberto Gouvea rememora as histórias do avô Manuel Francisco de Almeida. Peão e logo boiadeiro, Francisquinho, como era chamado, nasceu em Lavras e de lá vinha com o filho Valter Gouvea de Almeida para comprar gado: “Meu avô vinha comprar gado no Triângulo Mineiro. Ajuntava lotes de 100, 200, 300 animais e embarcava no trem de ferro, da Rede Mineira de Viação, aqui em Uberaba, em direção ao Rio de Janeiro. Passava por Bambuí, Lavras, Andrelândia, Barra Mansa, Baixada Fluminense, onde era sócio de um frigorífico”, lembra Gilberto. “Conforme os lugares por onde passava, meu avô vinha a cavalo, passando, inclusive, por Garças, município onde fazia troca dos animais, seguindo por Iguatama, Patrocínio, até chegar aqui, em Uberaba”. No dizer do entrevistado, logo que chegou o caminhão, o avô mudou de ramo, tirou carteira de motorista e passou a levar produtos do sul de Minas – queijos, frangos e ovos caipiras – para o Rio de Janeiro. “Agora estávamos aí no carro novo, curiosos. Mamãe, quando se cansava do carro de boi, ia montar, de cilhão, seu cavalo pedrês. Só ela tinha esse privilégio de montá-lo. Era bem tratado, com milho e farelo que saia de monjolo. Era a nossa mudança, que eu só vim a saber muito tempo depois. À tarde, passamos pelo rio das Abelhas e, na boca da noite, chegamos ao Desemboque. A casa onde nos hospedamos era de parentes. No dia seguinte, bem cedo, João Cego e um pretinho de canela fina, que era apelidado de Calunga, tinha atrelado os bois e, pouco depois, subimos as colinas que nos levariam ao chapadão do

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Bugre. Quando estávamos chegando ao Bugre, João Cego vem do fundo do carro e aponta para trás, mostrando para mamãe a poeira que os outros carros vinham fazendo. Aquele pouso nunca vou esquecer. Os carros todos enfileirados: uns traziam móveis, camas, canastras, os outros, cheios de bezerros novos; a vacada vinha mais atrás e o carro dos porcos ficou mais longe. A catinga era demais. Papai vinha a cavalo e, quando apeou, estava visivelmente feliz. Ficava cantarolando uma cantiga. Mamãe já havia tomado providências de nos banhar no rego d’água. Agora estava tudo calmo. O cozinheiro já estava há muito com o tripé instalado e o fogo aceso a cozinhar o feijão. Quando a lua estava saindo da terra, grande e clara, o cheiro da carne assada na fogueira atormentava todo mundo. Logo depois, foi servido o jantar, em pratos esmaltados: canjica de milho, feijão, farinha e carne assada. Naquele tempo, praticamente não existia arroz. Este só era plantado nos brejos e de difícil colheita. Quase que somente nos centros grandes comia-se esse cereal, trazido da China. No carro, forrado com colchão de algodão, ficávamos à vontade e quentinhos. A peonada e os carreiros ficaram até tarde atiçando a fogueira, pitando, contando coisas da escravidão, de onça e de assombração”. I Neste Triângulo Mineiro Eu fui condutor de gado, Viajava o dia inteiro Chegava bem cansado, Dormia sem travesseiro Meu sono era pesado. V Nas horas de apuro Quando o gado estourava, Na culatra eu era seguro Boi comigo não voltava, Enfrentei momentos duro Arribada não deixava.

COMÉRCIO UBERABENSE “Boiadeiros da Vacaria, nas duas primeiras décadas do século XX, vendiam os bois em Uberaba e os touros e vacas velhas para o Paraguai, trocando-os por mercadorias, que traziam em carretas, para venda na campanha e na rua 26 de Agosto”. - Paulo Coelho Machado. COMÉRCIO EM UBERABA “O major (Manuel Cecílio) recorre, então, a seu amigo, o abastado fazendeiro de Aquidauana, Estevão Alves Correia, que tinha o apelido de coronel Chá, e este, com inteira confiança, entregou-lhe dois mil bois para que fossem vendidos em Uberaba, de forma a propiciar lucro bastante, que o habilitaria a dar início ao arrojado projeto”. - Paulo Coelho Machado. ABADIA “Ano houve em que o mineiro Eliseu Ramos, uberabense fervoroso na sua fé, entendeu fazer um completo cerimonial da Paixão de Cristo, nos exatos moldes do que acontecia na sua terra. Foi Eliseu quem trouxe, de Uberaba, uma imagem de Nossa Senhora da Abadia, de quem era devoto. A viagem foi cheia de peripécias. A santa foi transportada de trem até o rio Paraná, depois de carreta até Campo Grande, onde ficou provisoriamente hospedada na pensão Bentinho, na rua 26 de Agosto, para depois ser entronizada solenemente na igrejinha de Santo Antônio”. – Paulo Coelho Machado.

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LEMBRANÇAS Herdeiro da sede da fazenda Água Limpa, que pertenceu a seu pai, Rodolfo Borges de Araújo, “um homem evoluído, que trocava seu Fordinho a cada ano”, na margem da rodovia BR-050, aos 80 anos de idade, Romeu Borges tem vivacidade de moço; parte desta vivacidade é devido à prática da dança típica dos caipiras: o catira. É Romeu Borges de Araújo quem conta: “O Francisco Tomé, criado na família, tocava viola bem e costumava fazer isso na casa da fazenda de meu pai, antes iluminada de candeia, depois de lamparina. A sede tinha o chão de soalho. Eu tinha oito anos, acompanhava na dança aprendida com meu pai, mas não sabia as regras”, lembra o , atencioso com todos que dele se acercam, e é tido com o melhor dançarino daqui e um dos melhores do País. Na cidade do Prata, vi catireiros fazendo vários sapateados: o mexicano, o xitá e a ficada – apropriada para finalizar a apresentação. Quando a poesia é bem feita, conta muito na dança. Veja a beleza dos versos do Manuel Rodrigues (da Cunha), João Emerenciano, Vicente Caburé, Florís Júlio e Antônio Callado. Meu pai era homem que investia o que podia na compra e venda de bois. Antigamente, ele ajeitava um condutor de gado, o Joaquim Capitão, que viajava com mil, duas mil cabeças de gado”.

As aves ribeirinhas se alimentam e se movimentam em seu ambiente natural. Fotos - Jairo Chagas.

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De memória boa, clara, o famoso catireiro prossegue: “À frente da boiada ia o sinuelo (sinoeiro), cavalo madrinha que usava um polaco (sino) no pescoço. Ele ia solto, sozinho, na trilha do cozinheiro, que sabia bem o caminho e seguia adiante, com dois ou três burros cargueiros, com bruacas. Ele parava onde tinha água para fazer a boia para os peões e dar de beber pro gado, que, se precisasse, tinha dois ou três vigias que não deixavam o gado esparramar, ficavam pastorando a boiada que descansava nesta hora. Era preciso tocar devagar a boiada, para não estourar. A boiada andava de quatro a cinco léguas por dia. Quando chegava à noite, parava no ponto de pouso. Alugando pasto por tantos centavos a cabeça de boi. Ali, pernoitavam. – “Meu pai, meus tios Lucas, Abílio, Edmundo Borges de Araújo ou o João Borges Sobrinho iam por este sertão afora buscar bois. Eles saíam daqui em 57


junho, aproveitando a seca, apenas com a tropa formada de peões, todos ‘emburrados’ ou em mulas, mais o cargueiro, levando a comida: arroz, feijão, carne seca, banha enlatada. Dois ou três burros levavam as cangalhas. Cavalo, só o madrinha”. - “Chegando lá em Mato Grosso, por exemplo, após viajarem de quarenta e cinquenta dias, ele saia para comprar bois. Enquanto isso, os peões arranjavam emprego na derrubada das matas, ou outros serviços. A volta ficava marcada para o dia 7 de setembro, quando se dava o início das primeiras chuvas. Aí, eles preparavam a tropa, aparavam os cascos dos animais, tosquiavam eles, compravam os sortimentos. Ajuntavam eles mais a boiada numa fazenda grande para a viagem de volta, vendo que os pastos começavam a ficar verdes e bons. Vinha em marcha lenta, devagarinho, dando sempre água para os animais, que estouravam muito. Era um tipo de gado tucura, caracu pé-duro, ‘curraleirado’, bois de quatro ou cinco anos. Ao contrário do gado que saía daqui, de melhor qualidade, porque era misturado com o zebu. O zebu, criado em Uberaba, consertou o gado do Brasil inteiro”. “Se a tropa gastava uns 45 dias para ir, ela, mais a boiada, demoravam de três a quatro meses na volta. O gado sofria muito na viagem e ainda tinha a febre aftosa, que deixava os cascos dos animais ‘aluídos’. Muito gado perecia na viagem. Era um sofrimento danado. Para os homens. Para os animais. Quando meu pai chegava em casa, na fazenda Água Limpa, o filho pequeno que ele deixara nem o reconhecia. Aqui, ele ‘empastava’ a boiada e, depois, vendia pros invernistas, em Barretos, no tempo em que o frigorífico (Anglo) pertencia aos ingleses”, finaliza Romeu Borges de Araújo.

“Essa rota deu à cidade a con-

dição de mais importante entreposto salineiro do Brasil Central. Além do sal, os comerciantes recebiam produtos de alta rentabilidade, como armarinhos, perfumarias e querosene”. - (GUIMARÃES, p. 37, apud ESSELIN, 2001)

Fui um carreiro Dos mais caprichoso, Passava em qualquer atoleiro, Sempre fui corajoso. ‘Riata toda de couro Que eu mesmo fazia, Trajo bem duradouro Carreava com alegria. (Jair Gomes Seabra) 58

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QUANDO A VIOLA DANA A CANTAR O BOIADEIRO JOÃO BAPTISTA CORRÊA

O corredor de boiadeiros com trânsito livre para carros de bois, boiadas e veículos automotores; corredor-estrada. Coleção Museu do Zebu.

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Visto, assim, dum lado para outro, num meneio de cabeça, da esquerda para a direita, e vice-versa, o chapadão é muito mais que a terra desolada - é um abismo horizontal. Ali, o ruído é tão escasso quanto o vazio da paisagem. “O silêncio é de pegar com a mão”. É só o vento, naquele zumbido numa orelha e na outra, com som de chocalho, insinuando coisa runha; e fica só naquele cochicho, assoprando sem abrir a boca direito e dizer o que sabe. Nesse vazio que envém de longe, de tudo quanto é canto, João Corrêa cavalga ensimesmado, mal tendo uma picada para orientar seu animal. O capim invade tudo quanto é rasto, apagando o que pode ser chamado de uma estradinha. Ele está sem seus companheiros de comitiva, só pensando no que pode acontecer daqui para frente. Na vista de uma repentina baixada, que dilacera, mais ainda, a tudo o que se pode à distância, sem uma nada para atrapalhar ou sombrear, sente um arrepio que lhe sobe pelo pescoço e encrespa o couro cabeludo. Engole a seco a saliva pouca. Não querendo mais se sentir sozinho, demais da conta, fala alguma coisa em voz alta, jogando pela boca o receio ranheta. Leva um susto danado quando as palavras se repetem no eco, que o vento embrulha e leva embora. Ele fica assim, ensi(mesmado). Para espantar o susto que ainda não levou, de todo, desperta o animal com esporadas na virilha. Como que fugindo de alguma coisa, por enquanto sem forma, ou de algum cafuçu perdido nessa imensidão. Cruz, credo! A batida seca dos cascos do animal no chão dá impressão de quatro, oito, doze cascos. Apressa a marcha, com a vista firme num cupineiro, lá adiante. Na curva, vira para trás. Não vê ninguém. Olha de novo e nada! Sente um alívio suado, mas não reduz a marcha. Ainda tem muito chão a vencer, desde que saiu de Campina Verde. Tem de passar por Comendador Gomes, Campo Florido, inté chegar a Uberaba onde vai ter com gente da família dos Borges, para tratar de negócio de gado, que quer trazer para sua cidade. ...Naquela afobação toda, em que tinha sido chamado, o capataz, ofegante, o bilhete amassado, mal escrito, borrado pelo suor da mão do moço, não teve nem sossego de pegar a viola pendurada na parede; nunca viajara sem ela. Daí, sua insegurança; a falta de alguma coisa importante. Só de saber que a carência do instrumento é que o deixa assim, canhestro, começa a se sentir mais aliviado. 59


Logo adiante, um ajuntado de quaresmas, resistentes à lixa do vento, elas mesmas, ásperas de toque, oferece sombra de trama de peneira. Ele aceita. Não sem antes espiar longe - pra frente, pra trás - para os lados, ver se não há algo estranho naquele horizonte roçado. Cascavel se esquivando, traiçoeira, no chão. Tira um pedaço de rapadura do embornal e vai roendo o doce. Querendo descansar, dobra os joelhos, deixa as costas descerem até quase a bunda tocar no chão, espichando os braços sobre os joelhos pontudos. Assim, de cócoras, assunta os pensamentos. A vontade de falar alguma coisa com alguém não passa. Na mesma posição, cata um graveto e começa a rabiscar no chão a ideia que vem chegando cada vez mais de perto dele. Uma alegria, rodopiando a cabeça, puxa o fio da meada de uns versos. O silêncio agora é companheiro. Vai fazendo do chão arenoso a pauta de sua última moda de viola. Espia aquela rabisqueira no chão - se acalma – porque a moda riscada no areião já está engavetada na cabeça; no primeiro pernoite vai anotar tudo no caderno, que já tem mais de dúzias delas. Satisfeito com os versos e a melodia, ele monta o burro pedrês e toma rumo. Antes que a noite apague, ou amplie os riscos de estradeiro pelo descampado chapadão e lhe venha com traições e desgosto para a família. Sumindo cada vez mais no horizonte, agora sim, talvez ele possa entender, sílaba por sílaba, o que aquele bilhete amassado que lhe fora entregue queria dizer. Pode ser que os homens mandantes da cidade acharam ruim ele compor aquela moda A Respeito dos Dezesseis, criticando a falsificação de 16 títulos de eleitores que mudaram o resultado das últimas eleições. Lá e cá, a vida tem seus segredos, seus mistérios, seus desvios. Desvendá-los é coisa de sabedoria. Um relâmpago dá sinal de chuva e a trovoada faz tremer os pressentimentos. Quem dá mais noção desse sujeito apressado, que anda no ritmo de um recortado de viola, é Roberto Corrêa: “Meu avô, João Baptista Corrêa, era violeiro. Tradição de família. Havia migrado com os filhos, ainda pequenos, do Estado de Mato Grosso para se estabelecer no Triângulo Mineiro. Tudo correu bem para a família. Os filhos cresceram e cada um conquistou sua própria terra. 60

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Em 1937, o acontecimento maior. Ele rumava, a cavalo, para a casa de um seu retireiro quando, ao apear do cavalo para abrir uma porteira emperrada, foi tocaiado e assassinado. Três homens saíram do mato, atirando. Meu avô matou um e feriu outro; o terceiro fugiu para ser morto mais tarde, após longa perseguição. Assim, aos 39 anos de idade, morria meu avô e, com ele, os repasses dos segredos de viola da família Corrêa. Uns diziam que a causa do acontecimento era uma moda de viola que ele havia feito a respeito da política local, denunciando tramoias eleitorais. Outros, diziam que era por causa da filha do retireiro, sua amante, com quem já tinha até um filho”. “A fazenda se situava entre os municípios de Prata e Campina Verde, no pontal do Triângulo Mineiro. O que restou da herança de meu avô foi um caderno de conta-corrente, com 49 modas de viola de sua autoria. A sua viola, assim como a caixa de madeira que a protegia, foram comidas por cupins. Quanto às modas, aos poucos vou musicando, uma por uma, e assim estabelecendo uma parceria musical com este meu avô violeiro que não conheci em vida”.

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O ENCANTAMENTO DA VIOLA O instrumento musical que identifica o homem do campo, no Brasil, a viola nas mãos de Roberto Corrêa adquire outras conotações, novas sonoridades e surpreendentes interpretações. Nascido em Campina Verde, no Triângulo Mineiro, em 11 de março de 1957, Roberto Corrêa é filho do fazendeiro Avaí Dameão Corrêa e de Eleusa Nunes Corrêa, funcionária da Coletoria do Estado de Minas Gerais. “Ainda jovem, mudou-se para Brasília para estudar física e descobriu seu destino: a música. Fascinado pela viola caipira e pela viola de cocho, dedicou-se a explorar seus mistérios e a expandir seus limites. Hoje é um dos mais importantes violeiros do Brasil. Sua atuação foi fundamental para o desenvolvimento do potencial de solista da viola. Instrumentista virtuose, compositor e pesquisador, Roberto Corrêa é reconhecido por seu talento e dedicação. Sua discografia mostra a diversidade de sua expressão criativa, suas pesquisas são referenciais no universo da viola, e suas performances têm levado a viola caipira e a viola de cocho aos palcos de dezenas de países do mundo”. Se o avô vinha a Uberaba tocando boiada em direção ao Mato Grosso, Roberto Corrêa vem para tocar, pesquisar e também participar de pesquisa que resultou na publicação do livro Folia de Reis de Uberaba (Arquivo Público de Uberaba, 1997). Vinte e nove países já aplaudiram o violeiro da rica região do Triângulo Mineiro. De Campina Verde, o músico saiu para recitais em importantes palcos de concerto da Europa e da Ásia – o Haus der Kulturen der Welt, de Berlim, e o Konzerthaus, de Viena, e o Beijing Concert Hall, em Pequim. Representou o Brasil na França, Itália, Portugal e Cabo Verde, no Canadá, Estados Unidos, no México e em toda América Central e do Sul. Quase todas as regiões brasileiras o ouviram tirar o melhor som da viola caipira e da viola de cocho. Discos, livros, filmes, projetos e programas de TV (TV SESC/SENAC, TV Cultura, Canal Rural, TV Câmara, TV Senado) registram a importância de seu trabalho profícuo e criativo, que transita entre a mais arraigada tradição e o experimentalismo formal. Jamais abdicou da viola, que explora com virtuosismo técnico e técnicas próprias. Roberto Correa não perde contato com suas raízes familiares e culturais: 62

“Roberto Correa trouxe uma

abordagem moderna a este instrumento (viola), mais popular na música brasileira, com seu toque veloz, linguagem arrojada e grande sensibilidade musical”. – Vera Kikuti, GuitarPlayer, junho/2001.

“Roberto

Corrêa

ponteira

com erudição sua assumida viola caipira na pele de um Guimarães Rosa encordoado”. – Tárik de Souza, Jornal do Brasil, 10/out/1995.

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“Meu pai tinha apenas nove anos de idade e não pôde aprender com meu avô a arte da viola, para dar continuidade à tradição instrumental na família. Eu fui criado na cidade de Campina Verde, afastado das práticas de viola da região, mas não da música, tendo estudado violão com o mestre José da Conceição. Foi no início do curso de Física, na Universidade de Brasília, que me interessei por viola e, a partir daí, se iniciou a construção do violeiro que sou. Em poucas palavras o encantamento pela viola me fez abandonar o violão e, depois de concluída minha formação em Física, também, a vida acadêmica, dedicando-me à carreira de violeiro e professor de viola”. Roberto Corrêa, a fala é dele, sempre buscou os caminhos da criação dentro si próprio. Uma tocaia impediu que a tradição da viola de sua família fosse repassada para as gerações seguintes. Ele virou violeiro, talvez, por um acaso do destino. Sina, ou algo assim, diz ele, talvez possa explicar o interesse que tem por elementos musicais dos velhos violeiros e elementos ligados à música do tempo de seu avô. Como se dentro de seu peito tivesse um vão que ele tenta preencher com o que aprende destes velhos violeiros. Por outro lado, a fala ainda é dele, construiu uma outra história com a viola, um outro tipo de música. “Sou um caipira contemporâneo”.

“A

linguagem

autoral

de

Roberto Corrêa, com seu toque, faz mesmo, a síntese da formação musical rigorosa, com a pureza intuitiva do tocador dos pastos, serras, cerrados. De tal forma que sua dedicação às músicas regionais não o tornam músico regional. Roberto Corrêa é um erudito do naipe dos eruditos que se debruçam sobre os modos musicais da tradição popular”. – Mauro Dias, O Estado de São Paulo, 17/

VIOLA CAIPIRA: DAS PRÁTICAS POPULARES À ESCRITURA DA ARTE. Envolvido “até às tampas” com a defesa de sua tese de doutorado – foi dispensado do mestrado -, Roberto Corrêa varou quatro anos a estudar e a interpretar a significação histórica e musical da viola. A partir de fevereiro deste ano, ele passou a ser um homem mais tranquilo. Desde que entregou, na USP, a dissertação “Viola caipira: das práticas populares à escritura da arte”, ele tem tempo para tocar e até para puxar o banquinho e contar sobre seu trabalho: “A viola chegou ao Brasil com os portugueses. Apesar de ser muito citada nos documentos históricos, a falta de detalhes sobre este instrumento nos impede de saber como eram estas violas. O termo viola, por si, só é empregado para diversos tipos de instrumentos de cordas dedilhadas e de cordas friccionadas. Por outro lado, se a documentação escrita não nos traz

set/2002. Corredor dos Boiadeiros

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estas informações, a iconografia e, principalmente, os instrumentos antigos que chegaram até nós, nos permitem conhecer as características básicas da viola de cinco ordens de cordas, encontrada nas práticas populares espalhadas por todo o território brasileiro. Um caminho possível para se ter uma ideia das violas do período colonial e do século XIX, parte do que temos hoje, à nossa disposição, para se tentar entender como eram. O ponto central da tese, no entanto, é a constatação de que, a partir da segunda metade do século XX, um tipo de viola brasileira tem a expansão de seu uso para outros gêneros musicais e para outros públicos. Isto se dá na “região caipira” do Brasil, de influência histórica paulista, e o instrumento que sofre esta expansão é a viola desta região - a viola caipira. A este movimento de expansão damos o nome de avivamento. Assim, das práticas populares à escritura da arte, dos lundus de viola para instrumento solista na música concertante, da oralidade para a sistematização de uma notação musical, do ensino imitativo para um ensino por música nos conservatórios e universidades, a viola se tornou importante instrumento da música brasileira atual. A minha tese, que se constrói a partir desta realidade, entre outros assuntos, traz importantes contribuições para uma visão crítica do momento atual, no que concerne ao instrumento, assim como uma abordagem histórica do preconceito à palavra caipira e, ainda, apresenta detalhes de violas que considero referenciais para a evolução do instrumento até os dias de hoje”. Um tempo para tomar fôlego – um cafezinho - e retomar a conversa. Se fosse o caso de gente que pita muito, era preciso mais tempo de recreio. Mas o violeiro é rapaz de fôlego bom, basta ver a destreza com que tange o instrumento, e logo já está disposto a prosseguir adiante. “A viola está presente no Brasil desde os tempos coloniais. Apesar de

São Gonçalo, protetor dos violeiros. Séc. XIX. Coleção do autor. Foto - Roberto Pimenta

“No pouso de Água Limpa acampamos junto a uma linda mata orlada de buritis, à margem do córrego desse nome e realmente dele digno, pois proporcionou-nos uma linfa deliciosa”. “De Água Limpa em diante, atravessamos terrenos de vegetação bem enfezada, onde notei muitas terebintáceas e cássias. Abundam as mangabeiras, cujo fruto é muito agradável e havia ali muito belas flores, entre as quais me impressionaram uma escabiosa, muito cheirosa, e lindas malpighiáceas. Atravessamos o rio Tijuco, em cujas margens há matas muito ricas em madeiras-de-lei e, sobretudo, em caça de pena e pelo. Parece que ali vivem enormes bandos de mutuns, jacus, maçados etc., varas colossais de queixadas e caititus, grandes onças e também enorme cópia de ofídios venenosos e não venenosos, jararacas, surucucus, sucuris etc. As águas do Tijuco são muito piscosas. Enfim, passa aquele recanto de Minas por ser um viveiro da nossa fauna”. – Visconde de Taunay. 64

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Mais que o ferrão para o carreiro, a espora para o cavaleiro, o laço para o peão, a viola é o instrumento que o violeiro utiliza para tecer a comunicação artística entre os homens de todas as roças, raças e regiões. - Nas fotos, três dos modelos de violas citados pelo músico Roberto Corrêa.

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bastante citada na documentação deste período, não sabemos ao certo a qual tipo de viola os autores se referiam, pois o instrumento não era descrito em seus pormenores. Da mesma forma, relatos de viajantes do século XIX pelo Brasil citam a viola, mas sem precisar detalhes do instrumento. Por outras fontes, sabemos da existência de uma viola construída em Lisboa no século XVI, que está no Royal College of Music, de Londres, com o cravelhal contendo dez cravelhas, assim como de violas construídas no século XVIII com o cravelhal contendo doze cravelhas. Ou seja, com estas referências e com violas recolhidas tanto aqui como em Portugal, ao longo do século XX, podemos afirmar que algumas características estruturais foram mantidas, como, por exemplo, a escala dividida em dez trastos e rasa com o tampo. Na região Centro-Sul do Brasil, na tese “Região Caipira Estendida” (pelos variados tipos de influência paulista nesta região, ao longo do tempo), este tipo de instrumento, identificado por viola caipira, já no início do século XX passa a receber inovações da luteria violonística e tem seu uso expandido para outros tipos de músicas e para outros contextos musicais. Para se conhecer como eram as violas nos moldes antigos, apresentamos fotos e medidas de seis instrumentos colhidos ao longo do século XX na região Centro-Sul do Brasil. Instrumentos que consideramos serem referencias para se conhecer modelos e detalhes das violas dos antigos violeiros. Neste processo de expansão da viola caipira e de suas práticas, a indústria fonográfica e a difusão radiofônica muito contribuíram e até mesmo definiram uma forma de apresentação desta música para os ouvintes. Havia um público consumidor em potencial e isto foi determinante para o sucesso da música de viola, ao ponto de se ter clássicos nacionais caipiras, o que seria impensável sem os meios de comunicação. Com relação aos discos de práticas musicais tradicionais, mostramos, tendo como fonte de pesquisa as informações contidas nas contracapas dos discos, a importância de diretores e produtores artísticos no sentido de viabilizar este tipo de música. Este percurso evolutivo do instrumento, inevitavelmente, trouxe à tona o tema do preconceito que, desde o século XIX, de forma ostensiva ou subliminar, vem contaminando o reconhecimento de uma valiosa cultura brasileira, a cultura caipira. Neste sentido, jogamos luz nas diversas formas de manifestações preconceituosas e tentamos mostrar que preconceitos arraigados, ou de qualquer natureza, não condiziam com o caipira antigo e não 65


condizem com o caipira contemporâneo. Para uma visão crítica deste tema, com relação, especificamente, à música, apresentamos a pergunta “música caipira – o que é e o que não é?” para estudiosos do mundo do caipira com oobjetivo de saber onde estamos na compreensão deste universo. A esta expansão do uso da viola caipira, para além das práticas populares e para uma nova música, estamos denominando de avivamento. O processo de avivamento teve sua gênese na década de 1960 com cinco fatores que, nos desdobramentos, consolidaram a viola como importante instrumento da música brasileira da atualidade. Estes acontecimentos, independentes entre si, mas originários do sucesso das duplas caipiras na indústria da cultura, foram: 1) o lançamento de um novo gênero musical, o pagode de viola, no qual a viola tem papel preponderante; 2) a viola é alçada a instrumento de concerto com as composições de Ascendino Theodoro Nogueira e recebe assim uma notação musical própria; 3) vários discos de viola instrumental são lançados no mercado, com destaque para os discos do violeiro Julião; 4) surge a Orquestra de Violeiros de Osasco, a primeira das inúmeras orquestras de viola espalhadas pela região Centro-Sul; 5) a viola conquista o público da música popular brasileira com sua utilização, de forma marcante, na canção Disparada (Théo de Barros e Geraldo Vandré), que conquista a primeira colocação, junto com A Banda, de Chico Buarque de Holanda, no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Nas décadas seguintes, principalmente a partir da década de 1980, o avivamento é consolidado por uma conjunção de fatores e tem sua culminância com a viola caipira na universidade. Uma conquista que efetiva de forma inconteste sua importância como representante da cultura caipira contemporânea e como instrumento antigo cuja história remonta aos primeiros séculos do nosso país. Verificamos, enfim, a história de um caminho construído através dos tempos e de linguagens musicais diversas: dos tempos coloniais aos dias de hoje; da prática popular à escritura da arte; do ensino imitativo, na oralidade, ao ensino formal; de instrumento acompanhador de modinhas, cantorias, danças e rezas à condição de instrumento solista em orquestra sinfônica. A 66

Os modelos de violas são analisados por Roberto Corrêa. A madeira e o fabrico, o formato, o manuseio e o som fazem diferenças que o ouvido musical percebe, renuncia ou aprecia.

“Roberto Corrêa é um dos

maiores violeiros de todos os tempos e, certamente, o maior dos teóricos da viola”. – Mauro Dias, O Estado de São Paulo, 13/dez/1997.

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mesma viola na mão calejada no trato da roça, na mão fina de um jogador de baralho, na mão trabalhada de um violeiro concertista. A viola de todos os segmentos sociais e de todas as gerações – “a viola caipira”. Pela pertinente e pertinaz trajetória de músico intimamente vinculado à viola, nenhuma tocaia vai interceptar a vida e a obra de Roberto Corrêa. Muito embora a mídia venha ‘pregando suas peças’ na música de qualidade produzida no Brasil, país tão farto delas. Em 2010, Corrêa foi convidado para concertos com a Orquestra do Estado de Mato Grosso realizados na capital e em várias cidades do interior, áreas já atingidas no alvorecer do século XX, por seu avô, violeiro como ele, e corajoso boiadeiro. Nosso boiadeiro musical continua tocando músicas à perfeição, fazendo a gente sair de casa para vê-lo, e levando à frente sua obra pelas estradas sertanejas da cultura brasileira. A VIOLA E O CATIREIRO 28 DE SETEMBRO DE 2001

Na sequência, o violeiro Paulo Cury, os catireiros do grupo de Martinho Campos, o mitológico dançarino Romeu Borges com o animador cultural Gilberto Rezende. Fotos - Paulo Lúcio.

