II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos

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Organizadores: Clarissa de Lourdes Sommer Alves Enrique Serra Padrós

II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos – há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai – 1ª Edição

Porto Alegre/RS Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul 2013


GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Governador Tarso Genro

SECRETARIA DA ADMINISTRAÇÃO E DOS RECURSOS HUMANOS Secretário Alessandro Barcellos

DEPARTAMENTO DE ARQUIVO PÚBLICO Diretora Isabel Oliveira Perna Almeida

ORGANIZADORES: Clarissa de Lourdes Sommer Alves, Historiadora, Técnica em Assuntos Culturais do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul Enrique Serra Padrós, professor do Departamento de História e dos Programas de Pós-Graduação em História e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa Clarissa de Lourdes Sommer Alves Diagramação e Edição Alexandre da Silva Ávila e Clarissa de Lourdes Sommer Alves

J28a

II Jornada de estudos sobre a ditaduras e direitos humanos : há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai ( 2 : 2013 : 24 a 27 abr. : Porto Alegre, RS ). Anais [recurso eletrônico]. – Porto Alegre : Companhia Riograndense de Artes Gráficas (CORAG), 2013. XX p. ISBN: 978-85-64859-01-2 Disponível na internet: http://www.apers.rs.gov.br/ 1. Diretos humanos. 2.Ditadura militar – América Latina. 3. América Latina - História. I. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. II. Alves, Clarissa Sommer. III. Padrós, Enrique Serra IV. t. CDU 98(=4)”2013”

Catalogação elaborada pela Biblioteca da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos/SARH. Bibliotecária responsável: Adriana Arruda Flores, CRB10-1285.


YO TE NOMBRO, LIBERTAD Música e Letra: Giancarlo Pagliaro

Por el pájaro enjaulado Por el pez en la pecera Por mi amigo que esta preso Por que ha dicho lo que piensa Por las flores arrancadas Por la hierba pisoteada Por los árboles podados Por los cuerpos torturados Yo te nombro Libertad Por los dientes apretados Por la rabia contenida Por el nudo en la garganta Por las bocas que no cantan Por el beso clandestino Por el verso censurado Por el joven exilado Por los nombres prohibidos Yo te nombro Libertad Te nombro en nombre de todos Por tu nombre verdadero Te nombro y cuando oscurece cuando nadie me ve Escribo tu nombre en las paredes de mi ciudad Escribo tu nombre en las paredes de mi ciudad Tu nombre verdadero Tu nombre y otros nombres que no nombro por temor Por la idea perseguida

Por los golpes recibidos Por aquel que no resiste Por aquellos que se esconden Por el miedo que te tienen Por tus pasos que vigilan Por la forma en que te atacan Por los hijos que te matan Yo te nombro Libertad Por las tierras invadidas, Por los pueblos conquistados Por la gente sometida Por los hombres explotados Por los muertos en la hoguera Por el justo ajusticiado Por el héroe asesinado Por los fuegos apagados Yo te nombro Libertad Te nombro en nombre de todo Por tu nombre verdadero Te nombre cuando oscurece cuando nadie me ve Escribo tu nombre en las paredes de mi ciudad escribo tu nombre en las paredes de mi ciudad Tu nombre verdadero Tu nombre y otros nombres Que no nombro por temor Yo te nombro Libertad


Dedicado a todos os que lutaram e lutam pela Liberdade!


Sumário

Apresentação............................................................................................................................................... 11 Introdução ................................................................................................................................................... 13

I – Ditaduras na América Latina e no Cone Sul: debates há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai .............................................................................................................................. 17 Regime Pinochet (1973-1990): Ditadura e Terrorismo de Estado no Chile Verónica Valdívia Ortiz de Zárate .............................................................................................................. 19 “Desde entonces la patria no es la misma”: impressões sobre o terror de estado no Chile Cesar Augusto Barcellos Guazzelli ............................................................................................................ 24 La agenda pendiente del proceso de paz salvadoreño: Justicia Transicional, Ley de Amnistia y Comisión de la Verdad Aleksander Aguilar Antunes ....................................................................................................................... 31 A ditadura de Stroessner no Paraguai e o controle da oposição: os mecanismos usados pela ditadura stronista visando ao controle da oposição Miguel Dos Santos ..................................................................................................................................... 39 Terrorismo de Estado na Argentina e a Operação Condor: uma análise a partir de documentos de denúncia Marcos Vinicius Ribeiro .............................................................................................................................. 46 Como eleger um ditador: Bolívia 1971 e 1997 Luciano Barbian .......................................................................................................................................... 52 11 de setembro de 1973: o golpe militar no Chile através do Jornal do Brasil Nicolas Mello .............................................................................................................................................. 58

II – Memórias e Ditaduras: aproximações do passado ........................................................ 67 A atuação política de oposição em um pequeno município do norte gaúcho durante o regime civil militar: memórias de Arude Gritti Fernanda Pomorski dos Santos e Gerson Wasen Fraga .......................................................................... 69 O golpe civil-militar e o mundo que se abria: notas e possibilidades do exílio na trajetória de Flávia Schilling (Brasil – Uruguai 1964-1980) Diego Scherer da Silva ............................................................................................................................... 76 É mais fácil comemorar tragédias do que reconhecer as barbáries da ditadura civil-militar brasileira: memórias do período no Oeste Paranaense Marcos Adriani Ferrari de Campos ............................................................................................................. 86 Índio Vargas e Jorge Fisher Nunes: os referenciais da resistência armada, durante o período da Ditadura Militar, vistas a partir das memórias de dois militantes de esquerda que atuaram no Rio Grande do Sul Nôva Brando ............................................................................................................................................... 94 A coleção “1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história” e a narrativa positiva da ditadura pelo exército Eduardo dos Santos Chaves .................................................................................................................... 103 O discurso político ideológico militar em torno da guerrilha de 1965 Ronaldo Zatta ............................................................................................................................................ 112

III – Ditadura e Aparatos Repressivos ................................................................................. 123 Anos de chumbo: uma análise dos aparelhos de repressão na ditadura civil militar e suas influências no Maranhão Wilson Pinheiro Araújo Neto ..................................................................................................................... 125


Ângelo Cardoso da Silva: Herzog gaúcho Graziane Ortiz Righi ................................................................................................................................. 132 Focos de ação comunistas no Maranhão e Doutrina de Segurança Nacional Sarah Fernanda Moraes Gomes .............................................................................................................. 142 Operando Informações (1975-1977): Atuação Repressiva e Evolução das Violações de Direitos Humanos no DOI/CODI/II Exército Diego Oliveira de Souza ........................................................................................................................... 150 Segurança Pública em dois atos: da polícia de repressão à polícia de aproximação Lívio Silva de Oliveira ............................................................................................................................... 160

IV – Ditaduras e Imprensa .................................................................................................... 169 Victor Civita e a Ditadura Civil-Militar Brasileira: a posição da revista Veja Edina Rautenberg ..................................................................................................................................... 171 O Tratamento das Revistas Semanais À Abordagem Do PNDH-3 Sobre A Questão da Memória e da Verdade Diego Airoso da Motta .............................................................................................................................. 180 "O Arauto do Bem e da Verdade": o Jornal do Comércio (1964-1965) e o apoio à ditadura civil-militar em Campo Grande Sabrina Rodrigues Marques ..................................................................................................................... 188 O Jornal A Razão e o discurso anticomunista Silvania Rubert ......................................................................................................................................... 193

V – Recursos discursivos e discussão conceitual acerca da Ditadura ............................ 201 O discurso da Ditadura na obra de Elio Gaspari * Carla Luciana Silva .................................................................................................................................. 203 Entre Civis e Militares: Conceitos e Versões do Golpe e da Ditadura Pós-1964 no Brasil Yuri Rosa de Carvalho e Diorge Alceno Konrad ...................................................................................... 208 Segurança Nacional: Uma Discussão Conceitual Aline Aparecida Faé Inocenti .................................................................................................................... 216

VI – Ditaduras: Arte, Cultura e Censura .............................................................................. 225 A Memória da Censura durante a Ditadura Civil Militar em Campo Grande/MS Mariana Duenha Rodrigues...................................................................................................................... 227 Memórias da ditadura nos Cinemas Latino-americanos contemporâneos Rosângela Fachel de Medeiros ................................................................................................................ 233 O malabarista, a farda e o nanquim: o governo Jango e golpe nas charges de Sampaulo publicadas no jornal Diário de Notícias em março e abril de 1964 Dante Guimaraens Guazzelli ................................................................................................................... 241

VII – Ditaduras em arquivo: documentos da repressão e da resistência ......................... 251 Análise do Processo Descritivo Como Produção de Conhecimento Arquivístico: o caso das oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos na ditadura militar Anna Luiza de Moura Saldanha ............................................................................................................... 253 O DOPS e os arquivos da repressão: as atribuições da Delegacia de Ordem Política e Social no Maranhão Manoel Afonso Ferreira Cunha ................................................................................................................ 261


Arquivos Repressivos da Polícia Política: o caso do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul Ananda Simões Fernandes ...................................................................................................................... 269

VIII - Debates sobre ditaduras no campo jurídico .............................................................. 279 Uma luta inconclusa: reflexões sobre a Lei da Anistia (L. 6.683/79) e o processo de redemocratização no Brasil Débora Strieder Kreuz .............................................................................................................................. 281 Bourdieu e o campo jurídico: debate sobre a autonomia do Supremo Tribunal Federal durante a ditadura militar brasileira (1964-1979) Mateus Gamba Torres .............................................................................................................................. 288 As vozes da contemporaneidade e a questão da imprescritibilidade dos crimes de tortura perpetrados na ditadura civil-militar no Brasil Fabiano Negreiros ................................................................................................................................... 293 A atuação do Poder Judiciário na Argentina frente aos crimes de lesa humanidade perpetrados pela Ditadura de Segurança Nacional (1976-1983) Patrícia da Costa Machado ...................................................................................................................... 301 A Comissão Nacional da Verdade e a Ausência de Função Jurisdicional Gabriela Goergen de Oliveira ................................................................................................................... 309

IX - Resistências e redes de solidariedade nas Ditaduras do Cone Sul ........................... 317 Los tortuosos caminos: a fuga dos argentinos para o Brasil, no marco temporal das ditaduras civismilitares de Segurança Nacional Jorge Christian Fernandez ....................................................................................................................... 319 Mortos e desaparecidos políticos no Brasil, no Chile e no Uruguai: notas sobre a atuação dos seus familiares Carlos Artur Gallo ..................................................................................................................................... 330 A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul e a formação de redes de solidariedade na fronteira Brasil-Uruguai Marla Barbosa Assumpção ...................................................................................................................... 339 Madres de Plaza de Mayo: o movimento que enfraqueceu o regime militar argentino (1976 – 1983) ... 347 Arianne Chiogna e Bruna Cardoso .......................................................................................................... 347 O Grupo Clamor e a atuação em redes na defesa dos Direitos Humanos frente as ditaduras do Cone Sul Guilherme Barboza de Fraga ................................................................................................................... 354

X – Outras experiências de repressão e resistência à ditadura ........................................ 363 A democracia brasileira não foi doada: a resistência na ditadura civil militar brasileira * Diorge Alceno Konrad .............................................................................................................................. 365 Mulheres vítimas da Ditadura Militar: luta e afirmação de gênero e os Direitos Humanos Giselda Siqueira da Silva Schneider ........................................................................................................ 379 Uma Visão sobre a Ação Popular (AP): do Socialismo Humanista ao Maoísmo Cleverton Luis Freitas de Oliveira ............................................................................................................ 386 A mudança de posicionamento da Igreja na Ditadura e a Repressão a Padres em São Luís- MA Marcos Paulo Teixeira .............................................................................................................................. 393 De Ditadura em Ditadura: o jogo duro das elites dominantes sobre o cidadão comum (1930-1964) Adriana Picheco Rolim ............................................................................................................................. 401


XI – Políticas de memória e Justiça de Transição.............................................................. 409 Direito de memória e perpetração da violência: o papel da identificação e ressignificação dos espaços de tortura e resistência na justiça de transição Christine Rondon Teixeira ......................................................................................................................... 411 Inicio de la Política Reparatoria como Política Pública María Teresa Piñero ................................................................................................................................. 420 Memória política ou políticas da memória? Memória, verdade e justiça a trinta anos do fim da ditadura na Argentina (1983-2013) Nicholas Rauschenberg ........................................................................................................................... 428


Apresentação A II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos realizada no Arquivo Público do Estado entre os dias 24 e 27 de abril foi um evento em que, mais uma vez, a Instituição reiterou o seu comprometimento com uma sociedade latinoamericana mais democrática, tendo em vista que este tema integra a agenda de trabalhos desta Casa desde o ano 2006. Comprometimento efetivado por meio da sólida parceria com o Departamento de História e o PPG em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialmente a partir da pessoa do professor Enrique Serra Padrós. Neste encontro foram debatidos estudos referentes às ditaduras militares brasileira, argentina, paraguaia, uruguaia, salvadorenha e chilena. Entre os inúmeros vieses pelos quais estas ditaduras foram examinadas, ressalto as pesquisas que abordaram as suas conexões e práticas repressivas assim como estudos que trouxeram as denúncias, as lutas e as resistências realizadas pelos familiares dos mortos e desaparecidos, além de pesquisas examinando a atuação dos exilados políticos, mencionando seus embates, redes de solidariedade e dificuldades de sobrevivência. Entre os diferentes trabalhos apresentados sobre a ditadura brasileira, destaco aqueles que examinaram o papel da mídia tanto na sustentação do golpe e do regime quanto se opondo e resistindo a ele. Nesse contexto, o posicionamento político de algumas instituições também foi analisado, entre elas, o Supremo Tribunal Federal e a Igreja Católica. Em consonância com os debates que estão sendo realizados nacionalmente, provenientes dos trabalhos das Comissões Nacional e Estaduais da Verdade, a II Jornada também trouxe para análise e reflexões, as incoerências jurídicas e políticas da Lei de Anistia Nacional de 1979, sobretudo, no que tange aos direitos humanos, uma vez que a tortura é considerada crime de lesa humanidade pela ONU e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Crime que a Lei de Anistia brasileira anistiou. Em síntese, a II Jornada foi um momento em que a comunidade presente discutiu e apresentou as pesquisas mais recentes sobre a temática das ditaduras e direitos humanos, e nela tivemos a oportunidade de comparar os limites e ambiguidades da Justiça Transicional brasileira onde o direito a Memória, a Verdade e a Justiça precisam ser realmente efetivados. A partir dessa publicação com certeza será possível ampliar o alcance da produção intelectual e dos debates travados ao longo do evento. Parabéns a todas e todos que se envolveram nessa construção! Isabel Oliveira Perna Almeida Diretora do Arquivo Público

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Introdução

Lembrar, pesquisar e refletir: resgatando a história e a memória do Cone Sul da Segurança Nacional

A presente obra é o resultado da II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos, evento bianual organizado conjuntamente pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) e pelo Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O sucesso da Jornada confirmou a certeza da necessidade de abrir espaços acadêmicos para a publicização e socialização de uma crescente produção de estudos e pesquisas sobre a temática do passado ditatorial recente da região. Dando sequência a experiência iniciada em 2011, a Jornada deste ano recebeu como complemento da sua marca de identidade o subtítulo “Há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai”. Dessa forma, marcamos o ano em que se reflete sobre as quatro décadas do ocorrido nos dois países, e mantemos uma das suas características essenciais: a de perceber as experiências traumáticas de segurança nacional do Cone Sul em perspectiva regional, fator que se relaciona com uma forma peculiar de olhar esse fenômeno histórico desde o Rio Grande do Sul. Em concomitância com abordagens que se desenvolvem em outros países da região, as histórias nacionais em questão, não ficam reduzidas as suas fronteiras, mas se projetam através dos efeitos produzidos pelos golpes de Estado que implementam ditaduras que possuem especificidades mais que, inegavelmente, se aproximam, se assemelham em certos aspectos e interagem intensamente quando definem determinados objetivos estratégicos comuns. Nesse sentido, como vasos capilares irradiadores de múltiplas formas de interação, complementação ou confronto, os exílios, as ações de resistência e solidariedade bem como as formas de atuação da conexão repressiva produzem um emaranhado de complexas relações que acabam conformando o mapa da segurança nacional regional das décadas de 1960 a 1980. Nesse ano de 2013 foram intensas as rememorações dos golpes de Estado do Uruguai e do Chile, seus impactos e significados na América Latina em meio à Guerra Fria, e sobretudo o significado do fim da experiência socialista da Unidade Popular. Mas também foi o ano em que rememoramos os 30 anos da redemocratização argentina, e com certeza, é o momento em que o Brasil – além do impacto de alguns avanços e grandes recuos da Comissão Nacional da Verdade, das comissões estaduais, bem como dos comitês regionais vinculados à sociedade civil (com poucas exceções) – vive a expectativa pelos “50 anos do golpe de 1964”, algo que será motivo de debates em todo o país e nos países vizinhos no transcurso de 2014. Em função dessas demandas, o encontro, realizado entre os dias 24 e 27 de abril de 2013, contou com uma programação variada: uma conferência de abertura, cinco mesas redondas, doze sessões de comunicações e uma atividade cultural-musical de encerramento. A conferência de abertura foi ministrada pela historiadora chilena Verónica Valdivia (Universidad Diego Portales/Chile), com o título Regime Pinochet (1993-1990): ditadura e terrorismo de Estado no Chile, e com comentários do professor Cesar Guazzelli, da UFRGS. As mesas redondas foram as seguintes: A imprensa como trincheira: denúncia e resistência, com a participação do jornalista Elmar Bonés e do cartunista Santiago; Brasil: mídias e ditadura, com os professores Carla Luciana Silva (UNIOESTE) e Nilo Piana de Castro (UFRGS); O mundo dos Exílios: repressão, resistência e sobrevivência, com os 13


historiadores Melisa Slatman (UBA/Argentina) e Jorge Fernández (UFMS); 40 anos do golpe no Uruguai: ditadura e terrorismo de Estado, com o depoimento de Cláudio Gutiérrez e os pesquisadores Ananda Simões Fernandes e Enrique Serra Padrós; e, finalmente, Brasil nos ‘Anos de Chumbo’: estratégias de resistência e sobrevivência, com os historiadores Janaína Teles (USP), Diorge Konrad (UFSM) e Caroline Silveira Bauer (UFPEL) e o depoimento de Suzana Keniger Lisbôa (Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos). A atividade encerrou com a participação musical do cantor e compositor Raul Ellwanger. Cinquenta e um trabalhos foram aprovados para apresentação no evento, e foram distribuídos nos seguintes doze painéis: “Ditaduras no Cone Sul”; “Memórias e Ditaduras: aproximações do passado”; “Ditaduras e Imprensa”; “Ditaduras: Arte, Cultura e Censura”; “Resistências e redes de solidariedade nas Ditaduras do Cone Sul”; “Outras experiências de repressão e resistência à ditadura”; “Memórias militares sobre a Ditadura”; “Recursos discursivos e discussão conceitual acerca da Ditadura”; “Ditaduras em Arquivo: documentos da repressão e da resistência”; “Políticas de memória e Justiça de Transição”; “Ditadura e Aparatos Repressivos”; e “Debates sobre Ditaduras no campo jurídico”. A abrangência das temáticas e a diversidade de origens dos campos de pesquisa confirmam a explosão das pesquisas sobre a história recente das experiências ditatoriais de segurança nacional. Cabe mencionar, ainda, a participação de pesquisadores de diversos estados do país (Maranhão, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo) e do exterior (Argentina, Chile e Uruguai). O livro digital que ora apresentamos se transformou em uma grande publicação, que garante ampla difusão à produção intelectual que foi apresentada, debatida, compartilhada e sentida ao longo dos quatro dias de evento em abril desse ano. Essa obra apresenta os quarenta e cinco artigos que foram efetivamente comunicados na Jornada, além de contribuições escritas de três palestrantes (Cesar Guazzelli, Diorge Konrad e Jorge Fernández), e da transcrição da conferência de Verónica Valdívia. Os textos foram organizados em onze sessões que identificam eixos temáticos aglutinadores, respeitando quase que integralmente a organização proposta para as sessões do evento: I – Ditaduras na América Latina e no Cone Sul: debates há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai; II – Memórias e Ditaduras: aproximações do passado; III – Ditaduras e Aparatos Repressivos; IV – Ditaduras e Imprensa; V – Recursos discursivos e discussão conceitual acerca da Ditadura; VI – Ditaduras: Arte, Cultura e Censura; VII – Ditaduras em Arquivo: documentos da repressão e da resistência; VIII – Debates sobre Ditaduras no campo jurídico; IX – Resistência e redes de solidariedade nas ditaduras do Cone Sul; X – Outras experiências de repressão e resistência à Ditadura; XI – Políticas de memória e Justiça de Transição. Com a publicação dos textos os promotores e organizadores da II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos garantem mais uma contribuição à série de debates das mais diversas tonalidades, matizes e perspectivas que vêm sendo travados no Cone Sul em torno dessa área temática, embora exista pretensão de maior incidência no que diz respeito à realidade brasileira. Acreditamos que assim contribuímos para aprofundar o circuito Ensino-Pesquisa-Extensão, fazendo com que as reflexões e a produção do conhecimento extrapolem cada vez mais os muros da academia, alcançando espaços mais amplos, de forma particular as salas de aula, mas também, de forma geral, todos os espaços societários onde se estabelece o debate e o contraditório, seja através da crônica jornalística, da produção artística, das ações de movimentos e organizações sociais que lutam por justiça e direitos humanos. Cabe registrar que, parte importante dos expositores, como do público presente na Jornada, se constitui de professores e futuros professores da rede de ensino. Sendo assim, há uma ênfase na origem da proposta tanto do evento quanto da circulação do material apresentado, de que se semeie o conhecimento produzido ou em fase de aferição no campo estratégico e mais universal da rede escolar, através da intermediação das novas gerações de docentes comprometidos com uma postura de resgate da Memória e da História, para que estas dimensões da identidade social sejam constitutivas de uma 14


perspectiva de cidadania e de dignidade política, que permita relacionar a violência e a impunidade do nosso tempo com a ausência de atuação da Justiça diante dos crimes de lesa humanidade produzidos pelas ditaduras de segurança nacional e reconhecidos historicamente como tais. Por fim, encerramos agradecendo a todos aqueles que possibilitaram tanto a realização do evento quanto dessa publicação, em que registramos seus resultados. Em especial, um agradecimento aos funcionários do APERS e aos expositores e convidados que se deslocaram desde os mais distantes pontos cardeais para abrilhantar e valorizar esta II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos. Boa leitura e até a III Jornada!

Clarissa de Lourdes Sommer Alves Enrique Serra Padrós Organizadores

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I – Ditaduras na América Latina e no Cone Sul: debates há 40 anos dos golpes no Chile e no Uruguai

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Regime Pinochet (1973-1990): Ditadura e Terrorismo de Estado no Chile 1 Verónica Valdívia Ortiz de Zárate

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“Están matando mucha gente. Tienen necesidad de matar para que puedan dominar los medíocres. Matarán mucho....Y cuando ya no puedan matar más, entonces se pondrán benévolos, los gobernantes besarán a lós niños pobres... Pero entonces serán más peligrosos que nunca”. (Armando Uribe “Caballeros” de Chile, Lom, 2003, p.121)

Estas palavras foram ditas pelo poeta, prêmio nobel de literatura, Pablo Neruda, poucos dias antes de morrer, e hoje refletem e sintetizam o que foi a Ditadura chilena, e a imagem do que foi o terror de Pinochet. Para nossa desgraça, não foi apenas terror, mas uma ditadura com pretensões hegemônicas, e portanto, havia muito interesse em gerar consenso na sociedade, com interesse particular no povo. Se o povo não fosse ressocializado a ditadura não teria êxito. Então, mataram sem cansar, mas também se apropriaram das crianças. Em 11 de setembro de 1973 as Forças Armadas e a polícia derrotaram o governo socialista de Salvador Allende, o primeiro experimento de chegar, pela via democrática, a uma proposta marxista. Se a experiência brasileira gerou impacto nos Estados Unidos, o triunfo de Allende foi sensivelmente intolerável. Desde o dia em que Allende ganhou, os EUA, e não apenas os EUA, como também os segmentos de oposição a Allende, uma nova direita, um centro dividido, se lançaram a preparar um golpe de Estado. Este golpe demorou três anos, porque a experiência socialista tinha raízes sociais profundas, e não foi fácil expulsar Allende. Finalmente, em setembro de 1973, o golpe se realiza, e o Chile passa a fazer parte das ditaduras terroristas que dominavam o Cone Sul. O Chile tinha uma tradição supostamente democrática. Éramos uma exceção no Cone Sul, juntamente com o Uruguai, mas passamos pelas mesmas experiências, e tivemos que tolerar um ditador por dezessete anos. Um ditador genocida, que não se contentou somente em matar, mas que desejava transformar a sociedade. A violência do golpe de Estado começou logo em seguida, como muitos de vocês sabem. Os que têm mais de trinta anos recordam das imagens do bombardeio sobre o Palácio Presidencial, o presidente suicidando-se. Imediatamente quando começou o golpe todas as rádios e meios de comunicação do governo foram silenciados, e imediatamente foram presos todos os dirigentes da Unidade Popular. Assassinatos imediatos; a criação de centros de detenção pública; criação de campos de concentração; invasão – e isso quero que retenham – invasões ao que seriam as favelas, que começaram três dias depois do golpe, com muita violência, o que se conhece como violência massiva contra as populações. Na noite do dia 11 de setembro, a Junta de Governo fez sua primeira aparição, não sabíamos quem eram, não conhecíamos a Pinochet, não conhecíamos ao general Gustavo Leight, comandante em chefe da Força Aérea, o Almirante Toribio Merino, chefe da Armada, e o novo diretor da Polícia, que se 3 auto designou “director de Carabineros” . Nesta noite os quatro generais se apresentam ao país, e o general da Força Aérea disse que o golpe – por certo não usou a palavra “golpe” – tinha como objetivo extirpar o “câncer marxista” até as últimas consequências. Nessa noite o general Leight declarou guerra ao país. A verdade é que não tínhamos ideia do que ele estava falando. No dia seguinte, dia 12, o general Pinochet declarou que o Chile estava em guerra interna – tampouco sabíamos do que se tratava – e se estabeleceu o toque de recolher, no dia 12, às 24h. Vivemos com toque de recolher por quase 17 anos. Algo que se foi amenizando, mas durante os 17 anos o toque foi algo permanente. A maior parte do tempo estivemos em estado de sítio, e quando não estávamos em estado de sítio estávamos em estado de emergência, e portanto a suspensão de direitos foi permanente. Em 1976 todos os dirigentes da Unidade Popular ou estavam mortos, ou estavam no exílio. Os dirigentes da esquerda marxista – Partido Comunista, Partido Socialista, Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), Movimiento de Acción Popular, de orientação social cristã – todos, os que não estavam mortos, estavam fora do país. Um segmento muito pequeno ficou no país. Em 1976 no Movimiento de Izquierda Revolucionaria, que reivindicava a via armada desde sua fundação, em 1965, de mil militantes restavam cinquenta vivos no Chile. O restante estava morto, e poucos no exílio. O Partido Comunista, com uma estrutura e um aparato criado desde 1922, logrou sobreviver. Seus 1

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Texto produzido a partir da transcrição de conferência proferida na abertura da II Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos. Transcrição/tradução: Clarissa de Lourdes Sommer Alves. Licenciada em História. Doutora em Estudos Americanos, menção Pensamiento y Cultura pela Universidad de Santiago de Chile. Docente da Universidad Diego Portales. Nota da tradução: Carabineros é a polícia militar chilena.

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dirigentes, alguns foram presos, outros partiram ao exílio na União Soviética, mas o Partido Comunista viu muitos de seus dirigentes e a juventude – particularmente sua juventude – sofrendo com a tortura desde 1974. O Partido conseguiu sobreviver: alguns dirigentes intermediários salvaram-no, mas três direções foram assassinadas entre 1973 e 1976. Em relação ao Partido Socialista, muitos de seus dirigentes partiram à Alemanha Oriental, que existia nesse tempo, e outros ficaram no Chile. Seu dirigente máximo, Carlos Altamirano, foi retirado pela Stasi em um operativo, caso contrário teria sido assassinado. Muitos jovens dirigentes socialistas eram estudantes e foram assassinados. O que quero salientar é que em 1976 a esquerda marxista no Chile quase não existia mais. Os que restavam estavam na clandestinidade, e era uma esquerda quase paralisada. No Chile não houve solidariedade, na maioria dos casos. O impacto da violência foi de tal nível, que o que produziu foi uma paralisação social. Muitos dos perseguidos não receberam ajudam, e o que ocorreu no país foi finalmente gerando uma espécie de indiferença social. Já vou explicar porque a guerra psicológica feita pela ditadura teve êxito, e muitos setores da sociedade chilena chegaram à conclusão de que se alguns eram perseguidos, algo haviam feito, e portanto deviam merecer o que lhes estava ocorrendo. Assim, a rede de solidariedade não foi majoritária, e as pessoas que auxiliaram aos perseguidos sofreram com a repressão em consequência. Chile é hoje um país muito despolitizado. O terror paralisou grande parte da sociedade, e quem seguia militando, colaborando ou ajudando era uma minoria. O restante estava submetido à ditadura e ao discurso – ou ao monólogo – de Pinochet e de seus iguais. Agora, se o impacto interno da violência foi a paralisação, a quase aniquilação da esquerda, e a neutralização da oposição – refiro-me à Democracia Cristã – ao nível internacional a violência do golpe gerou isolamento. Se os EUA e a CIA prepararam o golpe de Estado, na prática para o mundo o fato de Salvador Allende ter chegado por vias democráticas ao poder tornava a violência do golpe era inaceitável, portanto, desde o primeiro momento, a Junta de Governo ficou isolada politicamente. O Chile foi condenado sistematicamente por organizações de Direitos Humanos, condenado pelas Nações Unidas, condenado pela OEA. Portanto, o regime que acreditava que, uma vez derrotado Allende, seria o “favorito”, ou receberia o apoio internacional, na prática era um regime sitiado, que não tinha apoio econômico, mas sim recebeu apoio da CIA para exercer a repressão. Por que este tema do isolamento internacional e o impacto da violência do golpe de Estado? Porque diferentemente dos casos da Argentina e do Uruguai, no Chile não existia uma esquerda armada considerável. Não tínhamos nem Tupamaros, nem Montoneros. Havia o Movimiento de Izquierda Revolucionaria, que reivindica a violência e a via armada. O MIR foi um dos poucos partidos que tratou de resistir ao golpe pela via armada. Mas sem dúvida, era um Partido muito pequeno, que não tinha mais de dois mil militantes. Preparados com experiência em guerrilha, ou algo do estilo, não eram mais de dez por cento de seus dirigentes. Em testemunhos os miristas se recordam que não tinham mais de cem militantes preparados para combater. Destes, os que tiveram condições de lutar não passaram de cinquenta. O chefe do MIR foi detectado um ano após o golpe. Em outubro de 1974 foi assassinado. Os últimos dirigentes foram arrancados em 1975. Portanto, o MIR não teve nenhuma capacidade de enfrentar o golpe de Estado. Este tema é muito importante, porque a existência de uma guerrilha não pode ser justificativa para o golpe de Estado. Seria nos casos da Argentina e do Uruguai, onde a resistência armada transformou-se em “desculpa” para o fato. Todavia, nos casos da Argentina e do Uruguai existiam efetivamente grupos armados importantes. Na prática eles também foram derrotados antes do golpe de Estado, mas sem dúvida o fato de terem existido permitiu a desculpa para o golpe, e isso provocou a posição institucional das Forças Armadas, que se justificavam a si mesmas e a suas alianças no poder, porque sua tarefa era derrotar a subversão. O conceito de subversão neste caso estava associado a existência de uma guerrilha. Mas no caso do Chile isso não era possível. A ditadura usou o discurso de que no Chile havia uma guerrilha. De fato, em outubro de 1973, inventou-se o que foi chamou de o “Plano Zeta”. Pretendia-se dizer que a Unidade Popular estava preparando um autogolpe, portanto, o golpe de setembro teria sido para 4 evitar a instalação de um governo totalitário ditatorial dirigido por MAPU . Isso era mentira. Esse plano nunca existiu. Fez-se o que se conhece como Caravana da Morte, um assassinato de dirigentes da Unidade Popular com a justificativa de que eles estavam comprometidos com o Plano Zeta. No fundo, a ditadura precisava inventar que no Chile efetivamente havia um perigo armado para justificar o golpe de Estado. Por tanto, a ideia de que seria necessário manter um governo militar de longa duração não se justificava pela existência de uma guerrilha que não existia. Nesse sentido, era necessário justificar o golpe a partir de outro ponto de vista. E esse ponto de vista é o que explica porque, hoje em dia, 40 anos depois, seguimos vivendo sob os parâmetros da ditadura. Se vocês têm visto notícias sobre o Chile, sabem que os estudantes têm gerado, pela primeira vez em 40 anos, um movimento político com impacto realmente político. Pela primeira vez estão colocando no tapete os problemas da aliança ditatorial. Pela primeira vez o sistema político tem 4

Nota de tradução: MAPU é a sigla para Movimiento de Acción Popular Unitario.

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condições, ou está disposto a escutar uma demanda social. Por que a partir do caso do Chile se pode saber um pouco o que foram as experiências do Cone Sul? Pelo tipo de enfrentamento que houve no Chile. Entre 1970 e 1973 houve uma confrontação de projeto. Foi um enfrentamento entre uma aposta socialista, de corte marxista, e uma aposta capitalista em processo de rearticulação. No país apareceu uma nova direita, no começo dos anos de 1960, que começou a olhar para o que seria o neoliberalismo, que desejava propor um capitalismo de mercado – no Chile o que havia, como em toda a parte, era um capitalismo keynesiano, fortemente estatista. Esta nova direita desejava neutralizar o poder do Estado, neutralizar o poder dos sindicatos, e desejava colocar o Chile dentro do mercado mundial, sob as lógicas de transnacionalização da economia, lógicas de mercado. Essa direita não teria nenhuma possibilidade de ter êxito politicamente naquele contexto. Enquanto a direita se rearticulava, a esquerda marxista alcançou o poder em 1970. E o mais importante disso é que era uma esquerda no poder. Se dizia no país que essa esquerda não era perigosa porque significava um perigo armado, mas porque havia tomado o comando do aparato estatal. Desde o Poder Executivo, a Unidade Popular no comando do Chile transformou a economia, e permitiu a dinamização de todos os movimentos sociais. Desde o aparato estatal criou-se um setor de economia nacionaliza. Os grandes empresários, os grandes bancos, o sistema comercial, o sistema de grande transporte, todos foram nacionalizados, e sob esse plano de criação de uma área de propriedade social, os trabalhadores da indústria, os camponeses, os moradores das favelas, se mobilizaram e aprofundaram a experiência da Unidade Popular. Ainda que Allende nunca tenha colocado a construção do socialismo naquele momento, mas sim um processo com vias ao socialismo, na prática o movimento social gerou o que o historiador Peter Winn chamou de uma “revolução desde baixo”. A esquerda no Chile não ameaçava com as armas. O problema da esquerda no país foi ter demonstrado que desde o aparato do Estado era possível transformar a economia e a sociedade. Por tanto, o perigo marxista tinha relação com o controle do Estado, e não com as armas. O segundo problema que tínhamos no Chile, segundo a perspectiva dos golpistas, era que a esquerda marxista era parte da institucionalidade. O Partido Comunista e o Partido Socialista entraram no sistema político durante os anos de 1930, e portando a chamada democracia chilena, no século XX, contou com a participação de socialistas e comunistas todo o tempo. Isso significava que os partidos marxistas, sobretudo o Partido Comunista, eram partidos com profunda inserção social. O Partido Comunista nasceu em 1922, quando na verdade sua origem era o Partido Obrero Socialista de 1912, de trabalhadores, e não de intelectuais, e portanto era um partido que se desenvolvia com muita facilidade no mundo social, no mundo popular. O que quero dizer é que no caso do Chile o marxismo era parte da cultura política. Neste sentido, os golpistas deveriam extirpar o marxismo no Chile. A repressão no Chile era insuficiente, e foi focalizada. É certo que com milhares de mortos, milhares de torturados, milhares de desaparecidos, mas a repressão de dirigiu fundamentalmente a dirigentes políticos, estudantis e sindicais. O terror se apoderou da sociedade, mas a repressão foi focalizada. Isso significa que para extirpar o câncer marxista era necessário outro tipo de guerra. E essa guerra era uma guerra ideológica. Todos os que têm estudado a Doutrina de Segurança Nacional sabem que a guerra contrasubversiva era uma guerra ideológica. Sem dúvida, quando se fala do conceito de guerra ideológica, não se está vislumbrando apenas a repressão, mas a guerra psicológica, e vale dizer, o tema da propaganda. No caso do Chile a guerra psicológica foi profunda. A ditadura controlou o principal canal de televisão, que era o Canal Nacional, o único que chegava a todo o país. Usou esse canal e controlou muitos meios de comunicação. A guerra no Chile era insuficiente desde a perspectiva da propaganda, precisamente porque a esquerda era parte da cultura. Pode-se dizer que o marxismo no Chile era como um guarda-chuva político, e portanto, como dizia o general Pinochet, era necessário arrancá-lo da mentalidade da população. A guerra psicológica, como diz a teoria, pressupunha a conquista das mentes da população. Isso era o que deveriam fazer. Por isso na declaração do general Leight – “vamos extirpar o câncer marxista até as últimas consequências!”. As últimas consequências não era a repressão, mas sim ressocializar o povo do Chile. E por isso a ditadura durou tantos anos. Porque o objetivo da ditadura era, numa linguagem atual, “reformar” a população. Haviam que criar outro sistema de crenças e de ideias. Porque o que fazia a repressão era extirpar: as pessoas se aterrorizavam e abandonavam ideais. Mas a ditadura não se contentou com isso: precisavam preencher o vazio deixado pela repressão. E esse vazio era um projeto. Essa era uma ditadura programática. Não era uma ditadura que se resumia a matar. Por isso que usei as palavras parafraseadas de Pablo Neruda. Não se incomodaram nunca de matar, mas depois se aproximaram das crianças, e com as crianças quero dizer que o que fizeram foi gerar um programa político, um projeto de corte global, que permitia construir uma nova sociedade. Se todas as ditaduras de Terrorismo de Estado no Cone Sul tinham uma aspiração fundacional, no caso do Chile essa aspiração se cumpriu até a atualidade. E o que quer dizer isso? Que a justificação do golpe e a posição institucional dos diferentes ramos das Forças Armadas diante do questionamento 21


da necessidade de permanecerem no poder, não estava em desarmar uma guerrilha. A posição institucional vinha com a promessa de construir um novo país. As Forças Armadas ficariam no poder porque iam refundar o Chile, e construir o que chamavam de uma “grande nação”. As frentes em que lutariam esta guerra, que eu tenho denominado como uma guerra social, eram as frentes econômicas, sociais, culturais e psicológicas. A guerra militar era importante, mas não era o mais importante. O fundamental era mudar a mente das pessoas. Mas por que foi importante uma guerra social no caso do Chile? Pelo conceito de subversão. Os militares chilenos, por sua trajetória histórica, associavam a ideia de subversão à pobreza. Para eles, por que o Partido Comunista e Socialista tinham tanta tradição? Como era possível que o marxismo tivesse chegado ao poder por via democrática? Porque o Chile era um país pobre e subdesenvolvido, e portanto a pobreza era o que atraia o marxismo. E de que forma se poderia superar essa ideologia maligna? Superando a pobreza! Nesse sentido, as Forças Armadas se propuseram desde o princípio a superar os níveis de estancamento econômico que havia no Chile. Deveriam construir um novo projeto modernizador para transformar o país e trazer crescimento econômico; esse crescimento deveria eliminar o que se chamava de “extremamente pobres”, os marginais, os das favelas; e em terceiro lugar, este projeto modernizador deveria terminar com a influência dos partidos. Deveria despolitizar, entendendo por despolitizar, eliminar a influência dos partidos. Assim, deveria ser um projeto global que respondesse aos problemas econômicos, sociais e políticos. Esse projeto ficou pronto apenas em 1978, provindo dos civis, mas também de elementos das Forças Armadas. Desde o ponto de vista econômico, o projeto apontou para o neoliberalismo, ou o que hoje compreendemos como o neoliberalismo, já que ele não existia enquanto projeto na década de 1970. O que havia, a partir de teóricos como Milton Friedman, e tudo o que eles defendiam, as políticas de mercado da década de 1970, eram receitas de estabilização econômica, receitas monetaristas para baixar a inflação, mas não existia o neoliberalismo como projeto. Mas nesse projeto o neoliberalismo excede o marco econômico, e passa ao marco social, político e cultural. Esse processo se completa no Chile em 1978, advindo de um grupo de economista que haviam estudado na Universidade de Chicago e que, junto com outro setor denominado “gremialistas” – nome que advém de um grupo de estudantes de direita que se autodesignou “Movimento Gremial de la Pontificia Universidad Catolica”, porque diziam que os grêmios estudantis e sindicais deveriam estar separados dos partidos, e dedicar-se a seus fins específicos, ocupando espaços organizados de forma separada dos partidos – articularam um projeto tecnocrático que cumpria com todas as condições para “vencer os desafios do Chile”, produzido a partir de uma mescla entre os neoliberais e os gremialistas. O que propunham os neoliberais? Desarmar o aparato estatal, completamente, e introduzir na economia chilena as lógicas de mercado. Portanto, o Estado se desfez de suas empresas públicas, reprivatizou todo o sistema financeiro que havia sido estatizado, privatizou o sistema comercial, tornando tudo privado. O mais importante de 1978 é que, uma vez desestatizando o sistema econômico, os neoliberais plantaram uma utopia: a utopia de uma sociedade autorregulada pelo mercado, que não necessitasse das interferências do Estado, mas que sozinha pudesse se autorregular pelo mercado. Isso significou transpassar às lógicas neoliberais para o sistema social: privatizar a previdência, a saúde, a educação, e todos os sistemas sociais. E isso que dizer que temos que pagar por tudo no Chile. Até mesmo a cultura, as entradas nos museus, é tudo pago. E então, do que se ocupa o Estado? Apenas dos extremamente pobres, dos habitantes das favelas, que segundo a ditadura não eram mais de vinte e um por cento dos habitantes do Chile, e portanto toda a guerra psicológica e social esteve voltada a esta porcentagem dos “pobres”, para que esses pudessem internalizar as lógicas de mercado. Nesse sentido, no país não havia nenhuma possibilidade de reestatizar a saúde, ou a previdência em 1990, porque tudo já pertencia a grandes consórcios econômicos transnacionalizados. A possibilidade de que a saúde ou o trabalho voltasse às mãos da regulação do Estado não existia. Precisariam pagar indenizações gigantescas aos grandes conglomerados, e isso não era possível. Além disso, o que a ditadura fez foi colocar a lógica neoliberal em todos os âmbitos da vida privada, porque tudo se transformou em problema privado: a educação, que era pública, agora era um problema privado, e as famílias, que discutiam onde estudariam seus filhos, não resolviam na esfera pública. Tudo se transformou em um problema privado, o que gerou uma atomização geral da sociedade. Tudo é um problema individual, e não social. Não é um problema político. Isso significou uma legislação trabalhista que desarticulou por completo os poucos sindicatos que existiam. Se dizia que estava mantida a negociação coletiva, mas na prática não tinham nenhuma capacidade de enfrentar os patrões, e o mundo sindical praticamente sucumbiu. Subsistiram os sindicatos, mas sob a lógica neoliberal. O Chile do começo dos anos 1980 é um Chile que já não tem mais um Estado que considere que deva estar a cargo do social, salvo para estes grupos extremamente pobres, sobre os quais se exercerá a ressocialização mais profunda. Nós, o restante, vivemos a guerra psicológica através dos meios de comunicação e de nossa própria experiência. Tivemos que perder a educação que tínhamos, perder o sistema de saúde que tínhamos, e aprender com essa experiência. Mas sobre os pobres se 22


exerceu uma guerra social. O que fez a ditadura foi criar grupos que iam até essas populações, em secretariados, voluntariados de mulheres e de jovens, para ressocializar as mulheres e jovens das favelas. Houve todo um trabalho de doutrinamento sobre o mundo popular, para que entendessem a lógica neoliberal. Ensinavam às mulheres, por exemplo, que a economia do lugar era uma empresa, portanto tinha que funcionar como em uma empresa, em que os recursos eram poucos, e as necessidades eram muitas, e portanto as mulheres deviam adequar os poucos recursos disponíveis para manter seus filhos e organizar suas casas. Esses eram os valores do novo Chile. Assim, não houve apenas uma mudança estrutural, como também um trabalho direto no mundo popular. A lógica da ditadura era de que se o povo do Chile não entendesse que a sociedade havia mudado, o golpe não teria sentido. Como dizia o Ministro do Interior, Sergio Fernández, se o povo não entende as lógicas da economia livre que estamos construindo, tudo é inútil. O consenso mínimo indispensável era que o povo pudesse entender a lógica neoliberal, podendo viver e reproduzir-se nela. Esse foi o objetivo da ditadura. Paralelamente a isso, houve uma redefinição política, que vinha por parte dos gremialistas. Este ser “malévolo”, Jaime Guzmán, líder do movimento gremial, determinou de maneira muito sintética: criou-se um sistema neopresidencialista, em que o presidente da república quase não tinha atribuições, porque haviam organizações supra Executivo, como o Conselho de Segurança Nacional, formado majoritariamente pelas Forças Armadas, e um Tribunal Constitucional que pode, até os dias de hoje, revogar leis aprovadas pelo Congresso, bastando que um deputado diga que determinada lei é inconstitucional. Colocou-se uma série de empecilhos institucionais para limitar o Executivo. E ainda em paralelo a isso, o projeto autoritário redefiniu a participação política. Até então o povo chileno entendia como participação política a participação nos grandes debates nacionais. No Chile foi toda uma discussão o caminho para chegar ao socialismo. Foi uma discussão que tipo de Estado e de sociedade queríamos. O que a ditadura pretendia era que as pessoas nunca mais se preocupassem com os grandes projetos. E o que era preciso fazer? Radicar as pessoas em seus temas cotidianos: Limitarse aos seus temas locais. Foi feita uma separação entre participação social e participação política. As pessoas deviam participar socialmente, em concreto, em suas comunas, por isso no Chile a reforma política pressupõe a reforma municipal, e por isso quando se implementou o neoliberalismo e a desestatização, foram transferidos todos os serviços sociais aos municípios: a saúde, a educação, o sistema de definição de construções, etc. Isso significa que quando as pessoas necessitam de um auxílio de subsídio, por exemplo, não demandam ao Ministro do Trabalho, demandam ao município. Se têm algum problema de saúde, é saúde municipal, se há um problema de educação, é educação municipalizada. Isso significa que todas as demandas sociais não vão ao Estado central, mas se realizam nas comunas. Isso significa que as pessoas, seu entorno e sua lógica política se estreitou, saiu do debate de cima, e se focalizou no nível territorial. Essa reforma municipal se mantém até os dias de hoje, e portanto, durante os anos de 1990, no momento da transição democrática, não discutimos o modelo econômico, porque isso estava imbricado a cima. Não discutimos o autoritarismo, porque esse é tema da tecnocracia. Mas o que vamos discutir então? Vamos discutir se fazemos uma praça! Discutimos se nos faltam luzes nas ruas, mas não podemos discutir o tema de fundo. Esse é o problema. Esse projeto, que parece tão redondinho, explica que quarenta anos após o golpe o projeto da ditadura siga completamente inteiro. Por que o tema da repressão não é o grande tema hoje em dia? Porque nosso problema é nos desfazermos da ditadura enquanto projeto. Não é que a repressão não importe, pois sim, importa. Mas importa de forma muito mais limitada. O movimento estudantil do Chile hoje em dia tem muito claro o que são violações aos Direitos Humanos. As pessoas democráticas sabem que no Chile se violaram os Direitos Humanos, mas há, sem dúvida, cerca de quarenta por centos de chilenos pinochetistas, para os quais a repressão não importa nada, e que dizem mais: que bom que fizeram isso! Porque não mataram mais gente? Essa é a divisão no Chile: sessenta a quarenta por cento. E por que o movimento estudantil conseguiu tanto êxito no último período? Porque esse movimento está apontando o projeto da ditadura. O que os estudantes estão demandando hoje é discutir 5 o tema país, não o tema das praças. Discutamos a educação pública. E por isso o governo de Piñera não quer discutir. Por isso a direita se opõe a que entremos em um debate profundo sobre as bases da ditadura, e se os estudantes conseguem que se discuta o tema da educação e da saúde, mas que se discuta as bases disso, começamos finalmente a minar a herança de Pinochet. E nesse sentido, como vocês podem compreender, a resistência é enorme. E por isso a direita não quer mudar o sistema político, que lhes permite controlar a metade do parlamento com um terço dos votos, não quer mudar o modelo econômico, e seu discurso é “olhemos para o futuro!”. Não querem que olhemos para o passado, porque discutir o passado significa discutir o futuro, ou seja, discutir se vamos transformar o Chile, ou se vamos seguir sendo os filhos de Pinochet.

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Nota da tradução: Sebastián Piñera, eleito presidente do Chile para mandato entre 2010 e 2013.

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“Desde entonces la patria no es la misma”: impressões sobre o terror de estado no Chile Cesar Augusto Barcellos Guazzelli

A alta qualidade da conferência proferida pela Professora Doutora Verónica Valdívia soma-se àquelas de outros professores chilenos de História da América Latina que estiveram em nosso meio; refiro-me a Miguel Rojas Mix e Eduardo Devés Valdéz, ambos com trabalhos que se relacionam de alguma maneira com a ditadura civil-militar chilena. Nestas circunstâncias, aproximar-me das abordagens mais recentes sobre o Terror de Estado no Chile exigiria um distanciamento crítico que possivelmente eu não alcance, pois minha visão histórica daquela realidade se confunde inequivocamente com minha memória, e esta é muito traiçoeira e inconfiável! Mais até do que partidária, ela é passional e marcada pela indignação até os dias de hoje! Eu recém-havia ingressado na universidade – também vivendo os horrores do Terror de Estado no Brasil após o Quinto Ato Institucional de 1968 – e as notícias que vinham do Chile eram alvissareiras! Tratarei então de marcar as impressões que tive dos tempos que antecederam a eleição Salvador Allende da Unidad Popular à presidência do Chile, o impacto das realizações e das dificuldades do seu governo, e as repercussões mais imediatas do golpe de Estado e implantação da ditadura de Pinochet. Antes de tudo, convém situar a “familiaridade” que já tinha com a política chilena com as histórias que meus pais contavam, de muitos anos antes. E estas falavam de um país que tinha uma destacada tradição comunista na América Latina. O pai ouvira Pablo Neruda declamar seu Dicho en Pacaembu no famoso Comício do Partido Comunista em julho de 1945, quando prestou sua homenagem a Luis Carlos restes, libertado recém em abril dos porões do Estado Novo. Os milhares de pessoas que lotavam o maior estádio brasileiro de então ouviram Pablo Neruda dizer no fechamento do seu poema: “Hoy pido un gran silencio de volcanes y ríos. / Un gran silencio pido de tierras y varones. / Pido silencio a América de la nieve a la pampa. / Silencio: La palavra al Capitán del Pueblo. / Silencio: Que el Brasil 1 hablará por su boca.” Quatro anos depois, escreveria ainda outra homenagem de Neruda, em Prestes del Brasil, recordando o encontro no Pacaembu: “El estadio pululaba con cien mil corazones rojos que 2 esperaban verlo y tocarlo”. A grande obra do futuro Prêmio Nobel aludia ao líder comunista brasileiro em dois de seus poemas, destacando-o entre os grandes Libertadores do continente americano. Quanta diferença deste Chile ligado ao Brasil pela utopia daquelas publicações que pela primeira vez divulgaram o “perigo vermelho” numa eventual vitória de candidatos da esquerda! Esta situação era temida mesmo no moderado governo de Eduardo Frei, do Partido Demócrata Cristiano por ativistas da extrema direita brasileira! Com efeito, o próprio Plínio Correa de Oliveira, fundador da famigerada Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), tratou de identificar os riscos que advinham da reforma agrária levada a efeito por Frei, mesmo que ela fosse muito restrita. Temia a Democracia Cristã chilena, “desatenta” a tais projetos, mesmo que tímidos. Juan Gonzalo Larrain Campbell, diretor da versão da TFP no Chile – Sociedade Chilena de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – explica: “O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, sempre fiel sentinela da Contra-Revolução, não tardou em discernir o perigo que significava para o continente latino-americano a ascensão de Frei. Pediu, então, a Fábio Vidigal Xavier da Silveira que viajasse ao país andino para confirmar in loco as 3 apreensões que lhe assomavam ao espírito.” Com efeito, ainda em 1967 o diretor de TFP Fábio Vidigal publicou o livro Frei, o Kerensky Chileno, que prenunciava o avanço das ideias esquerdistas na América 4 Latina, mesmo pelas mãos da Democracia Cristã. Mas se a ultradireita brasileira e a ditadura militar se preocupavam com o Chile antes das eleições de 1970, a pior situação para elas estava por acontecer. Houve uma cisão entre os grupos não esquerdistas: de um lado, o Partido Nacional, com Alessandri, que congregava os setores burgueses mais conservadores e os latifundiários; também a Democracia Cristã, com um projeto mais progressista que atraía grupos médios urbanos, pequena burguesia e até alguns setores populares, apresentou candidato próprio, Tomic. Esta divisão favoreceu a vitória de Unidad Popular: em 4 de setembro, com  1

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Professor Associado do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Esta poesia foi incluída em Canto General, publicado por primeira vez no México em 1950. Neste volume, a homenagem a Prestes se inclui em Los Libertadores, parte IV do livro. NERUDA, Pablo. Dicho en Pacaembu (Brasil, 1945). In: Canto General. Buenos Aires: Losada, 1975, p.143-145. Prestes del Brasil (1949). In: Id. Ibid. p.141-143. LARRAIN CAMPBELL, Juan Gonzalo. Frei, o Kerensky chileno: 30 anos depois. Catolicismo. São Paulo, Editora Padre Belchior de Pontes, agosto de 1997 (edição on line). SILVEIRA, Fábio Vidigal Xavier da. Frei, o Kerensky Chileno. Editora Vera Cruz, 1967.

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36,6% dos votos vencia Salvador Allende, do Partido Socialista. A Unidad Popular era composta pelo Partido Socialista e o Partido Comunista, ambos de forte inserção entre os trabalhadores, além do Partido Radical, que representava setores médios urbanos e médios proprietários, e o Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU), facção da Democracia Cristã que se radicalizara. No campo da esquerda havia também o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) que defendia a ação direta, com tomada violenta do poder; se de inicio via com reservas o governo de Allende, mais tarde faria forte oposição desde a extrema esquerda, acusando a Unidad Popular de reformista e demagógica. Havia, decerto, temores sobre o futuro desta vitória eleitoral. Em 25 de outubro, um complô armado pela Central Intelligence Agency (CIA) resultou no assassinato do Comandante-em-Chefe das Forças Armadas do Chile, René Schneider. Este general defendia a obediência à Constituição do país, criando a chamada Doutrina Schneider que promovia a exclusão das forças armadas da política 5 nacional. Presumivelmente autorizada pelo chanceler estadunidense Henry Kissinger, o afastamento de 6 Schneider seria uma condição para impedir a posse de Allende. No entanto, além da grande comoção popular, o presidente Eduardo Frei agiu com energia, e nomeou para o cargo o general Carlos Prats, que compartilhava a defesa da ordem legal; mais tarde ele seria mantido no cargo por Salvador Allende. Restava ainda uma questão política: por não ter maioria absoluta de votos, a eleição necessitava de confirmação no Congresso Nacional, majoritariamente contrário à Unidad Popular. Aqui uma vez mais a Democracia Cristã manteve uma posição coerente com as urnas, e Allende obteve 78.4 % dos votos dos congressistas, legitimando-se como presidente. Tais notícias vinham das agências internacionais de informações, além de serem “filtradas” pela censura que os órgãos de imprensa sofriam na ditadura brasileira. Também vinham de familiares e amigos de perseguidos políticos que cada vez mais procuravam refugio no Chile, buscando uma utopia socialista, uma revolução “desarmada” que buscava, a partir do governo da Unidad Popular, profundas transformações sociais nos termos constitucionais e sem tomar o poder pela força. O ano de 1971 foi promissor, o que era possível acompanhar em que pese a censura dos órgãos de imprensa. O programa da Unidad Popular trazia profundas medidas econômicas: a nacionalização do cobre – principal produto chileno – era um golpe muito duro no capitalismo internacional; a reforma agrária muito ampliada em relação àquela iniciada por Frei, feria os interesses dos latifundiários chilenos, comprometendo as bases de um sistema semifeudal muito arraigado; o controle dos bancos complementava este leque. Assim, o Chile vivia uma proposta ao mesmo tempo anti-imperialista, antioligárquica e antiburguesa, e o Estado era o fiador deste projeto. Mas já no ano seguinte apareceram e recrudesceram as ações de enfrentamento e sabotagens – internas e externas – ao governo Allende. As dificuldades em manter as relações comerciais pelo declínio do preço do cobre somaram-se ao desabastecimento generalizado provocado por atacadistas, comerciantes e setores de transportes. Havia ainda uma insólita mobilização de setores das classes dominantes, os moradores dos “barrios altos” protestando contra a situação política e econômica do Chile. Estes graves problemas foram amplamente noticiados pela imprensa nacional e agências estrangeiras, constituindo-se em forte propaganda contrarrevolucionária. Com tantas dificuldades impostas ao governo Allende, a direita chilena – à qual se somava agora a Democracia Cristã – apostava nas eleições legislativas de março de 1973. Quando o resultado delas, dando 44% dos votos para a Unidad Popular, tornou-se muito claro não havia mais solução política à vista, e a oposição tratou de prepara uma saída golpista. Deste processo fez parte o levante de 29 de junho conhecido como Tancazo ou Tanquetazo, quando uma coluna de 16 carros de combate invadiu o centro de Santiago e cercou o Palacio de La Moneda, da presidência. A sublevação foi dominada pelas tropas leais comandadas pelo general Prats, mas trouxeram alento aos opositores do regime, dentro e 7 fora do Chile. Dois meses depois o Prats renunciou ao ministério da Defesa, substituído por Augusto Pinochet. Em 11 de setembro viria o esperado golpe militar, uma ação cruenta levada a cabo por todas as Forças Armadas chilenas, comandadas pelo próprio ministro Pinochet da Defesa. O bombardeio Palacio de La Moneda foi televisionado para o mundo inteiro, e recebido com regozijo por todos oposicionistas, dentro e fora do Chile. Mesmo a imagem de uma sede de governo sendo alvejada e incendiada, com o presidente Allende morrendo durante o bombardeio recebeu qualquer contrariedade por parte dos 5

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Afirmara Schneider ainda em maio de 1970: “vamos garantizar la normalidad del proceso elecccionario y dar seguridad de que asuma el Poder Ejecutivo quien resulte electo.” AYLWIN, Mariana & al. Chile en el Siglo XX. Santiago: Planeta, 1999. 230-232. É famosa uma frase de Kissinger sobre a eleição de Allende: "Não vejo porque precisamos ficar parados e assistir um país tornar-se comunista por causa da irresponsabilidade do seu povo”. Durante o Tancazo, jornalista argentino Leonardo Henrichsen filmava as ações quando foi alvejado por um cabo das forças golpistas; as imagens do cinegrafista “documentando a própria morte” causaram impacto mundialmente, o que não impediu a propaganda anticomunista contra o governo de Allende.

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governantes do continente. Sabe-se que houve aberta atuação dos Estados Unidos em prol do golpe, inclusive com sua armada a postos para intervir, assim como a participação da diplomacia brasileira, do 8 Itamaraty até sua representação no Chile. Chegava ao fim a experiência chilena de revolução pacífica, dentro dos marcos institucionais e – talvez por isto mesmo! – derrubada por uma ação muito cruenta das Forças Armadas, até pouco tempo 9 antes comprometidas com a ordem constitucional. Em uma obra recente, o historiador chileno Miguel Rojas Mix elenca uma série de “tarefas” que a ditadura civil-militar de Terror de Estado assumiu no Chile, 10 de resto semelhante a outras aparecidas na América Latina. Ele chama a atenção para alguns aspectos significativos: 1. O Terror de Estado é um corolário da chamada Doutrina de Segurança Nacional (DSN), desenvolvida nos Estados Unidos e propalada para a América Latina; para garantir a integridade dos países americanos, deve-se promover uma guerra contra os “inimigos internos”, justificando-se todos os 11 meios para isto. 2. O caráter religioso que aproxima o golpe chileno do falangismo da Guerra Civil Espanhola; o “banho de sangue” para lavar o país, resgatando o “nacional-catolicismo” e a hispanidad do povo chileno da conspurcação pretendida pelo Comunismo, internacional e ateu. A civilização ocidental se confunde com o Catolicismo. 3. As Forças Armadas do Chile retomaram o papel histórico de defensoras do país desde os tempos da Conquista; o golpe de Estado coloca-as como a representação máxima do nacionalismo chileno. 4. A democracia e a “degeneração” dos costumes eram sinais inequívocos da “decadência” do Ocidente. Spengler e Toynbee foram alguns dos autores que inspiraram estas ideias: as civilizações passam sempre por um processo de “despertar, ascensão e queda”, necessitando de “minorias criadoras” capazes de regenerarem as nações. 5. Estes pressupostos ideológicos se somavam às doutrinas neoliberais, defendidas por Heyer, Friedmann e Popper desde 1947, e que se impunham progressivamente entre os países capitalistas. Favorecer os empreendimentos transnacionais no Chile e liquidar com a intervenção do Estado na economia foram tarefas cumpridas pela ditadura. Nos anos seguintes a ditadura protagonizou a eliminação de antigos membros do governo Allende. Para tanto, havia criado em 1974 a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), uma polícia secreta treinada por agentes da CIA na Escola das Américas, na Zona do Canal do Panamá, encarregada de fomentar a contrainsurgência nos países americanos. Já em 30 de setembro de 1974, a recém-criada DINA levou a cabo o atentado a bomba que resultou na morte do general Carlos Prats, exilado em Buenos Aires. Em 21 de setembro de 1976 foi a vitimado Orlando Letelier, que tinha sido embaixador do Chile nos Estados Unidos e depois Ministro de Relações Exteriores, Interior e defesa; em 8

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Um fato pitoresco: o primeiro testemunho ocular do golpe de 11 de setembro foi dado em Porto Alegre pelo presidente da Federação Gaúcha de Futebol, Rubens Freire Hoffmeister. Ele se encontrava em Santiago no comando de uma seleção de jogadores de clubes do interior do Rio Grande do Sul que disputaria um jogo contra a Seleção do Chile. Quando aconteceu o bombardeio do palácio de governo, a delegação estava em um hotel localizado nas proximidades. Tendo ligações políticas com a ARENA, Hoffmeister defendeu a versão oficial dos golpistas, a defesa da “democracia ocidental” contra o avanço do “comunismo” na América Latina. Como era um homem muito caricato e alvo de ditos jocosos pela imprensa, seu testemunho de certa forma desmoralizou as razões que justificavam o golpe de Estado. Foram muitas as explicações dadas por intelectuais de esquerda para o fracasso do Chile. Agustín Cueva defendeu que a causa do golpe se deu pelo caráter revolucionário da Unidad Popular, onde o Estado era a “institución encargada de regular las contradicciones sociales, ahora más bien las reproducía ampliamente en su seno, convertido en uno de los puntos nodales de la lucha de clases. Lucha que se expresaba en este nivel, entre otras formas, como una contradicción entre las prácticas gubernamentales orientadas hacia la transformación del modo de producción dominante y la superestructura jurídico-política encargada de perpetuarlo.” CUEVA, Agustín. Teoria Social y Procesos Políticos em América Latina. México: Edicol, 1979, p.119. Já para Sader, a Unidade Popular partia da ocupação de apenas uma parte do poder para iniciar a transição “Ou seja, um centro vital do aparato criado para a preservação da ordem burguesa era ocupado por uma coalizão que pretendia destruí-la. Porém, o insólito prosseguia no fato de que esta coalizão pretendia chegar ao socialismo pelas vias institucionais criadas para combatê-lo”. SADER, Eder. Um Rumor de Botas. A militarização do estado na América Latina. São Paulo: Polis, 1982 p.91-92. Semelhante é a explicação de Aggio, que afirma ter o processo chileno se caracterizado por uma “revolução passiva”, onde “o Chile tinha na função moderna desempenhada pelo Estado seu referencial de “racional absoluto”, cabendo a ele implementar “do alto” as transformações clamadas pela sociedade em seu conjunto”. AGGIO, Alberto. Frente Popular, radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo: Annablume / FAPESP, 1999, p. 210. ROJAS MIX, Miguel. El dios de Pinochet. Fisionomía del fascismo iberoamericano. Buenos Aires: Prometeo, 2007, p.13-18. A DSN tinha uma versão latino-americana realizada pelo general Golbery do Couto e Silva na escola Superior de Guerra do Brasil. SILVA, Golbery do Couto e. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: Jospe Olympio, 1967.

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seu exílio nos Estados Unidos, ele movia forte campanha contra o governo de Pinochet, quando foi morto pela ação conjunta entre a DINA, a CIA e imigrados cubanos de ultradireita. O maior protagonismo externo do Chile foi a liderança do Plan Condor, criado pela DINA em 25 de novembro de 1975, em aliança com os serviços secretos das ditaduras da Bolívia, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai; a Argentina – que sob o governo de Isabelita Perón caíra sob domínio dos setores direitistas do peronismo, comandados pelo ministro López Rega – também participou. Mas eram mais candentes as notícias que vinham do próprio Chile sobre o Terror de Estado, a maior parte delas por pessoas que haviam conseguido refugio em outros países. Além da Europa, o México foi um lugar de eleição por muitos destes fugitivos, assim como a Argentina no breve interregno 12 democrático entre 1973 e 1976. O Estadio de Chile foi transformado em campo de concentração para centenas de prisioneiros, dos quais muitos seriam “desaparecidos” ou executados. É emblemático desta tragédia o assassinato do grande compositor Victor Jara, o mais famoso artista chileno destes anos; ainda preso no estádio, compôs o poema Somos cinco mil, também chamado de Estadio de Chile, que foi memorizado e reproduzido mais tarde por seus companheiros: “Somos cinco mil / en esta pequeña parte de la ciudad / Somos cinco mil / ¿Cuantos seremos en total? / en las ciudades y en todo el país?” Contou-se por muito tempo a história de que Jara teve suas mãos decepadas como uma ironia macabra pelos versos famosos de Lo único que tengo, uma de suas canções mais conhecidas: “Y mis manos son lo único que tengo y mis manos son mi amor y mi sustento.” No entanto, a inglesa Joan Jara, 13 viúva do artista, nega este fato na biografia que escreveu sobre ele. Entretanto, aquele Chile que a ditadura tentava arrasar nos chegava por outros caminhos, e os tempos de Allende apareciam através de uma profusa produção cultural, agora banida do país! Trazidas da Argentina – até a implantação da ditadura em 24 de março de 1976! – e de outras partes, diversas manifestações artísticas chilenas, engajadas ao projeto da Unidad Popular, eram divulgadas entre os opositores da ditadura militar, mesmo com o risco de serem acusados de propagandear material “subversivo”. Tornavam-se mais conhecidos os músicos, que desde os anos 60 tinham se organizado em torno da Nueva Canción Chilena, procurando tirar das raízes populares inspiração para os movimentos políticos contemporâneos, de maneira similar ao que ocorria principalmente na Argentina, no Uruguai, no México. A própria Violeta Parra – a mais importante artista musical do Chile, que se suicidou em 1967 – apesar de anteceder esta geração, de alguma forma se associava a este grupo. Mesmo sendo uma compositora já bem conhecida, algumas de suas canções mais radicais – Violeta era comunista! – se difundiram a partir de seus seguidores: La carta, Al centro de la injusticia, Que dirá el santo padre Los 14 pueblos americanos, Me gustan los estudiantes, são algumas delas. Seus filhos, Ángel e Isabel Parra, ambos compositores e cantores, além de seus trabalhos artísticos próprios, criaram em 1965 a famosa Peña de los Parra, uma penha folclórica que reunia os principais intérpretes da Nueva Canción Chilena. Destas reuniões resultaram os álbuns La Peña de los Parra, ainda de 1965, com vários intérpretes, e La Peña de los Parra volume 2, agora apenas com os irmãos Ángel e Isabel. Por lá andou Patrico Manns, que em 1971 escreveu No cierre los ojos, sobre aqueles que tinham votado em Allende para presidente, e que “y esgrimiendo su confianza / fueron a las elecciones / a ganar.” Como esquecer Pedro Alarcón, com sua canção Si somos americanos, ainda de 1965: “si somos americanos, seremos todos iguales”. Ou do conjunto Quilapayun, cujo álbum Por Vietnam, de 1968, exibia na capa uma paródia da bandeira dos Estados Unidos com listras pretas e caveiras em lugar das estrelas que, segundo eles, havia sido feita por Mark Twain! Deste trabalho consta Canto a la pampa, onde por primeira vez eu soube do grande massacre de Santa Maria de Iquique de 1907... Sobre o tema, dois anos depois eles gravariam a impressionante Cantata de Santa Maria de Iquique, do compositor Luis Advis. Também lembro o grupo Inti-Illimani, especialmente por Viva Chile, álbum lançado já no exílio: nele, entre tantas canções, há Cueca de la CUT, o hino da Central Única de Trabajadores de Chile do cantautor Héctor Pavez, outro dos tantos artistas da Nueva Canción Chilena, composta poucos meses antes do golpe militar; sem esquecer Venceremos, canção da Unidad Popular durante a campanha de Allende. No entanto, é impossível pensar no impacto – mesmo que tardio – do cancioneiro do cantautor Victor Jara, antes referido. Mais além da indignação pelo seu assassinato em mãos do Terror de Estado que se abatia sobre o Chile, sua qualidade artística a serviço das causas sociais chilenas foi notável! Impossível dissociar seu álbum de 1969, Pongo en tus manos abiertas, com a foto das mãos calejadas 12

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Este era um estádio multiesportivo, construído em 1949, com capacidade para 4.500 espectadores. Muitos o confundem com o Estadio Nacional de Chile, voltado para o futebol, com 47.000 lugares; ele não foi usado como campo de concentração. Em 2004 o Estadio de Chile foi renomeado como Estadio Victor Jara JARA, Joan. Canção Inacabada. Vida e obra de Victor Jara. Rio de Janeiro: Record, 1998. Somente em 1976 canções de Violeta Parra seriam gravadas no Brasil. Elis Regina no álbum “Falso Brilhante” gravou Gracias a la Vida, e Milton Nascimento em “Geraes” interpretou Volver a los diecisiete junto com a argentina Mercedes Sosa.

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de um camponês na capa, dos martírios que sofreu antes de ser morto pela ditadura. Nele está Zamba del Che, recordando outro dos tantos mártires americanos: “Mataron al guerrillero Che Comandante Guevara”... Também a conhecida Te recurdo Amanda! Em 1971, no disco El derecho de vivir, Jara apresenta uma das canções mais canônicas da América Latina, Plegaria a un labrador, um verdadeiro hino para as históricas lutas camponesas do continente; os versos finais são da própria Ave Maria, dando o tom de oração que prometia no título: “Juntos iremos unidos en la sangre / ahora y en la hora de nuestra muerte / Amén”. Talvez a mais importante obra artística de Victor Jara seja La Población, de 1972, que trata da toma dos terrenos da Calle San Pablo em Barrancas, região metropolitana de Santiago. Esta ocupação por camponeses em março de 1967 foi severamente reprimida pelo governo 15 Frei, e suas narrativas foram transformadas numa obra musical de elevado cunho social. Menos impactantes que as canções – mas não em seu conteúdo! – muitos livros foram escritos sobre os acontecimentos no Chile, por exilados do país ou de estrangeiros que lá viviam. Não lembro quantos nem de seus títulos, mas circulavam nos meios estudantis e intelectuais que, nos tempos da Distensão proposta pelo presidente Geisel, já tinham um pouco mais de oportunidades para tanto. Uma vez mais voltamos a Neruda! Em Montevidéu, abril de 1973 – pouco antes do golpe militar que instaurou o Terror de Estado também no Uruguai – foi publicado o último livro de poemas do poeta chileno, que dois anos antes fora agraciado com o prêmio Nobel de Literatura. O provocativo título Invitación al Nixonicidio y alabanza a la revolución chilena já apontava para os riscos que o Chile de Allende corria em relação à política externa agressiva do presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. Em Juntos hablamos, poema de encerramento do livro, Pablo Neruda escreveu em seus versos finais: “Chile, mi 16 Patria no será vencida / ni al extranjero domínio sometida”. Isto foi em janeiro de 1973; Neruda ainda presenciaria o golpe de Estado daquele ano, falecendo em 23 de setembro! ********** Mais que “História”, eu contei apenas “histórias”, memórias que tenho sobre o Chile, que tratei de ordenar da melhor maneira, buscando um perfil mais próximo possível de um trabalho acadêmico. Cabe ainda, antes de encerrar este texto, mostrar um pouco dos trabalhos realizados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Alguns colegas historiadores – aos quais eu me somo – realizaram pessoalmente ou orientaram alunos a escreverem dissertações de Mestrado e teses de Doutorado sobre as ditaduras na América Latina, incluída aqui aquela que se abateu sobre o Chile. Temas relacionados ao terrorismo de Estado já adquiriram bastante relevância entre nós, e certamente isto me traz orgulho de pertencer à Universidade e fazer parte deste grupo de docentes e alunos! Assim, em nosso Programa de Pós-Graduação em História foram realizadas quinze Dissertações de Mestrado e cinco Teses de Doutorado, sobre o Terror de Estado no Brasil e em outros países latino-americanos. Considerando que já existem ainda muitos Trabalhos de Conclusão do Curso (TCC) de Graduação em História, temos um 17 número bastante significativo de pesquisas! 15

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SIMÕES, Sílvia S.“Canto que ha sido valiente siempre será canción nueva” : o cancioneiro de Víctor Jara e o golpe civil-militar no Chile. Porto Alegre: UFRGS (Dissertação de Mestrado), 2011, p.152-153. NERUDA, Pablo. Invitación al Nixonicidio y alabanza a la revolución chilena. Montevideo:Ediciones Vanguardia, 1973. Postumamente foi editado seu livro de memórias, onde se refera à sua trajetória como intelectual e militante comunista. NERUDA, Pablo. Confieso que he vivido. Buenos Aires: Losada, 1974. (Este livro só apareceria no Brasil em 1978, quando já se anunciava a Abertura do futuro governo de João Figueiredo. NERUDA, Pablo. Confesso que vivi – Memórias. Rio de Janeiro: Difel, 1978.) Dissertações de Mestrado. Orientador Benito B. Schmidt: GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado: uma reflexão sobre os episódios de retratação pública protagonizados por integrantes de organizações de combate à ditadura civil-militar no Brasil (1970-1975). Porto Alegre: UFRGS, 2008 Orientadora Carla S. Rodeghero: ALVES, Taiara S. Dos quartéis aos tribunais: a atuação das auditorias militares de Porto Alegre e Santa Maria no julgamento de civis em processos políticos referentes às leis de segurança nacional (1964-1978). Porto Alegre: UFRGS, 2009; DOBERSTEIN, Juliano M. As duas censuras do regime militar: o controle das diversões públicas e da imprensa entre 1964 e 1978. Porto Alegre: UFRGS, 2007; GUAZZELLI, Dante G. A lei era a espada: atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011. Orientador Cesar A. B. Guazzelli: ROSA, Michele R. O pensamento de esquerda e a revista Civilização Brasileira (19651968). Porto Alegre: UFRGS, 2004; SOUZA, Hélder C. Os cartões de visita do Estado: a emissão de selos postais e a ditadura militar brasileiro. Porto Alegre: UFRGS, 2006; AGUIAR, José Fabiano G. C. de. “Yo vengo a cantar por aquellos que cayeron": poesia política, engajamento e resistência na música popular uruguaia : o cancioneiro de Daniel Viglietti : 1967-1973. Porto Alegre: UFRGS, 2009; SIMÕES, Sílvia S.“Canto que ha sido valiente siempre será canción nueva” : o cancioneiro de Víctor Jara e o golpe civil-militar no Chile. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Orientadora Claudia Wasserman: BAUER, Caroline S. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º. andar: terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982). Porto Alegre: UFRGS, 2006; ARENHART, Davi R. Entre risos e prantos: as memórias acerca da luta armada contra a ditadura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2011; BRASIL, Clarissa. O Brado de Alerta para o Despertar das Consciências: uma análise sobre o Comando de Caça aos Comunistas no Brasil,

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Houve ainda algumas atividades destacáveis. De janeiro a março de 2004, o Museu Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul recebeu a exposição La Memoria Herida, idealizada e organizada pelo historiador chileno Miguel Rojas Mix, um impressionante acervo de artistas plásticos do Chile sobre os anos da ditadura naquele país. Inspirados pela exposição, os professores Claudia Wasserman, Enrique Serra Padrós e eu organizamos o Seminário A Ditadura na América Latina, aproveitando o ensejo dos aniversários de 30 anos das ditaduras chilena e uruguaia no ano anterior, e dos 40 anos da brasileira que aconteceria naquele ano. Este Seminário teve sua Conferência de Abertura proferida pelo próprio professor Miguel Rojas Mix, quando inaugurou a supracitada exposição. O Seminário teve sequência com Mesas Redondas apresentadas pelos professores organizadores e também alguns dos seus orientandos, tanto de Graduação quanto de Pós-Graduação em História. A Conferência de Encerramento ficou a cargo do escritor e jornalista Zuenir Ventura. Destes trabalhos resultou a publicação do livro Ditaduras Militares na América Latina, organizado pela professora Claudia Wasserman e por mim; além dos organizadores e dos conferencistas do Seminário, há mais nove textos 18 escritos por alunos que participaram do mesmo. E que mais? Um trauma que ainda permanece, o fantasma das ditaduras de Terror de Estado assombrando a todos! No Chile, de maneira especial: uma ditadura muito cruenta que ainda não teve o devido “acerto de contas” – o que de resto também não aconteceu entre nós! Dois autores chilenos são muito eloquentes neste sentido. O escritor Ariel Dorfman comenta que, apesar dos horrores do Terror de Estado no Chile, existem por todo lado pessoas que admiram o “bom trabalho” do governo de Pinochet, trazendo a ordem das casernas, afastando a insubordinação de trabalhadores, e principalmente favorecendo a economia de mercado. Por tais razões, escreve ele: “Essa encarnação ambígua de Pinochet – mescla de bichopapão aterrador com paradigma histórico eminente e digno de ser imitado – não desapareceu, como eu 19 esperava, quando em 1990 o Chile recuperou uma democracia precária e restrita.” Já Miguel Rojas Mix mostra mais preocupação com a exaltação da figura de Pinochet porque uma parcela significativa da população chilena lamentou a morte do sanguinário condutor da ditadura chilena. Acrescenta ainda que, mesmo entre aqueles que se tornaram críticos em relação ao general muito mais o fizeram por conta da apropriação indébita de alguns milhões de dólares do que pelos milhares de mortos e desaparecidos pelo Terror de Estado. Como símbolo da exaltação que o chefe ainda recebe no Chile, Rojas Mix apresenta na contracapa do livro uma fotografia de homenagens prestadas durante o velório de Pinochet, que comenta no Prólogo do livro: “Y la foto de los tres jóvenes haciendo el saludo fascista sobre el ataúd presagia el futuro. Fue entonces que me dije que era hora de 20 publicar estas reflexiones.” Finalizo este texto, trazendo à baila a película chilena No, dirigida por Pablo Larraín e estreando em 2012. O enredo trata das estratégias que os oposicionistas à ditadura militar chilena desenvolveram para o plebiscito que o governo havia convocado, na convicção de que seria vitorioso. Contra as expectativas de que o voto “si” legitimaria Pinochet, a campanha pelo “no” inverteria esta situação, trazendo na sua esteira o afastamento dos militares e a redemocratização do país. No filme, o grande artífice da campanha publicitária pelo ”no” é representado pelo renomado ator mexicano Gael García, e a película foi indicada para premiação do Oscar em 2013. Chamo atenção para isto, porque assistindo ao

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1968-1981. Porto Alegre: UFRGS, 2010. Orientador Enrique Serra Padrós: FERNANDES, Ananda S. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre a ditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (19641973). Porto Alegre: UFRGS, 2009; BECHER, Franciele. O “Perigo moral” em tempos de segurança nacional: políticas públicas e menoridade em Caxias do Sul- RS (1962-1992). Porto Alegre: UFRGS, 2012; REIS, Ramiro J. Operação Condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre, Porto Alegre: UFRGS, 2012; LAMEIRA, Rafael F. O Golpe de 1964 no Rio Grande do Sul: A Ação Política Liberal-Conservadora na Construção do Golpe Civil-Militar. Porto Alegre: UFRGS, 2012. Teses de Doutorado: Orientador Cesar A. B. Guazzelli: PADRÓS, Enrique S. “Como el Uruguay no hay”: terror de Estado e segurança nacional Uruguai (1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005; ROSA, Michele R. "Esquerdisticamente afinados”: os intelectuais, os livros e as revistas das editoras Civilização Brasileira e Paz e Terra: (1964-1969). Porto Alegre: UFRGS, 2011. Orientadora Claudia Wasserman: BAUER, Caroline S. Um estudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civil-militares argentina e brasileira e a elaboração de políticas de memória em ambos os países. Porto Alegre: UFRGS (co-tutoria com a Universtat de Barcelona), 2011; COUTO, Cristiano P. de P. Intelectuais e exílios: confronto de resistências em revistas culturais: Encontros com a civilização brasileira, Cuadernos de Marcha e Controversía (1978 – 1984). Porto Alegre: UFRGS, 2013. Orientados Pedro C. D. Fonseca: RAMIREZ, Hernán R. Os institutos de estudos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1996. Porto Alegre: UFRGS, 2005. WASSERMAN, Claudia & GUAZZELLI, Cesar A. B. Ditaduras Militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. DORFMAN, Ariel. O longo adeus a Pinochet. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 192. ROJAS MIX op. cit. p.12.

