No Velório de Nestor Jorge Ney Nunca me sensibilizei com o clima que um velório cria em grupos de parentes e amigos de alguém que já se foi. Não sei se posso me considerar frio ou até mesmo incapaz de me sentir tocado com aquele corpo que, inanimado, persiste em continuar entre nós. Acho contraditório o fato de todos serem tão amorosos e melhores amigos exatamente neste momento em que o pobre corpo, pedindo descanso, nada escuta e nada sente. Não, eu não sou frio. Realista, talvez. Mas isso não importava muito, já que naquele instante eu só fazia companhia ao meu amigo de tempos, e eu não poderia recusar apoiá-lo naquele momento, embora detestasse tal evento desestimulante. Era uma tarde que ajudava o ambiente a ter um aspecto mais propício ainda a tristezas e lágrimas de algumas pretensas carpideiras de velórios vizinhos, mas nesse ninguém se desesperava em choros. Em um cenário Nublado e um friozinho ocasionado por uma brisa que incomodava, eu torcia pela entrada imediata do defunto em seu buraco na terra. Mas faltavam ainda algumas horas. Nestor, um homenzinho franzino e sem nenhum atrativo, deixou mulher e filhos, aliás, filhos a perder as contas, mas tinham alguns entre eles que ficaram marcados em minha mente. O mais novo, por exemplo, um pestinha que não parava de pedir a todos para comprar biscoitos em uma cantina próxima, que mais parecia um dos jazigos cinzentos que penumbravam em volta, e ainda se tinha a dúvida de saber se o homem que servia os fregueses estava mesmo vivo, tal seu olhar morto — não querendo jogar com as palavras — e com uma curvatura acentuada, digna de dar inveja ao servo do Drácula. Também, Doralice, de quem gravei bem o nome, pois a chamavam a todo instante em que sua gargalhada era ouvida, não parecia se importar muito com o tal clima indesejado, ao contrário, parecia gostar. Era ela quem recolhia o dinheirinho que o menino ganhava das vítimas de seus pedidos e ia comprar os cobiçados biscoitos. Doralice era uma espécie de anfitriã simpática, principalmente com os amigos mais afeiçoados de seu pai. Suas roupas eram as únicas que destoavam de todas as outras no velório, nem precisava tanta diferença, bastava apenas o vermelho vivo de seu curto vestido para chamar a atenção. Ainda não sei se aquele rapaz franzino, com um olhar perdido na única janelinha daquela sala apertada, era realmente filho de Nestor. Ele tinha todas as diferenças necessárias para se distanciar do molde daquela família. Embora muito diversificada, percebia-se que todos eram um grupo em comum. Mas aquele sujeitinho estranho mais parecia esperar um ônibus que o levaria para a sua verdadeira família que não fosse aquela da qual ele fazia parte, nada falava e nada falou até o fim. Outros irmãos estavam sempre juntos, uns três ou quatro, não lembro bem, mas lembro que choravam e sorriam ao mesmo tempo em que mostravam pesar pela perda do pai. Ainda assim, uma senhorinha que estava ao meu lado comentou baixinho com seu marido que tudo não passava de falsidade, que eles queriam apenas se livrar daquele estorvo. Deixo claro aqui que, “estorvo” foi realmente a palavra usada e bem acentuada em seu comentário. Dona Selina. Essa sempre terá um destaque especial em minhas lembranças. Uma jovem senhora que tomava a posição clara de esposa ao lado do caixão que parecia ainda mais pesado