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A claridade intensa da Cidade Maravilhosa dificulta a dosagem de iluminação na câmera da Rede Globo de Televisão. O cinegrafista recorre várias vezes ao fotômetro para acertar a intensidade da luz do dia. O cenário é de cartão-postal: a praia de Botafogo, a baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, que se recorta, poderoso, ao fundo da paisagem. Com placas de compensado, um tablado é improvisado sobre a areia da famosa praia. À frente dele, a câmera. Sobre ele, dois dançarinos nos sentidos opostos do pequeno palco e de tendências também opostas no gênero artístico. Uma célebre bailarina da dança clássica, natural do Rio de Janeiro, mantém-se sobre as sapatilhas. Um dançarino de catira, vindo especialmente de Uberaba, no Triângulo Mineiro, para esta gravação, não se envergonha de suas botas mateiras e nem se intimida diante da célebre artista. Os gêneros antagônicos vão se entrelaçar através de movimentos divergentes, cada qual com sua estética, unidos pelo ritmo da música saída do violão de Paulo Jobim. O filho de Tom Jobim acaba de aprender com o Chico Doido, um grande 67


violeiro de Santa Rosa de Viterbo, interior de São Paulo, o sotaque e a destreza ‘satânica’ da viola. A batida começa e surgem na tela da Rede Globo de TV Ana Maria Botafogo e Romeu Borges. Ali, ele se mostra o menino que se tornou catireiro ao aprender os passos clássicos da dança com Orozimbo Fabiano, “um mulato de Campina Verde que veio para o Veríssimo e que era um espetáculo para dançar. Com ele aprendi as regras e a respeitar as passagens no cabeçalho de moda, no sapateado, no rodeio e trespasso; terminado o catira é que vem o passo do recortado”. Do outro lado, sua partner, intérprete de grandes personagens do repertório clássico universal, replica com pontadas das sapatilhas e o gestual dos braços a força de seu sapateado. O tablado treme, ecoa. A câmera capta tudo. E, à medida que a dança evolui, o espectador, superado o susto inicial do contraste, passa a entender a proposta da mensagem veiculada no “Globo Rural”, naquela manhã de domingo. - Depoimento de Romeu Cruvinel Borges. Do catira eu despedi E com muita razão. Meus colega me corrigir Não admito num salão. É a arte que mais conheço, Que danço com confiança. Eu acho que mereço Ser aplaudido nesta dança. (Ranulfo Borges)

Dança tradicionalmente praticada no campo, pelos homens, por exigir vigor físico no sapateado e no palmeado, o catira ganhou o sexo oposto e a cidade.

CHAPÉU E ESPORA “Recorda Amin Scaff que chegou a Campo Grande em 1894 e era muito usada a dança do catira entre a peonada dos boiadeiros. E o interessante é que os cavalheiros dançavam de chapéu e esporas. Era o protocolo” – Paulo Coelho Machado.

Aos 82 anos, o maior catireiro do País, Romeu Borges, reclama da carência de violeiros adequados para a dança do catira e da lerdeza de alguns destes músicos, nem sempre aptos para puxar os movimentos necessários.

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Capítulo

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UBERABA – CAMPO GRANDE “Aproximadamente 2.500 carros de bois faziam, nesta época, o transporte de sal para Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.” - Eliane Marquez

Nos oitocentos e no alvorecer dos novecentos, Uberaba tornou-se a grande praça fornecedora para o Sertão da Farinha Podre e Goiás das mercadorias essenciais à sobrevivência no campo, tais como ferragens e ferramentas agrícolas, quase sempre importadas. Foto clássica nas monografias sobre a história econômica do Triângulo Mineiro; atribuída a José Severino Soares. Coleção Arquivo Público de Uberaba. Corredor dos Boiadeiros

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A cultura brasileira funciona como amálgama – vis a vis, cara a cara – da herança (europeia), juntamente com as raízes de nossas manifestações populares. EXTREMIDADES TANGENCIAIS Segue-se uma série de citações de diversos autores que referendam a importância da posição geográfica de Uberaba e dos boiadeiros para o mercado de gado do Brasil Central. Obras citadas por Paulo Marcos Esselin em seu livro A Pecuária Zebuína no Processo de Ocupação e Desenvolvimento Econômico do Pantanal-Sul-Matogrossense – 1830 -1910: “A cidade de Uberaba, no Triângulo Mineiro, havia se transformado em importante centro comercial. Devido à sua privilegiada posição geográfica, tornou-se caudatária do grande comércio entre o Centro-Oeste e o litoral do Sudeste e importante entreposto de comércio do gado bovino. A rota salineira passava por São Paulo, Jundiaí, Campinas, Porto de São Bartolomeu (rio Moji), descia pelo rio Pardo e subia pelo rio Grande, buscando o porto da Ponte Alta; daí, através de carros de bois, chegava a Uberaba”. - Auguste de Saint Hilaire apud Paulo Marcos Esselin. “Em 1850, os boiadeiros do Triângulo Mineiro, conhecedores já do sertão sul-mato-grossense, para onde passavam atravessando o Paranaíba, abaixo da barra do rio Grande, iniciaram as suas viagens periódicas a estas paragens, fazendo negócios de gado com criadores estabelecidos nas margens do Miranda, Ivinhema, Apá e planos da Vacaria”. - ALMEIDA, 1933, p. 02, apud ESSELIN, p. 202. “Os rebanhos do Triângulo Mineiro foram sendo conduzidos por vaqueiros que cruzavam o rio Paranaíba e adentravam a província de Mato Grosso. Dali, foram dilatando as suas ocupações, até atingirem as campinas da Vacaria, onde ainda encontraram vestígios da presença castelhana das reduções jesuíticas”. - Demóstenes Martins, apud ESSELIN, Paulo Marcos, pg 22.

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“O volume de gado existente no sul da província (de Mato Grosso) era substancial e despertou a atenção de tropeiros mineiros, já acostumados a conduzirem boiadas de Cuiabá para engorda em Minas Gerais, desde 1836, quando Manuel Bernardo inaugurou o intercâmbio, conduzindo para Uberaba um magote de legítimo gado pantaneiro”. (CORREIA FILHO, 1969, apud ESSELIN).

Carroceiro conduzindo sacaria de sal, produto que trazia a Uberaba comerciantes das mais diversas cidades e regiões do Sudeste brasileiro. Coleção Arquivo Público de Uberaba.

Analisa Paulo Marcos Esselin que “Os fazendeiros que foram se estabelecendo em torno da Colônia Militar de Miranda e da vila homônima (que, com esforços próprios, abriram uma nova trilha em direção ao Piquiri, que deu a eles a oportunidade de colocar seus rebanhos no mercado de Minas e São Paulo”. Na análise de Guimarães “O traçado foi estabelecido acompanhando os rebordos da costa do planalto de Maracaju. Tomou a direção do sertão dos Garcia, passando pelo atual município de Campo Grande, daí seguindo para Coxim, fazenda Camapuã, até Santana de Paranaíba, de modo a atingir o caminho de Piquiri ou de Uberaba”. “Logo foi estabelecido importante canal de mercantilização entre os invernistas mineiros e os criadores de Mato Grosso. O gado sulino era conduzido para o Triângulo Mineiro e, após a engorda, era vendido a abatedouros paulistas e cariocas. Os animais eram vendidos uma vez por ano; os compradores apareciam geralmente no período da seca, de maio a julho, e os fazendeiros começavam a reunir o gado com pelo menos trinta dias de antecedência. O isolamento e a distância do sul de Mato Grosso dos centros mais dinâmicos do país tornaram o pantaneiro um produtor dependente dos tropeiros, que eram poucos e sabiam tirar proveitos dessas fragilidades. Daí que, no ato dos negócios, havia sempre certa insegurança por parte do

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pantaneiro, temor de perder a oportunidade e ficar sem vender”. (BARROS, 1998, p. 107, apud ESSELIN, p. 203). “Nesse recomeço, havia duas alternativas para os fazendeiros comercializarem os seus rebanhos: a primeira e a mais difícil era a venda de animais em pé para tropeiros mineiros, e a segunda, o abate das reses na própria fazenda para a produção da carne seca, que era vendida no mercado local (Esselin). No primeiro caso, o gado bovino era conduzido no inverno por tropeiros até Uberaba – percurso percorrido em quatro meses entre ida e volta”. (ABREU, 1976). No caminho, o gado perdia de 30% a 40% do seu peso; aqueles que conseguiam sobreviver às dificuldades de dois meses de caminhada diárias se recuperavam em pastagens por diversos meses para readquirir o peso, e só depois eram levados para os abatedouros do Rio de Janeiro. Enfim, as únicas alternativas que os pioneiros do sul de Mato Grosso tinham para vender seus produtos, era através de comerciantes que vinham de Cuiabá, pelos tropeiros de Minas Gerais, ou então, o contrabando com a República vizinha – do Paraguai”. (Esselin). “Pode-se marcar pelos fins do III século (XVIII) as primeiras penetrações do gado em terras do oeste. A vegetação limpa, os campos abertos, as pastagens obrigatórias e os pontos em que as vias fluviais permitiam um vau ofereceram a oportunidade, por certo feliz, de passagem de terras de Minas para o oeste, para os chapadões goianos e para o território de Mato Grosso dos rebanhos, que aumentaram progressivamente e que marchavam sem termo. Majoritariamente, a penetração dos vaqueiros na posse de seus rebanhos deu-se pelo Triângulo Mineiro”. Nelson Werneck Sodré. “Embora fugindo dos objetivos iniciais que levaram à fundação dos núcleos anteriores, ainda em princípios do século XIX, pioneiros oriundos de São Paulo fundaram pequeno povoado, Santana do Paranaíba, elevado a Distrito de Paz em 1838, localizado no caminho que faziam os tropeiros mineiros que se destinavam a Uberaba, no Triângulo Mineiro, limitado então ‘pelo rio Paraná até a foz do Pardo, por este até suas cabeceiras, em Camapuã; destas, por uma linha, até as nascentes do Araguaia; daí, por uma linha às do rio Aporé; por este e pelo Paranaíba, até o Paraná”. – Hildebrando Campestrini. 72

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“Uma raça bovina como a zebuína encaixou-se perfeitamente às necessidades dos produtores de Mato Grosso, já que nada podia ser melhor para uma região onde as propriedades estavam, em sua maioria, “mergulhadas num regime primitivo de exploração das riquezas e sem chance de rápida locomoção; era importante que os bovinos fossem rústicos, antes de tudo lucrativos”. – Rinaldo Santos. “Aproximadamente 2.500 carros de bois faziam, nesta época, o transporte de sal para Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso; daí porque os tropeiros e os carreiros desempenharam papel importante no transporte de mercadorias para as províncias interioranas”. – Eliane Mendonça Marquez de Resende. “O processo de concentração urbana foi um fenômeno registrado no Brasil, no início do século XIX, e deveu-se ao desenvolvimento comercial estimulado tanto pela abertura dos portos como pelo aparecimento de atividades econômicas urbanas e, mais tarde, também pela expansão das áreas de cultivo do café nas províncias do Rio de Janeiro e São Paulo; esta, por ser incompatível com o criatório bovino, conduziu a uma ampliação do mercado da carne nessas regiões e permitiu que o gado do sul de Mato Grosso, como já acontecia com o do norte, fosse comercializado com produtores do Triângulo Mineiro, tradicionais invernistas, e, posteriormente, levados para abate na capital administrativa”. – Paulo Marcos Esselin. “Um inimigo contumaz do zebu assim se referiu à sua proliferação em Mato Grosso: ‘Desgraçadamente, aquela belíssima região de Mato Grosso, como aliás, todo o sertão, foi invadida pelo zebu, esse fantasma oriental, que aí se introduziu, destruindo a capacidade do nosso gado nacional, muito suscetível de se melhorar com um rápido cruzamento de reprodutores finos, já conhecidos e experimentados’’’. (COTRIM apud SANTOS, 1988, citado por ESSELIN 2001). – “A crítica era para os métodos utilizados pelos vendedores-boiadeiros de Minas, que trocavam lotes de reprodutores indianos por novilhos de corte. Diz o próprio Cotrim que, “não raramente, pegavam espertamente, 100 novilhos de corte por um único garrote zebu”. Virgílio Correia Filho afirmou que “Na ausência de compradores para o Corredor dos Boiadeiros

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seu gado, os fazendeiros organizavam boiadas, de uma a quatro mil cabeças, e em lotes espaçados rumavam para Uberaba para comercializar seus rebanhos. O preço nem sempre compensava os imensos sacrifícios; o comércio servia apenas para escoar o acúmulo de reses que já haviam atingido o máximo de seu desenvolvimento e, se permanecessem nas fazendas, estariam correndo o risco de morrer, vítimas de algum acidente, ou de contrair alguma doença de consequências nefastas”. (apud ESSELIN, p. 306). Parece que era comum, entre os fazendeiros detentores de grandes rebanhos, a prática de conduzir bois às invernadas mineiras enquanto aqueles de menor posse, não podendo arcar com os custos dessas viagens, abatiam os animais para produzir a carne seca e comercializar no marcado local ou então vender, a preços módicos, as suas boiadas aos grandes latifundiários. (idem).

Campo Grande – Uberaba, distância de mais de 800 quilômetros, vencida pelo obstinado propósito dos boiadeiros, na sua maioria, uberabenses. - Fonte: Google Earth

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No dizer de José Lázaro Carvalho, quatro casas de fiscais controlavam o trânsito do gado em Uberaba: na atual avenida São Paulo (Corredor do Cachimbo, próximo ao Tiro de Guerra); no cruzamento das atuais ruas Orlando Rodrigues da Cunha e Abílio Borges, no bairro Abadia; no cruzamento da atual rua Varginha com avenida Edilson Lamartine Mendes, no bairro São Benedito; e na avenida da Saudade, ao lado do cemitério São João Batista, no bairro Mercês.

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UM LIBANÊS NA COMITIVA DE LUCAS BORGES Sabe-se dos mais diversos destinos dos libaneses (e sírios) cristãos, em todo o território continental brasileiro. Vindos de países pequenos (principalmente Líbano), onde eram reprimidos por sistema político-religioso ditado pelo regime muçulmano, os sírio-libaneses demonstraram capacidade incrível de se adaptarem às distâncias incomensuráveis do País de fronteiras indivisíveis. Longe do regime islâmico, recobraram a capacidade de antigos navegadores fenícios de vencer os distanciamentos. O comércio foi o primeiro recurso de que lançaram mão, retomando uma atividade ancestral, com a função de mascate. Dos sertões isolados e vazios à impenetrável Amazônia, o Brasil ‘profundo’ passou a ser contatado por aqueles imigrantes. As regiões Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Norte foram ‘costuradas’ por eles e através deles, desde, principalmente, o início do século XX. Sabe-se das mais diversas formas de sobrevivência, mas o libanês Abrão Júlio Rahe surpreende o pesquisador ao se sobressair da névoa da grande porção de pó que o encobre no Corredor dos Boiadeiros, em Uberaba, montando uma mula, teimosa como ele, que deixa de ser o mascate, o sapateiro, o lojista – ocupações comuns de seu povo –, para integrar uma comitiva que leva produtos necessários a Mato Grosso, trazendo de lá o gado. Mais uma vez, a realidade suplanta a ficção e Abrão Rahe é o cozinheiro da comitiva! Um ‘turco’, ouvindo o tempo-todo a barulheira da tralha da cozinha que se sacode sobre o lombo do burro, no percurso de 800 quilômetros, somente de ida, mal falando o português... Adaptando-se à inusitada maneira de sobrevivência. Como fez Benjamim Abraão nos sertões do Nordeste – entrando em contato com o bando de Lampião, fotografando o grupo do Rei do Cangaço e registrando suas ações com câmera cinematográfica –, Abrão Rahe se interage com a tropa de cargueiro, falando com forte sotaque árabe, misturando as línguas, motivando risadas quando, à noite, é um dos contadores de causos, confundindo árabe com português, com aquele linguajar estranho, a fala saindo rascante do fundo da garganta. Improvável que fizesse qualquer tipo de comitiva típica de seus antepassados, uma vez que a comida dos integrantes da comitiva era invariavel75


mente a mesma, e ninguém nunca tinha visto e nem ouvido falar em quibe, esfiha, malfuf, tabule etc., mas, como a realidade surpreende a ficção, fica a dúvida, além da interrogação. Por vezes, Abrão esteve na dianteira da comitiva, perfazendo os mais de 800 quilômetros que separam Uberaba de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. “Meu avô integrava a comitiva de Lucas Borges, que saía de Uberaba em direção a Campo Grande e vice-versa”, diz o neto do imigrante, Paulo Jorge Rahe. É o historiador Paulo Coelho Machado, autor de quatro importantes volumes sobre a história de Campo Grande, quem traça o perfil do imigrante libanês: ”Abrão Júlio Rahe, mais conhecido por Abrãozinho, foi dos melhores cidadãos que Campo Grande possuiu em toda a sua vida. Honesto, trabalhador, amigo de toda a gente, humilde, realizador, dedicado às obras sociais, um grande e aberto coração árabe. Franzino, de pequena estatura, dava a impressão de frágil e anêmico. Tinha o rosto sensível e inteligente, com flagrante ar de dignidade. Os olhos pretos, profundos, particularmente penetrantes. A voz cava, de pouca sonoridade. Inspirava confiança com seu sorriso constante e tranquilo”. “Abrãozinho chegou a Campo Grande em 1908, vindo de Uberaba como ajudante de cozinheiro da famosa comitiva do boiadeiro Lucas Borges. Ainda falava mal o português e precisava de trabalho”. “Fez várias viagens desse tipo e logo captou a confiança do boiadeiro, que lhe deu a incumbência de transportar o dinheiro e efetuar as despesas da viagem e o pagamento de peões. Comprava os mantimentos em Campo Grande, distribuía o pessoal nas fazendas, adquiria as sementes para o plantio das roças na campanha, quando não as trazia de Uberaba e alugava ou obtinha o comodato de terras para plantar o arroz e o feijão para a volta. Lucas Borges gostou do trabalho do jovem árabe e cada vez lhe atribuía novas tarefas e responsabilidades, inclusive entregando-lhe as mercadorias que muitas vezes ele trazia para vender aqui, aproveitando o transporte da comitiva. Até o volumoso dinheiro para pagamento das boiadas passou a confiar ao Abrãozinho”. 76

O IMIGRANTE Abrão Júlio Rahe nasceu na famosa cidade de Zahle, no Líbano, em 18/dezembro/1912 e faleceu em Campo Grande, em 18/outubro/1953).

“Querido pai

Continuo a engordar. Tinha

emagrecido um pouco, mas imediatamente, voltei ao meu peso, que provém da grande quantidade de cana que chupamos continuamente. Todos os meus companheiros apresentam o mesmo aspecto florescente”. – Taunay, Uberaba, 24 de agosto de 1865.

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“Pertenceu a grupos que fundaram a Associação dos Proprietários de Imóveis, Sociedade Beneficente mantenedora da Santa Casa e exerceu muitas outras atividades”. “Abrão Rahe faz parte dos beneméritos cidadãos construtores de Campo Grande, dentro de um espírito de progresso, hospitalidade, benevolência. Tivemos a sorte de contar com vários elementos dessa vanguarda, que, numa época de conselho não-convencional, dera forma, rumos e diretrizes à jovem comunidade, por meio de ações às vezes isoladas, mas constantes, na profissão, nas agremiações, nos clubes, nas conversas, nas reuniões, nos debates. Foi por esta razão que Campo Grande cresceu como uma árvore de raízes fortes, tronco ereto e copa frondosa” – grifa em suas páginas o historiador Paulo Coelho Machado. A OUSADIA DO BOIADEIRO É também o historiador mato-grossense Paulo Coelho Machado quem traça o perfil de um dos mais famosos boiadeiros, Lucas Borges, que foi vereador por duas gestões e dá nome a uma avenida no bairro do Fabrício, em Uberaba. “Lucas Borges de Araújo (Araxá/MG 19/10/1867 – Uberaba 03/01/1937), filho de Pedro Borges de Araújo e Luísa Alexandrina Borges, tinha sua fazenda entre Uberaba e Uberlândia, na estrada de ferro Mojiana. Foi precursor do comércio de gado entre o Triângulo Mineiro e o sul de Mato Grosso. Baixo, moreno atarracado, cabelos pretos, olhos vivos. Trazia as carretas das comitivas atulhadas de mercadorias para mascatear em Campo Grande e nas fazendas da Vacaria, como carabinas, revólveres, espingardas de caça, facas, machetes, ferramentas agrícolas, arreios, utensílios de cozinha. Seu primeiro acampamento era no retiro chamado Campeiro, entre os rios Anhanduí e Vacaria. Os peões plantavam roça, enquanto ele comprava os bois e os reunia ali para a viagem de volta”. “Essa peonada de Lucas Borges e outros boiadeiros que o imitaram trouxeram costumes novos para a região: moda caipira ao som das violas, a dança da catira, iguarias típicas mineiras, como o mingau de milho verde, a pamonha assada, biscoitos e bolos”. Corredor dos Boiadeiros

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“Em Minas fazia política. Era líder, juntamente com o tio Manuel Borges, do partido dos Pacholas, que apoiava Rui Barbosa para a Presidência da República. Lucas era uma espécie de mecenas caboclo. Nas suas comitivas anuais levava sempre um jovem campo-grandense para estudar em Uberaba. Pagava toda a despesa de hospedagem, colégios, livros, roupas e devolvia o moço, dois ou três anos depois, já com os rudimentos de instrução e nova experiência de vida. Otorino Vieira de Almeida, filho de Antônio Vieira de Almeida, foi um desses beneficiados, no ano de 1910, e conta, com saudades, sua longa caminhada na comitiva de Lucas Borges. Saíram da fazenda Taveira, hoje Ligação, atravessaram o córrego Cervo, chegaram ao Capim Branco, ultrapassaram o rio Pardo, próximo à fazenda dos Nina, como também o Surucuí, no Passo da Pedra, ocasião em que rodaram seis bois. Passaram por São Domingos para chegar a Santana do Paranaíba, quando perderam mais um boi. Às vezes, achavam currais para alugar; outras, tinham que fazer a ronda”. “Depois alcançaram o rio Grande, divisa de Minas Gerais, e tomaram o rumo do Prata, onde ficou a boiada. De lá foram para Uberaba, até a fazenda Paineira, de Lucas Borges. Otorino foi matriculado no Colégio Sagrado Coração de Jesus, dos irmãos maristas. Em 1912, fez a viagem de volta, gozando da companhia de seu sobrinho, Orlando, filho de Amando de Oliveira, que havia ido com Zeca Honório para estudar. Tomaram o trem até Ribeirão Preto. Depois um trole, puxado a cavalos, conduziu-os à estação do Pontal, daí para Bauru, seguindo por Araçatuba até Três Lagoas. A travessia do rio Paraná foi feita em uma grande balsa. A ponta dos trilhos da Noroeste estava ainda em Arapuá. O percurso para Campo Grande foi cumprido a cavalo”, fecha o perfil do importante boiadeiro, o historiador Paulo Coelho Machado. Na sua residência, em Uberaba, Mário Cruvinel Borges rememora atuação de seu antepassado: “Lucas Borges era meu tio e tinha fazenda na região da estação de Buriti. Sobrinho de Manuel Borges, foi um político e um boiadeiro importante, trazia gado de Campo Grande a Uberaba. Meu pai, Quinca Borges (Joaquim Machado Borges), também era boiadeiro. Chegava à fazenda Mumbuca, perto da estação de trem de Mangabeira, com gado trazido de Mato Grosso. Outros tios meus, como João, Edmundo e Randolfo Machado Borges, 78

Presentes no folclore brasileiro e na música sertaneja, as porteiras funcionavam também como tabuletas para reclames ou avisos diversos. Fotos – Renato Peixoto

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foram boiadeiros que deram a vida ao comércio de gado. Outro boiadeiro importante foi o Cacildo Arantes. O gado que eles traziam de Mato Grosso já era cruzado com o zebu. Mas o maior mascate de todos os tempos foi Lamartine Mendes, que levava o gado de trem, de Uberaba até o Rio de Janeiro ou até Santos e embarcava até o Maranhão. Foi um homem notável. Eu nunca acompanhei comitiva, mas mascateei com gado, na crise brava de 1945, quando começaram a falar de moratória. Eu embarcava o gado na Oeste de Minas, levava até Belo Horizonte e, de lá, a cavalo, chegava a Governador Valadares, Caratinga, Montes Claros. Os leilões, aqui trazidos pelo João Gilberto Rodrigues da Cunha, quando presidente da ABCZ, acabaram com o mascate de gado”. ZEBUÍNOS EM CAMPO GRANDE PRODUTO UBERABENSE GENUÍNO Ainda uma vez é o historiador Paulo Coelho Machado que nos deixa ver a surpreendente proximidade histórica entre Campo Grande e Uberaba: Em depoimento concedido a nós, Francisco Vidal diz que, em 1903, Sebastião Lima trouxe os primeiros zebus – de orelhas compridas – a Uberaba, comprados a um conto de réis cada. Clemente Pereira, no mesmo ano, comprou quarenta novilhas para sua criação na fazenda Lagoinha. Já Valério d’Almeida afirma que, em 1909, entraram os primeiros espécimes de zebu, que iam naturalmente fazer uma revolução na pecuária meridional do Estado, informando ainda que ocorreu verdadeira febre de aquisição de reprodutores do gado que daqui passou a ter outra estampa, outro perfil, criando, dessa forma, o padrão das boiadas uniformes de três a quatro anos, que faziam o enlevo dos compradores’”. “Meu avô, Antônio Francisco Rodrigues Coelho, na crise de 1906, levou uma boiada para vender em Uberaba. Não encontrando comprador, e para não trazer de volta o gado, trocou-o a contragosto por quatrocentos touros de zebu. Vendeu metade na chegada e soltou o resto na fazenda Boa Esperança, município de Nioaque. Dizia, depois, que foi o melhor negócio que fez na vida, tal o melhoramento observado em seu rebanho, de origem europeia, mas já degenerado pelo rigor do nosso clima tropical”. Corredor dos Boiadeiros

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A COMITIVA DE ZECA PONTES Impossível não recorrer, mais uma vez, às páginas de Paulo Coelho Machado: “Cliente da pensão Bentinho desde a inauguração, em 1912, era também o boiadeiro José Vieira Pontes, de Uberaba, mais conhecido por Zeca Pontes, um homem extremante bem-humorado. Contava histórias do arco da velha, dotado de uma inventiva fecunda e instantânea. Toda gente amava ouvir as suas fantásticas narrações e anedotas, na maior parte improvisadas. Elas transmitiam alegria, calor e colorido. Com a voz profunda, de autêntico timbre mineiro, mantinha conversas longas, de frases curtas, durante as intermináveis caminhadas pelas estradas sem fim na ida e volta de Uberaba, trazendo mercadorias e levando bois, ou nos cavacos da pensão Bentinho”. “O capataz e chefe de comitiva de Zeca Pontes era um caboclo guapo e muito popular, chamado Folharada. Certa vez, havia uma boiada grande, a contar, e estava ele de cócoras, a olhar os pés. Surpreende-o o patrão: ‘Uai, Folharada, está a contar os bois nos dedos dos pés?’” “Rigoroso no cumprimento de seus compromissos, exigia reciprocidade, ainda quando desimportantes, como o estabelecimento de um encontro para bate-papo. Quando a outra parte faltava, o boiadeiro fazia um escândalo dos diabos ou simplesmente vingava-se, deixando um sinal qualquer que lembrasse o descumprimento da palavra”. “Alto, loiro, olhos azuis, sangue austríaco nas veias, descendente do ilustre Hermógenes Brunswick de Araújo, da histórica Desemboque, do Triângulo Mineiro, tinha, entretanto aspecto folgazão, simples, pachorrento, construía grandes amizades, aonde quer que chegasse. Excelente mercador, vivo, dedicado ao trabalho, sabia comprar e vender. Fez fortuna no seu duplo mister e logo se estabeleceu em Campo Grande, em época de vida urbana ainda restrita. Adquiriu terras, montou fazendas e, sobretudo, deixou grande descendência de pessoas inteligentes e capazes, que ainda contribuem para a vida intelectual de Campo Grande e do Estado.”.

João Pedro de Paula (Major), da comitiva de Zeca Pontes.

“Hoje (cerca de 1933), em Uberaba, não há mais, como outrora, mascates nem boiadeiros. As boiadas são vendidas pelos próprios criadores em 80

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suas fazendas”. - Hildebrando Pontes. “O comércio ambulante, ainda em 1908, era representado por uma centena de boiadeiros, que compravam todos os anos no Triângulo Mineiro, nos estados de Mato Grosso e Goiás, cerca de 60 mil bois, que, em média, eram vendidos nos grandes mercados do litoral por 80$000 a cabeça”. - Hildebrando Pontes. “A compra de consideráveis boiadas, feita anualmente no sertão, tornava necessário, também, o empréstimo de dinheiro, por 8 e 10 meses de prazo. Havia, para isso, a classe dos capitalistas – dedicada exclusivamente a esse comércio, ou exercendo, acumuladamente, outras profissões – constituída de elevado número de comerciantes. Havia, em 1908, vinte e dois capitalistas em Uberaba. Ao lado de grandes fortunas particulares de considerável riqueza, no município havia uma população em sua maioria pobre. Daí a grande utilidade das agências bancárias estabelecidas na cidade. Elas vieram facilitar, extraordinariamente, entre nós, o comércio do dinheiro, fazendo desaparecer os empréstimos a 12, 18 e até a 24% ao ano”. – Hildebrando Pontes.

NEGÓCIO DE GADO “No prelúdio do século XX, intensificaram-se os negócios de gado e os boiadeiros de Uberaba tornaram-se assíduos frequentadores de nossa cidade (Campo Grande) por muito e muito tempo. O caminho utilizado era o de Santana do Paranaíba. As grandes caravanas vinham do Triângulo Mineiro. Em Campo Grande armavam seus acampamentos e permaneciam por vários meses a comprar e reunir os bois do já significativo rebanho sul-mato-grossense, para depois levá-los às invernadas triangulinas, num pesado percurso de mil quilômetros, quando eram consumidos três meses na penosa viagem”. Paulo Coelho Machado. Corredor dos Boiadeiros

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O CHAPADÃO ESPREITA O MAR “Do Tijuco continua-se a jornada ao Nordeste, sobe-se por uma lombada, com profundos vales, à direita, e à esquerda, depois entra-se em uma vasta planície, que se estende a perder de vista, sem se encontrar água: quase a tocar o horizonte, para a direita, oferece-se um interessante quadro, que se representa a figura do mar sereno, e algumas árvores ao longe, dispostas em longos intervalos, formam a mais agradável ilusão ótica, figurando navios de diferentes portes, com o pano cheio; vista que fere o coração com a mais aguda saudade, a quem se vê obrigado a perder, por dilatado tempo, o quadro real do Oceano. Em várias partes, a superfície deste plano mostra o terreno levantado como formando pequenas ilhas, divididas por estreitos canais, que são cheios d’água no tempo das chuvas, e dispostos em tantas voltas que dão bem a conhecer quanto esta grande campina é horizontal”.