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filme, me senti temeroso de que ganhasse o “si”, mesmo que obviamente seja conhecedor do resultado daquele plebiscito! Isto para atestar a tensão emocional e o horror que o tema ainda me causa! Mais que nunca precisamos cuidar para que não reapareça o Terror de Estado! ¡Viva Chile, mierda!

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La agenda pendiente del proceso de paz salvadoreño: Justicia Transicional, Ley de Amnistia y Comisión de la Verdad.1 Aleksander Aguilar Antunes

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Resumen: El rabioso conflicto salvadoreño que oficialmente vigoró entre 1980 y 1992 no fue únicamente la irrupción de la violencia armada, ni estaba anclado solamente en el contexto de la Guerra Fría. Hoy persiste un escenario socio-político en el país centroamericano marcado por la presencia de tensiones y violencias que tienen por fundamento, no por acaso, las incertezas sobre la noción de paz, o el revelarse de los peligros de una paz negativa asumida como la necesaria y, por consecuencia, institucionalizada. Las pendencias de los Acuerdos de Paz de Chaputelpec se expresan principalmente en la no aceptación y en el cumplimiento parcial de las recomendaciones de la Comisión de la Verdad, en la ausencia de implementación de la Justicia de Transición y en la vigencia de la Ley General de Amnistía, mermando las posibilidades de reconciliación nacional e impidiendo la consolidación de la democracia. Palabras Claves: Proceso de paz salvadoreño - Memoria Histórica – Justicia Transicional – Ley de Amnistia – Comisión de la Verdad Abstract: The raging conflict in El Salvador, which officially lasted between 1980 and 1992, was not only the emergence of an armed violence period in the country, nor was merely anchored within the context of the Cold War. Still nowadays remains in this Central American State a socio-political scenario marked by the presence of tensions and violence. This, not by chance, is fuelled by the uncertainties on the notion of peace, or the revelations from the potential dangers that stem from a negative peace accepted as necessary and, consequently, institutionalized. The quarrels of the Chaputelpec´s Peace Accords are expressed primarily: in the non-acceptance and in the partial fulfilment of the recommendations of the Truth Commission; in the absecene of the implementation of Transitional Justice and in the ongoing validatiy of the Amnesty Law. These pending pointgs undermine the chances for national reconciliation and prevent the consolidation of the salvadorean democracy. Key words: El Salvador´s peace process – Historical Memory, Transitional Justice, Amnesty Law, Truth Commision

1. El Salvador: sangre, café y rebelión Los Acuerdos de Chapultepec en 1992 pusieron fin a la guerra civil en El Salvador y dieron paso a una nueva fase en la historia política del país. Pero esto también conllevó que se asumiera que el fin de la guerra significaba vivir en paz, ignorando deliberadamente que la noción sobre esta incluye mucho más que la mera ausencia de guerra. En El Salvador se instauró en el postguerra una eficiente Comisión de la Verdad que se convertió en modelo mundial, organizada bajo tutela de las Naciones Unidas. El trabajo de dicha comisión en el país evidenció que para la construcción de la democracia era necesario hacer desaparecer falacias históricas y clarificar los hechos. Eso corroboró la idea de que la promoción de memoria historica contribuye para la reconciliación nacional y, a la vez, demostró que la agenda para su plena efectivación sigue lejos de estar completa. La lucha armada salvadoreña no estaba anclada solamente en el contexto de la Guerra Fría, sino tuvo origen en la larga historia de exclusión política y social de la gran mayoría de la población. En un breve repaso histórico, en 1823 las Provincias Unidas de Centroamérica (Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicaragua y Costa Rica) ya independientes de España desde dos años, se constituyeron como una república federal. La federación, sin embargo, era débil y se corroyó en 1838. Surgen repúblicas independientes, pero durante décadas se formaron, generalmente a la fuerza, federaciones y confederaciones que reunían algunas provincias anteriores y que luego volvían a disolverse. Con la excepción de Costa Rica, en los demás países centroamericanos se dio una larga sucesión de dictadores, juntas cívico-militares y coroneles separatistas que se disputaron la presidencia en distintos períodos. Los países de Centroamérica “en los primeros 170 años que siguieron después de su 1 2

Recife, Brasil, fevereiro/2013. Máster en Estudios Internacionales por la Universitat de Barcelona (UB), becario Fundación Carolina, y doctorando en Ciencia Política por la Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), becario CAPES. email:antular@hotmail.com - fone: 81-9934 5189

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independencia, se organizaron como economías oligárquicas cuya cohesión se mantuvo por medio de la 3 represión más que por la participación”. En 1841, la Asamblea Constituyente estableció la separación formal de El Salvador de la Federación Centroamericana, y declaraba al país Estado independiente y soberano, pero se intensificaron las disputas entre los dos grupos políticos. Cambios en la legislación a partir de entonces permitieron a unas pocas familias apoderarse de grandes extensiones de tierras. Estas familias se desarrollaron en el área del comercio y en la producción e industrialización de café. El gobierno se quedó en manos de los grandes terratenientes cafetaleros. La élite económica pasó a controlar el país. La situación se hizo conocida como el control de las 14 Familias (número simbólico, relacionado con el numero de departamentos del país) u Oligarquía Criolla, por ser un grupo de descendientes directos de españoles nacidos en el país (EQUIPO MAÍZ, 2005). A partir de 1930, con la crisis del precio del café en el mercado internacional, hay una crisis institucional y los militares toman el poder. Empieza en El Salvador, con el general Maximiliano Hernández Martínez, un largo período de gobiernos autoritarios controlados por las Fuerzas Armadas. En 1932 el dictador Maximiliano sumergió en sangre la insurrección campesina indígena 4 cometiendo uno de los genocidios más brutales de la historia de El Salvador y de América Latina. Después de su deposición, hasta 1972 se sucedieron una serie de gobiernos militares fruto de continuos golpes de Estado o de elecciones fraudulentas. En esos años empezaron a surgir organizaciones y sindicatos llevando a cabo luchas reivindicativas laborales, como la influyente Asociación Nacional de Docentes de El Salvador (ANDES). Pero para las dictaduras militares y las élites económicas del país las reivindicaciones significaban el riesgo de pérdida de poder. Por eso se recrudecía la represión y crecía la indignación en la población. La sociedad salvadoreña estaba dividida y una economía de pobreza y de exclusión social fue mantenida por medio de largos períodos de dictaduras militares. Emergió en El Salvador en esta época, bien como en las vecinas Guatemala y Nicaragua, grupos guerrilleros como actores armados contra los regímenes dictatoriales. La aspiración era la de erradicar las dictaduras militares y establecer sociedades socialistas. Hubo una ruptura en el Partido Comunista Salvadoreño (PCS) en los años 60 con la salida de militantes históricos, situación que dio origen a organizaciones clandestinas dispuestas a impulsar la lucha armada, como el Ejercito Revolucionario del Pueblo (ERP) y las Fuerzas Populares de Liberación (FPL). De divergencias internas en el ERP surge la Resistencia Nacional (RN) y de nuevas escisiones en esta surge el Partido Revolucionario de los Trabajadores Centroamericanos (PRTC). Fue solamente en 1977 que el PCS concluyó que debería unirse a la lucha revolucionaria armada. Por lo tanto, en 1978 esas cinco organizaciones políticas-militares deciden empezar un proceso de unificación y crean una Dirección Revolucionaria Unificada (DRU), que dio pasó a la construcción del Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN), constituido formalmente en 10 de octubre de 1980. Es importante ubicar la rebelión de dimensionas nacionales en el contexto internacional, especialmente respecto la Guerra Fría y el involucramiento de los Estados Unidos durante el gobierno de Ronald Reagan. El discurso estadounidense era que El Salvador se había convertido en el escenario para un atrevido intento de la URSS, Cuba y Nicaragua de instalar el comunismo en todo el hemisferio americano. Reagan en un mensaje a la nación en 1984, dejó claro que los Estados Unidos harían todo en su poder para frenar el comunismo en América Central y consecuentemente proteger el país (REAGAN, 1984). Fue así como la pequeña nación centroamericana asumió protagonismo en el drama internacional de la Guerra Fría. El gobierno Reagan pasó a apoyar las élites, el ejército y gobierno salvadoreño con una ayuda financiera estimada en más de un millón de dólares diarios durante por lo menos once años (CHING, 2010). Durante el periodo de la guerra, principalmente en su años iniciales, el FMLN obtuvo impresionantes victorias militares y es un aceptado análisis el de que “si no fuera por la ayuda de los 3

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KRUIJT, D. Los movimientos guerilleros en Centroamerica, Nombres Propios. Fundación Carolina, Madrid, 2008, pp. 121-127. Farabundo Martí, fundador y dirigente del Partido Comunista Salvadoreño (PCS) fue el principal y más reconocido líder de los campesinos indígenas en la organización de la insurrección de 32, pero fue encarcelado y muerto antes de la culminación de la rebelión. En diciembre de 1931 por medio de un golpe de estado, llegó al poder el Coronel Maximiliano Hernández, y el clima de insatisfacción social fue el punto de partida para las primeras huelgas de trabajadores en las plantaciones cafetaleras, que demandaban tierra y trabajo. En 22 de enero de 1932, varios campesinos, armados con machetes y pistolas tomaron las ciudades de Tacuba, Juayúa, Izalco y Teotepeque, a demás de los cuarteles de Ahuachapán, Santa Tecla y Sonsonate, dejando muertos en el camino 20 civiles y 30 militares. Sin embargo, la oligarquía salvadoreña con el apoyo del gobierno de turno, sufocaron la rebelión en 3 días, utilizándose de inmensa crueldad. La persecución duró un mes y fueron asesinados 30.000 personas, indígenas campesinos en su mayoría. (HENRIQUEZ CONSALVI, C. & Gould, J. Documental 1932, Cicatriz de la memoria. Museo de la Palabra y la Imagen, San Salvador, 2008. Disponible en http://video.google.es/videoplay?docid=683961949821788422&hl=es#. Ultimo acceso en 30 enero 2013.

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Estados Unidos al gobierno, la guerrilla habría ganado el conflicto” . Los guerrilleros lograron un empate con el ejército salvadoreño después de 11 años de guerra y tenían suficiente poder de negociación para lograr algunos de sus objetivos claves como reformas democráticas y la depuración de las fuerzas militares y cuerpos de seguridad. 2. Negociación e implementación de la paz en El Salvador De esta forma, entre lós años de 1980 a 1992 la República de El Salvador en América Central estuvo hundida en una guerra que desgastó a la sociedad del país por medio de intensos niveles de 6 violencia que dejó millares de muertos y la marcó “con formas delincuenciales de espanto” . Aunque no existen datos definitivos sobre el número total de víctimas de violaciones de Derechos Humanos durante el conflicto armado, se estima que se torturó, ejecutó extrajudicialmente o se hizo desaparecer por lo menos a unas 75.000 personas (BBC MUNDO, 2004). Los Acuerdos de Paz de 92 establecieron un marco institucional para cerrar la guerra civil en el país y para el FMLN deponer las armas, transformándose en una fuerza político-electoral. Pero el proceso de diálogo y negociación entre el gobierno y el Frente fue complejo. Hubo desconfianzas y la elaboración de la agenda fue un consenso difícil. Después de varios rondas de debates como Grupo Contadora, reuniones de La Palma y proceso de Esquipulas, se alcanza el primer acuerdo, en Ginebra, 1990. En ese momento se iniciaron dos intensos años de negociación que resultaran en la firma de los Acuerdos de Paz de Chapultepec, en México, el 16 de enero de 1992. Los Acuerdos de Chapultepec reiteraron compromisos anotados en Ginebra y añadieron reformas políticas y jurídicas en temas esenciales para la democratización del país. Fueron el resultado de más de tres años de convenios negociados entre las dos partes bajo los auspicios de las Naciones Unidas. Se estableció la depuración y reducción de la Fuerza Armada. El ejército fue designado garante de la soberanía y la defensa nacional, sustrayéndolo de funciones que tuvieran que ver con la seguridad interna y pública (lo que también ayuda a explicar el porqué la reciente decisión del actual gobierno, del proprio FMLN, en enviar el ejército a contribuir en la seguridad pública ha sido tan controversial en el país). Los batallones, como el Atlacatl, formados como estrategia contrainsurgente, fueron disueltos. La creación de una nueva Policía Nacional Civil (PNC) fue uno de los principales puntos de los acuerdos. Basada en la doctrina de servicio a la sociedad, la instauración de la Academia Nacional de Seguridad Publica fue parte de los pactos. Los Acuerdos de Chapultepec también establecían un conjunto de medidas económico-sociales. Se creó la Procuraduría para la Defensa de los Derechos Humanos, como mecanismo para asegurar el respeto irrestricto a estos principios. También se hicieron reformas electorales para dotar las elecciones de mayor transparencia y obtener la confianza de la ciudadanía. En las áreas rurales pese los esfuerzos concertados por abordar las necesidades de retornados, combatientes y población afectada por la guerra, los programas implementados se quedaron cortos con relación a las expectativas. Según el actual vicepresidente del país, Sánchez Céren, (…) en este punto el acuerdo no representa una transformación de la estructura de la propiedad que hoy en día nos muestra una concentración de tierras y riqueza en manos de una minoría. Hay que recordar que una de las causas generadoras del conflicto armado fue la imposibilidad de acceso a la tierra por parte del campesinado y el 7 predominio del latifundismo.

Puede decirse que se llevaron a cabo los programas de retorno, reinserción, o repoblación. Pero en su núcleo, y en el mejor de los casos, sus resultados no excedieron a una reinstalación de las personas afectadas directamente por la guerra – mujeres, hombres, hogares – en las mismas condiciones de pobreza y marginalidad que vivían antes de los conflictos armados. Hubo reinserción, pero no integración social y productiva (GAMMAGE, 2002). Aunque se pactaron temas (como el Foro Económico) que no se implementaron, los Acuerdos de Paz Chapultepec pusieron fin a la guerra civil y dieran paso a una serie de reformas políticas y militares. Pero según señala Monterrosa, “el discurso gubernamental, y quizá también el popular, comenzó a asumir que el fin de la guerra significaba vivir en paz. Desde el punto de vista de las causas de la guerra, 5

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CHING, E. Civil war and guerrilla radio in northern Morazán, El Salvador: setting the stage for reading La terquedad del Izote, 2010, p. 3 INFORME DE LA COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR. De la Locura a la Esperanza. La guerra de doce años en El Salvador publicado por el Departamento de Información Pública de las Naciones Unidas en Las Naciones Unidas y El Salvador, 1990-1995. Serie de Libros Azules de las Naciones Unidas, Volumen IV, Nueva York, 1995, p. 3. SÁNCHEZ CERÉN, S. Con sueños se escribe la vida, Editorial Ocean Sur, San Salvador, 2008, p. 228.

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el conflicto no está cerrado”.

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3. La actual conflictividad en El Salvador Es común y ampliamente reconocido que el fin de la guerra no representó el establecimiento de la paz (GAMMAGE, 2002; CERÉN, 2008; CONSALVI, 2008; MONTERROSA, 2009). Hablar de paz en El Salvador puede conformar un desafío lleno de complejidades. Como señala Arévalo, los esfuerzos para la para la construcción de una cultura de paz “son contrarios a toda la construcción ideológica educativa 9 republicana existente en el país”. La violencia es una constante en El Salvador y ocurre desde la cultura, la política y la educación. Hay una violencia directa que es resultado de la violencia estructural vigente y esta conforma la base sobre la cual se realizó la reconstrucción de la sociedad salvadoreña. Es necesario por lo tanto conceptualizar las nociones de violencia y de paz a la luz de los llamados estudios de paz y conflicto. Johan Galtung, uno de los principales estudiosos de esta ciencia social aplicada llamada “Investigación para la Paz”, ha evidenciado que la contraposición a la paz no 10 está en la guerra, sino en la violencia – una definición ya bastante popularizada y repetida. En estos términos, el concepto medular necesario es la idea de paz como quehacer, como tarea de todos. Paz, según explica Fisas (2002), no tiene nada que ver con un concepto blando, angélico o etéreo, sino un horizonte de transformación social. Vigora en El Salvador un tipo de violencia estructural que se manifiesta a través de la dicotomía de pobreza de las amplias mayorías y privilegios de reducidas élites. La pobreza en El Salvador es resultado de un proceso paulatino, sistemático e histórico de exclusión y desigualdad existentes adentro de la sociedad. Pero El Salvador además de su condición de vulnerabilidad social, también tiene manifestaciones bastante directas de violencia. Efectivamente, según el informe 2009-2010 sobre Desarrollo Humano para América Central del Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD) la región, y en especial el llamado Triangulo Norte (conformado por El Salvador, Honduras y Guatemala) “es hoy por hoy la más violenta del mundo. Si se exceptúan las guerras que padecen algunas partes de África o de Asia, esta región registra 11 las tasas de homicidio más elevadas del planeta” . La inseguridad en El Salvador se complica aún más por el crimen organizado. Las organizaciones internacionales del narcotráfico utilizan El Salvador, al igual que al resto de países de Centro América, como una ruta de paso para transportar droga entre los países productores y los países consumidores. Hoy vigora un evidente conflicto en El Salvador. Hay un escenario de violencia directa y estructural que existe con suficiente intensidad para llevar al gobierno – no sin encontrar críticas y oposición en una polémica que persiste – por decidir militarizar la seguridad pública en noviembre de 2009 y recurrir a la utilización del Ejército para frenar la violencia. Con esto 2.500 soldados y oficiales se sumaron a la policía para combatir la delincuencia en el país. Pero el conflicto salvadoreño también tiene que ver con su historia, su incapacidad de establecer justicia y verdad, su agenda pendiente en términos de Memoria histórica que concretamente es parte de la falta del cumplimiento cabal de los Acuerdos de Paz de Chapultepec. De este incumplimiento tiene origen una reconciliación nacional a medias, unas instituciones con un largo camino por consolidarse, la vigencia únicamente de una paz negativa y mucho quehacer hacia la paz positiva. En septiembre de 2009, el Centro Internacional para la Justicia Transicional (ICTJ, en la sigla en inglés) y el Instituto de Derechos Humanos de la Universidad Centroamericana José Simeón Cañas (IDHUCA) de El Salvador presentaron al Consejo de Derechos Humanos de la ONU, un reporte sobre lo que consideran los temas pendientes que debe enfrentar El Salvador para cerrar el legado de violencia del conflicto armado que vivió el país entre 1980 y 1992. El documento hace un recuento de la deuda vigente del Estado salvadoreño con las víctimas en materia de verdad, justicia y reparación. La materialización de esa situación en El Salvador se refleja en tres elementos: 

el no cumplimiento de la Justicia Transicional;

la Ley de Amnistía (1993);

la falta de divulgación y puesta en práctica de las recomendaciones de la Comisión de la Verdad

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MONTERROSA, L. Entrevista concedida por email a Aleksander Aguilar. San Salvador, 20 julio 2009. ARÉVALO, A. Construyendo un futuro común: una propuesta de educación para la paz en El Salvador. Castellón de la Plana. Cátedra UNESCO Filosofía para la Paz. Master Internacional en Estudios de Paz, Conflictos y Desarrollo – Universitat Jaume I, 2009. GALTUNG, J. Peace by Peaceful Means. Oslo, Sage Publications, 1996, p. 9. PNUD. Informe sobre Desarrollo Humano para America Central: abrir espacios para la seguridad ciudadana y el desarrollo humano. Naciones Unidas, Impreso en Colombia, 2011.

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Son esas deudas los principales elementos que conforman lo que se ha dado llamar de “agenda 12 pendiente del proceso de paz salvadoreño”.

3.1 La Justicia Transicional La Justicia Transicional es como se suele llamar la implementación de una justicia adaptada a sociedades que se transforman a sí mismas después de un período de violación generalizada de los Derechos Humanos. Su objetivo es reconocer a las víctimas y promover iniciativas de paz, reconciliación y democracia. Es un enfoque que surgió a finales de los años 80, principalmente como respuesta a cambios políticos y demandas de justicia en América Latina y en Europa oriental. Es un concepto que plantea cuatro tareas fundamentales para que consolide la democracia en Estados que vivieron regímenes autoritarios: reforma institucional, derecho a la memoria y a la verdad, reparación de las víctimas y tratamiento jurídico adecuado de los crímenes cometidos. En 1998, la creación de la Corte Penal Internacional, a partir del Estatuto de Roma, fue significativa para el respaldo de estos principios, dado que el Estatuto de la Corte consagra obligaciones estatales de importancia vital para la lucha contra la impunidad y el respeto de los derechos de las víctimas. El Salvador, que no es signatario del Estatuto de Roma, a su turno, para estar al día con la Justicia Transicional, debería cumplir con las recomendaciones emitidas por la Comisión de la Verdad. Esto incluye implementar las observaciones dirigidas a prevenir la repetición de los hechos, particularmente en lo que se refiere a la persecución penal de los autores intelectuales y materiales de las violaciones a Derechos Humanos. Y, especialmente, las autoridades salvadoreñas tendrían que eliminar los obstáculos legales que impiden la investigación de los hechos ocurridos y que facilitan la impunidad, tal como la Ley de Amnistía. 3.2 La Ley de Amnistía en El Salvador El informe de la Comisión Verdad para El Salvador fue tildado por la cúpula militar de la república 13 centroamericana como “injusto, incompleto, ilegal, parcial y atrevido”. Pero la Asamblea Legislativa, en 1993, antes de la publicación del documento final de la Comisión, aprobó el proyecto del gobierno: “Ley 14 de Amnistía General para la Consolidación de la Paz” . Esa norma, aún vigente, establece la extinción de la acción penal y civil de todas aquellas personas que estuvieron comprometidas en violaciones de los Derechos Humanos durante el conflicto. En la práctica eso significa que la posibilidad de las víctimas de exigir justicia y reparación en los tribunales con base en la información aportada por la Comisión de la Verdad está vedada por ese enorme obstáculo. El impedimento que esa ley representa para la aplicación de la justicia transicional en El Salvador ha sido puesto de manifiesto durante la visita del Grupo de Trabajo sobre Desapariciones Forzadas o Involuntarias del Consejo de Derechos Humanos de la ONU a este país en 2007, que registró 2.661 casos de personas desaparecidas durante el conflicto armado. El comunicado de prensa del Grupo con los resultados de la labor, afirma que “un elemento fundamental que en el contexto salvadoreño constituye un obstáculo para realizar el derecho a la justicia, a la verdad, a la reparación y a 15 la readaptación, es la vigencia de la Ley de Amnistía de 1993”. En el año 2000, la ley de amnistía salvadoreña fue sometida a control de constitucionalidad a través de varias demandas ante la Corte Suprema de Justicia. La Corte al estudiar específicamente los artículos 1 y 4 de la ley (los cuales las organizaciones de Derechos Humanos argumentan estar en incompatibilidad con una serie de instrumentos internacionales de Derechos Humanos tales como la Convención Interamericana para Prevenir y Sancionar la Tortura, y la Convención Americana Sobre Derechos Humanos) emitió un fallo en que optó sobreseerse en el análisis. Además declaró también que (…) no existen las infracciones constitucionales alegadas, consistentes en que el 12

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INSTITUTO DE DERECHOS HUMANOS DE LA UNIVERSIDAD CENTROAMERICANA JOSÉ SIMEÓN CAÑAS – IDHUCA. La agenda pendiente, diez años después: de la esperanza inicial a las responsabilidades compartidas. San Salvador, Editoriales UCA, 2002. Vid. LA PRENSA GRÁFICA, El Salvador, 22 de marzo de 1993, p.53. ASAMBLEA LEGISLATIVA DE LA REPÚBLICA DE EL SALVADOR. Ley de Amnistía General para la Consolidación de la Paz, Decreto Legislativo nº 486, 20 marzo 1993. Extraído el 10 de febrero de 2013, desde http://www.unhcr.org/refworld/pdfid/3e50fd334.pdf. Ultimo acceso en 10 febrero 2013. COMUNICADO DE PRENSA DEL GRUPO DE TRABAJO SOBRE DESAPARICIONES FORZADAS O INVOLUNTARIAS DEL CONSEJO DE DERECHOS HUMANOS DE LAS NACIONES UNIDAS, emitido por el señor Santiago Corcuera, Presidente-Relator del Grupo de Trabajo, y el señor Darko Göttlicher, miembro del mismo Grupo, luego de su misión a El Salvador. Febrero de 2007.

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artículo 1 de la referida ley viola el art. 244 y el 2 inciso primero de la Constitución; y que el artículo 4 letra e del mismo cuerpo legal contraviene los artículos 2 inciso tercero y 245 Cn., ya que tales disposiciones admiten una interpretación conforme a la 16 Constitución.

En 2012, el procurador de los Derechos Humanos de El Salvador, Oscar Luna, explicó que como parte del compromiso con los organismos internacionales en El Salvador “la ley de Amnistía debió haberse derogado hace tiempo”. Sobre esto, Benjamin Cuellar, director del IDHUCA, ha sido incisivo: “En los 20 años luego de los Acuerdos de Paz el único paso que no se ha dado es hacia la verdad, resolver 17 el daño, superar la impunidad”.

3.3 La Comisión de la Verdad de El Salvador Las Comisiones de la Verdad son organismos de investigación surgidos partir del debate sobre qué hacer con los responsables de las violaciones a los Derechos Humanos y al Derecho Humanitario. El objetivo es ayudar a las sociedades, como la mayoría de las latinoamericanas en el siglo XX, que han sufrido graves situaciones de violencia política o guerra interna, a enfrentarse críticamente con su pasado, a fin de superar las profundas crisis y traumas generados por la violencia y evitar que tales hechos se repitan en el futuro. De esa forma se crearon, desde instancias del poder oficial en países como Argentina, Chile y El Salvador espacios para las investigaciones de Comisiones. En estos países las Comisiones de la Verdad se crearon por mandato legal, pero no sin la fuerte incidencia de actores políticos interesados en asegurar la memoria histórica y la reparación del las víctimas. La Comisión de la Verdad de El Salvador, fruto de los Acuerdos Chaputelpec, estaba compuesta por especialistas de alto nivel y tenían un mandato temporal de apenas seis meses. Los comisionados por la ONU, al contrario de lo que se hizo en Argentina y Chile, eran académicos de otras nacionalidades, no salvadoreños y fueron: Belisario Betancur (Ex Presidente de Colombia), Reinaldo Figueredo Planchart (Congresista venezolano) y Thomas Buergenthal, (juez estadounidense, ex Presidente de la Corte Interamericana de Derechos Humanos). Entre las definiciones y facultades, la Comisión tendría a su cargo “la investigación de graves hechos de violencia ocurridos desde 1980, cuya huella sobre la sociedad reclama con mayor urgencia el 18 conocimiento público de la verdad” . La Comisión se constituye en instrumento de contribución para erradicación de la impunidad cuando tiene su autoridad ampliada en el artículo 5 del Acuerdo de Paz de Chapultepec denominado “Superación de la Impunidad” y el conjunto de esas disposiciones, luego, componen su Mandato. El trabajo de la Comisión de la Verdad hizo un análisis de los patrones de violencia usados durante la guerra civil, es decir, el examen de responsabilidades materiales e intelectuales en algunos casos. La comisión recibió 23.000 denuncias de las cuales se elaboró una lista de 13.569 casos a investigar. De estos últimos la comisión eligió “casos ilustrativos” de los patrones de violencia de las partes contendientes durante la guerra civil, como el asesinato en marzo de 1980 del arzobispo de San Salvador, Óscar Arnulfo Romero, y la masacre de El Mozote, en diciembre de 1981. Sus conclusiones detallaron también otras aniquilaciones y desapariciones forzadas producidas en operaciones militares y actos de violencia de las fuerzas guerrilleras, como el asesinato de alcaldes. El vicepresidente de la República y ministro de Educación ad honorem, Salvador Sánchez Cerén, anunció en enero de 2012 que la Comisión de la Verdad desclasificaria las investigaciones de los casos tratados y que el mismo Ejecutivo promoverá que esta información sea difundida. Pero la Procuradoría para la Defensa de los Derechos Humanos (PDDH), no há confirmado la intención de desclasificar la información (GARCÍA, 2012). Para visualizarse el incumplimiento de la Comisión de la Verdad de El Salvador, destacase que esta presentó una serie de recomendaciones que incluyen cuatro grandes grupos de medidas:

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SALA DE LO CONSTITUCIONAL DE LA CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE EL SALVADOR. Resolución nº 24-97/21-98. Extraído en 22 de octubre de 2009 desde la base de datos http://www.csj.gob.sv/constitu/jur_base.htm. GARCÍA, Gabriel. Desclasificarán archivos de la Comisión de la Verdad. Diario Digital Contrapunto, 2012. Disponible en: http://www.contrapunto.com.sv/cparchivo/derechoshumanos/desclasificaran-archivos-decomision-de-la-verdad. Extraído en 20 octubre 2012. INFORME DE LA COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR (1995). De la Locura a la Esperanza. La guerra de doce años en El Salvador publicado por el Departamento de Información Pública de las Naciones Unidas en Las Naciones Unidas y El Salvador, 1990-1995. Serie de Libros Azules de las Naciones Unidas, Volumen IV, Nueva York, p. 10

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I. reforma de la legislación penal y el Poder Judicial, II. depuraciones en las Fuerza Armadas, Fuerzas Policiales y dentro de la administración pública; III. inhabilitaciones políticas a las personas involucradas en violaciones de los Derechos Humanos y del Derecho Humanitario, por un lapso no menor de diez años. IV. otorgamiento de reparación material y moral para las víctimas de la violencia y sus familiares directos. El presidente Mauricio Funes ha cumplido una parte importante de su deber en lo referente al proceso transicional, como jefe de Estado, ha reconocido en algunas oportunidades, de manera inédita, la responsabilidad del Estado por las masacres y ha pedido perdón. En 16 de enero de 2010, en ocasión de conmemorarse 18 años desde la firma de los Acuerdos de Paz, Funes dirigió el más gran acto por la memoria histórica en el país hasta la fecha y reconoció la responsabilidad del Estado salvadoreño en graves violaciones a Derechos Humanos contra la población civildurante el conflicto armado; pidió perdón por esos graves crímenes en nombre del Estado salvadoreño; anunció la creación de la Comisión Nacional de Búsqueda de niñas y niños desaparecidos durante el conflicto armado, y se comprometió a establecer mecanismos para la reparación moral y material por los daños ocasionados. Sin embargo el esfuerzo estatal para castigar a los responsables, reparar a las víctimas y adoptar mecanismos para que las violaciones no se repitan no es suficiente dado que estas manifestaciones del Estado, sumadas a la depuración de las Fuerzas Armadas al fin de la hostilidad bélica, solamente expresan que, pasados más de 20 años, apenas las dos primeras recomendaciones de la Comisión de la Verdad han sido parcialmente cumplidas.

4. Conclusión La posguerra en El Salvador demostró las insuficiencias de una transición que no enfrenta el pasado. Vigora en el país un reconocido incumplimiento del Estado en materia de verdad, justicia y reparación como requisito imperioso para la construcción de un verdadero Estado de derecho. La población de El Salvador se siente insegura y las tasas de delincuencia son espeluznantes. No obstante, sorprendentemente no hay en el país una política integral de seguridad y la paz negativa es el concepto institucionalizado. Algunos de los factores que explican los altos niveles de violencia que afectan la sociedad salvadoreña son la inequidad, la falta de oportunidades económicas y sociales, los altos índices de impunidad penal y la insuficiente capacidad de las instituciones para hacer frente a la problemática, al punto de optarse por la utilización del ejército en la seguridad pública. Y El Salvador tiene víctimas que seguirán surgiendo de continuar vigente el actual modelo, y en una falta de política preventiva eficaz y diseñada como herramienta de construcción de paz. La memoria histórica tiene un papel clave para desmantelar los mecanismos que han hecho posible el terrorismo de Estado y para evidenciar el sistema económico y político excluyente, además de configurarse como un instrumento poderoso para resistir e impedir el desvanecimiento de las identidades culturales. En El Salvador la inédita e histórica victoria electoral del FMLN trajo expectativas positivas en diversas organizaciones de Derechos Humanos en la comunidad internacional para que se alcance la superación de la impunidad y el derecho a la verdad, a la justicia y a la reparación. La no aplicación de las recomendaciones de la Comisión de la Verdad para la implementación de la justicia transicional contribuye para que se mantenga en abierto el legado de violencia del conflicto armado que vivió el país entre 1980 y 1992. Más de 20 años de los Acuerdos de Paz, aun vigora la deuda del Estado frente a las miles de víctimas de violaciones a los Derechos Humanos. Los responsables no fueron juzgados y los temas económico-sociales – que están en las raíces del origen del conflicto armado – no fueron abordados satisfactoriamente. Permanece como el gran reto la revisión de la ley de amnistía.

5. Referências Bibliográficas ARÉVALO, A. Construyendo un futuro común: una propuesta de educación para la paz en El Salvador. Castellón de la Plana. Cátedra UNESCO Filosofía para la Paz. Master Internacional en Estudios de Paz, Conflictos y Desarrollo – Universitat Jaume I, 2009. ASAMBLEA LEGISLATIVA DE LA REPÚBLICA DE EL SALVADOR (1993); Ley de Amnistía General para 37


la Consolidación de la Paz, Decreto Legislativo nº 486, 20 marzo 1993. Extraído el 10 de febrero de 2013, desde http://www.unhcr.org/refworld/pdfid/3e50fd334.pdf. Ultimo acceso en 10 febrero 2013. BBC MUNDO. Radiografía de El Salvador. Publicado en 2004. Extraído el 28 de enero de 2013, desde http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/international/newsid_3550000/3550459.stm CHING, E. Civil war and guerrilla radio in northern Morazán, El Salvador: setting the stage for reading La terquedad del Izote, Furman University, Greenville, USA, 2010. COMUNICADO DE PRENSA DEL GRUPO DE TRABAJO SOBRE DESAPARICIONES FORZADAS O INVOLUNTARIAS DEL CONSEJO DE DERECHOS HUMANOS DE LAS NACIONES UNIDAS, emitido por el señor Santiago Corcuera, Presidente-Relator del Grupo de Trabajo, y el señor Darko Göttlicher, miembro del mismo Grupo, luego de su misión a El Salvador. Febrero de 2007. CONSALVI, C.H. Entrevista concedida personalmente a Aleksander Aguilar. San Salvador, 6 octubre 2008. EQUIPO MAÍZ. Historia de El Salvador, Editorial Asociación Equipo Maiz, San Salvador, 2005. FISAS, V. Cultura de Paz y Gestión de Conflictos. Barcelona, Editorial Icarias – Ediciones Unesco, 2002. GALTUNG, J. Peace by Peaceful Means. Oslo, Sage Publications, 1996. GAMMAGE, S. Retorno con integración: el reto después de la paz. San Salvador, FLACSO-Programa El Salvador, 2002. GARCÍA, Gabriel. Desclasificarán archivos de la Comisión de la Verdad. Diario Digital Contrapunto, octubre 2012. Disponible en:http://www.contrapunto.com.sv/cparchivo/derechoshumanos/desclasificaranarchivos-de-comision-de-la-verdad. Extraído en 20 octubre 2012. INFORME DE LA COMISIÓN DE LA VERDAD PARA EL SALVADOR. De la Locura a la Esperanza. La guerra de doce años en El Salvador publicado por el Departamento de Información Pública de las Naciones Unidas en Las Naciones Unidas y El Salvador, 1990-1995. Serie de Libros Azules de las Naciones Unidas, Volumen IV, Nueva York, 1995. INSTITUTO DE DERECHOS HUMANOS DE LA UNIVERSIDAD CENTROAMERICANA JOSÉ SIMEÓN CAÑAS – IDHUCA. La agenda pendiente, diez años después: de la esperanza inicial a las responsabilidades compartidas. San Salvador, Editoriales UCA, 2002. KRUIJT, D. Los movimientos guerilleros en Centroamerica, Nombres Propios. Fundación Carolina, Madrid, 2008. MONTERROSA, C. Entrevista concedida por email a Aleksander Aguilar. San Salvador, 20 julio 2009. PNUD. Informe sobre Desarrollo Humano para America Central: abrir espacios para la seguridad ciudadana y el desarrollo humano. Naciones Unidas, Impreso en Colombia, 2011. REAGAN, R. Address to the Nation on the United States Policy in Central America. Oval Office at the White House, Washington D.C., 1984. Disponible en http://www.reagan.utexas.edu/archives/speeches/1984/50984h.htm. Ultimo acceso 10 febrero 2013. SALA DE LO CONSTITUCIONAL DE LA CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE EL SALVADOR. Resolución nº 24-97/21-98. Extraído en 22 de octubre de 2009 desde la base de datos http://www.csj.gob.sv/constitu/jur_base.htm. SÁNCHEZ CERÉN, S. Con sueños se escribe la vida, Editorial Ocean Sur, San Salvador, 2008.

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A ditadura de Stroessner no Paraguai e o controle da oposição: os mecanismos usados pela ditadura stronista visando ao controle da oposição. Miguel Dos Santos

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Resumo: O regime ditatorial imposto pelo general Stroessner ao povo paraguaio desde 1954 não se furtou do uso de medidas violentas para controlar a oposição política que tentava se organizar no sentido de pressionar o governo. O general ditador dispôs de um leque de mecanismos autoritários que iam desde a perseguição político-partidária, do exílio, da tortura e dos assassinatos, e ainda contou com a cooperação de diversos setores da sociedade paraguaia na sua cruzada contra as pessoas ou instituições que se voltassem contra o regime autoritário por ele estabelecido. Palavras-chave: Stroessner – oposição – mecanismos-autoritários – Paraguai – povo. Abstract: the dictatorial regime imposed by general Stroessner after 1954 to the Paraguayan people did not avoid to use violence to control the political opposition that was trying to organized himself to make pressure against the government. The dictador had a lot of mechanism like authoritarian party-political, exile, torture and murder, and still had the cooperation of various sectors of Paraguayan society in his crusade against people or institutions that turned against the authoritarian regime established by him. Keywoards: Stroessner – opposition – mechanism-authoritarians – Paraguay – people.

O longo período do regime militar stronista no Paraguai deixou marcas que dificilmente serão apagadas do contexto social do país, haja vista as características autoritárias, exclusivistas e opressivas de um Estado elitista mais preocupado com a manutenção do status quo de uma minoria de indivíduos em detrimento da grande massa da população que vivia em condições extremamente precárias. Essa longa sobrevivência da ditadura de Stroessner não se deu pelo acaso, mas sim, devido a uma eficiente organização estatal repressiva e autoritária que buscava, incessantemente, eliminar qualquer vestígio de oposição ao regime estabelecido. Stroessner enfrentó vários desafios, pero sobrevivió poniendo en marcha la consolidación de un tipo diferente de autoritarismo. Delineó objetivos de modernización: la erradicación del caos interno y la necessidad de proporcionar a la población un certo grado de participación política. Para incrementar la seguridad interna, su administración prohibió todo cuestionamiento o ataque a su legitimidad, así como también a sus posiciones ideológicas y sus orientaciones políticas. La ruptura entre el sistema social y el sistema político se volvió evidente. El régimen atendia a las necesidades y las expectativas de un grupo reducido de ciudadanos. La represión sirvió para conservar dicho orden institucional (MIRANDA, 1990, p. 10).

Nesse sentido, vários foram os mecanismos usados pela ditadura stronista para se consolidar no poder, sendo que todos eles buscavam, de alguma forma, senão eliminar, ao menos limitar, 2 significativamente, o alcance dos movimentos das organizações oposicionistas que buscavam a derrocada do regime. Esse trabalho do aparelho repressivo e autoritário se deu nas mais variadas instâncias da sociedade paraguaia; indo desde os setores mais populares, incluindo aqui os camponeses, passando pelos partidos políticos, inclusive alguns membros do partido oficial, e terminando na burocracia estatal. Essa foi a forma encontrada pelo regime de Stroessner para garantir sua longa duração no poder, mesmo que isso custasse um alto preço ao povo paraguaio. Este artigo é parte integrante da monografia apresentada no curso de pós-graduação em História do Brasil Contemporâneo, na Fapa, e tem como objetivo analisar como a ditadura stronista controlou a 1

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Pós-Graduado em História do Brasil Contemporâneo pela Fapa e professor da rede pública e privada de ensino do Rio Grande do Sul. Contato: miguelfapa77@gmail.com – (51-93182503) As principais organizações oposicionistas ao regime stronista foram, em um primeiro momento: o Partido Liberal, o Partido Febrerista e o Partido Comunista Paraguaio. Em um segundo momento também participaram da oposição ao regime: a Igreja Católica, o Partido Liberal Radical Autêntico, o Mopoco (movimento popular colorado), o grupo 14 de Maio e a Vanguarda Revolucionária. Esses últimos três grupos constituíram a oposição armada ao regime e pressionaram o governo através da guerrilha.

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oposição e quais os mecanismos usados pelo regime no sentido de tornar mais efetivo o controle dos grupos oposicionistas. Nesse sentido, buscar-se-á, no decorrer do trabalho, mapear as ações do regime stronista para a sua consolidação no poder, além de discorrer sobre o papel e o funcionamento de cada estrutura posta em prática pela ditadura de Stroessner. Para a realização desse artigo a metodologia utilizada foi a leitura de material impresso a cerca da temática abordada, além do uso de material disponível na mídia eletrônica. Entre os mecanismos usados pelo regime de Stroessner para se consolidar no poder merece destaque o sistema repressivo montado pelo aparato estatal stronista objetivando o desmantelamento de todos os movimentos que fizessem oposição ao regime. Entenda-se aqui como sistema repressivo todas as ações colocadas em prática pelo Estado paraguaio no intuito de eliminar os focos de tensionamento ao regime que estava em vias de se consolidar no poder, principalmente aquelas medidas que procuravam enquadrar os opositores do regime através das perseguições, da tortura, do exílio e dos 3 assassinatos . Nesse sentido, o controle político foi um dos mecanismos postos em prática pelo Estado no sentido de eliminar a oposição, ou, no mínimo, limitar a participação dos partidos oposicionistas diante da atuação do regime stronista. “Os partidos políticos que atuaram como forças opositoras no Paraguai foram contados” (MIRANDA, 1990, p. 92). Essa situação se tornou fundamental para o governo, pois, se por um lado, os partidos de oposição precisavam ser duramente controlados, por outro havia a necessidade de um espaço de atuação para esses partidos como forma de mascarar o autoritarismo e livrar o regime das pressões internacionais, principalmente das que vinham dos representantes dos direitos humanos. Mesmo assim não se pode afirmar que os partidos de oposição, durante o regime de Stroessner, não tenham existido, pelo contrário; o regime permitiu que alguns partidos continuassem atuando no cenário político nacional, mais como uma forma de dar um caráter “democrático” ao contexto político paraguaio do que por qualquer outra questão; até porque os partidários da oposição que realmente se dispuseram a enfrentar o regime foram perseguidos e exilados pelo governo. Nessa diretriz governamental que envolvia os adversários do stronismo, a cooptação dos lideres da oposição foi outro mecanismo muito utilizado pelo regime como uma medida para desestabilizar os partidos oposicionistas, além da manipulação da oposição pelo governo no sentido de dividi-la e, consequentemente, enfraquecê-la, tornando-a mais suscetível de ser controlada. Nesse contexto, pouco a pouco os velhos líderes do Partido Liberal e do Partido Febrerista, que estavam exilados no exterior, tiveram a permissão para retornar ao país e participarem das eleições, mesmo que essa participação tivesse um objetivo muito específico do ponto de vista do governo: transmitir a ideia de que as eleições no Paraguai eram pluripartidárias e, consequentemente, ocorriam em um ambiente de aura democrática. Foi assim que procedeu a ditadura stronista na eleição presidencial de 1963 quando permitiu que os lideres dos partidos políticos de oposição que haviam sido exilados voltassem ao país e se organizassem para participarem do pleito eleitoral. Esse fato foi significativo para a fragmentação entre os partidos oposicionistas, principalmente do Partido Liberal e do Partido Febrerista, pois essa estratégia do governo visava a cooptação dos líderes desses partidos; e a aceitação dos mesmos a participar das eleições acabava, invariavelmente, gerando conflitos e cisões dentro das organizações partidárias que eram adversárias do regime de Stroessner. Os objetivos do regime eram muito claros nesse sentido, pois, fragmentando os partidos de oposição o governo estaria enfraquecendo-os nos seus objetivos, ao mesmo tempo em que a participação de determinados setores cooptados desses partidos acabaria passando, para a população paraguaia e para o contexto internacional, a idéia de que no Paraguai de Stroessner as eleições eram pluripartidárias e que o povo tinha o direito de escolha através do voto. Porém, essa situação não condizia com a realidade social do país, haja vista que o estado opressor era quem ditava as regras de 4 como deveriam se processar as eleições, inclusive determinando quem deveria ser o vencedor ; nesse caso, o general Alfredo Stroessner, juntamente o seu séquito de seguidores do Partido Colorado, assim como os altos representantes da hierarquia militar. O controle político posto em prática pelo regime stronista não se limitou a excluir do contexto social somente os partidos de oposição. O próprio Partido Colorado sofreu a intervenção do governo, o 3

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LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986, p. 322. El ejército paraguaio há ganado la reputación de ser un ejército selvaje en su forma de tratar a los guerrilleros. Sus métodos son simples y despiadados: no toman prisioneros; solo les disparan sin tan siquiera formales juicio. Por ejemplo, en deciembre de 1959, las autoridades argentinas en el pueblo ribereño de Clorinda informaron que unos 25 guerrilleros capturados fueron llevados a bordo del canonero paraguayo Humaitá, anclado en el costado opuesto de la ribera, y sumariamente ejecutados ante los asombrados espectadores. En agosto de 1960, 17 cuerpos mutilados fueron sacados del río cerca do pueblo argentino de posadas. De 1958, ano da primeira eleição de Stroessner, a 1988, ano da última vitória eleitoral de Stroessner, todas as disputas eleitorais foram vencidas por ele. Em alguns casos nem eram disputas, pois ele não tinha concorrentes, ou seja, somente ele aparecia como candidato, pois a oposição não conseguia colocar um candidato na disputa, muito em conseqüência da repressão praticada pelo aparato de Estado do General Stroessner.

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que gerou um grande número de expurgos de líderes do partido que não compactuavam com as diretrizes autoritárias que emanavam das ações estatais. Como a composição do Partido Colorado era bastante heterogênea, o regime teve que trabalhar intensamente para evitar as ações de alguns segmentos do partido que não apoiavam as medidas autoritárias de Stroessner, principalmente os representantes da chamada ala democrática do partido. Nesse contexto, muitos representantes do Partido Colorado acabaram indo parar no exílio, sobretudo os vinculados a ala democrática, os mesmos que, futuramente, fundariam o Mopoco (Movimento Popular Colorado). Esse foi um dos problemas causados ao governo pelo partido da base, mas não deve ser considerado o mais grave, visto que esses estavam se organizando fora do país. O problema mais sério a ser enfrentado pelo governo de Stroessner era em relação aos segmentos do Partido Colorado que faziam parte do seu gabinete administrativo, ou seja, da burocracia estatal, visto que as disputas pelo poder eram constantes, e a proximidade desses com as estruturas do estado poderia dar-lhes condições de tramar um golpe para retirar Stroessner do poder. Como forma de se consolidar no governo e evitar um novo golpe, e a conseqüente perda do 5 poder, o governo de Stroessner buscou estabelecer um equilíbrio entre as principais facções do Partido Colorado, principalmente no que dizia respeito aos epifanistas, de Epifânio Méndez Fleitas; aos 6 democráticos, de Federico Chaves, e aos guionistas, de Natalício Gonzalez . Esses dois últimos grupos referidos eram inimigos declarados entre si, mesmo que pertencessem ao Partido Colorado. Seu 7 objetivo, com isso, era se aproveitar das velhas disputas intra-partidárias para ir eliminando um a um os políticos que se mostrassem em condições de lutar pelo poder, ou que ao menos se colocassem como possíveis ameaças ao seu projeto de governo. Os expurgos partidários, as seccionais coloradas e o Estado de Sítio Primeiramente, Stroessner excluiu do círculo de poder os epifanistas, como forma de se vingar da tentativa de golpe arquitetada por Epifânio Méndez Fleitas quando este fizera parte do gabinete administrativo de Stroessner. Paralelamente a isso, foi alijando dos quadros do governo os representantes da ala democrática do partido (a mesma do presidente Federico Chaves que ele havia deposto do poder com o golpe militar em 04 de maio de 1954). O único grupo que ele manteve nas estruturas do regime por um espaço de tempo maior, e até com certo grau de autonomia, foi o guión rojo e seu aparato de violência sistemática, pelo fato de que ele necessitaria dos serviços dos guionistas para poder controlar as investidas dos adversários contra o governo, mas, também, como forma de manter o equilíbrio das disputas intra-partidárias e, assim, bloquear as ações da facção democrática do partido, principalmente. Na verdade os guionistas tiveram um papel fundamental na organização do aparato repressivo do regime stronista, pois eram eles que, ao mesmo tempo, defendiam e realizavam as ações do governo, principalmente as agitações violentas em nome do regime, e, por isso, tornaram-se os defensores do governo até as últimas conseqüências, geralmente abusando de métodos violentos para atingir seus objetivos; sendo que as atitudes abusivas dos guionistas eram respaldadas pelo governo de Stroessner. Nos momentos de dificuldades pelas quais passou o regime stronista foi que acabou aparecendo às habilidades do estrategista general Stroessner, sempre atuando com o objetivo de limitar a participação daqueles que contrariavam as diretrizes autoritárias do estado. Nesse aspecto, ele não poupou esforços no sentido de se consolidar a frente do aparelho estatal autoritário posto em 8 funcionamento por ele; fazendo o uso de métodos violentos e intimidadores, e, conseqüentemente, 5

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LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986, p.144. Por su parte, Stroessner estaba listo para hacer una trégua con los democráticos, pues elles eran un contrapeso para Méndez Fleitas. El nuevo régimen empezó, así, con la lucha de tres bandos para obtener el poder y en la que ninguna de las partes contaba con una ventaja clara. Essas três facções do Partido Colorado eram adversárias entre si. Os epifanistas tinham uma ligação muito próxima com o governo peronista da Argentina. Já os Democráticos de Federico Chaves eram representantes da ala conservadora do Partido Colorado, além de defenderem a democracia como forma de governo para o Paraguai. Natalício Gonzalez era o líder da facção guionista e inicialmente serviu ao governo stronista, mas acabou sendo expulso do regime por planejar um golpe contra o governo de Stroessner. MIRANDA, R. Carlos. Paraguai e la era de Stroessner. Assunción; RPediciones, 1990, p. 92. El gobierno de Stroessner uso habilmente las fragmentaciones partidárias internas y la estructura de partidos en general para asegurar su domínio. Seguro al saber que una fuerte relación entre el Partido Colorado y las fuerzas armadas había virtualmente garantizado su continuidad, el regimen trato de manejar las situaciones de otros partidos y centralizo las actividades del partido oficial alrededor de la administración. El resultado fue una estructura de representación fuertemente limitada em alcance, la cual no pudo proporcionar el fundamento para la competência abierta. LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986, p. 320. A violência da ditadura stronista no Paraguai assustou os representantes dos Direitos Humanos e da Anistia Internacional ao ponto

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colocando a população paraguaia em geral, e a oposição em particular, como possíveis vítimas das ações repressivas dos grupos que apoiavam o regime. A participação política da população estava cada vez mais cerceada pelo aparato repressor stronista. Los esfuerzos por participar en política fuera de los confines del control gubernamental fueram tratados com la coerción, la cooptación y la represión. Los sindicatos, las organizaciones campesinas, las federaciones estudiantiles y raros intentos de lucha armada fueron infiltrados, sobornados o destruídos. Mientras los patrones de violaciones de derechos humanos han cambiado algo en el transcurso de los anos, los paraguayos que intentam ejercer sus derechos de organizarse o de expresar su disidencia, continúan aún hoy enfrentando arrestos, tortura, apaleamientos, exílio e despidos de sus empleos (BOUVIER, 1988, p. 18).

De fato, o controle exercido pelo aparato de Estado no Paraguai de Stroessner limitou sensivelmente a participação da população nas questões relacionadas à política. O povo paraguaio teve proibida sua liberdade de escolha, pois somente podiam votar nos candidatos do partido governista (Partido Colorado). Esse aspecto era muito importante para o regime e, por isso, o controle se dava de diversas formas, mas sempre com o objetivo de que a posição do governo não fosse modificada perante as normas de um intenso controle social por ele exercido. Para que essa situação fosse realmente conseguida era indispensável que houvesse uma organização sistemática da estrutura que envolvia o estado como um todo; e foi isso que Stroessner conseguiu realizar no intento de se manter a frente do governo, mesmo que jamais tenha conseguido eliminar totalmente a oposição ao seu regime. As ações violentas contra aqueles que se indispusessem com o aparato oficial foram constantes e efetivas, o que facilitou bastante a vida dos repressores. O suporte para as medidas repressivas do 9 regime stronista era oferecido principalmente pelo guion rojo e pelos pyragués colorados, mas, também, 10 a própria polícia paraguaia atuava nesse sentido, pois ela era controlada por políticos guionistas, e estes se constituíam em uma das bases de sustentação do governo de Stroessner. O Partido Colorado foi essencial para que Stroessner consolidasse seu domínio no conturbado contexto político do Paraguai. Uma das formas encontradas por ele nesse sentido foi forçar as pessoas a se filiarem ao partido para conseguirem ter suas demandas atendidas. Além disso, “o governo baixou um decreto que obrigava todos os representantes da burocracia estatal a se filiarem ao partido, inclusive tendo que doar 5% do seu salário para os cofres do Partido Colorado” (MIRANDA, 1990, p. 99). Essas medidas foram responsáveis pelo crescimento significativo do número de correligionários colorados; além de enriquecer a máquina partidária, o que também se constituía em um objetivo claro da ditadura stronista. Ainda nesse aspecto de intenso controle social e político deve-se mencionar o exército, porque o ingresso para as forças armadas só era possível para os jovens que fossem filiados ao partido do governo, neste caso o Partido Colorado. Isso fazia com que cada vez mais as estruturas do exército fossem ocupadas por representantes do Partido Colorado, assim como as estruturas da sociedade como um todo, ou seja, cada vez mais os ambientes político e social paraguaio eram penetrados pelo partido da base do governo. A rede de controle posta em prática pelo stronismo, na sociedade paraguaia, perpassava todos os segmentos sociais, ou seja, nada escapava aos olhos da máquina estatal no intuito de defender a ditadura de Stroessner. A grande penetração social do Partido Colorado foi fundamental para que o controle buscado pelo regime se desse de forma bastante efetiva. Nesse contexto de vigilância 11 governamental tiveram grande destaque às seccionais e subseccionais do Partido Colorado.

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destes considerarem os métodos de tortura da polícia estatal paraguaia com características “medievais”. O sistema de tortura e repressão era bastante menos sofisticado que o do Brasil, mas, porém, tinha bastante efetividade. GOIRIS, Fabio Aníbal Jará. Paraguay: ciclos adversos y cultura política. Asunción: Servi Libro, 2004, p. 55. No idioma guarani pyragué significa “pés aveludados”, que seria o sigiloso denunciante anônimo. Eram funcionários públicos e membros subalternos do partido governista (Colorado) que se infiltravam silenciosamente por todo o território nacional (e inclusive no exterior), com o objetivo de identificar e delatar os opositores ao regime de Stroessner, criando, com isso, uma verdadeira cultura do medo e da desconfiança dentro da população. A polícia paraguaia se tornou fundamental para o controle repressivo durante a ditadura stronista. O momento de maior envolvimento desta no que diz respeito ao uso de métodos violentos foi quando esteve sob controle dos políticos guionistas, principalmente Edgar Insfran e Ramón Duarte Vera, pois estes dois representantes políticos colorados eram adeptos da idéia de que o controle da oposição seria facilitado na medida em que a polícia perseguisse, prendesse e torturasse toda pessoa que representasse algum tipo de perigo para as estruturas estatais. Esses organismos do Partido Colorado foram fundamentais para que o regime conseguisse penetrar

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La seccional colorada era uma red de información conformada por la estructura del partido gobernante, subalternizada al Ministério del Interior. Las seccionales coloradas eran lus nudos principales de red paralela de información política. La seccional operaba com el comisario distrital en la administración del miedo em su distrito...En cada barrio de las ciudades y em cada compania em el sector rural estaba la célula partidária o subsseccional, cuya cabecilla, em alguns casos, coincidia com la persona del comisario de compania. De qualquier manera se puede dibujar como esses organismos do Partido Colorado fueran fundamentales para que lo regime conseguiesse penetrar principalmiente en las áreas rurales paraguayas. Atraviés delas lo Partido Colorado e sus representantes locales mantuvierón activos en lo control de qualquier persona que se colocasse en la contramão del regime. Havia, entre as seccionais e subseccionais del Partido e o regime una relaçión de cumplicidad e confiança, pois los lideres desses segmentos eran directamente veinculados ao gobierno dictatorial de Stroessner. Una actividad paralela, ya que mantenía la función más directa y específica de trabajar sobre sus correligionários, empenhados em la afiliación, y la realización de concentraciones al servicio del partido (GONZÁLEZ, 1997, p. 19).

Esses mecanismos de controle estatal obtiveram bastante êxito na medida em que foram os responsáveis pelas afiliações partidárias da população, além de funcionarem, também, como centros de informação sobre as movimentações estranhas que notassem, tanto no meio rural, como no meio urbano. Esse último aspecto das subseccionais coloradas foi essencial para que o regime ficasse sabendo dos movimentos realizados pelos grupos de oposição que optaram pela guerrilha armada. Ainda nesse sentido de intensa vigilância estatal, pode-se dizer que “os cidadãos que não pertencessem ao partido oficial estavam praticamente imobilizados do ponto de vista das ações cívicas e expostos a intriga dos pyragués” (González, 1997, p. 63). As ações pró-regime dos pyragués se constituiu em um dos principais entraves para as ações das organizações de oposição no Paraguai durante a ditadura stronista. Os pés de plumas, como eram chamados os pyragués, funcionaram como os olhos e os ouvidos do regime, principalmente no meio rural, delatando para o governo tudo aquilo que pudesse colocar em perigo a estrutura autoritária instalada no país, principalmente no que diz respeito às organizações oposicionistas. Era a partir dos avisos dos pyragués que o aparato repressivo stronista conseguia deter o avanço dos movimentos de oposição dentro do Paraguai, invariavelmente, através de métodos repressivos e de combates violentos que causavam grande número de mortes dos opositores. Mesmo assim eles relutavam em se enquadrar nos moldes de sociedade imposta pelo aparelho estatal organizado e conduzido por Stroessner e continuavam a lutar contra o regime. Seguindo o contexto de intenso controle social imposto por Stroessner, devesse destacar o intenso uso do Estado de Sítio como forma de limitar as ações que pudessem colocar em risco a consolidação do regime. Essa prática coerciva predominou na sociedade paraguaia durante a ditadura stronista, e só era suspensa por vinte e quatro horas nos dias de eleições, até como forma das pessoas participarem das votações e consolidarem o domínio do Partido Colorado. La medida en la que o Estado de Sítio há sido importante en Paraguay se centra en el contexto constitucional global del cual deriva y esto sugere que el principio es una regla excepcional. Si bien la promulgación temporária de tal principio legal puede ser necesaria en muchos países, el contínuo retorno a esta práctica en Paraguay demostró que el liderazgo de Stroessner era incapaz de resolver problemas internos recurriendo solo a los instrumentos normales de coerción (MIRANDA, 1990, p. 89).

A declaração do Estado de Sítio é uma medida de exceção que pode ser tomada por qualquer governante como forma de manter a ordem social a partir das diretrizes do executivo. Essa foi uma prática recorrente dos regimes militares da América Latina, mas nem todos foram tão duradouros e 12 repressivos como o Estado de Sítio declarado no Paraguai pelo presidente Stroessner. Essa medida opressora vinha acompanhada de prisões, confinamentos, proibição de reuniões públicas e manifestações, ou seja, retirava dos cidadãos o direito de ir, vir e se reunir. Esses aspectos constituem-

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principalmente nas áreas rurais paraguaias. Através delas o Partido Colorado e seus representantes locais mantinham-se ativos no controle de qualquer pessoa que se colocasse na contramão do regime. Havia, entre as seccionais e subseccionais do Partido e o regime uma relação de cumplicidade e confiança, pois os lideres desses segmentos eram diretamente vinculados ao governo ditatorial de Stroessner. MIRANDA, R. Carlos. Paraguai e la era de Stroessner. Assunción; RPediciones, 1990, p. 89. La medida en la que el Estado de Sitio há sido importante en Paraguay se centra en el contexto constitucional global del cual deriva y esto sugiere que el principio es una regla excepcional. Si bien la promulgación temporária de tal principio legal puede ser necesaria en muchos países, el contínuo retorno a esta práctica en Paraguay demostró que el liderazgo de Stroessner era incapaz de resolver problemas internos recurriendo solo a los instrumentos normales de coerción.

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se em um demonstrativo de que o regime stronista se estabeleceu e se consolidou a partir de medidas autoritárias que visavam a um controle social a qualquer custo e sem se importar com a situação geral dos cidadãos paraguaios. 13 O Estado de Sítio era sustentado pela chamada Guarda Urbana , que atuava sob a direção de 14 Edgar Ynsfran , um líder guionista bem-sucedido na política paraguaia (chegou ao posto de Ministro das Relações Exteriores), tendo grande influência sobre a polícia, assim como sobre os funcionários da burocracia estatal; o que facilitava as suas ações repressivas contra os inimigos do regime stronista ao qual estava estreitamente ligado. Estando protegido pelo Estado de Sítio, as ações do governo no sentido de controlar a sociedade foram pautadas pela violência sem limites. “Os milicianos da Guarda Urbana tinham o direito de entrar em qualquer casa e prender qualquer pessoa que fosse considerada suspeita de agir contra o governo” (LEWIS, 1986, p. 172). A vigência do Estado de Sítio colocava a sociedade paraguaia a mercê do medo e da insegurança, além de cercear o direito à liberdade dos paraguaios. A brutalidade da polícia paraguaia não tinha limites em suas ações, e essa situação acabou 15 despertando a crítica de representantes da Igreja Católica, pois esta passou a pressionar o governo para a suspensão do Estado de Sítio e a conseqüente interrupção das práticas de torturas realizadas contra alguns membros da oposição política ao regime. A Igreja Católica não era a única instituição que passou a repudiar as práticas violentas do governo stronista; além dela, o próprio exército estava preocupado com a ascensão da Guarda Urbana de Ynsfran, e passou a pressionar Stroessner para que esse não concedesse tanto espaço de atuação para uma força militar que poderia estar fora de seu controle, haja vista que, na visão de alguns líderes 16 militares, o próprio Ynsfran poderia estar arquitetando um plano para retirar Stroessner do poder . Esse líder político guionista desfrutava de um importante apoio junto aos campesinos paraguaios, além de ser um ferrenho anticomunista, o que, de certa forma, foi importante para que obtivesse a confiança de Stroessner. Nesse aspecto, o intenso controle exercido pelo regime stronista em relação aos segmentos sociais contrários ao seu governo foi diverso, pois este buscava enquadrar seus adversários, a qualquer custo, no sentido de eliminar as possibilidades destes virem a exercer algum tipo de pressão contra as diretrizes ditatoriais. As formas de controle se deram em todo espectro social, mas foram mais intensas no campo político, em que os partidos de oposição foram, cada vez mais, perdendo espaço de atuação junto à população paraguaia, muito devido ao exílio de seus principais lideres que viam na fuga do país e das garras da ditadura a única forma de se manterem vivos e tentarem se articular para poderem pressionar o regime, a partir de fora do Paraguai. A oposição ao regime de Stroessner foi bastante limitada, mas nunca deixou de ocorrer. Essa limitação oposicionista só foi possível devido ao bem articulado e amplo sistema repressivo organizado pelo aparato oficial do governo centralizado nas mãos do general Stroessner.

Referências Bibliográficas: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Ed. da UnB, 2004. BOUVIER, M. Virgínia. El Ocaso de un Sistema: encrucijada en Paraguai. Asunción: Editora Nanduti Vive, 1988. COLMÁN, Evaristo, MORAES, Ceres. A Guerrilha da Fulna: considerações preliminares. 2009. Disponível em: http://www.cedema.org/uploads/moraes_colman.pdf. Acesso em: 04 fev. 2011. LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular, 1986. MEZA, Ruben Ariel. El Triângulo de la Opression. Asunción: Editora Imprensa Salesiana, 1990. 13

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Guarda Urbana era uma milícia de aproximadamente vinte mil homens armados e treinados para proteger os povoados enquanto o exército regular se preocupava com os invasores guerrilheiros. Foi um líder político do Partido Colorado que ganhou a confiança de Stroessner devido ao fato de ser o líder da facção do Guión Rojo e abusar do uso de métodos violentos contra seus opositores políticos. Tornou-se o braço direito da ditadura stronista no intenso trabalho de desarticulação dos movimentos de guerrilha, principalmente nas áreas rurais paraguaias. A Igreja Católica paraguaia como instituição não criticou abertamente o regime stronista em seu início, pelo contrário, apoiou esse regime justamente pelo anticomunismo apregoado pela retórica ditatorial. Alguns representantes do clero paraguaio se envolveram em críticas as ações de perseguição e violência praticadas pelo regime, o que acabou por gerar a prisão desses representantes religiosos. Com o aumento da violência do regime e a perseguição a alguns padres, a Igreja Católica passou a criticar o regime stronista e a lutar pela defesa dos direitos humanos, o que acabou por fazer o regime de Stroessner romper com a Igreja Católica. LEWIS, H. Paul. Paraguai Bajo Stroessner. Mexico: Colleción Popular. 1986, p. 174-175.

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MIRANDA, R. Carlos. Paraguai e la era de Stroessner. Assunción; RPediciones, 1990. PAREDES, Roberto. Los Presidentes Del Paraguay. Asunción: Ed. Servi Libro, 2005. STOPPINO, Mário. Autoritarismo. In: BOBBIO, Norberto. et. al. Dicionário de Política. Trad. Carmem C. Varrialle et al, sob a coordenação de João Ferreira. 2ª ed. DF: Universidade de Brasília, 1986.

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Terrorismo de Estado na Argentina e a Operação Condor: uma análise a partir de documentos de denúncia. Marcos Vinicius Ribeiro

Resumo: O artigo apresenta uma análise de documento conseguido junto ao Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) da Argentina. Analisa-se, sobretudo, um caso inserido na lógica da Operação Condor e outro relacionado a estruturação de um Centro Clandestino de Detenção chamado “La Cacha”. Palavras-chave: Argentina – Operação Condor – “La Cacha”. Abstract: The article presents an analysis of document achieved near the center of Legal and Social Studies (CELS) of Argentina. It analyzes, in particular, a case inserted in the logic of Operation Condor and another related to the structuring of a clandestine Center of Detention called "La Cacha". Keywords: Argentina – Operation Condor – “La Cacha”.

O documento utilizado para a análise foi de autoria do Centro de Estudios Legales e Sociales (CELS) da Argentina. O material contém um informe que tratou das condições encontradas no país em relação à violação e/ou respeito aos direitos humanos durante a ditadura argentina de Terrorismo de Estado (TDE). O informe foi confeccionado em Buenos Aires com o seguinte titulo: “La situación de los 1 Derechos en la Argentina (Octubre de 1979 – octubre de 1980)” . A referência está composta de um sumário que contempla os principais temas descritos sobre a questão dos Direitos Humanos no país. “1 - Violaciones al derecho a la vida, la libertad y la integridad física; 2 - Secuestros en el exterior atribuidos a agentes del Gobierno argentino; 3 - Muertes; 4 Desapariciones temporarias. 4.a - Secuestro de once personas en Rosario. 5 - Testimonios oferecidos en el exterior; 6 - Consideraciones sobre el problema de los desaparecidos y la negativa a brindar informaciones; 7 - Expresiones oficiales. 8 - Situación de los detenidos; 9 - Situación de las entidades de Derechos Humanos; 10 - Violaciones al derecho de información y difusión; 11 - Tratamiento oficial del Informe de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (OEA); 12 - Reclamos de distintos sectores de opinión en torno de detenidos-desaparecidos y presos políticas; 13 - Violaciones al derecho 2 de practicar libremente su culto; 14 - Contralor Ideológico y adoctrinamiento educativo” . Segundo o informe que inicia o relatório, o resultado apresentado é parcial e limitado, uma vez que vai até o ano de 1980 e indica que a questão que envolve o tema - Direitos Humanos na Argentina é um problema e, “Nada hace pensar que las autoridades estén dispuestas a llevar a cabo – en caso alguno - investigaciones destinadas aclarar y sancionar los gravísimos hechos cometidos por sus 3 agentes desde la fecha citada” . A fonte não abordou o contexto de ditadura em sua totalidade. Foi um relatório sobre seqüestros, detenções, torturas e desaparecimentos que: “sieguen teniendo lugar, aunque en menor numero, episodios y en particular detenciones seguidas de torturas, vejámenes y desapariciones que ponen de manifiesto la subsistencia de procedimientos ilegales y clandestinos, autorizados y empleados desde el 4 comienzo de la represión” . O Relatório da CELS indica que a situação era suplantada a partir da manipulação da opinião pública, realizada pelos principais meios de comunicação social argentinos. Segundo o Relatório, a situação existente em 1980 a respeito da repressão era sustentada porque: “Su reiteración sólo es posible por el ocultamiento que se hace de ellos a la opinión publica, mediante la manipulación de los 5 medios de comunicación social y la intimidación” . 1 2

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Biblioteca do Centro de Estudos Legales e Sociales - C.E. L.S. Buenos Aires Argentina (Octubre de 1980). O texto de Advertência diz que se trata de um material que, “En alguna medida completa el Informe sobre la situación de los Derechos Humanos en Argentina, aprobado por dicha Comisión el 11 de abril de 1980 y publicado en Washington DC como documento OEA/Ser.L/V/II.49 doc. 19” (Id. Ibid.) Continua com a seguinte afirmação, “Por el contrario, entre los estimonios que se incluyen en el presente estudio se encuentran diversas declaraciones de gobernantes y militares, en las cuales se sostine que se impedirá de calquier manera la intención de revisar aun por via judicial, las violaciones cometidas en prejuicio de miles de ciudadanos” (Id. Ibid). Id, p. 02. Id. Ibid.

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O texto de advertência que compõe as primeiras páginas do documento está datado em novembro de 1980. Trata-se do período de retirada de Jorge Rafael Videla do poder. À guiza de introdução, o documento alertou para o fato de que: “Los hechos que a continuación se describen, con el agregado de breves comentarios, se hallan debidamente documentados. Por lo demás, parte de dichos 7 episodios ha sido materia de información periodística” . Em resumo, este documento tráz informações sobre 62 casos de denúncia documentados entre o fim de 1979 e o ano de 1980. Sendo que, destes 62 casos, 34 casos recolhidos em testemunhos que versam sobre os últimos 4 meses de 1979, e, 28 casos documentados em 1980. Segundo o documento: “Sin duda alguna, el número real de desapariciones excede a la cifra antedicha, por cuanto con frecuencia las familias no formulan denuncia algunas a las organizaciones de derechos humanos o lo 8 hacen tardíamente” . Apesar da comoção mundial, gerada a partir da visita ao país da Comissão, os 9 mecanismos repressivos destinados a manter o silêncio em torno da questão, não se abrandaram . Pelo contrário, passados 4 anos do golpe de março de 1976, após a visita da referida Comissão, os mecanismos foram redirecionados a manter o ambiente de perseguição, mas foram estendidos à vigilância dos organismos de direitos humanos encarregados de recolher o maior número de informações sobre a prática do TDE. Os 34 casos nomeados pela Comissão ocorridos nos últimos meses de 1979, a saber, entre setembro e dezembro daquele ano, perfazem o conteúdo do material. Todos eram cidadãos argentinos e foram seqüestrados e se tornaram detidos-desaparecidos em território nacional. Em todos os casos apresentados no Relatório se encontra um breve levantamento das informações pessoais dos indivíduos envolvidos, sendo que, em alguns deles, além das informações de documentação, relatam-se as circunstâncias em que cada um foi detido. Após o levantamento realizado pela CELS referente ao ano de 1979, segue no mesmo tom a descrição de mais 28 casos de detenção/desaparição, inclusive com o emprego dos mecanismos repressivos conhecidos e praticados pela ditadura argentina, dentre os quais, torturas com choque elétrico com o emprego da Picana Eléctrica e práticas de afogamento (Submarino), além de açoitamentos e isolamento das pessoas aprisionadas pelas diversas instituições de segurança componentes do Estado. Após referenciar cada caso tratado, o documento segue com um breve comentário que perpassa todos os temas levantados pelo índice que compõe o documento. Um, dentre os principais temas abordados durante o texto que compõe o Informe/Documento, encontra-se no caso de 6 sobre cidadãos argentinos seqüestrados no exterior. São eles: Horacio Domingos Campligia, Mónica Susana Pinus de Binstock, Noemi Esther Gianeti de Molfino, Julia Inês Santos de Acebal, Julio César Ramires e Aldo Alberto Moran. Em particular, a descrição dos casos que envolveram Horacio Domingos Campiglia e Mónica Susana Pinus de Binstock são tratados no documento. Em relação a Horacio Campigli, encontramos o seguinte: “Desaparecido el 12 de marzo de 1980, probablemente en el aeropuerto de Caracas, al trasladarse desde Panamá a Rio de Janeiro, con tránsito en la ciudad antes mencionada. Residía en 10 Méjico” . Quanto ao evento que envolveu o seqüestro de Mónica Susana Pinus de Binstock, o documento apresentou que Monica foi; Secuestrada junto con el anterior el 12 de marzo de 1980, en las mismas circunstancias. La desaparición se produjo en el trayecto Panamá-Caracas-Rio de Janeiro del vuelo 944 de VIASA, que salió de la primera de dichas ciudades el 11 de marzo con hora de llegada a Caracas a las 23 continuando a viaje a Rio de Janeiro con arribo previsto al 12 de marzo. También la señora Binstock vivía en Méjico. Estos dos casos han sido 6

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Sabe-se que, embora a proposta da OEA tenha investigado a situação dos direitos humanos no país e permitiu a publicação do relatório da CELS no ano de 1980, o que por si teve seu mérito, ele não foi decisivo para o fim das situações inerentes à aplicação da política de TDE. Mesmo que as denúncias realizadas através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos tenham provocado uma sensível retração no quadro de detenções/desaparecimentos a partir de 1979, ano em que passou a atuar a Comissão que deu amplitude às denúncias dos detidos/desaparecidos, sabe-se que antes mesmo do Relatório este quadro havia mudado sensivelmente, processo provocado pela pressão interna e pelo isolamento relegado a mudança da política externa estadunidense com o governo de Jimmy Carter e a questão dos direitos humanos. Esta política, envolta na defesa aos Direitos Humanos, previa, ademais, a estabilização do continente em bases mais confiáveis para a atuação do imperialismo estadunidense na região descartando, enfim, a necessidade de manutenção das ditaduras latino-americanas. Id. p. 03. Id. p. 10. Segundo o Informe, “Sólo en 18 de los 28 casos de 1980 los familiares han presentado denuncia en la Asamblea Permanente por los Derechos Humanos, y más o menos en el mismo número, han presentado recursos de hábeas corpus. Las respuestas en éstos, han sido negativas”. (Id. p. 10-11). Id. p. 12.

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denunciados a las organizaciones de derechos humanos por familiares de las victimas y 11 el hecho fue publicado en “La Prensa” de Buenos Aires, el 30 de marzo de 1980 .

Trata-se de casos que remetem ao Plan Condor. Ao continuar o comentário das detenções/desaparições, o informe indica que: Los cuatro ciudadanos argentinos precedentemente citados fueron secuestrados, junto con Federico Guillermo FRIAS ALBERGA 970 – que posteriormente se verifico que fuera detenido en Buenos Aires y conducido al exterior -, en Lima Perú, el 12 de junio de 1980. Según denuncias de la prensa y de diversos sectores de la sociedad peruana, difundidas internacionalmente y recogidas por Amnesty Internacional, el hecho habría sido ejecutado por agentes del Gobierno argentino con anuencia de las Fuerzas 12 Armadas peruanas .