com a sua presença intrigante. Ela não tinha expressão em seu rosto, seus olhos estavam apertados e fixos no rosto de Nestor, como se quisesse enxergar alguma coisa nele que nunca conseguira ver. Sempre gostei de transformar imagens em textos em minha mente, mas aquela estava difícil de transpor, pendia entre ódio e dúvidas. Resolvi ficar com dúvidas, Nestor estava morto e merecia um pouco de dignidade. Uma mulher ainda mais estranha, abraçava Selina, que presumo ser sua irmã, sussurrava sempre algo em seu ouvido. A estranha esposa não mudava um músculo de sua expressão com o que ouvia, apenas afrouxava, de vez em quando, os olhos para depois apertá-los ainda mais, como se lembrasse de alguma coisa importante, mas Nestor não estava mais ali para respondê-la. Então eu voltava a pender entre o ódio e dúvidas. Foi esse quadro que me fez pensar que aquele corpo estirado em seu leito final tinha um leve sorriso de vitória por guardar seus segredos até o fim. Apesar do leve frio que fazia, um abafamento tomava conta do local de tal forma, que a ânsia de ir embora só aumentava e me fazia sofrer por falta de novos ares. Já não aguentava mais ser sacudido pelas pernas pelo moleque que suplicava dinheiro para biscoitos. Sofria com aquela gargalhada da extrovertida Doralice que me fazia doer até o estômago. Enlouquecia com o murmurinho de todos que parecia falar de tudo, menos de Nestor. Do vendedor da cantina em frente que me olhava fixamente quando não estava servindo a alguém, parecia a própria morte me fitando. O cheiro. Ah! O cheiro. Esse parecia que ficaria em meu corpo para sempre. Além de penetrar em meu cérebro por minhas narinas, sentia que meus poros abriam para dar entrada a esse odor mórbido desse momento. Pensei que todos os banhos de todos os tempos não dariam jeito naquela praga nauseante. Uma mistura de perfume de cravos com mofo das paredes úmidas daquela salinha mal arejada. Meu amigo era uma história à parte, sorria e entristecia com a facilidade de quem gosta de novela mexicana. Nunca tinha visto tão bela atuação associada a tantas horas de espera. Merecedor de um prêmio como melhor ator no local, e olha que ele não era o único, claro. Lembrei que não havia lhe perguntado o motivo de nossa presença, já que eu não conhecia o morto Nestor e nem ninguém que lá estava. Olhei-o de súbito e lancei a inédita pergunta: — O que você é do falecido, afinal? Amigo? Parente? Foi nesse momento que não me perdoei por não ter um Oscar em meu bolso. Ele tinha uma maldita lágrima rolando no rosto enquanto me respondia: — Ele foi quase um pai para mim! Seus olhos brilhavam enquanto seus lábios tremiam tentando acrescentar mais alguma coisa, mas preferiu baixar a cabeça e ficar calado. Foi nesse instante que Doralice se aproximou e apertou sua cabeça entre seus seios que quase saltavam de seu minúsculo vestido e começou a fazer-lhe carinhos em sua orelha. Ela o acalentava como a um cachorrinho. Eu já não acreditava mais que estava ali, já estava achando que eu tinha morrido e tinham me jogado no inferno. Ainda assim, fiquei sem saber o real motivo da nossa presença ali e é claro que a atuação de meu amigo não tinha me convencido, mas eu iria descobrir mais tarde. Ele nunca deixou nada escondido por muito tempo, como daquela vez em que o famigerado se ofereceu para tomar conta de um idoso,
avô de uma amiga nossa, ele tinha de passar um fim de semana com o pobre velhinho enquanto sua neta faria uma viagem a trabalho. Acho que foi a festa mais badalada que o maldito realizou. Foi cobrado entrada, convidados levaram bebidas e comidas e com direito a piscina e quartos alugados para quem se desse bem no festão que durou do sábado à noite e foi até à tarde de domingo. Enquanto isso o pobre senhor dormia embalado por doses cavalares de calmantes! Já não tinha esperanças de ir embora logo mesmo, então resolvi sair um pouco daquela salinha que pesava toneladas sobre mim. Mal podia sair do lugar, pessoas agrupadas que choravam, resmungavam, riam e xingavam momentos do passado com o bom Nestor. Por fim, consigo chegar ao menos à porta da capelinha. Não foi muito prazeroso, pois a morte me olhava atrás do balcão enquanto secava alguns copos. Não o percebi de imediato, mas um calafrio na espinha me fez virar o olhar em sua direção. Me dei conta de que ali não estava livre de um mau ambiente em parte alguma. Quando se dá um passo fora da pequena sala, se está a um passo da cantina e seu anfitrião das trevas. Eu estava