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“ALI SE REPRESENTA A FIGURA DO MAR SERENO” Esta observação, escrita em no século XIX por Luís D’Alincourt, ainda é pertinente nos dias atuais. A terra plana dos nossos campos divide a horizontalidade do chão com o céu – daí a expressão “chapadão, abismo horizontal” – coberta por mata nativa, no século XIX, ou por pastos ou imensas plantações de cana, soja, sorgo e milho, na atualidade, anelando, discretamente, a paisagem evocativa das planícies marinhas. O azul daquele e a diversidade de verdes destas se tocam, planos e plenos, de tal maneira que não é difícil ver uma árvore a singrar o mar límpido das plantações horizontais, qual navegação a vela soprada por estranhos ventos oceânicos... D’Alincourt antecipou em mais de século nossa notação.

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Foto: Google 83


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Capítulo

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O CORREDOR DOS BOIADEIROS Carro apertado é que canta – Cortando a paisagem quase sempre plana dos chapadões, o carro de bois emitia som que ainda ecoa na memória de peões e de boiadeiros.

O milho vinha da roça em espigas, abarrotando os carros de bois, e era debulhado à mão pelas filhas das escravas, nos quintais das casas, ou desintegrado nas máquinas de beneficiar arroz, na cidade. Coleção Museu do Zebu. Corredor dos Boiadeiros

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Junto à minha rua havia um bosque Que um muro alto proibia Lá todo balão caía, toda maçã nascia E o dono do bosque nem via.

Do lado de lá tanta ventura E eu a esperar pela ternura Que a enganar nunca me vinha.

A felicidade morava tão vizinha, Que, de tolo, até pensei que fosse minha.

Chico Buarque em Até pensei A RUA TRAVESSIA DA BOIADA

A longa rua descalça delimita o tênue confronto entre campo e cidade. À direita de quem vem do campo em direção à cidade, o alinhamento espaçado de casas emolduradas por frondosas mangueiras. À esquerda, a cerca formada de arame farpado e achas de aroeira deixa ver, aquém da planície verde, restos de chácaras arrumadas, de arquitetura acolhedora, alcançadas por alamedas de casuarinas. De uma banda, a cidade espreita o campo e ele se estende baixo, cortado pela cavidade ventral do córrego do Cachimbo. Além do que a vista permite, mas que a mente alcança, o córrego do Lajeado e, seguindo a direção do pensamento, o lugarejo chamado de Santa Rosa; se for para ir mais adiante, viajar na geografia, faz-se uma parada em Almeida Campos, a venda e a casa flanqueadas pelo ajuntamento de eucaliptos no chapadão aplainado de lisuras... Se o fôlego for dos bons, alcança-se a espumejada cachoeira de Pai Joaquim, perscrutada entre névoas e nimbos; mais adiante ainda, a cidade de Dores de Santa Juliana e, quando já estiver desacorçoado de se retirar tanto em libertinagens geográficas, para acabar com essa andação toda, chega-se ao Fundão, onde o mundo acaba... 86

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As galinhas soltas na rua não sabem desta história toda, têm trânsito livre de um lado e de outro da rua, ciscam à vontade e põem ovos tanto nos ninhos de lá, feitos debaixo das moitas de gabiroba, quanto nos de cá, nos caixotes amaciados com maços de capim, ajuntados num canto do quintal sem fundo... O sol forte da tarde faz a rua tremular aos olhos de quem a espreita, parada a esta hora. Até mesmo um cachorro sem dono, por mais vadio que ele seja, evita sair da sombra, do sossego e da sonolência. Um silêncio pesado toma conta de tudo e esparrama um desânimo, uma dormência sem tempo para acabar. Somente uma criança se arrisca a romper o paradeiro do momento e sai de bicicleta, deixando no chão de terra batida as marcas dos pneus, hieróglifos a serem decifrados por pesquisadores futuros... Quando tudo parece calmo demais, um barulho desentendido chega aos ouvidos e os olhos se arregalam para a mente adivinhar a origem. O chão começa a tremer, fazendo as vasilhas de alumínio tirar som umas das outras, na prateleira da cozinha. No começo da rua, um poeirão danado se levanta, cobrindo árvores, casas, coisas, guardados; a rua toda se envolve numa massa poderosa de poeira. Flanqueando os animais, mugido, estalos de chicote e gritos dos boiadeiros, que têm olhos para enxergar além da nuvem de pó e orientam a boiada, que se esfrega e avança sem receio de pisotear o que vem pela frente. Durante uma hora, as janelas das casas do Corredor dos Boiadeiros assistem ao estrepitoso espetáculo da passagem da boiada, que evolui, magra e cansada da longa jornada, numa movimentação assustadora, em direção ao final da rua. É gado que não acaba mais e sua passagem é a maior diversão para a população do lugar. Tem gente que vem de longe ver o movimento dos animais. E quem entende do assunto se põe à porta de casa a ponderar sobre a qualidade ou precariedade dos bichos atarefados. Tem sujeito que, só de olhar, é capaz de dizer quantas cabeças de animais contém cada boiada que passa. A poeirada se esparrama e depois e aos poucos baixa, a tempo dos boiadeiros verem na janela que acaba de abrir a moça que ali se enquadra, quebrando a seriedade das fachadas das casas fechadas. Se não fosse hora de serviço, dava para entoar aquela moda:

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Menina dos olhos verdes Ouça o que eu vou dizê, Embora tu sejas noiva Mais quero te esclarecê, Eu sempre te admirei Sempre me lembrei de você, Jogue esta aliança fora Que vou me comprometer Ai, ai. (José Barbosa) Quem não se diverte nada com a cinematografia feita pela correria dos animais é a mãe, aflita com o sumiço do filho que saiu de bicicleta, o nervo de imaginá-lo debaixo das patas da vacaria ou chifrado por algum animal endemoninhado. Ela sabe que a boiada pode pisotear até gente grande; que dirá uma criança. Mas a poalha baixa e com isso o alívio de ver o ciclista como que retomando a vida, saindo do pó do desaparecimento. A boiada segue seu destino, acalmando a gente daqui, passando a assustar moradores adiante. ESPAÇOS E PRÁTICAS De todo o trajeto urbano do Corredor dos Boiadeiros, a rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha guarda o aspecto primitivo, embora tenha sido asfaltada. Além da convivência com o campo, a rua foi marcada pelo número de chácaras que a enriqueceram, principalmente do lado esquerdo, no sentido de quem vem do rio. E o interesse por ela se diversifica pelo fato de ter conservado construções residenciais de vários estilos, algumas preservando a maneira das construções coloniais, com moirões e esteios de madeira boa, paredes de adobes e cobertura de telhas vãs; outras, modernas para a época, remanescentes do estilo modernista, abusando da tecnologia permitida pelo “cimento armado” e das formas geométricas. Nos alpendres, as valorizadas cadeiras de ferro, formadas por arabescos e produzidas pela fábrica da família Locci, importante nos anos 40, 50 e 60. O confronto entre 88

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os estilos de construções era notório até o início do novo milênio, quando começaram a demolir, muitas vezes sem razão (mal de brasileiros!), as casas mais antigas. Porém, se algumas casas vão ruindo, no abandono, muitos dos grandes e assombreados quintais permanecem, como a inquirir sobre seu futuro alguma chance de sobrevivência. Seja pela magnitude, seja pela magnitude de seculares árvores frutíferas, verticalizadas à maneira dos arranha-céus, como as mangueiras, nas qualidades mais diversas, como a perfumada sabina, a bourbon a imitar o perfil dos nobres franceses, espada, rosa, coquinho e uma dezena mais, sem falar nas comuns, algumas de sabor especial, secundadas pelos “edifícios” formados pelas jaqueiras e abacateiros, cajamangueiras e goiabeiras e uma série de laranjeiras, com ênfase na qualidade “jonunes” ( joão nunes). Os quintais também são bens arquitetônicos, uma vez que foram feitos pelo homem para deles desfrutarem de momentos de lazer em variadas funções e diversas formas, muitas vezes lúdicas. Quantas gerações não tiveram ali sua iniciação sexual e amorosa! Era de suas cisternas que provinha a água para a utilização nas casas, para regar as hortaliças e os pomares, a água para os galinheiros, os chiqueiros e os animais de tração que ali descansavam e faziam pouso. As edículas que se construíam nos quintais tinham funções secundárias, mas eram extensões da casa. A elas eram reservadas funções sem as quais a casa não funcionaria em toda sua abrangência. Mas, quando órfãos da casa ou abandonados, os quintais perdem a significação que tinham e tornam-se simplesmente terrenos baldios, alvos dos desocupados e da especulação imobiliária. Este é o aspecto que transmitem as grandes áreas sobreviventes de casas e quintais antigos pelos arredores da principal rua do Cachimbo. JOGOS ENTRE O CAMPO E A CIDADE O LAZER As pipas alçam os espaços vazios em arrancadas, por conta das fisgadas, desbicadas e soquinhos dados pelos garotos que as soltam e as controlam através de um ou dois carretéis de linha branca. Feitas de vaCorredor dos Boiadeiros

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retas de bambu, papel de seda e grude, exibem as cores alvirrubra, rubro-negra e alvinegra, identidades dos times preferidos de seus adolescentes donos. Se os moleques forem bons nas pipas, ou papagaios, há disputa para ver quem as mantém mais altas ou quem é capaz de laçar a pipa adversária, levando-a, numa demonstração de derrota, ao chão. No chão, a competição se faz atrás de uma bola de futebol, em partida disputada por times uniformizados. É de manhã. O sol vai subindo e esquentando a terra, a gente. O apito do juiz denota que a atividade entre os boleiros é intensa, os torcedores continuam palpitando a cada jogada em campo. Amantes do futebol se aglomeram no alambrado do tradicional palco do Amadorão. As provocações aos jogadores arquirrivais não param. O Camisa 10 dos donos da casa não se sente intimidado. Longe disso. Ele faz questão de balançar a rede, com um toque sutil, por cima do goleiro. Na comemoração, o craque mostra aos adversários o escudo do time desenhado na camisa num momento especial para os fiéis torcedores do Ipiranga. Em seguida, o árbitro assinala o fim da primeira etapa, mas a festa ao redor do estádio não para. E o picolezeiro conta com o calor para faturar mais algum e adoçar a torcida com sabores de coco, groselha, cajamanga, limão... Por enquanto, o verde do campo de futebol Ipiranga se estende por todo o imenso entorno. Mas, em pouco tempo, a área verde se restringirá aos limites demarcados do campo.

Campo do Ipiranga, confluência do lazer e da boa convivência dos moradores da antiga região do Cachimbo. Foto – Jairo Chagas. 2014.

TRADIÇÃO E AFINIDADE Na rua Santa Juliana, 430, no bairro Boa Vista, pertinho da praça Adélia Maluf, Antônio Francisco de Faria (69 anos) toca a loja de armarinhos, com linhas para todas as finalidades. É ali que ele rememora a infância vivida na avenida América, no Alto do Cachimbo, menino livre para vagar pela redondeza toda. O convívio com a rua, no entanto, não lhe tirou o “medo terrível” da boiada que passava pela rua Nicarágua, às vezes 90

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seguindo em direção à avenida Elias Cruvinel, outras vezes, passando em frente ao Quartel de Polícia, direcionando-se para o Matadouro Municipal, que ficava no fim da rua do Boi (rua Afonso Rato), às margens do córrego das Lajes. “Às vezes, passavam também carros de bois no Corredor de Boiadeiros”, lembra Faria, ex-jogador do Esporte Clube Fabrício, do Independente Atlético Clube, do Nacional Futebol Clube e, claro, do Ipiranga Futebol Clube, lembra Antônio Francisco de Faria. Faria é um daqueles que, nos anos de 62/63, fundou o Ipiranga Futebol Clube, juntamente com Manuel Rodrigues, José Carlos do Nascimento, Reginaldo Rocha, Valdemar Bernardes. É Faria quem diz: “Naquela época, o time de futebol nascido alvirrubro, ocupou o campo mandado fazer pelo empresário Edgard Rodrigues da Cunha, proprietário da Cafeína e depois dos Produtos Ceres, em terrenos de sua propriedade, em frente à indústria, para seus funcionários. Era o Ceres Futebol Club, time presidido pelo gerente da empresa, Adelício Leocádio. Com a decadência desse time, o Ipiranga passou a realizar ali seus jogos”. O campo, típico de várzea, ainda existe. O terreno não foi ocupado pelo proprietário, mas no segundo mandato de Marcos Montes (2001 – 2004), o prefeito, apaixonado por futebol, sendo ele um atleta desse esporte, construiu, em frente, o Estádio José Romualdo, na verdade um campo gramado, com arquibancada de alvenaria e todo cercado de alambrado, de intensa atividade domingueira. A construção ocupa área que pertenceu à chácara de Misael Cruvinel Borges. Desde 2010, Faria preside o time, que vive de contribuição de diretores, associados e, principalmente, de publicidades, que não lhe têm sido regateada. Carlos Espírito Santo, o Carlinho Totó, é o técnico, no momento. Embora praticamente restritas aos fins de semana, as partidas de futebol dão ao local a alegria que, no passado, se fazia através de atividades econômicas, com o movimento das fábricas e das boiadas. VIDA DE IDA E VINDA Margeando a cidade de Uberaba, o Corredor dos Boiadeiros era compreendido por: Avenida Pedro Lucas, Ruas Rosa Manzan, Carlos Tasso Rodrigues da Cunha Corredor dos Boiadeiros

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e Felipe Aché, Avenida Elias Cruvinel, Ruas Tomás Bawden e Divinópolis, Avenida São Paulo, onde ficava a Estação Ferroviária Amoroso Costa, Avenida Djalma Castro Alves, onde ficava a Estação Ferroviária Rodolfo Paixão. No setor urbano, o Corredor dos Boiadeiros vindo da estrada Pará-Uberlândia, tinha início no barranco que desce em direção ao rio Uberaba, onde o gado nele mergulhava e o atravessava a nado. Segundo Edésio Cruvinel Borges, por volta de 1950, no governo de Boulanger Pucci (1947 – 1950, eleito prefeito de Uberaba em 1947, pelo PTB), foi construída a ponte de concreto armado, dispensando a vacada do banho, que na certa a refrescava da longa jornada. Vindas dos fundos ao leste do Triângulo Mineiro – Serra do Salitre, Patrocínio, Patos de Minas, João Pinheiro – e procedentes de Goiás, depois de percorrer 100, 200 e até 300 quilômetros, as boiadas diminuíam a passada para subir o barranco oposto e, finalmente, ganhar o terreno plano de chegada ao começo da cidade. Aí, emborcava no corredor Pedro Lucas (hoje, avenida Pedro Lucas e rua Rosa Manzan), seguia pela rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha, passando diante de uma porção de casas, como as de Antenor Alves Gomes, de Gilberto Gomes, de Joaquim Rosa, quebrava à direita na pequena rua Filipe Aché e à esquerda pela avenida Elias Cruvinel, já adentrando o Alto Boa Vista. Alcançava a rua Tomás Bawden, Divinópolis, onde às vezes encontrava-se com outras boiadas, vindas da região de Araxá; atravessava o rio Uberaba no vau do Nogueira e a avenida São Paulo. Bem aqui, ao lado de onde está hoje o Tiro de Guerra, ficava a casa onde residiam os fiscais da ferrovia. A qualquer sinal de chegada de uma boiada, eles subiam num pilar existente à porta da casa e ali cumpriam a função de contar o gado e cobrar os impostos devidos aos comissários de boiada. Finalmente, a estação de Amoroso Costa, onde se aguardava o tempo necessário para o embarque, quase sempre com destino ao estado de São Paulo. Um percurso de oito quilômetros, da ponte do rio Uberaba, até a estação de Rodolfo Paixão, percorrendo vastas regiões vazias ou em processo de urbanização desde o século XIX, com ruas em formação, pastos e chácaras bem formadas. Ligado a ela, havia outro Corredor dos Boiadeiros, que perdeu este nome quando asfaltaram a avenida Nossa Senhora dos Desterro, no bairro Abadia e que fazia ligação das estações ferroviárias com outras saídas e entradas da cidade de Uberaba. 92

“Por volta de 1950, fui com meu pai, em sua charrete, na inauguração da ponte de concreto construída no governo de Boulanger Pucci sobre o rio Uberaba, com destino a Uberlândia. Eu devia ter uns sete anos de idade. E me lembro da ponte de madeira que havia antes. Uma enchente levou metade dela. Antes da ponte, as boiadas passavam dentro d’água do rio”. – Onírio Barbosa.

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CORREDOR PEDRO LUCAS PASSAGEM

Ao trecho inicial do Corredor dos Boiadeiros, formado pelas ruas Pedro Lucas e Rosa Manzan, denomina-se de corredor Pedro Lucas. Lembra Anísio Pereira da Silva, filho do quase nonagenário, Anísio, que Pedro Lucas fez doação de área aos moradores miseráveis que ocupavam a localidade onde é hoje a rua Rosa Manzan. A denominação tornou-se popular. Hoje, denomina-se avenida Pedro Lucas o logradouro que segue em direção à ponte sobre o rio Uberaba. Em depoimento dado em 21/10/2012, a musicista Nanci Viana, residente no Rio de Janeiro, diz ser bisneta de Pedro Lucas, o homem que deve ter construído a primeira ponte sobre o rio Uberaba. Esta ponte, construída de madeira, mais tarde foi levada por uma chuva muito forte. Somente aí é que foi construída a ponte de concreto, a poucos metros abaixo, no governo de Boulanger Pucci e que resiste até os tempos atuais. Para se ter ideia do período em que Pedro Lucas viveu, ele era pai de Maria Lucas de Oliveira, conhecida como vó Marica (Uberaba 26/06/1885 – idem 02/07/1987). Foi casada com Jacinto (Cintico) Ferreira de Oliveira. “Sou de 1961, tenho 50 anos e me lembro que até 1975, 76 ainda tinha o movimento de ida e vinda de boiadas aqui no corredor. Como em Araguari faziam abate de cavalos, tinha tropas de cavalos saindo de Uberaba, passando pelo Corredor.” Depoimento de um morador do local. “No Corredor Pedro Lucas tinha cortiço do Horácio, a casa do Zé Aguiar, as plantações de arroz do Dimas, um português com dentes de ouro e uma charrete para ele se locomover”, relembra o marceneiro José Lázaro Carvalho.

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Trajeto urbano do Corredor dos Boiadeiros, na periferia da cidade de Uberaba, perfazendo cerca de dez quilômetros, entre a ponte do rio Uberaba e as estações ferroviárias de Amoroso Costa e Rodolfo Paixão, ambas demolidas. Fonte - Google Earth

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Capítulo

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AS CHÁCARAS, AS VIDAS, AS VIVENDAS O TEMPO APREENDIDO “Ser provinciano não é um determinismo geográfico ou natalício. É um estado de espírito”.

As chácaras foram tradição a que se recorria em busca de lazer e fartura de carnes e ovos, frutas, flores e verduras, cultivadas por agregados que podiam ser descendentes de escravos, nordestinos ou imigrantes europeus. Chácara de Romeu Válio, Hugo Arantes, Odo Tormin. Demolida. Foto - Jorge Alberto Nabut. Corredor dos Boiadeiros

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CÓRREGO DO CACHIMBO ESCOLA DE CULTURA FÍSICA DE JOÃO TEIXEIRA ÁLVARES A CLÍNICA DO CACHIMBO CHÁCARA DOS ARGONDIZZI CHÁCARA DE MISAEL CRUVINEL BORGES CHÁCARA DE HUGO ARANTES/ODO TORMIN CHÁCARA DE ANTENOR ALVES GOMES CHÁCARA DE JORGE FIDALGO CHÁCARA DE ZECA PINTO CHÁCARA DE JOSÉ BORGES DE MORAIS CHÁCARA DE NENÊ GOMES CHÁCARA DE JOSA BERNARDINO CHÁCARA DE AMÉRICO FACHINELLI O ENCANTO DAS VIVENDAS

A abordagem das chácaras, feita neste capítulo, é, no mínimo, evocativa. A distância, recortadas as silhuetas volumosas das árvores que envolviam as casas-sede, a aninhar revoadas de pássaros, os animais soltos no pasto, compõe o quadro pintado à exaustão por artistas da palheta e da pena, dos mais variados matizes e talentos. Da mesma forma, a proximidade com a faina do dia a dia, o cuidar do gado, dos animais de tração, às vezes uma charrete, dando certo status ao proprietário, da horta, dos jardins, das aves caseiras, galinhas de variada plumagem, a varanda a quebrar o intenso sol, a angulação das janelas na qual se assoma a moça casadoira, o interior da cozinha, ainda colonial, o devassar dos cômodos principais da casa... Das chácaras as famílias tiravam sustento, consumindo e comercializando produtos essenciais, como queijo, manteiga, carnes, ovos, polvilho e verduras, além de uma variedade de flores utilizadas em diversas oportunidades, como casamentos e enterros. Vários autores se debruçaram sobre este tema, que, durante séculos, marcou o contorno dos bairros, quando ainda não eram chamados de peri96

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feria. Esse tipo de vida teve final decretado no século XX, com o crescimento rápido das cidades, os loteamentos que apostavam e apostam num tipo de vida inversamente oposto àquele. Neste limite urbano, visto por nós, em que o perfil das chácaras se refaz a partir de suas ruínas, é quase tátil o prazer de conviver com a riqueza incomensurável da existência que tanto marcou a vida de nossos avoengos. O relacionamento humano se fazia através de permutas substanciais de convívio e viver só, tão comum nos tempos atuais, e em nível universal, era atitude impensável, num espaço aberto e afeito a muitos. Pelo menos é isso que se depreende do pouco que vivenciamos desses ambientes “formalmente românticos” e marcados por valores humanos. Ao longo do Corredor dos Boiadeiros, numa extensão de dez quilômetros, intercalados por grandes vazios formados por lavouras, pastos e campos sem cultivo, alinhavam-se chácaras, indústrias, campo de futebol, igreja, casas comerciais, pouso para gado, três estações ferroviárias, uma delas com curral de embarque para animais, além de diversas residências. Para melhor compreensão desse elenco de endereços bucólicos, toma-se sentido a partir do rio Uberaba, em direção às estação de trem de ferro de Amoroso Costa e de Rodolfo Paixão, desconsiderando a principal delas, a de Uberaba, não utilizada para embarque e desembarque de animais. CÓRREGO DO CACHIMBO O PASSADO, A POLUIÇÃO Algumas das vivendas aqui revividas são delimitadas pelo “discreto” córrego do Cachimbo. Escondido por estreita, mas interessante mata ciliar, servindo de divisor de propriedades, o córrego do Cachimbo continua vivo, esgueirando-se ou sobrepondo pedreiras, sobrevivendo aos dejetos nele jogados desde os tempos de funcionamento do curtume, cujas terras, entre outras, delimita. – “O córrego do Cachimbo nasce nos fundos dos Produtos Ceres e descia limpo, passando defronte ao Curtume dos Dornfeld, cujos resíduos eram jogados nele. O córrego deságua no rio Uberaba, que era piscoso, um rio bonito e muito limpo acima dali. Com o tempo, o córrego foi diminuindo de Corredor dos Boiadeiros

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volume”. - Antônio Francisco de Faria. Desde o loteamento da área, no início dos anos 40, quando viria a se chamar vila São José, o alto do Cachimbo foi anexado e absorvido pelo alto do Fabrício e, consequentemente, pela cidade – já não era mais “desertos” aqueles terrenos, como dele disse Gabriel Toti –e, com isso, foi sendo esquecido. Alguns textos deste primeiro capítulo visam a recriar a ambiência dos lugares e recompor momentos e monumentos desta área. “O córrego do Cachimbo passa no fundo das terras que eram minhas. Pulando o córrego, dava nas terras de Nhozinho Lemes”, informa Edésio Cruvinel Borges em depoimento. Muito das citadas terras de Inhozinho Lemes pertencem ao advogado Diamantino Silva Filho, que restaurou a casa-sede da fazenda, valorizada com a troca de madeiras desgastadas por peças de bálsamo. Ainda dos tempos de Lemes, guardo lembranças da adolescência, quando conheci a casa antiga. A sala quase vazia. Algumas sacas de arroz amontoadas. De mobiliário, um longo banco de madeira, sem encosto. No móvel tradicional, ele se sentava, pernas cruzadas e rentes, com os conhecidos, iluminados pela luz em diagonais que entrava pela janela lateral. Lembrava gravuras coloniais. Do silêncio maneiroso entrecortado pela conversa, o som da água se despejando do bojo do braço do monjolo, lá fora. Do monjolo, situado na lateral da casa e utilizado para pilar o arroz, o café, o milho, vinha, através de cochos de aroeira, a água corrente que abastecia a cozinha. Era curioso e raro ver cozinha dotada de água corrente, sem ser encanada. A ancestralidade dos costumes em casa de Nhozinho se estendia ao comportamento das mulheres, irmãs do fazendeiro. Militina e Rodolfa não se mostravam às visitas, embora o cheiro do café passado no coador de pano se estendesse a toda a casa e chegasse até nós. Misteriosamente, a porta da sala de jantar se abria. Para nosso regalo culinário, fomos chamados a entrar. Uma farta mesa tinha sido montada para nós. Ao café adoçado com raspa de rapadura e leite gordo “do curral”, biscoitos e broas servidos sobre a grande mesa nos fartavam. Como no Brasil Colônia, as mulheres não apareciam, reservando para si o interior sóbrio e sombrio da casa. Eram os anos 1960...

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Córrego do Cachimbo Divisor de áreas, sempre poluído e afluente do rio Uberaba, o córrego do Cachimbo mantém a tradição do nome do lugar celebrado pela História. Foto - Ramon Magela.

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REGISTRO DE IMÓVEIS Trechos da escritura de aquisição de área confrontada pelo córrego do Cachimbo, de propriedade de Edgard Rodrigues da Cunha. Registro de Imóveis I Ofício. Uberaba, 26 de dezembro de 1951:

FAZENDA DE WHADY NASSIF (Corredor Pedro Lucas/Avenida Pedro Lucas)

“Logo na subida do barranco

do rio Uberaba, a primeira fazenda, do lado direito, em frente da qual passavam as boiadas, pertencia ao dr. Whady Nassif, que foi prefeito da cidade (1937 – 1943)”, lembra Antônio Alexandre do Amaral, em depoimento a este autor.

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• “Certifico que Edgard Rodrigues da Cunha adquiriu o imóvel situado neste município, na fazenda Lajeado, com os seguintes característicos e confrontações: uma parte no sítio composta de casa de morada coberta de telhas, com seis cômodos térreos, quintal plantado, cercado de arame, e outra casa coberta de telhas, com três cômodos térreos e demais benfeitorias, na parte de cinco alqueires e cinquenta e três litros de campos, uma parte de quinze litros e oito centilitros e fração, achando-se este imóvel em comum com os herdeiros de e uma casa com três cômodos, coberta de telhas francesas, sendo esta construída pelos vendedores, a comunhão confronta pela forma seguinte: do córrego do Cachimbo, no rio Uberaba e daí pelo córrego acima até o marco existente em sua margem direita, daí à esquerda pelo rumo perimétrico...na extensão de 402 metros na confrontação com terras de Militina, Leonor e Antônio, até o marco do Capitão, à beira da cultura, daí à esquerda, rumo SW 59 graus e 312 metros até o marco fincado no barranco do rio Uberaba, 100 metros acima da barra do Cachimbo, daí rio abaixo até onde teve princípio na barra”. Fica a sociedade uberabense devendo a recuperação do poluído córrego do Cachimbo.

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ESCOLA DE CULTURA FÍSICA DO BAIRRO DO CACHIMBO (Corredor Pedro Lucas)

Casa de Saúde e Maternidade Nossa Senhora de Lurdes, do Dr. João Teixeira Álvares, na rua João Pinheiro; era dele também, a clínica instalada no Cachimbo. O Brasil e Seus Estados: Minas Gerais e Seus Municípios. Edição Capri, Andrade & Cia. São Paulo, 1916. Coleção Arquivo Púbico de Uberaba.