A análise da conexão repressiva entre Argentina e Peru estendeu-se no relato tratando da anuência das forças de segurança peruana em relação à entrada de oficiais argentinos por lá. Segundo o informe, a operação argentina foi acolhida pelos órgãos responsáveis no Peru a partir de um entendimento entre os presidentes em exercício de cada país. A tenor de dichas informaciones, el comandante en Jefe de Ejercito argentino, teniente general Galtieri, habría solicitado a su colega del Perú, general Richter Prada, invocando acuerdos preexistentes, autorización para la entrada a ese país de personal de los servicios de Inteligencia argentinos con el fin de arrestar, interrogar y repatriar a varios ciudadanos de nacionalidad argentina que se encontraban en Perú. El trámite 13 culminó con la detención de las cinco personas mencionadas .

Segundo o comentário apresentado no Informe, havia muitos indícios de que a operação foi possibilitada a partir de uma ação conjunta entre Argentina e Peru. Entretanto, cabe destacar, ao continuar o comentário acerca das investigações que envolveram a prisão e interrogatório das pessoas citadas, que os meios de comunicação peruanos não ficaram alheios aos acontecimentos. O complemento do comentário acerca dos casos levantados pela Comissão, continua com a seguinte observação, “Según noticias periodísticas, las victimas habrían sido sometidas a torturas en el Centro Recreacional Militar, ubicado en el norte de Lima, denominado Playa Hondable. A consecuencia 14 de ello habrían fallecido FRIAS y MORAN. Las tres restantes habrían sido repatriadas” . Além da alusão aos meios de comunicação peruanos quanto ao evento, o Informe apresenta a posição oficial do país andino relacionado às detenções de argentinos praticadas no Peru, Un vocero del Ejército peruano negó esta versión de los hechos, informando en cambio que el 14 de junio de 1980 habrían sido detenidos por fuerzas de seguridad los ciudadanos argentinos Julio César Ramírez, Noemí Gianetti de Molfino y Julia dos Santos Acebal y puestos en la frontera con la Bolivia para ser trasladados a la Argentina. 15 Fuentes bolivianas negaron haber intervenido en el operativo .

O obscurantismo que demarca as investigações do paradeiro das pessoas seqüestradas, demonstra que a posição das autoridades oficiais, no caso, um porta-voz do Exército peruano, e da Bolívia, foi de negar a participação nas detenções. Um traço particular das conexões repressivas que envolveram autoridades latino-americanas no marco da Operação Condor. Entretanto, a ação não pôde passar despercebida uma vez que redundou na execução de Noemi Molfino. Segundo informações contidas no documento confeccionado pela CELS, a morte de Molfino se deu em circunstâncias que levam a acreditar que militares argentinos tenham praticado o crime. La señora MOLFINO apareció muerta el 21 de julio de 1980, en un departamento en Madrid, España. Esto motivó un comunicado del Gobierno argentino destinado a negar los hechos denunciados por la prensa. La policía española caratuló el sumario como “muerte dudosa”. La prensa del mismo país acusó a las autoridades argentinas de ser responsables del asesinato. En Perú, por decisión del Congreso, luego de una sesión secreta con asistencia de autoridades militares, el caso se ha cerrado. En España 16 prosigue la investigación, pero no se ha arribado a nada concreto . 11 12 13 14 15 16

Id. Ibid. Id. Ibid. Id. p. 12-13. Id. p. 13. Id. Ibid. Id. Ibid.

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Como podemos observar, o caso não foi investigado em sua plenitude. Por omissão das autoridades dos países envolvidos na operação, as circunstâncias da morte de Noemi Gianetti de Molfino não foram completamente esclarecidas. Embora houvessem muitas evidências que oficiais argentinos agiram ilegalmente no caso, como denunciaram os meios de imprensa espanhóis, pouco, ou quase nada foi feito para ampliar as possibilidades de apuração dos fatos. O que ficou claro, neste caso, é que, as operações destinadas a caçar e exterminar argentinos fora do país, só pôde encontrar êxito uma vez que as autoridades locais participassem ativamente dos trabalhos. Ao continuar a apuração acerca do assassinato de argentinos no exterior, o documento da CELS 17 apresenta o caso de desaparecimento de Jorge Oscar Adur . Trata-se de um sacerdote católico que teria desaparecido na fronteira entre a Argentina e o Brasil, na altura de Uruguaiana-RS, no fim de junho de 1980. Segundo as informações da CELS, Adur vajou ao Brasil para formar parte da comissão latinoamericana que recebeu o Papa João Paulo II quando de sua visita ao Brasil em julho de 1980. Segundo o informe: “La Conferencia Episcopal Brasileña ha denunciado el caso, indicando que 18 se trataría de un secuestro” . Muitas comissões destinadas a apurar os crimes de Terrorismo de Estado se formaram no interior da Igreja Católica no Brasil. Neste sentido, destacamos a participação da 19 Comissão Arquidiocesana para os Direitos Humanos do Arcebispado de São Paulo (Clamor) . A Clamor recebeu uma série de testemunhos relacionados aos crimes de lesa-humanidade praticados na Argentina durante a ditadura. A partir de tais relatos foi possível traçar um itinerário acerca de alguns Centros Clandestinos de Detenção (CCDs) na Argentina. Os relatos destinados a cobrir os crimes de TDE recolhidos por Clamor seguem um padrão que 20 contempla um índice no qual se encontram cerca de 9 pontos que recorrem a descrição dos mecanismos de repressão do TDE na Argentina. Segundo o documento aqui tratado, escrito e assinado 21 por 8 argentinos que procuraram a Clamor para relatar os crimes cometidos pela ditadura: “La forma represiva consiste en hacer ‘desaparecer’ a los militantes populares, tiene dos finalidades inmediatas: 22 destruir al militante y a su organización y extender el terror a todo el espectro social” . A introdução do documento desenha um apanhado geral sobre as circunstâncias em que se definiu o golpe de março de 1976. Nela os denunciantes tratam de um itinerário sobre a história argentina: “La historia de nuestro país está caracterizada por una lucha continua entre las fuerzas populares y las clases dominantes, lo que se traduce en una sucesión ininterrumpida de gobiernos civiles 23 y golpes militares” . Apesar de não trazer maiores informações biográficas de cada um dos testemunhantes, o tom do discurso usado, com informações que perpassam a economia, política e contexto social argentino, levam a crer que se tratavam de militantes de organizações políticas que atuaram previamente ao golpe de março de 1976 e que, provavelmente, foram desbaratadas depois do golpe. Segundo o documento/relato, a definição de desaparecido e sua condição de detido é a seguinte: Que es un desaparecido?: es una persona a la cual secuestran, en su casa, en su lugar de trabajo, en la vía pública, en su lugar de estudio y que es llevada a lugares clandestinos de detención, donde pierde todo el vínculo con el mundo exterior, al cual no llegan ni la luz del sol ni el brazo de la justicia, donde deja de existir, en vida. Nosotros, que estuvimos detenidos en uno de esos centros clandestinos, queremos testimoniar sobre nuestra común experiencia. Lo hacemos como un acto de coherencia militante: no somos testigos de “accidente” o de un “exceso de la represión” sino parte de los treinta 24 mil compañeros desaparecidos y de su misma lucha . 17

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No mesmo dia do seqüestro de Adur, pouco tempo depois, o militante montonero Lorenzo Viñas também foi detido e em seguida desapareceu. Ambos os fatos foram relatados quando veio à tona a situação de Centro Clandestino de Detenção da fazenda La Polaca, localizado na fronteira entre Brasil e Argentina. Id. Ibid. Os relatos recolhidos por CLAMOR foram conseguidos junto ao arquivo da Asamblea Permanente por los Derechos Humanos de Argentina (APDH). Entretanto, sabe-se que este acervo encontra-se tutelados pela PUCSP. Tratam-se de aproximadamente 106 caixas e 30 pastas que ainda não encontram-se disponíveis para consulta. Basicamente, os pontos arrolados no índice do documento aqui consultado são os seguintes: 1. Introdução; 2. Testemunhos; 3. Nomes de pessoas vista em “LA CACHA”; Grávidas e crianças vistas em “LA CACHA”; 4. Nomes de responsáveis de “LA CACHA”; Características de “LA CACHA”; 6. Características Físicas de “LA CACHA” 7. Planos; 8. Interpretação dos Planos; 9. Epílogo. São eles: Nestor Daniel Torrillas; Nelva Mendes de Falcone; Alberto Omar Dissler; Roberto Luján Amerise; Ana Maria Caracoche de Gatica; José Luis Cavaleri; Alcira Rios de Córdoba; Luis Pablo Córdoba. TESTIMONIOS SOBRE “LA CACHA”. 20/10/1983. CCD7.14. p. 04. Id. p. 02. Id. p. 04-05.

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Neste trecho, uma dada visão do contexto repressivo da ditadura, com muita clareza sobre o caráter prolongado da repressão, observa-se as principais características das condições de detenção. O relato procura estabelecer a racionalidade da atuação dos órgãos de repressão, sem deixar margem a duvida no que concerne ao seu caráter planificado. Em última instância, rompe com a idéia encampada pelos militares de que se houve mortes e torturas em grande número, estes atos foram isolados e tratados de forma arbitrária pelo baixo escalão da corporação militar. Sobre o CCD de “La Cacha”, localizado entre as ruas 191, 196, 47 y 52, ao lado da prisão de Olmos, onde funcionou a antiga “Radio de La Provincia”, La Plata, Buenos Aires, temos as seguintes informações com relação a condição de detenção e desaparecimento dos signatário do depoimento: Los secuestrados eran llevados a los lugares clandestinos de detención y tortura. Uno de estos sitios era “la Cacha”, donde estuvimos; su nombre fue asignado haciendo referencia a “la bruja Cachavacha” personaje de dibujos animados infantiles que tenía el poder de hacer desaparecer a la gente. Está situado en la ex-planta transmisora de Radio Provincia, en la localidad de Lisandro Olmos, partido de La Plata, Pcia. De 25 Buenos Aires .

Segundo as informações contidas no documento, além de um local de detenção clandestino, “La Cacha”, foi um centro de tortura que contou com a totalidade dos mecanismos de repressão sobre os quais baseou-se a ditadura de TDE na Argentina. Os mecanismos triviais do interrogatório que contava, ademais, com a participação de civis que aparecem no relato/documento da seguinte forma, con el detenido en su poder encapuchado y esposado, el comando de secuestradores se dirigía a La Cacha, donde lo sometían a salvajes torturas a través de las cuales trataban de recabar información. Estas torturas consistían en atar al prisionero de pies y manos a una especie de cama elástica, conocida por el nombre de “parrilla”; golpearlo con garrotas, gomas, alambres, puñetazos y puntapiés; aplicarlo corriente eléctrica con picanas simultaneas (…); asfixiarlo por inmersión (submarino) o por ahogamientos o por 26 ahogamientos por almohadas y bolsas de nylon (submarino por seco) .

Na continuação do documento, os depoentes declaram que as sessões de torturas só cessavam com o desmaio do detido/desaparecido. Os mecanismos de tortura se intercalavam com perguntas relacionadas à militância desenvolvida por cada um. Os gritos dos companheiros que estavam em sessões semelhantes nas proximidades eram utilizados para intimidar e fazer falar o torturado da vez. Além do envolvido diretamente na tortura, as sessões contavam com ameaças a familiares, onde, por vezes, fotografias de familiares dos torturados eram mostradas nas sessões. A referência ao período é abarcada no depoimento: “El período al cual nos referimos abarca del 9 de marzo de 1977 al 6 de septiembre del mismo año, y del 29 de julio de 1978 al 1 de septiembre del mismo año, época en la cual el aparato represivo se encontraba en la plenitud de su funcionamiento y donde se realiza el mayor 27 número de secuestros” . Conclusão O objetivo deste artigo foi o de apresentar algumas situações de violações aos Direitos Humanos que tiveram arregimentação sob o período de Terrorismo de Estado na Argentina. Trata-se também de apresentar algumas questões levantadas durante nossa dissertação de mestrado intitulada “DE PERÓN A VIDELA: revisão histórica e historiográfica do Terrorismo de Estado na Argentina (1973-1978)” defendida no ano de 2009 no programa de pós-graduação em História, nível Mestrado da Unioeste. Mais do que conclusões, buscamos publicizar parte do material que foi discutido durante a pesquisa. Algumas questões nos parecem preocupantes do ponto de vista do acesso ao material pesquisado. Refiro-me ao caso dos arquivos da Clamor. Certamente um conjunto muito rico de fontes históricas, que ainda não se encontra acessível a maior parte dos pesquisadores. Por outro lado, o documento aqui analisado nos permite reconhecer algumas trajetórias de resistência às ditaduras latino-americanas. Acessar tais documento/fontes históricas é, antes de muitas preocupações, adentrar o espaço de resistência intensa a arbitrariedade do Estado. A resignificação deste espaço, com consequente fechamento de canais normativos de sua regulação, proporcionam soluções definitivas e de longo prazo que atingem um conjunto amplo de situações cujo terror torna-se a normativa.

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Id. p. 05. Id. Ibid. Id. Ibid.

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Referências Bibliográficas: BASCHETTI, Roberto (comp.). Documentos 1970-1973. Volumen I: De la Guerrilla Peronista al Gobierno Popular. La Plata – Bs. As: Campana de Palo, 2004 . CALLONI, Stella e ESQUIVEL, Adolfo Pérez. Los Años del Lobo: Operación Condor. Icaria Editorial, 1999. DE RIZ, Liliana de. História Argentina: La política en suspenso 1966/1976. Buenos Aires: Paidós, 2000.

Fontes Pesquisadas: Informe sobre la situación de los Derechos Humanos en Argentina, aprobado por dicha Comisión el 11 de abril de 1980 y publicado en Washington DC como documento OEA/Ser.L/V/II.49 doc. 19. Biblioteca do Centro de Estaudios Legales y Sociales-CELS. TESTIMONIOS SOBRE “LA CACHA”. 20/10/1983. CCD7.14. Asamblea Permanetnte por los Derechos Humanos de Argentina-APDH.

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Como eleger um ditador: Bolívia 1971 e 1997 Luciano Barbian

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Resumo: o general hugo banzer suarez foi ditador da bolívia, governando de 1971 a 1978. Foi um dos mandatos mais extensos de todos os presidentes bolivianos, se caracterizando por realizar um governo ditatorial com repressão ao movimento operário, camponês, indígena e a todos os que poderiam se tornar um obstáculo a suas políticas. Em 1997, Hugo Banzer retorna ao governo da Bolívia, dessa vez pela via eleitoral e não de um Golpe de Estado, como nos anos 1970. Para buscar seu intento Banzer buscou ocultar as suas raízes autoritárias, tentando apagar a memória de seu governo ditatorial. Esse artigo busca apresentar algumas das estratégias que Banzer se utilizou para chegar a vitória eleitoral, bem como analisar os contextos da sociedade boliviana e Latino-americana no contexto das Ditaduras de Segurança Nacional nos anos 1960 e 1970, bem como no contexto do chamado neoliberalismo nos anos 1990. Palavras-chave: Bolívia – Ditadura – Hugo Banzer – repressão Abstract: general hugo banzer suarez was dictator of bolivia, ruling from 1971 to 1978. It was one of the most extensive mandates of all Bolivian presidents, been characterized by a dictatorial government to carry out repression against the labor movement, peasant, indigenous and all that could become an obstacle to its policies. In 1997, Hugo Banzer returns to the government, this time through elections, not a coup, as in the 1970s. Their intent to seek Banzer sought to conceal its authoritarian roots, trying to erase the memory of his dictatorial government. This paper aims to present some of the strategies that Banzer was used to get the electoral victory, as well as analyze the contexts of Bolivian society and the Latin American dictatorships in the context of national security in the years 1960 and 1970, as well as in the context of so-called neoliberalism in 1990s. Keywords: Bolivia – Dictatorship – Hugo Banzer – repression

O contexto político e o Golpe de Estado na Bolívia, 1971 Em 21 de Agosto de 1971 o então Coronel Hugo Banzer Suárez consegue chegar a presidência da Bolívia via um Golpe de Estado que derruba o governo do General Juan Jose Torres, que contava com grande apoio popular, em especial de sindicatos, da COB (Central Obrera Boliviana) e da Assembleia Popular (Comuna de La Paz). Esse apoio se fortaleceu na defesa que esses grupos fizeram ao governo contra uma primeira tentativa de Golpe impetrada por Banzer em Janeiro de 1971. Com isso, em 1º de Maio daquele ano os trabalhadores através de seus sindicatos, da COB, os estudantes e organizações populares se reuniram no prédio do Parlamento boliviano declararam constituída a Assembleia Popular de La Paz. Foram justamente as características populares e progressistas do governo de Torres e o seu esforço por manter o movimento operário atrelado ao seu governo, impondo uma política que atacava a independência das organizações, que levaram Torres a ser violentamente deposto por Hugo Banzer. Segundo o relatório do Ministro do Interior do governo Torres, Gallardo Lozada, a COB havia solicitado ao governo armas para fazer a defesa contra a ameaça de golpe dos fascistas. Torres em primeiro momento negou esse pedido, temendo que o proletariado, com sua independência política fortalecida e armado pudesse no futuro avançar no desenvolvimento de um processo revolucionário. Com isso o movimento golpista, que se apoiava politicamente numa frágil aliança de três agentes políticos, o MNR (Movimiento Nacionalista Revolucionario), a Falange Socialista (fascista) e setores das forças armadas conseguiu alcançar seu intento. E as primeiras medidas de Banzer se voltaram contra as organizações populares e sua autonomia. As Ditaduras de Segurança Nacional na América Latina. A América Latina, na década de 1970 estava vivendo o desenvolvimento de vários regimes ditatoriais que se baseavam na Doutrina da Segurança Nacional e que podem ser classificados como 1

Secretaria Municipal de Educação (SMED) – Porto Alegre. E-mail: luciano-barbian@hotmail.com.

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Ditaduras de Segurança Nacional. Segundo Comblin : A Segurança Nacional é a capacidade que o Estado dá à Nação para impor seus objetivos a todas as forças oponentes. Essa capacidade é, naturalmente, uma força. Trata-se portanto da força do Estado, capaz de derrotar todas as forças adversas e de fazer triunfar os Objetivos Nacionais. Os Objetivos Nacionais constituem um conjunto bastante vago. Os autores reconhecem que há só um bem, que é a espinha dorsal da segurança nacional e é sempre um objetivo e deve sempre ser colocado em segurança: a sobrevivência da nação. No entanto, imediatamente volta a incerteza. É excepcional que a existência física de uma nação esteja em perigo. Estende-se portanto a sobrevivência a um certo número de atributos considerados essenciais a sobrevivência: crenças, uma religião, instituições políticas, etc. E a incerteza volta. Em suma, a segurança nacional não sabe muito bem quais são os bens que devem ser postos em segurança de qualquer maneira, mas sabe muito bem que é preciso colocalos em segurança. Ela quer ardentemente e com todas as forças de seu poder físico 3 algo que não sabe muito bem o que é.

Dessa forma, Comblin afirma que os limites do que seriam os objetivos da Segurança Nacional são vagos, os próprios manuais criados nos Estados Unidos para tratar da Doutrina da Segurança Nacional não chegam a especificar o que ela seria: “ela está presente em toda a parte e jamais é 4 explicada” . Com isso os vários governos ditatoriais se apresentam com uma grande flexibilidade de enquadramento do que seriam os objetivos da Segurança Nacional. E isso ocorre no sentido de manutenção do poder nas mãos das classes dominantes, ou seja, das burguesias nacionais em aliança com o imperialismo estadunidense, mantendo em segurança os interesses na acumulação capitalista na região. Dessa forma, como demonstra Comblin, o conceito da Segurança Nacional, apesar de toda a sua indefinição, acaba se tornando muito útil e operacional a medida em que estabelece quem é o objeto das políticas de Segurança Nacional, ou seja, quando se estabelece o “inimigo”. Ainda nas palavras de Comblin: “ a segurança nacional talvez não saiba muito bem o que está defendendo, mas sabe muito 5 bem contra quem: o comunismo.” Como o “comunismo” é um termo utilizado pelas Ditaduras de Segurança Nacional de uma forma bastante ampla, onde comunistas nãos são apenas aqueles que se reivindicam como tal, o conceito deve se apresentar de forma bastante flexível para que tenha operacionalidade. Seria assim esse fenômeno típico do período da Guerra Fria. Outra definição que buscou compreender as Ditaduras da América Latina naquele período foi a elaborada por O’Donnell que utiliza o termo “Estados Burocrático-Autoritários”, ou a sigla BA para delimitar esse tipo de Estado. E O’Donnell define os Estados BA da seguinte forma: As características que definem o tipo BA são: a) as posições superiores do governo costumam ser ocupadas por pessoas que chegam a elas depois de carreiras bemsucedidas em organizações complexas e altamente burocratizadas – Forças Armadas, o próprio Estado, grandes empresas privadas; b) são sistemas de exclusão política, no sentido de que pretendem fechar os canais de acesso ao Estado do setor popular e seus aliados, assim como desativa-lo politicamente não só pela repressão mas também pelo funcionamento de controles verticais (corporativos) por parte do Estado sobre os sindicatos;(...)d) são sistemas despolitizantes, ou seja, pretendem reduzir as questões sociais e políticas públicas a questões “técnicas”, a resolver mediante interações entre as cúpulas das grandes organizações acima mencionadas; e) correspondem a uma etapa de importantes transformações nos mecanismos de acumulação das suas sociedades, que por sua vez formam parte de um processo de “aprofundamento” de um 6 capitalismo periférico e dependente, mas dotado de uma extensa industrialização.

Percebe-se aqui de uma maneira mais evidente que, para O’Donnell os BA se caracterizam por ser uma forma de impedir a organização independente da classe operária e de seus aliados, no sentido de garantir a aplicação de uma política que resguarde os interesses imperialistas na região. E isso se manifestou de uma forma bastante peculiar em toda a América Latina, tornando as Ditaduras de 2

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COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional – O Poder Militar na América Latina, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. COMBLIN, op cit pg 54-55 COMBLIN, op cit pg 54 Idem, pg 55 O’DONNELL, Guillermo. Reflexões sobre os Estados Burocráticos-Autoritários São Paulo: Vértice,1987. Pg 21

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Segurança nacional ou os BA fenômenos políticos típicos daquela situação político-social latinoamericana e da forma como as lutas de classes se manifestam naquele contexto histórico e que ainda mantém seus efeitos. No caso da Bolívia, o governo de Banzer em 1971 apresenta políticas típicas das Ditaduras de Segurança Nacional, como é o caso da utilização das políticas repressivas e de Terror de Estado contra aqueles que se colocavam contra o governo e também se percebe de forma clara que a Ditadura na Bolívia se enquadra nos BA no que se refere a origem militar de Banzer e nas suas alianças e políticas que visavam atacar os movimentos operário-camponês, como veremos no tópico seguinte. As políticas de Segurança Nacional na Ditadura de Banzer. No governo ditatorial de Banzer a presença de medidas que evidenciam as políticas de segurança nacional pode ser percebida através de seus decretos públicos e também de documentos secretos, que demonstram como o governo articulava suas medidas repressivas e quem eram os alvos dessas medidas, em especial, o movimento operário. Como exemplo de um decreto que atacava o movimento operário boliviano e que pode demonstrar a forma como Banzer articulava suas medidas repressivas está o Decreto de número 11952, de 1974. ARTÍCULO 1.- En tanto se promulgue el Código del Trabajo, el Ministerio de Trabajo, designará Coordinadores Laborales en cada centro de producción, para que cumplan funciones de vinculación de los trabajadores. ARTÍCULO 2.- Serán funciones de los Coordinadores Laborales: a) Vincular a los trabajadores de las respectivas empresas o entidades en sus peticiones ante los empleadores y los organismos del Estado; b) Organizar Comités compuestos por cuatro trabajadores, cuando las circunstancias lo exijan; 7 c) Organizar bajo su responsabilidad, el patrimonio social de los trabajadores.

Percebe-se no decreto a ação do governo no sentido de atacar a independência política dos trabalhadores já que o governo iria, através do Ministério do Trabalho, impor os Coordenadores que seriam responsáveis por administrar e representar os trabalhadores organizados em sindicatos, ou seja, é uma clara intervenção da Ditadura no meio sindical com o fim de desmobilizar os trabalhadores. Outro artigo, do Decreto 11952, que demonstra a ação de repressão aos sindicatos e as formas de lutas dos trabalhadores é o artigo 7, que diz: ARTÍCULO 7.- Las huelgas, paros, actos de sabotaje y trabajo a desgano, prohibidos por el Decreto Ley Nº 11947 y que se produzcan en las empresas y entidades del Sector Público, darán lugar al inmediato despido de los infractores, sin goce de beneficios sociales. En los casos producidos dentro del Sector Privado, se efectuará una conminatoria previa de retorno al trabajo en el término de 24 horas, vencido el cual serán sancionados con igual despido los trabajadores que no hubiesen acatado esta advertencia. En este último caso, se requerirá la autorización expresa del Ministerio de 8 Trabajo.

Esse artigo apresenta de forma mais evidente a repressão pelas vias das leis da ditadura, proibindo a articulação dos trabalhadores e a utilização das greves como uma forma de lutas pela conquista de direitos. Mas a ditadura de Banzer não tornava públicas todas as suas determinações, como é evidente em um governo autoritário. Como exemplo dessa situação pode –se observar um documento redigido e assinado por Banzer em nome do Conselho de Segurança Nacional (COSENA), de caráter interno ao governo e secreto e que demonstra muito bem qual a posição da ditadura boliviana com relação aos organismos operários e populares e aos opositores, que o governo ditatorial denomina como “subversivos”. Uma análise do mesmo documento demonstra a forma como o governo se coloca frente a contestação e desenha as políticas repressivas, comandadas pelo próprio Banzer. Dessa forma, esse documento denominado Directiva nº72, de março de 1972, se apresenta expondo os objetivos do governo ditatorial e divide esses objetivos em de ordem psicológica, política e 9 militar. No texto do decreto secreto, publicado pelo jornalista argentino Martin Sivak , a repressão aos 7

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Decreto consultado em 20/10/2012 em: http://www.derechoteca.com/gacetabolivia/decreto-supremo-11952-del12-noviembre-1974.htm Decreto consultado em 20/10/2012 em: http://www.derechoteca.com/gacetabolivia/decreto-supremo-11952-del12-noviembre-1974.htm SIVAK, Martin. El Dictador Elegido. 2ªed La Paz: Plural, 2002

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movimentos operário e comunista aparece de forma bastante evidente algumas características comuns das Ditaduras de Segurança Nacional que foram recorrentes na América Latina no período, ou seja, o anticomunismo, a doutrina do inimigo interno e a defesa do modelo de acumulação capitalista burguês com a repressão aos movimentos contestadores. De acordo com Sivak, o decreto ditatorial de Banzer pode ser descrito e dividido da seguinte forma: Con el membrete de SECRETO y bajo la órbita del Consejo de Seguridad Nacional Bolivia, el documento de cinco carillas está dividido en cinco puntos: FINALIDAD, OBJETIVOS, RESPONSABILIDADES, ORGANIZACIÓN Y TAREAS. El apartado FINALIDAD comienza así: ‘A. Prepararse para enfrentarse a una organización cuya misión esencial es imponer su voluntad a la población para instaurar un régimen Castrocomunista. B. La finalidad superior de nuestra organización es lograr 10 el APOYO DE LA POBLACIÓN a la causa nacionalista.’

Pode ser revelado no texto do decreto que o governo buscava o respaldo popular a chamada “causa nacionalista”, o que pode levar a conclusão de que o apoio do povo estava mais voltado as organizações como a COB e aos sindicatos, por isso a conquista do apoio popular aparece como finalidade do COSENA (Conselho de Segurança Nacional). E isso se daria especialmente através das políticas de Terror de Estado exercidas pelo governo. Dentro do quesito OBJETIVOS, o documento apresenta uma subdivisão em objetivos psicológicos, políticos e político-militares. Nos chamados OBJETIVOS PSICOLÓGICOS aparece a luta ideológica contra a “subversão comunista” impondo uma política de colaboração de classes (como no Estado Corporativo Fascista da Itália) onde se fala em “desintoxicar” as mentes e estabelecer a “fraternidade entre os bolivianos”. No caso dos OBJETIVOS POLÍTICOS o documento fala em propagandear o governo através de um conjunto de obras públicas, bem como satisfazer reivindicações imediatas de setores da população e “hacer ver al Pueblo que lograremos el desarrollo (...)si 11 mantenemos la estabilidad politica del país.” Com relação aos OBJETIVOS POLÍTICO-MILITARES, o texto do documento aborda algumas formas de se alcançar os ditos objetivos. Nesse sentido, orienta os Comités de Seguridad Nacional tomar algumas medidas, com a orientação de: 1- Destruir a organização político-administrativa insurgente; 2- Aniquilar as forças militares insurgentes e 3- Isolar o território boliviano de ‘países hostis” (controle das fronteiras com o Chile, Peru e Argentina). Em seguida, se elencam as RESPONSABILIDADES, que se dividem em clandestinas (Interferir, anular e destruir as organizações insurgentes levando ao afastamento do apoio popular aos rebeldes) e as de “luta aberta” onde se buscava evitar a consolidação popular de organizações revolucionárias, destruição de forças militares insurgentes e a atuação nas zonas de influência das organizações guerrilheiras (insurgentes) através da atuação da “Ação Cívica” e de políticas de desenvolvimento regional. Por fim, com relação a ORGANIZAÇÃO, o documento lembrava aos setores regionais do COSENA que o mando sobre toda a organização estava concentrado exclusivamente nas mãos do presidente da República, Hugo Banzer. Dessa forma, na redação desse decreto secreto, que estabelecia e organizava as ações do Comitê de Segurança Nacional, pode-se perceber que as ações da Ditadura se colocam dentro dos ditames do que se classificou como as Ditaduras de Segurança Nacional na América Latina. E também se evidencia a responsabilidade de Banzer sobre as políticas repressivas e pelo Terror de Estado. Hugo Banzer, a Segurança Nacional e a Democracia Banzer seguiu tendo uma grande influência política sobre a Bolívia, mesmo após a derrocada de seu período ditatorial nos anos 1970. O ditador manteve sua influência através da atuação política de seu partido, a ADN (Aliança Democrática Nacionalista) conseguindo levar a eleição de Garcia Meza, em 1980, seu indicado político.Com isso possibilitou que houvesse a continuidade de seu projeto político e que se afastasse a possibilidade de algum juízo de responsabilidade dos crimes de sua ditadura. 12 Conforme o relato de Sivak , em 1997, durante a disputa eleitoral, Banzer buscou se afastar de qualquer vinculação com o seu período ditatorial. Apesar de ter ocorrido uma abstenção de 28,6%, que foi maior do que a porcentagem de votos que Banzer obteve (22,2%), o cargo de presidente da República da Bolívia foi conquistado pelo ditador. Durante o período da campanha eleitoral o então candidato, que buscou por todos os meios evitar abordar os crimes da ditadura, teve que reavaliar e mudar a sua estratégia após pressão vinda de algumas organizações de Direitos Humanos e da 10 11 12

SIVAK, pg 123 Idem. Pg 351 SIVAK, op cit pg 44

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ASOFAMD (Associação de Familiares de Mortos e Desaparecidos pela Libertação Nacional) que levou ao ar, na televisão boliviana, em abril daquele ano, um spot onde levantava as questões de responsabilidade sobre as vítimas da ditadura. 57 asesinados de 1971 a 1978, 33 desaparecidos de 1971 a 1976, 14 asesinados en enero de 1974 en Tolata, três militares asesinados, 37 bolivianos desaparecidos en 13 Argentina, 6 bolivianos asesinados en Argentina, 4 bolivianos desaparecidos en Chile.

O então candidato Banzer, após sofrer uma violenta queda nas pesquisas de intenção de votos, passou a responder aos seus oponentes, buscando justificar as ações da ditadura. Dessa forma, utilizou como argumento a incriminação das suas vítimas jogando sobre elas a responsabilidade pelas ações repressivas que sofreram. E dessa forma, Banzer redigiu uma carta, intitulada “Mi palabra para que el pueblo también recuerde” aos eleitores onde reafirmava as políticas da Segurança Nacional, as ações repressivas e colocava o argumento de que havia uma “guerra” e que todos teriam responsabilidades 14 pelo que aconteceu naqueles anos, menos ele. Vejamos alguns trechos dessa carta, citada por Sivak : Hace 30 años, América Latina enfrentaba una guerra irregular unas veces con incursiones armadas a poblaciones civiles, otras veces con asaltos, persecuciones, secuestros, y depredaciones de todo género a personas, instituciones y propiedades. Fue un enfrentamiento que nos obligó a elegir entre las libertades alcanzadas, los valores existentes o, en nombre de una ‘liberación’ extremista, sumarse a la violencia antinacional y anárquica.(…) Tomé una patriótica decisión para evitar que en el país se produjera posteriormente un enfrentamiento armado mucho mayor, que nos hubiera llevado a una guerra civil de tipo que hemos presenciado en países próximos, donde el precio de vidas fue dolorosamente elevado y sangriento. (…) La grave situación histórica de Bolivia, bajo la acción nociva del extremismo utópico, hizo imperativa la fundación de un sistema de alianza política con capacidad de encaminar a la Nación hacia objetivos concretos que permitiesen superar la grave crisis económica de desajuste social, del vacío político, la inexistencia de la función del Estado que es la autoridad y el riesgo en que se encontraba la misma patria.(…) Mi experiencia de ex gobernante y de jefe político me permiten transitar con solvencia moral y entrega patriótica, desde los umbrales de la Bolivia de la confrontación y del conflicto en 1971 hasta la Bolivia de la concertación, de la Construcción y de la Unidad para fortalecer el proceso democrático y participativo de 1997.

Dessa forma o ditador Hugo Banzer busca manter a sua inserção na política democrática, o que já vinha acontecendo através da atuação do partido criado para esse fim, a ADN. Em um primeiro momento, se percebe que existe a busca por justificar o contexto histórico do surgimento da ditadura em 1971, retratado como um momento de profunda crise e violência onde Banzer teria tomado uma atitude, optando por utilizar a força, a violência e o autoritarismo por aquilo que seria uma causa justa, poupar a Bolívia de uma guerra civil. Na verdade o que existia na Bolívia quando do golpe de Estado em 1971 era o governo do general Torres, que, apesar de seus limites, havia avançado na via da ampliação de direitos aos trabalhadores e que havia permitido a organização da Assembleia Popular em La Paz, órgão de poder operário inspirado nos soviets da Revolução Russa de 1917 e que surgiu como resultado da organização de defesa operária contra a agressão fascista ao governo, em janeiro de 1971. De qualquer forma, quando setores do exército, junto dos fascistas da Falange Socialista Boliviana, a burguesia e as oligarquias rurais, principalmente da região de Santa Cruz, começaram a organizar o golpe, a COB solicitou armas ao governo para defendê-lo da agressão golpista, pedido esse negado por Torres. O que o candidato Banzer, em 1997, denomina de grave situação histórica na Bolívia de 1971 pode ser visto de outra forma, ou seja, a situação histórica era grave para aqueles que tinham seus interesses prejudicados pela atuação dos movimentos operário, indígena e estudantil de forma independente do governo (de certa forma ameaçando o Pacto Militar-Camponês, instrumento utilizado desde o governo de Barrientos, no sentido de dividir o movimento camponês, dificultando uma aliança operário-camponesa e atrelando os sindicatos de trabalhadores rurais ao governo) e isso levou a formação da aliança, instável, que apoiava o golpe, congregando o MNR, a Falange e setores do exército. Por fim, Banzer se apresenta como um governante experiente e que assume como necessário o 13 14

Id, pg 44 Ibid pg 46-47

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autoritarismo e as políticas repressivas de sua ditadura e que isso seria o seu diferencial com relação aos outros candidatos a eleição de 1997. Demonstra que seria o chefe de governo que não hesitaria em utilizar da repressão novamente, no sentido da construção da unidade política em nome de seu projeto, mesmo em um contexto de liberdades eleitorais. Dessa forma, o ditador que governou a Bolívia por sete anos e se utilizou da violência do Terror de Estado e que jamais foi julgado por isso (mesmo as tentativas de um julgamento político como o de Marcelo Quiroga Santa Cruz, que foi assassinado em 1980 pelo ditador Garcia Meza, não levaram a um julgamento oficial do Banzerato) pode retornar a presidência da Bolívia em um processo eleitoral em que a sua votação foi menor do que a taxa de abstenção do eleitorado boliviano e onde grande parte dos aptos a votar não tinha sofrido com a ditadura Banzer. Porém mesmo o presidente Banzer, democraticamente eleito, não tardou em demonstrar que a repressão não havia ficado no passado e seu governo se notabilizou por, novamente se utilizar das ações de violência repressiva contra os movimentos sociais, como ficou evidente no massacre de Cochabamba, na chamada Guerra da Água em 2000, movimento que protestava contra a privatização das águas na Bolívia que o governo pretendia realizar, entregando esse recurso nacional indispensável à população para a exploração de empresas multinacionais. Tudo isso era resultado das políticas ditadas pelo Banco Mundial e que para serem aplicadas era necessária a repressão aos movimentos populares. Assim, nesse momento, Banzer demonstrou que a face do ditador não havia desaparecido e, como resposta aos protestos e mobilizações populares, prendeu dirigentes sindicais ,fazendo com a repressão vítimas que chegaram a 5 mortos. Apesar de a crescente mobilização popular contra seu governo, Banzer não renunciou, tendo se afastado do governo apenas em 2001, quando um câncer veio a vitimá-lo e levá-lo a morte. Com isso se encerrou a vida de um homem que, tendo sido responsável por uma ditadura cruel e repressiva contra os trabalhadores, jamais foi responsabilizado por seus atos, podendo manipular a política boliviana por décadas enquanto suas vítimas ainda esperam por justiça.

Referências bibliográficas: ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Revolução Boliviana. São Paulo : UNESP, 2007 COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional – O Poder Militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 GALLARDO LOZADA, Jorge. De Torres a Banzer – Diez meses de emergencia en Bolivia. Buenos Aires: Periferia, 1972 GIL, Aldo Durán . Estado Militar e Instabilidade Política na Bolívia (1971-1978), tese de doutorado, Campinas: UNICAMP, 2003 BAPTISTA GUMUCIO, Mariano. Breve Historia Contemporánea de Bolivia. México: Fondo de Cultura Económica, 1996 O’DONNELL , Guillermo. Reflexões sobre os Estados Burocrático-Autoritários. São Paulo: Vértice, 1987. SIVAK, Martin. El Dictador Elegido – Biografía no autorizada de Hugo Banzer Suárez.2ªed La Paz: Plural, 2002

SITES: http://www.derechoteca.com http://www.asofamdbolivia.org/index.php?page=inicio http://banzereternodictador.blogspot.com.br

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11 de setembro de 1973: o golpe militar no Chile através do Jornal do Brasil.

Nicolas Mello

Introdução No dia 21 de junho de 1970, a nação brasileira vivia em estado de êxtase. Seu selecionado de futebol acabara de conquistar pela terceira vez o campeonato mundial de futebol FIFA, título máximo na carreira de um jogador de futebol. Pelé era nosso maior jogador, o rei do futebol. Os brasileiros entoavam em coro a marchinha “Pra Frente Brasil”, nada poderia parar o país. Sua economia crescia a extraordinários 10% ao ano. Os empregos aumentavam cada vez mais. Parecia que o país finalmente havia chegado ao lugar ao qual teria sido destinado desde seu descobrimento pelos portugueses. Estaríamos entre os maiores países. Porém, o preço pago por este progresso foi alto. O rápido crescimento econômico custou nossa liberdade. No ano de 1964, o governo brasileiro sofreu um golpe. Os militares assumiram o poder sob o pretexto da Segurança Nacional. Era necessário que se extirpasse o câncer, que era a ameaça comunista, da sociedade brasileira. Esta era a visão organicista militar sendo repassada a sociedade (O’DONNEL, 1985). O novo governo deveria ser rígido e repressor. E a repressão veio através de atos. No total foram dezessete, sendo o mais importante, o Ato Institucional número 5. Realizado em 1968, ele colocava sob censura prévia a imprensa no Brasil. A imprensa brasileira, que já havia sido reformada nos anos 50, trocando o jornalismo de estilo crítico francês, pelo modelo Norte-americano, que separava a notícia objetiva dos comentários pessoais, teve de se reformular. A autocensura passou a ser a nova palavra de ordem. É isso que iremos ver nas análises posteriores de algumas das edições do Jornal do Brasil. Enquanto isso, um país na costa oeste da América do Sul, elegia como seu presidente um socialista. As eleições do ano 1970, que levaram o senador Salvador Allende a presidência da República do Chile, foram vistas como uma ameaça à ordem capitalista. Allende propôs um novo projeto de sociedade, ao qual chamou “Via chilena para o socialismo” (AGGIO, 1993). Mundialmente, se vivia a Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois projetos distintos, colocando em diferentes lados EUA e URSS, capitalismo e socialismo. Era, portanto, necessário que dentro de sua área de influência o governo norte-americano detivesse o controle dos países da América Latina. Após a vitória de Allende, em 1970, os EUA e os setores conservadores da classe média, alta e industrial chilena viram seus piores pesadelos se concretizarem. A única forma de salvar o capitalismo no Chile era o golpe militar e a instalação de um governo ditatorial. Isto ocorreu no ano de 1973, quando uma junta militar liderada pelo General Augusto Pinochet assumiu o poder no país. Surgiu um novo projeto de sociedade, que se baseava no individualismo, na repressão, no estado de sítio. A economia foi aberta aos capitais estrangeiros e após um período de recessão econômica o país passou a viver seu próprio milagre econômico. Mas as mesmas medidas que permitiram este milagre econômico causaram também a queda do regime ditatorial. A queda da “Via Chilena para o socialismo”. O Chile do início dos anos 70 encontrava-se dividido politicamente entre três partidos, cada um destes representando uma camada social. As camadas conservadoras e de nível social mais elevado, grandes empresários e fazendeiros, encontravam-se no Partido Nacional. A classe média apoiava os Democratas Cristãos. E a classe operaria e grande parte dos intelectuais, estavam representados pelos Partido Comunista e Partido Socialista. Para Alain Rouquié (1984) essa diferenciação ocorreu devido à divisão entre o poder político e econômico chileno, o que gerou um sistema representativo autônomo, dando maior estabilidade ao sistema democrático do Chile. Isto ocorreu a partir da vitória na Guerra do Pacífico, ocorrida entre 1879 e 1883, sobre Bolívia e Peru, que concedeu ao Chile a anexação das ricas províncias do norte, ricas em minérios. Esta vitória consolidou a unidade nacional do país, fazendo que ele se inserisse no mercado mundial por meio da exportação de minérios explorados por britânicos, com o apoio da classe dirigente exportadora nacional. O Nitrato dos desertos do norte passou a ser a fonte da prosperidade nacional. Gerou-se um estado rico, que cobrava impostos e direitos de exploração das sociedades estrangeiras pela exploração do salitre. As classes dominantes também saíram beneficiadas deste processo. Dependia delas o 58


transporte do salitre e a estrutura comercial interna que sustentava a exploração do minério. Assim, graças aos investimentos estrangeiros, o governo chileno isentou da maior parte das pressões fiscais as classes dominantes. No início do século XX o capital americano substituiu o inglês, principalmente após o termino da Segunda Guerra Mundial ocorrida entre 1939 e 1945 (ROUQUIÉ, 1984). Graças a estes investimentos e ao crescimento econômico do país ocorreu a expansão dos serviços públicos, integrando a classe média à estrutura de poder. É importante termos em vista este quadro, pois nas eleições de 1970 os partidos e movimentos de esquerda uniram-se sob a sigla da Unidade Popular para eleger, com 36,2%, como novo presidente da república, o senador do Partido Socialista, Salvador Allende. A união entre o Partido Socialista, * Partido Comunista e a MAPU , colocou em tensão o cenário político chileno, caracterizado pela predominância do estado aristocrático. Allende pretendia implantar em seu governo o Plano Vuskovic, que visava aumento salarial de 55%. Assim o mercado de consumo interno cresceria e, conseqüentemente, as indústrias nacionais também. O plano previa o aumento dos gastos públicos em cerca de 66%. Estas medidas visavam à conquista da classe média, para que a Unidade Popular pudesse se sustentar no poder nas eleições que ocorreram em 1972. Junto a isto, segundo Voltaire Schilling (2002), uniu-se à tomada de certas fábricas por trabalhadores comandados por setores extremistas do proletariado que não estavam nos planos de estatizações da Unidade Popular. O mesmo ocorreu no campo. As invasões ocasionaram a paralisação da agricultura e a alta de preços dos gêneros alimentícios, o que piorou a situação econômica de crise instaurada no Chile, que já havia sofrido o corte de investimentos estrangeiros, desde a eleição de Allende (GUZMAN, 1975). Internamente as classes dominantes passaram a boicotar as entregas de produtos, paralisando, através de greves financiadas pelos EUA, o sistema de transportes. Outra prática era a estocagem para que faltassem produtos no mercado, fazendo com que o preço dos mesmos disparasse ainda mais. O mercado negro ilegal aumentou, se beneficiando da falta de produtos para compra. A crise econômica retirou a já pequena parcela de apoio que Allende possuía dentro da classe média, que se voltou em massa para as recémunidas direitas, Partido Nacional e Partido Democrata Cristão. Para chegar à democrática “Via chilena para o socialismo”, Allende nacionalizou a mineração e os setores fundamentais da produção industrial de base. Isto ocasionou o aumento do desgosto de empresas multinacionais, que viram seus investimentos serem solapados por uma medida governamental. Os programas da Unidade Popular eram, uma política de maior redistribuição de renda, a nacionalização da grande indústria (mineração e cobre), ampliação e expansão da reforma agrária e aproximação diplomática e econômica com países socialistas e comunistas. Para Schilling (2002) foram diversos os fatores que ocasionaram o fracasso do programa de governo da UP. Como fatores externos o autor cita a Guerra Fria, estabelecida entre EUA e URSS ocorrida logo após o termino da Segunda Guerra Mundial, que opôs dois projetos de sociedade distintas, a capitalista e a socialista. Para os EUA, já preocupados com a Guerra do Vietnã (1959-1975), ter um país na América Latina em vias de se tornar socialista, era inaceitável. Henry Kissinger, assessor do presidente norte-americano Richard Nixon, aconselhou ao presidente que tomasse medidas frente à clara, “irresponsabilidade do povo chileno”. Para Eric Hobsbawm (1995) a guerra fria tornou os países de terceiro mundo, incluindo os países latino-americanos, focos de instabilidade, o que fez com que o governo norte americano utilizasse uma forte propaganda de apoio ao seu sistema capitalista. No Chile, os inimigos do terceiro mundo eram, a fase pré-capitalista, os interesses locais, representados pela influência estrangeira e o imperialismo norte-americano (Ibid.). A solução era a criação de uma frente popular junto à pequena burguesia nacional. Isto foi visto pelo governo da Casa Branca, como uma ameaça comunista, levando mais tarde ao golpe de estado realizado no ano de 1973 pelas forças militares chilenas. Os setores de mineração nacionalizados ocasionaram grandes perdas aos investidores norteamericanos. O Chile passou a sofrer um bloqueio econômico informal. Cessaram-se os empréstimos internacionais e o preço do cobre, principal produto de exportação chileno, sofreu boicote, levando a sua queda no mercado internacional. O objetivo americano era sufocar a economia chilena para que junto com a situação de instabilidade interna político-econômica, o golpe pelas forças militares, apoiadas pelos EUA, pudesse ocorrer. Internacionalmente, o Chile recebeu apenas apoio internacional de Cuba. Os outros países da América do Sul já estavam sob regimes militares, caso de Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia, Equador e Peru. Para os setores das classes burguesas, médias e setores do exército, o exemplo da ditadura brasileira, e principalmente do governo de Médici (1969-1974) e de seu “milagre econômico”, passou a exercer fascínio e um exemplo de estado autoritário, anticomunista e antidemocrático. A situação interna em meados de 1973 era menos favorável ainda. As dificuldades financeiras *

Movimiento de Acción Popular Unitária, setor rebelde da Democracia Cristão.

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fizeram à inflação disparar, chegando a 381,1% em 1973 (SCHILLING, 2002). Isso se uniu ao decréscimo do Produto Nacional Bruto e a greves de algumas das bases políticas da Unidade Popular, como os mineiros da mina de El Teniente. Ocorreram também protestos da parte dos universitários chilenos contra os planos do ministério da educação de criação da Escola Nacional Unificada, que previa uma educação voltada para os valores socialistas. Dois movimentos extremistas se opuseram, o Movimiento de la Izquierda Revolucionária (MIR), que contrabandeava armas soviéticas vindas de Cuba, e a extrema direita fascista, representadas pelo movimento “Patria y Libertad”, financiada pela CIA. A situação era de caos social as vésperas do golpe militar. A CIA aumentou seu apoio aos setores militares através do Projeto Fulbert (Ibid.), que previa derrubada de Allende desde 1970. O Plano previa o apoio estratégico a assassinatos, fomento de greves e o contato entre políticos e militares de direita para que o golpe fosse articulado. Apesar deste quadro social, nas eleições de 1972, a Unidade Popular conseguiu seu objetivo e * adquiriu mais de 1/3 dos votos. Devido a uma cláusula na constituição chilena, que previa a retirada do presidente apenas se houvesse consenso de 2/3 dos parlamentares, Allende não poderia ser destituído do poder. Instaurou-se um embate entre o presidente chileno e o congresso, o que ocasionou a demissão de inúmeros ministros do governo Allende. Como nem presidente e nem povo conseguiam conter o quadro de crise social, foi necessário que se recorresse a um poder externo as práticas de governo. Os militares passaram a fazer parte da estrutura de governo, dando ao general legalista, Carlos Prats, o Ministério do Interior, responsável pela repressão, e a chefia das Forças Armadas. Segundo João Quartim de Moraes (2001), a posição dos militares, inicialmente, era a da legalidade constitucional. Graças a isto Allende conseguiu conter o “Tancazo”, ocorrido meses antes do Golpe de 11 de Setembro. Foram colocadas na rua tropas legalistas contra tropas golpistas. Porém, quando Carlos Prats foi substituído pelo General Augusto Pinochet no Ministério do Interior, o golpe começou a tomar forma. Pinochet, inicialmente um militar legalista, foi quem em 11 de setembro de 1973 comandou as tropas das forças armadas chilenas no bombardeio ao Palácio de La Moneda, onde Allende e alguns de seus aliados se trancaram, saindo apenas mortos. A junta militar liderada por Pinochet que assumiu o poder no Chile tinha dois objetivos iniciais, eram eles, o controle da ordem social e a o desenvolvimento de um novo projeto capitalista. O país deveria sair da estagnação econômica em que se encontrava. A ditadura militar chilena se inspirou na brasileira, que vivia o auge do “milagre econômico”. A diferença residiu na repressão. A esquerda chilena estava mais bem organizada do que em outros países da América Latina (SADER, 1984), portanto, a repressão teve de ser maior. É calculado que cerca de 20.000 pessoas tenham sido mortas ou dadas como desaparecidas. Os líderes sindicais, políticos contrários ao regime, intelectuais, ativistas e militantes, foram presos e levados para o Estádio Nacional de Santiago, onde foram identificados, fuzilados, torturados e mutilados (SCHILLING, 2002). Foram instituídos: toque de recolher, estado de sítio, censura de imprensa, proibição de partidos considerados marxistas e suspensão dos outros partidos, fechamento do congresso e intervenção no poder jurídico. A posição dos partidos políticos que apoiaram o golpe foi distinta. O Partido Democrata Cristão, liderado por Eduardo Frei, viu no golpe a oportunidade de retirar a esquerda do poder e em eleições futuras consolidar o poder de seu partido. Já o Partido Nacional se dissolveu, e o movimento Pátria y Libertad deixou de existir. A liberação das remessas de lucro, bem como a redução dos impostos, a exportação e a liberação dos preços foram aprovados como medidas de reativação da economia (SADER, 1984). Essa recuperação econômica foi curta e em 1974 a economia chilena já se encontrava novamente em recessão. Foram colocadas em prática, as medidas de 1975, entregando aos tecnocratas, “Chicago Boys”, neoliberais instruídos por Milton Friedman da Escola de Economia de Chicago, os rumos da economia do país. Os planos dos tecnocratas eram, o privilégio do capital financeiro nacional e internacional e a exploração das vantagens relativas da produção chilena, privilegiando os ramos mais adequados à exportação, como a mineração do cobre, produção de madeira, indústria do papel, agroindústria e pesca (SADER, 1984). Estas medidas inicialmente sofreram um revés, pois o contexto internacional era de crise. Para Hobsbawm (1995), desde 1973 a economia mundial começou a entrar em crises cíclicas. A falta de controle dos estados nacionais sobre a economia neoliberal gerava estas anomalias econômicas. A solução dos governos, era a compra de tempo, esperando que os ciclos de crise passassem. O Chile, ao abrir seu mercado, passou a sofrer as oscilações do mercado internacional. A solução encontrada pelo governo militar foi à tomada de empréstimos e créditos fornecidos por bancos privados internacionais. Os créditos e empréstimos acabaram substituindo as poupanças internas do governo. O grande *

Escrita em 1925 durante a presidência de Arturo Alessandri e aprovada por meio de plebiscito. Suspensa após o golpe militar.

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problema, é que estes empréstimos, segundo Emir Sader (1984), eram canalizados para o crédito ao consumo e não eram utilizados para a renovação da estrutura produtiva chilena. Outra política adotada pela ditadura foi à privatização de empresas nacionalizadas anteriormente pela Unidade Popular, diminuído os gastos públicos. As despesas sociais também foram fortemente afetadas pela nova forma de estado mínimo neoliberal. As privatizações das empresas bancárias e financeiras eram feitas através de créditos cedidos pelo governo a empresários. Isto ocasionou a centralização de propriedades nas mãos de poucos, dando o controle do comércio exterior a estritas empresas. Em 1975 o Chile se retirou do Pacto Andino e adotou uma nova legislação que favorecia o capital estrangeiro. As mudanças aumentaram ainda mais a recessão. Porém, também realizaram a reciclagem da economia. Após algum tempo a inflação começou a diminuir. Estas mudanças, por outro lado, prejudicaram as indústrias tradicionais chilenas, que produziam em sua grande parte para o mercado interno. Em 1977 já se notava um forte aumento nas exportações chilenas e conseqüentemente o aumento dos créditos e empréstimos externos, gerando a reativação da economia chilena, que a partir de 1979, e até 1982, passou a viver seu próprio “milagre econômico”. O consumo aumentou assim como o endividamento interno e externo do governo. A dependência externa do Chile era cada vez maior, tanto em financiamento como em tecnologia. A ditadura no Chile, através de seu novo modelo de sociedade, reforçou as leis de mercado e tentou eliminar o espírito de solidariedade social, o substituindo pelo individualismo, aumentando as desigualdades sociais. A nova legislação trabalhista previa tempo máximo de duração das greves de 59 dias, após 30 dias, as empresas eram autorizadas a contratar outros trabalhadores para suprir a ausência dos funcionários em greve. Foi no ritmo do milagre econômico que foi levada a plebiscito uma nova constituição. A Constituição de 1980 foi realizada em meio ao toque de recolher, ao estado de sítio, a censura de imprensa, a suspensão dos partidos políticos e a proibição de reuniões públicas. Sua aprovação institucionalizou a ordem ditatorial e a centralização do poder executivo. A constituição previa um governo de transição de 8 anos que teria como presidente o General Pinochet. Ao final destes oito anos uma junta militar se reuniria para a eleição de um novo presidente e a realização de eleições para o congresso, limitado em participação e poder. Ela também confirmou a predominância do poder executivo sobre os poderes legislativo e judiciário, sendo que, apenas o poder executivo poderia realizar reformas na constituição. A presidência tomou caráter personalista. Para o controle da nação eram utilizados os serviços de informação centralizados, divididos entre o Centro Nacional de Informação, futura DINA, e o Conselho Nacional de Segurança. O CNS tinha como representantes, o presidente, os chefes militares da marinha, exército, carabineiros, presidente do senado e corte suprema. A partir do ano de 1981 o milagre econômico chileno começou a oscilar e dar sinais de crise. Iniciou-se a perda do equilíbrio que havia trazido calmaria à sociedade chilena. Os créditos e empréstimos que antes eram impulsionadores da economia passaram a se tornar seu maior entrave. O aumento da divida externa e interna, ressaltou a fragilidade da economia chilena frente as crises cíclicas do mercado internacional. Inúmeras empresas começaram a quebrar e surgiram escândalos de acobertamento de empresas bancárias e de créditos fictícias. Isto gerou a perda de credibilidade no mercado internacional, que por sua vez fez com que os fluxos de empréstimos e créditos externos diminuíssem. A solução encontrada pelos militares foi recorrer ao FMI. Era necessário renegociar a dívida externa chilena, que, devido ao aumento das taxas de juros internacionais, havia quase dobrado. A isto se somou uma forte crise financeira interna. As vendas a prazo fizeram o salário dos trabalhadores diminuir em poder de compra e o desemprego aumentar, chegando a atingir 1/3 da força de trabalho chilena. A queda da ditadura militar estava desenhada, o povo passou a estratégia de sobrevivência contra a fome, vivendo da caridade de entidades religiosas e de direitos humanos. O ensino, privatizado anteriormente, encareceu, levando muitos jovens a inatividade. Os setores da classe média, agora desempregados, começaram a aumentar o número de comerciantes informais nos centros das cidades. No campo, os agricultores começaram a fugir do país ilegalmente, pois não podiam pagar suas dividas. A principal base de apoio militar, os setores burgueses, acabam cindindo. A burguesia média se opôs à financeira, pois não podiam pagar os empréstimos anteriormente tomados. A crise social demonstrada pelas jornadas de protestos de 1983, mais tarde se tornou política. Em plebiscito realizado em 1988, a ditadura militar chilena teve seu período de domínio terminado com a campanha popular do “NO”. Foram previstas eleições para o ano de 1990, vencidas por Patrício Aylwin.

Reforma, censura e ditadura na imprensa brasileira. 61


No Brasil, o conturbado ano de 1964 se iniciou diante de uma crise que polarizou o cenário político nacional. João Goulart, presidente da república, popularmente conhecido como Jango, sofria fortes críticas por seu conjunto de reformas trabalhistas e de base. A UDN, partido de oposição liderado pelo jornalista Carlos Lacerda, bombardeava Jango com críticas ao seu governo. PTB, partido do presidente, e UDN, brigavam pelo espaço político (FICO, 2001). O país necessitava ser salvo deste caos político e da subversão comunista, que representavam as reformas de Jango. Era necessário que um grupo coeso e com força para tomar as rédeas do Brasil assumisse o poder. Este grupo era o militar. Coeso, disciplinado e anti-comunista, os militares podiam oferecer aquilo que os setores conservadores e liberais do país acreditavam que o país necessitava: ORDEM. O golpe começou a se desenhar. No dia da mentira, 1º de abril, os militares assumiram o poder no Brasil. Jango fugiu para o Uruguai e depois para Argentina, onde acabou falecendo, sem nunca ter voltado a sua terra natal. Com o golpe militar concluído era necessário que se institucionalizasse o novo regime. Os Atos Institucionais definiram a forma de governo no país, um governo fechado e repressor. Eles foram elaborados entre os anos de 1964 e 1969. O mais importante destes atos foi o de número 5, elaborado em 1968. Através dele, o presidente poderia fechar o congresso e a imprensa foi colocada sob censura prévia, demonstrativo do enrijecimento do regime. Coincidentemente, os atos pararam de ser publicados em 1969, ano em que assumiu a presidência do país Emílio Garrastazu Médici, único general de 4 estrelas capaz de manter a união das Forças Armadas na época (SKIDMORE, 1988). O processo de tomada de poder pelos militares havia sido concluído. A atuação do Sistema Nacional de Informação, SNI, passou a ser mais intensa. A repressão aumentou com a chegada da “linha dura” a presidência da república. Apesar do fim da ameaça das guerrilhas de esquerda, já no ano de 1969, os militares acreditavam que a repressão deveria continuar sendo forte. E assim o fez Médici. Prisões, torturas, exílios, estas eram as palavras no dicionário dos DOI-CODIs pelo país. Nas universidades os estudantes foram calados e a imprensa começou a se autocensurar. O ministro da fazenda, Delfim Neto, continuou executando seus planos de rápido crescimento da economia brasileira. Em 1970 seus objetivos eram: crescimento do PIB entre 8 e 9%, inflação abaixo dos 20% e 100 milhões a mais de dinheiro nas reservas estrangeiras (Ibid.). Esta era a formula mágica do rápido crescimento econômico para o país. A formula também incluía incentivos tributários a grandes empresas, de preferência multinacionais, manipulação do sistema financeiro e redução do custo de mãode-obra. Em outras palavras, congelamento de salários. Os resultados da formula mágica de Delfim foram acima dos esperados. A economia do país crescia a incríveis 10%, a inflação ficou em 17% e as reservas estrangeiras chegaram a 5 bilhões. Médici passou a ser o garoto propaganda do crescimento * econômico do país. A AERP utilizava jornalistas, psicólogos e sociólogos para descobrir a melhor forma de vender o presidente. Agências de propaganda eram contratadas para a realização de documentários transmitidos em televisores e cinemas de todo o Brasil. O filme em cartaz era o progresso econômico do país. Os empregos aumentavam, a ameaça guerrilheira de esquerda havia sido eliminada, o Brasil havia conquistado seu terceiro campeonato mundial de futebol. Tudo estava “as mil maravilhas”. Porém, nos porões da ditadura, os DOI-CODIs trabalhavam a todo vapor. Com a eliminação dos guerrilheiros de esquerda era necessário que se encontrasse outro inimigo. Ele poderia estar nas universidades, no clero, entre os militares expurgados, jornalistas ou artistas. O órgão repressor necessitava justificar seu salário, demonstrado na forma de eficiência no combate a subversão. Sérgio Fleury, delegado do DOPS de São Paulo e anteriormente dirigente do Esquadrão da Morte, estava muito atarefado. No ano de 1972, a censura aos jornais passou a ser exercida pela Polícia Federal, o que não agradou seus donos, que se recusaram a conversar com os policiais. Em verdade, a grande maioria da imprensa, integrante dos setores conservadores e liberais da época, apoiaram o golpe de 1964. A partir dos anos 50 o país aumentou seu ritmo de industrialização. O segundo governo de Getúlio Vargas, 1950-1954, e o governo de Juscelino Kubitschek, 1956-1960, colocaram o país em acelerado ritmo industrial. Com isso, o mercado interno de bens de consumo aumentou. Para vender mais, era necessário o investimento em propagandas que atraíssem os consumidores (PACHECO, 2010). O meio para alcançar estes objetivos era o anuncio em jornais e rádios. Com o aumento de verbas vindas das propagandas os jornais do país puderam se tornar mais independentes do estado, anteriormente seu maior investidor. Nos anos 50 os periódicos entram em ritmo industrial. As notícias se tornam objetivas e separadas dos comentários pessoais, agora realizados através de editoriais. O Jornal do Brasil liderou a maior reforma dos jornais da época, servindo de exemplo para seus concorrentes. A partir de 1956 foi criado um Suplemento Dominical que contava com a participação de escritores, pensadores e artistas ligados a movimentos de vanguarda. Foram criados, ainda, o Caderno C, classificados, e o caderno B, para artes teatro e cinema. Em 1962, sob a supervisão de Alberto Dines, preso após a publicação do AI-5, o jornal terminou sua reforma, contendo na época editoriais políticos, *

Assessoria Especial de Relações Públicas.

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econômicos, de esportes, de cidades, e internacional (ABREU, 2002). As posições políticas também começaram a melhor se delinear nesta época. Jornais partidários ao PTB e PSD se opunham aos partidários a UDN. Por serem empresas independentes do estado, os donos de jornais costumavam ter posições liberais e conservadoras. O sacrifício da liberdade de imprensa para que o golpe militar fosse realizado parecia um sacrifício necessário a se pagar diante do caos político e da ameaça comunista que assolavam o país. O que não havia sido previsto era a publicação do Ato Institucional número 5, que determinou censura prévia as noticiais de jornais. Os editoriais políticos foram proibidos. A partir daí aumentaram em importância os editoriais econômicos e as notícias internacionais. A economia era a única forma de noticiar o que acontecia na vida do país. Como os jornais dependiam das propagandas para sua sobrevivência, e o estado era o maior propagandista do regime, formou-se uma relação de dependência entre a ditadura e os meios de comunicação, que passaram a contar com os investimentos do estado para se modernizarem. A palavra de ordem passou a ser a autocensura. Para que não houvesse atritos entre investidor, estado, e jornal, era necessário que se estabelecesse um equilíbrio entre demanda e oferta. O casamento foi perfeito. Surgiram conglomerados de comunicação. Dentre eles a Rede Globo, que, tal como uma dona de casa desempregada, necessitava das verbas de seu marido para se sustentar. O casamento durou até o fim do milagre econômico, quando a formula mágica de Delfim Neto começou a demonstrar alguns efeitos colaterais. O bolo, economia, que deveria crescer e depois ser repartido, foi tomado pela gula de alguns poucos. A insatisfação aumentou com a crise mundial do petróleo, de 1973. Em crise o estado não conseguia mais comprar o papel necessário aos jornais. O papel, em sua grande maioria, era importado. Em 1974, foi encontrado morto o jornalista Wladmir Herzog, que supostamente havia cometido suicídio. As críticas ao governo aumentavam, e, após o anuncio do presidente Geisel, em 1974, de uma distenção política lenta e gradual de volta a democracia, os jornais voltaram a poder falar da política nacional. O golpe militar de 1973 no Chile através do Jornal do Brasil. Consideremos agora, que um cidadão brasileiro, leitor do Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, sem um conhecimento mais profundo do que acontecia no Chile entre os anos de 1970 a 1973, acordasse de manhã para tomar seu café e abrisse seu jornal, como de costume, e logo na capa de seu habitual periódico se deparasse com uma estranha notícia sem manchete falando a respeito de um golpe de estado no Chile. Quais as imagens que se formariam em sua cabeça? Qual seu julgamento a respeito do que acontecia no Chile, se sua fonte de informações fossem as notícias do Jornal do Brasil? É esta analise que tentaremos realizar agora, partindo da edição do dia 12 de setembro de 1973 do Jornal do Brasil. Nela, é estampado na capa uma notícia sem manchete. Após uma breve apreciação o leitor é informado de forma objetiva a respeito do suicídio de Allende. Segundo o informado, o presidente se matou com um tiro na boca, informações cedidas por jornalistas do “El Mercúrio”, jornal chileno de oposição a Unidade Popular. A notícia ainda esclarece quem são os golpistas e quais seus objetivos. O movimento militar começou de manhã, em Valparaíso, principal porto chileno, onde unidades de fuzileiros navais ocuparam a estação de rádio e os pontos chaves da cidade. Logo depois, em Santiago, o General Augusto Pinochet, Ministro da Defesa, o Brigadeiro Gustavo Leigh Guzman, da aeronáutica, o Almirante José Toribio Medina, da Marinha, e o General César Mendonça, do Corpo de Carabineiros, constituíam uma junta militar e exigiam a renúncia de Allende.(...) A Junta Militar justificou o levante: Pôr fim a “gravíssima crise econômica, moral, e social do Chile”, devido a incapacidade do governo de conter o caos, o crescimento de grupos armados e organizados por Partidos da coalizão governamental, e ter fortalecido a luta de classes, “uma luta fratricida à nossa formação” (O PRESIDENTE SALVADOR ALLENDE DO CHILE..., 1973)

Através do enunciado percebemos algumas informações, como, quem fazia parte da Junta Militar, onde se iniciou o levante e qual a justificativa dos insurgentes. A luta entre os grupos MIR e Pátria Y Libertad também são ressaltados nas justificativas. Na segunda página do jornal (JORNALISTA DIZ QUE ALLENDE SE MATOU A TIRO, 1973), são fornecidas informações mais detalhadas sobre o golpe. A informações sobre as últimas horas de Allende no poder, sua renúncia em deixar o cargo, o bombardeio ao palácio La Moneda, e sobre outros presidentes que já haviam se suicidado quando depostos, caso de Getúlio Vargas no Brasil. Em reportagem ao pé da página (FORÇAS ARMADAS O ÚLTIMO RECURSO, 1973), os jornalistas descrevem que não é a primeira vez que um levante militar ocorre no Chile, ao contrario do que afirmavam os militares chilenos. Os episódios de 1810, 1890, 1932, 1970 e 1972, provam o constante uso das forças do exército em atos governamentais. Este último, 1972, gerou a entrada do General Carlos Pratts no Ministério do Interior, sacramentando a união entre estado e exército já no governo Allende. Pratts, foi posteriormente substituído por Pinochet, um dos comandantes do golpe. O 63


episódio de Pratts é ressaltado na reportagem, que tem um cunho mais pessoal, uma espécie de editorial, revelando a divisão que já ressaltamos. Curiosamente na reportagem “Um Movimento Para a Libertação” (1973), que versa sobre o ultimato realizado pelos militares, é pedido que os familiares permaneçam em seus lugares, dizendo: (...) Neste país já não se aceitam atitudes violentas. Devemos acabar com as atitudes extremistas. Informava também o comunicado “que todos aqueles que não acatassem as ordens militares, ficariam sob a jurisdição das leis militares”.

Fato curioso à constatação de atitudes violentas naquele que seria o Regime Militar mais violento da América Latina. Na mesma página é informado que os membros da Unidade Popular e colaboracionistas do governo Allende deveriam se apresentar ao Corpo de Carabineiros (Polícia Militar), ou ao exército, sob pena de detenção (JUNTA INTIMA DEPTOS DE ALLENDE, 1973). Na famosa coluna política “Coluna do Castelo” (1973), escrita pelo jornalista Carlos Castelo Branco, é comentado que o governo “antidemocrático” de Allende, não havia conseguido armar suas milícias para a tomada do poder, restando para ela assumir um compromisso, assinado com o PDC, de respeito às instituições democráticas. As primeiras notícias sobre os acontecimentos de Santiago não permitem uma visão clara do futuro próximo. Ainda não se sabe se os militares, imbuídos até há pouco de espírito democrático e de respeito pelas instituições civis, convocarão imediatamente eleições que permitam a revisão popular dos erros cometidos em 1970.

A “democracia” do regime militar chileno durou até o ano de 1990. Em seu nome, e em nome da Segurança Nacional, foram assassinadas, torturadas e exiladas milhares de pessoas. .A edição também trás as causas da queda de Allende (AQUEDA DE ALLENDE: AS CAUSAS, 1973). Foram destacados a “Via chilena do socialismo”, os projetos de estatizações, e de expansão do mercado interno de consumo de bens através do aumento salarial dos trabalhadores chilenos. Por outro lado, é demonstrado os insucessos da administração da Unidade Popular, o aumento da inflação e a falta de produtos nos mercados, além dos boicotes ao cobre chileno por parte do EUA, o que fez com que seu preço caísse no mercado internacional. Apenas não foram noticiados os boicotes dos comerciantes de classe média na venda de produtos, e o mercado negro que se formou devido a esta estratégia. A repercussão internacional apresenta de forma clara os dois projetos de governo opostos no mundo. De um lado EUA e de outro URSS. A reportagem diz: Entretanto, fontes diplomáticas norte-americanas disseram que o reconhecimento da Junta Militar por parte dos Estados Unidos é iminente e se trataria de uma simples formalidade, uma vez que o novo governo controla a maior parte do país. (...) A agência soviética Tass informou de Moscou que tinha ocorrido “um motim militar reacionário contra o governo legítimo da República” e afirmou que “os rebeldes pediram a renúncia do presidente Salvador Allende, mas que este expressara sua determinação de defender o regime democrático a qualquer preço. (EUA AGUARDAM DEFINIÇÃO PARA FALAR, 1973)

Os EUA, apoiadores do golpe, viram apenas como uma formalidade o golpe chileno, enquanto o governo soviético o viu como um motim ilegítimo (VIZENTINI, 1990). No Caderno B, foi destacado a vida de Allende. Nele encontramos sua infância, seu ingresso na faculdade de medicina e seu engajamento político desde a vitória no Diretório Estudantil da escola (ALLENDE: UM VIDA DIFÍCIL PELOS CAMINHOS LEGAIS, 1973). Nos dias seguintes foram noticiadas a instalação do Regime Militar no país. A repressão (JUNTA COMEÇA A ESMAGAR OPOSIÇÂO NO CHILE, 1973), e os focos de resistência (EPÍLOGO VIOLENTO, 1973), demonstram o derramamento de sangue no Chile. Os setores de resistência são demonstrados como um grupo de minoria que mais cedo ou mais tarde tenderiam ao confronto violento para a tomada de poder. A culpa é creditada a Allende, que os teria armado e incitado. Apesar de este sempre defender os caminhos legais e constitucionais para a Via Chilena do Socialismo. Manifestações contrárias e a favor do golpe pelo mundo também são demonstradas (PROTESTOS PREDOMINAM NA A. LATINA E NA EUROPA, 1973). As relações entre Brasil e Chile, antes frias devido ao governo socialista de Allende, voltaram a esquentar. Até o dia 13 de setembro o governo brasileiro ainda aguardava para reconhecer o Regime Militar chileno. No dia 14 de setembro foi noticiado que a Junta Militar controlava todo o Chile, destacando a reconstrução que aconteceria no país (JUNTA ASSEGURA CONTROLE DA SITUAÇÂO NO CHILE, 1973). O cimento a ser usado para essa reconstrução seria a repressão e a abertura de mercado aos capitais estrangeiros. O bolo chileno, economia, agora poderia crescer, e, como a exemplo do Brasil, ser aproveitado por alguns poucos, em uma festa de aniversario exclusiva, onde apenas 64


convidados ilustres poderiam entrar. Conclusões Retomando as perguntas realizadas anteriormente com relação ao leitor do Jornal do Brasil no ano de 1973: Quais as imagens que se formariam em sua cabeça? Qual seu julgamento a respeito do que acontecia no Chile, se sua fonte de informações fossem as notícias do Jornal do Brasil? Chegamos à conclusão de que o leitor teve possibilidade de avaliar alguns lados da questão. Primeiramente, o suicídio de Allende. As notícias creditadas a sua morte, ajudaram a criar uma aura de mártir no imaginário coletivo da população. Assim como Getúlio Vergas no Brasil em 1954, Allende permanecera no imaginário da América do Sul, como um símbolo da luta a favor da liberdade e da legalidade. Outro ponto a analisarmos, é a vinculação de caráter econômico-político das reportagens. A crise política e econômica foi o principal mote das reportagens, que em momento algum citam as conquistas alcançadas pelos trabalhadores e populações menos favorecidas do Chile. Os apoiadores de Allende são vistos como uma minoria que queria dominar o país. Uma ditadura de uma minoria proletária e sem organização. O que alimentou, e alimenta, até hoje o imaginário da população a respeito das disputas políticas de grupos de esquerda. Ao invés de estas discordâncias serem vistas como um demonstrativo da democracia, elas são vistas como brigas internas de um grupo sem coesão e desorganizado. Podemos notar, também, que a via do golpe militar chileno, era admitida como uma possibilidade de volta a ordem e estabilidade no Chile. Os salvadores da pátria chilena, exército, estavam ali quando seu país necessitou. E para o salvar pediam apenas uma coisa em troca, a liberdade de seu povo. Como um pai que diz a seu filho que lhe obedeça cegamente, pois ele é mais experiente e apto a resolver uma determinada situação, os militares do Chile tomaram o poder e disseram ao povo chileno que se calasse e o obedecesse. Eles tinham o remédio para salvar o país. Porém, o remédio deixou seqüelas sentidas até hoje. O Chile ainda engatinha no processo de catarse dos fantasmas da ditadura. Um silêncio velado cerca o assunto. A participação do povo, democrática, na política e rumos da nação apenas será atingida depois que se realize este processo de exorcização dos regimes de Segurança Nacional que assolaram a América do Sul a partir da década de 60. A participação política ainda é estranha ao povo depois de passados aproximadamente 20 anos do fim das ditaduras.

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JORNALISTA DIZ QUE ALLENDE SE MATOU A TIRO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponível em: <http://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19730912&printsec =frontpage&hl=pt-BR> JUNTA ASSEGURA CONTROLE DA SITUAÇÂO NO CHILE. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 set. 1973. Disponível em: <http://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19730912& printsec=frontpage&hl=pt-BR> JUNTA COMEÇA A ESMAGAR OPOSIÇÂO NO CHILE. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set. 1973. Disponível em: <http://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19730912&printsec =frontpage&hl=pt-BR> JUNTA INTIMA DEPTOS DE ALLENDE. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponível em: <http://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19730912&printsec=frontpage&hl=ptBR> MORAES, João Carlos Kfouri Quartim de. Liberalismo e ditadura no cone sul. Campinas: UNICAMP, 2001. O PRESIDENTE SALVADOR ALLENDE DO CHILE... Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponível em: <http://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19730912&printsec =frontpage&hl=pt-BR> O’DONNEL, Guillermo. Contrapontos: autoritarismo e democratização. São Paulo: Vértice, 1986. PACHECO, Diego da Silva. Do Prata à Guanabara: a deposição de Arturo Frondizi e a imprensa do Rio de Janeiro (1962). Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, 2009. PROTESTOS PREDOMINAM NA A. LATINA E NA EUROPA. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 set. 1973. Disponível em: <http://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19730912& printsec=frontpage&hl=pt-BR> ROUQUIÉ, Alain. O estado militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984. SADER, Emir. Democracia e ditadura no Chile. São Paulo: Brasiliense, 1984. SCHILLING, Voltaire. Chile: a derrubada da democracia (de Allende a Pinochet). Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/index_mundo.html, 2002. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. UM MOVIMENTO PARA A LIBERTAÇÃO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 set. 1973. Disponível em: <http://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19730912&printsec=frontpage&hl=ptBR> VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. Da Guerra Fria à crise (1945-1989): as relações internacionais do século 20. Porto Alegre: UFRGS, 2006.