cercado. Sem saída. Um pequeno corredor separava a capela da pequena vendinha, resolvi alongar minha saída até o fim dele para ver se encontrava ar puro. Eu estava relativamente tranquilo, verificando meu celular que resistia bem melhor que Nestor. Meu aparelho já não era o mesmo e nunca sabia se haviam ou não me ligado ou mandado mensagens. Na verdade, a um passo de um encontro com o falecido. Mantinha-me de cabeça baixa tentando lidar com os problemas do arruinado visor e não vi totalmente o homem que passou lentamente por mim. Olhei-o meio que de lado, não querendo que me visse observando seus passos lentos em direção à capelinha. Ele tinha algo de estranho que me perturbava. De certo não era parente e se fosse, um bem distante. Ele entrou no pequeno corredor e ainda o vi tirar o boné surrado e segurá-lo contra o peito com as duas mãos na porta da salinha que ficara em silêncio no mesmo instante de sua aparição. O homem, embora lento em seus gestos, parecia determinado a entrar e entrou. Alguns segundos se passaram antes que meu amigo viesse ao meu encontro suando e de olhos arregalados. Já não atuava mais, ele agora era medo real, pavor verdadeiro. — Você viu quem chegou? O Doutor! Não fazia ideia de quem era esse tal Doutor, não me parecia um médico, na verdade. Suas vestes eram surradas, barba por fazer e um longo cabelo grisalho, tão ralo que apenas umas mechas eram percebidas. Fiquei sabendo mais tarde que o nome Doutor foi dado a ele pelos cruéis momentos de dor que suas vítimas passavam ao serem cortadas cirurgicamente por sua navalha. Não sei bem o que meu amigo continuou falando naquele momento, minha curiosidade foi maior e voltei para a capela para ver como agia o tal Doutor. O cheiro lá dentro estava ainda pior, parecia ter tomado forma, quase uma neblina, principalmente com a chegada do tal Doutor. Quase tudo estava diferente naquele minúsculo lugar. Doralice, milagrosamente estava calada e se mantinha protegida atrás de alguns amigos do seu pai. O elétrico menino estava congelado olhando o estranho homem se aproximando do caixão, a não ser pelo seu mastigar incessante, seus biscoitos não acabavam. Apenas os mais velhos, muito mais curiosos perguntavam entre si quem seria aquela estranha figura, já que
ninguém ali sabia quem ele era. Mas tinha alguém que sabia, demorei a dar-me conta disso, mas o meu amigo sabia até mesmo seu apelido. Fiquei me perguntando como todos o temiam tanto mesmo sem o conhecer, mas bastava olhá-lo para se sentir perto da morte. Bastava senti-lo perto para arrepiar-se todo. Todos sentiam que o misterioso homem tinha uma proteção de um alémdesconhecido, do mal, talvez. Selina, que até aquele momento não parava com suas indagações silenciosas ao marido com seus olhares, percebeu a chegada do Doutor ao seu lado. Ela foi a única que se manteve como antes, apenas o olhava. Sua irmã, que até aquele momento estava abraçada a ela, misteriosamente se encontrava na cantina, como em um número especial de mágica, nem mesmo um relâmpago seria tão rápido como a sua saída do local. O Doutor se posicionou bem ao lado de Selina como um parente. Assim como ela fizera antes, ele olhava para o rosto de Nestor com mil perguntas sem respostas. Selina não deu muita atenção para o que estava acontecendo, afinal, Nestor sempre teve os seus mistérios e não seria agora que ela tentaria desvendar algum. A inerte mulher voltou seu olhar lentamente para o alvo inicial, o pálido rosto de seu marido. Como se qualquer outra pessoa estivesse ao seu lado, Selina retoma suas indagações apertando ainda mais os olhos sem dar atenção à sombra macabra posicionada ao seu lado. Nesse momento eu já conseguira dar uns três passos na direção do caixão, mas não conseguiria passar daquele ponto. Como o Doutor se aproximou tão facilmente do defunto? A resposta era clara, um abre-alas natural acontecia com a chegada do estranho visitante em