Edésio Cruvinel Borges relaciona entre as chácaras do Corredor dos Boiadeiros, aquela que pertenceu ao médico João Teixeira Álvares. Após o falecimento do informante, indo a campo, fomos instados a pensar na inexistência daquele imóvel, visto que, entre moradores idosos, não encontramos nenhuma referência a tal propriedade. Evidenciar a existência da propriedade na região do Cachimbo foi prazeroso. Personagem polêmica da vida ativa cultural uberabense da virada dos oitocentos para os novecentos, João Teixeira Álvares residiu 41 anos em Uberaba, de 1899 a 1940. Foi um dos intelectuais mais ativos e típicos de sua época. Pai de Pedro Ludovico Teixeira, fundador de Goiânia, nova capital do 100

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estado de Goiás, inaugurada em 05/07/1942, e avô de Mauro Borges Teixeira, governador daquele Estado nos períodos de 1930 a 1945, 1951 a 1954, João Teixeira teve trajetória ativíssima. Homem culto, elegante em tudo que fazia, católico “fervoroso”, como se usava dizer, era profundamente ligado ao clero, sendo autor de peças teatrais, muitas delas inspiradas na História Sagrada. Há no Arquivo Público de Uberaba exemplar da preciosa edição feita por ele do Auto da Paixão de Cristo, no qual o pintor Anatólio Magalhães encarnava o personagem principal. Um primor de qualidade gráfica e cujas imagens ainda surpreendem pela qualidade fotográfica. Segundo o pesquisador Guido Bilharinho, João Teixeira é citado na obra O Teatro no Brasil, de J. Galante de Sousa, publicado no Rio de Janeiro, em 1960. Segundo informações do sítio da Academia Goiana de Letras, “João Teixeira Álvares “nasceu em Santa Luzia (GO), hoje Luziânia, no dia 10 de julho de 1858, filho do capitão José Benedito Teixeira Álvares e de Clara Teixeira Araújo, e faleceu em Uberaba, em 25 de agosto de 1940. Seus pais transferiram residência para Goiás, tendo ali o início de seus estudos preparatórios. Em 1869, é matriculado no Colégio do Senhor do Bonfim, em Meia Ponte, hoje Pirinópolis, como pensionista do erário público, conforme ordem do presidente da Província”. Afilhado do bispo dom Joaquim Gonçalves de Azevedo, foi admitido, em 1871, gratuitamente, como aluno no Seminário Episcopal de Santa Cruz, em Goiás. Em 1876, partiu de Goiás para o Rio de Janeiro e obteve da princesa Isabel pequeno auxílio para seus estudos; tornou-se, ao mesmo tempo, professor do Colégio Almeida Prado. Em 1881, não conseguindo recursos financeiros com os parentes para estudar Medicina, pediu emprego ao ministro da Fazenda, Afonso Celso de Assis Figueiredo, (visconde de Ouro Preto) e apresentou-lhe os boletins escolares, aprovado com distinção em todas as matérias. Ao invés de trabalho, recebeu do estadista uma mesada de oitenta mil réis, colaboração para os estudos, e colou grau em Medicina no ano de 1885. Em 1884, casou-se na cidade de Goiás, com Josefina Ludovico de Almeida, com a qual teve os filhos João Teixeira Álvares Júnior, Dulce Ludovico Teixeira e Pedro Ludovico Teixeira, este último, médico e fundador de Goiânia. Teve outros filhos, inclusive, de mãe francesa. Quando de sua estada em Corredor dos Boiadeiros

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Paris, foi discípulo de Pasteur, fazendo elogiável estudo sobre a raiva. Clinicou em Goiás e Uberaba e, nesta última cidade, passou a colaborar com o jornal Lavoura e Comércio. Em 1901, seguiu, pela segunda vez, para a Europa, participou do Congresso de Tuberculose, em Londres, e neste mesmo ano foi escolhido membro da Sociedade de Hipnologia de Paris. Fundou a revista médica O Torres Homem, a Casa de Saúde Nossa Senhora de Lourdes, na cidade mineira de Uberaba, e a revista Jesus Cristo, sob sua direção. Publicou Montezuma (tragédia histórica), em 1900; Eleuza (Tragédia); O cego e a leprosa (drama); Mortalidade infantil; Barolas; (versos); Cancioneiro (versos); Aneurisma em geral; Un nouvel embriotome (Paris); Secci Oculi (contos). Foi patrono fundador da Academia Goiana de Letras, onde ocupou a Cadeira número 17.

“Retrato tirado no theatro sito no jardim do Dr. João Teixeira, por ocasião da visita do Rvmo. Padre Dr. Júlio Maria à cidade de Uberaba”. O Brasil e Seus Estados: Minas Gerais e Seus Municípios.

A CLÍNICA DO CACHIMBO SAÚDE E MODERNIDADE De estatura mediana, completamente calvo, tez clara e com o ventre avançado, sempre de jaleco branco, o médico José Soares Bilharinho ia a pé de sua casa, na avenida Dr. Fidélis Reis, até a tradicional rua Vigário Silva, onde frequentava metodicamente o jornal Lavoura e Comércio (06/07/1899 27/10/2003). Na sede da empresa, cumprimentava polidamente a todos. Lá ele tinha acesso livre ao centenário arquivo do vespertino, formado desde 1899. Dele extraía material para a volumosa pesquisa para os vários volumes que escrevia sobre A Medicina em Uberaba. Para isso, lia e anotava, página por página, dia a dia, ano a ano, tudo o que se referia ao assunto. Naquele exato momento – dia 25 de março de 1987 – colhia informações sobre a Casa de Saúde e Maternidade Dr. João Teixeira que ia transcrevendo para sua História da Medicina em Uberaba: “Fundada a 1º de janeiro de 1905 pelo dr. João Teixeira, foi o primeiro hospital particular de Uberaba. Achava-se localizada à rua das Flores (posteriormente, João Pinheiro), número 16 (numeração muito antiga). O terreno respectivo se estendia da citada via pública até a rua do Comércio, em cuja frente, à altura da atual ladeira dos Estados Unidos, fora levantado o palace102

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te de residência do proprietário. Entre as duas edificações existia ampla área ajardinada, onde muitas vezes se armava palco destinado à representação de peças de teatro, algumas das quais de sua autoria. Em tais ocasiões, todo o jardim era finamente decorado pelo renomado artista uberabense sr. Joaquim Gasparino.”

BARÃO DE SARAMENHA, Carlos Gabriel de Andrade, primeiro e único barão de Saramenha (Ouro Preto, 6 de julho de 1846 — Belo Horizonte, 13 de setembro de 1921).

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“Em época posterior, o dr. Álvares mandou construir em um dos lados do jardim uma gruta, para a qual trouxe da França uma imagem de Nossa Senhora de Lurdes, a mesma que se encontra hoje na gruta existente junto à igreja da Adoração Perpétua”. “Profissional de grande iniciativa, o referido cirurgião, pouco mais de dois meses após a inauguração da Casa de Saúde, ali inaugurava completo serviço de fisioterapia”. Facilitado pela claridade que invadia a sala de arquivo do jornal, por conta das duas grandes janelas, José Soares gastava duas horas por dia folheando a coleção. Um dia de sorte para ele: 2 de dezembro de 1917, cuja edição lhe rendeu farto material, lido atentamente, parágrafo a parágrafo, copiando, todos, na íntegra: “Casa de Saúde e Maternidade do Dr. João Teixeira. Este importante estabelecimento, fundado em 1905, foi agora completamente reformado, sofrendo tão radical transformação que o torna um sanatório com todas as exigências da higiene moderna, verdadeiro modelo de asseio e conforto”. “É diretor técnico do estabelecimento o senhor barão de Saramenha. Incumbir-se-á do tratamento das senhoras a distinta parteira madame Carmen Jaso, formada pela Universidade de Saragoça”. “Todos os gabinetes, as salas de banho e o vestiário são confortáveis e bem dispostos. O gabinete de eletricidade é completo, possuindo grandes máquinas modernas, vindas de Paris, como sejam: máquina estática para banhos elétricos, grandes aparelhos de Chardin para produção de correntes contínuas e de indução e máquinas para galvano-cáustica e eletrólise”. “Muitos são os doentes que o dr. João Teixeira tem curado em Uberaba com banhos elétricos. Senhoras nervosas e histéricas que já não podiam sair de casa, nem comiam e nem andavam sozinhas, curaram-se completamente. Nele se encontram: - Sala de operações 103


- Sala de esterilização - Sala de curativos - Gabinete de eletroterapia - Gabinete bacteriológico - Gabinete oftalmológico - Gabinete de massagem (O dr. João Teixeira, que tomou aulas em Paris com o dr. Coutru, é o massagista da Casa de Saúde) - Biblioteca - Quartos e apartamentos - Salão de jogos e leitura - Vasto jardim provido de um teatro e cinema - Gabinete de hidroterapia - Parque Olímpico A meia légua distante de Uberaba, a Casa de Saúde colocou o Parque Olímpico, chácara arborizada e ajardinada, com aparelhos os mais aperfeiçoados de esportes, onde os enfermos se exercitam na ginástica médica e se recreiam à sombra de árvores colossais e elegantes caramanchões cobertos de flores...” Nas reticências acima ‘caramanchões cobertos de flores’, o pesquisador, exausto das anotações, afasta-se da leitura, retira os óculos redondos de aro de metal, esfrega as vistas... suspendendo as transcrições. Para ele é o suficiente por hoje, mas, movido pela curiosidade, lê mais um pouco e acaba repassando para o futuro a pista do local onde existiu a chácara de dr. João Teixeira, o Alto do Cachimbo: “A gruta erguida à Nossa Senhora de Lurdes foi inaugurada no dia 29 de outubro de 1922. Para a solenidade, o dr. Álvares promoveu concorrida festa. À bênção seguiu-se distribuição de estampas em que fora reproduzida a imagem da Virgem. Benzeu-se, também, naquela oportunidade, a Escola de Cultura Física do Bairro do Cachimbo, fundada por iniciativa do médico. Os presentes tiveram a ocasião de ouvir vários números musicais e, ao final, foi-lhes oferecido um lanche”. “Juntamente com o médico José Ferreira, que frequentou Paris e chegou a criar aparelhos científicos para tratamento de doenças, João Teixeira Álvares estava na vanguarda da medicina, utilizando a chácara no Alto do Ca104

UM ESPANHOL ARMADO

O rego d’água corria entre as

terras de um espanhol, da parte de cima, e de meu primo Domingo Licursi, do lado de baixo. Os dois trabalhavam com hortaliça. Certa vez o espanhol “cortou” a água, deixando a plantação do primo à seca. Ele foi reclamar do vizinho e o espanhol, que sempre andava armado, baleou-o, matando-o, na hora. Ouvindo os tiros, uma irmã de Domingo foi socorrê-lo e ainda levou dois tiros na perna. O espanhol sumiu no mundo. - Depoimento de Pedro Argondizzi.

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Borboleta entre ramas floridas do flamboyant anão. Fotos - Jairo Chagas.

chimbo para oferecer aos clientes psicóticos os métodos mais avançados de tratamento”. A pista dada pelo entrevistado Edésio Cruvinel Borges é de que tal chácara se situava no Corredor Pedro Lucas. Advogado Pedro Santana revive, de memória, o perfil de Teixeira Álvares: “Conheci João Teixeira Álvares, um cidadão muito culto, branco, de estatura regular. Nasci na rua João Pinheiro, do lado direito de quem desce, onde construíram o posto de gasolina da família Magnabosco. Em frente à nossa casa ficava a Casa de Saúde Nossa Senhora de Lurdes, propriedade dele. Um irmão, Jeferson Teixeira Álvares, tinha uma farmácia na praça do SENAI (Frei Eugênio), esquina com rua Olegário Maciel. Certa vez, dr. João Teixeira foi à Europa e, na França, teve contato com uma família muito importante e da qual um de seus membros veio a falecer. Examinando o sujeito, dr. João Teixeira chegou à conclusão de que ele não estava morto, o que se comprovou mais tarde”, informa o nonagenário advogado Pedro Santana. Ágil, magro, sempre vestido de terno, do alto de seus 90 anos de idade, o advogado negro Pedro Santana é a memória viva do centro da cidade, recordando-se dos personagens hoje integrados à história oficial da cidade. É mister que se colha seu depoimento para enriquecer o Arquivo da cidade. Entre fatos interessantes da inteligência deste homem é ele ter aprendido um pouco de árabe, que faz questão de utilizar quando da presença deste autor, quando trabalhava nos Correios. Durante sua juventude, fazendo entrega de correspondência na rua Tristão de Castro, tradicional reduto dos libaneses, com eles aprendeu uma série de expressões árabes, bem pronunciadas. Um homem notável. CHÁCARA DE MARIANA ARGONDIZZI (Rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha) Com sete filhos homens e seis mulheres para acabar de criar, Mariana Felice Argondizzi ia se acabando com os excessos de afazeres com a chácara, o lar e os 13 filhos. O marido, Vicente Argondizzi, falecido em 1936, teve a primeira chácara próxima ao estádio de Boulanger Pucci. Fora sapateiro na Itália,

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mantendo uma longa tradição de família, mas, no Brasil, tentando lucro imediato, dedicou-se à agricultura. Homem ensimesmado, por ver seminaristas do Juvenato Champagnat e jogadores de futebol do Uberaba Sport flertando com as filhas ao passarem perto de sua casa, vendeu a propriedade e comprou área no Cachimbo, na rua Panamá (Carlos Tasso Rodrigues da Cunha), para onde se mudou com a mulher e 12 filhos. A caçula Tereza, que assinaria Lombardi, quando de seu casamento, nasceu no novo endereço. Filha dos imigrantes Luís Felice, um calabrês que tinha banca no Mercado Municipal, e de Veneranda Damas, também calabresa, Mariana se recordava da luta do marido, Vicente Argondizzi, também natural de Monssagrano, da longa viagem da Itália até o Brasil, do porto de Santos, da estação da Luz, em São Paulo, de Ribeirão Preto, a chegada a Uberaba à procura dos parentes que lhe dessem destino e afazeres. Aqui, se conheceram e se casaram. O marido madrugava, pegava a carroça de roda de madeira, com aros de ferro e ia trabalhar nas lavouras de arroz, feijão, milho e mandioca e nas hortaliças da pequena propriedade do filho Ângelo, quase do outro lado da cidade (hoje, conjunto Água Santa). Ela ficava em casa, cuidando dos filhos, da criação de porcos e de galinhas. Com a morte do marido, pôs e nunca mais tirou o luto fechado, dos pés à cabeça, como faziam as mulheres da sua distante Calábria. Passou a ser dona Mariana Argondizzi, senhora respeitada e estimada em todo o Cachimbo. Só se divertia, se isto era diversão, vendo as constantes boiadas passarem na porta de sua casa, enquanto também passavam as feições de beleza do rosto, de maçãs proeminentes, olhos “rasgados” e nariz adunco e fino. Cada um dos filhos tomou um rumo na vida e, com a morte de Mariana, a venda da chácara e a repartição da herança tornaram-se inevitáveis. Quem se recorda destes fatos é seu filho Pedro Argondizi em depoimento de 2012:

Nos resíduos territoriais das antigas chácaras, palmeiras e mangueiras centenárias tornam-se monumentos verdes, erguidos em nome de um passado que vai além das sombras e dos frutos generosos. Foto - Ramon Magela.

“Minha mãe era prima primeira de Clara Felice, mãe do médico Hélio Angotti (que dá nome ao antigo Hospital do Câncer, em Uberaba). Meu irmão Ângelo era casado com Maria Helena Lemes da Silva, conhecida como Santa, irmã do Inhozinho Lemes, filha de João Lemes, lá do Capão Alto, um homem muito violento, que tinha enormes bigodes e barba até no umbigo. Mas ele tinha dois genros, Zarico e Astolfo Pelet, que também eram homens corajosos. Eles moravam numa chácara, 106

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numa descida, onde é hoje a rua Luxemburgo. Eu tinha cinco, seis anos, e já ia de carroça com meu pai ajudar nas plantações da fazenda do Ângelo. Quando atingi a idade de sete anos, eu passei a trabalhar durante o dia e estudava à noite na escola Alceu Novais (meu diploma de quinto ano é assinado por ele), lá no centro da cidade (rua João Pinheiro, esquina com rua João Caetano), longe pra burro, e fazia todo esse trajeto a pé, no meio da maior escuridão, sozinho e Deus. Quando fazia Lua cheia era uma beleza, clareava tudo.” Ajudante de ajustador e foguista, Pedro Argondizzi deixou a Mojiana em 1951, depois de cinco anos de trabalho como ferroviário, para ingressar na carreira militar. Já era sargento quando participou do movimento militar de 64. Aposentou-se como Segundo Sargento. Hoje, “leva a vida” de aposentado, com mulher e filhos. Acolhedor, recebe este autor em sua casa, na rua Peru, no Alto do Cachimbo. Aos 83 anos, completos em dezembro de 2012, Pedro Argondizzi está pronto para a festa de comemoração dos cem anos da irmã Tereza Argondizzi Lombardi, em 2013. CHÁCARA DE MISAEL CRUVINEL BORGES (Rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha)

As ramas de gabirobas e de mamacadelas floridas, frutificadas, verdes e amadurecidas. Fotos - Renato Peixoto.

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Pertencente a uma das tradicionais famílias uberabenses ligadas à criação e comercialização do gado, Edésio Cruvinel Borges conta sobre sua permanência na região do Cachimbo: – “Comprei a chácara que pertencera a meu parente Misael Cruvinel Borges (prefeito interino por alguns meses, no período Getúlio Vargas, ocupou a Prefeitura de Uberaba, de primeiro de janeiro a primeiro de maio de 1947), que a comprara, em 1938, de Cândida Maria de Jesus, pelo montante de dois contos de réis. No tempo de meu pai, Joaquim Borges, eles buscavam, a pé, gado em Maracaju e em Campo Grande, em Mato Grosso, e levavam para Santa Rita de Cássia e Passos, no Sul de Minas, por causa da qualidade das pastagens”. “Mas havia outro corredor de boiadeiros em Uberaba, que saía do Frigorífico, entrava na passagem onde é a rua Carangola (Orlando Rodrigues da Cunha), passava pelo parque Fernando Costa em direção ao campo de aviação (aeroporto), quebrava à esquerda, pegava a direção da cidade de Água 107


Comprida para ir a Barretos, só alcançada por terra. De distância em distância, os rancheiros davam pasto e pouso às boiadas e aos boiadeiros. O pouso era formado por quatro esteios de madeira com cobertura de palha. Os próprios fazendeiros financiavam a construção do corredor, certamente para valorizar suas terras e facilitar o acesso de seu gado ao caminho da exportação. Havia viagens de 42 marchas, ou seja, 42 paradas. Havia corredor de gado de Goiás até Barretos, perfazendo 250, 300 quilômetros, dependendo do ponto de partida. Barretos era o mercado de boi magro, onde a Anglo montou frigorífico”. A propriedade de Edésio Cruvinel Borges era valorizada por um renque de casuarinas, árvores de tonalidade verde-escuro, e cujas folhas finas lembram as penas do casuar, grande ave pernalta, semelhante ao avestruz, que imitam o assobio do vento enraivecido quando fustigadas por ele. Estas casuarinas resistiram ao tempo o quanto puderam, até deixar cair seus galhos e apodrecerem os troncos. Ainda por volta de 1990/2000, já velhas, do alto de seus 25, 30 metros de altura, elas podiam ser notadas pelos transeuntes mais atentos. Nos últimos anos de sua vida, Edésio vendeu sua chácara para investidores da construção civil. A passagem dos bois defronte à sua propriedade era imagem que ele guardava como recordação de um tempo que exigia homens resistentes para uma espantosa e extinta dinâmica de trabalho.

Árvore gigantesca acolhia visitantes que chegavam às chácaras que perfilavam o Corredor dos Boiadeiros, onde é hoje condomínio imobiliário da MRV. Foto - Jorge Alberto Nabut.

CHÁCARA DE HUGO ARANTES (Rua Otto Dornfeld esquina com Rua Carlos Tasso) “Vivi com meu pai, José Carvalho (Zé Baiano), nesta chácara, durante longo período. Ele ordenhava as vacas, enchia os galões de leite, atava no cavalo e me mandava à cidade, levar na casa do seu Hugo, que morava num sobrado até hoje existente na rua Irmão Afonso, esquina com rua Antônio Carlos. Eu tinha somente sete anos de idade e não sei como não me perdia num trajeto tão longo. Meu pai tinha sido boiadeiro, trazia gado de Planaltina e levava, pela Oeste de Minas, até Teófilo Otoni, Belo Horizonte. Mudou de profissão e foi ser chacareiro e charreteiro – tinha até rádio na charrete dele –, conduzindo passageiros que chegavam à rodoviária. Era um homem muito rígido e, assim que fiz sete anos, ele me colocou na escola. Estudei no gru108

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po escolar Juscelino Kubitschek (hoje, Fidélis Reis), na rua João Pinheiro, para onde eu ia com colegas de sala que moravam nas chácaras vizinhas. Atalhávamos o caminho, passando pelos pastos da chácara de Nader Maluf. No bolso, as castanhas-do-pará, colhidas no chão da robusta árvore, ainda existente na área abandonada”, rememora com nostalgia o profissional da marcenaria, José Lázaro Carvalho. Embora o pai fosse rigoroso, José Lázaro (Juca Marceneiro), como todo moleque, tinha tempo livre para acompanhar as boiadas que passavam pela lateral da chácara onde morava e é ele quem refez a rota dos animais pelo Corredor até a estação ferroviária, complementando ainda informações sobre casas residenciais e comerciais do trajeto.” Lembrava Edésio Cruvinel Borges que o primeiro proprietário desta chácara foi o comerciante Romeu Válio e o último, antes de ser vendida para uma construtora, foi o médico Odo Tormin. CHÁCARA DE ANTENOR ALVES GOMES (Rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha) Habituada à tarefa de contar histórias de educadoras (dominicanas), fazendas e zebuzeiros, a historiadora Maria Antonieta Borges Lopes teve várias passagens pelo Cachimbo, das quais extraí significativas memórias: “Eu era menina e passava os fins de semana na chácara de minha tia Hercília Gomes, casada com Antenor Alves Gomes (1901 – 1970), situada na rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha. A sede da chácara era uma casa antiga, com alpendres em formato de “L”. Havia à frente pequeno jardim. Ao fundo da casa, uma grande horta, criação de vários tipos de aves e de animais, a pocilga e, mais abaixo, o pasto que ia até o riacho (Córrego do Cachimbo). Minha tia era uma mulher devotada às atividades do jardim e do imenso quintal, que eram praticamente administrados por ela. Dali saíam verduras levadas ao mercado para a venda. Era tão tímida e de hábitos tão simples que, na ocasião em que Juscelino Kubitscheck foi almoçar lá na chácara, ela cuidou dos serviços da cozinha e não apareceu na sala”. “O marido, Antenor, era o oposto dela. Um homem elegante, bem vestido, sempre de terno de linho 120, branco, que flanava pela cidade dirigindo os Corredor dos Boiadeiros

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últimos modelos de carros importados. Seus filhos Djalma, Gilberto, Wilson e Wilton também usavam ternos e a filha mais nova, Nivalda, usava grossas tranças, à moda da época”. “Para o casamento de Djalma com Adriana Gomes, a casa foi bastante reformada, em 1954, ganhando traços modernistas, como se imitasse a residência que dr. Edgard Rodrigues da Cunha construíra na avenida Leopoldino de Oliveira. Houve uma festa maravilhosa, lá, os noivos dançaram tango, juntamente com o casal Natália e Sultan Mattar”, encerra a dinâmica historiadora. A busca pela memória do bairro leva-nos à casa do casal Newton Lázaro Siqueira e Nivalda Gomes Siqueira, uma construção dos anos 50, no epicentro do bairro do Cachimbo. Nivalda: “Naquele tempo, as boiadas passavam a pé por lá e as pessoas saíam de casa para ver aquele movimento todo! Morava com meus tios, o irmão dele, Nenê Gomes, que se casou mais tarde com Bernadete de Freitas Gomes. Eles foram sócios por algum tempo nos negócios da pedreira que exploravam nas proximidades do rio Uberaba e da chácara com o plantel de gado zebu”.

“A boiada vinha da avenida Elias Cruvinel, entrava na rua Delfim Moreira, passava pelo Quartel e descia em direção ao Matadouro Municipal, do Felício Frange, que era um homem muito bom, ajudava a pobreza, dando carne a quem não podia comprar”. – Antônio Amaral.

CHÁCARA DE JORGE FIDALGO (Rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha) No quadrilátero formado pelas ruas Carlos Tasso, Otto Dornfeld, Antenor Alves Gomes e avenida América, um conglomerado de pequenos prédios, murado nas quatro direções, com altitude que tenta deixá-lo intransponível, não permite imaginar que havia ali, até há cinco anos, uma chácara, cuja sede, de estilo colonial com vasta área ao fundo, tinha de relevo grandes mangueiras e paineiras, plantações, curral... tudo que identificava uma propriedade rural antiga. Ali ficava a chácara do português Jorge Fidalgo, casado com Carmélia Scagliarini, que, quando viúva, se casou em segundas núpcias com o espanhol Domingos Pousa. A propriedade foi herdada por Elza Fidalgo Dib, viúva do filho de imigrantes libaneses Jamil Jorge Dib. Enquanto foi propriedade deles, a chácara sempre fora alugada para terceiros e, por longo tempo, um oásis em meio às quadras que iam sendo retalhadas no loteamento São José. Indiferentes ao movimento das construções que iam se fazendo em torno dela, os cavalos pastavam, as 110

Conjunto de mangueiras que praticamente escondiam a pequena sede da chácara de Jorge Fidalgo, onde é hoje outro condomínio da MRV. Foto - Jorge Alberto Nabut.

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aves voavam em busca de pouso, os frutos despencavam das alturas, acertando o terreno fértil para perpetuar a espécie. A decadência era visível e contornando a herdade, de bicicleta, tentava adivinhar a história do lugar. Pressentindo o fim, as paineiras floriram o quanto puderam no seu derradeiro abril. Fotógrafo Renato Peixoto registrava o ambiente decadente, a chácara “em vias de extinção”. Não sobrou espaço para uma árvore remanescente dos tempos em que ali se produziam leite e produtos hortigranjeiros. Da noite para o dia os prédios surgiram como num desenho animado. CHÁCARA DE ZECA PINTO (Rua Otto Dornfeld)

Onipresentes, as mangueiras compunham o ambiente acolhedor das vivendas, que mais tarde foram, muitas vezes, abandonadas, vendidas, demolidas, deixando as árvores, embora poderosas, à deriva, em terrenos baldios, presas fáceis da especulação imobiliária. Foto - Jorge Alberto Nabut.

Descendente de uma das famílias austríacas vindas para o Brasil durante o reinado de d. Pedro I, que depois de instaladas em Petrópolis se retiraram para diversas regiões do País, neste caso, para Goiás, Emiliano Sinsersink Vieira, seu Nêgo, trabalhou com Zeca Pinto, para quem viajava, trazendo gado, a pé, de localidades goianas distantes, como Uruaçu (hoje, no estado de Tocantins), Luziânia e Planaltina, passando por Unaí, ou Monte Carmelo, Iraí de Minas, Nova Ponte, a localidade de Fanecos, Uberaba, Água Comprida, cruzava o rio Grande, chegando a Barretos e a Araçatuba. Muitas boiadas vinham de Patrocínio, Pedrinópolis, Santa Juliana e Cascalho Rico, até chegarem a Uberaba. – Informações do economista Miguel Árabe Neto. CHÁCARA DE JOSÉ BORGES DE MORAIS (Rua Sepetiba) Saindo das águas barrentas e subindo a encosta do rio Uberaba, a boiada entrava na rua Sepetiba, passando defronte à porta da chácara de José Borges de Morais, ainda hoje conservada com toda sua flora exuberante, mesclando árvores frutíferas com ornamentais e plantas nativas do cerrado, ali crescidas por conta do abandono. Havia, ali, uma casa antiga, que o proprietário demoliu e construiu outra, em 1967.

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“Nasci em 1960 e até quando eu tinha 15 anos (1975) passava muita boiada defronte à chácara do meu tio José Borges de Morais”, diz Maria Lúcia Gonçalves Santos, que se lembra das boiadas também saindo de Uberaba e tomando caminho em direção a Uberlândia e Goiás. CHÁCARA DE NENÊ GOMES E O CURRAL DE NELORES Tema perfeito para um filme ou um livro de aventuras, com animadas cenas de travessia marítima para as Índias, transformação do gado sagrado em produto profano, boiada estourando pelas ruas de Marselha em plena belle époque francesa, frágeis embarcações naufragando ou sobrevivendo às tempestades ao alto mar, enfrentamento das distâncias continentais do Brasil, levando gado para o extremo Sul e o extremo Norte do País, a vida dos mascates de zebu está a merecer obra digna de suas dimensões. No Corredor dos Boiadeiros, a chácara Triângulo teve em seus currais o que melhor havia em gado gir e nelore, pronto para ser deslocado a qualquer mês do ano, a qualquer dia do mês, a qualquer hora do dia para qualquer lugar do País, da Venezuela, ou onde quer que fosse. Tudo dependia do comprador – quanto mais exigente, melhor – interessado em melhorar o plantel ou ganhar algum prêmio, seja em Salvador, seja em Recife... À disposição deles estava o mascate que sobreviveu a todas as intempéries da vida, deixou as estradas de terra para se adaptar ao caminhão, mais tarde trocado pelo avião, revelando destreza ao se adaptar aos novos meios de locomoção e de comunicação.

Criança pedalando, livre, pelo longo corredor de entrada da chácara de Nenê Gomes. Foto - Jorge Alberto Nabut.

Tomando a direitura da trilha da boiada, quando se vem para a cidade, depois da antiga ponte Pedro Lucas, quase que tomando o caminho de volta, fica a chácara Triângulo, propriedade de Domingos Alves Gomes (Uberaba 27/08/1903 – idem 12/07/2002). Por volta de 1936, foi desfeita a sociedade dele com seu irmão Antenor Gomes. Este ficou com a pedreira, aquele com a chácara. Nascido “na roça” e com experiência na lida com o gado, Nenê Gomes se tornou conhecido em vários Estados onde o zebu tinha peso de ouro. Foi ele um dos mais hábeis mascates de gado do País. A famosa regra dos bons negociantes – “Não se ganha na venda, mas 112

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Onde quer que se situassem, as chácaras evocavam fartos espacejamentos, nos quais a liberdade corria solta, dando carretéis de linha à poetizada infância. Foto - Jorge Alberto Nabut.