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II – Memórias e Ditaduras: aproximações do passado

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A atuação política de oposição em um pequeno município do norte gaúcho durante o regime civil militar: memórias de Arude Gritti. 1

Fernanda Pomorski dos Santos e Gerson Wasen Fraga

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Resumo: O objeto deste artigo reside nas memórias de Arude Gritti, político atuante no município de Mariano Moro, norte do estado do Rio Grande do Sul, durante o regime civil-militar brasileiro (19641985). Vinculado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Arude foi eleito por duas vezes vereador e prefeito, mantendo até hoje inserção na vida pública como militante partidário. Através de suas lembranças, colhidas em entrevista, é possível perceber como a situação do período permeava as relações pessoais e os espaços de sociabilidade em uma cidade pequena e afastada dos grandes centros urbanos, bem como algumas das estratégias de intimidação política utilizadas por parte do aparato repressivo naquela localidade. Palavras-chave: Memória – Política partidária – Sociabilidade – Município de Mariano Moro Abstract: The object of this paper lies in the memories of Arude Gritti, political operative in the town of Mariano Moro, north of Rio Grande do Sul state, during the Brazilian civil-military regime (1964-1985). Linked to the Brazilian Democratic Movement (MDB), Arude was twice elected alderman and mayor, keeping actually insertion in public life as a militant supporter. Through their memories, gotten in an interview, you can see how the situation of the period permeated personal relationships and socializing spaces in a small town and away from large urban centers as well as some of the strategies of political intimidation used by the apparatus repressive in that locality. Keywords: Memory – Party politics – Sociability – Mariano Moro Town

Os fenômenos históricos podem ser percebidos de múltiplas maneiras, conforme a posição do observador. Com efeito, as impressões individuais escondem e/ou revelam experiências que, inseridas nos grandes processos, apresentam a especificidade de quem guarda na memória o olhar que um dia 3 atravessou – e que certamente ainda atravessa – o “mar agitado da História”. Tal travessia por vezes revela os traços remanescentes dos grandes processos históricos, dotados, em cada homem ou mulher, de matizes próprios: a convicção pessoal de quem buscou a liberdade coletiva; o indivíduo isolado em meio à crise social; as marcas distintivas, expressas em cicatrizes físicas ou emocionais. Por vezes, estes signos tomam morada na memória, restando ocultos mesmo ao olhar mais atento. Perdem-se no somatório das coletividades e perecem com o próprio indivíduo ao fim de sua existência física. Não raro, tais memórias, quando instigadas, apresentam o indivíduo diante da macroestrutura, seja do Estado, da economia e/ou dos próprios ditames sociais, sem que isto signifique necessariamente a perda da dimensão coletiva. O objeto deste pequeno trabalho reside em um relato de memória, tendo como pano de fundo a ditadura civil-militar brasileira. Arude Gritti, político vinculado ao MDB durante o regime de exceção, foi vereador e prefeito em um pequeno município do norte gaúcho. Ali, na arena onde todos se conheciam e as relações pessoais eram cotidianamente perpassadas por laços de pessoalidade, Arude experienciaria, em sua atividade política e em seu cotidiano, a ditadura de uma forma muito particular. Se a distância dos grandes núcleos urbanos minimizava as chances da materialização dos horrorres das prisões e calabouços, era nas relações pessoais que o quadro político nacional iria se manifestar, levando a um complexo jogo onde os sentidos contrários conviviam com as atividades prosaicas de um homem do campo, como fazer seu gado compartilhar o mesmo campo de pastagem com o rebanho de seu opositor. Conhecido em sua comunidade por suas posições democráticas, Arude Gritti acabou sendo processado. O motivo que desencadeou o processo – mais tarde arquivado – lhe é até hoje uma incógnita. Tal qual na obra de Kafka, o cidadão foi acionado juridicamente pelo Estado, materialização máxima da coletiviadade, sem que lhe fosse esclarecido o real motivo da ação. Arude desconfia de seus 1

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Formação / Instituição: Discente do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim. Formação / Instituição: Doutor em Historia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim. A expressão é de um poema de Maiakovski.

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pronunciamentos na câmara de vereadores local, embora não tenha certeza. O motivo exato lhe permanece um mistério. Sua filha, professora univesitária de História, busca hoje os autos do processo, sem conseguir encontrá-los. Nada disto, porém, abala sua convicção na justeza de sua causa e de sua atuação política, da qual ainda hoje não se afasta, embora restrito à condição de militante. Em suas memórias, os nefastos anos da ditadura apresentam uma coloração própria, de um homem ligado à sua pequena comunidade e sua família, mas também aos valores universais da liberdade e da democracia. Das condições da entrevista. A entrevista com Arude Griti foi realizada no dia sete de fevereiro de 2013, na residência de sua filha, a professora Isabel Rosa Gritti, e teve a duração aproximada de uma hora. O entrevistado, nesta ocasião com setenta e sete anos de idade, teve a companhia da filha e da esposa durante a entrevista, que constantemente serviam como incentivadoras da memória, relembrando temas e passagens de sua vida para que este desenvolvesse a narrativa a partir de suas próprias lembranças. A fala de Arude reflete bem sua origem ítalo-gaúcha, com o sotaque carregado típico da região norte do Rio Grande do Sul. Algumas das transcrições aqui apresentadas sofreram pequenos ajustes, para uma melhor compreensão por parte do leitor. Evidentemente, tivemos o cuidado de que estes fossem mínimos, sem interferir no sentido da narrativa. A pedido do entrevistado, alguns nomes foram suprimidos, por se tratarem de pessoas ainda vivas. Sabemos que o trabalho com História Oral demanda bem mais do que apenas uma entrevista. Desta forma, alertamos para o fato de que este texto, embora aponte para alguns caminhos conclusivos, deve se integrar futuramente ao desenvolvimento de outras tantas pesquisas sobre a ditadura civil-militar no norte gaúcho, especialmente nos pequenos municípios, onde a estrutura produtiva calcada no minifúndio impunha laços de proximidade pessoal. Não se trata, portanto, de um trabalho que se esgote em si mesmo, mas de um primeiro passo em direção ao que acreditamos ser um campo de pesquisa ainda pouco explorado e que, por trabalhar com a memória de seus protagonistas, demanda certa urgência. O cenário de nossa narrativa. Com a grande demanda de imigrantes europeus que vinham para o Brasil, as antigas colônias, localizadas na região do Rio dos Sinos e de Caxias do Sul, já não comportavam o número crescente de pessoas. A solução foi a ocupação da região norte do estado, dando origem à formação de pequenas propriedades no norte gaúcho no final do século XIX e começo do século XX. Esta foi uma das últimas regiões do estado a ser colonizada, desencadeando conflitos por terras entre colonos migrantes, caboclos e indígenas que já habitavam as terras do Alto Uruguai, local onde mais tarde formar-se-iam cidades de pequeno e médio porte. A colônia Erechim foi uma das últimas a serem ocupadas no estado. Dois motivos colaboraram para o fato: situar-se mais distante do centro de ocupação – a estância – e da capital – Porto alegre, e por seu relevo ser bastante acidentado, especialmente na 4 porção norte, junto ao vale do rio Uruguai, sendo, assim, pouco atrativa ao latifúndio.

A cidade de Mariano Moro é um dos pequenos municípios procedentes deste movimento migratório, junto a inúmeras outras pequenas comunidades, cuja renda e economia derivavam principalmente da agricultura e da pecuária, e que também sofreram as coibições pelos anos de repressão. A vida longe dos grandes centros urbanos sempre apresentou peculiaridades, e constantemente nos vemos presos a estereótipos ligados ao habitante destas localidades (o “colono” de fala estranha, conservador, com pouca instrução mas esperto para os negócios). Assim, não percebemos que cada pessoa vivencia os acontecimentos do dia a dia de forma única, e que as pequenas mudanças em seu cotidiano podem representar as minúcias muitas vezes esquecidas pelas grandes interpretações históricas. O contexto político, econômico e social vigente nos anos de repressão repercutem também nestes pequenos núcleos urbanos e o cotidiano do homem do campo é alterado, as vezes de maneira sutil, mas sem deixar de ocasionar transformações na sua maneira de pensar e de conviver com seus pares. A força repressora do Estado muitas vezes se fez presente nos locais de convívio. Outras vezes, seus ideais foram assumidos por instituições que operaram como instrumentos de controle social. Preocupada em garantir a legitimidade de suas ideias, a igreja Católica, que assumiu diferentes papeis 4

ZANELLA, Anacleto. A trajetória do sindicalismo no alto uruguai gaúcho 1937-2003. Passo Fundo: UPF, 2004, p 26.

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diante do regime cívico-militar, exercia uma influência muito grande na formação de opinião de seus fieis. Assim, nas pequenas comunidades do interior do Rio Grande do Sul, locais antes destinado a encontros comunitários, confraternizações e festividades religiosas tornam-se palcos potenciais de disputas políticas, de combate à ação comunista (ou àquilo que era percebido como ação comunista) e ao crescimento do movimento de oposição, que deixava as lideranças católicas apreensivas e temerosas com a possibilidade de penetração de novas ideologias. Utilizando-se do prestigio que detinham nas pequenas localidades, os padres católicos se valiam de sua autoridade para disseminar suas opiniões políticas, geralmente favoráveis ao sistema vigente. É preciso ressaltar também as relações interpessoais existentes nas pequenas comunidades do interior brasileiro. A proximidade física em meios relativamente isolados faz com que o grau de colaboração entre elas se torne mais forte e significativo em comparação a muitas das relações pessoais nos grandes centros urbanos. Esta proximidade por vezes coloca lado a lado pessoas com posições políticas diferentes, sem no entanto causar-lhes constrangimentos ou mesmo apatia. No cenário se enquadra nestas características típicas das pequenas cidades do interior gaúcho. 5 Com cerca de quatro mil habitantes em 1970 (hoje possui pouco mais de dois mil e duzentos) , Mariano Moro emancipou-se em 1966, deixando de fazer parte do município de Erechim. Contudo, a distância dos grandes centros não impediu a formação de lideres políticos capazes de questionar as ordens impostas pelo regime. Assim como os braços da repressão, as formas de resistência também alcançaram todos os níveis sociais, fazendo-se presente nos fatos mais simples do cotidiano urbano ou rural. Surgiam assim as lideranças locais, capazes de ver além das limitações sociais e das dificuldades impostas pela distância dos grandes palcos para o embate político. Para estas figuras, a possibilidade de alcançar melhorias para a comunidade estava na organização coletiva, onde despontavam figuras que, dentro das particularidades dos pequenos municípios, divididos entre a vida privada e pública, procuravam combater os desmandos dos anos de repressão. Esta, por sua vez, também encontraria os caminhos para que seus aparatos de intimidação e vigilância funcionassem nestas pequenas localidades. O relato de Arude Gritti sobre sua experiência política. Arude Gritti nasceu em 1935, filho de um casal de agricultores, em Mariano Moro, então distrito de Erechim. A localidade se emanciparia em 1966 e, aos 32 anos, Arude seria um dos primeiros vereadores eleitos no novo município, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). A inserção na vida pública não foi obra do acaso. Mesmo com as limitações que um pequeno município recém-emancipado no norte gaúcho impunha em termos de acesso à informação, Arude mantinha-se a par das discussões políticas que então movimentavam o país. Assim, a escolha pelo MDB dentro do sistema bipartidarista imposto pelo Ato Institucional nº 2 (AI-2) seria uma decorrência de admirações que já trazia desde antes de sua inserção na política local e da consciência quanto à necessidade de reformas estruturais no país. Em outras palavras, Arude possuía uma leitura do Brasil para além do espaço a seu redor. “Eu digo que para mim houve o Getúlio e o Jango, que foram os 6 melhores presidentes, a não ser os atuais agora que estão, né”. Esta percepção da realidade nacional ganhava ênfase quando contrastada à ação do grande palanque que, à época, existia em Mariano Moro: o púlpito da Igreja. De lá, o pároco local, em consonância com o discurso oficial daqueles anos, alertava seus fieis sobre os riscos que a penetração comunista, barrada pelo regime de exceção, traria para o país. A população do interior, o nosso lugar, muitas vezes tu acompanhava pela própria igreja, o padre, porque o ouvia falar que achava que era comunismo (…). As pessoas com pouca instrução, eles acompanhavam o que o padre falava na Igreja, só que eu muitas vezes saía fora da igreja e discutia com a turma, né, que não era isso aí que ele falava. Que eram as reformas de base, que deveriam ser feitas. A gente acompanhava tudo.

Perceba-se que, a partir das memórias de nosso entrevistado, não é dificil traçar alguns elementos do espaço onde sua história é narrada: uma cidade pequena e afastada dos grandes centros urbanos, economicamente estruturada sobre a produção familiar, onde os hábitos comunitários e 5

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http://www.marianomoro.rs.gov.br/portal1/demografia/mu_dem_pop_total.asp?iIdMun=100143231, http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=431200#. Acessos em 02 de março de 2013. Entrevista com Arude Gritti, cedida a Gerson Wasen Fraga e Fernanda Pomorski dos Santos, no dia sete de fevereiro de 2013. A gravação encontra-se sob guarda do Laboratório de História Oral e Linguagens (LABHORAL) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. A fim de não sobrecarregar o texto com notas desnecessárias, todas os excertos que se seguem, retirados da fala do entrevistado, remetem a esta entrevista.

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agropastoris ditam o ritmo da vida cotidiana. Um espaço de pessoas simples, onde o altar religioso se constituía em um importante local de poder. Neste microcosmo, tal qual em outros tantos lugares da América Latina, o conservadorismo religioso, avesso aos novos ventos que soprariam em outras tantas paróquias a partir da Teologia da Libertação, andaria de mãos dadas com as Doutrinas de Segurança Nacional, associando discursivamente o golpe civil militar a um movimento de defesa do cristianismo, da pátria e da propriedade privada, atuando, por extensão, como instrumento de controle social afinado ao regime. Neste espaço onde Arude se inseria na vida pública, também a repressão não tardaria a chegar, ainda que atuando de formas distintas conforme o alvo. Em alguns casos, configurava-se o tradicional sistema de ameaças e agressões típico dos estados coronelistas. Até o responsável pela Brigada Militar, que era o ...Era uma perseguição forte, era forte. Inclusive nós, que éramos do MDB (…) ele ameaçava até de revólver. A própria polícia, o próprio policial. E isto é triste. Teve gente que apanhou por causa de política, perseguição. Não tinha o que fazer, porque eles tinham tudo na mão. Então nós passamos uns anos “meio pesadote” lá.

Na memória de Arude Gritti, não há o registro de que sua pequena cidade tenha sentido o medo da delação, do desaparecimento forçado ou do assassinato a mando do Estado. Isto, é claro, pode ser o resultado de uma impressão pessoal, construída a partir de seu próprio olhar. Mas também pode ser entendido como fruto dos mecanismos que a repressão encontrou ou julgou adequados para aquele espaço específico. Neste sentido, a própria “cultura repressiva” dos agentes legais poderia encontrar nas agressões toscas – entenda-se sem o “refinamento científico” das torturas – e nas ameaças sua forma cotidiana de atuação, o que valeria também para o delito de comunismo. Eu conheço todo mundo, sempre conheci todo mundo (…) tem uns companheiros que apanharam, até que sofreram por causa da... (…) nunca fui a favor da... não vou dizer “revolução”, que para mim foi um golpe, porque não tinha nada de comunismo.

Arude, no entanto, não foi agredido. A forma que o aparato repressivo encontrou para lhe intimidar foi através de um processo motivado por algo que nunca lhe foi explicado. De certo, apenas a desconfiança de que a peça jurídica seria motivada pela sua atuação política junto à comunidade de Mariano Moro. “Veio aqui de Erechim, da Brigada, me entrevistar lá. Nem lembro mais o que aconteceu. (…) Eu não fiz nada de mais. Eu defendi as minhas convicções e pronto!” Este fato nos leva a pensar nos motivos pelos quais um indivíduo receberia, naquele cenário e contexto, uma atenção especial por parte do aparato repressivo. Certamente, pesou o fato de Arude se constituir em uma jovem liderança dentro do município, conhecido por todos e ostentando um matiz político oposicionista. Podemos cogitar ainda que sua atuação, em que pese o caráter de oposição à Aliança Nacional Renovadora (ARENA), não ultrapassasse o âmbito local, não representando assim uma ameaça substancialmente visível ao regime de exceção. Contudo, há que se considerar ainda um elemento possível que representaria um diferencial para Arude: uma certa aura intelectualizada em um meio marcado pelo pouco acesso à informação. Com efeito, Arude não apenas era um jovem conhecido na política local, mas também era – e ainda é – leitor assíduo de jornais, objeto que, à época, sofria o obstáculo das inúmeras dificuldades impostas pelo sistema de transportes. As lembranças de Arude e de sua família indicam que o processo deve ter transcorrido entre 1969 e 1972, aproximadamente. Foi Isabel, filha de Arude, que certa vez viu o conjunto dos documentos no fórum de Gaurama, onde fazia pesquisas para seu doutorado. Na pressa de sua pesquisa e, naquela época, sem ter à sua disposição uma máquina fotográfica digital, a pesquisadora resolveu deixar para ver a documentação em outra oportunidade. Alguns anos depois, quando retornou para o Fórum a fim consultar o processo, descobriu que este não mais se encontrava lá, e que possivelmente havia sido incinerado. A informação dada à pesquisadora foi a de que este havia sido o destino de uma série de processos outrora sob guarda do fórum, nos quais o réu havia sido absolvido. Cria-se assim uma situação em que o agente passivo no processo é privado de, a qualquer momento, poder buscar o registro de sua própria história. Para além disto, os indícios relativos à peça jurídica, colhidos a partir da fala do entrevistado e de sua família, apontam para uma ação arbitrária e intimidatória. A se confirmar, o descarte em tal situação não representa um ato em benefício ao réu absolvido, mas sim a imposição de novas barreiras para que as arbitrariedades relativas ao período do regime civil militar sejam desveladas pelos historiadores e pelos próprios interessados. Eu não sei porque eu fui processado, porque eu não dei um tapa para ninguém, não fiz nada de mal. Só se for o que saiu da câmara, que aquilo é que eu quero ver. Sem isso ou aquilo, né. Mas o que tu vai dizer nessas horas. Que bom seria se fosse achar lá, para ver os documentos, para ver qual que foi o motivo que foi. E afinal terminou por

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assim e...

A deflagração do regime Civil Militar de 1964 abalaria as estruturas sociais de Mariano Moro, separando vizinhos e amigos que até então desfrutavam de relações comuns. Em um local de poucos e tradicionais espaços de sociabilidade, as transformações políticas remetem mesmo ao rompimento de práticas cotidianas. Neste ponto, Arude recorda-se em especial da figura do primeiro interventor do município, nomeado logo após a emancipação em 1966. Em sua narrativa, ambos eram amigos, companheiros de jogos até o momento em que o golpe trouxe para suas relações o ingrediente da oposição política. A partir de então, o convívio social passa a tomar outros rumos, conforme se instituiam as relações de poder. O mais culpado ainda eu acho que era o interventor. Nós ia jogar nossa canastra, nosso pontinho, tudo junto. Depois começou... aí era mais difícil. Aí ficou uma relação mais tensa e... e não tinha também como, porque, eles queriam intimidar e fazer, e eu defendia meus amigos, meus companheiros, né. Até inclusive um que já morreu, queria saber porque deram uma surra de laço nele uma época, porque ele era meu companheiro de... E não sei porque que bateram. Só por causa de política, né, porque ele era meu companheiro, eleitor meu daqueles de... de firme mesmo, que não tinha medo.

O rompimento ou enfraquecimento de relações pessoais, tendo questões políticas como fator determinante não é, obviamente, uma exclusividade deste caso. Nos interessa antes perceber que nesta situação específica, o alinhamento à ARENA ou ao MDB poderia muito bem funcionar como uma justificativa para que questões de ordem pessoal fossem resolvidas através da violência. No caso do amigo não identificado, a intimidação pura e simples é seguida pela prática do espancamento, demandando, muito possivelmente, uma ação orquestrada e previamente planejada. Mais uma vez, vemos antigas práticas coronelistas sendo retomadas na região, no bojo do Golpe de 1964. O caráter de ação planejada ganha força, no relato, pelo fato de não ter ocorrido dentro da delegacia local, mas sim em uma estrada qualquer, envolvendo diversas pessoas em conluio para agredir apenas uma. Como citado anteriormente, Arude passou imune a este tipo de intimidação, em que pese o fato de seus correligionários e eleitores mais próximos tornarem-se vítimas potenciais da violência física das autoridades da região. Mais uma vez, não há na memória do entrevistado referências a atos de extrema violência perpetrados diretamente contra sua pessoa. “Que eles queriam me mostrar de dedo sim, mas que eles queriam me ameaçar com arma não”. Toma força, desta forma, a hipótese de que Arude era percebido como um diferencial em relação ao cidadão médio de Mariano Moro, o que lhe servia como um escudo diante da possibilidade da agressão física. A ameaça legal, escondida sob a forma de um processo não devidamente explicado deveria cumprir então esta função, intimidando ou, quiçá, silenciando o jovem político oposicionista. A polarização da política neste cenário afastado atingiria igualmente as relações pessoais que extrapolavam o campo da amizade. Contudo era possível estabelecer acomodações, de forma a estabelecer um limite entre a fidelidade partidária e vida privada. Ao mesmo tempo, hábitos ligados ao cotidiano ou à sociabilidade, como o jogo ou apostas, poderiam se imiscuir com as questões políticas. A narrativa a seguir apresenta vários destes elementos de forma simultânea, possibilitando inclusive aventarmos a transposição da fidelidade partidária para a (in)fidelidade familiar diante da restrição de possibilidades imposta pelo bipartidarismo. Seu FR. Ele era contra nós. Até nós temos umas terras junto. Ele é casado com uma prima irmã minha. Naquele tempo era no bigode. “Aquela lá é tua”. Nós tínhamos um gado junto cada um. Até tinha umas vacas e uns touros de raça que eram juntos. Na minha eleição e dele, o F. mandou jogar, “Se tu perde eu pago o gado”. E jogamos nos votos meus e nos votos dele. Só que ele assim, contra mim assim, ele era do outro lado, mas não era... não dá para... Então deu eleição, eu fui o mais votado do MDB, 106 votos. Do meu partido fui o mais votado. E ele chegou em último lugar com 53. Dobrei a votação bem certo dele. Porque lá na urna, os tios dele, os cumpadres, os cunhados... tudo para mim, não votavam para ele.

Arude lembra ainda de outra forma que foi utilizada para tentar lhe retirar do meio político de Mariano Moro: a transferência de sua esposa, professora no município, para alguma outra localidade na redondeza, ou mesmo para escolas mais afastadas. “Eles queriam me mandar embora para mim não incomodar mais, que nós temos força. Não tem a criança que eu não conheça”. O exercício da política de oposição ao regime em Mariano Moro, em que pese esta ser uma localidade de pequeno porte, não era algo a ser feito despreocupadamente, mesmo por uma figura popular como “seu” Arude. Em épocas de campanha eleitoral, os riscos e ameaças aumentavam,

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exigindo por vezes um certo resguardo estratégico por parte de quem se encontrava na linha de frente. Destes momentos, subsiste ainda na memória a lembrança do sentimento então vivido. Tinha um pouco de medo, porque tu sabe, não é fácil. Tem horas que na campanha, nas últimas duas ou três noites eu não saía de casa. Os meus companheiros que iam, porque tu sabe como é que é. Sempre tem aquele, né? (…) E um dia, nós, sentados lá fora, no bar do Ireno, uma tarde conversando uns com outros, aí então lá conversando que ele [o irmão do interventor do município] era candidato também. (…) E ele me ameaçou, puxou um revólver.

As situações de ameaças e confrontos armados em períodos eleitorais são, infelizmente, práticas ainda presentes em muitos dos distantes rincões do Brasil, alicerçadas sobre o poder local e pelo sentimento de impunidade. Neste sentido, talvez a lembrança acima citada não devesse causar, necessariamente, surpresa. O que queremos, contudo, é lembrar que tal situação se fazia acompanhar pelas especificidades do período em questão, onde o poder do Estado participava do jogo político, podendo o aparato repressivo vir a ser utilizado em qualquer momento. Como seu Arude lembra, retomando o sentimento que constantemente lhe acompanhava na vida política: “não era fácil fazer oposição, porque hoje tu faz oposição sem medo”. O tema acabaria sendo retomado em outra passagem de seu depoimento, explicitando um pouco mais os liames que uniam o poder de Estado e o jogo político, mesmo na pequena Mariano Moro. A polícia, a Brigada, porque... acho que nem Polícia Civil tinha lá no começo, a polícia, eles eram do lado deles. Eles cumpriam as ordens deles lá, e tu não tinha o que fazer. Tinha que me cuidar, claro, que não facilitava muito, porque eles para dar um tiro é fácil, depois diz que tu agrediu.

Desta forma, a vida política em Mariano Moro refletia, em pequena instância, muitas das vicissitudes que se manifestavam em nível nacional, adaptando-as contudo as características daquele cenário específico. A intimidação, o medo e as agressões físicas integravam o rol das possibilidades para aqueles que ousassem participar das disputas eleitorais sob as regras impostas pelo regime civil-militar. E neste cenário, onde mesmo as relações pessoais mais próximas poderiam ser permeadas pelo alinhamento à ARENA ou pela opção oposicionista (MDB), a ausência de regras definidas permitia que a tentativa de enquadramento aos adversários do aparato governista se revestisse de formas um pouco mais refinadas, quando assim fosse necessário. Tal como no processo movido contra o senhor Arude Gritti. Considerações Finais A passagem dos anos não retirou de Arude Gritti o gosto pela participação na vida políticopartidária. Aos 77 anos, o ex-vereador e ex-prefeito de Mariano Moro pelo MDB milita nas fileiras petistas do norte gaúcho, muito embora sem ocupar cargos eletivos, uma vez que sua família considera que “ele já fez sua parte”. Da mesma forma, permance em sua memória as lembranças do tempo vivido sob o regime civil-militar, sob o qual não perde o agudo senso crítico: “Esse golpe, essa 'revolução' que dizem, foi o atraso do nosso Brasil. Isto não resta dúvida nenhuma, porque aí calou a ideia de gente nova, que podia trabalhar, crescer na vida”. Em suas memórias não há espaço para a mágoa. Os dias longes da família, a sensação de insegurança, as ameaças sofridas por si próprio ou por seus companheiros a reproduzir práticas de uma política coronelista, nada disto lhe retira a convicção de que aquela era uma luta necessária, um momento particular de nossa História diante do qual não havia como permanecer calado, ainda que os espaços para expressar sua opinião de forma livre fossem restritos. “Eu vejo que foi um atraso grande em tudo. Primeira coisa a liberdade de expressão, que hoje tu pode te expressar que tu tem, e antes tu não tinha”. A lamentar, somente o fato de nunca ter sabido o real motivo pelo qual foi movido um processo contra sua pessoa naquele período. Ainda que o mesmo tenha sido arquivado e que, no fim das contas, não tenha produzido maiores resultados sobre sua vida pública, resta-lhe a sensação de que um direito elementar lhe tenha sido suprimido. E, ainda, uma certeza: “eu não queria mais voltar naqueles tempos. A grande verdade é esta”.

Fontes:

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Entrevista com Arude Gritti, cedida ao Laboratório de História Oral e Linguagens (LABHORAL) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. A gravação encontra-se sob guarda desta instituição.

Fontes secundárias (virtuais): http://www.marianomoro.rs.gov.br/portal1/demografia/mu_dem_pop_total.asp?iIdMun=100143231. Acesso em 02 de março de 2013. http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=431200#. Acesso em 02 de março de 2013.

Referências Bibliográficas: ZANELLA, Anacleto. A trajetória do sindicalismo no alto uruguai gaúcho 1937-2003. Passo Fundo: UPF, 2004, p 26.

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O golpe civil-militar e o mundo que se abria: notas e possibilidades do exílio na trajetória de Flávia Schilling (Brasil – Uruguai 1964-1980) Diego Scherer da Silva Resumo: O presente texto aborda a temática do exílio político (Brasil – Uruguai) a partir da trajetória de Flávia Schilling. Filha do economista e político Paulo Schilling, Flávia acompanhou o exílio de seu pai no Uruguai 1964, e lá vivenciou também a situação de exilada. Utilizando como fonte principal os depoimentos de Flávia, e em segundo plano os documentos do DOPS, o texto que pretende responder, ainda que de forma preliminar, as seguintes questões: De que forma Flávia e sua família enfrentaram o exílio no Uruguai? Como foi a chegada a esse novo país? Quais as memórias de Flávia sobre o exílio? Palavras-chave: Flávia Schilling – Exílio –Uruguai – Ditaduras.

Bom, quando... o dia do golpe... se não me engano é o Padre Alípio que deixa um recado em casa: “O golpe está na rua”. E aí meu pai, ele vai para uma tentativa de resistência, junto com Dagoberto Rodrigues, que ele era coordenador da central de correios. Havia alguns lugares que de alguma maneira... Porque havia, lembra, a “Frente de Mobilização Popular Nacional”, havia uma organização de alguma maneira se compondo a favor exatamente do governo do João Goulart. Que havia proposto as reformas de base, as famosas reformas de base que, enfim, até hoje estamos esperando por algumas delas. E ele avisa: “O golpe está na rua”. E aí meu pai sai de casa. E eles ficam, um pouco, percebendo os acontecimentos, que não haverá possibilidade de resistência. O João Goulart, ele realmente sai do país rapidamente. E aí meu pai sempre relata que ele e outros, eles foram, digamos, acolhidos nesse momento: “o que fazemos agora?” “É possível resistir ou não?”, pelo Tenório Cavalcante, o homem da capa preta, na baixada fluminense; que os acolhe na casa deles e protege meu pai e outros militantes da época. E lá eles ficam durante, mais ou menos, uma semana. Para perceber a direção do movimento, se é possível resistir, o que fazer. Enfim, quando percebem que isso não é possível, o próprio Tenório providencia um carro para eles e os leva, enfim, até a cercania da embaixada do Uruguai. Eles pulam o muro da embaixada e, enfim, solicitando asilo político. Até esse momento a gente não sabia de fato, minha mãe... Enfim, éramos minha mãe e as quatro filhas morando lá no Leblon. A gente não sabia o que estava acontecendo com o nosso pai, o pai. Ficamos sabendo, porque, exatamente, no dia em que ele pede o asilo... ele entra na embaixada do Uruguai, e aí eles pulam porque ela estava cercada. Não é que eles entraram pela porta, ela estava vigiada, então eles pulam o muro. A polícia, o DOPS, vai em casa. E aí sabemos pelo DOPS que ele está exilado. Porque eles estavam obviamente vigiando a casa para ver se ele aparecia para prendê-lo. Ao saber que ele estava exilado, eles vão até nossa casa fazer uma vistoria. [...]. Então a partir desse momento meu pai está exilado na embaixada. Há mais de uma centena de pessoas na embaixada do Uruguai naquele momento esperando o visto para sair do país. Enfim, quando ele consegue ir embora para o Uruguai. Nós voltamos para Porto Alegre ainda, para o antigo apartamento de Porto Alegre. Mais ou menos pelo mês de agosto, meu pai já está em Montevidéu, e nós acompanhamos ele indo para Montevidéu. Vamos para Montevidéu em agosto de [19]64. Então começa a fase do 1 exílio [...] .

As palavras acima são de Flávia Schilling, referindo-se a um momento da trajetória de seu pai, Paulo Schilling, na ocasião em que ele sai do Brasil, fugindo do DOPS, e exila-se no Uruguai. Flávia, como vimos em seu depoimento, o acompanha meses depois e também parte para o país vizinho. Sabemos os motivos que levaram Flávia a Montevidéu. Mas como foi a chegada a esse novo país? De que forma Flávia e sua família enfrentaram o exílio no Uruguai? Quais as memórias de Flávia sobre o exílio? Utilizando como fonte principal os depoimentos de Flávia, e em segundo plano os documentos do 1

Entrevista concedida por Flávia Schilling às Professoras Carla Rodeghero e Maria Paula Nascimento Araújo como parte do projeto Marcas da Memória em 18/07/2011 na Faculdade de Educação da USP. Doravante “entrevista 01”. Preferimos apresentar as citações das entrevistas de Flávia, aqui, diferente das normas da ABNT para facilitar a sua visualização. Elas serão expostas entre aspas e em itálico.

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DOPS, o texto que segue pretende responder, ainda que de forma preliminar, essas questões. Um pouquinho de história (ou: antecedentes da saída do Brasil) Flávia nasceu no dia 26/04/1953 em Santa Cruz do Sul, e logo em seguida mudou-se para Encruzilhada do Sul, cidade no interior do Rio Grande do Sul. Filha da dona de casa Ingeborg Schilling e do economista e político Paulo Schilling, viveu os primeiros anos de sua vida em meio as mudanças de endereço de seu pai. Após publicar o livro “A questão do trigo”, Paulo Schilling foi convidado para trabalhar com Leonel Brizola, então governador do estado do Rio Grande do Sul. Em entrevista recente, Flávia relatou: “A gente sai de Encruzilhada do Sul, vai morar em Porto Alegre. E lá se vive a luta pela legalidade, a resistência da luta pela Legalidade. Obviamente o Brizola é um dos protagonistas. Meu pai estava lá no Palácio o tempo todo. É uma situação realmente forte naquele momento. Enfim, meu pai trabalha nessa condição: ligado ao Brizola. E quando o Brizola se elege deputado federal pelo Rio de Janeiro, meu pai acompanha novamente o Brizola. E nós vamos pro Rio de Janeiro também. Em final de (19)63. 2 Então a gente vive o golpe de estado no Rio de Janeiro” . 3

É a partir da sua estada no Rio de Janeiro que os relatórios do DOPS começam a apresentar informações sobre Paulo Schilling. “O cabeça de Brizola”, como aparece nos documentos do DOPS, era supervisionado, entre outras coisas, pelo seu envolvimento com o “Grupo dos onze”, pelos seus contato 4 frequente com a figura de Leonel Brizola, além de ser “Superintende do ‘Panfleto’ , órgão de propaganda do comunismo. Seu nome figura numa relação de elementos que cooperam ativamente para o desenvolvimento do PCB, tendo publicado um livro na coleção ‘Cadernos do Povo’”, como nos informa 5 relatório do DOPS. Paulo parece ter sido seguido bem de perto, como fica visível na sequencia do relatório: Quando alguem bate à sua porta, (mora n’um apto. grande com a familia toda, mulher e 4 filhas) êle vem a porta da rua (o apto. está localizado n’um primeiro andar) e com ar de importante e misterioso, até falando baixo, diz: Você dá umas voltas por aí e vem depois, estou n’uma reunião fechada, ou então estou reunido com o “Setor Militar”. As vezes deixa escapar alguma coisa da tais “reuniões fechadas”, em conversas até de botequim. Muita coisa o informante conseguiu foi exatamente dessas falas. E o homem é considerado da “mais alta responsabilidade”. [...]. Não fala noutra coisa senão revolução. Várias vezes declarou publicamente diante de pessôas até estranhas no Hotel: Vivo a 20 anos por conta de uma Revolução, sendo que a 12 me dedico 6 inteiramente a ela. [...].

Logo após o golpe, Paulo busca asilo na embaixada do Uruguai, motivado pela “perseguição aos políticos ligados ao governo deposto pelo golpe e aos que eram vistos como opositores ao novo 7 regime” . Levando em consideração o dia 1º de abril como data do golpe civil militar, em menos de uma 8 semana, no dia 7 de abril de 1964, segundo relatório do DOPS , Paulo foi procurado em sua residência, momento em que Flávia e sua família ficam sabendo do paradeiro de seu pai – “Ficamos sabendo, porque, exatamente, no dia em que ele pede o asilo [...] a polícia, o DOPS, vai em casa. E aí sabemos pelo DOPS que ele está exilado”. Entretanto, a primeira referência que temos a Paulo após o Golpe é do dia 05 de abril, quando é concedido a ele e a mais quatro pessoas asilo no Uruguai. O “Relatório secreto do DOPS sobre os cidadãos brasileiros que solicitaram asilo nas embaixadas ou países Sul 9 Americanos” infelizmente não nos apresenta as datas do salvo conduto e da partida de Paulo, mas, a partir das informações de outros asilados, imaginamos que ele possa ter ficado na Embaixada até um mês após a concessão do asilo. É interessante observar que a supervisão das atividades de Paulo pelas forças repressivas não 2 3

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Entrevista 01. Aqui nos referenciamos aos documentos disponíveis no acervo pessoal de Paulo Schilling. Possivelmente Paulo já era observado anteriormente. O “Panfleto” foi o jornal do grupo nacional-revolucionário brizolista, porta voz da Frente de Mobilização Popular. Um veículo de comunicação produzido pelo brizolismo. Relatório DOPS. Nº 5757, p. 03. Este documento faz parte do Acervo de Paulo Schilling, recentemente doado ao NPH da UFRGS. O acervo esta sendo organizado e em breve estará disponível para consulta. Ibidem. P. 04. A grafia das palavras foi mantida igual ao original. MARQUES,2006, p.19. Ofício DOPS. Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1965. P. 02. Acervo Paulo Schilling. Acervo Paulo Schilling.

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cessou com sua saída do Brasil. Mesmo partindo para o Uruguai, ele continuou sendo vigiado pelo 10 DOPS, como fica evidente em inúmeras passagens de outros relatórios . Paulo teve, inclusive, dois 11 mandados de prisão : foi condenado a dois anos de detenção pela Auditoria da 1ª RM, como incurso no art. 33 nº I e IV do Decreto-lei 314/67, e, na data de 4 de julho de 1967, a nove anos de prisão, pela Auditoria da 5ª CJM, como incurso no Art. 3º da Lei 1802/53. Após seu retorno ao Brasil, o que veio a ocorrer somente no início de 1980, depois da Lei de Anistia, ainda encontramos informações suas nos relatórios. Nesse sentido, o exílio político pode ser visto como um processo de duas vias: ao mesmo tempo em que garantia um meio de fuga e de preservação da vida para os opositores, era encarado pelo governo como uma forma de desestabilizar a oposição e servir de exemplo para a população. Segundo Marques, o exílio político foi visto pelo novo governo como uma eficiente maneira de desarticular a oposição ao regime, pois objetivava afastar os principais líderes da oposição, e concomitantemente, servir de exemplo àqueles que se propusessem a ingressar na luta contra a Ditadura Militar. Portanto, o exílio era um dos mecanismos de controle utilizados pelos militares, pois, ao isolar, afastar e segregar opositores, contribuía para a desarticulação dos 12 grupos de esquerda .

Era, enfim, mais um meio de manipular, através do medo, os diferentes grupos sociais e colocálos a favor do governo militar instituído a partir do golpe, ou ao menos não em oposição a ele. Como indica Marques, “a possibilidade do exílio como uma ameaça àqueles que contestavam o regime militar ficou demonstrada na excessiva exposição de slogans como, Brasil: Ame-o ou deixe-o, por meio de 13 músicas e adesivos em automóveis” . 14 Essa primeira geração de exilados – a segunda viria após os movimentos de luta contra o regime do fim da década de 1960 – escolheu preferencialmente o Uruguai, e, mais especificamente, a 15 16 sua capital como local de residência fora do Brasil . De acordo com Marques , entre 1964 e 1967, as movimentações políticas de exilados brasileiros no exterior se centralizavam no Uruguai. O declínio dessa concentração começou a partir de 1967, quando Jorge Pacheco Areco assumiu a presidência no país e deu início ao combate aos grupos considerados ligados às ideias comunistas. Para Montevidéu foram, entre outros, o presidente deposto, João Goulart; o ex-governador do estado do Rio Grande do Sul e deputado pelo Rio de Janeiro, Leonel Brizola; o reitor da Universidade de Brasília e chefe do Gabinete Civil, Darcy Ribeiro; um dos principais assessores de Brizola, Paulo Schilling; e um dos líderes da revolta dos marinheiros, em 1964, o 17 almirante Cândido Aragão .

Mas por que o Uruguai? Por que Montevidéu? Fernandes explica que esse país “possuía uma sólida tradição democrática e uma forte solidariedade aos exilados políticos”; além disso, desde a década de 1950, o Uruguai abrigava cidadãos paraguaios exilados desde o estabelecimento da ditadura de Alfredo Stroessner, em 1954, bem como argentinos que fugiram após a queda de Juan Domingo Perón, em 1955. É difícil mensurar o número de exilados brasileiros que foram para Montevidéu, mas estima-se que tenha sido entre 500 e 1000 pessoas recebidas pelo governo uruguaio. Esta cidade passou a ser vista 18 como sinônimo de lugar de liberdade de expressão política .

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Para outros exemplos consultar a pasta “Arquivo DOPS” do Acervo Paulo Schilling. Histórico de Paulo Schilling – Departamento de Ordem Política e Social – Divisão de Informação. P.02. “Arquivo DOPS”. Acervo Paulo Schilling. MARQUES, 2006, p.20. IBID., p.21. Primeira geração que, segundo Rollemberg (1999, p. 50), em geral é associada a “aqueles que se identificavam com os projetos de reforma de base, ligados a sindicatos e partidos políticos legais, como o PTB, ou ilegais, como o PCB”. Ainda sobre essa geração, Marques (2006, p. 21) informa que seus integrantes foram alvo da denominada “‘Operação Limpeza’, codinome adotado pelos militares para designar este conjunto de medidas adotadas pelo novo governo, para eliminar e afastar os seus opositores, em conformidade com os princípios da Doutrina de Segurança Nacional”. Conforme Fernandes (2009, p. 78), a primeira geração de exilados também buscou refúgio em outros países como México, Chile, Bolívia, Argélia e França, por exemplo. MARQUES, 2006, p. 24. FERNANDES, 2009, p. 78. IBID.

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A historiadora Teresa Marques reforça essa perspectiva e elenca alguns outros elementos que podem nos ajudar a entender essa escolha por parte dos exilados. Ela expõe que o sistema político do Uruguai, visto como uma democracia exemplar na América Latina, e as suas liberdades democráticas constituíam um dos principais incentivos para que os brasileiros optassem pelo exílio político por lá. Segundo a autora, no Uruguai “um perseguido político obtinha facilmente asilo político, sua população era considerada avançada cultural e democraticamente, a justiça social era levantada como a maior 19 bandeira do país, entre diversas outras características [...]” . Outro motivo estava ligado às possibilidades de se entrar e sair do país. Fazendo fronteira com o Rio Grande do Sul – estado de origem de Paulo Schilling e outros tantos políticos exilados – sua grande fronteira por terra propiciava rotas para a entrada e saída de pessoas do Brasil para o Uruguai e viceversa. Tal fronteira, entretanto, não era um elemento importante apenas para as organizações de esquerda, ela foi utilizada também pelo aparato repressivo. 20 Nesse sentido, Fernandes explica que a fronteira do Rio Grande do Sul – principalmente a grande extensão de fronteira seca e as cidades “binacionais” (Chuí-Chuy e Santa do Livramento-Rivera) – era constantemente atravessada seja por refugiados ou mesmo cidadãos “comuns” que se sentiam ameaçados e desejavam ir para outros países, como também por agentes da repressão brasileira que “usavam esses caminhos, seja em atividades clandestinas ou de colaboração com a repressão uruguaia, a fim de realizarem ações de perseguições e de operações de buscas”. E foi justamente esse o caminho escolhido pelo restante da família Schilling para ingressar no novo país. Com o exílio de Paulo no Uruguai, Flávia, sua mãe e suas irmãs voltam para Porto Alegre, como nos contou ela em entrevista: “[...] depois disso a minha mãe achou que realmente não dava mais para ficar no Rio, a gente não conhecia ninguém e não tinha ninguém, tava tudo muito disperso. [...] Então a gente volta para Porto Alegre, pelo menos tinha família próxima, e eu nunca me esqueço, a gente volta de ônibus e claro, há toda a mudança de novo, a gente tinha acabado de mudar pra lá com tudo e volta com tudo, vem um caminhão voltando. Mas a 21 gente vem de ônibus com a mãe [...] ”.

Flávia fica morando em Porto Alegre até agosto de 1964, quando ruma para o novo país. Questionada em entrevista sobre a viagem ao Uruguai ela disse: A nossa ida, ela foi cercada de cuidados também. O Ênio Silveira, editor da [editora] “Civilização Brasileira”, ele nos ajudou a sair do país. Enquanto família de um exilado havia um certo temor que pudéssemos ser parados na fronteira, não é? Então eu me lembro que a gente foi com ele até o Chuí, aí depois pegamos um trem para chegar em 22 Montevidéu” .

Flávia encontrou lá um ambiente muito diferente do vivido no Brasil: o Uruguai se apresentava até então como um lugar com forte experiência democrática, com um ensino de qualidade e gratuito, e com ideias muito conservadoras em relação aos costumes, o que ocasionou uma espécie de “choque 23 cultural”, como narra a própria Flávia Schilling . Foi nesse ambiente que completou seus estudos e ingressou na militância política. Como relata 24 seu pai, na introdução do livro “Querida Família:” , “no Instituto Alfredo Vasquez Azevedo [Flávia] 25 integrou-se à F.E.R. – Federação dos Estudantes Revolucionários, de orientação Tupamara” para em seguida, após ingressar na Faculdade de Medicina de Montevidéu – a qual abandonou-a ainda no 26 primeiro ano de graduação –, dedicar-se inteiramente ao Movimento de Libertação Nacional (MLN) . 27 Depois de aproximadamente dois anos de militância , Flávia acabou presa, em 24 de novembro de 1972, aos 18 anos de idade. No momento de sua prisão, foi ferida por um tiro, tendo a bala lhe 19 20 21 22 23

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MARQUES, 2006, p.24. FERNANDES 2009, p. 94/95. Entrevista 01. Entrevista 01. Entrevista disponível na Revista do Movimento do Ministério Público Democrático – Dialógico – ano VI, n. 28, dezembro de 2009, p. 13. Doravante “entrevista 02”. Livro de cartas escritas por Flávia Schilling durante o seu primeiro ano de prisão. SCHILLING, 1972, p.10. Conforme expõe Trindade (2009, p.14) “os Tupamaros surgiram oficialmente em 65, mas desde 62 já vinham se organizando. O gripo mesclava ideologia socialista com forte apelo aintiimperialista, e contava com apoio de grande parte da sociedade uruguaia”. Entre suas ações percebemos, como relata Padrós (2004, p.54), a “desapropriação de bancos e financeiras, sequestros 'pedagógicos' de autoridades estatais, divulgação de documentos sobre corrupção e malversão pública e fugas massivas dos penais” Como relata seu pai, a partir de abril de 1972, após o colapso de quase todas as organizações guerrilheiras e devido à forte repressão, Flávia teve que passar à clandestinidade, vivendo em condições tremendamente duras

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perfurado a laringe e a epiglote, causando séria hemorragia. Submetida a uma cirurgia no hospital militar, acabou sendo salva pela equipe médica. Conforme consta em documento oficial do governo brasileiro, antes de ser removida definitivamente para a Penitenciária Feminina de Punta Rieles, a 14 km de Montevidéu, Flávia permaneceu meses mudando constantemente de prisões: “Submetida a julgamento, foi condenada a 10 anos de prisão e mais cinco de medida de segurança, numa decisão em que a pena foi superior à pedida 28 pela promotoria (9 anos)” . Visualiza-se aqui um elemento importante da repressão política uruguaia, que tinha no encarceramento prolongado um dos seus mecanismos relevantes de repressão. Outra característica do regime repressivo uruguaio que é observado no caso de Flávia foi a política dos “reféns”, como nos expõe Mariana Joffilly: [...] ademais da estratégia de encarceramento prolongado, foi o caso dos ‘reféns’, conjunto de presos políticos que tiveram um regime de prisão extremamente duro, diferenciado dos demais, e aos quais foi comunicado que qualquer ação realizada por sua organização política redundaria em sua execução imediata. Foram nove homens e nove mulheres [sendo uma delas Flávia Schilling] considerados como principais dirigentes do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros – e isolados pouco depois 29 do golpe de Estado em 1973 .

Flávia continuou presa até abril de 1980. Entretanto, as tentativas e campanhas pela sua libertação começaram muito antes. Foram inúmeros os envolvidos nesse movimento: sua família – que acabou se mudando para a Argentina, ficando apenas a irmã Cláudia no Uruguai –, a imprensa, os 30 comitês que lutavam por liberdades políticas e até mesmo pelo governo do Brasil. Conforme argumentam Rodeghero, Dienstmann e Trindade, a libertação de Flávia aconteceu quando “o governo uruguaio, pressionado interna e externamente, promulgou lei dando liberdade e expulsando a todos os estrangeiros presos no país. Após sete anos e meio, Flávia – acompanhado de outros 36 presos 31 estrangeiros – era, finalmente, posta em liberdade” . Pretendemos na sequencia do texto dar uns passos atrás e discutir as formas como o exílio foi vivido e sentido por Flávia, dando ênfase a dois elementos: a ideia do “breve” exílio, ou seja, que ele logo se encerraria e todos voltariam ao Brasil e a questão “choque cultural”, enfatizando as possibilidades e as dificuldades de adaptação ao novo país. “O Mundo que se abria” (ou: O Uruguai como país de exílio) Chegamos ao Uruguai em agosto de 1964. Minha irmã e eu odiávamos tudo aquilo, por ter deixado os laços já formados – não os do Rio, que não lamentávamos deixar depois da experiência vivida – mas os de Porto Alegre, para onde voltamos logo após o início do exílio de meu pai. Fomos todas: minha mãe, minhas irmãs. Viajamos de trem, enquanto minha mãe e minhas irmãs foram de carro, por outro caminho, com um amigo, passando pela fronteira do Chuí. Muita expectativa e medo. Medo da polícia, de sermos barradas na fronteira. Era um rompimento, uma nova fase não desejada. Lamentávamos o que deixávamos para trás. Não que tivéssemos “raízes”: já as tínhamos, em todo caso, “aéreas”, por conta das inúmeras mudanças. As formas de viver essa experiência? Diversas: para minha mãe, uma coisa; para minhas pequenas irmãs, outra; para minha irmã mais velha, outra. Pontos de encontro, pontos de alegria e liberdade, pontos de perda e dor. Sempre muito difícil. Depois de alguns anos de fechamento, no grupo dos filhos de exilados, chegamos, de fato, ao Uruguai. Pois no começo, tudo era estranho: os costumes, as roupas, as músicas, os códigos. Tudo era diferente. Assim conhecemos, na pele, o que significa ser exilado. Exilado é aquele que não conhece os códigos, que, muitas vezes sem querer, quebra os códigos. Exige-se, assim, de todas um grande esforço de contenção, de atenção, de alerta. [...] Nunca esquecerei a sensação de “dominó” daqueles tempos; um após outro, nossos

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(SCHILLING, 1972, p. 10). Caso Flávia Schilling - Relatório. Documento disponível no Arquivo Nacional. Processo GAB nº 100.075. 02/02/1979 - 19 folhas/35 páginas. [BR.AN.RIO.TT.0.MCP.PRO.1632] p.15-16. JOFFILLY, 2010, P.122. Foram importantes as atuações, entre outros grupos, do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) e do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA). RODEGHERO, DIENSTMANN E TRINDADE, 2011, P.137.

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países viviam golpes de estado: Brasil, Bolívia, Peru, Uruguai, Argentina, Chile. Foi um tempo duro, de ser “estrangeiro” e estranho, de quebra de códigos. Não havia lugar seguro. O medo e a dor. A dificuldade de sobreviver, meu pai lutando para sustentar uma família grande. Cabe lembrar os trabalhos do meu pai na Editora Diálogo, no Semanário Marcha, cada uma de nós tentando achar um lugar possível para viver. Tempos em que a política dava as cartas, determinava cada momento de nossas vidas” 32 .

Em seu relato, Flávia apresenta algumas das inúmeras dificuldades e questões que se colocaram para aqueles que tiverem de viver a situação de exilado. Era um desafio. A viagem ao novo país, o período de adaptação, o estranhamento - momentos que ela compartilhou com inúmeros brasileiros e latino-americanos que experimentaram a mesma situação nas décadas de 60, 70 e 80. Com a sucessão de golpes civil-militares na América do Sul, sair do país se tornou algo iminente e necessário para aqueles que se opunham aos novos governos ou eram considerados inimigos dos mesmos. Nesses casos, o exílio não era um opção. Como aponta Rollemberg: Em muitos casos, a decisão de partir foi tomada diante da ameaça de prisão iminente, da clandestinidade que ia se tornando cada vez mais penosa, perigosa, em meio do cerco que se apertava, das quedas, das prisões, das notícias de barbaridades 33 cometidas nas prisões políticas. Sair, ir para o exílio era, então, escapar .

É interessante observar, entretanto, que esses pontos podem ser pensados para o caso de Paulo, que estava diretamente envolvido com grupos políticos e apresentava-se como um opositor à situação instalada pós-golpe no Brasil, mas não para sua mulher e filhas. Elas não tinham um envolvimento direto nessas questões e assim foram ao exílio acompanhar seu marido e pai. Tal situação não ocorreu apenas com a família Schilling, como aponta Marques: [...] a maioria dos brasileiros da primeira geração de exilados da ditadura militar eram pais de família, [assim] diversos são os casos de famílias inteiras exiladas. [...]. A documentação sobre mulheres e crianças exiladas no Uruguai é extremamente escassa, o que explicita mais uma característica predominante da primeira geração de exilados pelo golpe de 1964: as mulheres exiladas da primeira geração em geral não eram militantes, ou sequer mantinham algum tipo de vinculação direta com movimentos políticos. Partiram para o exílio para acompanharem o marido, diferente das exiladas da 34 geração de 1968 . 35

Percebe-se que, assim como os motivos que levaram cada pessoa ao exílio são diversos , o próprio exílio não foi algo sentido e vivido igualmente por todos os atingidos, ficando longe de ser uma experiência homogênea. Entretanto, através da analise dos depoimentos de Flávia e dos trabalhos das historiadoras Denise Rollemberg e Teresa Marques, é possível perceber alguns pontos em comum. Para tanto, analisar-se-á agora a ideia do “breve exílio” presente tanto entre o primeiro grupo de exilados como na geração de 1968. Quando Flávia foi questionada sobre como era estar exilada, disse: “Era muito difícil. Significava, de forma metafórica, nunca desfazer as malas. A expectativa era de um exílio breve, “em dois anos estaremos de volta”, e durou mais de 15 anos! Ser exilado [...] implica em uma situação de violência muito especial, a perda 36 progressiva dos laços, não voluntária, o estar rejeitado, perseguido” .

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SCHILLING, Flávia. Memorial apresentado para o Concurso de Livre-Docência na Área de Conhecimento de Sociologia da Educação, nas disciplinas EDF0113 Sociologia da Educação I, EDF0114 Sociologia da Educação II e EDF0687 Educação e Atualidade, a questão do sujeito, de acordo com o Edital FEUSP 18/2012Memorial USP. São Paulo, 2012. ROLLEMBERG, 1999, p. 61. MARQUES, 2006, p. 74. Rollemberg (1999, p.52) nos apresenta uma interessante lista das diferentes motivações de partida dos exilados: “Houve os atingidos pelo banimento; houve quem decidiu partir, às vezes até com documentação legal, por rejeitar o clima que se vivia no país; houve quem pessoalmente, não era alvo da polícia política, mas exilouse ao acompanhar o cônjuge ou os pais [como no caso de Flávia e do restante de sua família]; houve os diretamente perseguidos, envolvidos, uns mais, outros menos, no confronto com o regime militar; houve quem foi morar no exterior por outras razões que não políticas e, através do contato com exilados, integrou-se às campanhas de denúncia da ditadura e já não podiam voltar com tantas facilidades. Os casos são inúmeros”. Entrevista 02.

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Em uma leitura rápida deste trecho de uma entrevista de Flávia, uma ideia-chave nele contida pode passar despercebida, mas, ao continuar a pesquisa sobre o exílio, a frase “a expectativa era de um exílio breve, em dois anos estaremos de volta” ganha força. Marques entrevistou Cláudia, irmã de Flávia, para a sua dissertação. Ao lermos seu relato podemos constatar que esta ideia também estava presente para ela: Desde o início vivíamos uma situação de transitoriedade. Quando fomos para lá, a resposta que nos davam era: “temos de ir, mas daqui a um ano a gente volta”. Ninguém esperava que a ditadura tivesse uma tão longa duração. Mas a expectativa era essa, 37 passavam os anos, mas a gente estava “sempre voltando” [...] .

Nesse sentido, Rollemberg – ao comentar a ideia inicial de um breve retorno, que com o passar dos tempos acabou ficando claro que não aconteceria tão cedo – nos apresenta uma interpretação que ajuda a entender as memórias das irmãs Schilling. Em suas palavras: Nos dois primeiros anos de regime militar, os exilados acompanhavam com grande interesse o que se passava no país [Brasil], mantendo a expectativa quanto à possibilidade de reversão da conjuntura. Para muitos da geração de 1964, o golpe assemelhava-se a um rearranjo de elites políticas e o exílio a um breve intervalo, de onde observariam os desdobramentos do episódio. No entanto, depois de 1965, já começava a ficar claro que o rápido retorno, no quadro do restabelecimento da ordem 38 democrática, não era tão evidente .

Constata-se, assim, que tal ideia foi muito presente para aqueles que saíram do Brasil logo após o golpe civil-militar de 1964. A dificuldade de entender as proporções do que estava acontecendo e de ter paramentos para pensar a duração de tudo aquilo fez com que a noção de um breve retorno se 39 mantivesse bastante forte nos primeiros anos de exílio . Tudo isso fez parte dos primeiros anos de exílio, quando a ideia de logo voltar ao Brasil estava presente com muita intensidade. Chega um momento, entretanto, que se intui que tal retorno não 40 aconteceria tão cedo . Percebendo que ficariam ali por um bom tempo, parece ter sido necessário um processo de integração ao novo país. Era necessário vencer o “choque cultural” inicial, era preciso, como nos disse Flávia, começar a entender os códigos. Mas não foi simples passar pelo primeiro impacto. Quando questionada sobre as dificuldades de adaptação na chegada a Montevidéu, ela disse: “[...] o ‘choque cultural’ foi imenso, porque Rio de Janeiro em [1964] era Beatles, minissaia, uma certa, incrível, liberdade. Os anos sessenta, obviamente depois cortada [a liberdade], em grande parte pelo golpe. E em Montevidéu, o Uruguai, era um país completamente diferente, ainda muito conservador em relação aos costumes. Então nós causávamos escândalo por usar, inclusive, calça comprida. As mulheres não usavam calça comprida, imagina, minissaia jamais, os Beatles não tinham chegado... A nossa adolescência já estava marcada por essa tônica, então houve choques em todos os 41 sentidos. Então eu diria assim: o começo foi difícil, o começo foi difícil inclusive […]” .

É interessante observar, entretanto, que Alguns elementos parecem ter auxiliado Flávia e outros exilados a vencer tal choque inicial. Conforme nos diz Marques, para os gaúchos provavelmente foi mais 42 fácil esse processo de assimilação e adaptação. Segundo a autora, a proximidade de determinadas práticas culturais – mate ou chimarrão, o costume da carne bovina como prato principal, por exemplo – e mesmo do clima facilitaram a sua adaptação ao exílio. Paulo, em entrevista ao CooJornal, comentou um pouco sobre essa situação: Nós, os gaúchos, que nos refugiamos no Uruguai e na Argentina fomos privilegiados. As mudanças não foram demasiadas, inclusive a dieta é fundamentalmente a mesma [...]: o churrasco e o chimarrão. Estar no Uruguai ou na Argentina é estar com um pé no Brasil: 37 38 39

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MARQUES, 2006, p. 26 – entrevista Cláudia Schilling. ROLLEMBERG, 1999, p.54. Podemos assim sugerir que a escolha do Uruguai como país de exílio também estava relacionada à ideia do breve retono. Sua proximidade com o Brasil, somada à facilidade de se conseguir informações e mesmo de se deslocar de um país ao outro, podem ter sido elementos levados em consideração na escolha do país platino como “capital do exílio”. É possível apontar também como elemento que explica a noção de brevidade do exílio a espera da definição das eleições de 1966 no Brasil, após o fim do mandato oficial de Jango. Além disso, Rollemberg (1999, p. 90) aponta que é após o golpe do Chile, em setembro de 1973, que os exilados entendem que estavam diante de uma etapa duradoura de suas vidas. Entrevista 01. Sobre a noção de assimilação ver SPITZER (2001).

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às 4 da tarde chegam os diários brasileiros, se escuta a Gaúcha e a Guaíba, como se 43 fossem locais, se vê e se fala com brasileiros de “dentro” a cada dia [...] .

Essa questão pode ter “facilitado” o processo de assimilação no exílio, assim como a existência de uma “colônia de brasileiros” exilados no Uruguai. Como citado anteriormente, esse país foi o principal receptor dos exilados da primeira geração, e tal concentração parece ter sido um elemento positivo para os recém chegados. A receptividade da sociedade uruguaia era grande, entretanto, em um primeiro momento, percebe-se uma preferência dos exilados em estreitar laços com os próprios brasileiros, para então, em seguida, inserirem-se de forma mais clara na sociedade uruguaia. Cláudia Schilling, em seu relato à historiadora Teresa Marques, comentou essa situação: Quando chegamos lá, havia uma grande colônia de exilados brasileiros, cada um deles com sua respectiva família, e assim de repente fazíamos parte de um grande grupo de adolescentes, o que eu adorei, e conservo algumas dessas amizades até hoje. [...] Tirando o contato com os colegas no ginásio, naquela época não houve muito contato com a “sociedade uruguaia” como tal, porque na verdade meus amigos ficaram sendo os outros filhos de exilados, situação que perdurou pelo menos por uns dois anos, até que a grande maioria dos exilados começou a voltar para o Brasil ou foi para outros lugares. [...] Portanto, sempre havia laços, e embora com o tempo todos estivéssemos 44 perfeitamente adaptados, nunca deixamos de ser “brasileiros no Uruguai” .

Em nenhum momento queremos dizer que o exílio foi algo fácil. Pensando o mesmo como um processo de assimilação, um “processo de adaptação e ajustamento continuum” (SPITZER, 2001, p. 41) ao novo meio onde foram obrigados a se inserir, ser gaúcho e a existência da colônia de brasileiros podem ter sido meios de facilitar a integração ao novo espaço. Mas as dificuldades não foram poucas; afinal, “sendo exilado político não havia como escapar da distância do lar, da família, de amigos, enfim da terra natal” (Marques, 2006, p.68). Um exemplo desses desafios foram as dificuldades econômicas e a necessidade de se conseguir emprego e dinheiro para manter a família no exílio, como ressaltam as irmãs Schilling: A situação financeira sempre foi muito precária, porque meu pai demorou para conseguir trabalho, e tinha mulher e quatro filhas. Tínhamos um apartamento no Rio, que foi vendido, e outro em Porto Alegre, e com isso vivemos os primeiros anos. Depois meu pai começou a trabalhar colaborando com vários jornais do Uruguai e do exterior, e 45 a situação melhorou um pouco, mas nossa vida sempre foi extremamente simples .

Flávia complementa: “[...] a condição do exilado com uma família, com quatro filhos, não é? Sendo que obviamente a nossa família não é uma família de posses, a gente não tinha ingressos. [...] Então há exílios e exílios. Eu sempre comento isso. Então a gente vai, uma família de quatro pessoas mais a minha mãe. [...]. Você tem estratos sociais, não é igual a experiência do exílio para todos. Para alguns foi muito difícil, não é verdade? 46 Dependendo da posição socioeconômica dos exilados, as condições de trabalho” .

Esta situação foi contornada por Paulo através de suas atividades como jornalista. Primeiramente trabalhando no periódico “Marcha” e em seguida escrevendo também para a “Prensa Latina” - Agência de Notícias Cubana – e tirando dessas funções o sustendo da família nos primeiros momentos do exílio. Todavia, não só ruins foram as marcas deixadas pelo período. Nesse sentido, gostaríamos de ressaltar uma questão apresentada por Flávia em várias entrevistas que concedeu considerada positiva nessa fase de exílio: a possibilidade de estudar no Liceu Uruguaio. A escola pública e mista, diferente de sua realidade no Brasil, além das diversas disciplinas que não faziam parte da grade curricular brasileira, são salientadas por Flávia como uma característica marcante de sua formação. Em suas palavras: “[...] Até hoje eu agradeço, eu digo, o meu sucesso escolar, a minha cultura se deve ao ginásio... [...]. Ao liceu uruguaio, à escola pública uruguaia. Eu sempre brinco, a gente tinha literatura universal desde a... seria a segunda ou terceira série do ginásio, talvez 43

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MARQUES, 2006, p.61 - citando: PEREIRA, Tomás. “Prato feito não!” Coojornal. Porto Alegre-RS. Ano IV. nº. 38. Fevereiro de 1979. MARQUES, 2006, p.62. MARQUES, 2006, p. 69 – entrevista Cláudia Schilling. Entrevista 01.

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sexta, sétima série. E aquela coisa: a gente começava com a Ilíada, não tinha discussão. E isso me formou de uma maneira maravilhosa. Até hoje eu agradeço isso. E eu fiz literatura, a gente estudou literatura até o preparatório, que seria o colegial, então a gente tem todo um, a questão da leitura. Filosofia a gente tinha também direto desde a sétima série, filosofia mesmo. E tinha francês como língua prioritária, porque na época era isso e não o inglês. Depois tinha duas línguas, quer dizer, um nível cultural 47 fantástico. Então essa foi realmente uma experiência muito importante para mim” .

E isso não é sublinhado apenas por Flávia. Sua irmã Cláudia relata a mesma sensação em entrevista à historiadora Teresa Marques: “isto [referindo-se ao estudo no Uruguai] me deu as ferramentas para ser a tradutora-intérprete que sou até hoje. Por isso sempre repito que ‘o Uruguai me 48 deu régua e compasso’” . Pode-se atribuir, assim, ao Liceu uruguaio – público, misto e de qualidade – uma importância bastante grande na trajetória de nossa personagem. Percebido como um ambiente politizado, é possível pensar o Liceu e o ensino como um espaço de libertação, como um elemento de aproximação de Flávia com o Uruguai, que permitiu a ela “sair” do grupo de exilados e politizar-se com mais autonomia. Observações finais Diversas outras questões poderiam ser apontadas sobre o exílio ocorrido durante os regimes civil militares na América Latina. Levando em consideração o caráter individual da experiência do exílio, e aqui tomamos o caso da família Schilling e mais especificamente de Flávia como exemplo, tentamos demonstrar ao longo do texto alguns elementos do primeiro grupo de exilados que saíram do Brasil logo após o golpe de 1964. O trabalho não se encerra aqui. A pesquisa continua. Além do exílio, a militância política, a clandestinidade, a prisão e as campanhas de libertação por Flávia serão tema de análise. E o próximo passo será entender o início de sua militância, compreender o momento em que Flávia se apaixona pelo Uruguai, como nos contou em entrevista: “E em algum momento eu me apaixono pelo Uruguai. (risos) Acho que aquele desgosto é superado, e uma paixão se produz de alguma maneira. Inclusive talvez para escapar um pouco daquela situação de ‘vamos voltar já’, eu já sabia que não iríamos ‘voltar já’; e se precisa ter raízes em algum lugar, então a gente se entrega ao lugar onde se está e decide ‘não, eu gosto deste lugar’. Então eu também me apaixono por esse lugar, e eu 49 creio que me apaixono em torno de [19]68 ”.

Referências bibliográficas: FERNANDES, Ananda Simões. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre a ditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (1964-1973). Dissertação (Mestrado em História) – PósGraduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. JOFFILY, Mariana. Memória, Gênero e Repressão Política no Cone Sul (1984-1991). In: Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 111 – 135, jan. / jun. 2010. MAQUES, Teresa C. Schneider. Ditadura, exílio e oposição: Os exilados brasileiros no Uruguai (19641967). Dissertação (Mestrado em História) – Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2006. PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e segurança nacional: Uruguai (1968-1985): do Pachecato à Ditadura civil-militar. Tese (Doutorado) – Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. PORTELLI, Alessandro. História Oral e Poder. In: Mnemosine, Vol. 6, Nº 2, P. 02-13. Rio de Janeiro: 2010. RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irrestrita: história de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: Editora da Unisc, 2011. ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. SCHILLING, Flávia. Querida Família:.Porto Alegre: CooJORNAL, 1978. 47 48 49

Entrevista 01. MARQUES, 2006, p. 76 – entrevista Cláudia Schilling. Entrevista 01.

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SPITZER, Leo. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental, 1780-1945. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001. TRINDADE, Tatiana. O papel materno na resistência à ditadura: o caso das mães de Flávio Tavares, Flávio Koutzii e Flávia Schilling. Trabalho de Conclusão (Graduação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Licenciatura em História, Porto Alegre, BR-RS, 2009.

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É mais fácil comemorar tragédias do que reconhecer as barbáries da ditadura civil-militar brasileira: memórias do período no Oeste Paranaense. Marcos Adriani Ferrari de Campos

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Resumo: O presente artigo visa analisar a construção das memórias sobre a ditadura civil-militar brasileira no oeste Paranaense, a partir dos fatos ocorridos no município de Nova Aurora em 1970, onde a organização de um comando territorial da Var-Palmares formado por um pequeno número de pessoas ligadas ao grupo revolucionário desenvolviam suas atividades na região oeste do Paraná, onde realizavam um trabalho de treinamento para a guerrilha, visando o fortalecimento dos grupos de esquerda, para a luta armada contra a ditadura. Todos daquele grupo foram presos em maio de 1970, acusados de terroristas, assalto a bancos e participação em sequestros, sofrendo com as torturas. O objetivo aqui é análise dos discursos que tem se propagado na atualidade sobre o regime ditatorial brasileiro. Palavras-chave: História e memória – torturas- silêncios – esquecimentos. Abstract: This article aims to analyze the construction of memories on the civil-military dictatorship in the Western Brazilian Paranaense from the events in Nova Aurora in 1970, where the organization of a territorial command-Var Palmares formed by a small number of people linked to revolutionary group performed their activities in western Paraná, where they performed a work training for guerrillas, aiming at the strengthening of leftist groups for armed struggle against the dictatorship. All of that group was arrested in May 1970 on charges of terrorism, the banks and jump-involvement in kidnappings, suffering the tortures. The goal here is discourse analysis that has spread today on the Brazilian dictatorship. Keywords: History and Memory – torture-silences – forgetfulness.

A história da memória está ligada com a preocupação dos pesquisadores de como as sociedades recordam seus passados e já que recordam no presente, é importante estudar quais são os “modos de 2 usa-los ”. Embora não se possam mudar os fatos do passado, parece que “o seu sentido forçosamente 3 se transforma ao sabor das intenções, disputas políticas e expectativas ”, trazendo no início do século XXI, debates sobre o que lembrar, o que esquecer, ou silenciar, às vezes de maneira voltada para a construção de memórias, que tentam harmonizar os fatos através da “reconciliação como objetivo; 4 consenso como programa e esquecimento como instrumento ”, como se isso fosse possível sem passar 5 pela crítica historiográfica. No Brasil, a instauração da “comissão da verdade ” em 2012, sem caráter judicial, visa esclarecimentos principalmente sobre o período ditatorial, sobre um passado que insiste em 6 não querer passar. De fato, as lacunas continuam e, mesmo quase 28 anos após seu “fim” oficialmente declarado, a ditadura causa indagações e discursos nostálgicos da parte de alguns, que acabam negando que ela se 7 caracterizou como uma ditadura de classe . Às vezes somos muito tentados a observar os movimentos de certos personagens e seus movimentos, mas não se deve esquecer do processo histórico pelo qual fluem as lutas de classes, sendo que este processo, ao longo do século XX, foi marcado pela massificação da classe trabalhadora, sendo destinada a esta, à exploração capitalista e sua exclusão das principais cenas políticas e econômicas, com plenos ideais do liberalismo econômico, fazendo este parecer o “caminho certo” a seguir, mesmo que para isso, fosse preciso lançar a mão de violência 1 2 3

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Mestrando – Formado em história, Unioeste, Marechal Cândido Rondon, no ano de 2006. marcosferrari66@hotmail.com 0xx4599930511. Linha de pesquisa: Estado e Poder. TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa Unipop, 2012. TELES, Janaina de Almeida. As constituições das memórias sobre a repressão da ditadura: o projeto Brasil: Nunca mais e a abertura da Vala de Perus. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 257-292, jul. 2012. p. 258. VINYES, Ricard (ed.) El Estado y La memoria: gobiernos y ciudadanos frente a lós traumas de La historia. Barcelona, RBA, 2009. p.23. PROJETO DE LEI 7376, Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOSHUMANOS/148111-PROJETO-CRIA – Acessado em 31/01/2013. TRAVERSO, Op. Cit. FERNANDEZ, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T.A. Queiroz, 1982.

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institucionalizada e o desenvolvimento do consenso, que resultariam na instauração de ditaduras civil militares em vários países da América Latina. Na sociedade brasileira, a burguesia se esforçou de todas as formas para manter seu domínio, sendo que para tal, organizou-se e, aumentou (ou decuplicou suas forças sociais, graças a uma bem trabalhada “psicose de guerra civil”, a um esforço de propaganda contínuo e maciço, do qual participaram todos os órgãos da grande imprensa, todas as grandes revistas, todos os canais de televisão, todas as estações de rádio, com desdobramentos na esfera da educação política e da pregação anticomunista, levadas a efeito pelas lojas maçônicas e por todas as convicções religiosas – embora com forte saliência católica – a uma manipulação eficiente do “pânico burguês” diante da pretensa república sindicalista) e as classes burguesas unificaram seu potencial de luta de classes como se tivessem completado o 8 circuito de sua maturação histórica .

O trecho do professor Florestan Fernandez, descreve o contexto o qual se encontrava o Brasil um pouco antes do golpe e durante o regime ditatorial sendo que, irônica e paradoxalmente, vai ao encontro do discurso atual de um deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro, feito no parlamento e transmitido pela TV câmara, no dia 09 de julho de 2009 dizendo que, “os militares em 1964, não assumiram o governo porque quiseram, havia uma pressão de toda a mídia, quem tem dúvida é só ir na biblioteca, toda a imprensa, pedindo que os militares assumissem[...]Havia pressão da igreja 9 católica[...] ”. Ele só esqueceu de dizer que era uma pressão articulada pela burguesia que, devido ao medo de uma possível participação popular significativa, nas esferas políticas e econômicas, instala uma 10 “contrarrevolução preventiva “. É impressionante pensar que houve toda uma organização civil-militar, que beira a uma conspiração cinematográfica, onde todos os setores destinados ao lazer, à cultura, à informação e à educação formal e informal, bem como a violência estatal, estavam a serviço de uma dominação de classe, que veio desembocar no golpe de 1964 e “desatou a contrarrevolução como processo 11 12 prolongado ”. Para exemplificar, vejamos o envolvimento de grandes “times de futebol” , no movimento conspirativo do golpe e até mesmo sua manutenção, onde necessariamente a produção de consenso acrescida da violência, manteve a dominação da classe burguesa. Conseguiram parar a história por 13 algum tempo, ou seja, “a ditadura foi criada para resolver a crise do poder burguês ” e, por um pouco de tempo a burguesia viveu um sonho de dominação perfeita, no entanto, aquilo que era temido num passado recente, voltava a assombrar, pois a classe trabalhadora se reorganizara e os problemas no campo continuavam, levando os camponeses à reconstrução de movimentos organizados de luta e protesto. Diante disso, a burguesia se perguntava então; o que fazer com todo o poder burocrático ditatorial militar ultrapassado e todos os seus riscos? De acordo com Renato Lemos, o golpe representou a “implantação de um novo regime político e um formato de Estado ainda inédito na América Latina: uma ditadura burguesa capitaneada pelas forças 14 armadas ”. Pois bem, o golpe e a violência serviram para a dominação de classe por algum tempo, esboçando até ares de desenvolvimento com o “milagre econômico”, no entanto, este se desmanchava assim como o sonho burguês, que era a ilusão de se obter quase uma “escravidão civilizada e oficial,” sobre a classe trabalhadora. Cronicamente falando, sem liberdade de expressão, sem liberdade de escolher os dirigentes, sem poder de pensamento político, o povo brasileiro foi mergulhado numa ditadura sanguinária e qualquer contestação era exposta ao “chicote institucional”, o qual levava à prisão, às torturas, ao exílio e até mesmo à morte, Mesmo com a existência dos poderes legislativo e judiciário, estes não atuavam plenamente diante da tirania do executivo, estabelecendo-se a exclusão de forças políticas contrárias, bem como o uso da violência estatal para a contenção de qualquer forma de manifestação, protestos ou organizações, fossem elas de trabalhadores, estudantes ou revolucionários. Sobre pretexto da guerra civil, da ameaça comunista e terrorismo, é que a classe burguesa organiza o golpe com os militares e assim mantém seu domínio de classe. 8 9 10

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Fernandez, Op. Cit. p. 96. Jair Bolsonaro. Discurso parlamentar, 09 de julho de 2009, transmitido pela TV câmara, disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=G1zOLnTwCgI. Acessado em 21/01/2013. LEMOS, Renato. Ditadura militar, violência política e anistia. Texto disponível no site: http://ufrj.academia.edu/RenatoLemos. Acessado em 20/12/2012. Fernandez, idem p. 96 DREYFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e o golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. ( Capítulo VIII: A ação de classe da elite orgânica: o complexo IPES/IBAD e os militares) p. 361415. p. 385, 386. FERNANDEZ, Op. Cit. p. 97. LEMOS, Renato. Ditadura militar, violência e anistia. Texto disponível em: http://ufrj.academia.edu/RenatoLemos Acessado em 31/01/2013.

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A ditadura civil-militar no Brasil permanece na atualidade levantando aspectos problemáticos em relação às visões interpretativas sobre suas reais consequências para a sociedade, sendo que suas memórias, ou seja, as recordações, os silêncios e os esquecimentos, têm provocado neste início de milênio uma “reviravolta” na história da memória brasileira sobre o regime ditatorial. No ano de 2012, mais especificamente no dia 29 de março, alguns militares se encontraram no clube militar da cidade do Rio de Janeiro, para comemorarem a data do golpe de 1964, como se aquilo fosse um grande feito para 15 a nação brasileira . Silvio Tendler, cineasta e documentarista brasileiro, um pouco antes da data mencionada acima, fez uma convocação através de um vídeo na internet para se reunirem na data e local acima mencionada para protestarem contra o que ele chamou de “festim diabólico,” segundo as suas palavras, “é inadmissível que exista gente que ainda hoje pretenda comemorar o golpe de 1964. É inadmissível que se use espaços públicos pra comemorar a implantação de uma ditadura que destruiu uma geração 16 inteira. ” Mas quais os problemas para escrever história, diante de uma disputa de memórias que envolvem torturas, assassinatos, ocultação de cadáveres e o uso abusivo da mídia em geral como meio de propagação de aspectos positivos de um regime ditatorial que torturou, matou e fez do povo massas de manobras, com objetivos de dominação de classe? As maneiras de utilizar o passado levam consigo, às vezes, a imposição de determinadas visões, nem sempre condizente com a “realidade”, sendo que “os atores sociais diversos lutam para afirmar a legitimidade de sua posição, em face de seus vínculos com o passado, estabelecendo 17 continuidades ou rupturas com o mesmo ”, construindo interpretações que podem manipular, rotular e inculcar determinadas visões inaceitáveis sobre os fatos. No que diz respeito à discussão atual sobre história e memória é possível ver claramente uma aproximação entre as duas, certa complementaridade e seria um erro separá-las por completo, já que ambas tem o mesmo propósito, a reconstrução do passado, embora a memória seja extremamente subjetiva e não muito preocupada com as provas. A história além de ser objetiva, carrega consigo toda uma metodologia e certa “oficialidade” tanto em suas funções didáticas, quanto sociais, podendo assim também se tornar um problema, ou seja, ser oficial e não crítica. A representação do passado começa com a memória, cabendo à história a capacidade de “ampliar en el tiempo la fuerza de la crítica, en el orden del testimonio, de la explicación y de La 18 comprension. ” Em 2009 circulava no congresso nacional um projeto de lei que viria a se concretizar conforme já visto acima, em uma comissão da verdade, que visa esclarecimentos para a sociedade brasileira, de fatos obscuros ocorridos principalmente durante a ditadura civil-militar brasileira. Convém ressaltar que a comissão não terá um apelo judicial, por causa de “negociações” com os militares e setores de direita extremada que, “saracotearam” de todas as maneiras com discursos estereotipados, com medo de revelações das atrocidades cometidas no período turvo da ditadura. Assim pessoas ou grupos privilegiados incentivam a construção memorial de acordo com suas ligações com o passado, fazendo com que a memória trabalhe a favor de determinados grupos. Vejamos o exemplo do deputado federal Jair Bolsonaro, já citado aqui, sobre a guerrilha do Araguaia, em que traduz a busca de corpos em uma piada cretina, num cartaz enorme pendurado no seu gabinete diz: “desaparecidos do Araguaia, quem 19 procura osso é cachorro ”. É importante para os militares e a elite, negar o termo ditadura, bem como a negação da institucionalização da violência, do terrorismo de Estado com as formas mais cruéis de torturas. Cresce a veiculação de notas em jornais fazendo apologia à ditadura, onde podemos encontrar questionamentos sobre a violência daqueles tempos, vejamos: “que tortura é essa da qual tanto reclamam? Aquela que se caracterizava numa bolachada ao lado do ouvido para que o elemento pernicioso que fora preso 20 denunciasse em qual local seria explodida outra bomba que iria matar mais inocentes? ” Dizer que não houve torturas, me parece ingenuidade ou hipocrisia, porque ainda nos anos 15

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No dia 29 de março de 2012, manifestantes protestaram do lado de fora do Clube Militar, no centro do Rio, onde acontecia uma comemoração pelo aniversário do golpe de 1964. A polícia militar, como de costume, fez farta distribuição de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e muita truculência. Ex-militares como o tenente-coronel Lício Maciel, que participou de operações no Araguaia, e o general Nilton Cerqueira, responsável pela execução de Carlos Lamarca, foram escorraçados pelos manifestantes. Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=pU08Qu2BjTY. Acessado em 13/01/2013. Ato contra a comemoração do golpe de 64. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=1_Io 8tz9WLM. Acessado em 13/01/2013. TELES, op. cit., p. 258. RICOUER, P. La memoire, l’ histoire, l’ oubli, p. 153 capud, CUESTA, Josefina. La odisea de la memoria, historia de La memoria em España siglo XX. Alianza Editorial, S.A., Madrid, 2008, p. 32. Gabinete do deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ), 27/05/2009). Foto: Rogério Tomaz Jr. Disponível em: http://brasiliamaranhao.wordpress.com/2009/05/27/jair-bolsonaro-sobre-os-mortos-do-araguaia-quem-procuraosso-e-cachorro/. Extraído em 20/01/2013. Jornal Gazeta do Paraná. Tortura ou melancia no pescoço. Paulo Martins. Sábado 21/03/2009.