qualquer lugar. Ninguém ousaria interromper sua passagem, mesmo não sabendo de quem se tratava. Bastaria sua presença repulsiva para que todos se afastassem, mas não o suficiente, pois sempre queriam saber quem ele é. Um risco que todos estavam correndo naquele momento em nome da curiosidade. Eu estava tão atento ao que estava acontecendo, que não me importei mais com o que meu amigo sabia ou não. Depois veria com ele as novidades trágicas que tinha para me contar. O silêncio permanecia e todos não tiravam o olhar do centro da capela, mas não era para Nestor, o motivo do evento, mas sim para aquela imóvel figura que agora suava bastante, seu semblante estava se transformando. Antes, na sua chegada, parecia sem expressão, mas agora seu rosto estava ficando avermelhado, além do seu normal, que me pareceu ser um bronzeado natural de alguém que constantemente está em contato com a luz do sol. Podia jurar que agora, o seu rosto transmitia o mais puro ódio, como se uma revoltante lembrança chegasse naquele momento em sua cabeça e o fizesse despertar para uma reação. Mas ainda parecia se controlar e não agir naquele instante, não parecia a hora, embora seus lábios se contraíssem cada vez mais. Olhei em volta e percebi que todos franziam a testa, assim como eu o fizera para entender a nova expressão do Doutor. Como os dois estavam muito próximos um do outro, meu olhar estendeu-se dele para Selina, ela parecia estar sozinha com seus pensamentos, poderia acontecer o que mais fosse que não se incomodaria. Milhões de sentimentos passeavam, rondavam e se renovavam naquela pequena sala e Selina só queria suas respostas. Ela estava imune a qualquer distúrbio que houvesse no local. Bateu-me novamente aquela curiosidade em relação ao meu amigo e resolvi caçá-lo com olhares, tentando pescá-lo onde estivesse. Olhei por cima da pequena multidão que se apertava atrás de mim, mas não o via de maneira alguma. Teria ele ido embora com medo ou estava escondido em algum lugar fugindo de dívidas não pagas? Voltei-me novamente para o Doutor e agora me parecia quase roxo, podia ver suas mãos tremendo enquanto apertava o surrado boné
contra o peito. Acho que ele não estava mais se mantendo na frieza que o acompanhara desde sua chegada. Foi quando a tempestade se aproximou, agora nada mais segurava o que estava para acontecer, pude prever a chegada de algo e resolvi dar um passo atrás empurrando quem estava bloqueando a entrada da sala. O Doutor puxou uma arma que brilhava muito de sua cintura, não dava para identificar de que tipo, mas provavelmente uma pistola, contrastava o metal brilhante e novo com o dono, maltrapilho e necessitado de um banho. Foi tudo tão rápido, três estrondos ensurdecedores, três clarões cegantes e uma evacuação tão súbita daquela sala, que a porta parecia dez vezes maior para a saída de tanta gente. O temido homem tinha atirado no peito de Nestor. Três tiros. Pela primeira vez percebi que aquela sala não era tão pequena quanto parecia. Tinha sim, muita gente. Eu, incrivelmente mais curioso do que com medo, não saí do lugar e não tirava os olhos daquela cena. Quase todos estavam do lado de fora escondidos atrás da parede da frente da capela. Algumas cabeças arriscavam aparecer nos cantos da porta, mas nada além disso. Selina, eu, Doutor e claro, o defunto Nestor, éramos as únicas pessoas que ali ficaram, imóveis, eu não acreditava no que acabara de acontecer. Agora eu podia ver a arma na mão do atirador, ainda saía alguma fumaça do cano e ele parecia descansar apontando-a para o chão e de ombros arriados. O Doutor parecia aliviado, percebia-se pelo seu corpo relaxado diante do caixão, mas seu olhar não mudava de direção, o endereço era sempre o rosto de Nestor. Consegui, enfim, mudar meu foco para Selina, inacreditavelmente, ela parecia estar com o mesmo olhar de antes para o seu marido, não questionava mais com olhares. Gelei quando