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na compra” – era o lema do marchante, que chegava a comprar produção inteira de criadores uberabenses e a vendê-la imediatamente para fazendeiros das mais diversas regiões do País. “Às vezes, o gado nem chegava à sua chácara”, lembra o filho Antônio Henrique Gomes. “Certas vezes, ele comprava produção inteira dos criadores e a vendia imediatamente. Ligavam pedindo um reprodutor para ganhar exposição; ele comprava esse boi de alguém e o despachava”. Quem conta sobre a vasta trajetória de Nenê Gomes é o filho Eduardo, em depoimento em 23/10/12: “Meu pai trabalhou muito nesta vida. Plantava e vendia verdura no Mercado Municipal de Uberaba, foi pedreiro, entre outras atividades. No início da carreira de comprador e vendedor, ele embarcava o gado no trem de ferro e saía de Uberaba com os animais, tratando deles até Belo Horizonte, onde se realizava importante feira bovina. Participou do primeiro leilão aqui realizado, nos anos 70, promovido pela União dos Criadores, juntando 13 deles no Parque Fernando Costa. Até então, o gado era comprado nas feiras ou direto nas fazendas. Não havia leilões na época. Eram os mascates que davam ritmo aos negócios. Ele comprava boi aqui e levava para outros Estados, principalmente do Nordeste, como Pernambuco, o que mais comprava dele. Durante 25 anos consecutivos, expôs e vendeu na Exposição Nordestina, realizada em Recife, a principal da região. E durante 50 anos mostrou seu gado na ExpoZebu, em Uberaba, a maior feira de gado indubrasil do mundo. Nos primeiros anos da ExpoZebu, ele trazia o gado a pé da chácara Triângulo até o Parque Fernando Costa. Normalmente, o gado ia para sua fazenda, onde era preparado. Naquela década (anos 70), ele começou a exportar reprodutores das raças gir e nelore para a Venezuela, abrindo mercado grande para lá. O gado saía de Uberaba, passava por uma bateria de exames em Cananeia (porto no extremo sul do Estado de São Paulo) e, depois de aprovado por veterinários do Brasil e da Venezuela, embarcava de avião, com 30 a 80 cabeças, num só voo. Em várias vezes ele estava acompanhado pelo sócio Heli Caetano Ribeiro. Ainda segundo Eduardo, “Nenê Gomes comercializou grandes nomes do gado zebu brasileiro. Todos os filhos do famoso Campeão Chave de Ouro, da raça gir; o reprodutor nelore Grado da Santa Cecília, marca VR (para Randolfo Borges), Campeão de 1974, e Gentil da Santa Cecília (Virgílio Pinto Cruz, outro Campeão, foram vendidos por ele. Comprou o Chakkar, de posse de um pecuarista baiano, e o revendeu para Pirajibe Lopes Cançado, que fez o paga113


mento com matrizes nelore. Estas, ao serem vendidas, geraram lucro suficiente para meu pai adquirir uma fazenda, a Grão de Ouro, no município de Araputanga, em Mato Grosso.” Nos anos 70, o nelore começou a crescer, por conta da expansão da fronteira da pecuária brasileira, e Nenê Gomes soube tirar proveito desse momento”. Nem tudo foi ‘ouro sobre azul’ na trajetória de Nenê Gomes. Ainda segundo o filho Eduardo, ”ele perdeu tudo na moratória do zebu, de 1945, quando o presidente Getúlio Vargas declarou que o gado ‘vale quanto pesa’. Recomeçou o trabalho do zero, voltou a andar a pé, recuperou tudo, chegando às atividades intensas na década de 70, com recursos para comprar um avião e atender à grande demanda de animais em Estados distantes ou fora do País”. Em 1947, Nenê Gomes casou-se com Maria Bernadete de Freitas, com quem teve oito filhos, dois deles envolvidos com os negócios do gado: Eduardo, leiloeiro, e Domingos Filho, criador. A família loteou a chácara Triângulo, conservando, no entanto, área com a casa-sede, onde reside a filha Maria Teresa, casada com Márcio Fúlvio Fontoura. Como lembra o filho Antônio Henrique, seu pai dizia: “Não vou deixar fortuna, mas nome”. E deixou. CHÁCARA DE JOSA BERNARDINO (Avenida Djalma Castro Alves)

Ao longo do Corredor dos Boiadeiros, as chácaras eram procuradas por imigrantes italianos, espanhóis e portugueses para ali desenvolverem atividades tradicionais em suas terras de origem. Foto - Jorge Alberto Nabut.

Sobre a elevação do terreno, a casa colonial de Josa Bernardino, caiada de branco, avivada por portas e janelas pintadas de azul, é sombreada pela gigantesca gameleira que também estendia seus fortes ramos sobre a curralama construída defronte a ela e barrando, em parte, o intenso sol que deixava o gado amontoado, evitando a área descoberta. Ali pernoitava grande parte do gado a ser embarcado nos trens estacionados na estação de Amoroso Costa, que ficava logo em frente. CHÁCARA DOS FACHINELLI (Avenida São Paulo) Na época do Corredor, a avenida São Paulo era uma rua disforme, torta e descalça, com mato dos dois lados. Foi quando Américo Fachinelli veio de 114

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No dizer de José Lázaro Carvalho, quatro postos fiscais controlavam o trânsito do gado em Uberaba: na atual avenida São Paulo (Corredor do Cachimbo, próximo ao Tiro de Guerra); no cruzamento das atuais ruas Orlando Rodrigues da Cunha e Abílio Borges, no bairro Abadia; no cruzamento da atual rua Varginha com avenida Edilson Lamartine Mendes, no bairro São Benedito; e na avenida da Saudade, ao lado do cemitério São João Batista, no bairro

Peirópolis. Ele tinha sítio no Lajeado do Teles e veio de mudança, aqui construindo sua casa em 1959. A construção lembra um bangalô, com alpendre do lado e vegetação farta circundante, cuidada hoje pela viúva Hilda Maria Fachinelli e pela filha Adorvina, que se lembram do poeirão danado que fazia, principalmente nos meses da seca, a chegada das boiadas, às vezes duas, três, ao mesmo tempo. “Durante muitos anos, a boiada passava na porta da nossa casa, rumando para a estação de Amoroso Costa, que ficava na parte de trás do nosso terreno”, lembra a proprietária do imóvel, dona Hilda Maria Facchinelli e sua filha Adorvina. “Por muitos anos foi assim, até que o gado passou a ser trazido nas gaiolas”, que são os caminhões com carrocerias engradadas para a condução de animais.

Mercês.

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Capítulo

07

A INDÚSTRIA NA ROTA DO CORREDOR DOS BOIADEIROS “O principal negócio desta gente consiste em gado, capados e plantar legumes, milho e algodão”. – Luís D’Alincourt

Uma série de pequenas e grandes indústrias se instalou no Corredor dos Boiadeiros, que também se confundia com as rotas de saída e de acesso à cidade de Uberaba. Na foto, a famosa fábrica Produtos Ceres. Foto - Reprodução Corredor dos Boiadeiros

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FUBAÍNA E PRODUTOS CERES CURTUME IRMÃOS DORNFELD FÁBRICA DE PAPEL A PEDREIRA DOS GOMES MÁQUINAS DE BENEFICIAR ARROZ OS FRIGORÍFICOS DESCAROÇADORA DE ALGODÃO

Lembra Joaquim Adolfo de Carvalho Borges que, “no final do século XIX, partiu para o Rio de Janeiro e de lá para o Espírito Santo, José Zacarias (Borges), com o objetivo de estudar, naquele estado, as fábricas de tecidos. Comprou na Inglaterra teares que vieram por estrada de ferro até o final da via férrea, em Casa Branca, e daí por carro de boi até o Caçu, onde

INDÚSTRIAS NO CORREDOR A FUMAÇA NO CHAMINÉ DE BARRO

hoje se veem vestígios da primeira fábrica

Ao longo do Corredor dos Boiadeiros pontilharam também empresas de médio porte, como serrarias, máquinas de beneficiar arroz e outros grãos, e uma indústria relevante, como a Produtos Ceres de abrangência regional, colocando seus produtos em todo o Triângulo Mineiro e nos estados de São Paulo e Goiás. A inauguração da Usina de Força e Luz Pai Joaquim, com a presença do então presidente da República, Getúlio Vargas,e do então governador de Minas Gerais, Benedito Valadares, no governo do prefeito Waddy Nassif, gerou a energia necessária para fazer nascer novas e “modernas” indústrias em Uberaba, a partir dos anos 40, muitas delas alinhadas ao longo da rota das boiadas, no pesquisado perímetro urbano.

nas, Goiás, Mato Grosso e o norte de São

de tecidos de Uberaba. Os produtos dessa indústria eram levados para o norte de MiPaulo. Transportados em cangalhas, daqui saíam as mulas carregadas de tecidos para os confins daquelas regiões. Na volta, vinham trazendo novos pedidos. Eram os caixeiros-viajantes”.

DESCAROÇADOR DE ALGODÃO Sob o aspecto econômico, o propulsor bairro do Cachimbo apresentava respeitável quadro industrial, dos mais diversos setores de produção. Nascido em 1937, e morador do bairro, desde criança, o empresário Eurípedes de Almeida reconstitui a época em que havia ali uma pesada máquina de descaroçar algodão: “A casa de meus pais , aqui na rua Paraguai, foi uma das primeiras a ser construídas na vila São José e em frente a ela, justamente aqui onde eu moro, tinha uma indústria especializada em descaroçar algodão. O produto 118

Fábrica de tecidos, construída no bairro São Benedito, provavelmente nos anos 30. Arquivo do autor

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“Sereno, Serenado - Olha Boiadeiro Zebu Aparelhado” A secular tradição dos tecidos feitos em tear manual tem produção relevante no Triângulo Mineiro, principalmente no município de Douradoquara, onde tem sido fartamente pesquisada. Foto - Sandra Satiko, 1986.

Santos Guido (Itália 01/11/1889 - Uberaba 21/maio/1982) Corredor dos Boiadeiros

provinha de várias cidades da região e chegava em vários carros de bois, lotados. Depois de beneficiada a matéria-prima, os fios de algodão eram enviados para o Estado de São Paulo, através dos trens de ferro da Mojiana, certamente para alguma fábrica de tecidos. As máquinas descaroçadoras eram tão grandes e pesadas que, quando foram vendidas, houve necessidade de se fazer um desvio dos trilhos para que os carros chegassem até aqui e neles fossem embarcadas”. As dimensões e o peso das máquinas, conhecidas por Eurípedes de Almeida na sua infância, permitem observações interessantes. Por serem tão pesadas, a ponto de exigirem um desvio dos trilhos para a aproximação do trem, é que a produção deveria ser quantitativamente alta e desde tempos bem anteriores, pois no período de sua infância já encerrava a produção. Lembra Eurípedes de Almeida que “havia também uma movimentação de carroças defronte à máquina de arroz de Jamil Fiod e da serraria de João Laterza, onde chegavam caminhões com grandes e pesadas toras de madeira, tiradas das matas que haviam aqui na região e na localidade do Rio do Peixe. Outra serraria importante era a de Santos Guido, localizada perto da Gameleira (praça Afonso Pena); ele tinha outra serraria, lá no Rio do Peixe. O trânsito das boiadas era contínuo e grande quantidade delas ia para o matadouro municipal, que ficava no final da rua do Boi (Afonso Rato). Havia muitos carros de bois que chegavam da roça abarrotados de arroz, milho, abóbora e feijão. No retorno, levavam produtos que a fazenda não produzia, como sal, arame e outros”. 119


“Naquela idade eu já era caminhoneiro. Comecei trabalhando no posto Bonati & Crema, posto Avenida, anexo à revendedora Chevrolet, na avenida Leopoldino de Oliveira, entre avenida Guilherme Ferreira e rua Segismundo Mendes. A Chevrolet funcionava com seis mecânicos e 12 meninos, que lá aprendiam a profissão. A gente ia trabalhando e aprendendo. Veja só que burrice é esta Lei, que proíbe o trabalho do menor. Por causa dela, muitas profissões vão desaparecer – sapateiro, carapina –, pois todos querem ser profissionais liberais e técnicos em computação”, analisa Eurípedes de Almeida. Assinala Hildebrando Pontes que: “Em 1864, reanimou-se o nosso comércio em virtude da criação de uma nova fonte de renda. Faltando à Europa o algodão para as fábricas, que haviam cessado de trabalhar por motivo da guerra aludida (Guerra de Secessão, ou Guerra Civil Americana, uma guerra civil ocorrida nos Estados Unidos entre 1861 e 1865), teve de importar não dos Estados Unidos, mas do Brasil, a matéria-prima, a bom preço. Uberaba, posto distante dos portos de Santos e Rio, produzindo e enviando-lhes o seu algodão, tirava margem a grandes lucros”. Não por acaso, em 1882, “João Borges de Araújo, Zacarias Borges de Araújo, Francisco Borges de Araújo, Antônio Fontoura Ribeiro e Pedro Floro fundaram na zona rural a Fábrica de Tecidos do Caçu. Suas máquinas foram adquiridas na Europa e transportadas em carros de bois, de Casa Branca (ponta dos trilhos da Mojiana) até esta cidade”, como diz o historiador José Mendonça. Décadas mais tarde, a fábrica foi transferida para o bairro São Benedito, com novos maquinários, novos proprietários, como Companhia Têxtil do Triângulo Mineiro. Tanto a produção de algodão quanto a de lã de carneiro acabaram por facilitar o surgimento de criativas tecedeiras de tear, com destaque para os municípios de Douradoquara e Monte Carmelo. A produção, também conhecida como ‘tecido cá’, para diferenciar dos tecidos importados de lá e quase sempre da Inglaterra, tornou-se tão representativa nas cidades de Uberaba, Araxá e Uberlândia, principalmente, onde o artista Edmar de Almeida, criando uma associação das tecedeiras, chegou a produzir tapeçaria que foi exposta no Museu de Arte Sacra de Uberaba e no MASP – Museu de Arte de São Paulo, o principal da América Latina. De qualquer forma, são produtos locais que se exportam (e, de certa forma, ainda para 120

Pássaro, fragmento de colcha de “tecido cá”, feita pelas artesãs de Douradoquara. Foto - Sandra Satiko, 1986.

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“Continuando nossa infindável viagem, nada vimos de interessante. Por toda a parte são as terras desertas. Assim, com surpresa, chegamos à fazenda de um tal João Crisóstomo, onde pousamos. Este fazendeiro é grande criador, vive independente do resto do mundo. Na sua fazenda há uma manufatura de tecidos bem interessante: o pano é forte e de bom gosto”. – Visconde de Taunay.

São Paulo) como se pode ver na grande produção destes tecidos feitos em Araxá. Em 1984, o MEC e o SPHAN – Fundação Nacional Pró-Memória publicam importante trabalho, denominado Tecelagem Manual no Triângulo Mineiro – Uma abordagem tecnológica, publicação do SPHAN, Brasília, 1984. Resultado de elaborada pesquisa, a obra documenta o processo artesanal de tecidos, levando em consideração as condições culturais e sociais do processo: “Ao se percorrerem, hoje em dia, as zonas de minifúndio do Triângulo Mineiro, é possível encontrar em inúmeras casas um tosco tear de madeira e, em quase todas, uma roda de fiar. O mesmo fenômeno, embora em menor escala, pode também ser observado nos diferentes lugarejos, bem como na periferia das principais cidades da região. A presença desses teares de rodas e de diversos outros apetrechos de fiação e tecelagem evidencia que, tanto no campo quanto nas cidades, mulheres do Triângulo Mineiro, criadas na roça, continuam fiando e tecendo à mão”.

Pavões e borboletas na trama preciosa da colcha executada por artesãs da cidade de Nova Ponte, no Triângulo Mineiro. Coleção Regina Coelho Nabut. Foto - Jorge Alberto Nabut. Corredor dos Boiadeiros

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PRODUTOS CERES (Rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha) Referência física do Corredor dos Boiadeiros, bem como da história da indústria em Uberaba, a fábrica dos Produtos Ceres, situada na rua Carlos Tasso Rodrigues da Cunha esquina com rua Luxemburgo, deixou como símbolo a grande chaminé de alvenaria, norte daqueles que transitavam pelo Cachimbo em direção norte e sul, o centro da cidade. A chaminé subsiste como símbolo dianteiro do processo de industrialização da cidade, embora de duração efêmera. O prédio da fábrica reforça o ambiente de decadência de todo o entorno. No início, a fábrica Fubaína, nome ainda lembrado por um sem número de moradoras da localidade, foi empresa fundada por Gustavo Rodrigues da Cunha. “Meu avô Gustavo Rodrigues da Cunha tinha uma chácara na rua Carlos Tasso, onde residia. Ali construiu a indústria Fubaína, que produzia ração para gado”, diz Maria Carmelita Rodrigues da Cunha. A fábrica foi logo ampliada pelo filho Edgard Rodrigues da Cunha (Uberaba, 28 de abril de 1911 – idem, 19 de maio de 2006), de capital aberto e que se denominou Produtos Ceres. “Meu pai montou uma pequena fábrica (Fubaína) de derivados de milho. Como tinha pouco dinheiro, eu o auxiliei com meus recursos, quando formamos a sociedade Produtos Ceres Ltda. Isso foi por volta de 1940”, diz Edgard Rodrigues da Cunha, em entrevista publicada no Jornal da Manhã, de 10 de dezembro de 2011, em publicação organizada por Guido Bilharinho, por ocasião do centenário de nascimento do empresário.

Juscelino Kubitschek entre as autoridades presentes à inauguração da fábrica dos produtos Ceres em 1952. Arquivo de Maria Carmelita Rodrigues da Cunha

A edição do Jornal da Manhã dedicou-se a traçar os perfis do homem, do desportista e do empresário Edgard Rodrigues da Cunha: “Partindo da Produtos Ceres Ltda. dos idos de 40, produtora de derivados de milho (farinha, ração balanceada e a renomada Fubaína), Edgard a converteu, em 1952, em sociedade anônima e inaugurou, em 1956, ‘no meio dos aplausos dos 122

Corredor dos Boiadeiros


crentes e das decepções dos pessimistas’, a grande fábrica destinada à produção de óleos vegetais, impressionando a cidade. Daí para a frente o crescimento foi contínuo e, se ‘já na montagem, em 1953, o patrimônio [de Cr$ 18 milhões] ultrapassava o valor do capital’ (de Cr$ 12 milhões), em 1956, aquele atingia Cr$ 95 milhões e este, 30 milhões, evoluindo ambos, respectivamente, para Cr$ 180 milhões e Cr$ 90 milhões em 1959, e para Cr$ 3 bilhões e Cr$ 630 milhões em 1962, até chegar aos formidáveis Cr$ 15 bilhões de patrimônio e Cr$ 1 bilhão e 45 milhões de capital, em 1965, conforme exposto em publicação atinente à indústria”. Foi, pois, o Edgard, uberabense, advogado, professor, o autor dessa façanha monumental, tornando-se um dos maiores e mais ousados industriais do País e que, se no discurso na ACIU de 1964 declarara que às crescentes demandas de óleo de caroço de algodão e de amendoim obrigaram-nos a cuidar somente desses dois produtos’, já no folheto de promoção da indústria, publicado em fins de 1966, alardeava sobre a divisa ‘Aqui se fabricam os produtos que nos engrandecem’ o processamento, além dos dois óleos citados (Bem-Bom e Banquete), mais o óleo de babaçu (para a fabricação de gordura de coco), linter do 1º Corte (para as indústrias de estofamentos) e do 2º Corte (para as fábricas de papel e produtos químicos), farelos, tortas, estearina, borras de algodão e de amendoim (destinadas à fabricação de sabão), torta de amendoim (própria para o preparo de rações de bovinos, suínos e aves) e, finalmente, o conhecido sabão Brilhante!”. “Nessa mesma publicação, divulgava-se a classificação de Produtos Ceres S.A., à época com trezentos empregados, no contexto das indústrias congêneres então existentes no País: 4º lugar, vindo após Anderson Clayton, Matarazzo e Sanbra, todas de São Paulo”. “A matéria-prima (caroço de amendoim) procedia principalmente da região do Triângulo, vindo também do estado de São Paulo. Já o milho, o sebo e o coco de babaçu originavam-se do Triângulo e de Goiás”. Além de notável desportista que esteve à frente da construção do estádio Uberabão, Edgard Rodrigues da Cunha investiu em loteamentos. Continua Guido Bilharinho: “No segmento imobiliário, Edgard instituiu dois grandes loteamentos, a Vila Olímpica e a Vila Ceres, alargando os contornos urbanos de Uberaba onde antes apenas existiam pastagens. O grande progresso material acima apontado Corredor dos Boiadeiros

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acarretará, fatalmente, do outro lado, o progresso social”. “Demonstrando espírito avançado, lúcido, de empresário moderno com centenas de empregados em sua fábrica de óleos comestíveis, a hoje legendária Produtos Ceres, numa época em que ainda a legislação social brasileira era incompreendida por grande parte dos empregadores, declarou: Graças a ele, os bairros Fabrício e Boa Vista cresceram de maneira impressionante’”. Lembra Maria Carmelita Rodrigues da Cunha que “a Produtos Ceres foi vendida para um grupo de empresários de Montes Claros (MG), em 1967, que, encabeçado pelo político Edgard Pereira da Silva, sucateou a fábrica, que havia recebido maquinário novo, importado para extração de soja, o grão que começava a dominar o cerrado brasileiro naquela época, transferindo o valioso equipamento para a cidade do norte de Minas. Este mesmo grupo repassou a fábrica para empresários indianos, que criaram a Primlaks e não deram à empresa o destino previsto. Meu pai tinha a intenção de criar a Vila Operária para os funcionários, mas o curto período de funcionamento da empresa – 16 anos – não permitiu que esse projeto se desenvolvesse”. FÁBRICA DE PAPEL SÃO GERALDO A Fábrica de Papel, construída às margens do rio Uberaba, diante da qual a boiada passava, foi construída por Leônidas Rosa, casado com Diva Silva Rosa, tia da presidente Dilma Rousseff. Ele era proprietário do curtume Santa Genoveva, em Aguaí (SP). Mais ou menos em 1958/1960. Foi vendida e entrou em falência, diz o engenheiro Onírio Barbosa. A PEDREIRA DOS GOMES SUOR ESCORRIDO DA PEDRA Alto do Cachimbo. Rua Antenor Alves Gomes. Aqui reside a filha do homem que dá nome à rua: Nivalda Gomes Siqueira, a caçula de cinco irmãos, que tiveram, como o pai, a vida marcada 124

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por incansável trabalho na Pedreira dos Gomes. Antenor Alves Gomes (Uberaba, 06/01/1901 – idem, 08/11/1970) entregou-se de corpo e alma à exploração da imensa pedreira de basalto vitrificado, situada do lado de baixo do Cachimbo, numa chácara de 26 alqueires, adquirida por volta de 1926, em sociedade com o irmão Domingos Alves Gomes (Nenê Gomes). Eles eram recém-chegados “da roça” e pretendiam “vida nova”. Nivalda é casada com Newton Lázaro Siqueira (Araguari, 09/11/1935 -), homem com vasto currículo profissional. E é ele quem faz o depoimento sobre a trajetória empresarial da família: “Na época, meu sogro e o irmão dele foram chamados de loucos por ter adquirido aquela área, numa região onde não se podia plantar nada, pois tinha somente pedra. Eles foram os pioneiros na exploração da pedreira, já funcionando em 1930. Todo o trabalho era feito manualmente, desde a perfuração de minas com brocas de aço de várias dimensões até a britagem, ato de fragmentar as pedras com marretas, trabalho de perfurar a pedreira com martelete, conseguindo profundidade de até 3 metros. Mais tarde, passaram a utilizar perfuradora a ar comprimido, conseguindo resultados melhores. Naquela perfuração, fina e profunda, socava-se a pólvora e o estopim, que, quando aceso, explodia, provocando, lá do alto, uma chuva de grandes pedras, que caíam no pátio central da pedreira. Após a britagem, as pedras eram colocadas no giratório e classificadas em diversas dimensões: pedriscos, britas número zero, número um, número dois, número três. As pedras que não passavam pelas peneiras classificatórias, chamadas de ‘boca de peneira’, eram usadas em ciclope e muros de arrimo. Muitas delas também tinham como destino as obras da Prefeitura, que as utilizava no calçamento chamado de pé de moleque, tão comum em várias ruas da cidade. Mas era a construção civil a grande consumidora da brita lá produzida. Um caminhão carregava cerca de 3m³ de pedra e eles não paravam de ir e vir de lá”, recorda com precisão Newton Siqueira. No início da década de 40, no governo de Wadhy Nassif, Uberaba vivia o boom econômico do segundo ciclo do zebu e se modernizava. Grandes e marcantes construções, como o Palace Hotel, o Regina Hotel, a sede da Sociedade Rural do Triângulo Mineiro, o Jockey Club, que se reformava radicalmente; o Cine Metrópole e o Grande Hotel (tão alto que era capaz Corredor dos Boiadeiros

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de fazer sombra em Uberlândia, como se costuma brincar), consumiam considerável quantidade de brita produzida pelos Gomes. Diante de tal consumo, havia necessidade de recomeçar, sempre, a perfuração de nova área da montanha de pedra. Newton Siqueira relembra-se bem destas ocasiões: “Tínhamos de fazer o desmonte da pedreira, tirando toda a camada de terra da superfície, até achar o ‘banco’ da pedreira, a pedra virgem. Novos tempos trouxeram modernidade na exploração da pedreira, com a chegada da furadeira elétrica, da dinamite, que já existia, mas não era comum seu uso lá, e a vinda do blaster ou cabo de fogo, o especialista em explosivos. Com os novos recursos, tivemos condições de fazer o espetáculo das grandes pedras desabando pelo precipício de 30 metros de altura. Daí a pouco é que se ouvia o tiro da explosão. As perfurações passaram de três a cinco metros de profundidade, permitindo o desmoronamento de pedras muito maiores. Carregávamos mais de cem minas, que explodiam todas ao mesmo tempo. Cerca de quinze funcionários trabalharam lá”. No dizer de Newton Siqueira, “Enquanto uns lidavam com a exploração da pedreira, outros se entregavam ao trabalho de represar o rio Uberaba, que passa perto, e, utilizando a draga, sugar a areia que ali se juntava e que era depositada sobre o barranco. Vinham os caminhões basculantes, que levavam a areia molhada para a cidade. Mais tarde, um condutor, montado sobre flutuantes dispostos sobre o rio, transportava a areia direto do rio para a carroceria do caminhão”. A prefeitura continuava a ser uma grande cliente dos Gomes, principalmente no período da construção do Estádio Municipal Engenheiro João Guido (Uberabão), que consumia imensos volumes de areia e brita.

Juscelino Kubitscheck integra comitiva que almoçava na residência do empresário Antenor Alves Gomes, morador do Corredor dos Boiadeiros. Foto - João Schroden Jr.

PIONEIROS DO ASFALTO Os irmãos Gomes também foram pioneiros no asfaltamento das vias públicas em Uberaba. No início dos anos 60, quando asfaltaram a avenida Santos Dumont, a empresa responsável pela obra foi a Gomes & Irmãos, de Antenor e Nenê. 126

Corredor dos Boiadeiros


LARANJA-BAIANA

“Preferidas

pelas

pessoas

de

bom fígado, porque azedas, mas de sabor acentuado e bom, as belas, grandes e raras laranjas-baianas eram cobiçadas, com parcimônia; as populares, mesmo, eram as laranjas-jonunes, adocicadas e um pouco aguadas, fartamente vendidas em carroças e tendo latas de 18 litros como medidas”. – Antônio Francisco de Faria.

Antenor Alves Gomes, colecionador de carros de luxo, nos anos 50/60; reflexo da riqueza proporcionada por empresas instaladas ao longo do Corredor. Foto - Arquivo familiar.

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Com a saída de Nenê Gomes da sociedade, por volta de 1958, veio a empresa Gomes & Filhos, formada por Antenor e os filhos Djalma, Gilberto, Wilson e Wilton. Mais tarde, a filha Nivalda foi integrada ao grupo e era ela quem cuidava das finanças. O genro Newton Siqueira também se integrou à sociedade, formando a CONSPAV – Construção e Pavimentação. Lembra Newton Siqueira que, “Por volta de 1973, o Ministério da Aeronáutica fez concorrência para recapeamento da pista do aeroporto, que consistia no aumento do acostamento e no reforço das cabeceiras de pista. A obra tinha em vista a capacitação do aeroporto para receber os grandes e desejados Boings, que, até então, não havia condições de pousarem aqui. Para ganhar a concorrência, a Conspav montou a primeira usina asfáltica de Uberaba. Com tanto trabalho, fiquei expert em negócio de asfaltamento. Tão expert que os jovens engenheiros Luís Carlos Goulart Árabe e Gustavo Rodrigues da Cunha me chamaram para trabalhar com eles, como sócio. Eu aceitei a proposta e, por volta de 1975, fundamos a CSA Terraplenagem e Pavimentação. CSA era a sigla formada pelas iniciais de nossos sobrenomes Cunha, Siqueira e Árabe. Com ela, pavimentamos umas quinze cidades do Triângulo Mineiro e de Goiás”. FIM DA PEDREIRA “Já nos anos 70, começou a vir a concorrência”, lembra-se Siqueira, “com a empresa de Adelmo Lucas Ribeiro (Didi), que montou a empresa Copari, ao lado do Lajeado, nas imediações da subestação da Cemig, e, mais tarde, com a exploração de pedreira pela firma Beira Rio, dos Irmãos Saad, migrada de Ribeirão Preto, em locais próximos à pedreira dos Gomes. A produção de asfalto, caríssima, bem como a crise dos petrodólares não permitiram que os negócios fossem adiante. E a pedreira, também, parecia estar com os dias contados. Por volta de 1980, a área industrial, um alqueire e meio de terra, mais as instalações de britagem foram vendidas. Chegavam ao fim 50 anos de história da pedreira dos Gomes, formada por arrojo empresarial, coragem e entrega total e desmedida ao trabalho. Em meio século de labuta, os Gomes e Siqueira explodiram, quebraram, selecionaram e comercializaram 40% da pedrei127


ra, fornecendo à aquecida indústria da construção civil, a brita e a areia necessárias, atendendo às carências do período de grande consumo desses tipos de material de construção”. Ironicamente, o colossal cenário de pedra, que exigiu dos homens inteligência, coragem, força e destreza, é hoje um depósito de lixo da Prefeitura de Uberaba... CURTUME DORNFELD MEMÓRIA VISUAL Quem para suado, cansado da viagem feita de longe até aqui, depois de atravessar o rio Uberaba e, no alto desse lugar, quietar-se em busca de sombra, mesmo rala, de árvore do cerrado, avista de longe, no entremeado, no emaranhado da vegetação, os grandes telhados inclinados... Se conhecedor do lugar, começa a separar, uma por uma, as casas com suas diversas funções para aindústria. Juntando tudo, o que se avista é o curtume, fundado pelo alemão Otto Dornfeld, que produziu, vendeu, exportou, fez fama, deu reviravolta, fechou, mudou de mão, na contramão, ficando assim, num abandono danado, danificado, edificações feitas de zoeira e suadeira dos funcionários, sangue e couro de bois, pele e suor de gente, crepitar de má-

Visão que tinham os boiadeiros ao passarem pela chácara de Nenê Gomes, próximo ao curtume Dornfeld. Foto - Ramon Magela.

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CASAL DE IMIGRANTES Otto Dornfeld nasceu na Alemanha em 30/junho/1883 e faleceu em Uberaba, em 09/julho/1966. Sua esposa, Marie Johanne Dornfeld, também alemã, nasceu em 21/julho/1889 e faleceu em Uberaba, em 12/julho/1950.

Em Uberaba, Otto e Johanne tiveram os filhos Helmut, Rubens, Walter e Emengard (Mauze), que também atuaram no curtume.

A loja de produtos de couro, na rua Vigário Silva, a família do alemão Otto Dornfeld, proprietário do curtume, inclusive passando férias na Alemanha, e aspectos atuais dos galpões abandonados da indústria que fez história no Corredor dos Boiadeiros. Fotos antigas – João Schroden Jr. e outros. Fotos atuais - Ramon Magela

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quinas, sucesso, sombras e memórias, imagens recorridas pelo escritor para recompor momentos e documentos perdidos.