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1990, é possível encontrar relatos como o de Marcelo Paixão de Araújo que servia como tenente no 12º Regimento de Infantaria do Exército em Belo Horizonte, dizendo em entrevista que, fiz (as torturas) porque achava que era necessário. É evidente que eu cumpria ordens. Mas aceitei as ordens. Não quero passar a ideia de que era um bitolado. Recebi ordens, diretrizes, mas eu estava pronto para aceitá-las e cumpri-las. Não pense que eu fui forçado ou envolvido. Nada disso [...] Nessa época, eu tinha 21 anos, mas não era nenhum menino ingênuo (risos). O pau comia mesmo. Quem falar que não havia tortura 21 é um idiota .

No Oeste paranaense houve intensa repressão aos movimentos de esquerda, onde várias pessoas foram presas e torturadas. No município de Nova Aurora, por exemplo, ocorreram prisões de várias pessoas no ano de 1970, que ainda hoje causam polêmicas. Trata-se da prisão de pessoas que faziam parte de um comando territorial da Var-Palmares, entre eles se encontravam Izabel Fávero, Luiz Andréa Fávero, Alberto João Fávero, Gilberto Hélio da Silveira, José Deodato Motta, Adão Pereira Rosa 22 e Benedito Osório Bueno . Enfatizaremos por enquanto aqui dois pontos importantes para um debate inicial sobre memórias da ditadura militar no Oeste Paranaense. Primeiro, Izabel Fávero se encontrava grávida no momento da prisão e abortou devido ás torturas conforme relato onde conta que, eram mais ou menos 2 horas da manhã quando chegaram à fazenda dos meus sogros em Nova Aurora. A cidade era pequena e foi tomada pelo Exército. Mobilizaram cerca de setecentos homens para a operação. Eu, meu companheiro e os pais dele fomos torturados a noite toda ali, um na frente do outro. Era muito choque elétrico. Fomos literalmente saqueados. Levaram tudo o que tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu enxoval. No dia seguinte, fomos transferidos para o Batalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu, onde eu e meu companheiro fomos torturados pelo capitão Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski. Foi pau-dearara, choques elétricos, jogo de empurrar e, no meu caso, ameaças de estupro. Dias depois, chegaram dois caras do Dops do Rio, que exibiam um emblema do Esquadrão da Morte na roupa, para ‘ajudar’ no interrogatório. Eu ficava horas numa sala, entre perguntas e tortura física. Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau-de-arara, ameaça de estupro e 23 insultos, eu abortei .

A pessoa que “comandou” a prisão e as torturas, Mário Expedito Ostrovski é advogado na atualidade e mora em Foz do Iguaçu. Tais fatos da época foram confirmados por um soldado que participou daquela operação em uma carta anônima enviada ao jornal folha de Londrina em agosto de 24 2001 . O fato de ser uma denúncia sem nome, parece demonstrar aspectos cruéis em relação ao acontecido e provavelmente temendo pela crueldade que poderia acontecer a si próprio, caso viesse a se identificar. Embora o mesmo tenha uma ligação com este passado, ao lado dos torturadores, presenciou os males das torturas e reconhece no presente as injustiças cometidas pelo regime ditatorial. Assim como o relato de Marcelo Paixão de Araújo, as torturas foram ações bizarras durante a ditadura e é estarrecedor que alguns afirmem que não ocorreram tais procedimentos no Brasil apesar de todas as provas. O segundo caso é de Maria Lucia dos Santos Brandão, filha de Benedito Ozório Bueno, que também fazia parte do grupo em questão e que, segundo a comissão especial de indenização aos presos políticos do Estado do Paraná, além das torturas físicas que recebeu sua família também foi ameaçada, caso fizesse parte do ocorrido. Com sua prisão a produção agrícola da qual dependiam foi afetada, “depois de recuperar a liberdade, Benedito teve que recorrer à ajuda de amigos para sobreviver 25 até quando veio a falecer. Ainda hoje suas filhas sofrem necessidades com o ocorrido ”. A filha de Benedito Osório Bueno ainda luta para conseguir uma indenização, mas seu pedido foi 26 indeferido . O grande problema da reparação econômica é o processo de transformação dessas pessoas em vítimas, invisibilizando a luta pela democracia e todos os seus custos. Ora a dor e a humilhação das torturas permanecerão, sendo que os resquícios e continuações da ditadura também 21 22

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Entrevista de Marcelo Paixão de Araújo à revista veja de 09/08/1998. Disponível em: http://veja.abril.com.br/091298/p_044.html. Acessado em 22/01/2013. PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2006, p. 107. Relato de Clari Izabel Fávero, Disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br /repressao/forcasarmadas/professora-torturada-na-ditadura-acusa-advogado-de-foz-do-iguacu-de-ser-o-responsavel-pelassevicias-e-aborto/. Acessado em 15/01/2012. PALMAR, Op. Cit. p. 109. Processo de indenização aos presos políticos do Estado do Paraná, 25 de outubro de 2004. Jornal Gazeta do povo de 06 de março de 2005.

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continuam e nos fazem refletir sobre porque, por exemplo, os nomes de ruas de presidentes ditadores ainda continuam escancaradamente pelas cidades brasileiras. Em Nova aurora, por exemplo, temos a rua presidente Médici, que “governou” o período mais repressivo do regime e também a rua Castelo Branco, primeiro presidente após o golpe. As pessoas que se mostraram contrárias ao regime, pagaram um preço altíssimo como a prisão, torturas e exílio, sendo que no município em questão, não há menção a eles em lugar algum, nem na prefeitura, biblioteca municipal, jornais ou rádios. A escola Estadual Jorge Nacli, onde a professora Izabel Fávero lecionou ainda existe, mas o esquecimento institucional se estabeleceu. Pessoas que presenciaram toda a mega operação de aproximadamente 700 homens do exército, polícia militar e DOPS em 1970 para prender nove pessoas, falam com timidez sobre o assunto, como é o caso do senhor Raul Pezenti morador da cidade desde 1954 diz que: estava trabalhando na máquina quando vi os soldados [...] Ninguém falava sobre o comunismo. Era algo que estava escondido de nós, ninguém sabia sobre isto. Mas pouco se falava sobre política, tanto que quando chegaram [os soldados], foi pouca a repercussão sobre o Liberato, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo e qual 27 era a realidade [...] As coisas estavam por baixo de um pano .

Luiz Andréa Fávero, Izabel Fávero, Alberto Fávero e Gilberto Hélio da Silveira estavam 28 estruturando um comando territorial da Var-Palmares, uma “área tática de apoio” pertencendo realmente à organização referida. O restante do “grupo” estava apenas tomando conhecimento e haviam participado de algumas reuniões, talvez treinamentos de tiros, mas mesmo assim foram submetidos à prisão e às torturas, resultando em alguns casos, consequências drásticas já relatadas aqui. Essas pessoas eram camponeses descontentes e desejavam mudanças sendo que a falta de justiça em relação aos casos de torturas e outras ignomínias do regime ditatorial podem provocar discursos nostálgicos e inclusive com caráter de “oficialidade”, nos meios de comunicação, que com certeza mistificaram e ainda continuam mascarando as os fatos sobre a ditadura, ou ainda transformá-los em apenas vítimas, ignorando seus valores e sua luta. As lembranças das torturas fazem parte da formação do processo histórico até podendo fazer parte dos custos da democracia, o que se constitui um absurdo, pois se trata de uma violação dos direitos humanos. No entanto é preciso ter cuidado para não transformar as pessoas em vítimas, seja com indenizações financeiras ou não, pois assim, coloca-se um ponto final, apagando-se todos os custos da democracia, bem como promovendo a falta de justiça, a “ponto falar muito das “vítimas” e esquecer29 se dos ditadores ”. Segundo o jornalista de Foz do Iguaçu Aluizio Palmar, “não existe ódio em relação 30 aos torturadores, mas sim sequelas ”,sendo necessário que se faça justiça. A promoção de “vítimas” propicia ao Estado ausentar-se de todas as responsabilidades, gerando um clima de perdão e reparação econômica, apagando assim todos os valores políticos das pessoas que lutaram pela democracia, provocando o esquecimento consciente das causas em que essas pessoas se tornaram “vítimas” e o porquê decidiram lutar. Parece uma coisa ao acaso, mas não é, pois se trata de lembrar-se das “vítimas” e esquecer aqueles que provocaram a ausência da liberdade, o terrorismo de Estado, sob a lei de segurança nacional, mergulhando o país em anos ditatoriais. Estes estão soltos por aí como Mário Expedito Ostrovski e Marcelo Paixão de Araújo discursando a “vitória” e propagando agradecimentos aos militares que impediram uma “ditadura do proletariado” e a instauração do comunismo aqui no Brasil, repetindo sempre o mesmo discurso. Este me parece um ponto importante para a discussão, pois “a própria ideia de Revolução é criminalizada, automaticamente remetida para a categoria do comunismo e assim arquivada no capítulo 31 ‘totalitarismo’ da história do século XX ”. Tornou-se muito comum a associação direta entre comunismo e Stalinismo, reduzindo toda uma ideia de sociedade igualitária e mais justa ao terrorismo de Estado. Dessa maneira, o capitalismo vai sendo imposto como a forma “ideal” de se viver em sociedade e o liberalismo econômico constitui suas principais regras. Apresentam-se como a solução de todos os problemas da sociedade e identificado como o sistema social e político “mais democrático” (é claro que isso impostamente) até então na história da humanidade, mas quando a balança da luta de classes pareceu pender para o lado da classe trabalhadora, foram necessárias doses gigantescas de violência, 27 28

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Entrevista concedida em Dezembro de 2012 a Marcos Adriani Ferrari de Campos. Documento da secretaria de Estado de segurança pública, intitulado V.A.R. Palmares, in: Arquivo público do Paraná. VINYES, op. cit, p.56. Aluizio Palmar em entrevista: “É preciso que a Comissão da Verdade faça justiça” – Entrevista especial para o QTMD? (Quem tem medo da democracia?). Disponível em: http://quemtemmedodademocracia.com /2011/10/05/aluizio-palmar-e-preciso-que-a-comissao-da-verdade-faca-justica-especial-para-o-qtmd/. Acessado em 20/01/2013. TRAVERSO, op. Cit. p. 120.

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para manter a ordem burguesa. Nos períodos mais obscuros do século XX, quando a opressão, as desigualdades e a violência tenham talvez alcançado seu ponto mais descarado, ou seja, a exploração passa a ter um aspecto “oficial”, o comunismo aparecia como o sonho de milhões de pessoas, sendo ideias pelas quais fazia sentido lutar. Essas ideias de igualdade e sociedades justas assustam muito as elites, pois se servem da classe trabalhadora como fonte de exploração e suprimento de suas luxúrias. Deste modo, o comunismo passa a ser expurgado, reprimido e também pregado religiosamente como fonte do mal. No Brasil, durante a ditadura, muitos jovens foram embalados pelos ideais comunistas, mas havia de certa maneira, um exagero de utopia em relação aos ideais comunistas que eram os sonhos de milhões de pessoas, pois quando comparado às ignomínias provocadas pelo capitalismo e o liberalismo ocidental, a emancipação dos povos era a esperança de um mundo melhor. Chegado o século XXI, o comunismo não é mais evocado por aqueles que um dia acreditaram que se poderia construir um mundo melhor. Vejamos o exemplo da atual presidente da república brasileira, Dilma Rousseff, em 2009, quando ainda não ocupava tal cargo, dizendo que: “a gente acreditava sinceramente que iríamos mudar o mundo, que haveria um mundo mais igual, que o Brasil ia ser um país diferente, [...] éramos uma 32 geração que discutiu muito, [...] mas sobretudo, queríamos igualdade social ”. Assim parece não ousarse mais, evocar um sistema alternativo de sociedade. Não que seja o “fim da História”, mas criou-se uma forma de consenso tão complexa que às vezes parece até irrefutável, no entanto se analisada de forma coerente suas contradições saltam aos olhos. Um dos conceitos propagados pelos militares em relação à comissão da verdade é o do revanchismo, já que a lei de 1979 anistiou (apagou) e “pôs um ponto final na história”, mas o fato é que os presos políticos foram condenados, torturados, exilados e em alguns casos mortos e os torturadores não foram julgados. A distensão “lenta, segura e gradual”, proposta em 1974 para uma abertura tranquila, tinha em seus custos a garantia de continuações do regime na sociedade, sendo que uma ruptura poderia ser prejudicial aos planos da burguesia. A lei da anistia, que em meio a toda a sua ambiguidade, excluía a responsabilidade do regime por todas as consequências, inclusive das torturas e mortes, sendo assim, perdão a revolucionários e torturadores, igualando as causas de ambos. Segundo a cartilha da comissão da verdade no Brasil. Um dos objetivos que têm causado muita discussão é justamente o da reconciliação e do estabelecimento da paz. Embora seja um objetivo louvável e um corolário dos que promovem os Direitos Humanos como valor intrínseco à Democracia, deve-se reconhecer que, para as vítimas, promover a reconciliação e a paz só pode ser possível com a Justiça e com o reconhecimento oficial das responsabilidades de indivíduos que, a mando do Estado, violaram os direitos mais elementares, prendendo arbitrariamente, 33 torturando e assassinando opositores do regime, muitos deles até hoje desaparecidos .

No entanto se pode perceber que esses indivíduos torturadores a serviço do Estado andam por aí impunes e a palavra reconciliação pode muito bem significar esquecimento, já que os mais diversos atores envolvidos nessas tramas de recordações, silêncios e esquecimentos de determinados aspectos do passado, incorporam a este, os sentidos que melhor se adequarem à ligação que os mesmos têm com esse passado. É claro que as pessoas que foram torturadas, sentem a necessidade de justiça, pois carregam em suas mentes lembranças e traumas que guardarão para o resto de suas vidas, pois é quase impossível se esquecer de tais experiências. Por outro lado temos as pessoas que sob ordens superiores, realizaram coisas bizarras entre as quais podemos citar, “choques nos testículos, pênis, orelha, língua, tudo isso amarrado no pau de 34 arara ”, além das pressões psicológicas às quais incluíam ameaças veladas de mortes, como no caso da prisão do grupo de Nova Aurora que incluíam voos da morte com helicópteros sobre as cataratas do Iguaçu. Apesar de todas as provas, a tortura continua sendo negada, caracterizando assim a impunidade daqueles que a utilizaram. O caráter não punitivo da comissão da verdade no Brasil salienta algumas reflexões. Em primeiro lugar se manterá intacta a lei de anistia de 1979, com o perdão irrestrito a torturadores e revolucionários, substituindo toda a luta pela democracia e tornando um “benefício” do regime ditatorial ao povo. 32

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Dilma Rousseff, in: Documentário; Utopia e barbárie. Direção: Silvio Tendler, 2009 Brasil; Idioma do Áudio: Português, Inglês, Espanhol, Francês, Italiano."Utopia e Barbárie" é um road movie histórico que percorreu ao todo 15 países: França, Itália, Espanha, Canadá, EUA, Cuba, Vietnã, Israel, Palestina, Argentina, Chile, México, Uruguai, Venezuela e Brasil. Em cada um desses lugares, Tendler documentou os protagonistas e testemunhas da história do século XX. A Comissão da Verdade no Brasil. Disponível em: http://www.portalmemoriasreveladas.arquivo nacional.gov.br/media/Cartilha%20Comiss%C3%A3o%20da%20Verdade%20%20N%C3%BAcleo%20Mem%C3%B3ria.pdf. Acessada em 20/01/2013. Entrevista à Alberto Fávero cedida à Marcos Adriani Ferrari de Campos em janeiro de 2010.

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Em segundo lugar, pode-se criar um aspecto de oficialidade, ou seja, “proclamar la memória 35 como um deber ” produzindo uma visão parcial, permitindo a isenção de responsabilidades do Estado, 36 impondo assim interpretações sobre o passado de maneira que haja “reconciliación y consenso ”, com intenção de produzir uma “harmonização histórica”, impedindo as resignificações e fazendo desaparecer, como se tem insistentemente reclamado aqui, a luta pela democracia, perpetrando assim o processo de vitimização, renunciando “a explicar la democracia como um bien conquistado com esfuerzo coral y desde la calle. [...] la que hace que el passado no acabe de trancurrir, no acabe de pasar y se instaure 37 um vacio ético, generando reclamos y creando conflitos .” A reconciliação pode significar também, certas continuidades ditatoriais na sociedade, apenas deixando o tempo passar, como se fosse trazer a paz, talvez para os torturadores da comemoração no clube militar, que hoje são senhores aposentados, melhor dizendo, torturadores aposentados, ou pelo menos coniventes com a violência da ditadura. De qualquer maneira, espera-se que pelo menos a comissão da verdade, mesmo sem caráter punitivo possa esclarecer e “quebrar” as visões, como aquela do jornal Folha de São Paulo, de que a ditadura não teria sido tão violenta, fazendo com que o termo 38 “Ditabranda ”, não possa circular na mídia de maneira geral, sem escapar da crítica e do reconhecimento de um passado onde as ações ditatoriais foram irreparáveis e “ante ló irreparable, el 39 perdón no tiene sentido.” Seria simples dizer que a escrita da história começa pela organização das memórias, e que até mesmo a própria história começa com as memórias, no entanto, o estudo sobre a produção memorialística da ditadura civil militar, por exemplo, consiste na análise de recordações, silêncios e esquecimentos, que fazem parte da memória e, portanto da história. As recordações são provocadas por alguma notícia, fotos, pesquisas e podem trazer a tona lembranças de um passado não muito distante, mas o bastante para provocar às vezes sentimentos nostálgicos e às vezes juízo de valor, principalmente sobre a violação dos direitos humanos, tanto a si próprio, quanto de pessoas conhecidas. As recordações podem gerar lágrimas ou risos, mas de acordo com as influências ou relações do passado com o presente de quem lembra, sendo que constantemente pode produzir também o silêncio e o esquecimento. Assim, como já citado aqui, a negação da tortura, constitui-se numa construção, pois, “o 40 presente está impregnado pelo passado ”, sendo que nos anos 90, falar em torturas a presos políticos podia ainda significar comicamente a “vitória, uma conquista para a nação” e a transição sem rupturas, propiciou o desenvolvimento de certas continuidades como nomes de ruas, monumentos e discursos apologéticos sobre o milagre econômico, a segurança, entre outros aspectos, defendidos até hoje pela burguesia, militares e doutrinados, pois é mais fácil reconstruir o significado do passado, do que assumir as barbáries, frutos do interesse de dominação, baseados numa lei de segurança nacional, que acabou por distribuir a violência gratuita e a obediência obrigatória.

Referências Bibliográficas PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?Curitiba: Travessa dos Editores, 2006. RICOUER, P. La memoire, l’ histoire, l’ oubli, p. 153, capud, CUESTA, Josefina. La odisea de La memoria, historia de La memoria em España siglo XX. Alianza Editorial, S.A., Madrid, 2008. TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. Lisboa Unipop, 2012. TELES, Janaina de Almeida. As constituições das memórias sobre a repressão da ditadura: o projeto Brasil: Nunca mais e a abertura da Vala de Perus. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 257-292, jul. 2012. VINYES, Ricard (ed.) El Estado y La memoria: gobiernos y ciudadanos frente a lós traumas de La historia. Barcelona, RBA, 2009. p.23. 35 36 37 38 39 40

VINYES, op. cit. p. 57. Idem, p. 57. Idem, p. 57. Jornal Folha de São Paulo, 17 de fevereiro de 2009. LEVI, Primo. Capud, VINYES, op. cit. p. 59. CUESTA, op. Cit, p. 61.

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FERNANDEZ, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T.A. Queiroz, 1982. DREYFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e o golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. ( Capítulo VIII: A ação de classe da elite orgânica: o complexo IPES/IBAD e os militares) p. 361-415. Sites http://www.youtube.com/watch?v=G1zOLnTwCgI http://ufrj.academia.edu/RenatoLemos http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/Cartilha%20Comiss%C3%A3o%20da %20Verdade%20%20N%C3%BAcleo%20Mem%C3%B3ria.pdfhttp://quemtemmedodademocracia.com/2011/10/05/aluiziopalmar-e-preciso-que-a-comissao-da-verdade-faca-justica-especial-para-o-qtmd/ http://brasiliamaranhao.wordpress.com/2009/05/27/jair-bolsonaro-sobre-os-mortos-do-araguaia-quemprocura-osso-e-cachorro/ http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/forcas-armadas/professora-torturada-na-ditaduraacusa-advogado-de-foz-do-iguacu-de-ser-o-responsavel-pelas-sevicias-e-aborto/ http://www.youtube.com/watch?v=pU08Qu2BjTY http://www.youtube.com/watch?v=1_Io8tz9WLM http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOSHUMANOS/148111-PROJETO-CRIA http://veja.abril.com.br/091298/p_044.html Fontes Entrevista a Alberto Fávero cedida a Marcos Adriani Ferrari de Campos em janeiro de 2010. Dilma Rousseff. In: Documentário Utopia e barbárie. Direção: Silvio Tendler, 2009, Brasil. Idioma do Áudio: Português, Inglês, Espanhol, Francês, Italiano. "Utopia e Barbárie" é um “road movie” histórico que percorreu ao todo 15 países: França, Itália, Espanha, Canadá, EUA, Cuba, Vietnã, Israel, Palestina, Argentina, Chile, México, Uruguai, Venezuela e Brasil. Em cada um desses lugares, Tendler documentou os protagonistas e testemunhas da história do século XX. Entrevista concedida em Dezembro de 2012 a Marcos Adriani Ferrari de Campos. Documento da secretaria de Estado de segurança pública, intitulado V.A.R. Palmares, in: Arquivo público do Paraná. Processo de indenização aos presos políticos do Estado do Paraná, 25 de outubro de 2004. Entrevista de Marcelo Paixão de Araújo à revista veja de 09/08/1998. Jornal Folha de São Paulo, 17 de fevereiro de 2009. Jornal Gazeta do Paraná. 21 de março de 2009. Jornal Gazeta do povo de 06 de março de 2005.

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Índio Vargas e Jorge Fisher Nunes: os referenciais da resistência armada, durante o período da Ditadura Militar, vistas a partir das memórias de dois militantes de esquerda que atuaram no Rio Grande do Sul. Nôva Brando

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Resumo: As memórias de Índio Vargas, em Guerra é guerra, dizia o torturador, e de Jorge Fischer Nunes, em O Riso dos Torturados, estão inseridas dentro do contexto no qual ocorreu a primeira onda de publicações de memórias sobre a Ditadura Militar no Brasil. Nesse período, as lutas pela democratização do país foram protagonizadas de diferentes formas, dentre as quais a edição de memórias que tornava público a repressão e a violência do Estado dirigidas àqueles que resistiam ao regime. Além das denúncias, há uma característica permanentemente presente nessas obras, a reivindicação de referenciais de luta, desde o local ao geral, que permeavam todo um período de resistência. As referências presentes nas memórias de Fischer e de Vargas, neste trabalho, são identificadas e compreendidas enquanto parte de um referencial pertencente a uma memória coletiva e uma memória política construídas em meio à resistência armada e construtoras de uma resistência memorialística ao Regime Militar. Palavras-chave: Ditadura Militar – Memórias da Ditadura – Luta Armada Abstract: Índio Vargas’ memories in Guera é guerra, dizia o torurador, and Jorge Fischer’s memories in O Riso dos Torturados are inset in the first wave of memories publications about Military Dictatorship in Brazil. In this moment, the democratization’s figth was staring by differents forms and the editions of memories was one that publicize the state’s repression and violence against the people that made opposition by the regime. Besides this denounces, there is a permanently characteristic in this titles: the claim of referential’s fight, both local and general, that permeated a whole period of resistance. The references presents in Fischer’s and Vargas’ memories, in this work, are identified and understood as a part of a referential that belongs a colective memory and political memory constructed midstream armed resistance and them constructed a memory resistance face to Military Dictatorship. Key-words: Military Dictatorship – Dictatorship’s memories – Armed Struggle

Introdução As obras de Índio Vargas, Guerra é guerra, dizia o torturador, e de Jorge Fischer Nunes, O Riso dos Torturados, estariam situadas dentro da primeira onda de memórias revolucionárias (1975-1985), em que a esquerda procurou continuar nas páginas dos livros a luta contra a Ditadura Militar. Segundo Cardoso, dentre as diferentes perspectivas na historiografia – e mesmo nos mais variados registros como dossiês, diários, entrevistas, biografias, romance político –, os livros de memória ocupariam um lugar particular enquanto instrumento de compreensão do Período da Ditadura. Para a autora, no interior desse “surto memorialístico”, os livros de memórias seriam instrumentos representativos de grupos que 2 construiriam diferentes representações do passado. Para Martins, os narradores da esquerda sentiriam obrigação de contar e recontar os acontecimentos que cercam a resistência derrotada, para que mantivessem viva a memória dos anos 60 3 e 70. Isso pareceu tanto um “dever de memória”, no sentido de que seria preciso lembrar do passado 1

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Formação Acadêmica: Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), graduanda em pedagogia pela UFRGS e especializanda em Ensino da Geografia e da História pela FACED/UFRGS. Email: nova-brando@sarh.rs.gov.br CARDOSO, Lucileide Costa. Construindo a memória do regime de 64. São Paulo, Revista Brasileira de História, v. 14, n. 27, 1994. p.180. Também nesse artigo, a autora trabalha com memórias dos militares que, segundo ela, podem ser entendidas como uma resposta às memórias dos militantes de esquerda, no mínimo por aquelas terem sido publicadas posteriormente a essas. MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra da memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares. Belo Horizonte, Varia História, n. 28, p. 178-200, dez. 2002. p.1. O autor, nesse artigo, além de analisar livros de memórias de militantes de esquerda, analisa a memória dos militares, situando-nas naquilo que denominou como “a guerra da memória”, onde as memórias conflitantes “disputariam” o passado.

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para que ele não se repetisse, quanto para responder uma demanda da esquerda, que começava a passar por um período de avaliação das suas ações durante o período da ditadura. Nesse sentido, essas memorias, repletas de considerações sobre a resistência, do ponto de vista de quem naquelas fileiras esteve, agora possibilitariam uma aproximação entre os problemas de pesquisa histórica, referentes aos posicionamentos da esquerda naquele período, e o desenvolvimento do conhecimento acerca daquele período. Tanto Vargas quanto Fischer atuaram na luta armadas no estado do Rio grande do Sul e suas memórias relatam esse período. Transformadas em obras memorialísticas, suas memórias, nesse trabalho, são entendidas como fontes riquíssimas, como sugerem Cardoso e Martins, para a compreensão das discussões travadas entre a esquerda daquele período, sobretudo aquela que optou pela luta armada. Encontramos dentro das memórias desses militantes que optaram pela luta armada a reivindicação de referenciais utilizados como aportes explicativos e de sustentação de uma leitura conjuntural que fazia das ações radicais a única possibilidade real de oposição ao regime naquele momento em que as vias institucionais foram deliberadamente fechadas. Para trabalharmos com a 4 reincidência dessas rememorações é que atentamos para a existência, conforme Hallbwachs , de uma 5 “memória coletiva” e, de acordo com Ecléa Bosi , uma “memória política”, que teriam sido construídas e consolidadas entre os militantes que lutaram contra a Ditadura de 1964. Nas descrições das ações, na crítica e na autocrítica dos projetos armados bem como nos referenciais por eles reivindicados, os memorialistas, no caso desse trabalho, Vargas e Nunes, por um lado, apoiar-se-iam em uma memória coletiva da esquerda sobre aqueles tempos, percebida nas menções recorrentes, por exemplo, ao caso do Marighela, ao caso do Lamarca, às discussões teóricas e aos apontamentos das lutas internacionais travadas naquele momento. Por outro lado, haveria uma memória política expressa nessas rememorações, nas quais a presença de juízos de valores e demarcações de posição política estariam fortemente presentes. Portanto, identificar as referências presentes nos relatos memorialísticos dos dois autores e compreende-las enquanto memórias coletivas e memórias políticas construídas a partir da resistência e construtoras de uma posterior resistência materializada na publicação de suas obras, é a intencionalidade primordial desse artigo. Breves Considerações – Memórias sobre as organizações e as ações armadas Em um primeiro momento, apresentaremos os autores e descreveremos algumas informações, trazidas por eles em suas memórias, acerca das ações armadas na região metropolitana de Porto Alegre, para que tenhamos noção de qual esquerda e de qual luta armada estamos trabalhando a partir desses dois livros de memória. 6 Jorge Fischer Nunes, autor de Riso dos torturados , ligado, portanto à luta armada contra o regime militar, em sua obra, além dos recortes que serão explorados e desenvolvidos nesse trabalho, denuncia policiais, militares, autoridades públicas, delatores. Também faz um relato dos períodos em que esteve preso, das torturas e das vivencias nos locais por onde passou. Preso em 1969, e falecido na segunda metade da década de oitenta, Nunes está presente no rol dos militantes de esquerda 7 indenizados pelo Estado . 8 Índio Vargas, autor de Guerra é guerra, dizia o torturador , militante ligado ao nacionalismo de 9 esquerda (PTB), narra em sua obra, as experiências políticas vinculadas tanto a Brizola quanto a sua participação indireta em ações armadas na região metropolitana de Porto Alegre, que o levariam à tortura no Rio Grande do Sul, após sua prisão em 1970, quando foi para a Ilha do Presídio. Assim como Fischer, 10 também foi indenizado pelo Estado nos termos da Lei n.º 11.042/97, completada pela Lei n.º 11.815/02 . No ano de 1969, os memorialistas decidiram-se pela luta armada como estratégia de luta para derrubar a ditadura militar. Os papéis destinados aos autores foram diferenciados. Enquanto Nunes participaria direta e ativamente nas atividades das ações armadas, Vargas prestaria apoio logístico 4 5 6 7 8 9

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HALLBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. NUNES, Jorge Fischer. O riso dos torturados Porto Alegre: PROLETRA, 1982. Informações encontradas em Acervo da Luta contra a Ditadura. Disponível em: http://www.acervoditadura.rs.gov.br/indenizacao.htm Acesso em fev/2013. VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: CODECRI, 1982. Vargas chegou a ser eleito vereador pela cidade de Porto Alegre durante a Ditadura, tendo seu mandato cassado após vinte dias de sua posse. Em 1979, junto a outros tantos trabalhistas no exílio, assinou a “carta de Lisboa” que fundou o Partido Democrático Trabalhista – PDT. Disponível em http://www.sul21.com.br/jornal/2011/06/indio-vargas-a-violencia-maior-com-um-preso-e-o-choque-eletrico/ . Acesso em fev/2013. Informações encontradas em Acervo da Luta contra a Ditadura. Disponível em: http://www.acervoditadura.rs.gov.br/indenizacao.htm Acesso em fev/2013.

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como, por exemplo, garantir aparelhos necessários às reuniões, aos militantes clandestinos, aos possíveis sequestros. Nesse mesmo período, teria ocorrido a formação da organização M3-G, sob a liderança de Edmur – militante anteriormente ligado ao Marighela – da qual Nunes era militante orgânico e Vargas prestava apoio logístico. Desde os primeiros contatos para formar uma organização de luta armada no estado até os momentos em que os autores caracterizaram as ações em seus detalhes, fica evidente certo otimismo que não encontrava apoio na restrita amplitude das ações, que eram colocadas em prática por uma 11 organização precária e deficiente . Tratou-se de algumas expropriações bancárias que, longe de patrocinarem a luta direta contra a ditadura, eram destinadas à sobrevivência dos militantes que já estavam vivendo na clandestinidade. A existência dessa organização não teria durado por muito mais de um ano. Logo após a tentativa de vinculá-la a outras organizações de nível nacional, com maiores recursos nacionais e humanos, os integrantes do M3-G, começaram a ser identificados, procurados, 12 presos e torturados pelos órgãos de repressão da ditadura . Procuramos, portanto, localizar a militância de Fischer e de Vargas, para entendermos um pouco melhor quem são e o que fizeram os sujeitos que reivindicavam referenciais, parte de uma memória coletiva e política da esquerda, que justificassem a luta pela qual optaram. Referências da esquerda presentes nessas memórias Nessa parte do texto, faremos um recorte das obras de Fischer e de Vargas que nos aproximem da possibilidade de identificarmos e de compreendermos quais os referenciais reivindicados pela esquerda, enquanto construções da resistência no período e enquanto construtores das memórias desses militantes. Olívio (nome suposto) era um jovem militante de pouco mais de dezoito anos. Um 13 brancaleone. Guri com cara de guri, mas com coragem para dar e vender. [Edmur] Maneiras polidas, palavra fluente, linguagem característica de um homem de esquerda, entremeando a terminologia dos novos marxismos com o jargão do velho 14 Partido Comunista. Discutíamos [Fischer e Djalma] muito os casos Marighella e Lamarca. O ex-deputado federal Carlos Marighella, constituinte em 1945 e que, após o golpe, se recusava a permanecer como figura decorativa em um Parlamento amordaçado. Marighella caíra na clandestinidade, organizando rapidamente o grupo de resistência armada Aliança de Libertação Nacional. [...] Lamarca havia desertado do Exército, levando consigo dois caminhões repletos de armamentos e construído a VPR – Vanguarda Popular 15 Revolucionária, um braço armado contra a ditadura. Guevara poderia ter tranquilamente assumido este papel [revolucionário de gabinete, envolvido apenas por suas teorias]. Pertencia à classe média, era um profissional liberal. Preferiu, no entanto, unir-se ao proletariado. Rompeu todos os laços ideológicos 16 que o prendiam à sua classe, assumiu a ideologia do proletariado. Edmur continuava imperturbável quando respondeu que a revolução é uma chama que se alastra em proporções geométricas, e que logo seríamos dez, depois vinte, depois cem. Eu já havia lido qualquer coisa parecida em algum livro de Mao, mas resolvi ficar de bico fechado. A matemática revolucionária nem sempre apresenta alto grau de 17 confiabilidade.

Olívio, assim como seus outros companheiros de militância no Colégio Júlio de Castilho, 11

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Quase todas as ações de assaltos a banco eram cercadas de falhas. O assalto ao banco de Cachoeirinha exemplifica tais deficiências.IN: NUNES, op cit., 1982.p. 51; VARGAS, op cit., 1982. p.50. Detalhes desse assalto aparecem também no livro de memórias de Garcia e Posenato. GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. Verás que um filho teu não foge à luta. Porto Alegre: Posenato Arte e Cultura, 1989. p. 29. Outra demonstração da debilidade das organizações armadas da esquerda no estado do Rio Grande do Sul foi a tentativa frustrada de sequestro do cônsul norte-americano. Essa ação é identificada pelos autores, embora não tenham participado dela, como sendo a grande responsável pela intensificação da repressão no estado. A partir dela, os militantes da esquerda radical foram sendo presos um por um, inclusive Edmur, Vargas e Fischer. IN: NUNES, op cit., 1982.p.57; VARGAS, op cit., 1982. p.52. NUNES, op cit., 1982. p.54-57 NUNES, op cit., 1982. p.77 VARGAS, op cit., 1982. p.40 NUNES, op cit., 1982. p.41 Idem, p.138 Idem, p.45

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recebera o nome de brancaleone. A idéia de imaturidade para a luta e das sucessivas trapalhadas durante as ações lhes renderam tal designação. Entretanto, como sugere Fischer, apesar da pouca idade, esses militantes se opuseram ao regime militar, enfrentando uma opressão disposta a abafar quaisquer sussurros de descontentamento, mais ainda quando viessem de um grupo minimamente organizado. Ao destacar as características de um novo marxismo presente naqueles que pegaram em armas para derrubar a ditadura militar, Vargas nos apresenta Edmur. Já no primeiro contato que teve com o então futuro dirigente do M3-G, o autor de Guerra é guerra, dizia do torturador nos remete a diversas das características daqueles militantes dos anos de luta armada: uma disponibilidade intelectual aliada à necessidade de ação imediata. Marighela e Lamarca são os grandes referenciais do período no Brasil. Tanto a Aliança de Libertação Nacional como a Vanguarda Popular Revolucionária representaram os maiores quadros da luta armada nos anos de chumbo, ficando o nome de seus dirigentes registrados em diversas produções, dentre elas as memórias analisadas nesse trabalho. Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana, e Mao, líder da Revolução Chinesa, são amplamente rememorados. Os referencias extrapolam os limites nacionais, estando neles presentes guerrilheiros admirados por uma parcela da esquerda brasileira daquele período. Isso porque esses personagens construíram e refletiram a ideia da violência revolucionária justa que seria reivindicada pelos militantes que optaram pela luta armada. Muitas são as vitrines da esquerda durante os anos da repressão no país. Os exemplos vão desde militantes inseridos em lutas mais localizadas, como o caso dos brancaleones, passando por dirigentes de organizações que optaram pela luta armada como Edmur, Marighela e Lamarca, chegando aos modelos internacionais como Che Guevara e Mão-Tsé-Tung. O apoio de parcela de membros da Igreja progressista, sobretudo de Frei Betto e Frei Tito, o caso do cabo Anselmo, os episódios dos sequestros de diplomatas e as críticas lançadas ao Partido Comunista Brasileiro formam um outro conjunto de lembranças recorrentes nessas obras: [...] a guerrilha urbana parecia prosperar. No Rio, em São Paulo e em Minas apoiava-se o tripé da luta armada contra a ditadura. Nem o clero se omitia: frei Beto e um punhado de padres da Igreja progressista alinhavam-se ao lado da vanguarda. [Marujo] contou-me a sua história. Servia na Marinha de Guerra quando o cabo Anselmo liderou a famosa “rebelião dos marinheiros”. Além de apoiar o governo João Goulart, Anselmo levantava reivindicações específicas, muito sentidas pelos marinheiros, tais como o direito da casar. Como ficou provado mais tarde, o célebre cabo era um espião “infiltrado” no movimento popular. Após o golpe, quando ninguém suspeitava ainda de que ele fosse espião, infiltrou-se em algumas organizações vanguardistas, entregando inúmeros quadros que terminaram sendo assassinados pelos homens do DOI-CODI, da 19 OBAN, do Cenimar. A única dessas ações [armadas], aliás, realizada em São Paulo no dia 10 daquele mês de março [1970], foi o sequestro do cônsul japonês, cujo objetivo principal era a libertação de Chizuo Sava, conhecido como Mário Japa, que estava preso na Operação Bandeirantes e sendo submetido a todo tipo de tortura para abrir o esquema da VPR. Mário Japa e mais quatro pessoas foram trocadas pelo cônsul do Japão, predominando 20 a rapidez nas negociações entre os sequestradores e o Governo brasileiro. [Marighela] Destacou que os erros do Partido Comunista vinham-se acumulando desde 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, e que se alguma participação teve na resistência para impedir que a direita tomasse o poder naquela época e impedisse a posse do vice-presidente João Goulart, foi porque aliou-se, com outras organizações democráticas, ao então governador Brizola e ao Partido Trabalhista Brasileiro. Mais tarde – no período de Jango o PCB insistia nos apelos à greve política, sem apoio dos camponeses. A debilidade do movimento camponês era a falha principal. Havia uma recusa sistemática em dar prioridade ao trabalho do campo, e sem a mobilização do 21 campo seria impossível o avanço da revolução.

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O nome de Brancaleones foi dado por Flávio Koutzi àqueles militantes que nasceram do movimento estudantil do Colégio Júlio de Castilho. Encontramos uma série de informações sobre o movimento estudantil dessa escola no período da ditadura militar na obra de Gutiérrez. IN: GUTIÉRREZ, Cláudio. A guerrilha brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999. NUNES, op cit.,1982. p.190 VARGAS, Índio. op cit., 1982. p.50 Idem, p.20-21

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O apoio de Frei Betto e de muitos membros da Igreja Progressista são registros recorrentes nas obras de militantes, ainda mais devido ao apoio à ALN e a forte ligação com Marighela, um dos inimigos 22 mais odiados pelos militares e mais queridos pela repressão. Durante conversa com um companheiro na Penitenciaria Estadual do Partenon, Fischer relembra o caso “Cabo Anselmo”, que durante algum tempo também foi visto como um companheiro de luta e, também por tal motivo, foi marcado nas páginas dos livros como o grande delator. Infiltrado em algumas organizações, serviu de informante para as forças da repressão que por meio de suas declarações mapeou organizações, chegando a um grande número de militantes que foram presos, torturados e assassinados. As tentativas e os sequestros bem-sucedidos ocupam lugares privilegiados nas memórias, seja por estarem carregados de ações, aspecto tão valorizado por parcela da esquerda atuante do período, seja pelo desfecho, ora trágico, ora bem-sucedido como no caso do sequestro do cônsul japonês que permitiu a libertação de prisioneiros que estavam sendo torturados como o caso de Mário Japa. Marighela se tornou uma figura conhecida e reconhecida não somente pela sua oposição enfática ao regime militar, mas também pelas severas críticas que esse personagem fez ao Partido 23 Comunista. Elas exemplificam bem os debates que resultaram nas inúmeras dissidências ocorridas 24 durante a década de sessenta e que fazem parte da memória coletiva das esquerdas. Nas mais diversas passagens das memórias de Fischer e de Vargas, encontramos inúmeras alusões do que este trabalho pretende demonstrar como fazendo parte de uma memória coletiva, 25 conforme Hallbwachs , da ditadura militar, que por terem sido vivenciadas por um grande número de indivíduos e por estarem presentes nos mais diversos discursos sobre o período – memórias, romances, ficção, trabalhos acadêmico-científico – compõem um quadro de lembranças e informações de fácil acesso à memória daqueles que viveram e principalmente daqueles que lutaram no período. Esses 26 nomes citados anteriormente, portanto, fazem parte de uma memória coletiva do período da ditadura. Na obra de Colling, alguns desses referenciais perpassam diversos depoimentos. Carlos Marighela à frente da ALN, Carlos Lamarca à frente da VPR, Che Guevara, Mão-Tsé-Tung, inserem-se 27 dentro dos modelos capazes de superar o poder estabelecido. Também nas memórias de Garcia e Posenato, a figura de Lamarca é percebida com certa admiração pela sua história. Segundo os autores os fuzis que trouxe com sua deserção do exército, serviram para fazer muitas ações e dar muito susto no 28 Regime. A luta armada, a violência revolucionária, a valorização da ação são outros aspectos presentes nas obras desses dois militantes que compõem a memória coletiva sobre o período da ditadura. Marighella falou da sua divergência quanto à orientação do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, do qual era um dos membros. Segundo percebi, no curso da conversa, a sua ruptura com a orientação partidária fora determinada pela opção que fizera, depois do golpe de abril de 1964, pela luta armada, única alternativa das massas 29 brasileiras, apesar de sua desorganização. 22

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Informações sobre as ligações entre a Igreja Progressista e a ALN são encontradas nas memórias de Frei Betto. BETTO, Frei. Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. Segundo Reis Filho e Ferreira, uma das grandes acusações que se fazia ao PCB era a de imobilismo. Os grupos e organizações dissidentes que se formavam desejavam agir de forma imediata e qualquer retardamento da ação era visto como um ato de covardia. IN: REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução; documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. P.41 Sobre as organizações de esquerda após 1964 – cisões, pontos em comum e divergências – ver RIDENTE, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 1993; REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. Segundo o autor, “[...] se passa a falar de memória coletiva quando evocamos um acontecimento que teve lugar na vida de nosso grupo e que considerávamos; e que consideramos ainda agora, no momento em que nos lembramos, do ponto de vista desse grupo.” IN: HALLBWACHS, Maurice. op cit., 1990, p. 36 Mesmo que memórias como, por exemplo, de um militante brancaleone esteja presente em poucas obras, que seja revisitada, principalmente, por militantes que atuaram nas proximidades de Porto Alegre, ela não deixa de estar inserida dentro de uma memória sobre a militância estudantil do período, tão bem reprimida. Dados sobre a repressão aos estudantes podem ser encontrados na obra Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985. COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1997. p.30. A autora, ao estudar a resistência da mulher à Ditadura Militar no Brasil levanta importantes referenciais da esquerda daquele momento, principalmente do momento em que diversos militantes optaram pela luta armada, dentre eles, as militantes pesquisadas por ela. GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. op cit., p.32. Os autores que militaram no POC e posteriormente na VPR, rememoram suas ações, suas práticas com um alto grau de autocrítica. VARGAS, op cit., 1982. p.20

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[...] digamos que o ódio, para o revolucionário, se traduz em termos de assunção da ideologia do proletariado. E esta ideologia é essencialmente revolucionária. [...] a violência revolucionária é sempre uma resposta à violência reacionária; segundo, da 30 frase de Marx: “A violência é a parteira da História”. A partir daí, intensificaram-se as ações policias. Afinal de contas, não era um cidadão comum que havia sido alvejado, e sim o cônsul da metrópole. A colônia precisava, a qualquer custo, apresentar os culpados. As buscas tornaram-se intensas, o DOPS recebeu elementos do DOI-CODI (ou OBAN) para dirigir as operações, o major Átila Roszester mandava prender qualquer suspeito e torturar. De vinte elementos torturados, um deveria ter qualquer informação, por mínima que fosse capaz de auxiliar na investigação. O mesmo processo utilizado pelos paraquedistas franceses na Argélia:” torturem cem. Um saberá de alguma coisa” – e dê-lhe a queimar criaturas humanas a 31 bico de maçarico.

Ao encontrar Marighella, Vargas ficou sabendo de sua divergência quanto à orientação do comitê Central do PCB e da sua opção pelo combate armado como meio para derrubar a violência imposta a partir de 1964. Nunes ao travar uma série de críticas àqueles que ele chamou de “revolucionários de gabinete”, ou seja, revolucionários muito mais interessados na teoria e pouco dispostos a praticá-la, lança mão de 32 justificativas, também teóricas, que embasem a violência revolucionária . Também o autor, ao relembrar a tentativa de sequestro do cônsul norte-americano em Porto Alegre e a intensificação da repressão, nos apresenta exemplos internacionais, como o caso da Argélia, que expliquem a validade da violência 33 revolucionária no enfrentamento à violência de um regime opressor. Para isso, traz em suas páginas um referencial difundido não somente entre a esquerda brasileira, mas também, por exemplo, a esquerda europeia: a luta contra o colonialismo na África e um de seus maiores expoentes, a luta dos argelinos contra os colonizadores franceses. A partir dessas rememorações, propõe-se que uma das grandes características da esquerda da década de sessenta é o desprezo por intermináveis discussões teóricas e a valorização da ação imediata. Nesse sentido, a luta armada surgia como a grande ferramenta a ser utilizada no combate à opressão, à ditadura. Era tida muito mais do que uma possibilidade de atuação, era tida como o único meio de lutar pelo fim de um regime que fechava, principalmente após a edição do Ato Institucional número cinco de 1968, as portas para qualquer tipo de participação que se opusesse aos seus 34 objetivos. Para a legitimação da luta armada, muitos exemplos foram reivindicados como forma de legitimar a violência revolucionária, a violência “justa”. Segundo Hannah Arendt, a violência “justa”, a violência do oprimido contra o opressor não se tratava apenas do enaltecimento teórico referente ao direito de defesa de um território invadido ou ocupado como seria o caso do Vietnã e da Argélia, e sim, a partir de tais exemplos e experiências, construir-se-ia uma justificativa teórica para a violência em si – 35 posição amplamente criticada pela autora. Para Araújo: “ela não seria apenas um recurso extremado 36 de defesa, mas um ato valorizado em si próprio – um gesto construtor de identidade, um ato libertador”. Os exemplos de caminhos para um amanhã possível são referências indispensáveis. Nesse sentido, modelos revolucionários como aqueles propostos por Cuba, Vietnã, China, Argélia desempenharão um papel de coesão fundamental para aqueles que acreditam na conquista de uma nova organização social. Segundo Reis filho: As peripécias do “momento atual” poderão ser desfavoráveis, a realidade poderá ser madrasta, mas o futuro será luminoso. As revoluções vitoriosas provam que o sacrifício não será vão. Asseguram os militantes na prática e os seguram dentro das organizações. Em muitos momentos, desempenharão papel decisivo do que a 30 31 32

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NUNES, op cit.,1982. p.138 NUNES, idem, p.57 Nunes defendeu a ideia de que mesmo não se tratando de uma experiência vitoriosa, ela contribui para acirrar as contradições que levariam à abertura do regime, ainda que tímida no momento da rememoração. IN: NUNES, op cit. p. 10 Algo semelhante acontecerá com o sequestro do embaixador pela ANL, que intensificou drasticamente a repressão. IN: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1999. p. 169 Há que se lembrar que se por um lado existiam grupos dispostos a pegar em armas, existiam grupos profundamente contrários a essa concepção como, por exemplo, o Partido Comunista Brasileiro. IN: ARAUJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. op cit., 2000. ARENDT apud ARAUJO, 2000. p.39. ARAUJO, op cit, 2000, p. 39.

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adequação deste ou daquele programa estratégico ou tático.

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Segundo Tavares, a “globalização” naqueles anos era o exemplo do Vietnã em armas que desafiava a maior potência militar do mundo, era também a Revolução Cubana em território sob influência dos Estados Unidos; era também a figura de Che que aos sair de Cuba foi lutar na África e, 38 mais tarde, na Bolívia. Enfim, segundo o autor a capacidade de indignar-se invadia o globo. Gutiérrez fará referência a Declaração de Havana e a carta de despedida do Che Guevara, lida por Fidel durante a Conferência de OLAS como elementos explosivos para aqueles que estavam militando e acreditando na 39 possibilidade de mudanças. A mesma menção dessa Conferência e da influência da figura de Che 40 Guevara, sobretudo após sua morte, aparece nas memórias de Garcia e Posenato. Também Rollemberg visualiza em Cuba uma grande referência para muitos que se sentiram fascinados e atraídos por um exemplo concretizado de uma vanguarda que revolucionaria todo um país, 41 além dos acontecimentos na Argélia. Segundo Maria Paula Araujo, com o duplo impacto da valorização teórica da violência e do recrudescimento das guerras anticoloniais na África e na Ásia, parte da esquerda ocidental, nos anos sessenta, passou a conceber práticas políticas cada vez mais embasadas na afirmação teórica e na prática da violência. Na América Latina, isso foi expresso pela proliferação de opções de luta armada 42 rural e/ou urbana, que é o caso no qual se inserem os militantes cujas memórias são aqui estudadas. A valorização da ação e, por conseguinte, da luta armada também é evidenciada na obra de Reis Filho e Jair Ferreira. Em sua caracterização da esquerda dissidente no Brasil – que em grande parte optou pela luta armada nos anos sessenta –, destacam também essa sedução pela ação imediata e pelo 43 pragmatismo, que representavam expressões maiores de organização, em detrimento dos partidos. Portanto, tentamos demonstrar como referenciais, sejam eles indivíduos sejam fatos ocorridos, que representavam a concepção de violência justa reivindicada pela luta armada também compuseram uma memória coletiva do período. Na rememoração de Vargas e de Nunes desses referenciais 44 pertencentes a uma memória coletiva, também, sugerimos que atuava uma memória política . Em O riso dos torturados, por exemplo, não precisamos recorrer a interpretações das entrelinhas para percebermos sua validação daquilo que foi chamado de violência justa, mesmo que, como vimos anteriormente, o autor tenha tecido críticas a maneira desorganizada como havia sido implementada. Já em Guerra é guerra, dizia o torturador, o autor nos pareceu mais distanciado e menos comprometido com uma análise valorativa dessa violência, prevalecendo muito mais uma memória coletiva nos seus relatos, que uma memória política no sentido trazido. No contexto dessas reivindicações de referenciais que permeavam todo um período, defendemos a ideia de que essas obras compõem um quadro da memória coletiva, e que foram por ele influenciadas. Além disso, que essas memórias, e não poderia ser diferente uma vez que são narrativas de militantes políticos, são imbuídas de valorações, fazendo que uma memória política atue e dê pareceres sobre a memória coletiva, conforme os posicionamentos e atuações políticas dos autores. Conclusão A partir da decretação do AI-5, o embate entre os grupos de esquerda e o governo militar foram caracterizados pela opção de luta armada por muitos militantes que formaram diversas organizações radicais e executaram diversas ações que, na visão deles, pudessem abalar a ditadura militar. Esse momento começou a ser explorado pelos memorialistas já no final dos anos setenta com o período de

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REIS F., Daniel Aarão. op cit., 1990. p.95 TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999. p. 188-189. GUTIÉRREZ, op cit, 1999, p. 42 GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. op cit., p.31 ROLLEMBERG, Denise. Nômades, sedentários e metamorfoses: trajetórias de vidas no exílio. IN: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo & SÁ MOTTA, Rodrigo Patto (org). O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964 – 2004). . Bauru (SP): Edusc, 2004, p.287-288. Nesse artigo, a autora explora o tema das trajetórias individuais no exílio. Segundo ela, na primeira fase do exílio, que inicia em 1964, a Revolução Cubana seria símbolo para os exilados, bem como o apoio do governo da Argélia àqueles que tiveram de deixar o Brasil. ARAUJO op cit., p.41 REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução; documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. Nesse livro encontramos inúmeras informações sobre organizações clandestinas que optaram pela luta armada. Essa “memória política”, que atuaria sobre a construção dos conteúdos e marcaria substantivamente as análises políticas realizadas por parte de seus autores. Segundo Ecléa Bosi, “Na memória política, os juízos de valor intervêm com mais insistência. O sujeito não se contenta em narrar como testemunha histórica “neutra”. Ele quer também julgar, marcando bem o lado em que estava naquela altura da História, e reafirmando sua posição ou matizando-a”. IN: BOSI, Ecléa. op cit,. p. 371-376.

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distensão do Governo Geisel. Desde então, memórias antes “subterrâneas” começaram a ser 46 publicadas, dando, inclusive, continuidade a luta pela redemocratização do país. Nesse trabalho, buscamos analisar duas obras de memórias de militantes que se opuseram ao regime militar por meio da adesão a luta armada, que foi caracterizada, no Rio Grande do Sul, como um conjunto de expropriações que visavam levantar fundo para a construção da resistência que derrubaria a ditadura militar e construiria uma nova forma de organização social. Caracterizadas as ações armadas, levantamos a existência de referenciais comuns sendo reivindicados por aqueles que aderiram tais ações, tentando inseri-los dentro de um quadro mais geral em um período em que diversos grupos estavam reavaliando seus posicionamentos durante os anos de 47 forte repressão (1968-1974) . Esse quadro mais geral foi nomeado nesse trabalho de memória coletiva, uma vez que entendemos que o conceito de Hallbwacs ajudou-nos a compreender a construção da memória desses autores, a partir da ideia de que existiria uma memória mais ampla dos grupos opositores do regime. No entanto, um sentido valorativo forte foi atribuído pelos autores a diversas situações rememoradas por eles. Por isso, entendemos e procuramos demonstrar a atuação de uma memória política nos seus relatos, nas considerações sobre opção pela luta armada e os referenciais que a defendiam. Para explorarmos melhor essa intervenção de juízos de valores sobre o conteúdo que está sendo rememorado, achamos que o conceito de memória política de Bosi tenha sido uma importante ferramenta para compreendermos as diferentes leituras sobre o período da luta armada, que se davam conforme posicionamentos políticos mais delimitados. Tentamos elencar alguns personagens e alguns episódios que foram tomados como referenciais para uma parcela da esquerda. Nesse momento, o conceito de violência justa Arendt, bem como o de memória política de Bosi, nos ajudou a perceber a valorização de indivíduos e de fatos históricos reivindicados por esses autores não apenas com sentimento de admiração, mas também como formas de justificar e legitimar as lutas que haviam empreendido contra um regime arbitrário. Por fim, gostaríamos de enfatizar novamente que as memórias de militantes que atuaram no estado do Rio Grande do Sul possuem um potencial bastante grande de fonte histórica sobre um período que vem sendo recentemente explorado nos seus aspectos regionais. Nesse sentido, os livros de cunho memorialísticos nos fornecem muitas pistas para que cheguemos a outras fontes que venham a servir, futuramente, para a construção de um conhecimento mais profundo sobre o período no estado.

Referências Bibliográficas: ARAUJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985. COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1997. CARDOSO, Lucileide Costa. Construindo a memória do regime de 64. São Paulo, Revista Brasileira de História, v. 14, n. 27, p. 179-203, 1994. GARCIA, J.C. Bona; POSENATO, Júlio. Verás que um filho teu não foge à luta. Porto Alegre: Posenato Arte e Cultura, 1989. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1999. GUTIÉRREZ, Cláudio. A guerrilha brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999. HALLBWACS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra da memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares. Belo Horizonte, Varia História, n. 28, p. 178-200, dez. 2002. 45 46 47

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 1989. MARTINS FILHO, op cit., 2002. As críticas e autocríticas já haviam começado dentro das organizações, mas é, sobretudo, no momento de abertura política e do final da ditadura que elas são mais amplamente divulgadas como nesse caso nos livros de memórias. Entretanto, segundo Gorender: “o avanço mais significativo do ponto de vista teórico partiu da Ala Vermelha, na sua Resolução intitulada Autocrítica, 1967-1974.” Essa resolução teria o mérito de ser o primeiro documento da esquerda armada que apontou graves erros cometidos pela organização. Ver GORENDER op cit., 1999. p. 204-205

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NUNES, Jorge Fischer. O riso dos torturados Porto Alegre: PROLETRA, 1982. POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 1989. REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. 200p. REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução; documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. RIDENTI, Marcelo. O fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 1993. 285p. ROLLEMBERG, Denise. Nômades, sedentários e metamorfoses: trajetórias de vidas no exílio. IN: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo & SÁ MOTTA, Rodrigo Patto (org). O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964 – 2004). . Bauru (SP): Edusc, 2004, p.287-288. TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999. VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: CODECRI, 1982.

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A coleção “1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história” e a narrativa positiva da ditadura pelo exército1 Eduardo dos Santos Chaves

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Resumo: No presente texto pretendo analisar a coleção “1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história”, publicada pela Editora da Biblioteca do Exército, a Bibliex, entre 2003 e 2004, a partir de duas questões que considero importantes na construção da narrativa sobre a ditadura pelo exército: 1) como procuraram narrar e justificar os erros da “Revolução de 1964”; e 2) de que forma entrevistados e entrevistadores entendem a derrota das Forças Armadas na “batalha” pela memória do regime. Cabe destacar que além dessas questões, outras também foram feitas com propósitos de justiçar a intervenção em março de 1964 e a própria ditadura civil-militar que perdurou até 1985. Palavras-chave: ditadura civil-militar – exército – direitas – memórias – história oral. Abstract: In this paper I analyze the collection "1964 – March 31: the revolutionary movement and its history", published by Library Army, the Bibliex between 2003 and 2004 from two issues that I think are important in the construction of narrative over dictatorship by the army: 1) how to narrate and sought to justify the errors of the "Revolution of 1964", and 2) how interviewees and interviewers understand the defeat of the Armed Forces in the "battle" for the memory of the system. It is noteworthy that in addition to these issues, were also made with other purposes Justify intervention in March 1964 and the very civilmilitary dictatorship that lasted until 1985. Keywords: civil-military dictatorship – army – right – memories – oral history.

Introdução Não é novidade a disputa pela memória da ditadura civil militar 3. Nessa batalha pela hegemonia de uma memória que se quer como “verdadeira”, o período compreendido entre 1964 e 1985 revela-se diferente para ambos os grupos. Para as esquerdas, além de procurarem saber onde se encontram os corpos de desaparecidos políticos e insistirem, em alguns casos, na punição de militares envolvidos na 4 repressão, a luta também é em relação à verdade, na qual não aceitarão as “falsificações da história” . Para as Forças Armadas e, particularmente, para o Exército, a verdade dos fatos vem sendo distorcida 5 por uma parcela de intelectuais que reescrevem a história, falsificada a seu talante . O revanchismo, nesse caso, constitui-se em uma arma na mão de assaltantes, sequestradores, 6 terroristas, desertores, agora, regiamente abonados . Conforme Jarbas Passarinho, os militares “são quase mortos-vivos a sofrer o revanchismo dos que, derrotados pelas armas, são vitoriosos pela versão 7 que destrói os fatos” . O Exército, frente a essa disputa de memórias, produziu a sua “versão” dos fatos, procurando fazer uma avaliação positiva do golpe de 1964 e da ditadura civil-militar. O resultado dessa disputa constituiu-se de 15 tomos, contabilizando 247 entrevistas com militares e civis que atuaram, colaboraram e/ou tiveram alguma participação no regime dos cinco generais presidentes. Com o título “1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história”, a coleção foi publicada pela Editora da Biblioteca do Exército, a Bibliex, entre 2003 e 2004, nas vésperas dos 40 anos do golpe civil-militar de 19648. As 1

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Parte deste trabalho é resultado da minha dissertação de mestrado defendida em 2011 pelo Programa de PósGraduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS, sob o título “Do outro lado da colina: a narrativa do Exército sobre a ditadura civil-militar”. Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH/UFRGS). Em relação às discussões sobre as batalhas de memórias, ver: MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra de memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares. Varia História, UFMG, n.28, dez. 2002. TOLEDO, Caio Navarro de. Crônica política sobre um documento contra a “Ditabranda”. Revista de Sociologia, Curitiba, v.17, n.34, p.209-217, out. 2009. MOTTA, Aricildes de Moraes (Coordenação Geral). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003. 15 tomos. (Apresentação a todos os tomos) MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 27. Ibid., p. 27. A coleção parece ter antecipado às discussões que ocorreram no meio acadêmico, a partir de seminários,

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entrevistas realizadas pelo Exército procuraram levantar um número significativo de militares e civis de várias regiões do país que, conforme seus organizadores, contribuiriam para com a “verdade” dos acontecimentos. No presente texto pretendo analisar duas questões que considero importantes na construção da narrativa sobre a ditadura pelo exército: 1) como procuraram narrar e justificar os erros da “Revolução de 1964”; e 2) de que forma entrevistados e entrevistadores entendem a derrota das Forças Armadas na “batalha” pela memória do regime. Cabe destacar que além dessas questões, outras também foram feitas com propósitos de justiçar a intervenção em março de 1964 e a própria ditadura civil-militar que perdurou até 1985. Nas entrevistas fica claro que entrevistadores e entrevistados parecem estar de acordo com o que deve ser dito a respeito do período. “Os fins justificam os meios”: os “erros” da “Revolução” A coleção, além de apontar os inúmeros benefícios trazidos pela Revolução, como forma de avaliar positivamente os vinte anos de Regime Militar, procurou, também, apontar alguns dos erros cometidos pelos “governos revolucionários”. O propósito com esse questionamento é o de reafirmar que, se houve excessos, estes foram pequenos comparados aos importantes avanços alcançados pela 9 gloriosa “Revolução”. Conforme o General de Exército Ivan de Souza Mendes , “não digo que a Revolução não tenha cometido erros, pois todos somos passíveis de cometê-los [...]. A Revolução cometeu alguns erros, mas esses foram irrelevantes em relação aos seus acertos”. Os erros surgem como naturais do homem, principalmente, quando se tem que administrar “[...] um País extenso, como é 10 o Brasil, com enorme população [...]”, apontou o General Ferdinando de Carvalho . Os principais erros cometidos, segundo significativa parte dos depoimentos, referem-se à censura dos meios de comunicação, aos excessos com torturas e perseguições políticas que desembocaram em exílios ou no desaparecimento de presos políticos, além de outros relacionados aos descuidos com o sistema de ensino, hoje dominado pelos “revanchistas”, o surgimento dos inúmeros partidos políticos, desligados da “Revolução”, o descuido em não registrar as “dádivas” da “Revolução” e os problemas relacionados à “longevidade” dos “governos revolucionários”. A censura foi apresentada em muitos dos depoimentos como um dos principais erros da 11 “Revolução”. Segundo o General Alacayr Frederico Werner , “toda revolução comete erros e, para mim, o maior deles é silenciar as vozes discordantes. Na Revolução Francesa, a Revolução Comunista, em outras tantas, no mundo, o silenciar significa matar”. No entanto, da mesma forma em que é destacada como um erro cometido, logo é justificada, como fez o Coronel Luís de Alencar Araripe: Durante os governos dos presidentes militares houve cerceamento da liberdade, em grau variável, isto é um fato. O cerceamento deve ser avaliado sob dois aspectos. Ninguém conduz uma guerra, principalmente contra a subversão, que envolvia, além dos militantes engajados na luta armada, elementos de universidades, da imprensa, da Igreja etc., sem realizar um certo controle de opinião. Assim, foi e é em todos os países 12 ao enfrentarem a subversão .

A tortura, quando não explicada, surge como uma falha cometida. Quando justificada, pode figurar como um “mal necessário”. O Coronel Mário Dias se diz totalmente contra a tortura e narra o seguinte: Eu entendo a tortura, apenas em alguns casos. Vou citar um acontecimento. O meu quartel dava segurança para todos os generais da área. Só aos capitães dava-se esse serviço. Para compensar, os capitães tinham o direito de fazer as refeições em casa. Certa vez, um capitão, de serviço foi atacado por três terroristas que atiraram nele. Por sorte, a bala atingiu de raspão a sua cabeça. Fui avisado e, imediatamente, corri para o Miguel Couto. Consegui uma equipe de neurologistas para operá-lo, mas eles passaram a noite procurando fragmentos de ossos localizados no cérebro. Reconheço que esse companheiro, com quem não tive contato, foi uma vítima daqueles terroristas cretinos. [...] Estou contando esse caso, para dizer que, naquele momento, senti ódio. Se um 13 daqueles camaradas aparecesse na minha frente, não sei o que faria [...] .

As perseguições políticas são apresentadas, assim como outros erros, como casos de excessos por parte do governo em resposta ao radicalismo da oposição. O General Sebastião José Ramos de

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congressos e palestras, e nas organizações de esquerda, ligadas à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 36. Ibid., p. 159. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit. t. 1, p. 74. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit, t. 2, p. 247. Ibid., p. 315.

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Castro lembra que “também uma certa dose de radicalismo promoveu cassações que de outra forma não seriam necessárias, radicalismo esse manifestado, tanto por parte de setores do Governo, como da Oposição”. Ou seja, a cassação de mandatos era uma resposta ao mesmo tempo radical e coerente com a época. Os políticos da oposição “freavam” os avanços da “Revolução”, impedindo o “progresso” do país. Segundo as palavras do General Álvaro Nereu Klaus Calazans: É evidente que a escalada revolucionária foi a maneira de a Revolução e dos governos institucionalizados se armarem para fazer frente ao terrorismo. Não havia outra alternativa a não ser o fortalecimento do Poder, amparado em atos legais. Essa reação 15 deixa à mostra o caráter legalista dos governos da Revolução .

Os atos institucionais, sobretudo o AI-5, para alguns dos depoentes, foram desnecessários, embora entendessem as justificativas que, na época, haviam sido apresentadas. Ou seja, a edição de instrumentos legais que deram ao presidente amplos poderes por tempo indefinido, é vista de maneira ambígua: percebe-se a edição do ato como desnecessário, mas, ao mesmo tempo, legítima, frente às 16 “ameaças” provocadas pelas esquerdas organizadas, contrárias às arbitrariedades do regime . 17 De acordo com o General Hélio Ibiapina Lima quando questionado sobre os “prejuízos” da “Revolução” para o país, afirma que a “nova republica” freou os avanços obtidos pelos “governos revolucionários”, como a “[...] quantidade exagerada de partidos políticos” e a entrega do sistema de ensino aos “contra-revolucionários”. Desse modo, os erros encontram-se no fato de a “Revolução” ter liberado as conquistas obtidas com sacrifícios para que políticos voltados para o “revanchismo” 18 eliminassem ou deturpassem todos esses benefícios. Assim, acredita Hélio Ibiapina Lima que o sistema educacional foi “[...] entregue aos opositores do Movimento revolucionário de 1964”, facilitando que intelectuais de esquerda minassem o meio acadêmico. A educação deveria abranger toda a sociedade brasileira. Uma educação política, em que o povo prestigiasse os benefícios trazidos pela “Revolução”, pois, como ressaltou o Coronel Hélio 19 Mendes , “[...] as grandes realizações apregoadas pelos Governos da atualidade nada mais são que a destruição, a alienação ou o desvirtuamento dos acertos da Revolução de 1964”. Em relação ao surgimento de outros partidos políticos, após a abertura política, os depoentes afirmam que esse foi um erro bastante grave, pois possibilitou o enfraquecimento dos “legados” da “Revolução”. Os novos partidos não somente ignoravam os legados da “Revolução”, como procuraram estabelecer uma separação entre eles e a ditadura civil-militar. Eram cúmplices amantes que negavam 20 qualquer aproximação com as arbitrariedades do período . Não ter formado quadros políticos para ocupar estrategicamente as instituições democráticas pós-1985 foi outro erro considerado pelos depoimentos. Grande parte dos entrevistados, como o General 21 José Antônio Barbosa de Moraes , avalia que os governantes já eram demasiadamente idosos, o que dificultou posteriormente. “Hoje, não temos ninguém daqueles tempos revolucionários, com prestígio nacional, porque começamos com homens de bem, sérios, mas pessoas velhas”. A “Revolução” deveria ter criado um partido próprio, através do qual garantiria a sustentação política do governo, bem como a formação de novas lideranças políticas, como destacou o Coronel Hélio 22 Mendes . Muitos consideram ainda como erro a duração do regime, vinte anos. Conforme considera o 23 Coronel Luís de Alencar Araripe , “houve um momento em que se poderia ter desmontado do tigre, durante o Governo Médici, época áurea da Revolução, em termos de prosperidade do País e prestígio popular do Governo”. Para importante parte dos depoentes, teria sido melhor encerrar a “Revolução” no governo 14 15 16

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MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 131. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 8, p. 301. É importante destacar que os atos institucionais anteriores tiveram características autoritárias, promovendo uma verdadeira “caça às bruxas”, como apontou Samantha Viz Quadrat. Conforme destaca a historiadora, somente o Ato Institucional nº1, o AI-1, “[...] suspendeu temporariamente a imunidade parlamentar, deu autonomia ao Poder Executivo nas questões econômicas e suspendeu os direitos políticos de cerca de 100 pessoas, inclusive o próprio ex-presidente João Goulart e quase toda a sua equipe”. Ver: QUADRAT, Samantha Viz. A ditadura civilmilitar em tempo de (in)definições (1964-1968). In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 188. Ibid., p.189. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t.1, p. 264. REIS FILHO, Daniel. Ditadura e Sociedade: as Reconstruções da Memória. In: 1964-2004. 40 anos do golpe. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 207. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t.1, p. 264. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 246.

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Médici, pelo fato de que o Brasil estava passando por um momento “espetacular”. O Coronel Amarcy de Castro e Araújo afirma que se tivesse ocorrido, a “Revolução” não sofreria com ácidas críticas de hoje. Além de ser um governo marcado pelo sucesso econômico, acredita Castro e Araújo que os “terroristas” já haviam sido eliminados, o que proporcionaria tranquilidade: Diria que o término do Governo Médici, teria sido uma boa oportunidade. Sobre isso, penso que existe um consenso bastante amplo, porque o movimento revolucionário de esquerda, tendo no seu bojo a luta armada, tinha sido vencido pelos governos da Revolução. Então, não havia mais a subversão e o terrorismo, urbano e rural, que 24 justificassem uma repressão muito grande .

O longo período da “Revolução”, criticado por muitos depoentes, faz parte das avaliações que realizaram do Regime Militar. Os depoimentos não procuraram desonrar os governos da “Revolução” com as críticas sobre a duração da mesma. A organização da coleção, ao indagar sobre os erros da “Revolução”, buscou, além de interrogar o que já sabia em cada depoente, afirmar essas falhas como naturais em um processo conflituoso, representado nos depoimentos como um estado de guerra, em que o país estava mergulhado. Quando questionados sobre os erros cometidos pela “Revolução” ou se os governos revolucionários demoraram no poder, os depoentes não respondem objetivamente às questões e acabam, dessa forma, defendendo a “Revolução”. Ou, igualmente, justificam as medidas adotadas pela mesma, como consta no depoimento de Carlos de Meira Mattos: Julga o senhor que os governos revolucionários demoraram muito no poder? A intenção do Presidente Castello Branco era de que os Atos Institucionais terminassem no seu governo. Queria que seu sucessor saísse de eleições normais e passasse o governo para um civil. Inclusive, já tinha alguns nomes. [...] Foram as guerrilhas, as agressões, que, do meu ponto de vista, provocaram o prolongamento dos governos 25 revolucionários . 26

O General de Brigada Helio Duarte Pereira de Lemos , por exemplo, ao mesmo tempo em que afirma que o combate aos comunistas foi negativo, pelo fato de ter tido um “[...] excessivo rigor policial [...]”, também afirma que foi benéfico ao País, pois se fazia necessário para a tranquilidade da nação. Ou seja, ao mesmo tempo em que foi, de certa forma, errado punir os “comunistas” com um rigor excessivo, tornava-se necessária sua eliminação para a tranquilidade do país. Essa aparente ambiguidade que persiste em outros depoimentos para explicar os erros que foram cometidos pelos governos militares explicita o que, de modo geral, os entrevistadores e os entrevistados buscaram enfatizar: a conquista final (eliminação do inimigo) foi maior que os erros cometidos no percurso. Como tentativa de contar a história do Brasil e ser reconhecido fora de seu grupo, o Exército, com a coleção, encontrou uma forma de explicar à sociedade os erros que consideraram menores frente aos inúmeros acertos enumerados pelos depoentes. Na exposição dos erros, seguem as diversas justificativas para a adoção de medidas radicais. Nas lembranças dos depoentes não apareceram outros excessos cometidos, como as diversas ações repressivas, o número de mortos e desaparecidos, assim como o apoio externo conferido ao golpe e ao regime. Quando foram questionados a respeito das influências externas durante o golpe e a ditadura, poucos são os depoentes que enfatizam a participação norte-americana na deposição de João Goulart e na continuidade do regime. A maioria dos entrevistados não nega a simpatia que nutriam em relação aos Estados Unidos, sobretudo no período da Guerra Fria, porém, a montagem da “Revolução” e seus desdobramentos, segundo acreditam, foi obra de brasileiros. Os depoentes da coleção, focados na preocupação com o futuro, investiram suas narrativas na (re) construção de uma memória, que se pretende história. Que se apresentem os “méritos” da “Revolução de 1964”, em contrapartida às “falsificações” das “esquerdas”. Este é o objetivo. Mesmo que as falhas do Regime Militar apareçam pelas palavras de muitos dos colaboradores da “Revolução”, elas estão permeadas propositalmente pelos silenciamentos e pela busca do esquecimento que, conscientemente, são incorporados nas avaliações positivas que se pretendeu fazer do período. A derrota na batalha pela memória e a vitória do “revanchismo” Após o final do Regime Militar, uma produção memorialística ligada às esquerdas cresceu consideravelmente. Essa produção de memória objetivava, em seu conjunto, divulgar as agruras do 24 25 26

MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 8, p. 379. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 234. Ibid., p. 248.

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Regime Militar, como uma denúncia contra as práticas de tortura, cassações políticas e outros temas relacionados. Como denunciar era uma das formas que as esquerdas encontraram para dizer o que acreditavam ser o regime militar, aqueles que estiveram ao lado do governo, colaborando sob diversas maneiras com a “Revolução”, trataram também de divulgar as suas “versões” sobre os fatos. Diante dessa batalha pela memória, o Exército, ao publicar a coleção, avaliou que foram derrotados injustamente e, assim, acreditam que suas lembranças foram omitidas pelo “revanchismo”, que destrói a verdade dos fatos. A coleção de depoimentos considera que “os governos revolucionários”, por princípio, deixaram de fazer a devida difusão de seus acertos, assim como a defesa de seus erros. Assim, foram derrotados na “batalha da comunicação social”, como afirmam os organizadores da coleção a partir das perguntas 27 realizadas. Alguns dos depoentes, como o Coronel Aluízio de Campos Costa , não se sentem à vontade com a questão da derrota e afirmam que não executaram, adequadamente, “ações de comunicação social”. A mídia esquerdista figura como culpada pela omissão dos acertos da “Revolução de 1964”. O General de Exército Sebastião José Ramos de Castro afirma que: A mídia sofre a forte influência da tendência esquerdizante que prepondera nas Faculdades de Comunicação Social. Há, ainda, o fato de que amigos opositores desfrutaram de importantes posições nos meios de comunicação social. Os que detêm o poder atualmente receiam que o povo aumente a admiração pelos militares e recorde o tempo de paz social, progresso e estabilidade que existiu, quando presidiram os 28 destinos da Nação .

A “batalha da comunicação”, perdida pelos militares, conforme os depoimentos, teve seu início na opção que os governos revolucionários fizeram acerca da propaganda política, buscando diferenciarse de períodos anteriores, em que se utilizava estrategicamente da propaganda para promoção política. Muitos deles acreditam que estiveram, em um determinado momento, com a batalha ganha, como narra o Coronel Fracimá de Luna Máximo, Creio que sim. Estávamos com ela ganha no Governo Médici. O processo revolucionário de longa duração acabou nos fazendo perdê-la. Penso que, se esse processo tivesse terminado com o Governo Médici, o panorama da Comunicação Social seria outro. [...] Mas o próprio governo militar, não sei se por princípios, não gostava de Comunicação Social – o próprio Castello Branco e outros. Acho que nos omitimos; não queríamos 29 participar dessa “batalha” .