lentamente ela começou a esboçar um sorriso de satisfação, seus olhos arregalaram-se pela primeira vez, parecia que ela mesma tinha atirado em Nestor, com a diferença de que sua vontade era de que, o falecido, estivesse vivo para receber o merecido castigo. Uma lágrima caiu enquanto o sorriso aumentava. Um prazer sem medidas tomou conta da viúva, só não percebeu quem ainda estava correndo dali. Agora, mais tranquilo, Doutor guardou sua arma sem muita pressa, pegou seu querido boné que tinha sido jogado ao chão na hora de seu ataque de fúria, enxugou o suor que ainda escorria pelo seu rosto com um lenço amarelado, encardido pelo excesso de uso e por quase nunca ter sido lavado, fez o sinal da cruz e lançou o seguinte comentário: — Eu disse que meteria chumbo em você. Taí, seu safado! Selina ainda sorria sem tirar o olhar de Nestor enquanto o Doutor saía lentamente, assim como entrou. Não será preciso comentar que seu caminho estava livre, e que todos os que ficaram estavam agora atrás da cantina à espera de que ele sumisse de vez. Um novo truque de mágica ocorreu e meu amigo apareceu ao meu lado num piscar de olhos, ainda pálido me perguntou se estava tudo bem. Mas a voz dele não foi o primeiro som que escutei naquela sala depois de tudo isso, Doralice já tinha dado sua gargalhada ainda antes de entrar de braços dados com um homem que eu não tinha visto por ali antes. Dessa vez ela estava mais escandalosa do que nunca, não parava de perguntar a um e a outro se estava tudo bem. Em alguns rapazes ela dava um beijinho para consolar, em outros um abraço como se fossem pobres vítimas do ocorrido. Perguntava-me se as mulheres do lugar não estariam precisando de tal atenção também, eram elas tão fortes que não necessitariam dessa delicadeza?
As coisas pareciam voltar a sua normalidade. Minhas pernas vez ou outra voltavam a ser sacudidas pelo garoto faminto. Aquele calafrio do início, como se a morte me observasse, me assombrava novamente, não sei o que aquele sujeito me olhava tanto por trás do seu pequeno balcão, um urubu me cercando à espera de minha morte para devorar-me. Ele era mesmo assustador. Selina voltou a ser abraçada por sua irmã e a ouvir seus sussurros, mas seu sorriso continuava ali, estampado, parecia que nunca iria se desfazer. Não importavam mais as respostas que queria de Nestor, só queria viver o momento. Olhar o seu rosto agora não era sua prioridade, tinham três furos desenhados em triângulo no peito de Nestor que mudava todos os seus sentimentos naquele dia. Agora ela podia enterrar um morto, o Doutor não confirmou a sua morte, mas fez o que ela sempre quis fazer, não importando se ele estaria vivo ou não, Nestor levou três belos tiros. Quem antes notou seu olhar de questionamento e sua paralisia emocional, entende agora seu sorriso: Satisfação, como se ela o tivesse executado e recebido um prêmio por isso. Os três, ou quatro irmãos que juntos estavam, juntos voltaram para o velório falando baixinho entre eles. Não estavam como antes, ainda pareciam assustados e, claro, o mesmo casal que estava perto de mim antes, se encontrava agora no mesmo lugar e sim, a senhora fez um novo comentário: — Parece até que eles se importaram com algo. Tá na cara que adoraram essa bagunça toda! O único que não voltou para seu espaço no velório foi aquele rapazinho franzino, que se sentia visivelmente deslocado, que de filho de Nestor nada tinha. Provavelmente aproveitou toda aquela confusão para abandonar o local e ir para onde se sentia melhor. Para mim, já fazia todo sentido do mundo continuar ali até que o defunto fosse enterrado. Quem sabe até lá algo mais aconteceria ou, quem sabe, descobriria alguma coisa sobre tudo que ocorreu. Minha curiosidade sempre me deixou em péssimas posições, mas agradecia por estar naquele lugar e naquele momento único e com um acontecimento tão inusitado. Minha criatividade necessita sempre de algo assim. Sempre