“Motoristas de caminhão, em greve, fazem manifestação na ponte do Vau, contra a cobrança de pedágio instituída pela Companhia Mineira de Auto-Viação”. Postal editado pela Prefeitura de Uberlândia, Secretaria Municipal de Cultura, Acervo João Cunha – CDHIS-UFU/2006. 1948.

AS MÁQUINAS DE BENEFICIAR ARROZ O SAL DA TERRA

ARROZ EM CASCA

antes que seja domínio de cana o lucrativo arrozal se abana sob o vento sazonal, requebro dos filamentos negócios em movimentos sol das colheitas, maduro arrozal

vem do Japão o cônsul à cidade de Conquista

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ver como andam as coisas com japoneses a perder de vista

Rio Paranaíba – Rio Quebra Anzol – Rio Tijuco – Rio das Velhas – Rio Rio Grande -

deixam as margens dos fundos rios a riqueza em sacaria chegam as procissões de caminhões abarrotados na carroceria

o rio de alimento trafega do campo para a cidade e um país morto de fome – come!

– Ituiutaba – Uberlândia – Uberaba – Conquista as cidades-lavouras derramam sobre as calçadas o ouro em filete de grão

a sacaria empilhada nas ruas o arroz seca pelas calçadas a pressa do frete é sabedoria

joga-se alto no mercado do grão, são templos os armazéns do arroz e nem comportam tanta mercadoria

como o País, a cidade abre a boca para matar a fome do homem

A farta produção agrícola de Goiás e do Triângulo Mineiro estimulou a construção de grandes armazéns com máquinas de beneficiar cereais, principalmente arroz, e de desintegrar milho. Ali se empilhava a sacaria Corredor dos Boiadeiros

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“Avenida João Pessoa, próximo à Estação Mojiana, local em que se concentravam os armazéns atacadistas, responsáveis pelo abastecimento de gêneros alimentícios para o Triângulo Mineiro e o interior de Goiás”. Postal editado pela Prefeitura de Uberlândia, Secretaria Municipal de Cultura. Acervo João Cunha – CDHIS-UFU/2006. 1948.

com os preciosos produtos da região. Fileiras de caminhões chegavam dos campos produtores, descarregando, empilhando e armazenando os cereais ensacados em embalagem feita de fibra de carnaúba. Outros caminhões e, às vezes, os vagões ferroviários se encarregavam de redirecioná-los aos grandes centros consumidores. As calçadas das ruas de Uberaba, Uberlândia e, principalmente, de Ituiutaba se douravam quando o sol forte do Triângulo esbatia sobre o arroz em casca ou milho maduro, esparramados a secar, exibindo em via pública os produtos essenciais à subsistência da humanidade. Em Uberaba, essas imagens eram comuns nas ruas Artur Machado, Marquês do Paraná, Bernardo Guimarães, avenida Rio Branco. Várias delas pertenciam a libaneses, mas também a italianos e espanhóis. No Cachimbo, o imigrante libanês Jamil Fiod, vindo de Igarapava (SP), fez sociedade com o fazendeiro Reinaldo de Melo Resende na máquina de beneficiar arroz instalada no quadrilátero formado pelas ruas Colômbia, Uruguai, Bolívia e América, sendo esta alinhada à ferrovia. No Corredor dos Boiadeiros (avenida São Paulo), próximo à estação de Amoroso Costa, Orlando Bulhões também 132

Os grãos produzidos em diversos municípios do Triângulo Mineiro eram ensacados e empilhados nas ruas de Ituiutaba, Uberlândia e Uberaba, próximos aos armazéns que, nem sempre tinham espaço suficiente para tamanha produção de arroz, feijão e milho. Nas máquinas, o arroz era beneficiado e, juntamente com outros grãos, levados aos grandes centros consumidores do país. Corredor dos Boiadeiros


instalou sua indústria de beneficiamento de cereais. “Vivi muito da minha infância na máquina de beneficiar arroz do Jamil Fiodi e Reynaldo de Melo Resende, onde cheguei a trabalhar por muito tempo; mais tarde, foi vendida para a família Árabe e é deles até hoje. No lugar da máquina passou a funcionar ali uma fábrica de móveis. Antes da máquina de arroz de Jamil Fiod e Reynaldo Resende tinha a serraria do construtor João Laterza. O gerente era o João Afonso, mais tarde dono do Posto de Gasolina Boa Vista, na rua João Pinheiro”, informa o ex-ferroviário João Amaral. Para se ter uma ideia do movimento da serraria do João Laterza, foi feito um desvio dos trilhos da Mojiana até lá. “Tinha um movimento enorme. Os trens traziam toras de madeira, que eram beneficiadas e depois embarcavam para as casas de material de construção, daqui e de fora”, lembra Antônio Francisco de Faria.

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PALHA DE ARROZ

assopram as máquinas nuvens de palha palha palha de arroz dourada malha que a calha amontoa no quintal pirâmide que ali se encalha

a frágil arquitetura de mínima casca que se enforma em duna aviva o ouro que se espalha depois se coaduna amarelo que na claridade é douramento vestígio do alimento adubo e brinquedo ao mesmo tempo

servem de aventura as dunas de palha aos desejos desconexos do sexo, 133


“Grande engenho de beneficiar arroz”, da família Castejon, na antiga rua do Comércio, próximo à primeira estação ferroviária de Uberaba. Foto – F. da Costa Alemão. Uberaba, A Princesa do Sertão, álbum comemorativo da inauguração do Parque Fernando Costa, 1941.

Uma quantidade respeitável de máquinas de beneficiar arroz movimentava o comércio de cidades triangulinas como Uberaba, Uberlândia, Ituiutaba, entre outras, exigindo grandes armazéns para guardar os grãos. A região de Conquista, cujas terras eram famosas pelas possibilidades de exploração, foi das mais produtivas, exigindo numerosa presença de imigrantes italianos e japoneses para o cultivo do café e do arroz, respectivamente. Como nos dias atuais, o Triângulo Mineiro sempre foi um dos maiores celeiros de grãos do país. Pelo trânsito corrente, devido à entrada e saída da cidade, algumas máquinas de benefício do arroz também se instalaram no Corredor dos Boiadeiros.

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Corredor dos Boiadeiros


silêncio e calor que o monte exala; do que se ouve se calcula do que se vê, se cala;

na duna de dourado tingimento roubam os meninos espaços aos pássaros – patativa, assum-preto, canário – que se entregam ao fingimento dos instrumentos alçapão, arapuca, visgo

a infância facilita a ventura urdida na áspera palha de arroz A INDÚSTRIA DOS FRIGORÍFICOS O BOI: PARADA FINAL

“Os gaúchos deixaram de vez de enviar reses para o Rio de Janeiro, especializando-se na produção do charque, sendo substituídos, definitivamente, pelos criadores de Minas Gerais”. No período em que d. João VI permaneceu no Brasil (1808 - 1821), “A capitania de Minas Gerais destacava-se como o grande celeiro de abastecimento do Rio de Janeiro”. – Sheila de Castro Faria. Nos anos 50, Humberto de Melo construiu o frigorífico industrial Miusa, na avenida do Contorno, 1.010, no bairro da Abadia, colocando Uberaba na rota das empresas que refrigeravam carnes para ser vendidas em açougues ou as industrializava. O engenheiro Onírio Reis Barbosa rememora, com prazer, os tempos ativos da primeira fase do Miusa: “O frigorífico, grande, foi construído por volta de 1956 e produzia de tudo: charque, mortadela, presunto, salame, apresuntado, além de fornecer carne para o consumo de diversas cidades, até do Rio de Janeiro. Para atender à demanda da carne abatida ali, havia um desvio da Rede Ferroviária Federal que levava os vagões para descarregar bois dentro do frigorífico. Corredor dos Boiadeiros

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Havia fiscalização rigorosa do governo federal, conferindo a qualidade dos animais abatidos. Fui amigo de João Pagy, engenheiro veterinário do Ministério da Agricultura, responsável pela fiscalização dos matadouros em parte do Triângulo Mineiro. Esses engenheiros verificavam – animal por animal – a qualidade do rebanho, analisavam o cérebro e o pulmão para ver se havia doença contagiosa. Caso um boi fosse recusado, refugava-se o animal, que era vendido e destinado ao fabrico de sebo e sabão. Os produtos ali industrializados eram de grande qualidade e comercializados em toda a região”. “A sede da indústria Miusa, uma grande edificação, mesmo para os padrões atuais, foi executada pelo engenheiro e mecânico alemão Alexandre Von Dankes”, informa Onírio Barbosa. “Por volta de 1966, trabalhei para o prefeito João Guido, na retirada dos trilhos de ferro que davam acesso ao frigorífico. Naquela época, as ferrovias foram desativadas e o prefeito aproveitava os trilhos daquele trecho e que pertenciam à Rede Mineira de Viação para fazer mata-burros nas fazendas”. A indústria, pertencente a um grupo de empresários, tinha à frente o empresário Humberto de Melo. Com sua morte, o Miusa encerrou a produção industrial, passado a fazer somete o abate de gado. Atualmente, em mãos da família Costa Teles. “O fato de ter se transformado em centro especializado na melhoria genética do zebu desestimulou o estabelecimento de novas indústrias frigoríficas capazes de concorrer com as paulistas”, analisa Maria Antonieta Borges Lopes com este autor. Para o secretário de Agricultura de Campo Grande, o uberabense Tiago Cançado, a vocação do uberabense é o gado de elite. O Estado de São Paulo não foi somente importante importador do grande volume de gado vacum – ‘carne em pé’, como se diz – oriundo de “Caro pai Há falta de mantimentos, os fazendeiros dos arredores plantam pouco, apenas para o consumo da cidade. Assim, a exportação dos cereais é muito diminuta. Toda a riqueza da zona consiste na criação. Daqui saem grandes pontas de gado que se destinam ao Rio de Janeiro. Ultimamente, os boiadeiros as tangem de preferência para Campinas e São Paulo, por causa das condições do monopólio da carne verde que os prejudica”. – Visconde de Taunay, Uberaba, agosto de 1865. 136

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(*) Thiago Franco Cançado, por três vezes secretário de Estado de Finanças de Mato Grosso do Sul, chama atenção para dois fatores históricos: 1- O frigorífico Swift ficava próximo a Santo André e o Armour, na cidade de São Paulo, próximo à rodovia Anhanguera, às margens do rio Tietê. Esses frigoríficos eram de

Mato Grosso, Goiás e do Triângulo Mineiro, mas também a ele se destinava boa parte do óleo aqui produzido, o fantástico volume de madeiras de lei daqui extraída e aqui beneficiada e toda a produção de algodão, vasta na nossa região desde o século XIX. De lá veio incomensurável número de produtos, principalmente os industrializados e importados, e vieram, também, os imigrantes, com diversidade enorme de mão de obra qualificada.

proprietários norte-americanos, assim como o Wilson, que ficava na cidade de Osasco. 2- O segundo frigorífico de propriedade brasileira foi construído na cidade de Andradina (SP), a 100 quilômetros de Araçatuba. Foi fundado por Joaquim de Moura Andrade, também egresso da cidade de Barretos, na sua época áurea. O nome do frigorífico é Mourar e seu proprietário era pai do senador Auro Soares de Moura Andrade. Foi ele que, ocupando a presidência do Senado Federal, declarou vago o cargo de presidente da República, até então ocupado por João Goulart.

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FRIGORÍFICOS NO BRASIL DESTINO DO GADO O primeiro matadouro frigorífico do Brasil foi instalado em 1913 na cidade de Barretos (SP) por Antônio Prado (1840-1929) e chamava-se Companhia Frigorífica e Pastoril. Leopoldo Costa faz histórico abrangente da indústria frigorífica brasileira, do qual alguns trechos são de interesse especial para a compreensão das áreas de consumo de grande parte do gado que transitou e ainda transita por Uberaba: “As empresas multinacionais americanas e inglesas foram quem começaram a explorar a atividade no Brasil. Traziam experiências dos seus empreendimentos em outros países e conhecimento da tecnologia do processamento, transporte e comercialização dos produtos e subprodutos oriundos da operação. A Anglo (do Grupo Vestey), de capital britânico, e as três maiores empresas de capital norte-americano (Wilson, Swift e Armour) dominaram, sozinhas, o mercado de carne no Brasil até a década de 1940, quando começaram a aparecer as primeiras cooperativas que instalaram abatedouros frigoríficos no Rio Grande do Sul. Essas duas décadas (40 e 50) também foram de progresso para a indústria frigorífica de Minas Gerais, Estado que detinha o maior rebanho bovino do Brasil. Em 1948, foi inaugurado em Campo Belo o Frigorífico São João; em 1949, em Uberlândia, o Frigorífico Omega; em 1950, em Araguari, o Frigorífico Mataboi, e em 1954, em Santa Luzia, o Frimisa (Frigorífico Minas Gerais), que era de propriedade do governo de Minas Gerais”. (*)

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“O primeiro grande frigorífico de Goiás, o Continental, foi construído em Anápolis, em 1954. Na década de 1960, foram construídos importantes frigoríficos. Em Goiás, o Brasil Central, de Pires do Rio, e o Centro Oeste, de Goiânia. Em São Paulo, o Frigus, de Garça; o Mouran, de Andradina e de Araçatuba. No Paraná, o Central, de Maringá e de Paranavaí. No Mato Grosso, o Frigotel, de Três Lagoas, e o Kaiowa, de Aquidauana (Anastácio). Nessa década o mercado interno foi dominado pelo Grupo Mouran e pelo Grupo Central”. São também importantes para nossa região o frigorífico Miusa, de Uberaba, e o frigorífico Mataboi, de Araguari, fundado em 1949 por Nicolau Dorazio e seus filhos Hugo Carlos, Hermogênio e Afonso Dorazio, sendo a empresa mais tradicional no abate de bovinos e comércio de carnes do Brasil, segundo o Correio de Araguari, de 1º de junho de 2010. À medida que se construíam e se instalavam frigoríficos nos estados de Goiás, Minas Gerais e São Paulo, decrescia a circulação de gado por Uberaba. Mas a importância histórica e geográfica de Uberaba no comércio e no trânsito de gado se acentuava, mesmo nessas circunstâncias, como se vê no texto de Leopoldo Costa: “A Companhia Paulista de Estradas de Ferro (que passava por Jundiaí, atingia as divisas de São Paulo, Minas Gerais e Goiás), a Companhia Mojiana, a Sorocabana e a Araraquarense (que cortavam todo o estado) fizeram de São Paulo o mais importante polo da indústria frigorífica, suplantando a primazia do Rio Grande do Sul. O transporte dos bois era o maior problema e grande parte do gado vinha de Minas Gerais e de Goiás”, lembra Leopoldo Costa.

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Capítulo

08

O COMÉRCIO ALINHADO ÀS TRANSFORMAÇÕES NO CORREDOR DOS BOIADEIROS

O comércio intenso exigia participação de todas as gerações. Adair Pereira dos Santos (à direita) com familiares, com um Chevrolet Brasil, 1950. Substituindo o carro de bois, o caminhão deu nova dinâmica aos transportes, inclusive de gado. Arquivo de família. Corredor dos Boiadeiros

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COMPRA DE CADERNETA

invenção do livro deu também em caderno e caderneta apontamento a lápis ou caneta: talha, vassoura, urinol gramas ou quilos de mantimentos tirados a conchas dos sacos de linhagem feijão, arroz, batata, cebola pesados no fiel da balança Filizola

para um libanês analfabeto de alfa, gama e beta somente a matemática dos números somada à memória dos preços pode ajudar

Produto sertanejo, o fumo de corda era indispensável nas vendas tradicionais, sempre visto sobre os balcões a atrair os fumantes do cigarro de palha. O de procedência goiana ainda merece a preferência do consumidor. Mercado Municipal de Uberaba, 2014. Foto - Roberto Pimenta

vejamos

pelo valor somado a cada linha da caderneta (sem mutreta) é que se refere à quantia desta ou daquela mercadoria vendida

ok?

nunca se soube de um vacilo daquilo que foi levado ao fechar as compras do mês e apresentar as contas ao freguês

que pagava como podia à vista ou a prazo conforme pontualidade, atraso dos Correios, coletoria, ferrovia

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CADERNETA Da sua infância, a historiadora Eliane Marquez lembra que sua mãe, Zalda Marquez, tinha cadernetas de vários estabelecimentos comerciais, onde ela adquiria produtos para cozinha no Armazém Central, dos Martinelli; medicamentos na farmácia de Agostinho Teixeira, ambos na rua do Comércio; verduras e carne nas bancas da Dagma e de seu João, no Mercado Municipal; tecidos na Casa da Sogra, de Pedro Elias Miziara. Isso era uma prática comum no comércio num tempo que ainda não se pensava em supermercado e em cartão de crédito. Corredor dos Boiadeiros


“O comércio de Uberaba nos últi-

mos anos decresceu bastante. Assim mesmo, a cidade continua em progresso. Constroem-se casas e há projetos de melhoramentos. As lojas estão bem sortidas; nelas se encontram todos os artigos da vida moderna”. – Visconde de Taunay.

Famosa pela diversidade de produtos à venda, a loja do imigrante libanês Antônio Saad traduz em detalhes os tradicionais armazéns nos quais se encontrava de tudo, desde urinóis a bules e torradores de café, tachinhas, regadores de jardins, hortaliças, compoteiras e foices. Foto - Roberto Pimenta. 2014.

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de certa vez a Mojiana atrasada nos pagamentos meu pai pegou as cadernetas e rasgou todas de uma vez

as dívidas perdoadas se pagaram com agradecimento se apagaram no esquecimento de tal maneira que o contador Eugênio Maria Diniz nunca soube explicar ao fisco e lhe dizia: Vira o disco!

As atividades comerciais sofreram transformações expressivas na virada do século XIX para o XX, com a chegada dos imigrantes de diversas origens. Pela vivência, que lhes dava experiências e práticas diferentes, os imigrantes impulsionaram a vida econômica do País, alterando, em muito, o cotidiano das cidades e modificando práticas comerciais antigas e que, gradativamente, vão se encaixando nos padrões da modernidade. Descendentes diretos dos fenícios, notáveis navegadores e comerciantes no tempo do rei Salomão e dos faraós, os libaneses vieram para o Sertão da Farinha Podre em fins do século XIX. Desde a chegada à região, lançaram-se a mascatear pelas imensas distâncias sertanejas. Com os recursos advindos da atividade itinerante, fixavam-se na cidade, aproveitando as vias de acesso a ela, como é o caso do Corredor dos Boiadeiros, onde vários deles se estabeleceram. Há casos em que, mesmo residindo no Corredor, fregueses se dirigiam a distantes empórios dos imigrantes para fazer suas compras, facilitadas pelo uso de caderneta, a prazo, novidade lançada pelos comerciantes “turcos”. Juntamente com os demais comerciantes, os 141


imigrantes libaneses dividiram o ramo de negócios no mesmo percurso, pontilhado por ativo comércio que atendia os bairros do Fabrício, Cachimbo e Boa Vista, bem como os tropeiros, fazendeiros e pessoas que se direcionavam às cidades vizinhas e se abasteciam em Uberaba. IMIGRANTES E CORMERCIANTES AS PORTAS ABERTAS DAS VENDAS

VENDA DE ELIAS NABUT VENDA DE BARRIGE NADER PÁLIS COMÉRCIO DOS ABRÃO COMÉRCIO DOS DAIR HABIB (ABÍLIO) SALLUM CASA CUNHA VENDA DOS TRÊS DEGRAUS VENDA DO SILICO VENDA DE ELIAS NABUT E O PAPEL DOS CARROCEIROS

Residente na rua Equador, na vila São José, Antônio Alexandre Amaral (18/04/1935) fala das dificuldades de se fazer compras no período de sua infância e juventude, das longas distâncias percorridas de um bairro para outro com essa finalidade: “De 1945 a 1949 eu trabalhei na padaria União, na rua padre Zeferino. De lá, fui para a padaria Espéria, da família Pucci, na rua Artur Machado. Nesses trabalhos fiz amizade com o senhor Elias Nabut, que tinha um armazém perto dali, na praça da Gameleira, hoje, Concha Acústica. Era da venda dele que eu e meu irmão, o ferroviário João Amaral, fazíamos as compras para casa: um saco de 60 quilos de arroz, 10 quilos de feijão, uma lata de banha vegetal e 20 quilos de batata... A mercadoria vinha lá do alto dos Estados Unidos, de carroça, até aqui, do outro da cidade. Seu Elias fiava a compra pra gente, marcando tudo na caderneta. O pagamento era no fim do mês. Ele foi um homem bom demais pra nós. A gente pedia um saco de arroz e ele mandava dois. Naquele tempo não havia inflação e a gente 142

A venda de Adair (Dai) serve de moldura para a boiada que passa em direção à estação de Amoroso Costa, próxima dali. Junho/1991 Arquivo de família.

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QUIBE EMPRESARIAL

Quando não assumiam dire-

tamente os negócios, as libanesas participavam deles, com suas interferências,

pagava quando podia. Ainda tenho um canivete Cometa, que comprei dele; ele me serviu muito e guardo de lembrança”, complementa o comentário, o senhor Antônio Alexandre Amaral.

não somente pajeando os maridos, mas contribuindo com os saborosos pratos da comida árabe, ora vendidos, ora doados aos fregueses, como atrativos de seus estabelecimentos comerciais.

CASA CUNHA (Avenida Elias Cruvinel) Da avenida Elias Cruvinel em diante, o Corredor dos Boiadeiros tinha comércio mais ativo. No cruzamento da rua João Pinheiro, dos poucos acessos à cidade pelo bairro Boa Vista, ficava a Casa Cunha, de Rosenval Rodrigues da Cunha, o principal armazém da região. Em frente ficava o Filtro (hoje, estação de tratamento de água do CODAU), construído pelo governo mineiro durante a administração de Waddy Nassif. Acesso às saídas para as cidades de Conquista, Sacramento, Araxá, Nova Ponte, Santa Juliana, a localidade era procurada pelos imigrantes libaneses, que ali também se instalavam. VENDA DE BARRIGE NADER PÁLIS (Avenida Elias Cruvinel)

Minas Gerais produz quatro dos 12 mais considerados queijos do país: o araxá, o canastra, o salitre e o serro (Caderno Paladar, Estadão, dezembro/2013). Considerado patrimônio imaterial, é indispensável na cozinha, onde é apreciado de diversas formas, inclusive em duas fatias, “prensando” uma talha de goiabada, no famoso “romeu e julieta”, par perfeito do doce com a acidez do queijo. Foto - Roberto Pimenta. Mercado Municipal de Uberaba. 2014. Corredor dos Boiadeiros

No corner avançado formado pelo ângulo agudo das ruas Divinópolis e Deoclides Teles da Silva, os jogos de futebol transmitidos pela televisão deixam o avançado calçadão lotado de apreciadores do esporte, da cerveja, do pastel, esposa do proprietário, da boa caninha e do carteado. Nas prateleiras mais altas, à disposição do cliente, está uma coleção de cerca de 80 garrafas antigas de cachaça, a maioria de rótulos desgastados pelo tempo, aguçando o interesse pela qualidade da bebida envelhecida. Nas prateleiras de baixo, várias garrafas da pinga Chora Rita, que durante os anos 50 era engarrafada em Uberaba por Sebastião Rosa, na rua Major Eustáquio. Hoje, essas garrafas são peças de coleção dos apreciadores da “marvada”, cada vez mais sofisticados. Com o fechamento da empresa, a Chora Rita passou a ser engarrafada em Anápolis (GO) pela firma Centraidar. A cachaça conta, 143


inclusive, com fã-clube de rapazes naquela cidade goiana, como se pode ver na internet. Aqui é o bar de Reinaldo Valdir Pális (nascido em 1936), que ganha movimento desusado nos sábados à tarde e domingos pela manhã. Filho de imigrantes libaneses, o proprietário mantém a tradição do comércio neste que foi um dos pontos mais movimentados do Corredor dos Boiadeiros: “Minha mãe, Barrige Jacob Nader Pális, construiu esta casa e o armazém, por volta de 1939, para continuar mantendo a família. Ela morava com meu pai, José Pális (Yousef Bahlis), na estação de Buriti (haviam residido anteriormente na estação da Mangabeira, onde eu nasci), da Mojiana, onde tinham armazém, aproveitando o movimento da estação ferroviária. E ali tiveram quase todos os seis filhos. Aos 33 anos, meu pai morreu e ela veio tentar a sorte em Uberaba, por volta de 1939/1940” recorda Reinaldo Pális. Através do balcão, posição ocupada desde a juventude, Reinaldo fala mais um pouco sobre a atividade comercial do lugar:

Numa das últimas vendas do Corredor dos Boiadeiros, a de Adair Pereira dos Santos, a máquina registradora e o baleiro, empoeirados e em desuso; sinais do tempo, em duplicata. Foto - Roberto Pimenta.

“O movimento das boiadas era grande. As pessoas fechavam as casas quando elas apareciam. Vinha muita boiada de Araxá, Santa Juliana e Nova Ponte. Os fazendeiros, os boiadeiros, faziam compras no armazém de minha mãe. Com a morte dela, em 1959, eu assumi o negócio. Há 10 anos acabou o armazém. Ficou somente o bar, que é este que você está vendo aqui, hoje assumido pelos meus filhos, que trabalham o dia todo”. COMÉRCIO DOS ABRÃO (AVENIDA SÃO PAULO)

Nascido na chácara de seus avós maternos que vieram do Líbano para “fazer a América”, na penúltima rua a integrar o Corredor dos Boiadeiros – rua São Paulo –, o médico Djalma Antônio Abrão (Uberaba, 1947) 144

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recupera parte da memória do lugar e refaz o trajeto de sua casa até o Mangueirão, referencial limítrofe de um trecho de 3 quilômetros e 300 metros. A casa, reformada, já não tem mais o ponto comercial original. Ela domina a área de mil metros quadrados, em vários pontos sombreada por árvores frutíferas centenárias, criando uma massa verde que chama a atenção de quem passa pela rua: “Aqui residiram meus avós maternos, o imigrante libanês e comerciante Antônio José Dair e Ana Jorge Farah Dair, que tiveram os filhos Maria Abadia, que se casou com meu pai, Antônio Abrão. As dificuldades eram enormes, mas enfrentávamos o trabalho com coragem. Na nossa infância, o ponto mais próximo do ônibus era no posto Rocinha (hoje, posto Oliveira), distante de nossa casa. A condução nos levava até a praça Rui Barbosa, no centro da cidade, e de lá íamos a pé até o ginásio Diocesano, no alto das Mercês. Com as bicicletas Monark ou Caloi, a gente ia e vinha por toda a parte do Corredor dos Boiadeiros, na nossa região denominada Amoroso Costa. De vez em quando, a gente ia até a estação de Rodolfo Paixão, a três quilômetros daqui, ou mais longe ainda, até o Mangueirão”. COMÉRCIO DOS DAIR (AVENIDA SÃO PAULO)

Instrumento identificador das casas comerciais de tradição, a balança Filizola sempre na cor vermelha, ainda se usa em alguns estabelecimentos conservadores. Foto – Roberto Pimenta. 2014.

Ao lado da residência da família Abrão residia a conhecida comerciante Nair Abrão Dair (Uberaba, 1928 - 1991). Nura, como também era chamada, era filha dos imigrantes libaneses João Abrão e Maria Calixto Abrão, tendo se casado com José Antônio Dair, também filho dos imigrantes libaneses Antônio José Dair e Ana Jorge Farah (Hanna), com quem teve três filhos: Antônio, Jardel e Ana Maria. A morte prematura do marido levou a viúva a ampliar os negócios dele, que consistiam na produção de carne suína, linguiça e produtos derivados do toucinho frito: a banha e o torresmo, que os dois filhos vendiam, numa charrete, pela cidade. “Minha família comprava porcos de toda a região”, lembra Ana Maria Dair Fiúza (29/05/1951). “Às vezes, matavam-se 12 porcos num só dia. Dois empregados cuidavam de matar os porcos. Ainda não havia maçarico e eles

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eram obrigados a sapecá-los com palha de bananeira ou de milho – que eram compradas ensacadas, devido à grande quantidade necessária – abri-los e destrinchá-los. Duas empregadas fritavam o toucinho e ajudavam a fazer linguiça. Toda a família ajudava. E esta trabalheira toda era realizada debaixo das mangueiras; um sacrifício danado, visto que todo o trabalho era manual, inclusive nas máquinas de moer carne. A maior parte das carnes era vendida para funcionários do Banco do Brasil, onde trabalhava meu tio Antônio Abrão. Ele foi como um pai para nós, pelo tanto que nos ajudou. Eu era pequena e ajudava em tudo, até completar 14 anos de idade, quando fui trabalhar como caixa na loja São Geraldo, onde fiquei até 1975. Aquela luta toda durou até 1972, quando meu irmão Jardel formou-se em Medicina e meu irmão Antônio em Direito. A família já havia alcançado o objetivo e cada um dos filhos tinha sua profissão.

Os atemporais urinóis ainda podem ter procura no mercado; é o que espera o proprietário da loja Saad & Saad. Foto – Roberto Pimenta.