Os militares, durante os depoimentos, procuram diferenciar-se dos políticos, afirmando que não ambicionavam postos de comando e que procuraram sempre trazer civis para os governos da “Revolução”. Na tentativa de estabelecer essa diferenciação, também se julgam culpados pela derrota na 30 “batalha”, pois, segundo eles, não tinham visão política. Conforme o Coronel Carlos Alberto Guedes , “não nos preocupamos em valorizar e divulgar o que fazemos. Cumprimos o nosso dever com exação, humildade e seriedade, sem qualquer espécie de promoção pessoal”. Ao estabelecer uma diferenciação com outros grupos, no caso dos políticos, novamente aparece a questão identitária no grupo, de modo que procuram se representar como homens desapegados dos privilégios políticos e ligados à defesa da pátria. A identidade, aqui, pode ser verificada no processo através do qual o reconhecimento das similitudes e a afirmação das diferenças situam o sujeito histórico em relação aos grupos sociais que o cercam. Os depoimentos dos militares nessa coleção figuram, desta forma, como exemplos da afirmação de identidades sócio-históricas. A memória dos militares, 31 nesse sentido, pode ser, como nos ensinam Fentress e Wickham , uma memória social que identifica um grupo, conferindo sentido ao seu passado e definindo as suas aspirações para o futuro. E ela, quase sempre, faz exigências factuais sobre os acontecimentos passados. Os políticos são aqueles que, conforme o General Geraldo de Araújo Ferreira Braga, alinhados com o poder, buscam alianças com indignos homens, em troca de recompensas políticas. De acordo com as considerações de Ferreira Fraga, Entendo que não perdemos a “batalha da comunicação social”, simplesmente porque nunca nos engajamos dela. Tive um colega – não citarei o nome – que disse assim: “A 27 28 29 30 31

Ibid., p. 282. Ibid., p. 132. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 11, p. 211 MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 9, p. 275. FENTRESS, James; WICKHAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. São Paulo: Editipo, 1992.

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galinha põe o ovo e canta”, mas não aprendemos isso na Escola Militar. Nós realizamos, porque tempos que realizar, porque é parte do nosso trabalho, porque é parte da nossa profissão, porque é o nosso ideal, nosso amor ao Exército, porque faz parte do nosso amor à Pátria. Nós não estamos habituados a trabalhar em troca de recompensas. Acredito que a gente pense o seguinte: “O meu trabalho, os outros hão de reconhecer”. Assim pensava 32 o Presidente Castello Branco .

Segundo os depoentes, a tentativa de se diferenciar dos governantes anteriores, marcados pelas propagandas que “engrandeciam” as medidas adotadas em diversos contextos, como foi o caso de Getúlio Vargas, fez com que o regime não fosse reconhecido pela população. A imagem da “Revolução”, conforme era recomendação na época, deveria ficar longe da propaganda desenvolvida pelo governo de Getúlio Vargas, como asseguram os depoentes e a própria organização da coleção que atribui ao 33 Governo Vargas méritos em relação à propaganda . Em uma intervenção, durante o depoimento do 34 Coronel José Tancredo Ramos Jubé, o entrevistador, o General Geraldo Luiz Nery da Silva , reitera da seguinte maneira: “Getúlio Vargas está presente, até hoje, com o nome posto em várias ruas, avenidas e 35 fundações, porque, realmente, o DIP funcionou” . A partir do conjunto de depoimentos, verifica-se uma tentativa de responsabilizar alguns governantes, sobretudo o ex-presidente Castello Branco, pelo desprendimento com a propaganda em seu governo. Muitos dos depoentes atribuem à falta de propaganda das realizações da “Revolução”, em jornais e em outros meios de comunicação, como uma das razões da derrota na “batalha”, como 36 mencionou anteriormente o General Geraldo de Araujo Ferreira Braga . A perda da “batalha” também é sentida na educação, como lamentou o General Carlos de Meira Mattos. Nós perdemos não só a “guerra da comunicação social”, como também a da educação. Não soubemos, após ocuparmos o governo por vinte e um anos, orientar o Sistema Educacional Brasileiro e perdemos completamente a guerra da comunicação. Se você analisar, em quase todos s institutos de estudos superiores do Brasil, universidades, faculdades, as facções que dominam são as da esquerda, mesmo, em pequeno número. Esses elementos dominantes continuam praticando o “revanchismo”, não 37 dando chances para quem não for do grupo deles, de esquerda .

Perder a “batalha da comunicação” significa acusar as “esquerdas”, a “mídia” e os “revanchistas” de agentes contrários à propagação das vitórias da “Revolução”. Dessa forma, são derrotados pela “mentira” ou pela “omissão” utilizada, segundo os depoimentos, pelos inimigos, que tomam a comunicação social como espaço primordial de suas reivindicações. Segundo a narrativa do Coronel Helio Mendes, Esta questão faz parte da educação, em geral, e da educação política, em particular, assinalada como um dos pontos falhos em todas as políticas dos governos da Revolução, desde o inicio do Governo Castello Branco. As universidades e escolas continuaram tendo a maioria de professores de tendência esquerdista. As livrarias quase que só dispunham de publicações de esquerda – marxista e de outros teores. A

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MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 111. Ibid., p. 246. Ibid., p. 340. Carlos Fico, ao examinar a propaganda do Regime Militar, adverte que: “os militares brasileiros, evidentemente, conheciam esses tipos clássicos de propaganda (por isso sempre procuraram negar semelhanças com o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda – de Getúlio Vargas) e, mais do que isso, sabiam da repulsa que eles causavam”. FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. p.18). No entanto, é importante que se aponte o fato de que a propaganda política da ditadura mais conhecida e identificada com o período de maior repressão esteve nas mãos de militares mais moderados. Criada no governo de Costa e Silva, a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), teve então seus dias de glória, como destacou Denise Rollemberg. Segundo a autora, por trás da suposta função de relações-públicas, esse órgão atuou de fato em eficientes campanhas nacionais de grande alcance, tais como “Ninguém segura este país” e “Este é um país que vai pra frente”, criando uma imagem otimista e grandiosa do Brasil, baseada no patriotismo. Ver: ROLLEMRG, Denise. A ditadura civil-militar em tempo de radicalização e barbárie (1968-1974). In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006. 2006. p.147. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 1, p. 236.

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Revolução fez muito pouco para conter esta avalanche, em termos de Comunicação 38 Social .

A história ensinada nas salas de aula é preocupante, conforme os depoimentos, visto que cunham as expressões “Anos de Chumbo” e “Ditadura Militar” para caracterizar um governo que os depoentes acreditam ter sido benéfico ao Brasil. É a partir dessas colocações que surge a coleção, destacam os depoentes. Segundo acredita o General Rubens Bayma Denys, a importância da coletânea de depoimentos reside no fato de oportunizar: [...] para as pessoas que participaram, de uma forma ou de outra, da Revolução de 1964, relatarem os fatos dos quais tomaram conhecimento, ou de que, efetivamente, participaram. A verdade registrada para posterior avaliação pelos historiadores. Acho que a isso é muito importante. Espero que, dessa forma, a Revolução ganhe uma 39 documentação que a retrate com fidelidade; que resgate a verdade histórica .

Pensando dessa forma, alguns dos depoentes militares, diferentemente, consideram que não perderam a “batalha”, cabendo àqueles que colaboraram com a “Revolução” ou que tiveram apreço pela mesma, lembrar aos demais que os militares eliminaram o perigo comunista, assim como levaram o país ao desenvolvimento. Segundo o General Ivan de Souza Mendes, Muitos dizem que perdemos a “batalha da comunicação social”. Não concordo com a assertiva, porque a batalha está em curso. Nós não iremos perder ou ganhar a “batalha” em momento algum. Nem eles. Na verdade, estamos cumprindo o nosso papel, nesse 40 embate ideológico e cultural .

Ainda há aqueles que afirmam que não foram derrotados na batalha e o que houve foi a maximização dos excessos cometidos pelo regime, como assegurou o General Octávio Pereira da Costa. Diria que a “batalha” da comunicação não foi propriamente perdida, pois foi útil naquelas circunstâncias. No entanto, outros fatos negativos que ocorriam no submundo da repressão preponderaram como a imagem que realmente ficou. “Os gramados devastados” ou “as sentinelas que responderam mal às senhoras que pediram informações” ocorreram, aos militares, de forma muito mais cruel. Esses excessos cometidos foram maximizados e se fixaram, afinal, como a imagem definitiva. A “batalha” não foi perdida. Não se perdeu, nem se ganhou. Faz-se o que era possível 41 fazer .

Ou seja, a derrota mencionada pelos depoentes na coleção procura imprimir a ideia de que os “governos revolucionários” foram julgados injustamente pelas esquerdas e pela mídia que noticiam os excessos cometidos, como cassações, torturas e desaparecimentos, como se tivessem sido rotineiros. Dessa forma, a partir da coleção, os depoentes podem revidar as colocações da mídia e do meio acadêmico que eles consideram esquerdizante. Julgam-se derrotados porque acreditam que a “versão” que perdura em quase todos os meios sociais é daqueles que foram “derrotados nas armas”, conforme destacou Jarbas Passarinho. Muitas vezes temos visto, entre outros, conferencistas civis, da UNICAMP, da ESG também, realçarem os sucessos econômicos. Todos se referem, principalmente, à década de 1970. Fora desses institutos, entretanto, tais comentários e análises não são divulgados, porque, embora vitoriosos na parte militar, perdemos a guerra da 42 comunicação social [...] .

Como pode se constatar, eles se vêem injustiçados pela mídia e pelos intelectuais de esquerda, que se aproveitaram da inabilidade dos governos da “Revolução” e instituíram a propaganda contrária aos feitos trazidos pelos “governos revolucionários”. Embora se considerem derrotados ou não na “batalha”, os depoentes atribuem culpa às esquerdas pela manipulação da mídia e, também, a eles próprios que não souberam se utilizar da propaganda para projetar a “Revolução” como benéfica ao país. Ao culparem-se, procuram, da mesma forma, estabelecer uma diferença entre eles, os militares, e os políticos, os civis, na qual aparecem como 38 39 40 41 42

Ibid., p. 268. Ibid., p. 189-90. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 2, p. 36. Ibid., p. 84. MOTTA, Aricildes de Moraes. Op. cit., t. 5, p. 50.

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homens preocupados com a “ordem” e o “progresso” do país, diferentemente dos políticos, que segundo os militares entrevistados, preocupam-se com eles mesmos. Isto significa que, mesmo reconhecendo a derrota, não admitem a possibilidade de terem cometido erros fundamentais, sem justificá-los como necessários, que pesam no presente e que são utilizados pelos “inimigos” para julgar o período. Assim, atribuem, sempre que indagados, culpa às “esquerdas” que, de maneira ardilosa, teriam se utilizado politicamente do passado para “autopromoção”. Mas os usos do passado são também utilizados pela coleção, que procura avaliar positivamente o Regime Militar. Nessa tentativa de elogiar a “Revolução”, o passado surge necessariamente como estratégia que norteia o pensamento dos depoentes. Além do passado, questões do presente, como as pesquisas destacadas nos depoimentos, são também utilizadas para assegurar às Forças Armadas prestígio social. Considerações finais As narrativas dos entrevistados procuraram reafirmar o que o Exército acredita ter sido o período entre 1964 a 1984. Os depoentes, numa espécie de acordo, contaram quase que a mesma história sobre o período. Nas considerações sobre o governo de João Goulart à abertura política e à lei de anistia, as narrativas se tornaram repetitivas, parecendo que houve uma espécie de pacto em torno do que deveria ou não ser relembrado. Além disso, muitas entrevistas relatam episódios que algumas vezes em nada se diferenciam do que está registrado em outras fontes também produzidas pelo Exército durante a 43 ditadura. Porém, a dimensão da memória, como afirma Montenegro , mesmo quando coincide ou reproduz os significados sociais institucionalizados, oferece elementos para reflexão acerca da força das marcas das histórias que se tornaram hegemônicas. Essa colocação de Montenegro nos faz pensar na forma como a história sobre a ditadura vem sendo reproduzida e/ou (re)inventada pelo Exército. Muitos dos militares entrevistados lembraram episódios que não dizem respeito à sua história de vida, mas 44 àquilo que eles ouviram falar ou leram em livros produzidos pela corporação. Segundo Halbwachs , o que temos mais facilidade em lembrar é do domínio comum e é por podermos nos apoiar na memória dos outros que somos capazes de lembrar. A iniciativa de construir uma coleção com 247 depoimentos partiu do Exército, que acreditava responder a uma série de grupos e sujeitos, tais como as esquerdas, a mídia e aos intelectuais que, segundo acreditam, invés de narrar a “verdade” sobre a “Revolução” de 1964, caracterizam esse período como uma ditadura civil militar. Todos que participaram dessa iniciativa, desde o coordenador do projeto, o General Aricildes de Moraes Motta, os coordenadores regionais e os entrevistados deveriam oferecer subsídios para outra história da ditadura, demonstrando as “verdadeiras” iniciativas do Exército, a “patriótica” defesa da nação pelas lideranças civis e militares que estiveram na luta contra os “inimigos vermelhos”, assim como as ações dos “governos revolucionários” que levaram o país ao sucesso. Essa “versão” da ditadura foi narrada por quase todos os depoentes que formaram as redes de entrevistados escolhidos pelo Exército. Foram assim selecionados pela trajetória que tiveram durante o regime, pela amizade que tinham com os coordenadores e, sobretudo, por ainda narrarem positivamente a ditadura. A boa imagem da ditadura, construída ao longo da coleção, é reafirmada pelos depoentes em suas lembranças. Se falam com sentimento de orgulho a respeito da implementação das arbitrariedades do regime não o fazem porque são autoritários por natureza, falam porque acreditam que estavam em uma situação em que era preciso “livrar” o país dos “comunistas”. Durante as entrevistas, ficou visível que o anticomunismo foi um elemento que permeava o imaginário social daquela época e que permanece nas representações que fazem a respeito daquele contexto. Não afirmam que o país estava sendo tomado aos poucos pelos “vermelhos” apenas para conseguir legitimar um golpe de estado e a instauração de uma ditadura. Narraram os acontecimentos dessa forma porque ainda continuam acreditando que o governo estava sendo aos poucos tomado pelos comunistas e que estes pretendiam levar o Brasil à órbita soviética. O conjunto das entrevistas acabou revelando o interesse da corporação pela batalha da comunicação social. Ela representa um permanente duelo pela memória, visto que os atores sociais encontram-se vivos, além das suas instituições permanecerem dispostas em representá-los nessa luta, como fez o Exército na publicação dos depoimentos e em outras atividades. A narrativa que os depoentes fizeram acerca dos acontecimentos fez com que chegássemos à conclusão de que o Exército procurou cristalizar um discurso que servisse inicialmente à corporação e, logo depois, à sociedade civil. Essa narrativa da “revolução” e dos governos dos cinco generais presidentes deveria, segundo os organizadores, partir da corporação. Eles eram os únicos autorizados a falar com seriedade sobre o que aconteceu naqueles anos, pois representavam a “verdade”. 43

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MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral, caminhos e descaminhos. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.13, n.25/26, p.56, set. 92/ago. 93. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

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Entrevistados e entrevistadores construiriam, dessa forma, uma narrativa positiva e afirmativa da ditadura, pois ambos, na maioria das vezes pertencentes do Exército, estavam diante de uma situação em que era imprescindível pautar elogios a ditadura. A escolha da rede de entrevistados levou em conta, certamente, a maneira como o depoente representava, no momento da entrevista, a ditadura civil-militar. Como era importante para o Exército solidificar uma memória sobre o regime, as falas dos entrevistados deveriam colaborar com a visão da corporação sobre o período. Assim, foram selecionados homens que se sentiam prestigiados em falar positivamente sobre aquele período. Eram sujeitos que se sentiam na obrigação de falar, não somente porque eram militares ou porque atuaram em algum governo do regime. Falavam porque acreditavam que suas memórias poderiam ser ouvidas e/ou lidas pelos jovens da corporação e pela sociedade.

Referencias Bibliográficas: FENTRESS, James; WICKHAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado. São Paulo: Editipo, 1992. FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra de memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares. Varia História, UFMG, n.28, dez. 2002. MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral, caminhos e descaminhos. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.13, n.25/26, p.56, set. 92/ago. 93. MOTTA, Aricildes de Moraes (Coordenação Geral). 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003. 15 tomos. QUADRAT, Samantha Viz. A ditadura civil-militar em tempo de (in)definições (1964-1968). In: Martinho, Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006. REIS FILHO, Daniel. Ditadura e Sociedade: as Reconstruções da Memória. In: 1964-2004. 40 anos do golpe. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. ROLLEMRG, Denise. A ditadura civil-militar em tempo de radicalização e barbárie (1968-1974). In: Martinho, Francisco Carlos Palomanes (Org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006. 2006. TOLEDO, Caio Navarro de. Crônica política sobre um documento contra a “Ditabranda”. Revista de Sociologia, Curitiba, v.17, n.34, p.209-217, out. 2009.

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O discurso político ideológico militar em torno da guerrilha de 1965

Ronaldo Zatta

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Resumo: a intenção deste artigo é oferecer subsídios para discussão da primeira ação armada contra o regime militar no brasil, o episódio que ficou conhecido como a guerrilha do coronel cardim no ano de 1965. Valendo-se de uma fonte documental oficial almejou-se empregar a Análise do Discurso como método de apreciação deste texto litúrgico/ideológico problematizando as suas finalidades políticas vinculadas ao contexto histórico que perdurou por mais de quatro décadas. Trata-se da narrativa que expõe a versão institucional, que oculta a sua derradeira utilização em cerimonial militar até o ano de 2006, por ocasião do translado dos restos mortais do herói Tenente Camargo, sua última manifestação pública. Palavras-chave: Análise do Discurso-Ditadura Militar-Cerimonial. Abstract: the intention of this article and offer subsidies for discussion of the first military action against the military regime in brazil, episode that became known as the guerrillas in the coronel cardim in year 1965. Relying on a source document official longed to employ Discourse Analysis as a method of assessment of this liturgical text/ideological questioning their political purposes related to the historical context that has lasted for more than four decades. This is the narrative that exposes the institutional version, which hides its ultimate use in ceremonial military by the year 2006, on the occasion of the remains of the hero Lieutenant Camargo, his last public demonstration. Key-words: Discourse Analysis-military dictatorship-ceremonial.

Considerações Iniciais Em novembro de 2006 enquanto prestava serviço militar no aquartelamento do Exército Brasileiro sediado na cidade de Francisco Beltrão no sudoeste paranaense, em específico no 16º Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, por ser acadêmico de História fui designado juntamente com outros militares a compor a equipe de auxiliares do Curador do Museu Militar Tenente Camargo. Na época o museu estava aguardando autorização do Estado Maior do Exército para funcionamento, no entanto, o acervo se encontrava à amostra para visitantes e interessados. Por motivos ignorados o Estado Maior do Exército jamais autorizou o funcionamento do museu, tendo a partir de 2010 seu espaço físico ocupado por secções burocráticas militares. Sendo que seu acervo foi acomodado em depósito ou porões, e em algumas situações mais nobres expostos em salas internas como peças decorativas. Relevante para esta comunicação é que durante o período em que prestei serviço militar fui encarregado de auxiliar o curador do museu nos trabalhos de exumação dos restos Figura 1. Sargento Camargo. Fonte: mortais do herói que deu nome ao museu. Durante estes Pintura em Tela–Artista Cândida serviços obtive acesso a um documento/texto/narrativa que relata Ferrari–RJ, 2000. Exposto no o episódio em que faleceu o Tenente Camargo, considerado o Pavilhão de Comando do 16° herói militar da Operação de Contraguerrilha em 1965. Trata-se Esquadrão de Cavalaria Mecanizado de uma breve biografia do então Sargento Carlos Argemiro de em Francisco Beltrão–PR. Camargo, promovido postumamente ao posto de Tenente Camargo. O documento em anexo é um discreto relato do combate produzido pelos militares em que contam a versão oficial das operações realizadas no sudoeste 1

Doutorando em História pela UFPR – Universidade Federal do Paraná. E-mail: ronaldozatta@yahoo.com.br. Fone: (49) 8845-3559.

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do Paraná no ano de 1965, por ocasião do confronto com a tropa guerrilheira comandada pelo Coronel Jeferson Cardim de Alencar Osório. Este documento foi produzido no ano de 1977 e se tornou um padrão a ser lido anualmente nas formaturas militares em homenagem ao herói. Como visto nas anotações/rasuras no documento que segue em anexo, com o passar dos anos altera-se o nome da Organização Militar local, a data, mas se mantêm o texto/discurso a ser explanado aos civis e militares que presenciavam os cerimoniais. Ou seja, mantêm-se o discurso a ser transmitidos aos ouvintes. Como mencionado, foi em novembro de 2006, por ocasião do translado dos restos mortais do Tenente Camargo que se encontravam depositados no Cemitério Municipal de Francisco Beltrão para a Praça Tenente Camargo, localizada dentro do aquartelamento daquela cidade, tive a oportunidade de acompanhar o derradeiro uso político deste discurso direcionado ao público interno e externo à caserna. Para se analisar um discurso segundo a perspectiva foucaultiana, deve-se fugir das interpretações fáceis, unívocas ou que buscam encontrar o “oculto”, o distorcido, o cheio das “reais” intenções ou conteúdos e/ou representações imediatamente não vistas nos textos. Mas sim, analisar as relações históricas, concretas e vivas nos textos na perspectiva de uma construção histórica e política, 2 compreendendo a linguagem como constitutiva de práticas sociais. Partindo do pressuposto de que “o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas 3 uma história” julga-se necessariamente considerar o caráter histórico dos discursos através de alguns conceitos relacionados ao método de Análise do Discurso. Sem o intuito de discutir uma concepção teórica da Análise do Discurso, muito menos uma prática operacional desta disciplina, segue alguns conceitos selecionados que se apresentam como uma tentativa de problematizar o discurso ideológico incutido na narrativa militar que foi lida por mais de quarenta anos no sudoeste paranaense. A Cena do Discurso Militar No dia 17 de novembro de 2006, em formatura geral no 16º Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, fora realizado translado dos restos mortais do Tenente Camargo que se encontravam no “ossário” do Cemitério Municipal de Francisco Beltrão até a Praça Tenente Camargo no interior das instalações do quartel daquela mesma cidade. O aquartelamento se preparou para receber o herói, sua praça foi limpa, repintada; efetuados também alguns serviços de jardinagem e, ao centro do Brasão das Armas onde ficava o fuzil Mauser cravado em homenagem ao militar foi remodelado um local pelo Pelotão de Obras para que fosse acondicionada a urna funerária. A urna funerária foi transportada por comboio de blindados militares pelas ruas da cidade de Francisco Beltrão, sendo prestada ao herói uma série de honrarias militares destinadas aos chefes e heróis históricos, como escolta armada, formação de guarda, lanceiros, toque de silêncio pelo clarim, tiros de salva, entrega da bandeira nacional aos familiares e continências diversas. Um fato que comoveu os presentes no evento foi o pranto de um ex-militar que na chegada dos restos mortais dirigiu-se a urna, abraçou-a, e em prantos murmurava: “Meu amigo!”. Mais tarde se soube que este idoso se chamava Sérgio Bonetti, que na função de cabo acompanhou o Pelotão de Infantaria na perseguição aos guerrilheiros pelo sudoeste do Paraná em 1965. Quem presencia uma cerimônia militar dificilmente não se sente entrelaçado pela onda de tradição que conduz o fato. Tais construções culturais possuem diversos elementos que resgatam o passado. Esta, porém, ainda possuía um quesito ainda mais especial, tratava-se da inumação de um 4 militar do “tempo presente” , que possuía parentes, amigos e conhecidos entre os convidados. Identificações sociais, nostalgias, superações, narrações e reproduções de vividos se mesclavam e se ritualizavam através da representação presentificada durante o cerimonial de inumação dos restos mortais de Camargo. Costurou-se sobre um eixo simbólico o fato que amparado no tempo/espaço, nas narrativas e objetos militares da época legitimaram uma trajetória histórica na realização deste evento militar, com valorização reconhecida pelo grupo de militares e população civil local. Tal cerimonial de inumação prosseguiu após alguns instantes de comoção. Dando sequência ao evento, o Capitão Lourenço Rômulo Innocêncio Júnior, realizou a leitura da 2

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FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a Análise do Discurso em Educação. In: Cadernos de Pesquisa, n. 114, p. 197-223, novembro/2001, p. 198 e 199. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 146. O conceito de história do tempo presente se refere aos acontecimentos das últimas quatro ou cinco décadas, onde atitudes e atores ainda regem influência na sociedade atual e seu estudo “constitui um lugar privilégio para uma reflexão sobre as modalidades e os mecanismos de incorporação do social pelos indivíduos de uma mesma formação social”. FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, nº 3, p.111-124, maio/jun., 2000, p. 122.

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biografia/narrativa do Tenente Camargo, a narrativa produzida em 1977 foi pela derradeira vez utilizada publicamente para expor a versão militar de um episódio importante, mas tão pouco estudado pela Historiografia da Ditadura Militar Brasileira. Esta formatura/cerimonial militar movimentou a seção de Relações Públicas do quartel, qual era responsável para mobilizar autoridades civis, jurídicas e militares da região, bem como os meios de comunicação regional, professores de História, alunos do Ensino Fundamental, acadêmicos e os militares da reserva que vivenciaram os conflitos da época. Representando a família do militar homenageado compareceram ao evento a Senhora Marines Bósio acompanhada pelo seu filho. Marines é sobrinha do Tenente Camargo, e exerce a profissão de professora do Ensino Fundamental na cidade de Francisco Beltrão. Terminada a dobragem da bandeira, esta foi entregue aos familiares e baixada a urna funerária no centro da Praça. Enquanto esta cena acontecia, a guarda fúnebre composta por seis soldados executava tiros de salva. Era a segunda vez que o herói militar recebia a mesma homenagem, uma em 1965 por ocasião de seu sepultamento, e outra naquele instante, quando retornava ao aquartelamento 41 anos depois do episódio. A entrega da bandeira aos familiares pode ser pensada como um ritual extremamente simbólico, pois adquire um significado especial para cada indivíduo tendo o poder de evocar lembranças ou sentimentos particulares. Como símbolo ela representa “coisas” que são partilhadas pelos membros de um grupo, mascarando diferenciações pelo revestimento ideológico de “comunidade”; os símbolos são 5 eficientes por serem imprecisos. Findando o evento foi baixada a tampa de concreto construída para obstruir o sepulcro, e sobre ela postada uma lápide confeccionada em mármore que contia o seguinte epitáfio: “ORGULHOSOS TRAZEMOS DE VOLTA NOSSO IRMÃO DE ARMA. ELE CUMPRIU SEU JURAMENTO DEFENDER A PÁTRIA COM O SACRIFÍCIO DA PRÓPRIA VIDA”. Em ato contínuo, fixou-se um fuzil Mauser e um capacete de aço sobre o descanso do herói militar. Tanto o capacete, como fuzil, foram utilizados pelo Exército Brasileiro na década de 1960; e nesta situação se demudaram em símbolos de um militar que morreu em combate cumprindo o seu “dever”. O Contexto do Discurso Militar Antes de sair do cemitério a solenidade já estava sendo acompanhada pelos meios de Figura .2 Vista parcial do cerimonial militar - 2006. Fonte: comunicação regionais: rádios e emissoras de Arquivo pessoal do autor. TV sucursais. Em nome do Comando da Unidade, o Capitão Rômulo concedeu várias entrevistas, tanto antes como depois da cerimônia, explanando e relembrando a versão institucional/oficial do contexto que envolvera a morte do militar. Em março de 1965 quando completaria um ano de Ditadura militar instaurada no Brasil, deu início no Estado do Rio Grande do Sul uma tentativa fracassada de contragolpe em nosso país, comandada pelo ex-Coronel de Artilharia do Exército Jeferson Cardim de Alencar Osório, tendo como seu principal assessor Albery Vieira dos Santos, ex-Sargento da Brigada Militar do Estado do Rio Grande 6 do Sul. Vinda do Uruguai a guerrilha seguiu por algumas cidades dos três estados do sul do Brasil. Existe a versão de que o ex-sargento Albery, um dos exilados mais corajosos e radicais, procurou Brizola solicitando dinheiro para realizar a incursão armada e este não forneceu. Encontrandose depois com Jeferson Cardim de Alencar Osório nasceu o movimento. Cardim era parente remoto de Castelo Branco e ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), veterano militante de esquerda, despertava ódio aos militares do Exército porque quebrara a ética militar casando-se com a mulher de um companheiro e em seguida se amasiando com sua enteada, ou seja, havia perdido o respeito no 7 meio militar. Com rapidez os dois começaram a se articular, mesmo sem apoio de Brizola conseguiram juntar 5

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GUIBERNAU, Monserrat. Nacionalismo: o Estado Nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 92. MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS Publicações, 2007, p. 51. ARAÚJO, Maria Celina de; CASTRO, Celso, (Orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997, p. 124.

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mil dólares, três fuzis tchecos semiautomáticos e alguns revólveres. Arrumaram um caminhão e com 8 vinte e três homens entraram no Brasil no dia 19 de março de 1965. Com tal efetivo, em sua maioria 9 reunida em território gaúcho, surgiram as FALN – Forças Armadas de Libertação Nacional. As FALN dominaram algumas unidades da Brigada Militar gaúcha, recolhendo armas e munições destes quartéis 10 e fazendo breves proclamações revolucionárias pela rádio local. O grupo então se dirigiu para o Sudoeste do Estado do Paraná onde seus integrantes acabaram sendo aprisionados pela Organização Militar que viria a ser conhecida por esta campanha de “Sentinela do Sudoeste”, a 1ª Companhia de Infantaria instalada em Francisco Beltrão. Foi no dia 27 de março de 1965 por volta das 11 horas na região de Santa Lúcia, Município de Capitão Leônidas Marques – Pr, que ao pressentir a aproximação das tropas do Exércitos brasileiros oriundos da cidade de Francisco Beltrão, o grupo guerrilheiro realizou uma emboscada. Esta ação armada produziu uma vítima fatal que mais tarde se transformaria em herói: o 3° 11 Sargento Carlos de Argemiro Camargo, que foi alvejado várias vezes ao desembarcar da viatura. Os guerrilheiros após serem presos foram conduzidos ao 1° Batalhão de Fronteira localizado em Foz do Iguaçu julgados e condenados pela Justiça Militar subordinada a 5ª Região Militar com sede em Curitiba – PR. Posteriormente foram favorecidos pela Lei da Anistia e indenizados pelo governo brasileiro. O Enunciador do Discurso Militar Na manhã do dia 17 de novembro de 2006, o Curador do Museu Tenente Camargo, o Capitão Rômulo Innocêncio Júnior apresentou-se para o púbico da formatura militar onde realizou a leitura da biografia do herói enfatizando seu ato de bravura e a realização do juramento que todo soldado faz ao assumir o compromisso no “Dia do Soldado”: de “defender a Pátria com o sacrifício da própria vida”. A leitura proferida por este militar não tinha apenas a intenção de divulgar conhecimento sobre o Tenente Camargo, mas sim, estabelecer uma relação entre o passado, representado pelo herói, com o presente. Pois, “a retórica empregada no uso de capital simbólico deriva-se de um conjunto paralelo de retóricas 12 usadas na criação de consciência histórica”. Ao mesmo tempo Rômulo estava sendo em 2006 o porta-voz de uma causa política que mobilizou as Forças Armadas do Brasil por um longo período de Guerra Fria, e através de sua linguagem a memória estava sendo mais uma vez socializada e evocada. Era um discurso de linguagem engajada, mobilização, de ativismo, de dimensão ufanista, legitimação de ações e de uma memória política que brotava e emergia de testemunhos dentro de um quadro de sociabilidade, que foi capaz de reconstruir fundamentação comum afetivamente entre a memória individual dos soldados e dos pioneiros, pois “o poder quase mágico das palavras resulta do efeito que têm a objectivação e a oficialização de facto que a nomeação pública realiza a vista de 13 todos”. Com o término da leitura a posição de sentido fora tomada pelos militares cumprindo a ordem emanada pelo clarim, e com o tom vibrante e altivo, fora cantado o Hino Nacional brasileiro como maneira de coroar o retorno do herói à caserna. As Condições de Produção do Discurso Militar Compreendemos que as condições de produção de um discurso estão intimamente ligadas com a questão do sentido literal, ou seja, ela é constitutiva do sentido. Desta forma passam a contar desde determinações do contexto mais imediato (ligados ao momento da interlocução) como mais amplos 14 (ligados à ideologia). A bibliografia do Tenente Camargo, a narrativa do episódio e o seu sequente processo de heroicização fizeram parte de uma atividade política institucional que esteve presente nas Forças Armadas após 1964. Ainda hoje o Exército como instituição nacional promove e idealiza ações com o intuito de valorizar e nutrir a memória. Tal memória foi/é fundamental para o sentimento nacional e elaboração de consciência política e identidade comunitária dentro de um pensamento romântico da construção de um herói, utilizando para isso uma série de conjuntos simbólicos com fins políticos. O texto em anexo foi produzido em 1977, dentro de um contexto amplo, qual procurava legitimar ações através da figura construída de um herói militar, vinculada a um ato tido como heróico (morrer pela 8 9

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GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 192. USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça. Brasília: Editora Ser, 2006, p. 130 e 140. MITCHELL, Op. Cit. AUGUSTO, Agnaldo Del Nero. A grande mentira. Rio de Janeiro: Bibliex Editora, 2002, p. 169. STRATHERN, Andrew e STEWART, Pamela J. “Global, nacional, local: escalas móveis, temas constantes”. In: BARROS, João Rodrigues (Coord.) Globalização e identidade nacional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 56. BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 117. ORLANDI, Eni Pulcinelli. A Linguagem e seu funcionamento. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 149.

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pátria) que por sua vez pertencia a uma ideologia/formação ideológica militar. Num contexto próximo das condições de produção podemos referenciar a política de promoção dos comandantes nas Forças Armadas através do conceito que premia as ações que valorizem a história da Instituição Militar. Ações que podem ser exemplificadas como a construção de monumentos, elaboração de pesquisas históricas, nomenclaturas históricas, confecção de estandartes e heroicização de figuras históricas. Ou seja, os comandantes que realizam este tipo de ações estão mais próximos das promoções seguintes previstas em seu plano de carreira, e futuramente ao generalato. Os Enlaçamentos no Discurso Militar Dominique Maingueneau convenciona o termo “enlaçamento” como os processos pelos quais 16 um texto de uma formação discursiva reflete sua própria enunciação. Ou seja, a dupla possibilidade de ler uma obra: a primeira como um texto doutrinário ligado a uma instituição (define um ideal enunciativo); e a segunda como uma tematização de regras que atuam nas comunidades discursivas ligadas a esta instituição (seus integrantes e comunidade local). A narrativa analisada neste estudo se identifica na classificação dada por Maingueneau como um texto de “quarto grau”, pois revela uma doutrina institucional dada pelo posicionamento político do Exército; descreve um ideal enunciativo da própria instituição para com os seus integrantes e às comunidades discursivas ligadas ao Exército; e por último, transmite essa doutrina que coincide com a descrição do ideal enunciativo. Ideal enunciativo que se confunde com o percurso/história da Instituição Militar com a descrição do mundo e a definição do ideal enunciativo do texto. A narrativa voltada a heroicização do Tenente Camargo teve finalidade de proporcionar uma tipificação de conduta desejada aos integrantes do Exército, apolítica e comprometida com os deveres militares, ou seja, evitar o surgimento de novos “lamarcas”. Ao mesmo tempo, estava voltada para inculcar na população civil a crença de que o Exército devia ser visto com o guardião da nação e defensor dos preceitos morais ameaçados pelos guerrilheiros comunistas. E que está vigilante a isso, sendo necessário para o desenvolvimento saudável da nação. A trapaça discursiva que segue o percurso temático da “salvação da pátria” foi usada milhares de vezes 17 pelos que falavam a palavra do poder depois de 1964. Neste sentido cabe-se reafirmar que o elo 18 crucial entre o fazer e o dizer de uma comunidade representa o ponto cego do discurso. As interdições do Discurso Militar O filósofo Michel Foucault supõe que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem a função de conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua 19 pesa e temível materialidade.

Segundo este mesmo autor, o procedimento de exclusão mais conhecido é a interdição, pois não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer 20 um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Da mesma forma o discurso em forma de narrativa ao Tenente Camargo realizado em 2006 passou por um processo de triagem e adequação a situação presentista. Um tópico importante que deve ser ressaltado é que, no ano de 2006, em todas as entrevistas e notas à imprensa foram excluídos os termos “Brizola” e “comunistas”. Houve um pedido do Comandante 16° Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, o Major Marcelo Lorenzini Zucco, que não se fizesse referências ao líder nacionalista da década de 1960, Leonel Brizola. Segundo ele não havia intenção de alimentar antigos conflitos políticos, mas sim relembrar o ato heróico do militar que cumpriu o juramento de “DEFENDER A PÁTRIA, SE PRECISO FOR, COM O SACRIFÍCIO DA PRÓPRIA VIDA!”. Da mesma forma foi excluído na leitura da narrativa em anexo o termo “guerrilheiros”. A narrativa lida no cerimonial militar era embasada subjetivamente de aconselhamento e fortalecimento comum, articulada ao sacrifício do militar e recheada de mensagens de identidade cívica e cidadania social que emocionou os presentes. Mas o mais interessante foi adaptação da narrativa ao tempo presente, as 15

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Formação ideológica deve ser compreendida como “uma visão de mundo de uma determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de ideias que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo”. FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 1988, p. 32. MAIGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989, p. 69. FIORIN, Op. Cit., p. 41. MAINGUENEAU, Op. Cit., p. 70. FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 2010, p. 8. Idem, p. 9.

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exclusões dos termos, como já referenciado: “Brizola” e “comunistas”. Não se trata de uma forma de reconstruir um passado histórico dito “apropriado”, mas sim, de uma nova forma de contar o velho e de adaptação do discurso às necessidades do presente e da sociedade contemporânea. Pois as identidades mudam com as gerações, transformando seu conteúdo representativo, muitas vezes afrouxando as suas raízes. A viúva do Tenente Camargo, Maria da Penha de Camargo, foi convidada, mas recusou o convite de participar da cerimônia alegando não estar em condições de saúde para se deslocar de Curitiba para a cidade de Francisco Beltrão. Também afirmou que pelo trauma que viveu pela viuvez no recémcasamento, preferiu nunca mais retornar a Francisco Beltrão. Seu filho também residente na capital do Estado do Paraná, Carlos Argemiro de Camargo Junior, médico patologista, agradeceu a atitude do Comando Militar, mas segundo ele próprio, por motivo de trabalho, não pode comparecer. É evidente que Maria da Penha também possua motivos pessoais para não comparecer ao evento! Pois ela ainda recebe a pensão do falecido, mesmo constituindo união estável, o que não é permitido por lei. Conversas informais afirmam que o receio de perder a pensão de viuvez fez a mesma não comparecer ao cerimonial. No entanto, esta questão não fez parte do discurso oficial manifestado pela instituição durante o evento. Outro caso de interdição do discurso lido no evento foi a versão de que o tiro que matou o Tenente Camargo fora um “tiro amigo”. Sempre houve relatos dentro do aquartelamento do Exército de Francisco Beltrão, vindo particularmente dos militares mais antigos, que apresentam a “tese do tiro amigo”. Entretanto, jamais houvera qualquer manifestação formal sobre o assunto, talvez pela complexidade do tema, pois se trata de um caso político que ocorreu durante o Governo Militar, os participantes ainda estão vivos e há o medo de represálias ou punições logo, tudo isso ainda possui reflexo no tempo presente. Evidentemente, acredita-se que se este fato por ventura acorreu, não fora intencional, e tenha sido um acidente. Mas tens a convicção de que a divulgação de uma ocorrência deste nível seria interditada. Admitir uma notícia (erro) deste porte no contexto de conturbação política em que o país vivia no ano de 1965 seria admitir a incompetência das Forças Armadas nas Operações de Contraguerrilha. O que se apresenta aqui são apenas hipóteses baseadas nas conversas informais que perambulavam dentro do aquartelamento de Francisco Beltrão durante o cerimonial militar. Os Efeitos de Sentidos no Discurso Militar Eni Orlandi nos ensina a pensar o discurso não como uma transmissão de informação, mas sim como efeito de sentidos entre os locutores, e esta é uma questão para realização de uma análise do 21 discurso. Neste sentido, cabe ajuizar que ainda em 2006 a Instituição Militar continuava realizando a paidéia política regional, utilizando como instrumento de produção o discurso de uma causa política que agitou as Forças Armadas no século passado. Tendo como materialidade a construção simbólica de um herói militar, qual se efetivou como um mecanismo e atividade prática que o Exército brasileiro utilizou para consolidar através de símbolos materiais e imagéticos a luta contra comunismo no sudoeste do Paraná, convinha exemplificar a toda a nação através da institucionalização do herói militar Tenente Camargo. Sabemos que a sociedade aceita algumas instituições e costumes, os quais julgam positivos, selecionam hábitos que consideram bons e os inculcam em seus integrantes. No entanto, nem sempre estes hábitos são produtos do discernimento da consciência de cada um. A formação do cidadão é trabalhada através da formação de consciência histórica e cívica; modelos, vidas exemplares, rituais cívicos entram nesta formação constituindo um ser nacional, de classe e regional, munido com noções 22 de valores, ordem, lei e justiça. Assim ocorre a valorização de uma memória como identidade. Um Interdiscurso no Discurso Militar Trata-se de interdiscurso a interação que determinadas formações discursivas mantém com outros textos ou enunciados, abrigando novidades, imitações, mudanças ou continuidades. Interceptar os interdiscursos dentro de um texto seria perceber o seu caráter de complementaridade e interdependência. Para Foucault não há enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se 21 22

ORLANDI, Op. Cit. LOVISOLO, Hugo. A memória e a formação dos homens. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 1628, 1989, p. 16-23.

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apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja. [...] Não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de 23 coexistências.

Neste sentido, considerar a “interdiscursividade” significa deixar que aflorem as contradições, as diferenças, inclusive os apagamentos, os esquecimentos; enfim, significa deixar aflorar a 24 heterogeneidade que subjaz a todo discurso”. Torna-se adequado afirmar que um determinado discurso é um espaço de troca entre vários discursos precedentes, ao mesmo instante que um discurso político ideológico pode ser pensado através do viés de reapropriação. Dentro da narrativa em anexo ao tratar do Tenente Camargo, percebe-se o interdiscurso presente no seguinte trecho: Assim, não devemos esquecer jamais o dignificante gesto do Sargento CARLOS ARGEMIRO CAMARGO, pois a esmo encarna a espiritualidade heróica das palavras de um militar brasileiro, no passado:/ SEI QUE MORRO, MAS O MEU SANGUE E DE MEUS COMPANHEIROS, SERVIRÁ DE PROTESTO SOLENE CONTRA A INVASÃO 25 DO SOLO DE MINHA PÁTRIA.

O discurso/narrativa analisada apresenta esta associação de forma não ocasional com a morte do Tenente Camargo, morto de forma duvidosa no sudoeste do Paraná, com um herói da Guerra do Paraguai que se deu em sacrifício. Sendo esta afirmação legitimada pelo dado de que Camargo não fora voluntário para o combate à guerrilha, sendo escalado contra sua vontade, e que tentou se ausentar 26 alegando trabalhos burocráticos acumulados. Sabe-se que todas as sociedades instalam seus “guardiões” do sistema e dispõem de certa 27 técnica de manejo das representações e símbolos. O Exército produziu durante o Regime Militar um “sistema de representações” que traduziu e legitimou uma ordem. E neste caso, se utilizou da força do 28 heroísmo, “que tem a finalidade moralista, servindo para avaliar e dirigir capacidades e condutas”. Deve ser levado em consideração também que o Estado, durante o Governo Militar, avocou para si o papel de criador da identidade nacional, responsável simultaneamente por promover o progresso e manter acesa a memória nacional. O que o fez com certo sucesso no que tange o processo de heroicização do Tenente Camargo, que pode ser identificado como uma das maiores construções simbólica na luta contra a “subversão” no Brasil militarizado.

Considerações finais No campo da guerra psicológica, durante a segunda parte do século XX, a instituição militar elaborou a construção de uma memória coletiva com base comum em prol do recém instaurado Governo Militar, servindo-se para esta tarefa em âmbito simbólico do culto ao ‘herói’ como forma de educar civicamente a população em geral em relação à política bipolar da Guerra Fria. Amparado no episódio que envolveu as tropas do Coronel Cardim, o Exército elaborou a maior, e talvez a mais bem-sucedida, edificação simbólica de luta contra a “subversão” no período. E que mesmo com a ameaça comunista extinta, o referido herói militar permanece fazendo parte do cotidiano da população local através dos signos a ele relacionados. Sinal de que a construção de sua tradição foi um objetivo alcançado em plenitude. Além disso, é no imaginário que ele ainda vai perdurar por muito tempo, pois seguidamente um soldado recruta durante o seu serviço noturno de guarda o quartel, vê vulto ou ouve ruídos nas proximidades da Praça Tenente Camargo, o onde que por enquanto, é o seu descanso.

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FOUCAULT, Op. Cit., 1986, p. 114. FISCHER, Op. Cit., p. 212. O texto supracitado trata-se de uma mensagem enviada pelo Tenente Antônio João Ribeiro, Comandante da Colônia Militar de Dourados na Província de Mato Grosso momentos antes de tombar em combate. Em dezembro de 1864 enquanto liderava um efetivo de quinze homens acabaram fuzilados por tropas paraguaias ao defender a colônia. Em sua homenagem foi erguido monumento lhe dado o título de Patrono do Quadro Auxiliar de Oficiais do Exército brasileiro. Entrevista com o Subtenente da Reserva Sessuaf Micessuaf Polanski, Sargento Rádio-operador do Exército na Operação de Contraguerrilha de 1965. FÉLIX, Loiva Otero. A fabricação de carisma: a construção mítico-heroico na memória republicana gaúcha. In: FÉLIX, Loiva Otero; ELMIR, Cláudio P. (Orgs.) Mitos e heróis: construção de imaginários. Porto Alegre: Ed. Universidade /UFRGS, 1998, p. 142. MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. São Paulo: Editora Contexto, 1997, p. 10.

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Fontes de primárias FERRARI, Cândida. Retrato-Sargento Camargo. 2000. 1 original de arte, óleo sobre tela, 50 cm x 40 cm. Pavilhão de Comando do 16° Esquadrão de Cavalaria Mecanizado. LIVRO DE MEMÓRIAS SOBRE O TENENTE CAMARGO. 16° Esquadrão de Cavalaria Mecanizado. Referências Bibliográficas ARAÚJO, Maria Celina de; CASTRO, Celso (Orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997. AUGUSTO, Agnaldo Del Nero. A grande mentira. Rio de Janeiro: Bibliex Editora, 2002. BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, nº 3, p.111-124, maio/jun., 2000. FÉLIX, Loiva Otero. A fabricação de carisma: a construção mítico-heroico na memória republicana gaúcha. In: FÉLIX, Loiva Otero; ELMIR, Cláudio P. (Orgs.) Mitos e heróis: construção de imaginários. Porto Alegre: Ed. Universidade /UFRGS, 1998. FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a Análise do Discurso em Educação. In: Cadernos de Pesquisa, n. 114, p. 197-223, novembro/2001. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986. FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 2010. FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 1988. GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia das Letras, 2002. GUIBERNAU, Monserrat. Nacionalismo: o Estado Nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. LOVISOLO, Hugo. A memória e a formação dos homens. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 16-28, 1989. MAIGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989. MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. São Paulo: Editora Contexto, 1997. MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS Publicações, 2007. ORLANDI, Eni Pulcinelli. A Linguagem e seu funcionamento. São Paulo: Brasiliense, 1983. STRATHERN, Andrew e STEWART, Pamela J. “Global, nacional, local: escalas móveis, temas constantes”. In: BARROS, João Rodrigues (Coord.) Globalização e identidade nacional. São Paulo: Atlas, 1999. USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça. Brasília: Editora Ser, 2006. ANEXO I Narrativa sobre o Tenente Camargo. Fonte: Livro de Memória ao Tenente Camargo – 16° Esquadrão de Cavalaria Mecanizado – Francisco Beltrão – Pr.

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III – Ditadura e Aparatos Repressivos

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Anos de chumbo: uma análise dos aparelhos de repressão na ditadura civil militar e suas influências no Maranhão. Wilson Pinheiro Araújo Neto1

Resumo: Tomando como estrutura básica a teoria gramsciana, este artigo tem como objetivo analisar o processo de montagem e articulação do aparelho repressivo na Ditadura Civil Militar considerando variadas análises da historiografia que perpassam pelas diversas práticas repressivas nos campos políticos, social e cultural no Brasil e suas influências no Maranhão. Neste sentido, daremos ênfase Às práticas de alguns órgãos criados na época e seus desdobramentos no campo das relações culturais, políticas e sociais com base na documentação do departamento de ordem política e social encontrada no Arquivo Público do Estado do Maranhão que solidifica e confirma as análises apresentadas pela historiografia referentes a macro-organização dos aparelhos de repressão em todo o país. Palavras-chave: teoria gramsciana- repressão- ditadura civil militar- maranhão. Abstract: using the theory of antonio gramsci, this article aims to analyze the assembly process and articulation of the repressive apparatus in civil military dictatorship considering various analyzes of historiography that move through the various repressive practices in the political, social and cultural development in brazil and its influences in maranhão. In this regard, we emphasize the practices of some bodies created at the time and its developments in the field of cultural, political and social basis of the documentation department of political and social order found in the Public Archives of Maranhão that solidifies and confirms the analyzes presented by historiography concerning the macro-organization of the apparatus of repression throughout the country. Keywords: theory repression gramscian-civil-military-maranhão dictatorshipthis

1. Introdução Repressão: segundo um dicionário virtual, significa um recurso violento empregado oficialmente 2 contramovimentos sociais, dissidentes, revoltas populares e etc. Este vocábulo, portanto, tem um 3 espaço significativo na história da Ditadura Civil Militar no Brasil. Momento histórico marcado por práticas que desencadearam, muitas vezes de forma negligente, um duro processo de perseguição contra aqueles que se opunham aos militares, principalmente a partir da implementação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. No entanto, é necessário não datar o processo mais efetivo da repressão somente a partir do AI-5, uma vez que os atos institucionais anteriores e as próprias medidas tomadas pelos órgãos de repressão, a exemplo do DOPS (departamento de ordem política e social), tiveram início já no momento imediatamente posterior ao golpe. O historiador Carlos Fico, afirma que é necessário descobrir novas fontes provenientes do 4 governo ou em arquivos sigilosos ·. Neste aspecto, Fico afirma que embora tenhamos, de modo geral, assimilado as notícias de que os militares queimaram ou deram fim a essas fontes, os arquivos dos antigos DOPS nos possibilitam um vasto objeto de análise para pesquisas. No arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM) muita dessas fontes se quer foram tocadas, o que abre um leque de possibilidades 1

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Graduando do 7° período do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do NUPEHIC (Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea). Bolsista FAPEMA pelo Projeto de Organização, Indexação, Informatização e Publicização do acervo documental sobre História Contemporânea presente no Maranhão, sob coordenação da prof. Drª Monica Piccolo. Disponível em http://www.dicionarioinformal.com.br.Acessado em 03 de março de 2013. Apropriação do termo de René Dreifuss que aponta a participação da sociedade civil como preponderante para a concretização do golpe militar. O artigo aqui apresentado, assim, compartilha dessa opção conceitual defendida por Dreifuss, em sua obra “1664: A Conquista do Estado” que enfatiza a participação dos civis, reunidos no complexo IPES/IBAD, não só na organização do golpe militar de 1964, como também na ossatura material do Estado que se configura a partir de então. FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.167-2005.

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para pesquisas e análises acerca da estrutura da ditadura civil militar no Maranhão. Entre o vasto acervo documental, podem ser encontrados testamentos, dossiês, cartas, publicações de jornais, ofícios de subversão, dentre outros. Os trabalhos desenvolvidos sobre o tema na região nordeste tem sido cada vez mais cobiçados pelos historiadores que se debruçam sobre o regime militar, contemplando os desejos de Gorender em mergulhar nos fatos isolados e obviamente descentralizar as discussões sobre a repressão no eixo Rio-São Paulo ou na região sul. Neste artigo analisaremos o processo de repressão considerando aspectos determinantes para entender a Ditadura Civil Militar, como a criação de alguns órgãos pelos militares para “estabelecer a ordem”, principalmente no campo cultural; a censura a jornais e movimentos artísticos; as estruturas de espionagem que, segundo Carlos Fico, chegavam a criar situações em volta de um cidadão que poderia suspeito ou não, que porventura ameaçaria a moral dos militares, sendo considerados subversivos a ponto de serem torturados ou até mortos; as propagandas que eram lançadas com a proposta de legitimar um “bem-estar social” e maquiar as sequelas provenientes das repressões do regime militar. Nos Apropriaremos, ao longo do trabalho, do corpo teórico elaborado por Antônio Gramsci, principalmente os conceitos de “batalha cultural” e binômio coerção/consenso no contexto da “operação limpeza desencadeada imediatamente após a deposição de Goulart. A partir destes aspectos, procuraremos entender em determinados momentos o quanto os aspectos culturais no regime militar estiveram inteiramente conectados com a disputa de poder de diferentes grupos que lutavam pela hegemonia. Órgãos a exemplo do IPES/IBAD que eram instituições criadas com a proposta de elaborar e publicizar projetos políticos que por sua vez eram defendidos por diferentes classes que almejavam chegar ao poder. Logo, o momento em que são apresentadas organizações com uma estrutura ideológica e política, para Gramsci, tornam-se mais prováveis e sólidas as chances de se conquistar a 5 hegemonia. Para esta análise utilizaremos uma fonte primária a documentação produzida pelos agentes do Dops reunida no Arquivo Público do Estado do Maranhão. Foi realizado O trabalho de mapeamento e fotografia de documentos, dossiês, recortes de jornais, fichas de subversivos entre outros. Dentre as diversas documentações analisadas nos chamou a atenção um caso, ocorrido no Rio Grande do Sul em 1966, conhecido como “caso das mãos amarradas”. Foi encontrado no rio Guaíba o corpo do ex-militar Manoel Raimundo Soares boiando com as mãos amarradas. No entanto, porque usar como objeto de análise tal documentação uma vez que a mesma não relata um caso específico no Maranhão? A resposta será construída ao longo deste artigo sustentando a hipótese que a historiografia recente já aponta: a existência de um sistema complexo e muito bem organizado contra aqueles que se opunham ao projeto milita. Desta forma notaremos na sustentação de diversos projetos vislumbrados e até mesmo concretizados pelos militares, está presente a montagem de um aparelho repressivo que não ficou em segundo plano. Muito antes pelo contrário, a macroestrutura encabeçada pelos militares com a intenção de punir, torturar, privar e até matar em nome da manutenção da ordem do aparelho estatal gerou um clima de tensão na sociedade civil do Brasil durante o regime militar. 2. Os militares e a nova ordem social Os militares da “linha dura”, sob o comando do então Presidente Artur da Costa e Silva, protagonizaram aqueles que podem ser considerados os momentos mais conturbados da História social do Brasil em relação à liberdade de expressão e valorização dos direitos humanos. A partir da implementação do AI-5 estavam estabelecidos os novos parâmetros para uma caracterização de uma ordem social. Os militares estavam mobilizados para protegerem-se dos movimentos de contestação que surgiram com grande efetividade a fim de questionar o regime e suas práticas. 6 Segundo Thomas Skidmore os militares, mesmo depois do golpe, divergiam com os moderados até acerca das instâncias que os atos de repressão por parte do governo deveriam ser praticados. Embora os militares da linha dura aparentemente estivessem tentando atuar dentro da legalidade, os atos de repressão contra os subversivos continuavam. Carlos Fico, em um texto intitulado: Espionagem, 7 polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão apresenta alguns motivos que impulsionaram a instauração do mais famoso dos atos institucionais como os inflamados discursos de Marcio Moreira Alves que defendiam a greve das mulheres dos militares contra seus maridos. Apresenta ainda a vontade primária que era fechar a Câmara dos Deputados realizando uma segunda edição da “Operação Limpeza”. No entanto, muito mais do que dissolver a Câmera dos Deputados (fato que o presidente anterior, Castelo Branco, já havia feito) um dos grandes trunfos do AI-5 foi a possibilidade de 5 6 7

COUTINHO, Carlos Nelson, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989. SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.p.165 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira,2003,p167-2005

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cassação de mandatos de alguns políticos, o confisco de bens daqueles que enriqueceram ilicitamente e a redução do poder do habeas corpus. Ainda como inovação e peculiaridade do AI-5, temos a não demarcação do tempo em que perduraria o ato institucional. Diferentemente dos outros que tinham “data pra terminar”, o AI-5, por sua vez, não tinha prazo de validade. Nesse contexto de constantes e mudanças por partes dos militares, houve uma ampla reordenação dos órgãos governamentais e de seus instrumentos de atuação. Os IPM’s (Inquéritos Policiais Militares), por exemplo, eram vítimas do discurso da ineficiência e de que a “Revolução” não estava sendo concretizada devido à demora em julgar os processos; a “Comissão Geral do IPM” era inicialmente de responsabilidade dos policiais civis. Depois do AI-5, entretanto, foi editado um novo código de processo penal militar em que todas as delegações e responsabilidades foram passadas aos militares, sob o discurso da eficiência e da rapidez. O fato é que os “linhas-duras” organizaram um forte aparelho repressivo muito bem estruturado. Estas análises, portanto, correspondem estrutura Gramsciana de busca pela hegemonia. Este processo, além de ser feito em longo prazo, é realizado somente pela classe que se encontra no poder e que lidera a constituição. As modificações sociais para Gramsci só serão possíveis precedidas de um projeto cultural bem articulado, como diz Carlos Nelson Coutinho na sua obra: Gramsci: um estudo sobre seu 8 pensamento político. Para Gramsci, a cultura seria um meio privilegiado para romper com o individualismo e despertar nos homens uma consciência universal. Esta base cultural, além de gerar uma consciência de valor da sociedade humana (pressuposto ético do socialismo), seria ainda uma sólida construção de base do socialismo antes da tomada do poder. Neste sentido, percebemos a presença de um projeto cultural por 9 parte dos militares (no contexto gramsciano seria a Sociedade Política ) que se articulara com a criação de órgãos, a exemplo da Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas) que foi responsável por montar todo um aparato de propaganda para sustentar os ideais do projeto militar. 3. Uma “superestrutura de repressão” Mediante ao novo momento em que os militares tomam as rédeas do poder, surge a necessidade de criar uma nova estrutura pra combater aqueles que ameaçavam a ordem do País. Nesse contexto, percebemos que alguns órgãos de repressão vão sendo criados a fim de não dar brechas às constantes práticas de contestação que consecutivamente também vão se intensificando no período da ditadura através dos jornais e as diversas manifestações culturais. Inicialmente, o SNI (Serviço Nacional de Informações) que era a instituição responsável pelas informações, desde as fases de conspirações anterior ao golpe, foi criado também o Sistema Federal de 10 Informações e Contra-Informações (SFICI) criado por Golbery do Couto e Silva Golbery, o ministro Chefe da Casa militar, o general Jayme Portela de Melo e o próprio presidente Costa e silva se tornaram figuras essenciais para entender as origens da repressão. Com o passar do tempo, as competências do Conselho de Segurança Nacionais foram somente aumentando. Estava sendo montada no país uma estruturada rede de espionagem para monitorar os subversivos. A criação da Assessoria Especial de Segurança (AESI) se deu bem mais por capricho e pelo prestígio dos seus chefes, ou seja, as AESI’S eram a assessoria de um “órgão macro”, subordinada ao Conselho de Segurança Nacional para auxiliar nas investigações e nas práticas de espionagem. Destaca-se nesse aparato de repressão em construção a elaboração do “Plano Nacional de Informações”, aprovado pelo SNI, que se tratava de uma zona de espionagem que passaria, a partir daquele momento a fazer parte do conjunto. Outra criação dos linhas-duras foram os falados CODI-DÓI ou DÓI-CODI que aliavam a simples prática de colher informações e executar as penas e as torturas designadas. Segundo Carlos Fico, o DÓI fazia todo o processo de sondagem e recortes de jornais, ficando encarregados de juntar as provas. Já o CODI punia, torturava e até matava. Havia mais órgãos internos, como o Centro de Informações do Exército, o CISA (Centro de Informação de Segurança da Aeronáutica) e o CENINAR que era o da Marinha (considerado o mais violento dos três). Cabe lembrar que todos esses órgãos específicos foram criados com um objetivo principal que era lutar contra a subversão. No Maranhão, nas fontes disponíveis no Arquivo Público do Estado, se encontram várias listas de cidadãos que eram julgados por militares como “subversivos” e que muitas vezes nem sabiam que eram notificados. A criação deste macroaparelho formado para reprimir os “subversivos” chegou a 8 9

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COUTINHO, Carlos Nelson, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003,p175-2005

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extremos como julgar banalmente qualquer cidadão que vivesse uma rotina um pouco diferente dos demais. No entanto, se de um lado a vida cotidiana de um trabalhador comum é abalada, os policias pertencentes a muitos desses órgãos também não poderiam se expor sob o risco de sofrer represarias. Um fato importante de se destacar é que o discurso para legitimar perante a sociedade a atuação de muitos desses órgãos foi o combate à luta armada e às guerrilhas urbanas que, segundo os militares, estavam por vir. Embora se tivesse tais acontecimentos, mesmo depois do fim das “guerrilhas” os órgãos continuaram atuando de forma efetiva. O foco, entretanto, é alterado: a disseminação das ideias socialistas e do comunismo pregados pelos PCB agora seria o novo argumento para legitimar a atuação dos órgãos de repressão. Outro aspecto que vale ressaltar foi à criação do Sistema CGI (Comissão geral de investigações) que consistia na punição de homens públicos que se envolviam em escândalos de 11 corrupção e enriquecimento ilícito .No entanto, este funcionou por pouco tempo já que muitos militares estavam também envolvidos em crimes de corrupção. Logo, este serviu principalmente para intimidar os inimigos a não entrarem na “onda de corrupção” 4. Censura: criação ou adaptação? No campo da censura, é importante frisar que esta sempre existiu no Brasil e que nunca foi difícil de difícil execução. Ao pensarmos nas práticas de censuras mais significativas, aquelas realizadas pela ditadura civil militar é o maior objeto de estudo por sua intensidade e temporalidade. Assim sendo, não se trata de uma criação da censura pelos militares no pós 1964, mas sua adequação aos moldes da ditadura. No texto Cães de Guarda: entre jornalistas e censores, Beatriz Kushnir define os militares como agentes intensos na censura no Brasil, focando principalmente nos cruzamentos que se davam entre os jornalistas que eram censores ou vice-versa, em outros casos de jornalistas que eram policiais e também censores. A autora afirma que as empresas jornalísticas poderiam também ser vistas como clãs, feudos, oligarquias partindo do pressuposto que os principais jornais do eixo Rio-São Paulo-Jornal do Brasil, O Globo, Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, são ou foram pelo menos até pouco tempo empresas 12 familiares . 13 Destacamos ainda a censura prévia, citada por Carlos Fico, como uma medida de proteção dos militares para que não fossem liberadas quaisquer publicações. A censura prévia consistia na análise das publicações de artigos e matérias que eventualmente poderiam significar uma afronta ao Regime militar podendo ser divulgadas ou instantaneamente vetadas. No âmbito musical não foi diferente. Em entrevista ao “Estado de São Paulo”, em 30 de Janeiro de 2005, Odete Lanziotti, funcionária aposentada da polícia federal e ex técnica de censura nos anos 70, relatou situações pelas quais teve que vetar músicas ou responder alguns processos por liberação de músicas que supostamente abalariam a moral do Estado. 5. O caso “mãos amarradas”: do rio grande do sul ao maranhão Como já exposto anteriormente, tanto o Sistema Nacional de informações (SNI) quanto as AESI’s, o SFI, entre outros, foram órgãos criados com o objetivo de obter um sistema unificado que fosse capaz de controlar todo o aparelho de repressão. No Maranhão, a sede do Dops estava localizada exatamente na Secretaria de Segurança Pública no Estado do Maranhão. Não sabemos ao certo quando a documentação do caso mãos amarradas deu entrada na Secretaria de Segurança na época do Regime. No entanto, em 1991 esta documentação chegou a Arquivo Público do Maranhão através do Projeto “Memórias Reveladas” apresentando nomes de grandes personalidades do Brasil e do Maranhão. Durante as pesquisas no Arquivo Público do Estado do Maranhão nos deparamos com a documentação de um caso que ocorrido em outro canto do país. O caso “Mãos Amarradas” ocorreu no Rio Grande do Sul. Tratava da morte de um dos líderes do “movimento legalista”, Manoel Raimundo Soares, que apoiava a restituição do Governo João Goulart que fora deposto pelos militares. O Sargento foi preso o Rio Grande do Sul em 1966. O caso ficou conhecido nacionalmente pela característica de sua

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FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.175-2005 KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: entre jornalistas e censores. In: REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe militar e a ditadura civil militar 40 anos depois(1964-2004) Bauru, SP: Edusc 2004. FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.190-2005.

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brutalidade. O corpo foi encontrado com as mãos amarradas no Rio Guaíba no dia 24 de agosto . A documentação trata basicamente da solicitação da reabertura das investigações do caso “Mãos Amarradas” pelo reformado militar da Aeronáutica, Mário Ranciaro, que acusava militares do III Exército pela morte do sargento Manoel Soares e ainda pelo assassinato de Hugo Kretschoer que teria sido o autor do crime. No recorte do Jornal Folha da Tarde, de quatro de janeiro de 1980 (figura 1) foi publicado a solicitação de abertura do processo contra os militares acusados do crime. É importante 15 destacar que neste momento o AI-5 já fora extinto , que possibilitou a reabertura do processo sem a 16 intervenção dos militares no julgamento dos possíveis culpados . Mesmo com a Lei da Anistia decretada pelo governo Figueiredo em 1979, não seriam isentos de investigações. Em outra documentação, temos um ex-deputado destacando que a reabertura da investigação do caso “Mãos Amarradas” seria de grande importância para a moral do país, (figura 2) destacando a dificuldade de investigar a própria polícia. Essa resistência da política em investigar a polícia não é surpresa quando eles estão envolvidos. Basta recordar o recente caso do sequestro dos uruguaios Lilian Celibert e Universindo Dias, até hoje não solucionados. Ex-deputado do MDB Airton Basnarque, Jornal do Brasil 15/01/80

Foram encontrados ainda registro das reações dos militares no intuito de reverter o quadro das investigações a seu favor. O tenente Ranciaro seria submetido a um exame de sanidade mental pela Junta Médica Superior da Aeronáutica. O advogado do tenente, no entanto, entrou com um recurso para evitar os exames. (figura 3) 6. Gramsci no contexto da repressão Diante do exposto podemos destacar um aspecto importante na Ditadura Civil Militar brasileira: as subdivisões entre os próprios militares, que por sua vez, não se limitaram somente ao início do regime (linhas duras e os moderados), mas depois do cancelamento do AI-5. O fato é que os militares não eram homogêneos. Havia disputas endógenas e projetos que estavam em disputa pelo controle da ossatura material do Estado. A morte do sargento Manoel Soares, assim, pode ser considerada como um reflexo de tais disputas. A morte do sargento Manoel pode ser lida como um a derrota da fração dominada da classe dominante. No caso específico, a derrota de um determinado projeto de defesa da legalidade e do poder constituído pelo então presidente, democraticamente eleito, João Goulart. Em uma perspectiva gramsciana, nos primeiros momentos do golpe, predomina a repressão como instrumento garantidor do exercício do poder por aqueles que controlavam o Estado Restrito: os militares. A “Operação Limpeza” foi, portanto, foi um reflexo do predomínio da repressão na Ditadura Civil Militar. Ao longo do tempo, na proporção que os níveis de repressão diminuem, inicia-se o movimento de tentativa de construção do consenso, exemplificado, por exemplo, pela participação da Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas) que foi encarregado de organizar um novo projeto de divulgação dos ideais militares. Segundo Carlos Fico, os jargões do “desenvolvimento”, “mobilização da juventude”, 17 “fortalecimento do caráter nacional”, “amor a pátria” entre outros , foram criados na tentativa de disseminação das novas estratégias do governo de legitimar seus projetos, um quadro bem diferente do início da ditadura como o exemplo do “ame ou deixe-o”. Segundo Gramsci, um determinado grupo conquista a hegemonia através de dois pilares: um de coação ou dominação e o outro através do direcionamento intelectual ou consenso. Na ditadura civil militar brasileira não foi diferente. Quando tivemos um determinado enfraquecimento da repressão como modo de coação, os militares partem para outro projeto: o consenso a fim de consolidar um determinado 18 projeto da classe dominante. 7. Conclusão A documentação analisada para a produção deste artigo nos despertou o interesse para 14

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Disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/o-caso-das-maos-amarradas-prisao-e-mortede-um-sargento-nacionalista/; Jornal O estado de São Paulo,12,outubro de 1979, série: Avulsos, Pasta: 12, Cod: 07 Fl.125.APEM. Emenda constitucional nº 11 que declara extintos os poderes discricionários estabelecidos pelo AI-5 e demais legislações repressivas no dia 13 de outubro de 1978 e extinto definitivamente no dia primeiro de janeiro. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record,2001 p.251 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins de século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2003,(p193-195), 2005. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

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comprovar a eficiência do projeto de repressão proposto pelos militares. Um fato ocorrido no outro canto do país chega ao Maranhão podendo ser lido como reflexo da macro organização de punição a quem se opunha ao projeto militar. Foram, portanto, representações de uma “cadeia nacional” montada pelos instrumentos de repressão no Brasil. Quando citamos Gramsci, estabelecemos uma relação da cultura com a hegemonia. A batalha cultural é pensada como um projeto anterior a conquista do poder. Gramsci 19 observa na cultura um meio privilegiado de romper com o individualismo . No desfecho da história da ditadura civil militar, percebemos que as manifestações culturais foram preponderantes pra a consolidação das “Diretas já”. A proposta foi apresentar a montagem e as articulações feitas pelos militares para não deixar invadir pelos movimentos de contestação, perceber ainda que o projeto da ditadura civil militar em si foi muito bem articulado, capaz ainda de sobreviver por 20 anos. 8. Imagens * Figura 1. Jornal O Estado de São Paulo s/d , série: Avulsos, Pasta: 12, Cod: 07 Fl.125.APEM.

*Figura 2. Jornal do Brasil Jornal do Brasil. 15/01/80 série: Avulsos, Pasta: 12, Cod: 07 Fl.125.APEM.

*Figura 3. Jornal Folha da Tarde, 12,junho de 1979, série: Avulsos, Pasta: 12, Cod: 07 Fl.124.APEM.

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Carlos Nelson

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8. Fontes e Referências Bibliográficas Documentação Dops-Arquivo Publico do Estado do Maranhão Avulsos, Pasta: 12, Cod: 07 Fl.124 http://www.dicionarioinformal.com.br/repress%C3%A3o/ http://www.documentosrevelados.com.br/repressao/o-caso-das-maos-amarradas-prisao-e-morte-de-umsargento-nacionalista/ COUTINHO, Carlos Nelson, Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989. FICO, Carlos. Além do golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record,2001 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lícília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins de século XX. Rio de janeiro :Civilização Brasileira,2003,p167-2005 DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação politica, poder, e golpe de classe. Rio de janeiro: vozes, 1987. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: entre jornalistas e censores. In: REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe militar e a ditadura civil militar 40 anos depois(19642004) Bauru,SP :Edusc 2004. SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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Ângelo Cardoso da Silva: Herzog gaúcho Graziane Ortiz Righi

Resumo: Este artigo tem por objeto apresentar uma nova versão sobre a morte do militante do M3G, Ângelo Cardoso da Silva, que foi declarado pelo regime civil-militar como suicídio. Entretanto devido as evidências localizadas no Inquérito Policial, aberto para investigar a morte, é possível evidenciar que não se trata de suicídio, mas sim de assassinato. Este questionamento sobre as reais evidências da morte de Ângelo só é possível, pois há precedentes na ditadura civil-militar brasileira e por ainda não termos acesso a toda documentação referente ao período o que possibilita a dúvida. Palavras-chave: golpe civil-militar - resistência - tortura

Introdução Início dos anos setenta no Brasil, a repressão do Regime Militar se intensifica, as organizações de esquerda que optaram pela luta armada começam cair uma a uma. No Rio Grande do Sul não é diferente. Um preso político é encontrado morto em sua cela no Presídio Central, nesse período. Sua morte é tratada como suicídio, entretanto as fotos do Inquérito Policial, encontrada no Arquivo Judicial Centralizado do Rio Grande do Sul, questionam essa possibilidade, pois o corpo encontrava-se com um lençol amarrado ao pescoço e com os joelhos dobrados, sem vão-livre para sua queda, o que impossibilitaria o enforcamento. Segundo informações do Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (19641985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Ângelo Cardoso da Silva nasceu em 27 de outubro de 1943 (contava com 26 anos quando morreu), em Santo Antônio da Patrulha (RS), filho de João Cardoso da Silva e Celanira Machado Cardoso. No inquérito policial consta como nome do pai Oswaldo Cardoso da Silva, o nome da mãe é o mesmo. Ângelo era motorista de táxi. Iniciou seus estudos primários aos 24 anos, quando também passou a se interessar pelas questões políticas do país. Era militante da organização Marx, Mao, Marighella, Guevara, o M3G, que atuava restritamente na região sul do país. Ângelo morreu aos vinte e dois dias de abril de 1970, segundo a versão oficial se suicidou com um lençol em sua cela no Presídio Central. De acordo com o Dossiê Ditadura, o boletim da Anistia Internacional de março de 1974 denuncia a morte de Ângelo como tendo ocorrido em “circunstâncias misteriosas”. O relator do caso (232/96) na CEMDP, general Oswaldo Gomes Pereira, apresentou voto pelo indeferimento do pedido, alegando falta de provas da motivação política de sua prisão. Nilmário Miranda pediu vistas e, em 27 de agosto de 1996, apresentou um parecer favorável comprovando sua participação política, sendo o caso aprovado por unanimidade. O livro Dos filhos deste solo de, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, trata a morte de Ângelo como assassinato, mas também apresenta a versão do estado como suicídio. Sobre a fonte a ser trabalhada, ou seja o Inquérito Policial, é necessário levar em conta, que tudo aquilo que chegou até nós não chegou por acaso. Todo documento envolve saberes, poderes e intencionalidades. Nesse sentido, a objetividade do documento – o qual parecia apresentar-se por si mesmo como uma prova histórica para a historiografia tradicional, desde que fosse testada a sua autenticidade – que se opunha à intencionalidade do monumento é uma ideia superada. Sabemos que toda fonte histórica deve ser vista como um “documento-monumento”, conforme definido por Jacques Le Goff: longe de ser um resíduo imparcial e objetivo do passado, o documento é carregado de intencionalidade; sua produção e sua preservação resultam das relações de força que existiram e existem nas sociedades que o produziram. Estas premissas se fazem necessárias, principalmente nesta documentação que vamos trabalhar, pois analisaremos um inquérito policial aberto para simular um possível assassinato, tratado como suicídio. Outros casos de falso suicídio O questionamento sobre as circunstâncias da morte do militante do M3G, Ângelo Cardoso da Silva, só é plausível, por não se tratar de um caso único. Há precedentes na história da ditadura civilmilitar brasileira de casos de mortes, geralmente de pessoas que não resistiram a tortura, serem divulgados pelo governo como suicídio para ludibriar a opinião pública e como tentativa de encobrir seus crimes. O caso mais emblemático desta situação é a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, no 132


entanto há outros casos de “falso” suicídio como o do metalúrgico Manoel Fiel Filho, militante do PCB, morto no início de 1976 e do tenente da reserva da Polícia Militar de São Paulo, também militante do PCB, José Ferreira de Almeida, morto em 1975. A morte de Vladimir Herzog teve grande repercussão na mídia, por trata-se de um jornalista, e também entre a população. Seu assassinato foi um dos mais divulgados e documentados do período da 1 ditadura, sendo considerado um marco na luta de resistência. Vlado, como era chamado entre os amigos, era secretário do jornal “Hora da Notícia, na TV Cultura de São Paulo, e chegou a diretor do departamento de telejornalismo da emissora. Exercia sua profissão movido pela proposta de que a imprensa deveria cumprir sua responsabilidade social. Defendia que a TV Cultura deveria produzir um jornalismo profissional não subserviente ao Estado e que, mais do que educativo ou cultural, fosse 2 público. Além disso era professor da Universidade de São Paulo e teatrólogo. De acordo com o Dossiê, agentes do DOI-CODI/SP tentaram prender Herzog na noite de 24 de outubro de 1975 em sua casa, mas ele não estava lá. Seguiram para a sede da TV Cultura, onde ele estava trabalhando. Lá após algumas negociações entre jornalistas e agentes ficou acertado que Herzog se apresentaria no dia seguinte na sede do DOI-CODI. Como combinado ele compareceu sem escolta policial, no dia 25 de outubro de 1975. Era acusado de ligações com o PCB. Sua prisão e morte foi consequência da “Operação Jacarta” que procurava atingir entidades influentes da opinião pública, essa, por sua vez, fazia parte da “Operação Radar”, que objetivava uma grande ofensiva do Exército, iniciada em 1973, para dizimar a direção do PCB. Segundo a versão oficial, Herzog teria se enforcado com o cinto do macacão de presidiário que vestia. A farsa foi desmascarada pelo testemunho de seus companheiros de prisão, Rodolfo Konder e Jorge Benigno Jathay Duque Estrada, jornalistas presos na mesma época no DOI-CODI, que foram acareados com Vlado. Logo após, permaneceram próximos à sala onde ele se encontrava sendo interrogado, de onde ouviam com nitidez seus gritos, o barulho de pancadas e as ordens do torturador para aplicação de choques. O IPM instaurado para apurar a morte de Herzog concluiu que ele se suicidara exatamente como noticiado pelo Comando do II Exército. A morte por suicídio foi desmentida pelas próprias contradições existentes nos depoimentos dos médicos legistas Harry Shibata, Arildo de Toledo Viana e Armando Canger Rodrigues, prestados na ação judicial movida pela família, cuja decisão foi dada em 27 de outubro de 1978. Essa ação declaratória terminou por responsabilizar a União pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog. A falsidade de seu suicídio ficou flagrante na foto em que aparece nas dependências do DOICODI paulista, pendurado nas grades de uma janela, sem vida, com um cinto amarrado ao pescoço e com os joelhos dobrados, supostamente enforcado, ainda que não houvesse vão-livre para a sua queda. Evidências inquestionáveis da tortura foram, ainda, identificadas pelo comitê funerário judaico responsável pela preparação do corpo para o funeral. Por essa razão, Herzog foi enterrado dentro do cemitério e não em área separada, como são tratados os suicidas no judaísmo. O sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo lançou um abaixo-assinado com denúncia pública, questionando a versão oficial de suicídio. Dom Paulo Evaristo Arns dirigiu um 3 culto ecumênico, concelebrado com o rabino Henry Sobel e com o reverendo Jaime Wright. Poucos meses depois da morte de Vladimir Herzog, outro preso político que estava sob custódia DOI-CODI/SP foi morto, mas a versão oficial era de suicídio. Manoel Fiel Filho era operário metalúrgico e militante do PCB, foi preso em 16 de janeiro de 1976, às 12h, na fábrica onde trabalhava por dois homens que se diziam funcionários da prefeitura. Puseram-no num carro, foram até sua casa, que foi vasculhada por eles. Nada encontraram que pudesse incriminar Fiel Filho. Diante de sua mulher – Thereza de Lourdes Martins Fiel – foi levado para a sede do DOI-CODI do II Exército, afirmando que ele 4 voltaria no dia seguinte. Manoel foi torturado e, no dia seguinte, acareado com Sebastião de Almeida, 5 preso sob a mesma acusação. Posteriormente, os órgãos de segurança emitiram uma nota oficial afirmando que Manoel havia se enforcado em sua cela com as próprias meias, naquele mesmo dia 17, por volta das 13 horas. Contudo, segundo os depoimentos de seus companheiros da Metal Arte, onde ele trabalhava e tinha sido preso, o calçado que usava era chinelos, sem meias, contrariando a versão oficial. Além disso, seu corpo 1

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Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p 627 Idem, p. 626. MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p, 343. Sebastião Almeida, o Deco, vendia bilhetes de loteria na portaria da Metal Arte e era militante do PCB. Distribuía alguns exemplares do periódico Voz Operária e recolhia contribuições financeiras para o jornal. Informações retiradas de Idem. p, 350. Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 636.