me portei como um observador de pássaros, como se escondesse entre arbustos para acompanhar o comportamento humano. Voyeur, fofoqueiro, chame como quiser, mas a verdade é que sempre me rendeu boas criações. Hora de levar o já saturado corpo para seu destino final. Uma caixa com muitos segredos estava sendo fechada, Nestor os guardava triunfalmente consigo para a eternidade. Alguns se sentiam vingados, outros lesados por não acertarem suas contas com ele. Mas, o que esperar de um homem como Nestor? Era pai, marido, devedor e tinha suas gavetas fechadas em sua mente morta, assim como quase todo homem ao morrer. Ninguém poderia censurar o que não sabia ao certo, nem mesmo aquela que mais próximo estava dele, Selina, somente acompanhá-lo como deveria fazer uma esposa naquele momento até vê-lo sumir por baixo da terra. Era um cortejo lento até sua sepultura, o vento gelado agora parecia mais cortante e algumas pessoas pareciam se agruparem com mais fervor, não para consolo, mas para aquecer mesmo. Doralice quase não podia ser vista, ela estava de braços dados com dois sujeitos e dois outros os acompanhavam bem próximos, logo atrás. Eu mal podia ver o caixão que seguia na frente em um carrinho ruidoso e cambaleante, mas via sempre o pequeno moleque que ia de um lado ao outro como se imitasse um carro em alta velocidade, de vez em quando segurava o vestido de Selina e a acompanhava em
pequenos momentos. Todos pareciam ter esquecido o que acontecera, como se aquilo fizesse parte de todo o enredo de um enterro comum. Eu ainda esperava alguma coisa ou explicação para o ocorrido, mas se terminasse ali, me daria por satisfeito. Coisa assim, nem em contos de Suassuna. Aproveitei o momento e a distância que ainda deveríamos percorrer para sabatinar meu querido amigo que chorava baixinho, mas se mostrava presente em prantos por causa de seu lenço verde limão, comprado para a ocasião. Vez ou outra falava um pouco mais alto para mostrar tristeza, e dava certo, todos ao fundo o olhavam com pena, chegavam mesmo a pedir-lhe calma. — É o que nos espera, não podemos fugir nem sofrer tanto, meu amigo. Ele está em um bom lugar agora! Sempre achavam uma palavra de consolo para o safado. Eu o olhava de canto de olho querendo esbofeteá-lo, mas devido ao show que ele apresentava eu poderia ser linchado ali mesmo por simpatizantes. Eu tinha de seguir em frente calmo e me concentrar nas perguntas que tinha de fazer ao canalha. Acho que ele esperava por isso, sabia que eu estava muito curioso com tudo aquilo. Fiz a primeira pergunta: — O Nestor parecia dever muito! Você sabe o que o tal Doutor queria do falecido? — Olha, já tinha visto esse homem antes, sempre paradão e distante de todos, mas não sabia que ele tinha esses momentos de fúrias! O pobre Nestor devia mais que dinheiro pra ele, devia uma mulata capixaba que ele roubou do Doutor e levou para um quarto e sala num lugar que ninguém sabe onde é. O bandido descobriu um dia antes de Nestor morrer e mandou um recado pra ele, disse que ia encher ele de chumbo! Como você pode ver, ele não quis perder a viagem e mesmo o traidor estando morto o Doutor realmente o fez. Nesse momento ele olhou para os lados e aproximou-se mais ainda de mim e continuou baixinho: — Mas eu sei onde é a casa que essa maravilha está agora! O vento pareceu ainda mais gelado, ou era o meu sexto sentido me avisando que nessa história tinha algo de muito ruim. — Você sabe onde ela está? Então você a conhece? Perguntei com muito medo de saber a resposta, quase não querendo escutar, mas ela veio como uma pedrada na cabeça. Primeiro ele teve o cuidado de me levar até a beira do caminho e, perto de uma pequena árvore, me revelou baixinho, olhando para os lados com cuidado para não ser ouvido por mais ninguém: — A mulata é tudo na minha vida! Estamos juntos há algumas semanas! Por algum motivo eu sentia em minha espinha que deveria ficar bem longe dele, queria correr dali para fora do cemitério a todo custo, deixá-lo por lá e nunca mais estar perto dele enquanto o Doutor existir. Agora fazia sentido a fuga inesperada desse grande ator do velório com