LAUANDA E HABIB SALLUM (RUA DIVINÓPOLIS) O acentuado e escuro telhado coberto de telhas francesas foi marco de despedida da cidade. A casa comercial e residencial dos imigrantes libaneses Lauanda e Abílio Sallum, numa esquina da rua Divinópolis, sobressaía-se atrás do empoeirado movimento de entrada e saída da cidade. Ao fundo, a chácara, com todas as suas particularidades, principalmente as mangueiras, que davam ao casarão volumes estéticos complementares. No limite da cidade o arcaico aceno de adeus! ALÉM DO LIMITE REFERENCIAL Abandonadas pela casa arruinada (sumida) e pelo vazio que lhes descobre os pés, as pernas, deixando-as à deriva e envergonhadas, as mangueiras estão mais sós que nunca neste vasto terreno baldio de beira de estrada, que foi de chão de terra e agora é asfaltada. Aqui teve casa de morada, porta comercial, quarto de pernoite, gente que se esquecia de si após um trago, comércio ativo, choro de menino, gargalhada de moça, cavaleiros empertigados que apeavam de seus cavalos decididos a fazer uma proposta, fechar um negócio ou um pedido de casamento. 146

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Da chácara que existiu aqui não sobrou nem a sombra intacta e encolhida pelo sol a pino. Pilhada de sua memória, a estância, em última instância, absteve-se de seu sentido de ser. ARTESANATO E ATIVIDADES TRADICIONAIS O ARTESÃO Bem antes da industrialização ou indiferente a ela, a manufatura de produtos úteis ao manuseio dos animais cavalares e vacum foi atividade da qual se ocupou o talentoso homem do campo e das localidades sertanejas. Em busca de melhores preços e de produtos de qualidade, recorreu-se ao artesão, que, utilizando materiais disponíveis na localidade, mantinha a longa tradição do artesanato rural. Na avenida São Paulo residia Vidal Francisco Alves, cuja vida e trabalho foram registrados em reportagem publicada no Jornal da Manhã, em 9 de maio de 1984, quando ele tinha 72 anos de idade. Natural de Ibiá e aqui radicado desde 1942, Vidal era um tipo forte, alto, claro. Em 1952, casou-se com Rita, responsável pela organização da casa. Ela era quem o ajudava a receber fregueses. Mestre paciencioso na arte de curtir, lavrar, recortar em tiras e trançar o couro de vaca, produzindo laços, pinholas (canzil, cangalho), chicotes, ‘readores’ (chicotes com tiras de couro trançado) e peiteiras, peças essenciais no dia a dia do boiadeiro, o artesão dedicava-se também à manufatura de utilitários produzidos com chifres de bois (buzinas e berrantes), assim como com crina de cavalo (rédeas, sedéns, freios e barrigueiras). Do próprio animal saía a matéria que o amansaria (chicote e rédeas) e o conduziria (viseiras e freios) a vida inteira. De onde vinha a intimidade com o material de trabalho? Vidal chegou a viajar a pé, tocando animais, até Euclides da Cunha, na divisa dos estados de São Paulo e Mato Grosso. Boiadeiro enquanto jovem, Vidal passou a ser comissário de boiada, homem responsável pelo transporte e pela segurança da tropa. O cargo era Corredor dos Boiadeiros

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de responsabilidade extrema, porquanto penetravam em regiões perigosas, ora desertas, ora cobertas de mata, infestadas de bandidos ou de feras. Na função durante muito tempo, ele nem sabia por quanto a boiada fora vendida. Mas, se um boi morria durante a viagem, ele ia, cortava um pedaço do couro que tinha a marca do proprietário e o levava para o comprador, como comprovante. Meio século na lida com o gado fez do comissário de boiadas um homem íntimo com o material que iria trabalhar. “O berrante dá uma mão de obra danada”, desabafava seu Vidal. “Primeiro, eu descasco o chifre com facão, depois com a grosa, aí é que vem a lixa, usada até dar brilho. Os chifres, uns três ou quatro, conforme o tamanho do berrante desejado, têm de ser bem lixados, depois emendados por anéis, feitos com argolas do corno e colados com uma mistura de cola branca com pó do próprio chifre. O tamanho da peça influencia muito no som do berrante. O chifre tem de ficar bem fino para deixar o berrante maneirinho. Chifre de boi pedreiro é maior, mas não serve pra berrante porque dá desfolhação. Os chifres de bois vindos de Mato Grosso desfolham inteirinhos, vão levantando as cascas à medida que você trabalha neles. Chifre de boi carreiro é que é bom. Mas bom mesmo são os chifres de boi caracu, amarelinhos, rajados, uma beleza. Os da nossa região são bons por causa do calcário que tem no terreno. Dos chifres faço também buzinas de caçador. É a tal da ‘vida enrolada e da vida trançada’”, lembra ele, referendando o tipo de trabalho que exercia. Mais que o couro e o chifre de vaca e a crina de cavalo, são a paciência e a mão firme as matérias-primas de que é feito o artesanato honesto daquele homem. Sua produção é para os cavaleiros, carreiros, boiadeiros e carroceiros, clientes que foram desaparecendo, mas não de todo. No portão de sua casa, o freguês bate palmas e grita: – Ó de casa! Dona Rita responde: – Ó de fora! Pode entrar. Não, o cachorro não pega. Vamos sentá; o Vidal já vem. O freguês não compra sem antes dar um dedo de prosa com o casal, que gosta de usar camisa de manga comprida, abotoada nos punhos. Uma comprinha aqui não dispensa a conversa mole, que principia com a observação do tempo e do clima: 148

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– Que calor que tá ‘fazeno’! E pode terminar com um cafezinho doce, servido em xícara esmaltada. O FERREIRO E A FORMATAÇÃO DA FERRADURA CHAMA BRILHANDO NO SUOR DA FACE

Milenar, a atividade do ferreiro esteve também ligada à produção da ferradura. O ferreiro foi o primeiro profissional a se estabelecer em Uberaba, ao lado da casa de major Eustáquio, fundador da cidade. Imagem da internet.

Tão ancestral quanto o artesão é o ferreiro, cujo estabelecimento provém do elemento essencial à sobrevivência do ser humano: o fogo. Ali ele impulsiona o grande fole, assoprando com fôlego forte a brasa dormida, até que, recobradas, se afogueiam, acendendo as labaredas, e o fogo, definitivamente, cresce em força suficiente para deixar em brasa os lingotes de ferro, que dali são retirados com o torquês e levados à bigorna sobre o cepo de madeira. Na posição adequada, o robusto artífice mostra sua destreza, malhando as linguetas do metal quente com a marreta de cabo curto, até que obtenha a forma desejada de um cravo, uma ponteira, Corredor dos Boiadeiros

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um punhal, uma faca, uma ferradura... Seu rosto apagado e sujo, de repente vai se iluminando, como se uma lâmpada acendesse sua cara por dentro, à medida que a brasa fica em fogo. De camiseta cavada, gordo e forte, com as grandes entradas na cabeleira, cada vez mais escassa, os olhos miúdos, mas atentos ao destino que vai dar a cada marretada na barra de ferro que vai forjar. Ainda quente, a peça é mergulhada no tonel de água, levantando densa fumaça, que por instantes apaga sua figura, que vai saindo da história à medida que as montarias, carroças e charretes vão sendo trocadas por veículos motorizados. O freguês sabe que o Pina, embora completamente surdo, entende perfeitamente a encomenda e é ele quem faz as melhores ferraduras. Depois de prontas, ele lima muito bem os cascos dos cavalos, cravando-lhe as peças com perfeição. É ele ainda o ferrador indicado para fazer a sangria dos “cavalos aguados”, animais anêmicos, preguiçosos e que se cansam com facilidade. Com uma espécie de azagaia, chamada fleme, também de sua fabricação, a grande veia jugular do animal, segura entre os dedos polegar e indicador da mão esquerda, é perfurada, jorrando quantidade de sangue venoso suficiente para o animal recobrar as forças... Com o passar de tropas pelo Corredor, os ferreiros eram constantemente requisitados. Vários ferreiros são lembrados pelas pessoas consultadas. Um, italiano, na rua Sete de Setembro, próxima à rua Marquês do Paraná, na rua Dr. José Maria dos Reis. A homenagem aqui prestada refere-se a Pina, ex-funcionário da fábrica de carroças de Benjamim Rossetti & Irmãos, por tanto tempo ativa na rua Bernardo Guimarães. Com o fechamento da empresa, Pina montou seu negócio de ferreiro, na rua Pires de Campos, esquina com Padre Zeferino, em sociedade com Jesus.

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Capítulo

09

A FERROVIA UM PROCESSO DE APROXIMAÇÃO Os grandes acontecimentos do país tinham reflexo imediato nas atividades das vias férreas.

O movimento intenso da estação ferroviária da Mojiana, em Uberaba, denotava a dinâmica comercial e social da cidade. - Movimento de tropas, provavelmente na Revolução de 30. Acervo Arquivo Público de Uberaba. Corredor dos Boiadeiros

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O BOI NO EMBARCADOURO A chegada da ferrovia a Uberaba, em 1889, foi o mais importante movimento propulsor de progresso no Noroeste paulista e no Triângulo Mineiro, como de resto em todo o País, nas regiões beneficiadas pelo transporte ferroviário. O novo ramal ligava o Sertão da Farinha Podre, através de Conquista, Sacramento e Uberaba, à região, ao porto de Santos e a São Paulo, via Campinas, cidade onde nasceu a Companhia Mojiana de Estradas de Ferro, em 1872. A Mojiana foi responsável pela investida pioneira nessas regiões. São Paulo era mais que uma cidade provinciana e, de certa forma, pequena, tendo 46 mil habitantes em 1827, 65 mil habitantes em 1890, 200 mil habitantes em 1900, um salto triplo em relação à data anterior. A cidade vivia o grande momento de arrancada para ser a metrópole em que logo se tornaria. A proximidade com o Triângulo Mineiro, através da linha que ligava Campinas a Uberaba, proporcionou à cidade mineira um surto de progresso, momento único em sua história econômica e cultural. Em 1895, os trilhos chegavam a Uberlândia e, em sequência, a Araguari, em 1896, e a Catalão, em Goiás, em 1913, atravessando o rio Paranaíba sobre bela ponte pênsil. Desta forma, a ferrovia causou um surpreendente processo de aproximação entre o sertão e a modernidade, o caipira e o cosmopolita, o artesanal e o industrial. Em todos os locais que a ferrovia atravessa, ela deixa modificações que transformam o lugar e a vida do homem que ali vive. Neste capítulo priorizamos o contato feito pelo engenheiro Onírio Barbosa, homem de intenso trabalho realizado nas ferrovias, que nos prestou claro e seguro relato de sua vivência nos ambientes aqui descritos. Através da ferrovia chegavam os imigrantes e produtos importados da Europa, principalmente da Inglaterra, da França, da Alemanha e dos Estados Unidos, como os relógios de carrilhão Ansonia que ainda soam defasados no “Penso que se houvessem estradas de ferro mais próximas, logo apareceriam as plantações de café, que as terras a isto se prestam. Mas, por enquanto, o frete absorveria tudo. Se os campineiros conseguirem trazer os trilhos da estrada de ferro à sua cidade, como muitos pensam, o interior de São Paulo e da Província de Minas lucrará largamente com este melhoramento. Mas esta construção ainda longe está de se realizar”. – Visconde de Taunay. 152

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Os trilhos da Mojiana traziam consigo elementos e instrumentos modernizadores do sertão arcaico. Acervo do Arquivo Público de Uberaba.

tempo, diante do celular. O destino sonhado pelos empresários campineiros era chegar até a Amazônia, mas o projeto foi retido em Goiás, chegando até Catalão, completando a linha do mesmo nome. Dali até Brasília, passando por Goiás, Goiânia e Anápolis, a ferrovia se desenvolveu através da Estrada de Ferro Goiás. Embora muito já se tenha escrito sobre a presença da ferrovia em terras do antigo Sertão da Farinha Pobre, ainda é aguardado um trabalho que avance no conhecimento sobre o tema. Em pouco tempo, o trajeto primitivo foi se tornando obsoleto e, com nova tecnologia, a Mojiana construiu, em 1915, novo ramal que liga novamente o estado de São Paulo ao Triângulo Mineiro, acelerando o ritmo do acesso. Era a linha menos sinuosa, entre Igarapava e Uberaba, cujas últimas estações, a de Rodolfo Paixão e de Amoroso Costa, tinham especial interesse para nossa história, principalmente esta última. É diante da estação de Amoroso Costa que se fez o grande curral, de trilhos de ferro, onde o gado destinado às viagens aguardava o embarque. “Em 1915, o ramal de Igarapava foi prolongado para além da cidade, de forma a alcançar a linha de Catalão um pouco antes de Uberaba, na Estação de Rodolfo Paixão. A nova linha provou ser mais econômica, sendo o antigo trecho abandonado definitivamente em 1976, depois de ser separado da linha do rio Grande, em 1970, por causa da construção da represa de Jaguara. O trecho a partir de Uberaba foi, então, incorporado ao ramal de Igarapava e, em 1979, totalmente retificado a partir de Ribeirão Preto até Araguari. Trens de passageiros transitaram por ali até 1979. FEPASA”. Engenheiro formado na sétima turma da Faculdade de Engenharia do Triângulo Mineiro (atual Universidade de Uberaba), em 1967, Onírio Reis Barbosa foi professor da matéria Ferrovia, na escola onde estudou, e engenheiro

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da Companhia Paulista de Estradas de Ferro (depois FEPASA), de 1969 a 1994. Ali trabalhou como chefe de Divisão em Campinas e Uberaba e como engenheiro residente em Araraquara, Bauru, Marília e Rio Claro, tendo construído a linha Campinas–Nova Odessa, em 1970, e a linha Uberaba–Ribeirão Preto, em 1978. Íntimo do assunto que dominou como profissional, o engenheiro reconhece a importância das estações de Amoroso Costa e de Rodolfo Paixão para o transporte de gado a partir de Uberaba: “A estrada boiadeira margeava a ferrovia por onde passava o gado oriundo de Mato Grosso, Goiás e de localidades do Triângulo Mineiro, afunilando em direção a Uberlândia e daí direto para Uberaba. A estrada boiadeira ‘vinha em estrada de chão’, muito próxima à ferrovia, passando pelas estações, que se distavam umas das outras em aproximadamente 12 a 16 quilômetros, na seguinte sequência:

“Em Amoroso Costa tinha

uma lagoa muito bonita. Sempre que possível, íamos nadar por lá”, lembra Sérgio Scussel, em depoimento ao Arquivo Público de Uberaba, em outubro de 2004.

A estação foi demolida na dé-

cada de 1970, sem movimento de reação por parte das entidades culturais e preservacionistas de Uberaba. Apenas um jornalista se pronunciou contrário à atitude nada recomendável.

– Uberlândia km 644 (de Campinas) – Omega – Sucupira – Irara – Anil – Buriti – Eli – Palestina – Parada de Tié, uma pequena estação – Mangabeira – Leia – Uberaba (km 514)”

Ainda segundo Barbosa, “Em Buriti, tinha o pouso de Pedro Borges, defronte à estação, com embarcadouro de gado de propriedade da ferrovia. Havia grande número de comerciantes libaneses que atendiam a região. De Eli retiravam e ainda retiram uma argila de alta qualidade, com 90% de alumínio, ideal para o fabrico de tijolos refratários. A exploração do produto era feita pela Companhia Paulista de Mineração e, atualmente, está sob o comando de empresa de Antônio Ermírio de Morais que margeia a ferrovia numa área de 10 km, toda cercada.” 154

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A GARE DE AMOROSO COSTA O TENTO E O TEMPO INTERVALOS DE EMBARCAÇÃO

(*) Manuel Amoroso Costa (Rio de

Janeiro, 13 de janeiro de 1885 - 3 de dezembro de 1928) foi um importante matemático brasileiro. Seu talento se associou a uma grande vocação para o magistério. Foi professor da Cadeira de Eletrotécnica e Aplicações

Industriais da Escola Politécnica e diretor do Observatório do Valongo, entre 1911 e 1928. Ministrou, em 1928, um curso da Sorbonne, a convite do Instituto de Alta Cultura. Seus trabalhos são verdadeiros modelos da arte do bem-dizer matemático: preciosos, concisos, simples e elegantes, dessa elegância matemática na qual Poincaré via o sentido da beleza, da harmonia dos números e das formas e que só os verdadeiros matemáticos sabem adivinhar.

Foi autor de muitos trabalhos im-

portantes, alguns traduzidos em diversos idiomas. Faleceu na queda do hidroavião Santos Dumont que, em dezembro de 1928, fazia um voo sobre a baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, em homenagem ao pai da aviação, que regressava ao Brasil depois de anos de refúgio na Suíça. No acidente outros famosos cientistas brasileiros, amigos pessoais de Santos Dumont, faleceram, entre eles Amauri de Medeiros, Tobias Moscoso, Ferdinando Labouriau, Frederico de Oliveira Coutinho e Paulo de Castro Maia.

Além de se dedicar à matemática,

Amoroso Costa escreveu um importante livro,

Nos anos 70, os trilhos ainda brilhavam e o chefe da estação controlava o movimento, em declínio, de Amoroso Costa. Foto – Demílton Dib.

Introdução à Teoria da Relatividade, editado pela primeira vez em 1922 e reeditado em 1995 pela Editora UFRJ. (COSTA, Amoroso M. Introdução à Teoria da relatividade. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1995). Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

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“Vizinha de grito” da Estação de Uberaba, a gare de Amoroso Costa se avolumava com o imenso depósito e se recortava sobre a paisagem rasa, o tempo seco e fosco de setembro. O longo pavilhão anexo, patinado de fuligem das máquinas, erigido de madeira, era destinado ao depósito do calcário abundante, trazido da região de Peirópolis, a duas paradas adiante. 155


Abandonada, deixava de ser depositária do produto fóssil para se transmutar em guardiã de possibilidades; uma casa onde se aprendesse a riscar, contar, versejar, calcular – hoje em dia, quem sabe isso?... À sombra da história, sua arquitetura de tábuas severas servia de cenário imaginário, trampolim temporário para possíveis cineastas e fotógrafos, que viam nela um tema a ser tratado, um elo a ser engatado.

(*) Primeiro noticiário de radiojornalismo do Brasil, transmitia notícias enviadas por uma agência internacional de notícias sob o controle dos Estados Unidos da América. Era patrocinado pela empresa americana Standard Oil Company of Brazil, conhecida como Esso do Brasil.

Janelas sem taramelas a ver, de uma banda o Pê que não vem, de outra banda o Pê que não tem

Mais além, brancos animais cavalares ou personagens de outros lares, monjas com seus véus monumentais/estruturais, patamares de digressões de ideias ou visuais, poetas a lidar com o Livro das Horas do trem, trem das horas, trem dá as horas, o dirigível que passa pelas manhãs, invisível, e retorna à tardinha, intocado. Pelas duas plataformas e com a vênia dos ventos enviuvados, ouve-se o som da partida, agora sem ida. Volta a imagem em negativo, retroativo, desfeita a edificação sobre a qual rastejam urzes, se reviram os entulhos, o zinabre sem a ferragem de aderência, a ferrugem da dormência, a escultura concretista dos dormentes aparentes que se desgrudam do solo como costelas fossilizadas, a dentada de sabre dos cravos de ferro que ferravam os trilhos, a bocada final da amnésia e do abandono (o verdadeiro dono)... – Texto do curta-metragem Estações, de Jorge Alberto Nabut, 1976.

– “Meu avô era um visionário. Conhecia dezenas de qualidades de árvores e de plantas, inclusive com finalidades farmacêuticas. Andava com uma capanga cheia de sementes de árvores, que ia “sameando” no campo para formação de matas. Ele dizia que a capital do Brasil precisava ser transferida para o Centro Oeste (Goiás), onde havia um marco célebre, desde o século XIX, como centro geodésico do País. A nossa região era muito diferente e minha avó via os índios trafegando na fazenda de seus pais, na região do Lajeado dos Teles, próximo à estrada de Erial, a segunda depois de Rodolfo Paixão”. – Onírio Barbosa. 156

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(*) Rodolfo Gustavo da Paixão

(Entre Rios de Minas, 1853 – 1925) foi um militar e político brasileiro. Foi nomeado governador do estado de Goiás, em 24 de dezembro de 1889, governando o estado de 24 de fevereiro de 1890 a 20 de janeiro de 1891 e de 18 de julho a 7 de dezembro de 1891.

Em Rodolfo Paixão, pressentindo a ausência do perigo, as crianças se equilibravam sobre os trilhos, cada vez menos transitados. Sombra e poesia. Foto – Demílton Dib.

ESTAÇÃO DE AMOROSO COSTA A estação de Amoroso Costa situava-se na linha onde é hoje a Helena Manzan Rodrigues, paralela à avenida São Paulo, no conjunto Tita Resende, situado no bairro de Amoroso Costa. Aberta como posto Oeste, em 1930, com o nome de estação Triângulo, já em 1932 se chamava Amoroso Costa (*), serA linha do Catalão foi construída entre 1888 e 1889 até Uberaba, tendo chegado em 1895 a Uberabinha (Uberlândia) e em 1896 a Araguari. Continuação da linha do Rio Grande a partir da estação de Jaguara, às margens do rio Grande e já em território mineiro, a ideia da Mojiana era alcançar Catalão, em Goiás (daí o nome), e dali seguir para Belém do Pará, coisa que nunca aconteceu. Na verdade, a Estrada Ferroviária de Goiás acabou por construir esse trecho, chegando até Goiânia e Brasília. Corredor dos Boiadeiros

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vindo de entroncamento para a linha do Catalão, da Companhia Mojiana de Estradas de Ferro, e a linha da Rede Mineira de Viação. Com a construção do entroncamento Amoroso Costa, entregue em 1979, passou a fazer parte dessa variante, já que o trecho do ramal de Catalão entre Uberaba e Jaguara estava desativado. Em Uberaba, o gado que se destinava à região de Belo Horizonte era embarcado na estação de Amoroso Costa km 2 (Ramal de Jaguara Uberaba km 0), assim como o que se destinava às cidades de São Paulo. Caso alguém não tivesse embarcado na estação de Uberaba, poderia alcançar o trem numa daquelas pequenas estações de Amoroso Costa ou de Rodolfo Paixão; o mesmo se dava com aqueles que por um motivo ou outro não tivessem embarcado na estação da linha Oeste de Minas, mais tarde REFESA – Rede Ferroviária Federal S.A., que ficava no local onde é hoje a Rodoviária da cidade. Lembra o engenheiro Onírio Barbosa que foi ele “quem coordenou a erradicação desta linha, até no Miusa, no governo João Guido. Em Amoroso Costa toda a tropa se arranchava”, diz o engenheiro Onírio Barbosa. “Ali, a boiada ficava retida num grande curral, construído de trilhos, enquanto aguardava o despacho para seu destino. Havia um desvio da ferrovia, de mais ou menos 600 metros, onde ficavam os vagões, às vezes, 40 deles, à espera do embarque do gado. A locomotiva vinha, engatava nos vagões, onde o gado entrava passando pelo embarcadouro, e levava os animais ao seu destino. Grande parte do gado ia para o frigorífico da Anglo, em Barretos. Perto de Ribeirão Preto fazia-se a troca dos truques (dois eixos de quatro rodas), de bitola métrica, ou seja, de um metro de largura, para bitola larga, de 1m60 de largura. De Campinas a São Paulo a bitola era métrica (estreita), na Estrada de Ferro Sorocabana. Próximo a Ribeirão Preto fazia-se o intercâmbio para bitola larga nas composições que levavam a Barretos, pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro.”

A nostalgia impregna tudo, inclusive o tempo, quando a ferrovia é obrigada a ceder lugar para o carro e o caminhão. Estação de Amoroso Costa. Foto – Demílton Dib.

EMBARQUE INTENSO NA ESTAÇÃO DISTÂNCIA DAS SOMBRINHAS E DAS CASACAS Considerado um dos maiores zebuzeiros do País nos anos 40, Antenor Duarte (Sacramento 1889 – 1981 Barretos) embarcava em Amoroso Costa o gado que comprava pelo sertão de Minas afora, principalmente no 158

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Noroeste do Estado, como o município de Unaí. Ele ia de carro, fazia os contatos com os fazendeiros, que passavam em torno de três dias ajuntando os animais que vinham a pé até Uberaba, acompanhando a comitiva. Também vinha gado de outros lados, que pousava nos Fanecos, antes de vir para cá. Quem conta fatos da vida de Antenor Duarte é o sobrinho Antônio Joaquim Duarte (28/07/1936). – “Por alguns anos, Antenor foi sócio de meu pai, Juca Duarte. O gado que ele embarcava aqui ia para o frigorífico de Barretos ou de Araçatuba. Era um volume enorme de animais que ele abatia por ano. Meu tio foi um empresário notável, um homem de grande visão, em todos os aspectos. Para se ter ideia de quem ele era, basta dizer que, quando faleceu, o ‘Repórter Esso’ (*), da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, informou o ocorrido. Ele vinha constantemente a Uberaba para visitar meu pai. É avô de Henrique Prata, presidente da Fundação Pio VII, entidade mantenedora do internacionalmente famoso Hospital do Câncer de Barretos. GARE DE RODOLFO PAIXÃO ÚLTIMO EMBARCADOURO

Mapa da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro - Fundada em 1872 Corredor dos Boiadeiros

A cidade desistiu de chegar até lá, naquela distância. Deu preguiça de andar ou esticar tanto as ruas, os rumos, os rumores. A paisagem sem relevo. Devo lhes dizer da feição de chapadão que toma aquele lugar, aquele andar de costas para Amoroso Costa. A estação de Uberaba, mais atrás ainda. A construção, pequena, é vista de longe por causa disso: o descampado, o relevo plano, pelado, de longe deixa ver o que se pronuncia do chão. A cor é de carne, alvenaria inglesa. A cobertura de telha francesa. A madeira, geralmente, não mente: pinho de Riga, que o cupim não rói e quando cortado perfuma o ambiente. A lembrança dá vida ao ato de lembrar, pois, que a documentação é pouca; de fato. Antes que tudo aquilo se acabasse, a vesperal de fotografias, as primeiras em cores, quase indefinições de tons, de imagens. É isso tudo que se tem de lembrança, quando é demolida a herança. 159


A ESTAÇÃO DE RODOLFO PAIXÃO (Próximo à Avenida Djalma Castro Alves) A estação de Rodolfo Paixão (*) foi inaugurada em 1915 para servir de entroncamento, na linha do Catalão, para o ramal de Igarapava. Há fontes que citam uma data anterior, 12/08/1912, mas não parece provável. Dando frente para um dos lados da estação ficava a fazenda de Manuel Francisco de Resende e Mariana Gonçalves Resende. Com o falecimento desta em 1915, os três filhos venderam suas partes. Uma destas, com a casa da sede, foi vendida para Antenor Amaro e deu origem à Fazenda Atalho, de Hermógenes Resende, onde hoje (2008) está o Conjunto Uberaba I. Em 1938, o relatório oficial da Mojiana ainda acusava a existência da estação, ao mesmo tempo em que anunciava a sua desativação: “A linha de Igarapava terminava seus trilhos no posto de Rodrigo Paixão sem qualquer vantagem e com prejuízo para os serviços de trens em geral. Foi por isso projetado o prolongamento da linha até Uberaba, com duplicação do trecho existente e supressão do posto, cujas instalações serão utilizadas pelo pessoal de via permanente, que ficará então dispensada de construções especiais. Entre Amoroso Costa e Uberaba, ligado à linha do Catalão,

Sobre a planura do chapadão, a pequena estação de Rodolfo Paixão se sobressaía, inclusive, pela importância para a economia regional. Acervo do Arquivo Público de Uberaba.

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Funcionários da Mojiana, com suas indumentárias peculiares, na estação de Cipó, município de Sacramento, no início do século XX. Acervo particular.

será construído também um triângulo destinado a locomotivas Mikado e Ten-wheel de 12 toneladas. Estas obras já foram iniciadas e serão concluídas em 1939”. Realmente, em 1940 ela já não aparecia mais nos guias. A sua morte foi causada pela construção da estação de Amoroso Costa, em 1930, muito próxima a ela e esta ponto de junção entre a linha do Catalão e a Rede Mineira de Viação. A estação, que ficava a menos de 3 km, foi desativada, pois perdeu a sua função. O próprio entroncamento deixou de existir nos anos 70, com a desativação do trecho Amoroso Costa-Jaguara e a retificação do ramal de Igarapava. (Fontes: Relatórios da Mojiana; Paulo CurI, Jundiaí, SP, Nelson Araújo e Gilmar de Oliveira, ambos de Uberaba, MG; Arquivo Público de Uberaba). No ano anterior, a Cia. Mojiana de Estradas de Ferro construiu um ramal até Uberaba, nas Minas Gerais, para o melhor aproveitamento da região agrícola e escoamento de mercadorias (principalmente gado) da chamada Alta Mojiana. A estação Coronel Orlando foi inaugurada no dia 25 de dezembro de 1901, em um terreno da área da fazenda Boa Vista (doado pelo Coronel Francisco Orlando Diniz Junqueira – daí o nome da estação). No ano de 1906, a estação foi reconstruída e aumentada. Blog Acessa São Paulo. A Mojiana/FEPASA (Mojiana, Sorocabana, Araraquarense, Paulista e São Paulo-Minas) foi encampada pela Rede Ferroviária Federal AS. A estação de Rodolfo Paixão, no km 6, servia como entroncamento para o ramal de Jaguara e para Ribeirão Preto e Campinas. As duas estações, de Amoroso Costa e de Rodolfo Paixão, pertenciam à Mojiana/FEPASA e distavam uma da outra e a mais próxima, Amoroso Costa, ficava a pouca importante estação de Uberaba. Desde criança, Onírio Barbosa admirava a passagem dos trens e, com os primos, passava sabão de bola nos trilhos para ver se as composições patinavam. Diz ele que “Em frente à estação de Rodolfo Paixão ficava o pouso do Zizico Resende, uma fazendinha de sete alqueires, onde havia pouso para os peões e também o gado descansava. Hoje, essa área foi ocupada pelos loteamentos Uberaba 1 e Uberaba 2. A permanência do gado era cobrada por cabeça de animal; alguns centavos por rês”.

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A estação de Rodolfo Paixão situava-se em terreno do que é hoje a avenida Djalma Castro Alves, 1.990, próximo ao trevo da BR-190. Dela ainda resta, escondida entre diversas construções, uma casa que era destinada a operador. Ali funciona um centro espírita. UBERABA: DUAS ESTAÇÕES A TRADIÇÃO INGLESA E O MODERNISMO COSMOPOLITA Destruída na década de 60 para dar vazão à rua Artur Machado (antiga do Comércio), a velha Estação de Uberaba, construída em 1889, à maneira dos ingleses, com material importado da Europa, foi substituída por nova estação, que se construiu no extremo do alto Boa Vista, com projeto do arquiteto Afonso Reidy (Affonso Eduardo Reidy, Paris, 26/10/1909 - Rio de Janeiro, 10/08/1964). Naturalizado brasileiro, Reidy formou-se em arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes. Foi um dos pioneiros da arquitetura modernista no País, juntamente com Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, responsáveis pela transformação da paisagem arquitetônica brasileira. O MAM

Com sua arquitetura tradicional inglesa, edificada à base de produtos importados cimento, alvenaria, telhas francesas, madeira de pinho de riga, e grande parte dos instrumentos usados para seu funcionamento -, a imponente Estação de Uberaba, inaugurada em 1889, denotava a importância da cidade para a economia da vasta região compreendida por partes dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Goiás. Demolida para dar continuidade à rua Artur Machado. Acervo do Arquivo Público de Uberaba.