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apresentava sinais evidentes de torturas, hematomas generalizados, principalmente na região da testa, pulsos e pescoço. Um fato que demonstra a responsabilidade dos órgãos de segurança pela morte de Manoel Fiel Filho é o afastamento do general Ednardo D’Ávila Mello da chefia do II Exército, ocorrido três dias após sua divulgação. O mesmo que tinha atuado no caso de Vladimir Herzog, portanto sua imagem já estava bastante desgastada. O presidente da República, general Ernesto Geisel, também tirou da chefia do CIE o general Confúcio Danton de Paula Avelino, acirrando uma crise com o ministro do Exército, Sylvio Frota, que foi demitido no ano seguinte. O exame necroscópico, solicitado pelo delegado de polícia Orlando D. Jerônimo, e assinado pelos médicos legistas José Antônio de Mello e José Henrique da Fonseca, confirma a versão oficial. Fiel Filho foi enterrado por sua família no Cemitério da IV Parada, em São Paulo. O Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos, organizado pela comissão de familiares, apresenta um documento de 28 de abril de 1976, assinado por Darcy de Araújo Rebello, procurador militar, onde pedia o arquivamento do caso alegando que as provas apuradas são suficientes e robustas para nos convencer da hipótese de suicídio de Manoel Fiel Filho, que estava sendo submetido a investigações por crime contra a segurança nacional [...] Aliás conclusão a que também chegou o ilustre 6 Encarregado do Inquérito Policial Militar.

Outra fonte sobre o assunto encontra-se no livro A Ditadura Encurralada, de Elio Gaspari, onde há outras informações sobre o caso. O seguinte relato foi recebido do Serviço Nacional de Informações pelo capitão Dias Dourado, assistente do general João Batista Figueiredo, então chefe do SNI: – Nominado [Manoel Fiel Filho] era casado com dois filhos e não há qualquer sinal de violência no corpo. – foi encontrado estrangulado com uma meia de nylon de homem. Não está 7 caracterizado suicídio.

Pelo sétimo dia de morte de Manoel foram celebradas três missas, noticiadas pela imprensa, cujos recortes, com carimbos do Setor de Análise da Delegacia Especializada de Ordem Social, foram encontrados nos arquivos do DOPS/SP, nos quais se lê que uma das missas contou com mais de 400 8 pessoas. Houve manifestação dos religiosos que as celebraram contra as torturas e as prisões. A morte de José Ferreira de Almeida também aconteceu de forma obscura, com o estado afirmando ser suicídio, mas as evidências apontando para assassinato. José era tenente da reserva da Polícia Militar de São Paulo e militante do PCB. Foi preso dia 7 de julho de 1975, aos 64 anos de idade, com outros militantes e vários policiais da PM, acusados de serem membros do PCB. Sua prisão, assim como de Vladimir Herzog, foi consequência da “Operação Radar”, que objetivava dizimar a direção do PCB. Passou um mês incomunicável, sofreu torturas físicas e psicológicas. Depois de várias tentativas seu advogado conseguiu visitá-lo, em 7 de agosto, no DEOPS/SP. Pois, após o AI-5 era permitido que as autoridades policiais mantivessem o preso em seu poder por dez dias sem comunicar o fato à Justiça 9 Militar, contribuindo para a institucionalização das torturas. Na visita o advogado pôde observar o quanto Almeida se encontrava abatido, tenso, com sinais bem visíveis de tortura. Ele teria dito ao advogado que temia ser morto. No dia seguinte, segundo nota do Exército, apareceu morto, enforcado “ao amarrar o 10 cinto do macacão que os presos utilizavam a uma das grades da cela”. Seu corpo foi velado no Hospital Cruz Azul da Polícia Militar, com a presença de agentes de segurança do II Exército. O caixão foi aberto pelo advogado e familiares, que puderam constatar as torturas sofridas. Depoimentos em auditorias militares dos presos políticos major Carlos Gomes Machado, capitão Manoel Lopes e tenente Atílio Geromin denunciaram as torturas sofridas por José Ferreira. O atestado de óbito foi assinado pelo mesmo médico-legista Harry Shibata, que atestou as 6

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Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 637. Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 637. Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p, 637. MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p, 332. Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. p. 616.

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farsas de Herzog e Fiel Filho. Shibata atesta como causa da morte asfixia por constrição do pescoço. Assina ainda o atestado de óbito Marcos Almeida. O documento dá a data da morte como 8 de agosto de 1975, em hora ignorada. Foi encontrado no arquivo do DOPS/SP um relatório da Enfermaria do II Exército onde se vê que, além das torturas e maus-tratos, José Ferreira de Almeida sofreu com uma 11 úlcera duodenal, sendo atendido nos dias 8,10,14,19 e 20 de julho e 3 de agosto. Em A Ditadura Encurralada, de Elio Gaspari, o assunto é tratado: O tenente reformado José Ferreira de Almeida, o Piracaia, tinha 64 anos e mais de vinte anos de militância [...] No princípio de agosto, deitado num colchão da carceragem do DOI, despediu-se de um capitão: “Eu não agüento mais...vou morrer [...] O II Exército informou que no dia 8 de agosto Piracaia se enforcara. Teria amarrado o cinto do macacão à grade da cela, de forma que seu corpo pendeu com as pernas dobradas e os pés no chão. Segundo o SNI, Piracaia se matara “quando havia indícios de que iria nomear os prováveis contatos em outras áreas militares”. Oficialmente era 36° preso a se suicidar dentro de uma prisão da ditadura, o 16° enforcado, o sétimo a fazê-lo sem 12 vão livre.

As três mortes relatadas aconteceram todas em São Paulo com pouco tempo de diferença entre si e foram reconhecidas como mortes efetuadas pelos agentes da repressão. A morte de José Ferreira de Almeida ocorreu na mesma cela onde foi “encenado” o suicídio de Vladimir Herzog. Outro fato importante a ser ressaltado é que a morte de Ângelo Cardoso da Silva ocorreu anos antes a esses casos mais divulgados de falso suicídio, o que configura uma prática comum da ação repressiva. M3G O nosso objeto central de pesquisa neste artigo era militante do M3G, dessa forma algumas informações sobre a mencionada organização são importantes, para assim compreender o nível de envolvimento do nosso personagem com o grupo de resistência. A organização Marx, Mao, Marighella e Guevara, conhecido como M3G, foi constituída em meados de 1969 por Edmur Péricles Camargo. Segundo Fábio André Gonçalves das Chagas, o grupo foi 13 responsável pelo desencadeamento das ações armadas no Rio Grande do Sul. Edmur havia lutado ao lado de Carlos Marighella na Aliança Libertadora Nacional (ALN), em São Paulo, mas também já tinha atuado no Rio Grande do Sul pelo partido comunista no final dos anos cinquenta e inicio dos anos sessenta, regressou ao estado em abril de 1969 por divergir da estratégia postulado por Marighella para enfrentar a ditadura. No livro Guerra é guerra, dizia o torturador (1981), de Índio Vargas, que fazia parte da luta armada do PTB, ele descreve seu encontro com Edmur quando foi procurado por este em sua casa: “um negro, alto forte, aparentando 50 anos, bem-vestido, [...] cabeça raspada a navalha [...] maneiras polidas, 14 palavra fluente, linguagem característica de um homem de esquerda”. O objetivo de Camargo era conseguir o apoio de Índio Vargas para suas ações no estado de expropriações para arrecadar fundos para a guerrilha. Em depoimento de Vargas, no Seminário Internacional Carlos Alberto Tejera de Ré, em maio de 2012, o interlocutor afirma que Edmur Péricles Camargo havia saído de São Paulo, pois acreditava que a linha de combate de Carlos Marighella estava muito “fraca”, que era preciso ações mais fortes para combater o regime, assim ele veio buscar apoio no Rio Grande do Sul. Vargas entrou em contato com seu grupo no PTB e juntos decidiram apoiar Edmur. A ajuda era o empréstimo de um apartamento de Índio, localizado na Avenida Borges de Medeiros, de onde se começou a articular contatos com membros de outras organizações, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária- Palmares (VAR-Palmares) e o Partido Operário Comunista (POC). Os militantes do M3G, de forma geral, se aproximavam mais do ideário nacionalista de esquerda do que com o comunismo, devido a influência de Índio Vargas que indicara nomes trabalhistas para compor o grupo. Outros nomes de apoio que compunham o grupo são citados por Fábio Chagas, como: Jorge Fischer Nunes, João Batista Rita, Paulo Roberto Telles Franck, este com curso de guerrilha em Cuba e o Tenente Dario Vianna dos Reis, oficial reformado do exército. A chácara deste ex-oficial era uma importante base de articulações, planejamentos de ações e guarda de 11

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MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p, 333. Gaspari, Elio. A Ditadura Encurralada, p. 159 in Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. P 617. CHAGAS, Fábio André Gonçalves das. A luta armada gaúcha contra a ditadura militar nos anos de 1960-1970. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Rio de Janeiro: UFF, 2007.p, 236 VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. p, 40.

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armamentos (CHAGAS, 2007, p.242). Davi Ruschel, em sua dissertação de mestrado, afirma que a primeira ação do M3G foi a expropriação da agência da Caixa Econômica Federal localizada na Rua José do Patrocínio, em 13 de junho de 1969. A ação foi realizada por Edmur e Jorge Fischer Nunes e obteve sucesso: expropriaram 5 mil cruzeiros novos e uma arma “Taurus”, calibre 38, do soldado da Brigada Militar que estava no local. Na época a polícia não viu vínculo político na ação. Outra ação do M3G ocorreu em 23 de julho de 1969, e agora contava com a ajuda direta de Índio Vargas, o objetivo era expropriar a agência do banco Sulbanco localizada na esquina da Avenida Protásio Alves com Barão de Amazonas. Nessa ação obtiveram melhor resultado: 18 mil cruzeiros novos. Novamente a suspeita recaía sobre suspeitos comuns. Após a expropriação, Edmur voltou a São Paulo para restabelecer contato com a ALN, seguindo orientação de Índio Vargas que ressaltava a importância das ações no Rio Grande do Sul contar com o apoio de outra organização. Entretanto, neste ínterim ocorre o assassinato de Carlos Marighella, no início de novembro de 1969, e toda a cúpula da Aliança Libertadora Nacional entra na total clandestinidade, dificultando o contato de Edmur, este por sua vez, retorna ao estado decidido a continuar sua luta armada. Mas O Grupo Armado do PTB e o POC decidiram não apoiar mais as expropriações. Neste mês, devido a morte de Marighella, a situação complica: ocorreram as prisões dos freis que ajudavam os perseguidos políticos saírem do país pela fronteira do Uruguai. O próprio Fleury veio até o Rio Grande do Sul interrogar Frei Beto, que estava em um seminário em São Leopoldo. O retorno de Edmur marca a entrada de João Batista Rita, o “Catarina”, no grupo. A partir desse momento o grupo recebe o nome conhecido: M3G, uma homenagem a pensadores e combatentes de esquerda. As ações continuam, mesmo com a saída de alguns militantes. A organização prepara-se agora para uma expropriação em Cachoeirinha, cidade vizinha da Capital, a ação fica marcada por uma confusão policial na tentativa de captura dos “assaltantes”. Após a expropriação, realizada com sucesso, o carro utilizado para a fuga estraga, Edmur acaba fugindo com o dinheiro, de ônibus, enquanto os outros companheiros tentam consertar o carro. Nesse momento a polícia passa pelos militantes, estes estavam decididos a enfrentá-los, mas devido a uma confusão de informações os policiais passaram reto continuando a perseguição a outro carro. Segundo Ruschel, a polícia teria se enganado quanto ao carro a ser perseguido, além do fato do sargento da Brigada Militar que recebera a informação pelo rádio, por trata-se de um brizolista passou a informação errada, mudando o modelo e a cor do carro. Essas informações foram obtidas em entrevista realizada pelo autor com o militante Jorge Fischer Nunes que teria encontrado o oficial brizolista, tempos depois na prisão. A próxima ação do grupo contou com a ajuda de Ângelo Cardoso da Silva, este, como já citado, era motorista de táxi e tinha dirigido para o grupo durante a expropriação de um banco no bairro Tristeza, 15 próximo a Sexta Delegacia de Polícia . Fábio André Gonçalves das Chagas, em sua tese de doutorado, afirma que Ângelo já tinha participado de outras ações como motorista e que após essa expropriação teria recebido dinheiro para comprar outro veículo e regulamentar a documentação, o que demonstra certo despreparo do grupo, pois como eles iriam realizar “assaltos” utilizando carro legalmente registrado facilitando, assim, a repressão policial. Ainda nesta ação o grupo deixou afixado no vidro da agência uma carta aberta ao ministro da fazenda Delfim Neto criticando a política econômica do governo. A partir deste momento a repressão percebeu tratar-se de ações revolucionárias e não apenas assaltos efetuados por bandidos, assim o DOPS passa a conduzir melhor as investigações. Nos meses seguintes outras organizações de esquerda, como a VPR, realizaram ações de expropriações, enquanto a M3G em associação com a VAR-Palmares e FLN realizaram uma grande expropriação no Banco do Brasil de Viamão, localizado ao lado do quartel da Brigada Militar, uma ação bastante arriscada e audaciosa, que obteve sucesso e grande destaque na mídia, a qual já vinha noticiando essas ações de cunho político estampando a foto do Edmur e ligando os fatos ao Carlos Lamarca. Nesta ação, segundo Chagas, Ângelo teria participado. Embora a expropriação tenha inicialmente dado certo, seu desfecho, segundo Jorge Fischer Nunes, foi primordial para a queda do grupo. As armas utilizadas foram descobertas pela polícia que logo chegaram ao nome do ex-tenente Dario Vianna dos Reis que tinha ajudado na ação. Nunes, como relata em seu livro, logo caiu preso também. Mas o fato que mais chamou atenção das autoridades para as ações da luta armada no estado foi a tentativa de seqüestro do cônsul americano, Curly Curtiss Cutter, realizada pela VPR em 4 de abril de 1970. Uma ação mal planejada que não obteve sucesso e aumentou ainda mais a repercussão na mídia dos atos “terroristas”. Nas palavras de Davi Ruschel: “as consequências dessa tentativa de seqüestro se abateriam sobre todos, pois a ação frustrada serviu para alertar os órgãos de repressão 16 para o que estava ocorrendo em Porto Alegre”. Membros da OBAN, os mais fortes torturadores, vieram 15 16

Jornal Zero Hora, 29 de janeiro de 1970. RUSCHEL, Davi Arenhart. Entre risos e prantos: as memórias acerca da luta armada contra a ditadura no Rio

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para o sul para coordenar as operações de busca dos guerrilheiros, a ordem era prender e torturar. A partir dessa maior profissionalização da repressão, com as prisões e torturas sistemáticas, as quedas foram aumentando cada vez mais, e foram sendo desmontadas sistematicamente as poucas organizações de luta armada que atuavam no RS, caindo 17 nas mãos da ditadura a maior parte dos que haviam optado pelas armas.

No dia 17 de abril de 1970, o Secretário de Segurança Pública, junto com o comandante da Brigada Militar divulgaram o resultado da operação, com os nomes dos presos “subversivos”, o material apreendido, as ações descobertas até o momento, a aparelhagem e quais militantes haviam participado de cada ação. Dias depois, no jornal Folha da Tarde de 28 de abril de 1970 são divulgados os nomes dos guerrilheiros presos, entre eles Paulo de Tarso Carneiro e Índio Vargas que afirmam ter divido cela com Ângelo Cardoso da Silva, embora seu nome não conste na famigerada lista, à época da sua reclusão no presídio Central que resultou na sua morte. Inquérito Policial: Análise do Processo/Documento No Inquérito Policial as informações de capa constam como delegado responsável, Ben-Hur Moreira, do 11° Distrito Policial, da Polícia Civil. Como natureza do fato, suicídio, e o fato ocorrido no dia 22 de abril de 1970, às 16h no Presídio Central de Porto Alegre. O inquérito para investigação foi aberto no mesmo dia do ocorrido. Desde o início se trabalha com a certeza do suicídio, pois na abertura do inquérito já se afirma o fato de que “[...] o presente inquérito policial foi elaborado em razão de um SUÍCIDIO [...]” (p. 2). Consta que o fato ocorreu na sela 38, do pavilhão A do presídio Central. No processo não há o motivo da prisão de Ângelo e nem quanto tempo estava preso. Há apenas uma referência, no depoimento do policial que encontrou o corpo, sobre o fato de Ângelo tratar-se de preso político, assim como outros presos que estavam no presídio central, há ainda a afirmação que estes presos estavam incomunicáveis uns com os outros e a disposição do DOPS. Como “testemunhas” do fato foram ouvidas os dois investigadores que faziam a guarda: Aloncio Cardoso de Souza e Osmar Ribeiro da Cruz. Os policiais afirmaram que foram levar café da tarde ao preso e o encontraram morto nas dependências sanitárias da cela e ainda que nesse dia, Ângelo, apresentara comportamento normal, quando pela manhã tinha lavado roupa e almoçado normalmente. Nas palavras de Aloncio, durante seu depoimento: [...] constataram que o mesmo se encontrava enforcado por um lençol, dependurado na janela basculante interna da cela; que a vítima usou seu próprio lençol para enforcar-se; que Ângelo encontrava-se de joelhos no piso, de frente para a parede, as mãos postas no peito [...]

Apenas nesse breve trecho podemos salientar indícios que não foi suicídio por enforcamento. Primeiramente, o corpo foi encontrado de joelhos, não havendo altura suficiente para o deslocamento e o consequente enforcamento. O policial afirma que Ângelo tinha as mãos postas no peito, isto não seria possível, pois o corpo encontrava-se ajoelhado, com o tronco na vertical, assim, as mãos estavam estendidas ao longo do corpo. Aloncio afirma que não sabia quanto tempo o preso estava recluso, “mas deveria ser mais ou menos um mês” (p. 5), não sabia o motivo da prisão, apenas que o preso estava a disposição do DOPS e mantinha bom comportamento, “que o suicida nunca reclamou de nada, era quieto e pouco falava” (p. 5). Ainda neste depoimento, o agente informa que o fato foi logo comunicado, através de rádio, ao diretor do DOPS e que logo em seguida chegou a polícia técnica. No depoimento de Osmar Ribeiro da Cruz, este afirma que foi chamado pelo seu colega, Aloncio, até a cela 38, pois o preso não estava sendo visto e nem tinha respondido ao chamado, ambos achavam que o preso tivesse fugido, quando chegou até a cela a porta já estava aberta e entrou na cela, deparou-se com o corpo de Ângelo Cardoso da Silva “que estava dependurado com um lençol no pescoço [...] e com os joelhos rentes ou encostado no chão; que o suicida amarrou o lençol na janela basculante que tinha mais ou menos um metro e trinta de altura [...]”. Neste depoimento temos uma nova informação que corrobora com a hipótese de não suicídio: o fato da janela ter apenas um metro e trinta de altura, impossibilitando haver altura suficiente para a suspensão do corpo e o consequente estrangulamento.

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Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre: UFRGS, 2011. p, 57 Idem, p. 58.

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Interessante ressaltar que os depoimentos foram colhidos no dia 22 de novembro de 1973, portanto três anos após o ocorrido, o que configura uma maior dificuldade dos depoentes relembrarem, corretamente, os fatos presenciados em 1970. Além disso, o ano de 1973 é marcado pelo final da luta armada no Brasil, quando a esquerda estava praticamente dominada pela repressão, bem diferente do contexto de 1970, principalmente no Rio Grande do Sul, quando as organizações de esquerda e luta armada estavam desenvolvendo várias ações contra a ditadura, o que, consequentemente, causou o endurecimento do regime. Após os depoimentos dos policiais foram juntados ao processo o Auto de Necropsia e Levantamento Pericial, aos 29 dias de novembro de 1973. Os peritos responsáveis foram Izaias Ortiz Pinto (relator) e Carlos B. Koch. O laudo foi realizado dia 23 de abril de 1970. Para este artigo uma nova análise do laudo foi realizada, pelo médico legista Helio Antonio Rossi de Castro, que apresentou considerações importantes que corroboraram com a versão de não suicídio. Abaixo as considerações. A primeira delas refere-se a um detalhe simples da necropsia, mas que no caso chama a atenção é o fato do estômago da vítima conter alimentos em fase inicial de digestão. Por que alguém prestes a cometer um suicídio se alimentaria? Habitualmente há um estado depressivo tão importante antecedendo a decisão e o ato de se matar, que há perda do apetite alimentar. É um dado semi-objetivo que questiona a hipótese do suicídio. Outra observação se deve a questão de que em “ambos os joelhos (havia) um sulco de fundo violáceo”. Sulcos são lesões provocadas por pressão. Habitualmente referem-se ao pescoço. Tal observação não foi comentada no item Discussão do laudo. De qualquer modo, isso poderia indicar que a vítima permaneceu de joelhos após a morte, o que seria possível resultar tanto de um suicídio como de um homicídio. Na verdade, houve uma asfixia mecânica, por ora considerada como devida a enforcamento ou estrangulamento. A questão resume-se ao tipo de força que constringiu o pescoço e ao mecanismo responsável por tal constrição. Em tese, a força pode ser da gravidade (peso do corpo – enforcamento), da vítima ou de um agressor (ação externa – estrangulamento). Os mecanismos foram examinados nas situações apresentadas a seguir: a) força da gravidade acionando um nó. O sulco do pescoço não se interrompia. Apresentava apenas “uma área menos precisa à direita”. Tal aspecto não permitia afirmar a existência de uma interrupção do sulco; caso contrário levaria a comprovação da presença de um nó, o que é característico do enforcamento. Por esse critério não havia nó. Além disso, a disposição do lençol da fotografia nº 8 permite afirmar categoricamente que o lençol além de não estar sobreposto à face anterior do pescoço da vítima, encontrava-se entrelaçado (um lado enlaçado ao outro), o que é típico dos casos de garroteamento (estrangulamento). Além disso, a largura do sulco de “no máximo, 3,5 cm” permite imaginar quanto o lençol foi comprimido devido a sua torção durante o processo de garroteamento (quanto maior a torção, menor a largura do lençol e menor a largura do sulco provocado por ele). A imagem da fotografia nº 8, até prova em contrário (manipulação do cadáver após a morte), exclui completamente a hipótese da existência de um nó e confirma a hipótese de garroteamento. b) força da vítima e garroteamento O garroteamento do pescoço produziria a perda da consciência vítima. Inconsciente, ela largaria o lençol o que provocaria a suspensão do garroteamento e da constrição do pescoço antes que essa fosse capaz de causar a morte. Logo, é impossível o auto-garroteamento causar o óbito. Noutros termos, não há suicídio por garroteamento. c) força da gravidade e garroteamento O garroteamento, que de fato existiu, foi produzido pelo lençol entrelaçado. Esse entrelaçamento foi causado por uma força giratória e perpendicular ao eixo longitudinal do lençol (uma torção do lençol). Para produzir seu efeito (constrição do pescoço) a pressão sobre a extremidade do lençol deveria ser constante. Tal força não poderia ser substituída pela força da gravidade. Apenas uma força externa contínua e adequadamente aplicada sobre ambas as porções do lençol, que estavam entrelaçadas e firmemente apertadas, seria capaz de mantê-las suficientemente comprimidas para que transmitissem tal força de compressão para a constrição do pescoço da vítima causando a morte. Caso houvesse um relaxamento do lençol, haveria um afrouxamento da constrição do pescoço. No momento em que eventualmente a vítima estivesse providenciando a fixação da extremidade do lençol em algum suporte mais alto que o nível do seu pescoço para se enforcar, esse procedimento certamente afrouxaria o entrelaçamento inviabilizando o propósito suicida. Assim, o legista consultado concluiu que a morte não 138


decorreu da ação da força da gravidade, isto é, não houve enforcamento. d) força externa e garroteamento Tipicamente uma força externa, através de um laço horizontal e contínuo (sem interrupção devido a presença de algum nó) é determinante do que se denomina estrangulamento – uma causa homicida da morte. Isso certamente foi o que aconteceu no presente caso. A ausência de interrupção do sulco do pescoço e a disposição do lençol observada na fotografia nº 8 levou o legista a concluir que não havia nó no instrumento causador da asfixia, isto é, no lençol. Poderia afirmar-se simplesmente que, se, no caso, não existe o mecanismo do nó, mas o do garroteamento para a constrição do pescoço e se esse garroteamento não pode causar a morte quando auto-infligido ou pela ação da força da gravidade, mas apenas se impulsionado por uma força externa e se essa força externa é, por definição, alheia à vítima, certamente a causa da morte foi o homicídio. Mas há outros elementos que corroboram tal diagnóstico. A pequena escoriação observada na região sub-mandibular (“porção superior da região cervical”) à direita pode muito bem ter sido provocada pelas unhas das mãos da vítima na tentativa de livrar-se do garrote ou do agressor ao colocá-lo em prática. Seria excepcionalmente rara a ocorrência de tal lesão em um procedimento suicida com um “lençol”. O sulco estava enfraquecido na face lateral direita do pescoço e nítido na face lateral esquerda. Isso indica que a pressão do lençol foi mais forte à esquerda e que à direita o sulco estava menos evidente na região subjacente ao primeiro entrelaçamento do garrote. O agressor estava posicionado à direita da vítima. Na verdade, tais aspectos também são compatíveis com a escoriação mencionada acima. Justamente ali a ação dos dedos das mãos da vítima ou, mais provavelmente, do agressor, entre o lençol e o pescoço, poderiam ter impedido uma pressão homogênea do lençol, produzindo um sulco “menos preciso à direita do pomo de Adão”. O enforcamento é uma asfixia geralmente associada a presença de um sulco oblíquo e interrompido no pescoço. No caso em estudo, as caracterizações que o tipificam são desqualificadas pelo próprio legista. O sulco é “levemente oblíquo” e a área, erradamente datilografada como “interrompida” pelo escrivão (ato falho, pois se tratava de um caso concluído como enforcamento, mas não havia interrupção do sulco), de fato não estava interrompida. Era apenas “menos precisa”, ou seja, não havia nó. Tais qualificativos, por si sós, enfraquecem o argumento do colega. Noutros termos, exatamente aqueles aspectos específicos que poderiam caracterizar o enforcamento estão atenuados, minimizados. De fato, eles não podem ser sustentados como elementos capazes de diagnosticar o enforcamento: as fotografias demonstram que o sulco apresentava uma acentuada tendência a horizontalidade (compatível com estrangulamento) e decididamente não estava interrompido (outra característica do estrangulamento). Os demais sinais apresentados, como as Manchas de Tardieu e a congestão pulmonar, são inespecíficos em relação a quaisquer asfixias mecânicas (enforcamento, estrangulamento, afogamento, soterramento, confinamento, etc.). Estavam presentes porque de fato a vítima faleceu por asfixia mecânica. Portanto, diante dos elementos subjetivos e objetivos analisados o médico legista, Hélio Castro, concluiu que foi a ação de uma força externa através do mecanismo de garroteamento com a utilização de um “lençol” que causou a morte da vítima. Não restam dúvidas de que a morte não ocorreu por enforcamento (suicídio), mas por estrangulamento (homicídio). Considerações Finais Ângelo Cardoso da Silva era um jovem, motorista de táxi e militante do M3G, tinha atuado em algumas expropriações realizadas pelo grupo e fora preso após um cerco policial contra as ações da esquerda armada no Rio Grande do Sul que estava passando por um momento de expansão, chamando, dessa forma, a atenção da repressão. Segundo a versão oficial teria se suicidado dentro da cela onde estava preso no Presídio Central de Porto Alegre. A descoberta do Inquérito Policial, aberto para investigar a morte de Ângelo Cardoso da Silva, no Arquivo Central do Judiciário suscitou a dúvida sobre as reais circunstâncias da morte do militante. A partir das fotos tiradas no local, que constavam no inquérito, e da nova análise da necropsia (realizada por um profissional da área) não restam dúvidas que se trata de um falso suicídio para encobrir um assassinato realizado pela repressão. O questionamento sobre a morte de Ângelo só se mostrou plausível, pois há outros casos de assassinatos encobertos por suicídios, como a emblemática morte de Vladimir Herzog, de grande repercussão e que se tornou um símbolo da resistência, contam também a morte do metalúrgico Manoel Fiel Filho, poucos meses após a de Herzog e ainda o caso do ex-tenente da PM paulista e militante do PCB, José Ferreira de Almeida. Esse três casos foram posteriormente confirmados como responsabilidade do Estado. Assim, essa nova fonte ajudou a esclarecer mais uma história obscura da

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ditadura civil- militar brasileira e indica a possibilidade de outros casos ainda n達o reconhecidos.

Anexos

Fotografia 8

Fotografia 10

Fotografia 11

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Referências Bibliográficas CHAGAS, Fábio André Gonçalves das. A luta armada gaúcha contra a ditadura militar nos anos de 19601970. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Rio de Janeiro: UFF, 2007. FISCHER, Jorge. O riso dos torturados. Porto Alegre: Proletra, 1982. LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”. In: ______. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. RUSCHEL, Davi Arenhart. Entre risos e prantos: as memórias acerca da luta armada contra a ditadura no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre: UFRGS, 2011. VARGAS,

Índio.

Guerra

é

guerra,

dizia

o

torturador.

141

Rio

de

Janeiro:

Codecri,

1981.


Focos de ação comunistas no Maranhão e Doutrina de Segurança Nacional Sarah Fernanda Moraes Gomes

1

Resumo: Considerando a lei de acesso à informação, que define como um dos direitos de todo ser humano o caminho a informação, a abertura dos documentos secretos da ditadura se encaixa como um desses direitos; a comissão da verdade, mal ou bem, tenta satisfazer esta função. Com isso este trabalho propõe-se a analisar de acordo com fontes documentais, como eram difundidas informações entre os departamentos de ordem política (DOPS) e outras agências de espionagem pelas principais cidades do Brasil. Como se articulavam e principalmente a quem perseguiam, sem deixar de levar em consideração o papel do Maranhão naquele contexto e dos momentos finais do Regime. Palavras- chave: Repressão, Espionagem, anticomunismo, DOPS-MA. Abstract: Whereas the law on access to information, which it defines as a right of every human being the way the information, the opening of secret documents from dictatorship fits like one of those rights, the truth commission, for better or worse, tries to fulfill this function . Therefore this work proposes to analyze according to documentary sources, as were disseminated information among departments of political order (DOPS) and other intelligence agencies by the main cities in Brazil. As articulated and pursued mainly who, while taking into account the role of Maranhão in that context and the final moments of the Regime. Keywords: Repression, Espionage, anticommunism, DOPS-MA.

Introdução A ditadura civil-militar instaurada no Brasil a partir da deposição de João Goulart em 1964 é marcada, até a atualidade, por silêncios que dificultam uma melhor análise aos historiadores e, consequentemente, o desenvolvimento da historiografia sobre o Estado de Exceção então em vigência. O uso da violência em muitos casos era direcionado. Logo, localizar os locais de fala de cada pesquisa que surge se faz necessário para entender o que é e pode vir a ser a memória sobre o regime. Deste modo, temos na historiografia sobre o regime militar alguns eixos centrais de análise que perpassam ou pelo protagonismo e regência das ações golpistas que culminaram no golpe de 1964; sendo que em geral, as teses tratam ou sobre uma perspectiva de subordinação dos militares entremeados aos pareceres de uma elite civil que primava pela manutenção de seu status quo, rechaçando de qualquer forma a ameaça comunista; ou sobre a primazia dos militares enquanto dirigentes conscientes de seu dever de manutenção da ordem nacional apoiados por setores conservadores da sociedade brasileira. Assim, trabalhos construídos já com o auxilio de documentos recentemente liberados, revelam um compromisso dos historiadores com a sociedade, além de possibilitar a mesma o direito à informação. O direito a informação faz parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se faz reconhecida por diversos países inclusive o Brasil; esse direito era negado às famílias e partes da sociedade em geral. Com a abertura dos documentos do DOPS e de outras instituições pertencentes ao Sistema de Informações, acreditamos num avanço em relação à acessibilidade e pesquisa; apesar de sabermos o tanto que ainda há de se caminhar para garantir o total acesso às informações sobre aquele período. Este trabalho se inclui no contexto de acessibilidade a informações sigilosas do DOPS, caracterizando-se como uma nova geração de pesquisa sobre História Contemporânea no Brasil, especificamente das ditaduras militares, seguindo um corpo teórico gramsciniano. Desta forma a construção deste, objetiva caracterizar os perseguidos pelo DOPS e principalmente seu sistema de circulação de informações. Serão investigados como as delegacias se articulavam nacionalmente e principalmente como a delegacia de polícia política do Maranhão se comportava em relação aos centros de poder político no Brasil. Também será realizada uma breve discussão historiográfica sobre a ditadura 1

Graduanda em História/ Licenciatura na Universidade Estadual do Maranhão – UEMA Integrante do Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea – sarahmoraesgomes@gmail.com

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NUPEHIC

E-mail:


Civil- militar no Brasil. Além de tudo que já fora citado, deve-se levar em consideração a incipiência na produção de trabalhos sobre ditaduras no Maranhão e parte do Nordeste. Assim o contato com esses documentos incentiva novas criações e estabelece um espaço em meio à pesquisa hegemônica do eixo sul e sudeste. Breve discussão historiográfica sobre o Regime Diversas são as vertentes historiográficas que analisam o contexto da ditadura civil militar. A priori, podemos destacar os estudos marxistas que primaram, entre outros aspectos, pelas determinações econômico estruturais e os condicionamentos de classe. 2 Nessa linha, um dos primeiros a despontar com proeminência foi Jacob Gorender que foi categórico ao afirmar que no período pré-1964 se engendrara uma real ameaça às classes dominantes brasileiras e ao imperialismo, as macroestruturas de poder. No livro Combates nas Trevas, o autor mencionado sai em defesa da esquerda, porém sem deixar de criticar ou apontar seus erros. Em uma perspectiva histórica, elenca as precipitações das ações do Partido Comunista em várias partes do país desde 1935 quando se iniciam os maiores embates com as forças dominantes. Seguindo uma lógica de dualidade de interesses eminentes no cenário nacional, Gorender afirma que o golpe de 1964 também fora precipitado e que os setores conservadores da sociedade, assim como o exército, não estavam fortemente organizados. Assim, o autor caracteriza o golpe de 1964 como uma forma desnecessária de ação por parte da direita. Haja vista, o autor reconhece que os anos anteriores a 1964 havia um grande movimento das massas comandado pela esquerda, mas, esta mesma esquerda representada por um partido comunista, não organizou a si e muito menos as massas para uma luta armada. O que não aconteceu com as forças opositoras conservadoras. Indiretamente reafirmava a ideia de um contragolpe realizado pela direita em virtude da iminência revolucionária esquerdista. Outra linha marxista, de orientação gramsciana, deixou em segundo plano a questão econômica e seguiu pelo extremo valor dado a associação de grupos civis golpistas em instituições representantes 3 do interesse das classes dominantes que articularam e lideraram o processo de golpe. René Dreifuss destaca sobremaneira a atuação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES – e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática –IBAD – que aglutinariam os interesses conservadores civis e militares nacionais, além dos setores empresariais internacionais. Este autor, em sua obra de maior destaque “1964: a conquista do Estado, ação política, poder e golpes de classe”, atenta para extrema participação de civis na instauração e manutenção do golpe. Membros da “elite orgânica” (civis) se instauram em cargos estratégicos do governo, utilizando-se das Forças Armadas como “padrão moderador” tornando desta maneira seus objetivos, de cunho burguês, como nacionais. René Dreifuss é o principal defensor da linha teórica que define o regime militar, como “regime civil- militar”, demarcando assim um espaço de destaque na produção sobre o período. Ainda na linha marxista, porém sem o condicionamento excessivo dos civis do IPES e IBAD, temos a interpretação defendida por Daniel Aarão Reis Filho acerca da heterogeneidade da frente social e política que se reuniu para depor Goulart. O autor defende que tal heterogeneidade inviabilizaria a hipótese de que tantos interesses estivessem aglutinados e orquestrados ao consenso de todos somente nessas duas instituições. Embora se relativize o peso do complexo ipes/ibad na organização do golpe, Reis afirma que na historiografia nacional consolidou-se a leitura da ditadura como “apenas militar” subestimando a capacidade dos civis para a orquestração do projeto imposto pelos militares. “É inútil esconder a 4 participação de amplos segmentos da população no movimento que auxiliou na implantação do golpe” . Para Reis, assim, o regime político ocorrido de 1964 a 1985 possui um caráter civil- militar e qualquer tentativa de desassociar imagem dos civis conservadores com a daquele período, perpassa por 5 um plano político mais abrangente, no caso o esquecimento coletivo da população como um todo . Outro autor considerado de suma importância para os estudos sobre Ditadura Civil-Militar chama-se Jorge Ferreira que ganha destaque no cenário Nacional ao sintetizar vários artigos de diferentes autores em uma única obra, O Brasil Republicano, Vol 4, O tempo da ditadura. Este livro de coautoria de Lucilia de Almeida Neves Delgado faz parte de uma coleção sobre os estudos de Brasil 2

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4 5

Gorender, Jacob. Combate nas Trevas a Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. Ed. Ática, 1987. São Paulo. Dreifuss, René. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1987. Reis, 2012,p33. Podemos citar como exemplo o senador José Sarney, presidente do ARENA no Maranhão durante o regime cívico-militar. Hoje, nega qualquer relação com os generais ressaltando apenas o fato de ter “auxiliado na redemocratização”.

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publicados recentemente. Destacamos também, Francisco Carlos Teixeira da Silva, escritor de um dos artigos inseridos no livro de Jorge Ferreira. Apesar de seu objeto de estudo ser o processo de “abertura do regime”, não deixa de explanar sobre o sistema como um todo. Carlos Teixeira toma como ponto de partida entender a natureza das ditaduras em toda América Latina. Defende a importância para os estudos sobre ditadura, para que haja um esclarecimento de forma justa e verdadeira. Pois, o que permanecerá escrito enquanto concepção de História futuramente será delimitado agora. Assim, os historiadores possuem o papel de influenciar neste processo, mas sem deixar de considerar os lugares de fala de cada personagem daquele período. 6 Assim, este autor define como devemos trabalhar com aquele período, delimitando as aberturas levando em consideração o papel da violência e do arbítrio no decorrer dos regimes na América Latina e também como já foi explanado assegurar os lugares de fala e suas multiplicidades (FERREIRA E DELGADO, p. 246). A luta por uma pesquisa mais aprofundada sobre ditaduras, embora esteja no campo do passado, torna-se uma disputa do presente, pois há um interesse político no esquecimento daquele período, como já defendera Daniel Arão Reis. Outra linha interpretativa que ganhou projeção foi o chamado “padrão moderador” postulado pelo 7 autor Alfred Stepam . Nessa vertente podemos ter uma concepção e entendimento histórico da participação gradativa das Forças Armadas nos círculos de poder da política nacional. A instituição militar funcionaria como um subsistema vigilante e atento às “ameaças” que o aparelho democrático pudesse sofrer; é a lógica do “bom guardião”. Os militares então sairiam de seus quartéis com o objetivo único de depor um governo e transferi-lo para outro “grupo de políticos civis engajados na manutenção do estado 8 de ordem” . Nessa ação, estariam apartados de qualquer anseio de tomada do poder, seriam apenas “bons guardiões”. Mas então, como explicar os desdobramentos de 1964? Para Stepan independente de quem encabeçou o processo golpista, foram às camadas populares e As esquerdas um dos princípios ativos para a chamada “Revolução de 1964”. A tese desse autor, apesar de muito relevante, contém alguns aspectos problemáticos no tocante à própria ideia de “padrão moderador”, “já que existiram interferências diretas dos militares na política brasileira antes de 1964 e é bastante problemática a visão do ‘subsistema militar como ‘variável dependente’ do sistema 9 político global” . (FICO, 2004, p. 31). Na mesma vertente militarista e com críticas a análises marxistas que tradicionalmente privilegiavam as explicações econômicas em detrimento das demais, temos as definições teóricas de Gláucio Ary Dillon Soares. Na escrita desse autor, estão presentes elementos comuns aos demais, tal como o caos administrativo e a desordem política que justificariam uma intervenção militar no intuito da preservação do regime democrático, vertente explorada por Stepan. Também a ameaça que os comunistas e a esquerda está presente em todas as teorias de forma direta ou indireta. E no que compete a instituição militar, destacam-se os ataques à hierarquia e à disciplina. Soares não exclui de modo algum a importância dos setores civis conservadores, mas em seus escritos sobre o golpe militar observamos um ponto de vista totalmente oposto à centralização conspiratória defendida por Dreifuss. Para ele, houve na verdade um grande “caos conspiratório” por conta da falta de coordenação entre os setores que defendiam uma reação frente a todo um contexto ameaçador e de desordem. Haja vista, o próprio desfecho do golpe militar. Assim sendo, ao caos administrativo e a desordem política justificariam uma intervenção militar no intuito da preservação do regime democrático, soma-se o perigo comunista e esquerdista em geral. Tais elementos, então, constituir-se-iam em variáveis fundamentais para o entendimento do processo de instauração do regime militar. Contudo, sem a desestabilização veiculada pelos eixos civis pró-golpe através de propagandas ideológicas e suas mobilizações – por exemplo, a emblemática Marcha da Família com Deus pela Liberdade – o golpe seria bastante difícil. Sem a iniciativa militar, todavia, seria impossível. A rigor, todas as vertentes teóricas deram a sua contribuição para um entendimento macro ou micro estrutural. Nesse sentido, a busca por quem dera o primeiro passo para o golpe de 1964, se civis ou militares, torna-se uma questão secundária se atentarmos para o grau de complexidade e interesses implícitos e explícitos que ambos os lados defendiam. Uma coisa é certa: de fato fora um golpe civil militar com contribuições cabais de cada lado para todo o desfecho daquele ano e os vinte que estariam por vir. Por conseguinte, fugindo às macroestruturas explicativas sobre o período ditatorial, temos os 6

7 8 9

No texto o autor questiona se ocorreu Abertura do Regime civil-militar ou Aberturas, pois, Aberturas significa a inserção de outros projetos no processo de redemocratização, antes apenas nas mãos dos milicos ou de seu apoiadores. Stepan, Alfred (1975) “Os militares na política”. Rio de Janeiro, Artenova. (FICO, 2004). (FICO, 2004, p. 31).

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novos eixos de estudos que se alicerçaram na “Nova História” para o entendimento do período de modo intimista e visceral. Por meio desse viés, grande parte dos crimes de tortura, por exemplo, vieram à tona e expuseram a face nebulosa da atuação repressiva dos militares no poder. Apesar de jugar necessário uma pequena análise historiográfica sobre o golpe, nossa proposta vai além. Observaremos o principal sustentáculo de todo o regime civil militar, seu sistema de informação 10 que se pautava na Lei de Segurança nacional . Doutrina de Segurança Nacional: Justificativa para as “investigações”. 1.

Histórico e ideologia 11

A Ideologia de Segurança Nacional, segundo Margaret Crahan possui suas raízes no Brasil desde o início do século XX. No contexto de guerra fria apropriou-se de alguns elementos pertencentes ao conceito de “guerra total”. Aqui no Brasil e parte da América Latina, tomou a faceta da “segurança interna” perante a “ação indireta” do comunismo. Assim, como afirma a autora Maria Helena Moreira Alves na obra, Moreira Alves. O Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). A crescente movimentação de contestações populares no começo dos anos de 1960 e expansão da guerra fria insuflaram nas elites brasileiras e autoridades o pensamento de crescente “ameaça subversiva interna” e de guerra revolucionária. No Brasil este pensamento da Segurança Nacional foi teorizado pela Escola Superior de Guerra 12 (ESG) tendo como seu principal intelectual orgânico o general Golbery de Couto e Silva. Difundiu-se entre os civis inseridos no complexo IPES/IBAD uma percepção mais abrangente da segurança nacional na qual integrava também o desenvolvimento econômico. O IPES e o IBAD contribuíram durante 25 anos com a ESG. O pensamento ratificado por essas duas instituições trata-se de um largo corpo teórico constituído por elementos ideológicos e de diretrizes para infiltração, coleta de informações e planejamento político-econômico de programas governamentais (ALVES,1985). O manual básico da ESG, fundamental para implementação e solidificação do pensamento anticomunista nos anos de 1960 no Brasil em um de seus princípios, estabelece o conceito de Guerra Revolucionária, que consiste em conflito geralmente interno, estimulado ou apoiado por forças 13 externas e que visam a conquista do poder, comunista, pelo controle interno da nação . Essas “forças externas” rapidamente eram associadas (ao que seria na época) à introdução do comunismo e suas ações indiretas. Ainda segundo o manual da ESG, guerra revolucionária e a guerra ideológica substituem a guerra convencional, entre fronteiras, desenvolvendo-se, assim, a teoria do “inimigo interno”. Desta forma, o avanço comunista, em suas novas estratégias, tomaria a mente do povo. Aproveitando-se dos descontentamentos existentes, colocando o povo contra a sua própria nação, fazendo com que sejam utilizadas táticas de guerrilhas ou terrorismo. O conceito de guerra revolucionária conclui assim que toda população pode ser colocada como suspeita. Os chamados “inimigos internos”, deveriam ser devidamente identificados, controlados, 14 perseguidos e eliminados . Esta deveria ser a principal preocupação de uma das “maiores nações de terceiro mundo”, pois esta “tática” do comunismo é considerada o meio mais eficaz da infiltração. A segurança interna deveria ser mantida, contendo os antagonismos e qualquer outra pressão que 15 colocasse em questão a integridade do Estado e da Ordem . O Estado historicamente como afirma Henrique Serra Padrós atua, como uma figura moderadora dos conflitos de classe, sua eficiência maior ocorreu, quando uma classe se sobrepôs a outra, legalizando o domínio, uso de força e de violência sobre as classes exploradas. (Padrós, 2005). O movimento iniciado em 1964 no Brasil é o maior exemplo de organização entre Estado e Classes dominantes, pois ao analisarmos o pensamento que rege a Doutrina de Segurança Nacional e como esta engloba também questões econômicas, a violência e todo seu aparato repressivo tornam-se justificáveis. Assim, ao contrário do que afirmam algumas novas correntes historiográficas, a ditadura civil-militar não se deu como apenas uma questão de causa e consequência. O pensamento da Doutrina de Segurança Nacional se fez prática ao ser ampliada em 1969 quando o AI-5 é instaurando. A Lei fornecia sustentação legal à repressão a qualquer pessoa ou grupo 10

11 12

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Lei de N° 898, de 29 de setembro de 1969, institui os crimes contra Segurança Nacional e também ordem pública e social, assim o devido julgamento p cada crime. Margaret Crahan. In: Alves, Moreira Helena Maria. O Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, 1985. Conceito Gramsciniano que denomina a pessoa que faz o intermédio entre um partido político ou legenda, e a sociedade civil. Manual Básico de treinamento da escola superior de guerra. Manual Básico de treinamento da Escola Superior de Guerra: seção 1: Guerra contemporânea. Stepan, Alfred (1975) “Os militares na política”. Rio de Janeiro: Artenova.

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que se oponha a política do Estado de Segurança Nacional e definiria o que poderia ser um atentando ao Estado: A primeira Lei de Segurança Nacional foi sancionada como Decreto- Lei N° 314 a 13 de março de 1967, e regulamentada pelo Decreto- Lei N° 510 de 20 de março de 1969. A Lei de Segurança Nacional considerava crime “ofender moralmente quem exerça autoridade, por motivos de faccionismo ou inconformismo político-social”, ofender a honra e dignidade do presidente da republica, do vice-presidente e outros dignitários; incitar à guerra, à subversão s desobediência às leis coletivas, à animosidade entre forças armadas ou entre estas e as classes sociais ou instituições civis; à luta de classes, à paralização de serviços ou atividades essenciais, ao ódio ou à discriminação racial [...]. Com a Lei de Segurança Nacional de 1969, na realidade, deixaram de existir no Brasil as liberdades de reunião, associação e imprensa. Seus dispositivos constituíram o principal instrumento da repressão política, tornando-se a própria base do 16 poder de Estado .

Logicamente, as linhas do que era considerado crime ou não, eram tênues e a possibilidade de desrespeito aos direitos humanos, devido ao estado de “guerra interna” é inegável. Mas, tudo justificado, “para o bem da ordem e da nação...”. 1.2

Engrenagem do aparelho Repressivo

Como foi visto, a Doutrina de Segurança Nacional guiou a ideologia conservadora além de ser cartilha administrativa da chamada “rede de informações” ratificada no decorrer do regime, principalmente em 1968 quando o SNI teve suas fronteiras aumentadas (Fico, 2012). O aparato repressivo da ditadura civil militar, logo, do Estado de Segurança Nacional era composto por três elementos integrados entre si, porém distintos de funções. Primeiro, a vasta rede de informações políticas; segundo órgãos e organizações responsáveis pelas ações repressivas a nível. local e por último os aparatos das Forças Armadas usadas no controle político interno. (Alves, 1985). 17 O aparelho repressivo fora intensificado após 1969 quando foram criadas agências de combate “à subversão” e que melhor estruturavam este sistema macro. Nestes incluem o Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN), Sistema Nacional de Informações (SISNI), Divisões de Segurança e Informação (DSI’s), Inquéritos Policiais Militares (IPMs), Assessorias de Segurança e Informação (ASIs), Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), Destacamento de Operações e Informações (DOI), Operação Bandeirantes (OBAN) entre outros. Cada ramo das forças armadas possuía um centro de informação: CIEX no exército, CISA na aeronáutica e o CENIMAR na Marinha; todos subordinados ao Serviço Nacional de Informação. Segundo Carlo Fico na obra “Como eles agiam”, apesar de haver posteriormente um acirramento das políticas de censura e vigilância das atividades artísticas- culturais espalhadas por praticamente todo o Brasil, foram as atividades de espionagem as grandes causadoras de transtorno a sociedade civil. Segundo Priscila Antunes na obra Ditadura e Democracia na América Latina, desses aparelhos citados O CIE teria sido o que mais se empenhou no combate a luta armada. Seus agentes compuseram a maior parte dos destacamentos de Operações Internas (DOI) e dos de Defesa de Operações internas. Entremeando a estrutura do Ministério do Exército ESTAVAM OS setores interligados, sem deixar de gozar de alto grau de autonomia. Foi neste momento de incorporação das PMs que outros setores da sociedade civil passaram a ser perseguidas pela ditadura (classe média). A Lei de Segurança Nacional, como já fora explicitado, define o que pode ser crime contra a “Segurança Nacional” e como seus acusados devem ser julgados, fato que gerou na população uma cultura do medo. Mas, ao reportarmos ao serviço de informação, ha uma tendência de caracterizar apenas o SNI como órgão responsável pelas perseguições e tortura nos porões da ditadura. Assim, Priscila Antunes novamente se faz categórica: Embora não fosse “lugar por excelência” das prisões e torturas, os agentes do SNI tiveram participação ativa nesses processos de busca e muito provavelmente colaboraram nos casos de tortura. Entre essas ações que desenvolvia, o SNI interceptava correspondências, roubava documentos, fazia escuta telefônica e acompanhava a vida das pessoas, fossem adversários políticos e suspeitos de subversão, fossem integrantes da equipe governamental. Infiltrava pessoas tanto nas organizações clandestinas quanto nos organismos legalizados de oposição ao regime, 18 como no caso do MDB .

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Alves, 1985, p. 158. Ano de instituição do AI-5. Antunes, p. 221.

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Deste modo, igualar os aparatos repressivos ou até mesmo subestimá-los enquanto análise histórica pode nos condicionar a erros grotescos de análise. Uma parte da historiografia atual tenta desacreditar a capacidade de ação e interação do aparelho repressivo presente no Brasil até o começo dos anos de 1990, destacando o despreparo de alguns oficiais, além de discursos no qual, atualmente parecem extremamente esdrúxulos e sem nexo. Mas, como afirma Carlos Fico, o que essas correntes não observam é que estes erros eram exceções e 19 no contexto de “guerra interna” qualquer poderia ser um suspeito levado a interrogatório . 1.3 O SNI e o Nordeste, “focos” de ação comunista. Segundo a avaliação da CIA, se houvesse uma revolução no Brasil, ela começaria pelo Nordeste. Por isso, vários especialistas na luta antiguerrilha já se encontravam no local. Não faltavam denúncias no Brasil e nos Estados Unidos, de que alguns milhares de agentes norte-americanos agiam no Nordeste disfarçados de religiosos, missionários, jornalistas, pesquisadores etc. Só em 1963, cerca de quatro mil cidadãos norteamericanos obtiveram vistos para se fixar na região e outros três mil foram recusado 20 [...]. Depois do golpe de 1964, eles deixaram repentinamente o Nordeste .

Apesar de não ser o centro de poder, o Nordeste, por ter movimentos significativos que 21 questionavam as condições de trabalho local, como as ligas camponesas , consideradas grandes “focos” de introdução comunista, passou a ser vigiado e mantido sobre constante observação durante todo o regime. Não foi por acaso que no momento de instauração do golpe, houve uma verdadeira 22 “operação limpeza” que resultou no suplício do jovem ativista comunista Gregório Bezerra . O manual da ESG e a Lei de Segurança Nacional, como já mencionado, eram seguidos (ou se tentava seguir) à risca. Para o pensamento militar qualquer indício de que o estado estava em “perigo” era motivo de redobrada atenção. Assim é visível observar a organização e dimensão do aparelho repressivo, quando observamos em documentos secretos que qualquer atividade das oposições, eram analisadas de forma cautelosa. Qualquer movimento das oposições, mesmo sendo nos anos finais do regime, eram anotados e divulgados por boa parte das agências de espionagem do país. As agências do Nordeste, obviamente, não eram excluídas. Um exemplo trata-se de um documento classificado como reservado, advindo de Porto Alegre- RS, no ano de 1981, que traça uma comparação entre os programas políticos do PC do B e o das oposições. Um Informe da CSI/ SSP-RS analisava uma “persistência do pensamento do Partido Comunista, no novo programa político das oposições” (Pasta 7, Cód. 007. ARPEM). “O Partido Comunista Brasileiro, com persistência e sutileza aproveitando-se da debilidade, e da ausência de uma ideologia definida e do oportunismo de alguns membros dos tradicionais partidos político, impôs seu “programa mínimo” a toda a oposição, que ingenuamente (?) o endossou e o denominou: “Programa para a União de todos””. (Pasta 7, Cód. 007. ARPEM). Naquele momento todas as esquerdas lutavam pelo processo de redemocratização, obviamente, o “Programa para a União de todos” deveria conter elementos de interesses homogêneos. Eram esses interesses homogêneos como; “eleições diretas em todos os níveis,”” livre organização dos partidos”, “eliminação dos dispositivos antidemocráticos... Lei de Segurança Nacional, Lei da greve e lei da imprensa”, “extinção da tutela do Estado, direito à greve”, “política justa de distribuição de renda”, garantia de emprego para todos”, “democratização do poder judiciário,” reduzido o número de grupos financeiros, nacionais, estrangeiros e do Estado”. (Pasta 7, Cód. 007. ARPEM)

Ao ver estes informes, levando em consideração o contexto político-social que vivemos, não há nada de absurdo nas exigências das oposições e muito menos do Partido Comunista. “Nós, ao termos contato com o pensamento da comunidade de informações, a primeira reação é riso, pois, a 23 preocupação com “inimigo” parece excessiva. Riso ou medo, muitos dos papeis circulados pela comunidade, ao serem reconhecidos, causavam temor. Uma proposta recebida pelo SNI, encaminhada pelo chefe de gabinete 19 20 21

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FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record 2001. (Chiavenato, 2007, p. 97). Movimento de trabalhadores do campo que lutavam por reforma agrária. Contendo cerca de 110 mil trabalhadores entre o Norte e o Nordeste no ano de 1964, lutavam também por melhores condições de trabalho no campo. (FERREIRA E DELGADO, p. 170). (FICO, 2001).

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ao Ministro da justiça, afirmava que “todo criminoso, teme a morte violenta e a prisão”, 24 sem capacidade de recuperar a liberdade .

Outro “foco” foi à região do Araguaia, onde pessoas morreram violentamente sem se quer saber a razão. Ao contrário do que afirma certos pensamentos historiográficos, a região Nordeste não fora esquecida pelo regime (Infelizmente não), novas pesquisas fundadas na documentação do período, nos mostram justamente o oposto.

As duas páginas do Informe (Pasta 07, Cód. 007/DOPS/SSP/RS) contendo o “plano de comparação programa político das oposições”. O documento constituído de quatro páginas foi emitido no dia 27 novembro de 1981, e enviadas aos DOPS das Capitais brasileiras além de todas as secretarias Segurança Pública do Estado do Maranhão. Documento localizado no Arquivo Público do Estado Maranhão – AMPEM, série Subversão. (Páginas 1 e 4).

do de de do

Conclusão Como foi visto a união ente sociedade civil e militares resultou amparados por um pensamento conservador anticomunista, resultou no Golpe Estado de 1964 que visava frear o suposto “avanço comunista” e ainda estabelecer o domínio de uma classe, sobre as demais classes populares. É claro que a posterior institucionalização do golpe e consequentemente do aparato repressivo não retirou dos civis a sua responsabilidade e colaboração com o Terror de Estado (TDE). O aparto repressivo atuante em todo País, disseminou o medo. É sabido, quem em regiões periféricas ao centro de poder como o Nordeste vigilância não tenha sido tão forte durante todo o regime. Mas, ela não deixou de existir. A ação dos PMs e dos agentes de informação presentes principalmente nas universidades, não deixou de gerar um clima de tenção nesses ambientes. A pesquisa, para traçar um perfil da atuação do regime no Nordeste e especificamente no Maranhão ainda é muito incipiente. A abertura dos documentos do DOPS deseja-se que o interesse de pesquisadores por este episódio da História do Brasil cresça, fato que contribuirá para o esclarecimento da verdade nesta região.

Fontes Documento Arquivo DOPS/MA As duas páginas do Informe (Pasta 07, Cód. 007/DOPS/SSP/RS) contendo o “plano de comparação do programa político das oposições”. O documento constituído de quatro páginas foi emitido no dia 27 de 24

(FICO, 2001).

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novembro de 1981, e enviadas aos DOPS das Capitais brasileiras além de todas as secretarias de Segurança Pública do Estado do Maranhão. Documento localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão – APEM, série Subversão. (Páginas 1 e 4). Referências Bibliográficas: COSTA, Célia Maria Leite. O direito à informação nos arquivos brasileiros. In: FICO, Carlos. Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas/ Organizadores Carlos Fico...[et al].- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. REIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro, Vozes, 1987. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record 2001. GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Editora Vozes, 2°edição, 1984. PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-americanas. In: FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. Ditaduras Militares e institucionalização dos serviços de informações na Argentina, no Brasil e no Chile. In: FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. STEPAN, A. C. Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Artenova, 1975.

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Operando Informações (1975-1977): Atuação Repressiva e Evolução das Violações de Direitos Humanos no DOI/CODI/II Exército Diego Oliveira de Souza

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Resumo: Este artigo trata da atuação repressiva do Destacamento de Operações de Informações (DOI), do Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), do II Exército Brasileiro, no período de 1975-1977 e sua relação com a vulnerabilidade dos Direitos Humanos. Para tanto, busca definir o contexto políticosocial do espaço de atuação do DOI/CODI/II Exército, destacando a existência de conceitos e pensamento em comum, na ação dos agentes do DOI-CODI/II Exército, através de sua ofensiva sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Utiliza-se de fontes do próprio organismo repressivo, em especial seu levantamento estatístico dos resultados alcançados no combate à dissidência política. Por fim, objetiva comparar, apresentando a simetria ou a assimetria entre os resultados alcançados pelo DOI/CODI/II Exército e as informações trazidas no livro-relatório, Direito à Memória e à Verdade, editado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, da Presidência da República. Palavras-chave: Ditadura Civil Militar – Atuação Repressiva – Violações de Direitos Humanos – DOI/CODI/II Exército – Brasil. Abstract: This article deals with the repressive role of Information Operations Detachment (DOI), the Operations Center of Homeland Defense (CODI), the II Brazilian Army, in the period 1975-1977 and its relation to the vulnerability of Human Rights. Therefore, it seeks to define the political and social context of the performance space of the DOI/CODI/II Army, highlights the existence of concepts and thinking in common, the action of agents DOI-CODI / II Army through its offensive on the Brazilian Communist Party (PCB). It uses the body's own repressive sources, especially his statistical results achieved in combating political dissent. Finally, compare objectively presenting the symmetry or asymmetry between the results achieved by DOI/CODI/II Army and the information brought in the book-report, The Right to Memory and Truth, edited by the Special Rights human, the Presidency. Keywords: Civil-Military Dictatorship; Acting Repressive; Human Rights Violations; DOI/CODI/II Army; Brazyl.

Introdução Este artigo trata da atuação repressiva do Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), do II Exército Brasileiro, registrada através de estatísticas, diante do combate à dissidência política da Ditadura Civil-Militar, entre os anos de 1975 e 1977 no Brasil. Essencialmente aborda a produção de lesões e maus-tratos, praticadas por agentes públicos no desempenho da função pública. Centralizada na cidade de São Paulo, a atuação do organismo repressor é compreendida através das seguintes violações de Direitos Humanos: prisão ilegal, tortura, homicídio, morte, ocultação das reais causas de morte e desaparecimento forçado de cidadãos. A necessidade de se evidenciar a responsabilidade do Estado brasileiro diante do dever de memória frente a revelação das circunstâncias em que cidadãos foram presos e mortos pelo aparelho repressivo da Ditadura Civil-Militar, assenta a justificativa desta investigação. Deste modo, objetiva-se analisar os resultados alcançados pelo DOI/CODI/II Exército e a vulnerabilidade das violações de Direitos Humanos, no momento da abertura política lenta, gradual e segura, iniciada durante o governo de Ernesto Geisel. De forma complementar, busca-se apresentar a simetria ou a assimetria entre os resultados alcançados pelo organismo repressor do II Exército Brasileiro, quando comparados aos registros trazidos, no mesmo período, no livro-relatório Direito à Memória e à Verdade, editado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. 1

Técnico Administrativo do Ministério Público Federal (MPF), lotado na Procuradoria da República do Município de Santa Maria/RS. Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Endereço Eletrônico: diego.o.souza@hotmail.com. Telefone: (51) 9238-4574. Orientador: Diorge Alceno Konrad, Professor Adjunto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP. Endereço Eletrônico: gdkonrad@uol.com.br. Telefone: (55) 9971-4703.

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A metodologia utilizada corresponde ao estudo comparativo dos resultados alcançados, no intervalo de 1975-1977, pelo DOI/CODI/II Exército, e as mortes e os desaparecimentos forçados, ocorridos na região de São Paulo, no mesmo período, trazidas no livro-relatório, Direito à Memória e à Verdade. Os dados da análise foram extraídos do Relatório de Estatística do DOI/CODI/II Exército (RPI 6/75), do ano de 1975, e da Monografia do Major Freddie Perdigão Pereira, intitulada o “Destacamento de Operações de Informações (DOI). Histórico papel no combate à subversão.”, de 1978. A situação de vulnerabilidade dos Direitos Humanos provocada pela atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército poder ser compreendida a partir da produção de atos incompatíveis com as ideias de Direitos Humanos. Através da perspectiva da Nova História Cultural, Lynn Hunt lembra que os Direitos Humanos possuem uma base emocional que se desloca ao longo do tempo, assim como o desenvolvimento incompleto do reconhecimento [empatia] de que todos os outros são igualmente 2 senhores de si origina todas as desigualdades de direitos que nos têm preocupado ao longo da história. Para atender suas pretensões, este artigo está divido em três momentos. Na primeira parte, apresenta as tratativas iniciais em torno da criação de organismo central para o combate aos crimes políticos, definindo a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento como fomento para as ações de repressão à dissidência política. Na segunda, traz a Diretriz Presidencial de Segurança Interna, elaborada no governo de Emílio Garrastazu Médici, a qual possibilitou a existência dos Destacamentos de Operações de Informações (DOI), em nível federal, destacando, entre os agentes da repressão, a existência de um ethos repressivo. Na parte final, trata de apresentar o resultado da ofensiva do DOI/CODI/II Exército sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante o período 1975-1976, evidenciado a simulação de suicídio e o desenvolvimento da ocultação das reais causas da morte de militantes comunistas. O “Teatro de Operações”: DOI/CODI/II Exército Antes de partir para o estudo da estrutura repressiva, representada pelos Destacamentos de Operações de Informações (DOI), necessita-se detalhar o contexto político anterior à instituição do “teatro de operações” das violações de Direitos Humanos, baseado no uso da violência em interrogatórios de militantes políticos, opositores da Ditadura Civil Militar. O contexto histórico da institucionalização da repressão à dissidência política brasileira, notadamente do surgimento do DOI/CODI/II Exército, guarda vinculação com o período anterior à deflagração do Golpe Civil Militar de 1964. Além disso, as variações da relação entre o Estado de Direito e o autoritarismo, no Brasil, de acordo com Anthony Pereira, não podem ser explicadas como resultado da força da oposição enfrentada por cada governo, e sim deve-se observar o consenso, a integração e a 3 cooperação entre as elites do Poder Militar e Poder Judiciário. Deste modo, a ideia de criar uma estrutura de combate ao crime político e social (atribuição pertencente até então às Quartas Delegacias Auxiliares), em nível nacional, se consolida com a criação 4 da Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), em 1933, embrião da futura DOPS. Em 1936, quando houve o Congresso de Chefes de Polícia, no Rio de Janeiro, convocado pela Chefia de 5 Polícia do Distrito Federal e do Ministério da Justiça , este aparato é aperfeiçoado. O objetivo do evento era melhorar as relações entre as polícias estaduais, a fim de aprimorar o combate ao comunismo. Entretanto, a resistência a ideia de federalizar a polícia política, em detrimento do controle dos estados, foi levantada por alguns representantes estaduais, particularmente de São Paulo, que temiam a diminuição da eficiência do trabalho policial. De outro lado, o ativismo político dos militares brasileiros, conforme Maud Chirio, possui a influência da queda da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. Conforme a historiadora francesa, inaugura-se uma era de polarização e mobilização política da sociedade brasileira, cujas Forças Armadas ocupam lugar central, ocorrendo a participação de oficiais de todas as patentes, sendo que: A principal caixa de ressonância é o Clube Militar, que no pós-guerra recuperou seu papel de foco de agitação política no Exército: ali são asperamente discutidas as grandes questões que eletrizam a cena política nacional, e ali se enfrentam, às vezes virulentamente, a facção nacionalista, solidária do campo getulista, e a direita liberal e

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HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 28. PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 283. Ver mais sobre isto em: KONRAD, Diorge Alceno. O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos socios-politicos (1930-1937). Tese de Doutorado Orientada por Michael McDonald Hall. Campinas: IFCH-UNICAMP, 2004. JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: Os interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI em São Paulo (1969-1975). Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 41.

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anticomunista, aglutinada a partir de 1952 na chapa da Cruzada Democrática.

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Em 1958, ocorreu a II Conferência Nacional de Polícia, na qual surgiu novamente o tema da reestruturação da polícia, com a proposta de se criar uma Polícia Federal, sendo que o modelo norteamericano do FBI chegou a ser cogitado. Diante disso, a representação de São Paulo se opôs novamente ao projeto, alegando que a elite paulista não estaria interessada no fortalecimento do poder federal, do mesmo modo os policiais paulistas contavam com instituições bem aparelhadas como o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), afastando-se assim a tentativa de criar-se um FBI 7 caboclo. Ainda assim, a preocupação com o recolhimento de informações ocorreu desde o período pré8 1964, tendo em vista que Golbery do Couto e Silva , um dos principais ideólogos da Ditadura de Segurança Nacional no Brasil, reuniu, no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), milhares de fichas e dossiês que foram levados posteriormente para o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão 9 que o referido militar assumiu a chefia, em julho de 1964. Dessa maneira, o Serviço Nacional de Informações (SNI) passou a ser o principal órgão do Sistema Nacional de Informações (SISNI), criado para subsidiar as atividades da repressão política no período pós-1964. O projeto repressivo, para muitos militares, sustentava a crença de que, via controle policial-militar, a sociedade poderia ser moldada de forma estática e desideologizada, assim como seria possível combater a guerrilha e, numa segunda etapa, fazer um trabalho preventivo de saneamento 10 ideológico. A Ditadura Civil Militar, implementada a partir de 1964, possuiu entre seus pilares a ideologia de dominação de classe, compreendida, resumidamente, através do abuso de poder ou da força para alcançar os objetivos do Estado. Portanto, a Doutrina de Segurança Nacional e de Desenvolvimento trata-se de variante teórica que, em sua essência, difunde visão de mundo utilizada para moldar as estruturas do Estado Brasileiro, buscando impor formas de controle específicas da sociedade civil, bem 11 como delinear um projeto de governo para o Brasil. Em outras palavras, a Doutrina Política de Segurança Nacional, elaborada a partir da década de 1950, em decorrência do desenvolvimento das atividades da Escola Superior de Guerra (ESG), sofreu alteração em sua nomenclatura, inicialmente, de Segurança Nacional no seu conceito mais abrangente, passou a ser, de 1967 em diante, intitulada de Segurança e Desenvolvimento – ou de 'Desenvolvimento 12 e Segurança' – em decorrência da publicação do Decreto-lei nº. 200, de 25 de fevereiro de 1967. A partir de 1961, a Escola das Américas tornou-se modelo de referência para o aprimoramento dos agentes de segurança, ligados aos mecanismos estatais, encarregados de manter a ordem social dos países latino-americanos. Conforme Joseph Comblin, foi nos Estados Unidos que se formou a ideia de guerra revolucionária, a partir do funcionamento dos colégios militares destinados a preparar os 13 oficiais e soldados na região do Canal do Panamá. Em decorrência do desenvolvimento da política externa norte-americana, a partir de 1962, desencadeiam-se diversos Golpes de Estado ou Golpes Civil-Militares na América Latina. Na década de 1970, apenas México, Colômbia e Venezuela não haviam apelado para golpes militares como solução 6

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CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: revoltas e protestos de oficiais na Ditadura Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 11. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O ofício das sombras. In: Revista do Arquivo Público Mineiro: Belo Horizonte, ano XLII, jun. 2006, p. 61-62. A frase “Ficha não se limpa. Informações não se apagam: superpõem-se, como camadas geológicas” é atribuída ao General Golbery do Couto e Silva e foi publicada em uma matéria especial do jornalista Elio Gaspari, na época Diretor Adjunto da Veja. Ver: Veja, Edição 602, 19 de março de 1980, p. 29. FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). Brasil Republicano. Livro 4. O tempo da Ditadura. Regime Militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 174-175. D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (orgs.). Os anos de chumbo. A memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 7. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru: EDUSC, 2005, p. 31. FRAGOSO, Augusto. Prefácio, p. X e XIV. In: GURGEL, José Alfredo Amaral. Segurança e democracia: uma reflexão política sobre a doutrina da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército/José Olympio, 1975, p. 27. COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 44. Em relação às discussões em torno do predomínio da influência doutrinária norte-americana ou francesa sobre o pensamento militar brasileiro, na década de 1960, cabe ressaltar que Josep Comblin foi criticado por ser um dos primeiros a simplificar a noção de Guerra Revolucionária, bem como por adotar uma interpretação genérica do ideário da Doutrina de Segurança Nacional. Ver: MARTINS FILHO, João Roberto. A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67. Junho de 2008, p. 40.

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para seus problemas sociais, políticos e econômicos. Através da deflagração do Golpe Civil-Militar no Brasil, em 1964, iniciou-se, de forma intensa, a perseguição política aos dissidentes da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. Como resultado dos aperfeiçoamentos dos esforços para eliminar a oposição política, surgiram estruturas repressivas voltadas especialmente para o combate dos cidadãos acusados de violarem os interesses da Segurança Nacional. A seguir, trata-se do surgimento da estrutura repressiva do Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, do II Exército brasileiro. O DOI CODI/II Exército: conceitos e pensamento em comum A criação do Departamento de Polícia Federal, com atuação nacional, surgiu somente após o Golpe Civil Militar de 1964. Até 1969, a repressão política era atividade essencialmente desenvolvida pelas Secretarias da Segurança Pública e os DOPS (Departamentos de Ordem Política e Social) de cada estado. A centralização da repressão à dissidência política ocorreu a partir do nascimento da Operação Bandeirante (OBAN), em julho de 1969, definida pela Diretriz para Política de Segurança Interna, do 15 Governo Costa e Silva. A contar dos resultados alcançados através da OBAN, a Ditadura Civil-Militar avançou na concessão do campo de atuação dos Comandantes Militares de Área (CMA), sendo que, em setembro 1970, surgiu nova orientação para o combate à dissidência política no Brasil. Trata-se da Diretriz Presidencial de Segurança Interna, elaborada no governo do general-presidente Médici, a qual possibilitou a existência dos Destacamentos de Operações de Informações (DOI), em nível federal. O “combate à subversão”, segundo Ustra, foi reorganizado: De acordo com essa Diretriz, em cada Comando de Exército, que hoje se denomina Comando Militar de Área, existiria: um Conselho de Defesa Interna (CONDI); um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI); um Destacamento de Operações de 16 Informações (DOI); todos sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército.

No discurso, o governo de Médici seria marcado pela busca da “democracia e do desenvolvimento”, os quais conforme suas palavras, seriam:“(...) atos de vontade coletiva que cabe ao 17 Governo coordenar e transformar em autênticos e efetivos objetivos nacionais”. Para auxiliar os esforços do governo, na busca por seus objetivos, o Exército Brasileiro desenvolveu uma linha de ação genuinamente brasileira que serviu de ensinamento para vários outros países: Isso ocorreu com a criação dos CONDI, dos CODI e dos DOI e com o empenho de apenas 450 homens do seu efetivo, distribuídos aos DOI. O restante do pessoal dos DOI era complementado com os bravos e competentes membros das Polícias Civil e Militar dos Estados. O Exército, através dos Generais-de-Exército, Comandantes Militares de Área, centralizou, ordenou, comandou e se tornou responsável pela condução da Contra-subversão no país. Os DOI eram a força pronta para o combate, diretamente a 18 eles subordinados.

Importa salientar que a justificativa para o engajamento das Forças Armadas, em especial o Exército, no combate aos opositores da Ditadura Civil-Militar, está contida na alegação de que tanto o Departamento de Polícia Federal, quanto as Secretarias de Segurança Pública, com raras exceções, não tinham estrutura adequada e nem preparo para cumprir essa tarefa. A centralização do planejamento e a execução das atividades repressivas no Exército Brasileiro, na visão dos idealizadores do Livro Negro do 19 Terrorismo no Brasil (ORVIL), foram importantes por suprir a falta de um organismo que assegurasse o

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GUAZELLI, Cesar Augusto Barcellos. História Contemporânea da América Latina 1960-1990. 2 Ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 28-29. PEREIRA, Freddie Perdigão. O Destacamento de Operações de Informações (DOI). Histórico papel no combate à subversão – Situação atual e perspectivas. Monografia. Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Rio de Janeiro, 1978, p. 6. Documento Confidencial. USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI. 29set.70-24jan.74. Brasília: Editerra, 1987, p. 67. MÉDICI, Emílio Garrastazu. O jogo da verdade. 2 ed. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1970, p. 11. USTRA, Carlos Alberto Brilhante, op. cit., p. 68, grifos nossos. O Livro Negro do Terrorismo do Brasil (Orvil) é resultado da pesquisa e narrativa de ex-integrantes dos serviços de repressão política no Brasil, autoridades e servidores públicos. Afirma-se que foi escrito, nos anos de 1986 a 1988. O ano de 2007 é o período em que o Orvil veio à luz. Calcula-se que apenas quinze cópias tenham sido feitas do documento, o qual permaneceu guardado durante 19 anos. Para maiores detalhes, ver: FIGUEIREDO, Lucas. Olho por olho: os livros secretos da Ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 11.

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20

planejamento integrado e a pronta e eficiente execução nos estados e em nível nacional. O processo de assunção do Exército brasileiro da coordenação da repressão política ocasionou o surgimento dos DOI. Com isso, a estrutura repressiva deste órgão repetia o mesmo trabalho da OBAN, constituindo-se em corpo de polícia política dentro das organizações militares do Exército. Na visão de Elio Gaspari: Repetia-se no DOI o defeito genético da Oban, misturando-se informações, operações, carceragem e serviços jurídicos. O destacamento formava uma unidade policial autárquica, concebida de forma a preencher todas as necessidades da ação repressiva sem depender de outros serviços públicos. Funcionou com diversas estruturas e na sua derradeira versão tinha quatro seções: investigação, informações e análise, busca e 21 apreensão, e administração. Dispunha de uma assessoria jurídica e policial.

Ademais, nas palavras do primeiro comandante do DOI/CODI/II Exército, observa-se a necessidade de “flexibilidade” no desempenho de suas funções, pois segundo ele, não se conseguia “combater o terrorismo amparado nas leis normais, eficientes para um cidadão comum. Os terroristas 22 não eram cidadãos comuns”. Há de se notar que este argumento, possivelmente, seja utilizado para justificar a organização do DOI/CODI Paulista, bem como a prática de diversas violações de Direitos Humanos, no tratamento dos presos políticos. De todo maneira, Carlos Fico avança na visão sobre a flexibilidade do organismo repressivo da Ditadura Civil-Militar, e o define de forma objetiva: Os DOI seriam uma espécie de 'anticorpo mutável', diante da nova 'virose' da guerrilha urbana. (…) Os 'destacamentos', diferentemente das 'companhias', 'batalhões' ou 'regimentos', não possuem, nas organizações militares, uma composição fixa. Assim flexíveis, os DOI podiam movimentar pessoal e material variável, conforme as 23 necessidades de cada operação, com grande mobilidade e agilidade.