a chegada do bandido, todos saíram da salinha, mas ele sumira do cemitério. Como ele era tão habilidoso para fazer tudo isso que fazia? Não quis mais conversa com ele, preferi continuar a caminhada e acabar logo com tudo aquilo. Ir embora. Continuamos em puro silêncio, a não ser pelo assuar de nariz, vez ou outra, do infeliz que teimava em se manter ao meu lado. Percebi que algo mudara no ambiente, novamente. Doralice estava sozinha com outra moça distante de todos, as duas pareciam discutir sobre algo muito importante, mas sempre baixinho, ao contrário de suas extravagantes gargalhadas ela procurava agora ficar em silêncio e só. A outra moça a deixou com seus pensamentos, passou por nós fazendo o caminho contrário do enterro, olhou profundamente para o meu amigo e balançou a cabeça negativamente reprovando-o de algo que novamente eu não fazia ideia do que seria. Olhei-o naquele momento e ele estava pálido como o próprio Nestor nunca poderia estar. Resolvi guardar para mim mais uma pergunta e continuar com as minhas dúvidas sem me aborrecer com as respostas, afinal, o corpo já estava sendo enterrado e logo estaríamos fora daquele lugar. — Você viu Doralice? Ela estava aqui neste momento, parece que evaporou, sumiu! Não tinha percebido isso e a pergunta de meu amigo passou a ser a minha naquele momento. Olhei para os lados mas não a via de forma alguma, mas lá atrás, depois da pequena colina, quase na entrada do cemitério, ela caminhava para o portão lentamente. Doralice sumiu depois dos altos muros cinzentos como um fantasma vestido de vermelho, já estava lá fora. Tudo já tinha terminado, caminhávamos para a saída. Selina mais aliviada com sua irmã ao seu lado e filhos conversando normalmente, meu amigo colado ao meu lado e calado como nunca tivera antes e sem atuar ridiculamente, algo o deixava incomodado. Aos poucos íamos nos dispersando, alguns chegavam mais rápido ao portão e outros ainda caminhavam distante. Perguntei para ele se estava tudo bem, mas nenhuma resposta saía daqueles lábios serrados e quase roxos do medo que sentia. Eu estava preocupado, percebi que aquilo ainda não tinha terminado, o terror não seria apenas na capela, algo mais estava por vir. No portão tive uma visão geral do lado de fora, eu me sentia como se estivesse a espera de um cobrador, felizmente não era eu o devedor, mas poderia sobrar alguma conta para eu pagar sem ter feito nenhuma dívida. Em parte estava aliviado por ter chegado até ali, o tormento tinha acabado e podia agora ir para casa sem maiores problemas, mas o destino não queria assim. Em frente ao portão, encostados em uma velha camionete, estavam Doralice, o Doutor e a tal moça que passou por nós dois olhando para o meu amigo. Os três agora fixavam o olhar no petrificado ser que estava ao meu lado. Ainda senti seu tremor, meu braço foi segurado com tanta força por ele que eu sabia que seu coração estava na garganta a ponto de sair boca a fora. — Vou te encher de chumbo, desgraçado! Esse grito foi escutado por todos que ali estavam. O Doutor não economizou seu conhecido ódio com o meu amigo e aquela vermelhidão no rosto do bandido voltou. Doralice me fez lembrar alguém, seu olhar para o ameaçado era parecido com o de Selina para Nestor, o mesmo apertar de olhos, as mesmas indagações sem respostas e o silêncio que não fazia parte de uma descrição