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A contrapartida arquitetura da “rígida” tradição inglesa surgiu nos anos 60, na construção da nova Estação da Mojiana, que tem projeto do francês radicado no Rio de Janeiro, Afonso Reidy. Iluminada por grandes panos de vidro, a obra expõe os elementos mais caros à arquitetura moderna, como as estruturas leves e funcionais, permitidas pelo concreto armado. Acervo do Arquivo Público de Uberaba.

– Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro é um de seus projetos mais emblemáticos. Recentemente (2009) foi tema do longa-metragem Reidy, A Construção da Utopia, dirigido por Ana Maria Magalhães.

Uma personagem da história do Brasil em Jaguara. Em 1889, chegava de trem de ferro à estação, que ficava às margens do rio Grande, o conde d’Eu. Jaguara era a última estação da Mojiana no trecho em construção. Um trole o trouxe a Uberaba, onde foi recebido pelos monarquistas, como Crispiano Tavares, que, segundo a tradição, o hospedou em sua bela Quinta da Boa Esperança. Na cidade, foi recebido com repicar de sinos e Te Deum na matriz. O conde veio em busca de consolidação dos ideais monarquistas. Sua visita, porém, acabou por provocar a união de pessoas de ideal republicano. Corredor dos Boiadeiros

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Capítulo

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Ao invés do apito do trem, a buzina estridente do caminhão apressado, marcando novo ritmo nos transportes, invadindo estradas de rodagem.

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A CHEGADA DO CAMINHÃO

Os caminhões passaram a dominar os transportes dos mais variados produtos, inclusive gado e cereais, por todo o Brasil, a partir dos anos 50, em substituição aos vagarosos carros de bois. Corredor dos Boiadeiros

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E A POEIRA IA BAIXANDO...

Fim da década de 40, início da de 50. Surgem os primeiros caminhões. Fase ruim e competição desonesta para o mascate de gado que viaja a pé ou de trem de ferro. Quem não aderiu ao caminhão ficou para trás. “Eu aderi, em 1952”, diz Chiquito Rosa. “O fenemê bufa sua locomotiva nesse mundo todo calado, capado. A caligrafia dos pneus escreve léguas de textos no chão. Nos reflexos verdes o Fenemê avista pelas distâncias duas torres. E o grito de suas cornetas esmurra o silêncio da tarde. Do caminhão a vista se alegra, se alarga, sacudida, trêmula; O coração queima gravetos secos quando o caminhão atravessa a ponte de madeira como se anunciasse o fim da guerra. O filho se anuncia à mãe com a buzina da juventude”.

– “Não faz mais sentido trans-

portar gado através da ferrovia. Com a chegada do caminhão, outro personagem surgiu: o empresário proprietário da frota de caminhão, que se tornou um homem de posse e de projeção, incorporando-se à sociedade”, como ressalta a historiadora Eliane Marquez, em depoimento a este autor.

– “A popularização dos caminhões mudou o tempo e o sentido dos transportes e, à medida que as rodovias ganhavam melhorias ou iam sendo asfaltadas, as boiadas iam desaparecendo dos corredores. Ao invés de atravessar a pé Estados, regiões e municípios, o gado era engradado na carroceria dos Fenemês, nome popular dos caminhões da Fábrica Nacional de Motores (FNM), e alcançavam seus destinos em tempo recorde. Onde não foram transformados em estradas vicinais, os corredores foram invadidos pelo mato ou integrados às fazendas e às cidades”. “O caminhão foi ponta de lança do nascimento da indústria automobilística brasileira. Dos 321,1mil veículos fabricados a partir de 1957, quando a indústria foi criada, a 1960, os automóveis ‘trafegaram na rabeira da estatística’: 48,10% eram caminhões; 35%, utilitários, e apenas 16%, automóveis. Voltado para a modernização do País, Getúlio Vargas incentivou a criação da indústria automobilística, desejoso de ver a produção de caminhões. Ao invés de gastos exorbitantes com a importação de veículos – “US$ 166,1 milhões em 1951, mais do que era gasto com trigo e petróleo, 60% dos quais referentes a caminhões, que exigiam desembolso de quase US$ 100 milhões/ano”. 166

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– “Mais preocupado com a política e a balança de pagamentos, é pouco provável que Getúlio imaginasse que o Brasil tivesse, um dia, a quinta maior indústria de caminhões do mundo, que de 1957 até 2005 produzisse quase 1,5 milhão desses veículos. Embora o primeiro caminhão nacional – um Ford F-600 a gasolina, com motor V8 de 167 cv – tenha sido feito em 1957, o País já montava caminhões antes com considerável quantidade de peças nacionais. A Ford começou em 1919; a General Motors, em 1925, e a primeira montadora especialista na montagem de caminhões, a International Harvester, chegou em 1926. A Fiat veio em 1928. Mas, com a quebra da Bolsa de Nova York (1929) e o fim do ciclo do café, o negócio de caminhões desabou e só seria retomado em 1946. É quando a Vemag traz o Kenworth e, em 1949, a FNM monta no Rio mais de duzentos Isotta Franschini. Em 1951, a estatal passa a montar o Alfa Romeo D-9500. A FNM fora criada em 1938, pouco antes da guerra, para produzir e dar manutenção a motores de avião, mantendo-se nessa atividade por mais de dez anos. Em 1949 passou a ser empresa de economia mista para a montagem de caminhões, mas a Isotta Franschini vai à falência na Itália, um ano depois. Em 1958, a FNM lança o modelo D 11.000, da Alfa Romeo, vendendo quatro mil unidades. Carinhosamente apelidado de Fenemê, desde que foi lançado, em 1956, teve sua produção encerrada em 1960. A FNM produziu cerca de 15 mil unidades, aí incluídos chassis de ônibus. Com a concorrência já fortemente acirrada nos anos 60, a FNM começa a perder mercado. Em 1967 operava com apenas 38% da sua capacidade”. (Dados obtidos nos sítios da internet). O TREM DE FERRO E O CAMINHÃO “Com a chegada do caminhão, o transporte ferroviário tornou-se inviável”, comenta Onírio Barbosa. “Ao invés de tocar o gado a pé, por longas distâncias e com grande perda de peso, o caminhão passou a ir à fazenda e em poucas horas já estava no frigorífico com o gado. Por volta de 1978, um trem conduzindo bois de Goiás para São Paulo tombou próximo à estação de Calafate e o gado se dispersou pelo campo. Foi praticamente a última viagem de gado num trem de ferro naquele trecho. Os vagões de transporte Corredor dos Boiadeiros

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de gado foram desativados ou transformados em graneleiros. Grande parte da produção de grãos do Brasil Central (milho e soja – Uberaba é o maior produtor de ambos, em Minas Gerais, e um dos maiores do Brasil) e do enxofre, a matéria-prima importada do Canadá e de Israel para a produção de adubos pela Fosfertil (cerca de 1 milhão de toneladas), vinha em direção a Uberaba por ferrovia. Vem da Bahia e de Curitiba para a Fosfertil e para as misturadoras Manah e Fertibras. Hoje, uma locomotiva transporta 1.700 toneladas e um comboio transporta três vezes mais, com a vantagem de não ter o pedágio rodoviário e, ainda, ao chegar ao porto de Santos, a linha ferroviária é paralela às embarcações onde são descarregados os produtos. Os caminhões aguardam o navio”. A CURVA DA DESPEDIDA FUMAÇA NO AR Sem mais soltar as gigantescas baforadas de fumaça negra, o vagão atravessa a rua João Pinheiro sobre o antigo viaduto de ferro, segue macetando os trilhos, estremece as estruturas do viaduto de concreto quando passa cortando a rua Espanha, parando o trânsito de automóveis, motociclistas e pedestres. Depois submerge num corte profundo feito em paredes de argila, passando sob a avenida Elias Cruvinel. Emerge novamente sobre a superfície rasa e plana, apita fortemente para atravessar a antiga rua Panamá, de lá se afastando para traçar uma grande curva ao fundo com o intuito de ganhar visibilidade da área da qual se distancia e assobia... Da banda de lá, o condutor do trem enxerga a rua descalça de sua infância e, para saudar um tempo que é fina fotografia e é memória, parafina, a infância lembrada como “perfeita” naquele lugar, abana a mão esquerda para a paisagem tocada de verde e de longas lembranças. Puxa a corda do sinal, fazendo o apito da locomotiva soar fortemente, um som de assustar o dia e despertar a comitiva, a boiada, os personagens das chácaras, das casas e das coisas que por tanto tempo ocuparam esses verdes vazios, esses terrenos agora vagos, essa memória agora vadia, esta verdade agora redigida.

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Forçado pela indústria automobilística internacional, o trem de ferro toma rumo indefinido, até que os carros de passageiros, que fizeram a fortuna da imigração e da integração nacional, desapareçam na grande curva da História. Acervo do Arquivo Público de Uberaba.

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As carreatas na procissão de Nossa Senhora da Abadia, em Uberaba, trazem de volta elementos relativos aos tempos do comércio de gado: os carros de bois e os “boiadeiros”. Fotos - Fabi Caiado. 2012.

A TROPA ENVÉM DE VOLTA? UM MILAGROSO RETORNO Na manhã do último sábado anterior à festa de Nossa Senhora d’Abadia, um carro de bois de duas juntas, com a calma que lhe é peculiar, milenar, sai pelas ruas estreitas e largas da antiga Colina da Misericórdia (*). Atrás da condução ancestral, dezenas de jovens cavaleiros embandeirados, muitos deles tocando berrante, antecipam a chegada do andor da santa protetora da cidade. De certa forma, esta cavalgada com elementos evocativos da tradição rural rememora a passagem das tropas e boiadas pelas ruas sertanejas da cidade que não têm como negar suas origens e destinos ligados ao campo. A volumosa cavalgada de fé, de recreação e de autoafirmação passa e as ruas também passam a ter cheiro de urina e de estrume de vaca e de cavalo, elementos visuais e olfativos que remetem imediatamente ao trânsito de animais cavalares e bovinos do tempo que precedem ao tráfego de caminhões e automóveis, que hoje dominam o movimento das ruas da cidade e rodovias do País. A carreata foi um momento, um movimento nostálgico. Uma página arrancada do calendário obsoleto. 170

(*) Colina da Misericórdia, mais tarde bairro ou alto da Abadia, ou Grande Abadia. Tinha este nome porque numa de suas ruas o santo capuchinho Frei Eugênio Maria de Gênova (Oneglia/Itália 1812 – Uberaba 14/07/1871) construiu a primeira Santa Casa de Misericórdia de Uberaba. Corredor dos Boiadeiros


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Adeus, carro de boi Andando naquele sertão, Adeus, tempo que foi Só trago recordação.

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O presente livro, iniciado em 2011, acabou de se imprimir, em 30 de maio de 2014, em Uberaba/Brasil.

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DEPOIMENTOS Corredor dos Boiadeiros

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ADAIR Pereira Santos (Uberaba 27/setembro/1941 -), depoimento ao autor em 25/março/2014) ANA MARIA Dair Fiúza (Uberaba 29/maio/1951 -), depoimento ao autor em 26/ outubro/2012. ANTÔNIO ALEXANDRE Amaral (Uberaba 18/abril/1935 -), depoimento ao autor em 11/agosto/2012. ANTÔNIO FRANCISCO de Faria (Uberaba 15/março/1944 -), depoimento ao autor em 12/junho/2012. CHIQUITO Rosa, depoimento ao autor in “A Agonia dos Mascates”, Jornal da Manhã, Uberaba 01/fevereiro/76. DÁRIO Mendes Oliveira (Uberaba 08/julho /1936 -), depoimento ao autor em 18/outubro/2013. DJALMA ANTÔNIO Abrão (Uberaba 05/setembro/1947 -), depoimento ao autor em 12/agosto/ 2012. EDÉSIO Cruvinel Borges (Uberaba, 28/outubro/1926 – idem, 08/outubro/2006), depoimento ao autor em 19/setembro/2000. EDUARDO Gomes (Uberaba 07/fevereiro/1954 -) e ANTÔNIO HENRIQUE Gomes (Uberaba 16/junho/1957 -), depoimentos ao autor em setembro/2013. ELIANE Mendonça Marquez Resende (Uberaba 30/junho/1944 -), depoimento ao autor em agosto/2012. ELZA Fidalgo Dib (Uberaba 04/junho/1925 -), depoimento ao autor em 25/ junho/2012. FRANCISCO Cavalcante (Veríssimo 08/fevereiro/1913 -), depoimento ao autor em 22/fevereiro/2013. Eurípedes de Almeida (Uberaba 09/fevereiro/1937 -) , depoimento ao autor em 23/agosto/2012). GILBERTO Gouvea (Piedade do Rio Grande MG, 26/janeiro/1946 -), depoi174

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mento ao autor, em 24/novembro/2013. HILDA MARIA Fachinelli (Uberaba 03/janeiro/1930 - ) e a filha ADORVINA Fachinelli, depoimentos ao autor em 15/junho/2012. JOÃO ONOFRE Martins (Pirulito Berranteiro), depoimento ao autor in “O Berranteiro”, Jornal da Manhã, 08/abril/1984. JORNAL CIDADE HOJE, Caixa Postal, 23/junho/1988. JOSÉ LÁZARO Carvalho (Juca Marceneiro, Uberaba 01/novembro/1945 -), depoimento dado ao autor em 15/junho/2012. MARIA ANTONIETA Borges Lopes (Uberaba 14/novembro/1940 -), depoimento ao autor em 10/outubro/2012. MARIA CARMELITA Rodrigues da Cunha (Uberaba 10/agosto/1944 -), depoimento ao autor em 11/agosto/2012. MARA LÚCIA Gonçalves Santos (Uberaba 10/março/1960 -), depoimento ao autor em 15/junho/2012. MARTA Viana Bruno (Uberaba 13/maio/1943 -), depoimento ao autor em 12/fevereiro/2012. MÁRIO Cruvinel Borges (18/maio/1921 -), depoimento ao autor em 18/ maio/1921. MAURÍCIO Barreto Muniz de Carvalho (Uberaba /28/junho/1958 -), depoimento ao autor na revista JM Magazine, edição 45, 2014. MIGUEL Árabe Neto (06/março/1948 -), depoimento ao autor em 30/agosto/2012. NEWTON Lázaro Siqueira (Araguari (MG) 09/novembro/1935 -), depoimento ao autor em 22/outubro/2012. NIVALDA Gomes Siqueira (Uberaba 26/abril/1938 -), depoimento ao autor em 23/outubro/2012. OLÍCIO FRANCISCO Vieira, depoimento ao autor in “Congo: O Canto e a Corredor dos Boiadeiros

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Dança dos Homens”, Jornal da Manhã, 14/maio/1977. ONÍRIO Reis Barbosa (06/janeiro/1940 -), depoimento ao autor em 15/julho/2012. ONOFRE Martins (Pirulito Berranteiro), depoimento publicado no Jornal da Manhã em 08/abril/1984. PEDRO Argondizzi (Uberaba, 16/13/1929 -), depoimento ao autor em 26/ outubro/2012. PEDRO Santana (Uberaba 19/fevereiro/1922-), depoimento ao autor em 15/ outubro/2012. REINALDO Valdir Pális (Uberaba 12/agosto/1936 – idem 10/março/2014), depoimento ao autor em 23/agosto/2012. ROMEU Borges de Araújo (19/novembro/1931 -), depoimento ao autor em 12/junho/2012. THIAGO Franco Cançado (Campo Florido, 05/10/1934 -), depoimento ao autor em 27/outubro/2012. VIDAL FRANCISCO Alves, em depoimento ao autor in “Do Próprio Animal o Artefato que o Domina”, Jornal da Manhã, 09/maio/1984.

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BIBLIOGRAFIA DA OBRA Corredor dos Boiadeiros

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ALANCOURT, Luís d’. Memórias Sobre a Viagem do Porto de Santos à Cidade de Cuiabá, Belo Horizonte, editora Itatiaia/São Paulo, Universidade de São Paulo, 1975. BILHARINHO, Guido. Uberaba: Dois Séculos de História (Dos Antecedentes a 1929), edição Arquivo Público de Uberaba, 2007. BILHARINHO, José Soares. História da Medicina em Uberaba, edição da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1980. Vol. 1. BORGES, Joaquim Adolfo de Carvalho (Conquista 19/outubro/1926 - Uberaba 22/fevereiro/2011). Nhonhô – Nos Caminhos das Boiadas, editora Vitória, Uberaba, 2009. CUNHA, João Gilberto Rodrigues da - Caçadas de Vida e de Morte, editora Peirópolis, São Paulo, 2011. ESSELIN, Paulo Marcos. A Pecuária Bovina no Processo de Ocupação e Desenvolvimento Econômico do Pantanal Sul-Mato-Grossense, 1830- 1910, editora UFGD, Campo Grande, 2011. FARIA, Sheila de Castro. Dicionário do Brasil Joanino 1808 – 1821, organização de Lúcia Bastos Pereira das Neves e Ronaldo Vainfas, editora Objetiva, Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 2008. GIFFONI, Luís. Dom Frei Manuel da Cruz, editora Pulsar, Belo Horizonte, 2008. MACHADO, Paulo Coelho. Pelas ruas de Campo Grande – A Rua Velha, Vol. I, Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 1990. NABUT, Jorge Alberto. Coisas que me contaram – Crônicas que escrevi, editora Vitória, Uberaba, 1975. PALMÉRIO, Mário. Chapadão do Bugre, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 12ª edição, 2002. RAMOS, Hugo de Carvalho, “Caminho das Tropas”, de Tropas e Boiadas, Lacerda Editores, Rio de Janeiro, 2003. TAUNAY, Visconde de. Cartas da Campanha de Mato Grosso – 1865-1866, 178

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edição da Biblioteca Militar, Rio de Janeiro, 1944. Tecelagem Manual no Triângulo Mineiro – Uma Abordagem Tecnológica, edição da Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Fundação Nacional Pró-Memória, apresentação Marcos Vinícius Vilaça, Secretário da Cultura, Brasília, 1984. Autores citados por Paulo Marcos Esselin: CAMPESTRINI, Hildebrando. Santana do Paranaíba: dos caiapós à atualidade: Prefeitura Municipal de Paranaíba, 1999. MARTINS, Gilson Rodolfo. Santiago de Xerez: uma problemática para a arqueologia histórica. Anuário de la Academia Paraguaia de la Historia, 2002, V. XLII. Citado por Paulo Marcos Esselin. RESENDE, Eliane Mendonça Marquez de. Uberaba: Uma Trajetória Sócio Econômica (1811 – 1910). Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1983. SANTOS, Rinaldo. O zebu. Uberaba: agropecuário tropical Ltda, 1988. SODRÉ, Nelson Werneck. Oeste: ensaio sobre a grande propriedade pastoril, editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1941.

ELETRÔNICOS COSTA, Leopoldo. A História dos Frigoríficos no Brasil. stravaganza.blogspot. com.br,março de 2011. Blog de Roberto Correia.

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DIVERSOS Corredor dos Boiadeiros

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FONTES IMPRESSAS “A Congada no Sertão da Farinha Podre”, Correio Católico, Uberaba, 10/ maio/1969. - “Ritual do Moçambique e dos Congos” – Jornal da Manhã, Uberaba, 17/agosto/1975. – “Congo: O Canto e a Dança dos Homens”, idem, 14/maio/1977. – “Anuário Folclórico de Uberaba”, idem, 02/setembro /1977. - “O Berranteiro”, idem, 08/abril/1984. – “Do Próprio Animal, o Artefato que o Domina”, idem, 09/maio/1984. - “Cachimbo – Marco e Memória na Guerra do Paraguai”, idem, 28/maio/1988. – de Jorge Alberto Nabut.

LETRAS DE MODAS DE VIOLA - Neste Triângulo Mineiro..., in “Meu Tempo de Peão, Do catira eu despedi..., in “Despedida do Catira”, de Ranulfo Borges de Morais. - Vou conta pra vocês..., in “O Berrante que eu tocava”, de José Barbosa. - Muitos anos fui roceiro..., in “Vida do Lavrador” e “Oi, Saudade”, de Manoel Rodrigues da Cunha (Jubaí, Conquista, MG, 18/novembro/1891 – 22/janeiro/1957, Uberaba, MG). - Fui um carreiro..., in “O Carreiro”, de Jair Gomes Seabra. - “Menina dos Olhos Verdes”, de José Barbosa. - Adeus carro de boi..., in “Adeus Primavera”, de Domingos Gomes Seabra. - “Adeus Estado de Minas”, de Manuel Germano. - Obras citadas em: Catira – A Poesia do Sertão, de Gilberto de Andrade Rezende, Oficina das Artes Iara Lins, Uberaba, 2004.

POEMAS - Os cruzeiros de São Benedito, in “Uberaba de Uma Vez”, de Gabriel Toti, in Poetas do Triângulo Mineiro – Antologia, de Guido Bilharinho, edição da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1976. “Compra de Caderneta” e “Vó Sara” - de Jorge Alberto Nabut in Geografia da Palavra. “Arroz em Casca” e “Palha de Arroz”, poemas inéditos do autor.

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BIBLIOGRAFIA DO AUTOR Corredor dos Boiadeiros

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LIVROS HISTÓRIA Coisas que me Contaram, Crônicas que Escrevi. Uberaba, editora Vitória Artes Gráficas, 1978. Desemboque: Documentário Histórico e Cultural, coordenação. Uberaba, Fundação Cultural de Uberaba/Arquivo Público de Uberaba/ Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1986. A Igreja em Uberaba – História Até 1937, coordenação. Uberaba, Fundação Cultural de Uberaba/Museu de Arte Sacra, 1987. Memórias de Mariana Abdanur Nabut, organização. Uberaba, edição do Organizador, 1995. Fragmentos Árabes – Dores de Santa Juliana e Uberaba: Memórias do Século XX. Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2001. 2ª edição: Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2007. POESIA Paisagem Provincial. Uberaba, edição do Autor, 1984. Capa de Ovídio Fernandes. Sesmarias do Corpo. Uberaba, edição do Autor, 1986. Fotos de Ramon Magela. Geografia da Palavra – Obra Poética 1965-2010. Uberaba, edição do Autor, 2010. O Círculo dos Bastidores. Visual baseado no trabalho artesanal de bordadeiras (inédito). Caderno das Chuvas. Trabalho de referência visual recriando graficamente diversas formas e contextos sobre o tema das chuvas (inédito).

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ESPETÁCULOS TEATRAIS Good Gin x Bad People, espetáculo de vanguarda. Criação, direção, coreografia e montagem. Uberaba, 1972. Good Gin x Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, espetáculo de vanguarda. Criação, texto, coreografia e direção. Uberaba, 1973. Laranja Partida em Quatro, musical. Uberaba, 1979. Montagem Para Uma Noite de Inverno, espetáculo. Concepção de Nabut e direção de Demilton Dib. Uberaba, 1976. Uma Noite Para Garcia Lorca, espetáculo. Montagem de Nabut e direção de Demilton Dib. Uberaba, 1977. FILMES Clarinda e Anastácio, média metragem colorido. Argumento, roteiro e direção. Uberaba, 1974. Estações, documentário de curta metragem. Roteiro e direção. Uberaba, 1976. Pastorália, poema cinematográfico de curta metragem. Concepção, roteiro e direção. Uberaba, 1976. PARTICIPAÇÃO EM ANTOLOGIAS POÉTICAS Poetas do Triângulo Mineiro, organização de Guido Bilharinho. Uberaba, Academia de Letras do Triângulo Mineiro/Bolsa de Publicações do Município de Uberaba, 1976. A Praça é do Povo – Coletânea de Poetas de Agora, organização de Joaquim Borges. Uberaba, editora Juruna, 1979. Cem Poemas Brasileiros, seleção e organização de Y. Fujyama e WlaCorredor dos Boiadeiros

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dyr Nader. São Paulo, editora Vertente, 1980. Poetas Uberabenses Contemporâneos, organização de Guido Bilharinho. Uberaba, revista Dimensão nº 25, 1996. A Poesia em Uberaba: Do Modernismo à Vanguarda, organização de Guido Bilharinho. Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2003. Portuguesia, organização de Vilmar Silva. Belo Horizonte, Anome livros, 2009. PARTICIPAÇÃO EM ANTOLOGIA DE FICÇÃO Uberaba 20 Autores, organização de Beto Viana e Artur Viana. Belo Horizonte, ed. Quixote, 2013. EDITORIAS Suplemento Cultural do Correio Católico, nº 31 e 32, Uberaba, setembro e outubro 1970. Convergência nº 08, revista da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, Uberaba, 1977. Convergência nº 25, edição comemorativa do bicentenário da chegada do major Eustáquio ao Sertão da Farinha Podre, Uberaba, junho 2012.

OUTRAS ATIVIDADES Dirigiu a Fundação Cultural de Uberaba (1981 a 1987) Criou o dirigiu o Museu de Arte Sacra (1987 a 2002) Criou e dirigiu o Museu de Arte Decorativa (2002 a 2004) 186

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Criou e dirigiu o Arquivo Público de Uberaba na sua fase de formação (1984 – 1985) Preside a Academia de Letras do Triângulo Mineiro (02/2013 a 02/2015).

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SUMĂ RIO Corredor dos Boiadeiros

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APRESENTAÇÃO Tiago Franco Cançado................................................ 07 INTRODUÇÃO Introdução............................................................... 13 AGRADECIMENTO Agradecimento ........................................................ 19 PREFÁCIO Paulo Marcos Esselin................................................. 20 Capítulo 1 MEMÓRIAS DO CACHIMBO ........................................ 25 No Limiar do Lugar.................................................... 26 Memórias do Visconde de Taunay................................ 26 Capítulo 2 MEMÓRIAS DO CACHIMBO 2 ...................................... 31 A Lembrança como Registro........................................ 32 Um Antigo Morador.................................................... 33 Vila São José: A Cidade se Esparrama.......................... 33 Cruzeiro do Cachimbo................................................ 34 Terno de Congado Batalhão do Norte........................... 36 Terno de Congado de Sebastião Mapuaba..................... 38 Capítulo 3 TROPEIROS E BOIADAS ............................................ 39 Caminho das Tropas.................................................. 40 Do Chapadão do Bugre.............................................. 41 Das Caçadas de Vida e de Morte................................. 41 Nos Caminhos das Boiadas......................................... 41 As Painas de Abril..................................................... 42 Quando a Poeira Baixava........................................... 43 Vida de Peão............................................................ 44 190

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A Travessia do Rio..................................................... 46 No Rastro da Memória............................................... 47 Memória de Mascate................................................. 53 Piedade do Rio Grande............................................... 55 Lembranças.............................................................. 57 Quando a Viola Dana a Cantar..................................... 59 O Encantamento da Viola........................................... 62 Viola caipira ............................................................. 63 A Viola e o Catireiro................................................... 67 Capítulo 4 UBERABA-CAMPO GRANDE ......................................... 69 Extremidades Tangenciais........................................... 70 Um Libanês na Comitiva............................................. 75 A Ousadia do Boiadeiro.............................................. 77 Zebuínos em Campo grande....................................... 79 A Comitiva de Zeca Pontes......................................... 80 O Chapadão Espreita o Mar......................................... 82 Capítulo 5 O CORREDOR DOS BOIADEIROS ................................ 85 A Rua – Travessia da Boiada....................................... 86 Espaço e Práticas...................................................... 88 Jogos Entre o Campo e a Cidade................................. 89 Tradição e Afinidade.................................................. 90 Vida e Ida e Vinda.................................................... 91 Corredor Pedro Lucas................................................ 93 Capítulo 6 AS CHÁCARAS, AS VIDAS, AS VIVENDAS ..................... 95 O Encanto das Vivendas............................................. 96 Córrego do Cachimbo................................................. 97 Registro de Imóveis................................................... 99 Escola de Cultura Física de João Teixeira Álvares................................................................... 100 Corredor dos Boiadeiros

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Chácara Chácara Chácara Chácara Chácara Chácara Chácara Chácara Chácara Chácara

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Mariana Argondizzi.................................. 105 Misael Cruvinel Borges............................. 107 Hugo Arantes.......................................... 108 Antenor Alves Gomes............................... 109 Jorge Fidalgo.......................................... 110 Zeca Pinto.............................................. 111 José Borges de Morais.............................. 111 Nenê Gomes........................................... 112 Josa Bernardino...................................... 114 Américo Fachinelli................................... 114

Capítulo 7 A INDÚSTRIA NA ROTA DO CORREDOR DOS BOIADEIROS ................................. 117 Indústrias no Corredor............................................. 118 Descaroçador de Algodão......................................... 118 Produtos Ceres....................................................... 122 Fábrica de Papel São Geraldo.................................... 124 A Pedreira dos Gomes.............................................. 124 Curtume Dornfeld – Memória Visual........................... 128 As Máquinas de Beneficiar Arroz................................ 130 A Indústria dos Frigoríficos....................................... 135 Frigoríficos no Brasil................................................ 136 Capítulo 8 O COMÉRCIO ALINHADO ÀS TRANSFORMAÇÕES ........ 139 Venda de Elias Nabut............................................... 142 Casa Cunha............................................................ 143 Venda de Barrige Nader Pális.................................... 143 Comércio dos Abrão................................................ 144 Comércio dos Dair................................................... 145 Lauanda e Habib Sallum.......................................... 146 Artesanato e Atividades Tradicionais.......................... 147 O Ferreiro e a Formatação da Ferradura..................... 149

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Capítulo 9 A FERROVIA – UM PROCESSO DE APROXIMAÇÃO ....... 151 O boi no embarcadouro .......................................... 152 A Ferrovia – Um Processo de Aproximação................. 151 O Boi no Embarcadouro........................................... 151 A Gare de Amoroso Costa........................................ 155 Estação de Amoroso Costa....................................... 157 Embarque Intenso na Estação.................................. 158 Gare de Rodolfo Paixão........................................... 159 Estação de Rodolfo Paixão........................................ 160 Uberaba: Duas Estações.......................................... 162 Capítulo 10 A CHEGADA DO CAMINHÃO ..................................... 165 E a Poeria ia Baixando............................................. 166 O Trem de Ferro e o Caminhão................................. 167 A Curva da Despedida............................................. 168 A Tropa Envém de Volta?......................................... 170 DEPOIMENTOS Depoimentos.......................................................... 173 BIBLIOGRAFIA DA OBRA Bibliografia da Obra................................................. 177 DIVERSOS Fontes Impressas – Letras de Modas de Viola – Poemas.................................................................. 181 BIBLIOGRAFIA DO AUTOR Bibliografia do Autor................................................. 183

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