sobre ela. Percebi imediatamente que os dois não tinham apenas uma pequena amizade, eles mantinham um romance escondido, já que todos sabiam que ele tinha uma esposa fora do estado. Antes mesmo que eu pudesse olhá-lo, já estava estirado no chão, suas calças estavam molhadas de urina pelo susto, seu rosto estava branco como papel. Abaixei-me para acudi-lo mas eu nada sabia fazer, pedi por ajuda e um homem, que se dizia enfermeiro, aproximou-se dele, segurou seu pulso e incisivamente anunciou em alta voz: — Ele está morto! Meu amigo literalmente morreu de medo. Foi tão inacreditável que me senti flutuando acima de tudo aquilo, sentia meu corpo dormente e uma vontade de chorar muito grande. Ele era safado, enrolador e mentiroso, mas o único com quem eu tinha amizade ali. Foi um dos maiores trambiqueiros que já vi em minha vida, mas foi ele quem me ajudou quando precisei algumas vezes, não media esforços para isso, mesmo me cobrando de alguma outra forma depois. Seus olhos ainda estavam abertos, o enfermeiro em um toque de delicadeza os fechou como se o quisesse tranquilizar. Já não tinha mais certeza se tudo aquilo era real, passou de uma experiência de inspiração criativa para uma tarde de terror no cemitério. O enfermeiro já tinha se levantado e se distanciado, eu continuava ali do lado dele sentado no meio-fio segurando sua mão. Parecia que o velório agora era no portão do cemitério, todos estavam ao nosso redor querendo saber mais sobre o acontecido. Senti a aproximação de um vulto vermelho ao meu lado e pude ver suas pernas, era Doralice e seu olhar de Selina para o meu amigo morto, os mesmos olhos apertados e indagativos, era só isso que fazia parte dela no momento, queria respostas. Sensação de ter vivido aquele momento antes, recuperei minhas forças e procurei me levantar o mais rápido que pude, dei uns dois passos para trás e fiquei observando ao redor. Não precisaria ser muito inteligente para saber o que poderia acontecer logo após de tudo isso, já que uma promessa foi feita — “Vou te encher de chumbo, seu safado!” — não queria estar perto para confirmar o esperado, Doutor cumpria com sua palavra e pude evidenciar isso. Novamente aquele puxão em minha perna, conhecia aquilo, o menino grudado em minhas calças não me pedia dinheiro para biscoitos, apenas sorria para mim. Em volta, todos em silêncio e Doralice parada em pé diante do corpo no chão, o mesmo olhar de sempre. A roda de curiosos em nossa volta foi se abrindo lentamente e um caminho foi se formando, e nele o Doutor se aproximando lentamente. Dessa vez ninguém correu, ninguém teve medo, todos sabiam quem seria o alvo. Novamente ele se posicionou ao lado da “viúva” e, como um parente, o fitava com ar de quem estava velando. Dessa vez o Doutor puxou sua arma lentamente, sem mostrar nenhuma expressão fez seus três disparos no peito do pobre corpo inerte no chão. Lembro-me de Selina começando um sorriso nesse momento dentro da salinha, quando Nestor foi alvejado da mesma forma. Doralice não fez diferente, sem mudar o olhar de direção mostrou seus dentes alvos num sorriso assustador. Doutor guardou sua pistola sem muita pressa, ajeitou seu blusão para que a arma não ficasse à vista, fez o sinal da cruz e novamente resmungou: — Eu disse que meteria chumbo em você. Taí, seu safado! Acho que nunca me esquecerei dessa frase dita duas vezes naquele dia de forma tão marcante, aliás, não tenho como me esquecer de nada sobre aquele dia. Quase não percebi a
dispersão lenta de todos que estavam ali, me vi sozinho com um amigo morto e Doralice, que por sua vez, também não se demorou mais, nos deu as costa caminhando para não sei onde. Não sei quais foram as promessas feitas para ela, não entendia como um relacionamento assim pode ficar tão escondido e agora não importar mais a quem soubesse. Não sei o quanto mais ele devia a quem, mas agora entendo os questionamentos de Selina e Doralice, me pergunto se os dois, meu falecido amigo e Nestor teriam mais segredos em comum. Eu estava ali, sozinho com um morto em frente a um cemitério, como ironia, e sem saber o que fazer. Não chamaram socorro, polícia nem parentes. Éramos só eu, anestesiado, e ele... e uma chuvinha que começava a cair enquanto escurecia naquele fim de velório.