Para concluir a reflexão sobre a estrutura repressiva do DOI/CODI/II Exército, retoma-se as ideias de Carlos Fico acerca do Sistema de Segurança Interna, ao apontar-se a existência de um ethos repressivo, entre os agentes da repressão. Sua base principal era a memória fundada na noção de 'guerra interna', que tendia não apenas a identificar um inimigo interno, mas a superestimar sua 24 capacidade ofensiva. Os agentes do DOI/CODI/II Exército agiam através de um conjunto de costumes e hábitos diretamente relacionados à prática sistemática de abusos de Direitos Humanos: prisões ilegais, torturas, desaparecimentos forçados, mortes e ocultação das suas reais causas. Neste contexto, é significativa a entrevista do ex-Sargento do Exército Marival Chaves, Analista de informações do Exército, o qual prestou seus serviços junto ao DOI/CODI/II Exército entre 1970-1976. Para Marival Chaves, o combate à dissidência política era desenvolvido por dois tipos de pessoas, sendo que: O primeiro com vocação para matar, inspirado pelo ódio. O outro não tinha vocação para o crime, mas estava impregnado pela doutrina de segurança nacional. Esses 25 matavam por achar que estavam salvando o país do comunismo.

Por fim, o ethos repressivo, dos agentes do Destacamento de Operações de Informações (DOI) de São Paulo, teria sua base jurídico-filosófica estabelecida, em meados de 1968, nos debates promovidos na ESG, para qual “prender, torturar, matar, tudo é permitido para defender a Segurança 26 Nacional.” A Ofensiva do DOI/CODI/II Exército sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB) Para compreender o contexto repressivo, dos anos de 1975 e 1976, no qual ocorre a ofensiva final do DOI/CODI/II Exército sobre o PCB, é necessário recordar, dentre outros acontecimentos que contaram com a participação de membros daquele partido, o momento no qual a distensão lenta, gradual e segura chega aos presídios. A partir de 1975, nascia o reconhecimento dos opositores à Ditadura CivilMilitar, com a repercussão das lutas que, em todo o País, eram travadas nas prisões, não havendo mais 20

21 22 23 24 25 26

O Livro Negro do Terrorismo no Brasil, p. 453. Cópia digitalizada. Disponível em: <http:<//www.averdadesufocada.com/images/orvil/orvil_completo.pdf>. Acesso em 07 jan. 2013. GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 180. USTRA, Carlos Alberto Brilhante, op. cit., p. 85. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 123. Ibid, p. 136. VEJA, Edição 1262, 18 de novembro de 1992, p. 30. FON, Antônio Carlos. Tortura: a História da repressão política no Brasil. 5 Ed. São Paulo: Global, 1980, p. 27.

154


27

como afirmar que no Brasil não existiam presos políticos. No período de 1968 a 1974, a repressão policial-militar se concentrou no combate à guerrilha e alvejou menos o PCB. Deste modo, ocorreu na visão de Jacob Gorender, descuidos em relação à segurança dos membros do PCB, revelando que o Partido abriu-se em excesso na campanha eleitoral de 1974, quando o MDB alcançou o primeiro êxito significativo. Os órgãos policiais não tiveram dificuldades para desarticular o Partidão e paralisar sua alta direção. Juntando as quedas dos anos anteriores às de 1974-1975, metade do Comitê Central foi parar nas garras do inimigo.(...) Exilados quase todos os dirigentes em liberdade, o PCB deixou de ter uma direção nacional 28 atuante no Brasil entre 1975 e 1980.

Os efeitos da atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército sobre o PCB, entre outras organizações políticas, podem ser verificadas na Tabela 1, constituída através de registros estatísticos das Forças Armadas. O DOI/CODI/II Exército, no período de 1975 a 1977 deteve diretamente 224 cidadãos. Nesse período, 4 pessoas foram mortos no próprio Destacamento de Operações de Informações (DOI) de São Paulo. Resultados alcançados entre 1975-1977

Total

Presos pelo DOI

224

Encaminhados ao DOPS para Processo

158

Encaminhados a outros Órgãos

9

Liberados

59

Mortos

4

Presos recebidos de outros Órgãos

97

Encaminhados ao DOPS para Processo

46

Encaminhados a outros Órgãos

43

Liberados

8

Mortos

0

Elementos que prestaram declarações e foram 55 liberados Total de cidadãos que passaram pelo DOI/CODI/II 376 Exército Tabela 1 Resultados alcançados pelo DOI/CODI/II Exército

29

De outro modo, Elio Gaspari apresenta detalhes da ofensiva do aparelho repressivo estatal sobre os militantes do PCB, ao afirmar que após o aniquilamento dos militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), na região do Araguaia, inicia-se também, no ano de 1975, a ofensiva sobre o PCB, no momento em que: Descobrira-se uma base do Partidão dentro da Polícia Militar paulista. Ela estivera invicta desde sua montagem, em 1946. Funcionava sob as rígidas normas de segurança do Setor Mil, ligando-se diretamente a um representante pessoal do secretário-geral do 27

28

29

SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Anistia no Brasil: um processo político em disputa. In: PEYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (orgs.) A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011, p. 196-197. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda basileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987, p. 232-233. Tabela elaborada a partir de dados encontrados em dois documentos distintos. O primeiro é de autoria de PEREIRA, Freddie Perdigão, 1978, op. cit. Documento Confidencial. Encartado no Anexo 4 da peça inicial da Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativo ao “Caso DOI/CODI/SP”. O segundo documento refere-se ao “Relatório de Estatística” de junho de 1975 pertence ao dossiê 50-Z-9-39702, f. 44, do Arquivo do Estado de São Paulo. Documento Confidencial. Reproduzido no artigo de POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Estatísticas do DOI-CODI. In: Revista ADUSP, Maio de 2005, p. 74-77. Disponível em: <http://www.adusp.org.br/files/revistas/34/r34a10.pdf>. Acesso em 11 de jul. de 2012.

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30

PC. Na sua liquidação, prenderam-se 63 policiais.

A morte do tenente reformado da Polícia Militar de São Paulo, José Ferreira de Almeida, ocorrida em 08 de agosto de 1975, fez parte de um conjunto de mortes, de militantes do PCB, bastante semelhantes. Para detalhar a situação envolvendo os abusos de Direitos Humanos, praticados no DOI/CODI de São Paulo, contra José Ferreira de Almeida, segue-se o relatório oficial da Presidência da República, Direito à Memória e à Verdade: O corpo do tenente foi velado no Hospital Cruz Azul da Polícia Militar, sob ostensiva vigilância de agentes de segurança do II Exército.(...) Pelo menos três presos políticos pertencentes à Polícia Militar, o major Carlos Gomes Machado, o capitão Manoel Lopes e o tenente Atílio Geromin, denunciaram na Justiça Militar as torturas sofridas pelo 31 tenente.

A atuação do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, durante o período de 1964-1985, na defesa dos militantes políticos perseguidos, é bastante importante, pois permite desconstruir a versão do suicídio, elaborada pelo modus operandi do DOI/CODI/II Exército, no ocultamento das reais circunstâncias do homicídio do tenente reformado da Polícia Militar, pois: acompanhado da família de Almeida, da qual era advogado, constatou, quando da abertura do caixão entregue pelo DOI-CODI, a existência de sulcos no pescoço de Almeida, produzidos com o objetivo de legitimar a versão oficial. O corpo apresentava também, no entanto, evidências de tortura, fato que seria corroborado por documento 32 posteriormente obtido junto ao DEOPS/SP.

Três meses após a morte do tenente da PM, morria nas dependências do DOI/CODI II Exército e sob condições semelhantes, o jornalista Vladimir Herzog. Depois da morte de Herzog, o operário metalúrgico Manoel Fiel Filho também foi morto, nas mesmas condições e no mesmo local. Essas situações demonstram que no DOI/CODI/II Exército havia um modus operandi, voltado para o ocultamento da prática de torturas e assassinatos, o qual entrava em funcionamento quando não se conseguia fazer desaparecer os corpos de prisioneiros políticos. Essa situação evidencia-se na montagem da versão de suicídio, realizado por enforcamento a poucos centímetros do chão, como no 33 caso de José Ferreira de Almeida, Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho. Contudo, a relação de vítimas da atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército, resultado da ofensiva sobre o PCB, pode ser percebida de forma detalhada no relatório oficial da Presidência da República, Direito à Memória e à Verdade. (Tabela 2) Deste modo, o Estado brasileiro registra a existência de dez casos de mortes ou desaparecimentos forçados, na área de atuação do aparato repressivo do DOI/CODI de São Paulo, no período de 1975-1976. Além do que, registra também o episódio conhecido como a Chacina da Lapa, o qual findou com a morte de três componentes do Comitê Central do PCdoB.

30 31

32

33

Data

Condição

Nome

Organização Política

1

14/01/75

Desaparecido

Élson Costa (1913 – 1975)

PCB

2

15/01/75

Desaparecido

Hiran de Lima Pereira (1913 – 1975)

PCB

3

08/08/75

Morto/Suicídio

José Ferreira de Almeida (1911 – 1975)

PCB

4

29/09/75

Desaparecido

José Montenegro de Lima (1943 – 1975)

PCB

5

25/10/75

Morto/Suicídio

Vladimir Herzog (1937 – 1975)

PCB

GASPARI, Elio. A Ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 159-160. BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007, p. 401. MONTENEGRO, Darlan; MOTTA, Luiz Eduardo Perreira. Luiz Eduardo Greenhalgh: um militante dos direitos humanos. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio (orgs.). Os advogados e a Ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010, p. 211. MORAES, Mário Sérgio de. Memória e cidadania: as mortes de Vladimir Herzog, Manuel F. Filho e José F. De Almeida. In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (orgs.) Desarquivando a Ditadura: memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo e Rothschild Editores, 2009, p. 58.

156


6

07/01/76

Morta

Neide Alves dos Santos (1944 – 1976)

PCB

7

17/01/76

Morto/Suicídio

Manoel Fiel Filho (1927 – 1976)

PCB

8

16/12/76

Morto

Ângelo Arroyo (1928 – 1976)

PCdoB

9

16/12/76

Morto

João Batista Franco Drumond (1942 – PCdoB 1976)

10

16/12/76

Morto

Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar PCdoB (1913 – 1976)

Tabela 2: Mortos e Desaparecidos na área de atuação do DOI/CODI/II Exército

34

Conclusão Dos desdobramentos deste trabalho, cabe destacar a defesa da proposta interpretativa representada pela atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército, durante o período da chamada abertura lenta, gradual e segura, e sua relação com a permanência do quadro de vulnerabilidade dos direitos humanos, destacando-se nesse caso a ofensiva sobre o PCB. Nos resultados alcançados pelo estudo sobre o DOI/CODI/II Exército, entre o período de 1975 e 1977, através de estatísticas elaboradas por membros das Forças Armadas, é possível avaliar a situação de vulnerabilidade dos Direitos Humanos. O aumento do número de presos diretamente, pelo próprio organismo repressor, evidencia a manutenção da produção de vítimas da polícia política da Ditadura Civil-Militar, delimitando a atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército, mesmo sob o período considerado de abertura lenta, gradual e segura. Ademais, as estatísticas dos resultados do DOI/CODI/II Exército, no período de 1975-1977, quando comparadas aos casos de violações de Direitos Humanos, registradas no livro-relatório, Direito à Memória e à Verdade, revelam que há assimetria entre os dados encontrados. O relatório oficial do Estado brasileiro, de 2007, registra dez casos de mortes ou desaparecimentos forçados, na área de atuação do DOI/CODI/II Exército, enquanto que as estatísticas do organismo repressivo apontam apenas quatro mortes. Contudo, a medida necessária para combater o esquecimento das violações de Direitos Humanos, praticadas por agentes públicos, nas dependências do DOI/CODI/II Exército, durante a Ditadura Civil-Militar, trata-se da ampla divulgação de documentos do período repressivo. Com isso, a democratização do acesso às informações acerca da atuação repressiva e da evolução das violações de Direitos Humanos, praticadas naquele organismo repressor, poderá colaborar com o desenvolvimento social da empatia, conseqüentemente, fortalecerá as alternativas de se evitar abusos de Direitos Humanos, praticados por agentes de segurança do Estado. Fontes Pesquisadas BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007. PEREIRA, Freddie Perdigão. O Destacamento de Operações de Informações (DOI). Histórico papel no combate à subversão – Situação atual e perspectivas. Monografia. Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Rio de Janeiro, 1978. Documento Confidencial. Encartado no Anexo 4 da peça inicial da Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativo ao “Caso DOI/CODI/SP”. Destacamento de Operações de Informações (DOI). II Exército. Relatório de Estatística. Junho de 1975. Dossiê 50-Z-9-39702, f. 44. Arquivo do Estado de São Paulo. Documento Confidencial. Veja, Edição 602, 19 de março de 1980. Veja, Edição 1262, 18 de novembro de 1992. O

Livro

Negro

do

Terrorismo

no

Brasil

(ORVIL).

34

Tabela elaborada a partir de dados extraídos de BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, op. cit., p. 396-427. Deve-se observar que o livrorelatório Direito à Memória e à Verdade, contempla apenas uma morte ocorrida no ano de 1977, pelos organismos repressivos da Ditadura Civil Militar. Trata-se da morte de Lourenço Camelo de Mesquita (1926 – 1977), militante do PCB, ocorrida na Cidade do Rio de Janeiro.

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Cópia

digitalizada.

Disponível

em:


<http:<//www.averdadesufocada.com/images/orvil/orvil_completo.pdf>. Acesso em 07 jan. 2013.

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77. Disponível em: <http://www.adusp.org.br/files/revistas/34/r34a10.pdf>. Acesso em 11 de jul. de 2012. SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Anistia no Brasil: um processo político em disputa. In: PEYNE, Leigh A.; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (orgs.). A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011. USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI. 29 Set.70-24 jan.74. Brasília: Editerra, 1987.

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Segurança Pública em dois atos: da polícia de repressão à polícia de aproximação Lívio Silva de Oliveira

1

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma análise comparativa entre (I) os procedimentos empregados na abordagem e produção de criminosos e a reação contra os mesmos pelos aparelhos de segurança do Estado no período da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985), e (II) as novas perspectivas de políticas públicas de segurança na democracia, que se apresentam como uma proposta preventiva e mediadora por parte das polícias, com a ideia de segurança cidadã e proximidade. As dimensões da violência (física, psicológica e simbólica) serão o cerne da análise comparativa entre os pressupostos que baseiam procedimentos de segurança em cada um dos períodos apresentados (I)(II). A metodologia escolhida para essa análise tem como bases teóricas abordagens históricas e sociológicas sobre o papel do Estado, no que se refere a distribuição de direitos, e a ação policial e suas especificidades. Palavras-chave: Violência – procedimentos policiais – militarização – Segurança Pública. Abstract: The objective of this work is to make a comparative analysis of (I) the procedures used in approach and production of criminals and the reaction against them by the state security apparatus during the Civil-Military Dictatorship in Brazil (1964-1985), and (II) the new perspectives of political public safety in democracy, which are presented as a proposal by the mediator and preventative police, with the idea of citizen security and proximity. The dimensions of violence (physical, psychological and symbolic) are the core of the comparative analysis of the assumptions that underlie the security procedures in each of the periods presented (I)(II). The methodology chosen for this analysis is theoretical historical and sociological approaches on the role of the state as regards the distribution of rights, and the police action and its specificities. Keywords: Violence – police’s procedures – Militarization – Public Safety.

1. Introdução O texto a seguir é um esforço reflexivo da pesquisa de conclusão de curso de graduação, e do tema de dissertação do curso de Mestrado deste autor. A monografia de Graduação e os textos apresentados em eventos acadêmicos, no ano de 2008, apresentaram o tema “Ditadura e Estado de Direito no Brasil”, a partir de uma análise sobre o Ato Institucional número 5 (AI-5) e sua influência nos processos políticos, com destaque para os procedimentos utilizados pelos agentes responsáveis pela segurança pública no período ditatorial (19641985), marcados pelo uso da violência em dimensões diversas (física, psicológica, e simbólica) e violação de direitos que passavam pela integridade física, o da ampla defesa, e até mesmo a livre 2 manifestação e associação política . A metodologia utilizada na referida pesquisa foi a consulta de materiais históricos (documentos, reportagens jornalísticas e produções acadêmicas) referentes aos recortes temporal e espacial citados, para uma análise sociológica dos acontecimentos. O tema da dissertação de Mestrado é a proposta de segurança pública mais democrática e cidadã, que vem ganhando força nos últimos anos. A ideia de uma polícia de proximidade, mais preventiva e mediadora em relação às ocorrências criminais, em detrimento as reações violentas da polícia contra os seus suspeitos (muitas vezes com um alto índice de letalidade nessas ações). Há de se observar que o foco dessa política são as áreas marginalizadas e de baixa renda, remetidas a um histórico de violência e criminalidade. Além disso, essa nova perspectiva de segurança pública se apresenta como alternativa de inclusão de direitos, já que não se encerra apenas nas ações policiais, englobando os entes federativos (União, Estado e Município) em políticas públicas que se aproxime mais 1

2

Formação acadêmica: Mestrando em Sociologia PPGS-UFRGS. Estudante-membro do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania (GPVC-UFRGS). Especializado em Sociologia Política e Cultura pela PUC-RIO. Bacharel em Ciências Sociais pelo Instituto de Humanidades – Universidade Candido Mendes.Vínculo institucional: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH-UFRGS). Endereço eletrônico: liviosilvadeoliveira@yahoo.com.br Telefone: (51) 33086890 – ramal 51/ (51) 98591490. Título da monografia de conclusão de curso: “O AI-5 e o Estado de Direito: Paradoxo de uma relação”. Título do artigo publicado: “Os Militares e a redemocratização no Brasil”.

160


3

dos cidadãos, e, com isso, o debate mais amplo sobre o tema . A metodologia para a pesquisa é o trabalho de campo, que consiste em entrevista com os atores envolvidos neste processo de política pública de segurança (gestores, policiais e a população), para reflexão por meio de referenciais teóricos 4 sociológicos, filosóficos e históricos . A análise comparativa desses dois períodos se faz necessária para compreensão e identificação de fatores históricos e sociais contribuíram para a formação atual dos agentes de segurança pública no Brasil, e quais os pressupostos que norteiam a sua conduta, desde o ethos e o habitus policiais. A problematização de representações cristalizadas sobre as origens dos procedimentos policiais referentes ao período da ditadura civil-militar no Brasil e seu legado no período democrático, desconstruindo algumas afirmações e analisando a sua continuidade. Na próxima seção serão apresentados e discutidos os contextos históricos referentes ao período da (I) ditadura brasileira (1964-1985) e o (II) período democrático, no que se refere aos procedimentos policiais e de segurança pública no país. 2. Segurança Pública em dois atos: da polícia de repressão à polícia de aproximação. 2.1. Contexto histórico da ditadura civil-militar (1964-1985): O intervencionismo militar como traço político. O período que antecede o golpe civil-militar de 31 de março de 1964 no Brasil é marcado por intensas e rápidas transformações institucionais no Estado brasileiro, que sofrera influências internas e externas. Destarte, apresenta-se um contexto global de bipolaridade entre dois blocos ideologicamente antagônicos e que disputam a hegemonia política e econômica após a segunda grande guerra. De um lado, os Estados Unidos da América (EUA), com sua democracia liberal que tem suas bases econômicas calcadas no capitalismo. Por outro lado, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou simplesmente União Soviética; (URSS), com sua formação política de partido único e economia socialista. Estes dois blocos influenciaram movimentos de independência de países na Ásia e na África, o que fez ruir impérios coloniais europeus, como o caso francês e o caso inglês, dando um novo desenho ao globo. Este período de bipolaridade é conhecido como “guerra fria”. Os dois blocos jamais entram em conflito armado direto um contra o outro em seus territórios, mas disputavam de forma violenta a hegemonia em países subdesenvolvidos, financiando e apoiando guerrilhas armadas e/ou governos autoritários na África, na Ásia e na América Latina (HOBSBAWN, 1996). Com efeito, tanto URSS, quanto EUA tinham características expansionistas de dominação hegemônica. No caso latino-americano, podemos destacar o caso cubano como emblemático para o continente. Em 1959, com a subida ao poder em Havana dos guerrilheiros de Sierra Maestra, sob a liderança de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara, começou a se formar o primeiro Estado de orientação socialista nas Américas. Devido sua posição estratégica em relação aos EUA, Cuba ganhou apoio político e econômico da URSS, mas ficou sob ameaça constante de Washington. É válido observar que essas efervescências sociais são um traço marcante na América Latina no século XX, mas a revolução cubana foi um divisor de águas para os jovens do continente por se apresentar como possibilidade efetiva de mudança de um sistema político-institucional através da luta armada. Eric Hobsbawn se utiliza das afirmações do filósofo alemão da Escola de Frankfurt Herbert Marcuse a respeito do fascínio pela violência por parte da juventude estudantil, que seria o catalisador da transformação para a revolução socialista em detrimento ao operariado numa sociedade industrial, tendo em vista que Castro e Guevara eram homens jovens e de formação universitária (32 anos e advogado, e 30 anos e médico, respectivamente) (HOBSBAWN, 1996). Os setores mais conservadores das forças políticas latino-americanas, incluindo o Brasil, se mostraram contrárias as possíveis mudanças. O apoio dos Estados Unidos foi fundamental para a manutenção da ordem social vigente, e deter o avanço da esquerda. Na perspectiva de Washington, os militares da América Latina seriam o bastião contra os comunistas, lhes seria oferecida ajuda logística e tática, chegando a ser proposto, no governo Einsenhower, que as forças armadas tomassem formato de guerrilhas, mais ágeis, para combater o inimigo externo e fazer a segurança pública (FICO, 2008). O investimento na formação de uma elite militar latino-americana, que procedesse de forma condizente com os projetos expansionistas dos EUA, deu origem da Escola das Américas, na área do canal do Panamá, em 1946. Além disso, a política traçada pelo secretário assistente de Estado para Negócios Interamericanos, Thomas Mann, batizada de "doutrina Mann", foi explicada num artigo do New York Times do início de março de 1964: "Os Estados Unidos não mais procurariam punir as juntas militares por derrubarem regimes democráticos", corroborando ao Golpe de 1964 (OLIVEIRA, 2008). 3 4

Programas como o PRONASCI e o RS Na Paz são exemplos desta nova mudança. A pesquisa de dissertação de Mestrado se encontra em andamento.

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Os antecedentes internos do Golpe de 1964 são a renúncia de Jânio Quadros a presidência da 5 República, e o impedimento por parte dos Ministros militares da posse de seu vice, João Goulart, em 1961 (ALMEIDA, 1997; DREIFUSS, 1981). Jango, como era conhecido o vice-presidente João Goulart, estava na China, em missão oficial ao país comunista. Essa aproximação do Brasil a países não alinhados, a condecoração de Che Guevara com a ordem do Cruzeiro do Sul em agosto de 1961, foram significativos para que as forças políticas conservadoras, inclusive setores militares, identificassem em Jango – que tinha origem política no sindicalismo – uma liderança comunista. A posse de Jango foi possível pela resistência liderada pelo então Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, no levante chamado de “Campanha da legalidade”, em 1961. Brizola se aquartelou no Palácio Piratini, sede do governo estadual, com seus partidários e suas polícias, forçando o III Exército a 6 negociar e, posteriormente, aderir à campanha (ALMEIDA, 1997) . João Goulart tomou posse com poderes esvaziados no ano de 1961. Em 1963, houve um plebiscito que restaurou os seus poderes de presidente da República. Com isso, Jango pode dar início aos seus projetos de reformas de base, que causou reações negativas por parte de setores conservadores. Em 1964, houve a revolta do sindicato dos cabos e marinheiros da Marinha de guerra – liderados pelo Cabo Anselmo – por direitos como o de casar e os direitos políticos, foi condenada pelos comandos militares, porém o presidente, comandante em chefe das forças armadas, foi a favor dos revoltosos. Essa postura foi encarada pelos comandos militares como uma quebra de hierarquia, uma contradição. A falta de compromisso constitucional dos militares se apresentou latente, aparentemente apenas reconheciam a autoridade das fardas e das patentes, ignorando a legalidade constitucional da autoridade civil. Este acontecimento serviu de pretexto para que setores militares aderissem aos movimentos políticos civis que resultaram no golpe de Estado em março de 1964. Com efeito, pode-se identificar que o intervencionismo dos militares foi uma marca deste período de efervescência, tanto social, quanto política. Esta característica teve reflexos na Segurança Pública, acarretando profundas mudanças no período ditatorial. 2.2.

Polícia repressiva: militarização da segurança pública.

O regime de exceção imposto em 1964 acarretou em profundas mudanças sociais e políticas. A manutenção de um status quo de setores elitistas foi se tornando cada vez mais evidente, e, gradativamente, mais violenta por parte de quem ocupava os cargos de poder no Estado, com a continuidade da ditadura. As oposições a esse regime eram reprimidas com severidade, muitas vezes de forma violenta. As polícias militares, que até então tinham papel secundário na segurança pública, começaram a atuar nas ruas, desde o controle do tráfego até manifestações públicas indesejadas, 7 incorporando as atribuições das guardas civis, extintas no ano de 1969 ; e subordinadas ao Exército através da Inspetoria Geral das Polícias Militares. A responsabilidade do policiamento preventivo e ostensivo se torna exclusivo da polícia, e o combate aos conflitos sociais atendem aos interesses políticos (NÓBREGA JÚNIOR, 2010). Com o endurecimento do regime contra seus opositores teve o seu ápice no dia 13 de dezembro de 1968, o então Presidente, General Arthur da Costa e Silva, decretou o ato institucional número 5 (AI5). O AI-5 cassou os direitos políticos e civis, fechou o congresso nacional, institucionalizou a censura, aumentando a repressão contra os opositores do regime. As manifestações públicas de cunho político foram consideradas ilegais, passiveis de serem enquadrados no crime de lei de segurança nacional (DREIFUSS, 1981; FICO, 2004). Nesse sentido, as dimensões da violência (física, psicológica, e simbólica) empregadas pelos setores de Segurança Pública na sua abordagem e em seu procedimento, como a prática da tortura, prisões ilegais que se configuravam em sequestros de Estado – sem trâmites legais e sem a habeas corpus – e execuções sumárias de opositores, em especial aqueles que aderiram a luta armada (OLIVEIRA, 2008). Com efeito, essas práticas foram extensivas às camadas de mais pobres da população brasileira, historicamente reprimidas pelas forças policiais, estigmatizadas pela marginalidade e criminalizadas, diferenciando os métodos, que antes eram as chicotadas (LAGE, MIRANDA, 2007). A afirmação do Sociólogo José Tavares dos Santos sobre a transição do trabalho escravista para o modo capitalista de trabalho, e o papel da coerção física violenta na relação entre os aparatos repressivos e a população urbana e rural brasileira, remetem a outros períodos além da Ditadura civil-militar de 1964-1985: As práticas de tortura exercidas por agentes de diferentes polícias – no caso dos presos políticos, durante o Estado Novo ou o regime militar, ou dos presos comuns, durante o 5 6

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Ministros das três Forças Armadas: Marinha, Exército e Aeronáutica. As ordens dadas ao General Machado Lopes, então comandante do III Exército, era de prender o Governador. Caso Brizola não se rendesse, o Piratini seria bombardeado. Nenhuma das ocasiões citadas ocorreu (Almeida, 1997). Decreto-Lei federal nº 1.072 de 30 de Dezembro de 1969 (NÓBREGA JÚNIOR, 2010, P.114).

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regime civil da Nova República – indicam uma das facetas deste excesso de poder exercido por agentes da organização policial. Igualmente, as práticas de grupos parapoliciais, dos esquadrões da morte aos justiceiros, desencadeando operações de extermínio contra certos grupos sociais das populações pobres brasileiras, inclusive 8 jovens, apontam a violência difusa nas grandes cidades de nosso país .

Pode-se concluir que o excesso do uso da violência física, violência essa que o Estado possui monopólio legítimo, por parte dos agentes de segurança não foi o resultado da ditadura civil-militar. Os métodos excessivamente violentos de abordagem e procedimentos policiais são anteriores ao período citado, já que o uso violência física é o último recurso que deva ser empregado. Entretanto, a observação que se faz é a sobre a militarização da Segurança Pública no período da ditadura, que foram determinantes para a formação do modelo atual de polícias, que ainda privilegia o sistema repressivo como conduta (GUERRA CÂMARA, 2012). A hierarquia e a disciplina militares são latentes nas polícias militares. Além disso, as polícias civil e militar não são atores cooperativos, por terem atribuições distintas e não conseguem fechar um ciclo policial completo – que se caracteriza pela prevenção, patrulhamento das ruas, investigação e indiciamento do indivíduo a justiça – o que torna o sistema de segurança pública inoperante para a sociedade (NÓBREGA JÚNIOR, 2010). Segundo Nóbrega Jr.: A estrutura de Segurança Pública brasileira, que deveria ser de natureza civil e com fins de defender os interesses dos cidadãos brasileiros em quaisquer circunstâncias, se preocupa mais com a defesa dos interesses do Estado que da cidadania, onde o processo de militarização dessas instituições é a prova desse hiperdimensionamento do 9 Estado em relação aos cidadãos.

Porém, identifica-se uma característica corporativista nos setores de Segurança Pública. Com 10 término do período que vigorou o AI-5, em dezembro de 1978, e a posterior lei da anistia , no ano seguinte, os crimes cometidos pelos agentes de segurança do Estado, como tortura e ocultação de cadáver, este último com origem em homicídios causados pelos próprios agentes; foram anistiados. A lei abrange os crimes praticados por razão política – seja por parte dos sindicalistas e/ou de grupos guerrilheiros que se opunham ao regime, ou por parte dos agentes do Estado -, e não os crimes comuns, que eram utilizados os mesmos procedimentos de abordagem em todos os casos, de maneira geral, ou seja, a violência física, e até mesmo letal, se torna uma constante nos procedimentos policiais. Além disso, os crimes dos agentes não foram individualizados, diferentemente às penalidades aplicadas aos opositores da ditadura, sendo ações institucionais. Crimes de Lesa humanidade como a tortura, que são imprescritíveis, foram anistiados. É válido salientar que o corporativismo no Estado brasileiro não é exclusividade dos setores de segurança pública. Como qualquer instituição, as polícias também têm seus próprios interesses de classe, seja qual for sua natureza (OLIVEIRA, 2010). A própria função policial tem especificidades que singularizam a profissão policial no Brasil, como tomada de decisões rápidas sobre vida e morte no seu cotidiano (OLIVEIRA, 2010; TAVARES-DOS-SANTOS, 2009). 2.3 Redemocratização e Segurança Pública: violência física na formação do habitus e do ethos policial no Brasil pós-ditadura (1964-1985). O período de redemocratização do Brasil teve como marco a promulgação da Constituição Federal de 1988. Os regimes ditatoriais na América Latina, incluindo o Brasil, já não existiam no início dos anos de 1990, dando margem a governos civis de ordem neoliberal. O desgaste gerado por regimes que levaram países a recessões econômicas, e crises sociais, como pobreza e aumento da criminalidade, fez com que as ditaduras perdessem apoio internacional (D’ARAÚJO, 2002; HERMET, 2002). Os novos governos democráticos da América Latina encontraram muitas dificuldades para legitimar sua autoridade, tendo em vista suas ações ineficazes, por herdarem uma estrutura estatal personalista. Segundo Paul Ricouer, a autoridade é definida pelo direito de mandar, que caracteriza uma relação de poder assimétrica em que implica uma parte obedecer à outra, em que ele afirma: “Estranho poder que se assenta num direito, o direito de mandar, que implica numa reivindicação de 11 legitimidade.” . Com isso, essas dificuldades geraram frustrações por parte das populações dos países latino-americanos, que as democracias recentes não conseguiram alcançar as expectativas geradas, nos campos econômicos, social, jurídico e político (HERMET, 2002). Cabe a observação que autoridade não pode ser sinônimo de autoritarismo. Segundo Hannah Arendt o binômio mandar/obedecer sobre a 8 9 10

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In: TAVARES-DOS-SANTOS, 2009, p. 78. In: NÓBREGA JÚNIOR, 2010, p. 113. Lei nº 6. 683 de 28 de agosto de 1979. Fonte: Sítio do Presidência da República – Casa Civil – Subchefia para Assuntos Jurídicos: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm In: RICOUER, 2008. p. 101.

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autoridade, não é uma questão de persuasão, que colocaria a autoridade em suspenso, e nem de violência, porque a mesma teria falhado para ser empregada a força, pois Arendt afirma que a autoridade sempre é hierárquica (ARENDT, 1972). Os problemas da pobreza e aumento da criminalidade recaem na Segurança Pública. Como já foi dito, há um histórico de repressão dos aparelhos de segurança sobre populações marginalizadas e criminalizadas. Segundo Howard Becker o crime é um conceito falho nesse sentido, porque há uma correlação entre crime e pobreza, tendo em vista que os crimes de colarinho branco, por exemplo, por uma questão de prestígio social por parte de quem comete esse crime, com efeito, nesta perspectiva apresentada por Becker, o criminoso age em bando, geralmente, e de maneira violenta – armado ou não -, diferente dos crimes especializados como o de colarinho branco, que podem ser cometidos em um escritório (BECKER, 2007). Estes indivíduos são uma espécie de catálogo de suspeitos, tipos sociais que se enquadrariam valores depreciativos, que seriam “culpados até que se prove o contrário”, sujeitos a violência física ilegítima – que pode ser socialmente legitimada como método de investigação - e até mesmo subtração de sua vida, por parte dos responsáveis em reprimi-los que pode ocasionar confissões de delitos por parte deste indivíduo, para que não haja prejuízo da sua integridade física, por possuir características que o incriminem a priori, pela sua condição social, jurídica e econômica de vulnerabilidade (KANT DE LIMA, 1995, MISSE, 2010; OLIVEIRA, 2010; TAVARES-DOS-SANTOS, 2009). Com isso, a criminalidade é representada e percebida pela maneira violenta que o delito se apresenta, e não pelo seu tipo penal previsto em lei, se configurando um quadro de seletividade jurídica. É válido observar que na função policial há a pressão por resultados que sejam apresentados a autoridades e uma resposta para a sociedade do papel específico dos agentes de segurança pública, o que pode favorecer procedimentos ilegítimos de violência (OLIVEIRA, 2010). A seletividade jurídica de tipos sociais suspeitos e a modalidade do crime violento influenciam na construção da identidade policial, na medida em que se constrói a identidade antagônica do criminoso. Neste sentido, podemos entender que a violência é algo que afeta as ações de quem passa por um cotidiano violento, no qual as populações que vivem em territórios marginalizados se encontram em maior vulnerabilidade – o que não exclui os agentes de segurança deste cotidiano violento -, e como essa representação social se apresenta por um viés mais cognitivo do que racional (GAVÍRIA, 2008), não sendo um mero apanhado de comportamentos individualizados, mas a articulação de ações que acarretam numa ordem social (MACHADO DA SILVA, 2004). Neste processo de enfrentamento entre as forças policiais e os crimes violentos apresenta uma regularidade: a categoria juventude. O jovem tem uma relação ambivalente com a violência: ora ele é o agressor, ora é a vítima; em um contexto onde sua vida é um processo para conviver, ou superar a violência, além de implicar na transição para vida adulta, período ao qual a agressividade tem a positividade de habilitá-los a se autonomizar e a construir um lugar no espaço social (TAVARES-DOSSANTOS, 2009). Não são apenas os jovens de classes mais pobres que são vítimas da violência, que reforça a falha do binômio “pobreza e violência”, mas o abandono e a falta de perspectivas podem favorecer uma lógica de recrutamento para o crime dos jovens mais pobres, fato que pode acarretar em manifestações como vítimas de processo de exclusão social e vontade de serem reconhecidos como cidadãos (GAVÍRIA, 2008). Com efeito, a categoria juventude não é universal, tendo em vista as diversas representações e significados que variam quando analisadas pelas dimensões econômica, social, jurídica, política e outras mais. Dentro deste quadro se identificam maior incidência dos casos de violência física, ou até mesmo letal, a outras regularidades: étnicas (negros e pardos), de gênero (sexo masculino) e etárias (entre 15-24 anos). A política de segurança pública de enfrentamento armado contra o crime, por parte do Estado, se apresentou infrutífera. O número crescente de vítimas – tanto do lado policial, quanto do lado marginalizado – não só no aspecto físico e/ou letal, mas também psicológico da violência não diminuiu o número de ocorrências criminais. Sem embargos, outras propostas de políticas públicas de segurança foram sendo pensadas. A filosofia de prevenção e mediação de conflito para o policiamento comunitário, em especial as populações de territórios marginalizados, com maior proximidade e participação do cidadão, o que pode ampliar as políticas de segurança pública para além da ação policial.  Polícia de aproximação: prevenção e mediação de conflitos, e participação cidadã na Segurança Pública. Nos anos de 1990 começam a surgir propostas alternativas para o aumento da criminalidade e 12 da sensação de insegurança. Projetos como os Centros Integrados de Cidadania (CIC) , com a proposta de justiça social e aproximação do Estado na formação organizacional da comunidade, se aproximando da promoção de direitos humanos, e criticando o autoritarismo estatal (HADDAD, SINHORETTO, 2004): 12

Os CIC’s da referência correspondem ao Estado de São Paulo, que funcionaram entre 1996-2001.

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O funcionamento do CIC exigiu das instituições e dos profissionais duas inversões de prioridade: adequação de todos os serviços públicos à realidade dos conflitos (e não o contrário) e o deslocamento das autoridades no espaço da cidade. (...) Diante da “ausência” do Estado nas periferias, o equipamento deve, segundo o projeto, simbolizar a ocupaçãodo “vazio”, mediante oferta de serviços de segurança e justiça em áreas carentes desses equipamentos. A implementação disso exige uma reforma do Estado fundada na descentralização dos serviços. Assim idealizados, esses centros, teoricamente, deverão romper com o tradicionalmente oferecido: autoritarismo, 13 centralização,corporativismo e fragmentação.

Entretanto, com a incorporação dos CICs ao Governo Federal, 2000, a filosofia que fundamentava o projeto foi desvirtuada, servindo como estratégia de controle social e forma de repressão. A gestão destas ações ficou a cargo do Gabinete Institucional de Segurança, ligado a Presidência da República, cujos cargos são privativos de Oficiais das Forças Armadas (HADDAD, SINHORETTO, 2004). Apesar da intervenção militar, formas alternativas para Segurança Pública, começam a tomar forma e ganhar força nos meios políticos e sociais. Outras experiências semelhantes aos CICs se deram em outras partes do Brasil. A proposta de uma segurança pública cidadã, que não se encerre apenas na ação policial, se apresentou mais sistematizada com o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), em 2007, pelo Governo Federal. O PRONASCI vem com a proposta de Estado em redes, articulando os três entes federativos (União, Estado e Município) nas políticas públicas de Segurança, para diretrizes políticas, sociais e jurídicas; formação e capacitação de policiais e guardas municipais; e projetos de integração de comunidades marginalizadas e estigmatizadas com um histórico de violência e criminalidade. O PRONASCI também apresenta um foco específico no perfil de jovens descrito anteriormente neste texto: Além dos profissionais de segurança pública, o Pronasci tem também como público-alvo jovens de 15 a 24 anos à beira da criminalidade, que se encontram ou já estiveram em conflito com a lei; presos ou egressos do sistema prisional; e ainda os reservistas, passíveis de serem atraídos pelo crime organizado em função do aprendizado em 14 manejo de armas adquirido durante o serviço militar.

O PRONASCI possui projetos para a prevenção de delitos e mediação de conflitos. No caso, o texto vai abordar o projeto “Territórios de Paz” que se apresentam como uma nova perspectiva de combate ao crime em áreas periféricas com histórico de violência: São áreas da cidade caracterizadas por elevados índices de violência letal, que envolvem principalmente os jovens de 15 a 29 anos. O objetivo da identificação dessas áreas na cidade é que estas, por meio de diversas intervenções sociais e implantação de policiamento comunitário previstos pelo Pronasci, sejam pacificadas transformando15 se em Territórios da Paz. .

Com efeito, mudanças estruturais são identificadas nesta proposta de segurança pública, denotando um maior comprometimento de setores civis nestas políticas, que pode transformar a percepção dos atores sobre o combate ao crime. A experiência deste projeto no município de Canoas/RS é considerada modelo pelo trabalho realizado em Guajuviras, de atuação do município no tocante a segurança pública, com investimento em capacitação de sua Guarda Municipal e em tecnologia dos seus aparelhos, com trabalho integrado à comunidade da Brigada Militar e da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, e projetos sociais de inclusão da comunidade citada, que em dois anos de implantação (2009-2011) viu seus índices de criminalidade reduzidos (redução de 73,6% na taxa de homicídios, no primeiro 16 semestre de 2009), dando visibilidade ao projeto Território da Paz de Guajuviras : “No Território de Paz de Guajuviras, em Canoas, o último homicídio havia sido registrado no dia 05 de Maio de 2012. Passaram-se quatro meses e dezenove dias sem homicídios, em um dos bairros considerados mais violentos, antes da implantação do território da paz. Somente no dia 24 de setembro do corrente ano, registrou-se outra

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HADDAD, SINHORETTO, 2004. P. 73. Fonte: http://portal.mj.gov.br Fonte: Sítio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Pública de Porto Alegre – RS. http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smdhsu/default.php?p_secao=136 BOFF, Claudia; MERKER, Marcos. “Canoas comemora dois anos de Territórios de Paz”: In: Diário de Canoas. Canoas: Ed. Online, 08/10/2011. http://www.diariodecanoas.com.br/regiao/346951/canoas-comemora-dois-anosde-territorio-de-paz-no-guajuviras.html

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ocorrência no referido bairro .

Entretanto, na própria região metropolitana de Porto Alegre, os mesmos projetos não alcançaram o mesmo destaque que a experiência de Canoas. Além disso, pode ser apresentada a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), na cidade do Rio de Janeiro, como ocupação de territórios. As UPPs ganharam notoriedade midiática pelas suas ocupações espetaculares de favelas marcadas por um histórico violento, com apoio logístico das Forças Armadas – sendo empregado até carros blindados de Guerra nessas intervenções, e tropas de prontidão. A militarização dos territórios com as UPPs é um ponto problemático sobre a proposta dessa política – se ela é inclusiva ou uma forma de controle social? – tendo em vista que, efetivamente, o Estado se faz presente com o emprego do seu aparato de segurança (FLEURY, 2012). A formação do policial é um ponto fundamental para a mudança de abordagem e procedimentos específicos da profissão. A formação policial, mais voltada para mediação de conflitos e prevenção do crime, mais voltada para a garantia de Direitos Humanos e Justiça Social, com maior aproximação da população, se apresenta como necessária neste processo de transformação da Segurança Pública. Porém, pode haver controvérsias dentro da própria instituição policial, hierárquico e geracional, que podem influenciar no nível de comprometimento desses atores nos projetos do PRONASCI. Além disso, o histórico de repressão violenta, intensificados pela militarização da Segurança Pública; pode gerar desconfianças mútuas entre policiais e moradores de localidades marginalizadas e criminalizadas, o que pode se caracterizar numa dificuldade para efetivação dessas políticas públicas de segurança, que se propõe ser menos policial e mais cidadã. É válido observar que o agente de segurança não é um ser que gravita a margem da sociedade, ele é um ser social que tem origens em uma classe social e econômica e carrega valores pessoais para sua atividade profissional, que fazem parte da sua identidade, sendo uma construção mental passível de transformação. Algumas Conclusões: A análise comparativa dos períodos citados no texto apresenta algumas conclusões sobre o processo de mudança dos procedimentos policiais: (I) a militarização da segurança pública e (II) a proposta de transformação da política pública de segurança mais cidadã. Pode-se concluir que o intervencionismo militar na segurança pública no período ditatorial (19641985) foi determinante para a institucionalização de práticas violentas como métodos de procedimentos policiais. O processo de investigação repressiva para presos políticos se estendeu aos presos comuns, marcados por violências físicas e até mesmo letais. Entretanto, a repressão violenta é uma característica histórica dos aparatos de segurança no Brasil, em especial os suspeitos oriundos de classes mais pobres, não sendo uma invenção da ditadura civil-militar, a problemática é a permanência deste modus operandi no período posterior a promulgação da Constituição de 1988, e sendo até mesmo socialmente aceita no combate a criminalidade na democracia. Esse emprego da violência física e letal não diminuiu o número de ocorrências criminais, causando perdas de vidas e levando medo a população de maneira geral. A repressão violenta do crime começou a demandar alternativas para segurança pública. A perspectiva de reação não foi satisfatória, dando espaço à propostas preventivas para o crime. Com isso, as políticas de segurança pública ganham um viés integrado entre os entes federativos, onde a tais políticas não se encerram em apenas ações policiais, sendo necessária a reformulação da formação e da ação policiais para esta etapa de mudanças. O projeto “Territórios de Paz” sistematizou essas confluências em sua proposta: policiamento comunitário de aproximação e participação civil na formulação de política pública. Entretanto, a ocupação destes territórios por forças policiais podem suscitar perguntas se é um projeto inclusivo ou apenas mais uma forma de controle social. Com efeito, a mudança de uma polícia de repressão para uma polícia de aproximação não depende apenas das representações sociais dos gestores das políticas públicas de segurança, mas também, da mudança de mentalidade de como uma sociedade entende por justiça e por vingança, e como isso se reflete no trabalho policial.

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Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul – Cadernos de Dados Gerenciais por Municípios (2011-2012). Página 3: http://www.ssp.rs.gov.br/upload/20121029183330caderno_de_dados_gerenciais___setembro_2012_em_29 .10.12___municipios.pdf

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IV – Ditaduras e Imprensa

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Victor Civita e a Ditadura Civil-Militar Brasileira: a posição da revista Veja Edina Rautenberg

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Resumo: O objetivo deste artigo é problematizar as relações entre imprensa e ditadura, em especial demonstrar como a revista Veja se posicionou neste período e como atuou no sentido de formar determinado consenso em torno da ditadura civil militar e dos governos militares. Problematiza como os interesses de Victor Civita (dono da revista) foram reproduzidos nas páginas de Veja encobertos de preceitos como imparcialidade e neutralidade. Com interesses políticos, sociais e empresariais, somados aos interesses de frações de classe à qual a revista se vincula, Veja foi responsável por criar determinada memória sobre a ditadura e os governos militares. O artigo se baseia nas reflexões obtidas através da análise dos editoriais de Veja durante os oito primeiros anos da revista (1968-1976), e procura demonstrar como a revista atuou durante o período em que esteve sob editoria de Mino Carta. Palavras-chave: Revista Veja – ditadura civil-militar – editoriais – Victor Civita – Mino Carta. Abstract: The purpose of this article is to discuss the relationship between the press and dictatorship, in particular demonstrate how Veja magazine has positioned in this period and how acted to form some consensus around the military dictatorship and civil-military governments. Discusses how the interests of Victor Civita (owner of the magazine) were reproduced in the pages of Veja covert precepts as impartiality and neutrality. With political interests, social and business, together with the interests of class fractions which binds the magazine, Veja was responsible for creating specific memory about the dictatorship and military governments. The article is based on the reflections obtained by analyzing the editorials of Veja during the first eight years of the magazine (1968-1976), and explains how the magazine acted during the period he was under the Mino Carta's editorship. Keywords: Veja magazine – dictatorship and military – editorials – Victor Civita – Mino Carta.

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Este artigo é parte das reflexões já desenvolvidas em torno da temática Veja e ditadura, e se centra especialmente na análise dos editoriais de Veja nos anos de 1968 a 1976, observando como a revista se constituiu enquanto uma revista semanal de informação e como foi marcando seu 3 posicionamento partidário nos editoriais. Em especial, procuramos demonstrar como a revista demarcou sua posição enquanto esteve sob editoria de Mino Carta, e como foi a relação do dono da Editora Abril (Victor Civita) com a ditadura e com a equipe jornalística de Veja. Entendemos que os editoriais permitem uma visão mais clara do posicionamento da revista, já que é através do editorial que a revista firma-se enquanto sujeito. A temática já foi abordada por Carla Silva que trabalhou com os editoriais da revista Veja no período de 1989 a 2002. Em seu estudo, Silva buscou apreender o sentido da seção para a publicação, defendendo que a mesma constitui um espaço privilegiado para a criação discursiva do “sujeito Veja”. Segundo a autora, essa é uma forma de apagar os interesses concretos da revista em sua ação enquanto aparelho privado de hegemonia. Como constatou Silva, “nos editoriais percebemos como a revista busca se construir como intérprete da história atual, ocultando seu papel enquanto parte 4 interessada nessa mesma história” . Neste sentido, procuramos demonstrar, de maneira geral, como Veja foi se posicionando partidária e politicamente desde seu lançamento, em 1968. Veja surge exatamente no momento em que o Brasil vivia o chamado “milagre econômico brasileiro”. A ditadura militar proporcionou a aceleração da acumulação capitalista no Brasil, baseado na brutal concentração de riqueza e na recuperação das taxas de lucro que se tornaram possíveis através da superexploração e do superexcedente arrancado dos trabalhadores. Apesar de uma economia

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Mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. VINCULAÇÃO INSTITUCIONAL: Professora Colaboradora de História na UNIOESTE, campus de Marechal Cândido Rondon Refiro-me as minhas pesquisas de iniciação científica, trabalho de conclusão de curso e, principalmente, da dissertação de mestrado em História pela Unioeste, intitulada “A revista Veja e as empresas da construção civil (1968-1978)”. Para compreender o posicionamento partidário nos utilizamos das leituras e reflexões de GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. SILVA, Carla Luciana Souza. A Carta ao Leitor de Veja: um estudo histórico sobre editoriais. IN: Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.32, n.1, jan./jun. 2009. P.89.

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voltada para o consumo não ser um fator novo , é na década de 70 que ocorre um redimensionamento do mercado consumidor no país. Percebemos então que a Editora Abril investiu na criação de uma revista como Veja exatamente no momento em que se evidenciava a perspectiva de crescentes 6 faturamentos na “criação de necessidades” , quando o desenvolvimento econômico brasileiro possibilitou a criação de uma nova sociedade de consumo nos centros urbanos do país. Para além de Veja, a Abril já havia criado a Revista Quatro Rodas, em 1960, “junto com a implantação da nossa indústria 7 automobilística” . Para Jorge Freitas, Veja seria destinada a propagar para as classes médias dos 8 centros urbanos, os benefícios do desenvolvimento econômico . Além de representar um nicho de mercado que precisava ser explorado, o desenvolvimento econômico possibilitou também a modernização da revista. No entanto, como aponta Carla Silva, a modernização tecnológica levou à dependência política de Veja tornando “as empresas jornalísticas 9 progressivamente dependentes do capital externo” . Além disso, para garantir a presença dos anunciantes, é necessário que a linha editorial da revista seja favorável à política de idéias que vem dentro dos produtos anunciados ou de seus anunciantes. Em levantamento realizado por Daniela Villalta nos primeiros quatro números da revista, esta constatou que entre os principais anunciantes nacionais estavam as empresas estatais Eletrobrás (Centrais Elétricas Brasileiras), Loteria Federal, Plano Nacional de Habitações, Rede Globo de Televisão (anunciando a novela Passo dos Ventos e a Gata de Vison), Banco do Estado de São Paulo, Viação Cometa, dentre outros. Ou seja, havia a participação também da ditadura no apoio publicitário de Veja o que nos ajuda a pensar as relações entre esta publicidade e o que era publicado na revista sobre os governos militares e a própria ditadura. 10 Apesar do projeto ambicioso da Editora Abril ao planejar Veja , a revista não teve a recepção 11 esperada . Com uma proposta diferente para os padrões brasileiros (leitores acostumados com semanários ilustrados e revistas de economia e política), e se propondo a interessar-se por tudo, Veja 12 não atraiu muitas simpatias . Além disso, assim como os demais órgãos de imprensa, Veja foi censurada durante a ditadura militar. No entanto, por diversas vezes, procurou burlar a censura ou 13 demonstrar que estava sendo censurada . Esta postura acabou favorecendo a imagem da revista junto aos seus leitores, contribuindo também para que Veja fosse caracterizada enquanto uma revista de resistência à ditadura. No entanto, ao contrário da memória que Veja pretende reconstruir sobre sua atuação no período, o fato de ter sido censurada não representa uma postura de “esquerda” ou de contrariedade à ditadura. Como afirma Carla Silva:

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Como demonstra MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal, 1985. Com a criação de novos produtos e da possibilidade de parcelas da sociedade adquirir aqueles produtos, tornou-se necessário estabelecer novas relações sociais. Carla Silva em sua pesquisa nos anos 1990 constatou que grande parte das matérias de Veja de cunho cultural e comportamental traziam novos produtos a serem consumidos, produtos estes que eram anunciados na própria revista. Segundo Carla Silva, “consome-se o produto e o estilo de vida que sua publicidade propõe”. SILVA, Carla. Veja: O indispensável partido neoliberal 1989-2002. Niterói: UFF, Tese de Doutorado. 2005. P.494. Afirmação de Victor Civita no editorial da primeira edição de Veja. Momento em que o fundador fala das publicações da Editora Abril. Veja. Ed.01, 11/09/1968. FREITAS, Jorge Roberto Martins. A entrevista nas páginas amarelas da revista Veja: a imagem do milagre econômico sob o ponto de vista do primeiro newsmagazine brasileiro. Diss. Mestr. UFRJ, 1989. P.13. SILVA, Carla. Imprensa e Ditadura Militar: padrões de qualidade e construção de memória. In: Revista História e Luta de Classes. Ano 1 – Edição 1, Abril de 2005. P.44. Além do alto investimento financeiro baseado na impressão de 700.000 exemplares semanais, temos outros exemplos como a organização de duas festas de lançamento, onde foram convidados personalidades, autoridades e donos das maiores agencias de publicidade de São Paulo e Rio de Janeiro; a campanha publicitária na imprensa, com investimento de 1 milhão na época; o curso de jornalismo oferecido pela Abril para formar os profissionais qualificados para o trabalho na revista: Dentre 1800 inscrições, 100 jovens foram selecionados e ficaram hospedados por três meses, custeados pela empresa, para serem engajados em uma espécie de aprendizado rápido; etc. Mais informações sobre o processo de formação da revista podem ser encontrados em VILLALTA (1999), ABREU (2001) e SOUZA (1988). Interessante notar que apesar da crise, Veja procurava criar a impressão de ser um sucesso. O editorial da Edição 02, destinado a relatar a recepção de Veja, afirmava “Os telegramas e telex choveram a semana inteira. E todos contavam a mesma história: Veja era um êxito total”. Veja. Ed.02, 18/09/1968. A crise na Abril, resultante do fracasso na criação da revista, é citada e analisada também por Mario Sérgio Conti (1999) e Carmo Chagas(1992). Chagas afirma que Veja teria resistido a “dois anos inteiros de vermelho mais intenso que a mais intensa das hemorragias” (p.70), exigindo a cada semana mais injeção de capital naquela “operação fracassada”. Carla Silva afirma também que “os números do prejuízo aceitos pela editora estão em torno de US$ 6,5 milhões de dólares (nos anos 1960)”(p.45). Exemplos desta postura de Veja são demonstrados no artigo de Alzira Aves Abreu (1996), “Os anjos e os demônios da revista Veja. Um discurso contra a censura”; e no livro de Maria Fernanda Lopes Almeida (2009), “Veja sob censura:1968-1976”. Veja se utilizou desta estratégia nas edições 285 a 291.

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O fato de que os principais veículos das imprensas brasileiras foram censurados na ditadura não implica em que eles não tenham de diferentes formas apoiado e legitimado o regime. Além disso, reescreveram sua versão sobre sua própria atuação no processo, querendo se mostrar como críticos da ditadura. No caso de Veja, a revista tem investido ainda em construir uma memória sobre o golpe que procura amenizá-lo, banalizá-lo e 14 justificá-lo .

Acreditamos que a censura contribuiu para que a revista não falisse nos primeiros anos. Segundo Jorge Freitas, Veja “beneficiou-se da censura, porque sem censura seria mais difícil diferenciar15 se das outras publicações existentes no país” . Além disso, Veja conseguia – por meio de informações 16 obtidas através de contatos com o governo – diferenciar-se das outras publicações existentes no Brasil. Ao contrário de Maria Fernanda Almeida que defende que o prejuízo de Veja foi bancado com o lucro 17 das demais publicações da Abril, em especial os quadrinhos e telenovelas , não acreditamos nesta constatação. Como demonstra Carla Silva, a editora Abril sempre teve suas atividades em várias áreas. O seu parque industrial foi logo aperfeiçoado, permitindo a publicação de listas telefônicas, chegando aos anos 1970 capacitada a receber trabalhos bastante lucrativos, como a publicação dos livros do Mobral. Nos anos 1990, a Abril participou da compra de importantes editoras de livros didáticos, a Ática e 18 Scipione, em parceria com o grupo francês Havas . Atualmente a Abril detém 29% do mercado brasileiro de livros didáticos. Neste sentido, alegar que as demais revistas teriam sustentado Veja é mera retórica, já que os investimentos vindos do governo constituem parcela majoritária dos investimentos na Abril. Afirmamos que Veja não só não foi contrária ou neutra, como também foi favorável e por vezes defendeu à ditadura militar, por se beneficiar dos projetos, bem como pelas relações comerciais estabelecidas entre a Abril e o Governo. Em seu editorial de última edição do ano 1968, assinado por Victor Civita, percebemos Veja apostando que 1969 seria um ano “importante na marcha para o desenvolvimento. Acompanhamos com entusiasmo o progresso já produzido pelas novas rodovias, usinas, 19 indústrias e escolas que brotam no País inteiro” . Os editoriais de Veja deixam claro o apoio da revista ao Governo que levaria o Brasil ao desenvolvimento econômico e, muitas vezes a revista chegou a se 20 utilizar dos jargões de desenvolvimento nacional veiculados pelos órgãos oficiais . “E confiamos em que o trabalho honesto de dezenas de milhões de brasileiros – dentro de um clima de ordem e seriedade – 21 continuará contribuindo para o crescimento da Nação e o bem-estar de todos” . Percebe-se a reprodução da ideologia de Desenvolvimento e Segurança, onde o progresso só seria atingido dentro da ordem, portanto, todo brasileiro seria responsável de zelar por ela. E, para concluir, “O mundo espera muito do Brasil e o Brasil, de cada brasileiro. Veja procurará cumprir a sua parte, informando com 22 precisão, rapidez, imparcialidade e entusiasmo” . Estabelecido o papel dos cidadãos, Veja colocou-se como cumprindo também o seu papel de vigiar para que realmente aquilo que se espera para o Brasil fosse atingido. Interessante apontar que a crise de aceitação e vendas em Veja chega ao fim justamente quando a ditadura militar inicia uma de suas crises internas. Na sucessão de Costa e Silva, tramada dentro dos quartéis, e com a divisão existente no Alto Comando do Exército, Veja publicou sucessivas entrevistas e perfis de generais. De setembro a dezembro de 1969, Veja trouxe 14 capas com assuntos políticos. E os editoriais, assinados por Mino Carta, passaram a dar as opiniões de Veja sobre a necessidade da escolha de um líder político. 14

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SILVA, Carla. Imprensa e Ditadura Militar: padrões de qualidade e construção de memória. In: Revista História e Luta de Classes. Ano 1 – Edição 1, Abril de 2005. P.43. Outro trabalho da mesma autora que nos ajuda a pensar a permanente construção de memória sobre a história, em especial a forma como a grande imprensa reescreve sua atuação ocultando que apoiaram e sustentaram a ditadura é o artigo: “Ditadura apagada e Democracia forjada” (2011). FREITAS, Jorge Roberto Martins. Op. Cit. P.151. Devido ao fechamento do sistema político, os militares serviam como fontes de informação para grande parte da imprensa. Neste sentido, Jorge Freitas afirma que o general Golbery do Couto e Silva, constituía-se em fonte de informação para a revista Veja. Lembramos que este acesso era facilitado pelas relações pessoais estreitas de Golbery com Élio Gaspari, repórter e editor político de Veja desde 1969 até 1973. Gaspari posteriormente usará este mesmo “acesso privilegiado” junto à Golbery para publicar sua série de quatro livros sobre a ditadura militar. ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. Op. Cit. P.45. SILVA, Carla (2005). Op. Cit. P.51-52. Veja. Carta do Editor. Ed.16 – 25/12/1968. Como exemplo de um estudo sobre a tentativa de legitimação ideológica da ditadura, ver: ALVES, Ronaldo Sávio Paes. Legitimação, publicidade e dominação ideológica no governo Médici (1969-1974): a participação da iniciativa privada no esforço de legitimação. Estudos de inserções publicitárias na mídia impressa. Dissertação de Mestrado em História, Niterói, UFF, 2000. Veja. Carta do Editor. Ed.16. Op.Cit. Idem.

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(...) E os acontecimentos da primeira semana de setembro, com o seqüestro do embaixador americano, reforçaram a impressão de que o poder supremo da Nação 23 deveria ficar nas mãos de uma única pessoa . (...) Na página 26 está o retrato do novo presidente – não o nome, mas como ele deve ser. Veja procura responder à interrogação que domina este começo de semana, mas percebe-a maior do que aparenta ser. É possível que a Revolução, no momento difícil, tenha encontrado força e motivo para cumprir mais firmemente os seus propósitos e que 24 já se esboce uma revolução dentro da Revolução. (...) Foi assim que Veja pode revelar o plano de consultas que o Alto Comando das Forças Armadas decidiu fazer junto aos oficiais-generais de todo o País e oferecer um panorama completo da situação e do clima em que transcorre o esforço dos chefes militares para resolver, da melhor maneira, o problema da sucessão. Furtando-se a especular, Veja escolheu o caminho mais difícil: ouviu os personagens e anotou dados e fatos concretos. Por causa disso, tem certeza de estar cumprindo dignamente o seu 25 papel .

Segundo Juliana Gazzotti, as matérias sobre este processo sucessório foram chefiadas pelo editor Raimundo Pereira, que junto com sua equipe, foi responsável pela reportagem de capa desde a doença de Costa e Silva até a posse do general Médici. Com a experiência em torno da sucessão presidencial, Veja passou a ter domínio na cobertura política e aí desabrochou, deslanchou e ganhou 26 autonomia . No acompanhamento dos editoriais, percebemos que a própria revista procura reconhecer este “novo redirecionamento” voltado para as análises e coberturas políticas. Após as várias previsões e indicações nos editoriais sobre o novo Presidente, General Garrastazu Médici, e os relatos do trabalho dos jornalistas para levar aos leitores de Veja a melhor análise possível, constatamos o argumento da revista: “depois de ter atuado especialmente na área militar, nas últimas cinco semanas, Veja mostrava 27 agora a sua boa forma e rapidez de reflexos, dirigindo-se, no momento certo, para a área política” . Em dezembro de 1969, Veja publicou duas edições seguidas (03/12/1969 e 10/12/1969) sobre o problema da tortura praticada no Brasil, elaboradas também pelo jornalista Raimundo Pereira. Entretanto, apesar de Veja publicar as duas matérias altamente críticas ao regime, é interessante notar 28 que algumas edições depois o jornalista foi envolvido em imposições por parte do governo , que sugeriu que o mesmo seja retirado de Veja, o que é atendido pela diretoria da revista. Segundo Daniella Villalta: Pode-se então perguntar: não seria uma contradição que o próprio diretor da Editora Abril estivesse envolvido de perto com o problema da tortura levantado por seus colaboradores e, ao mesmo tempo, sua diretoria tivesse cedido às pressões do ministro do Planejamento da ditadura? Sim, as contradições, como já foi dito, permearam todas as relações políticas do período. Ora por questões puramente políticas, ora por interesses financeiros, ora por uma questão de oportunidade empresarial. No caso da Editora Abril, especificamente com relação ao tratamento dado por Veja aos acontecimentos políticos nacionais em seus primeiros anos, ou enquanto teve Mino Carta como editor-chefe, o problema das baixas em sua redação e da censura sofrida por alguns de seus números esbarrou nas relações políticas que, por sua vez, estavam 29 estreitamente ligadas ao aspecto financeiro .

Interessante apontar a dinâmica da revista: é a partir da cobertura política, iniciada através do trabalho de Pereira junto à cobertura do processo que vai desde a doença de Costa e Silva até a posse de Médici, que a revista Veja consegue se estabilizar no mercado. No entanto, quando esta cobertura 23 24 25 26

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Veja. Carta ao Leitor. Ed.54 – 17/09/1969. Veja. Carta ao Leitor. Ed.55 – 24/09/1969. Veja. Carta ao Leitor. Ed.56 – 01/10/1969. GAZZOTTI, Juliana. Imprensa e ditadura: a revista Veja e os governos militares (1968-1985). Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, 1998. P.71. Veja. Carta ao Leitor. Ed.58 – 15/10/1969. O episódio refere-se há uma matéria intitulada “Velloso e seus grandes impactos”, onde o tema central eram as diretrizes para o Governo Médici enfrentar o ano de 1970. Raimundo Pereira se utiliza de um tom bastante irônico para interpretar os fatos, o que desagradou profundamente o ministro e levou a publicação de uma carta deste desqualificando as informações de Raimundo Pereira. Apesar de Raimundo Pereira insistir que a carta devesse sair na seção de cartas, a direção decidiu publicá-la na seção de Política, como sugeria o ministro Velloso. Nesta ocasião, Raimundo Pereira pediu dispensa da editoria. Em comunicação interna, Edgard de Silvio Farias (um dos sócios da Abril) escreve para Roberto Civita pedindo a transferência de Raimundo Pereira já que este teria inspirado um novo endurecimento censório do governo em Veja. Pereira saiu do quadro da Abril em julho de 1970. VILLALTA, Daniella. Artesanato Industrial na produção jornalística de 1968. Op. Cit. PP.102-103.

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fere os interesses da ditadura, o dono da Abril não titubeia em dispensar parte do seu quadro jornalístico. Esta “troca de favores” é uma constante na revista. Em maio de 1975, após a publicação de uma charge feita por Millôr Fernandes, mostrando um prisioneiro a ferros e um carcereiro dizendo “Nada consta”, o Ministro da Justiça Armando Falcão determina que Veja seja censurada em Brasília, com o material mandado para lá até terça-feira à noite. Civita entrou em contato com o general Golbery do Couto e 30 Silva , ministro-chefe da Casa Militar, e lhe mostrou que isto significaria tirar Veja de circulação. Após dois dias, a exigência é desautorizada e a revista passa a sofrer apenas com a censura prévia. Em troca, Veja esboçava sua “admiração” pelo ministro, como exemplo o editorial de 18 de junho de 1975, quando a revista fez dele personagem central da reportagem de capa. Frases como “a serenidade está presente em todas as atitudes do general”; “são qualidades que, aliadas ao bom uso da razão”; “vivaz senhor de sorriso arguto e olhos brilhantes diante de raciocínios límpidos e conseqüentes”; “o general Golbery 31 dificilmente pode ser surpreendido por novidades talvez porque nunca deixe de procurá-las” etc., fazem parte dos vastos adjetivos que são utilizados para elogiar o general. O mesmo acontece com Mino Carta, levando a sua demissão, como demonstraremos posteriormente. As relações “amistosas” da Editora com o Governo começaram a aparecer de forma mais nítida em meados de 1970. Um exemplo é a edição 103, quando o editorial trouxe uma foto do então ministro Delfim Netto recebendo uma placa das mãos do editor da Abril ,Victor Civita. A legenda explicava: “O Ministro Delfim Netto, em visita à Editora Abril na semana passada, recebeu de Victor Civita, editor e 32 diretor, o medalhão com sua efígie que foi capa do nº 70 de Veja” . Interessante notar que em nenhum momento do texto presente neste editorial, há referências à foto ou a ação. A foto aparece no lado esquerdo da página, ocupando um espaço considerável, e só pode ser entendida a partir da legenda descrita acima. A capa do nº 70 à que a legenda se refere, é a edição de 07/01/1970, que traz uma moeda dourada com a cabeça de Delfim como símbolo. O título, “Porque Delfim é otimista”. Delfim Netto esteve no cargo de Ministro da Fazendo entre os anos de 1967 a 1974. Em setembro de 1970, ele e João Paulo dos Reis Velloso, foram os responsáveis pela elaboração de dois planos econômicos que levariam o Brasil ao “crescimento econômico”: I PND e “Metas e bases para a Ação do governo”, sendo que o último apresentava que “o Brasil precisaria crescer pelo menos 7% ao ano, incorporar as tecnologias mais modernas aos segmentos mais dinâmicos da sociedade e integrar 33 segmentos e regiões atrasados ao núcleo mais moderno da economia” . Já demonstramos em outros 34 trabalhos o “apreço” de Veja para com Delfim Netto, responsabilizando-o pelos “sucessos” nas políticas de exportação. Também Jorge Freitas constatou em suas análises que Veja ajudou a construir a imagem de alguns personagens importantes dentro do setor econômico e entre eles, destacava-se a figura de 35 Delfim Netto . Lembramos que entre os palestrantes que foram convidados pela Editora Abril para formar o quadro de jornalistas necessários para a criação de Veja, estava Delfim Netto, por estar entre os 36 “mais importantes em sua área na época” . Para entender o motivo do medalhão entregue por Civita à Delfim Netto, voltamos a edição 70, onde a reportagem de capa (de 10 páginas) narrou “O saldo do Ministro Delfim”. Nela Veja procurou criar uma imagem de Delfim Netto como um homem “bem humorado quando fala de sua política, veemente quando responde aos que a criticam. Antes de tudo, um homem satisfeito com os resultados do ano 37 passado” . Segundo a revista Delfim é um homem “seguro por natureza”, ágil e trabalhador. Isto é 38 “comprovado” com o fato de dois jornalistas de Veja terem passado “dois dias ao lado do ministro” , 39 dando credibilidade as informações repassadas pela revista. Para explicar “porque Delfim é otimista” , 40 Veja afirma que “o otimismo é um dado necessário à criação de um clima desenvolvimentista” . Relatando a trajetória do ministro e suas iniciativas tomadas no ministério, Veja demonstra concordar 41 com a forma de condução da economia proposta por Delfim : 30 31 32 33

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Que como já demonstramos tinha ligações estreitas com Elio Gaspari que trabalhava em Veja. Veja. Carta ao Leitor. Ed.354 – 18/06/1975. Veja. Carta ao Leitor. Ed.103 – 26/08/1970. PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. O ―milagre‖ brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973). IN: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilda de Almeida Neves (Org.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. RJ: Civilização Brasileira, 2003. p.221. Em especial o trabalho de monografia “A revista Veja e as multinacionais no Brasil (1968-1975)”. FREITAS, Jorge. Op.Cit. p.129. SOUZA, Ulysses Alves. Op. Cit. p.78. Veja. O saldo do ministro Delfim. Ed.70, 07/01/1970. P.42. Idem.p.46. Título da capa. P.50. No plano econômico proposto por Delfim Netto, a redistribuição de renda era reservada para um momento posterior, quando o crescimento econômico já teria se efetivado. Neste sentido, temos a célebre frase de Delfim Netto, “deixar o bolo crescer para dividir depois”, que é um exemplo clássico desta perspectiva.

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A filosofia do ministro pode ser assim entendida: se a riqueza nacional cresce de 100, não é possível distribuir senão esses 100; daí uma política ter que optar: quem ficará com essa nova fatia, ou com a maior parte dela? A resposta é esta: o assalariado vai querer ganhar mais apenas para consumir; a empresa desejará maiores lucros para investir, criar novas fábricas, novos empregos, de que o país precisa – logo, ela tem 42 prioridade .

Veja procura explicar de maneira didática a “fórmula” de Delfim. Até aí, não aparece de maneira explícita a posição da revista já que ela estaria apenas explicando a proposta do ministro. No entanto, logo abaixo Veja afirma que mesmo que, no momento, a fatia maior não seja dos trabalhadores, a 43 proposta do ministro já “deixa grande margem de esperança ao assalariado” . Segundo a revista: Não há mágico que possa fazer o contrário sem simultaneamente produzir inflação, iludindo o próprio assalariado. Aliás, a fórmula de reajuste salarial, já pelo segundo ano, proporcionou reajuste acima do aumento do custo de vida, exatamente porque o 44 governo deseja manter a participação dos trabalhadores no produto .

Ou seja, ao mesmo tempo em que legítima o fato de que os beneficiados do “desenvolvimento” fossem apenas os empresários, a revista procura criar uma acomodação dos trabalhadores já que os números demonstravam que também os trabalhadores tiveram um reajuste dos salários. Permanece a questão em torno dos motivos de Civita da entrega do medalhão à Delfim Netto, mas fica a satisfação do dono de Veja pela proposta econômica do ministro. O argumento de que o desenvolvimento econômico no Brasil só se tornou possível graças à ditadura e seus economistas, apareceu também nos editoriais de Veja. Como exemplo o primeiro editorial de 1974: Para o Brasil, onde o argumento do desenvolvimento é uma bandeira, foi um ano de PNB alto e largas exportações, graças também a fatores políticos capazes de manter agradável a temperatura e esperançosos os ânimos. Assim, o sóbrio e tranqüilo encaminhamento da sucessão presidencial, um episódio que no passado, em freqüentíssimas ocasiões, produziu abalos de escaladas agitadas, foi certamente decisivo. Em todo caso, o começo de 1974 traz para a área econômica, aquela sempre 45 e sempre saudável nos últimos anos, algumas e graves preocupações .

Através da afirmação de uma economia “sempre e sempre saudável nos últimos anos”, a revista propõe uma continuidade de desenvolvimento e de crescimento econômico proporcionado pela ditadura militar. No entanto, demonstra também sua preocupação com os rumos que a economia tomaria após a troca de presidente. O editorial remeteu-se à crise do petróleo, explicando sua reportagem de capa e relatando a preocupação da revista e o trabalho dos jornalistas em “detectar as possíveis implicações 46 que a crise pode ter no comportamento da economia brasileira” . Junto com as entrevistas realizadas pelos jornalistas com personalidades políticas, econômicas e empresariais, Veja chega a um veredicto sobre as perspectivas brasileiras em 1974: E, se há nessas manifestações os temores de conseqüências desagradáveis, nem por isso elas estão destituídas de otimismo. Porque nos eventos econômicos, que não são regidos pelas leis inflexíveis do mundo físico, sempre se pode fazer algo pela ação 47 eficiente do engenho e arte do homem

Na sucessão presidencial, Veja se colocou ao lado de Geisel, elaborando matérias de caráter abertamente geiselista. Entretanto, o suspense e o silêncio em torno das decisões e dos nomes dos futuros ministros, são fartamente criticados pela revista: (...) Assim, preservar o sigilo em torno dos nomes dos futuros ministros do governo do general Ernesto Geisel somente atiça as especulações que se pretenderiam evitar, embora seja ao mesmo tempo uma demonstração de notável lisura em relação aos que 42 43 44 45 46 47

Veja. O saldo do ministro Delfim. Op. Cit. p.51. Idem. Idem. Veja. Carta ao Leitor. Ed.278 – 02/01/1974. Idem. Idem.

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se preparam a sair. O excesso de precauções, o vaivém das confirmações veladas e dos desmentidos apressados e pouco convincentes acabam empurrando para a ribalta uma onda de rumores capazes de encobrir os próprios fatos e de causar um clima propício ao desassossego, além de favorecer a impressão de que a divulgação da lista 48 oficial acabará revelando algumas mentiras (...)

Segundo o editorial, a revista teria, várias vezes, “engatilhado” uma reportagem de capa sobre os novos ministros e sempre teve de recuar por falta de provas. Neste sentido, por várias vezes Veja reclamou em seus editoriais o mistério que envolvia a política ditatorial. Estas reclamações eram apoiadas na justificativa da responsabilidade social de Veja de informar o seu leitor, reforçando sua pretensão de quarto poder no qual a revista se apoiava. Para uma revista como Veja, já famosa por suas coberturas políticas, não poder cobrir um acontecimento importante como a sucessão presidencial, implicava em perder dinheiro e credibilidade junto aos leitores. Pouco antes da posse de Ernesto Geisel, em 15 de março de 1974, e durante os primeiros anos de seu governo, Veja passou a sofrer cortes sistemáticos em suas páginas. A partir deste momento, a revista passou a se utilizar de estratégias para denunciar a censura. Na edição 288, gravuras de anjos e demônios obrigaram Mino e Guzzo a uma visita à Polícia Federal. Por fim, sob ameaças e vetos da censura, a revista deixou de se utilizar deste artifício. Segundo Almeida, a opção foi também uma decisão da Editora, tendo em vista que com o tempo, os leitores deixariam de comprar uma revista com “espaços em branco” ou com imagens (como anjos e demônios) que nada teriam a ver com a realidade. Acertos entre o governo e Victor Civita fazem com que as “reclamações” e as críticas em relação ao silenciamento em torno do novo governo desapareçam dos editoriais. Importante destacar que os editoriais não refletiam críticas à ditadura, mas, como vimos na edição 283) ao fato da ditadura não disponibilizar suas propostas e encaminhamentos para a imprensa. Veja não era contrária a ditadura, afinal, esta havia propiciado um fortalecimento econômico da Editora Abril. Além disso, o “desenvolvimento econômico” proporcionado pela ditadura atenderia os extratos empresariais que sustentavam a revista e dos quais muitas vezes a revista expressava a opinião. A revista se posiciona contra a liberdade de expressão por vezes vetada por esta ditadura. Liberdade esta extremamente necessária para a continuidade de qualquer órgão de informação. Veja apoiou o governo de Geisel. Especialmente porque ele inicia com a proposta de restabelecer as liberdades democráticas: “1975 é um ano-chave para o definitivo e tão esperado encaminhamento de uma fórmula política destinada a restabelecer gradualmente no Brasil plenas liberdades democráticas, segundo os propósitos do governo 49 do general Ernesto Geisel” . Além disso, a relação estreita entre Geisel e Golbery e entre Golbery e a 50 imprensa , cria expectativas de um futuro promissor: Este hábito foi renovado pelo general Golbery no governo Geisel, o que faz dele uma fonte preciosa para o claro e livre entendimento do governo – e dos jornalistas, intérpretes dos humores da opinião pública junto ao Gabinete Civil da Presidência. Num momento em que a imprensa, ou pelo menos parte dela, continua sob suspeita, este 51 salutar intercâmbio soa como animador sinal de respeito recíproco .

A partir do editorial de 20/08/1975 é possível perceber certo descontentamento de Mino Carta. Reclamando da sua equipe, formada por profissionais “arredios e cheio de pudores”, Carta afirma não haver relatos interessantes em Veja. Tendo se posicionado criticamente em 1974 em relação ao “encobrimento” das informações realizado pelo novo governo, Mino Carta havia sofrido uma série de pressões por parte da ditadura. Com o prosseguimento desta postura, quatro ministros do presidente 52 Geisel exigiram a saída de Mino Carta da direção da revista . Segundo Nilton Hernandes, nessa época Victor Civita queria construir hotéis e os pedidos de empréstimos encalhavam na mesa dos ministros. Em dezembro de 1975, Mino Carta se despede de Veja, segundo ele, para três meses de férias. Ele nunca 53 mais volta à revista. Em 1976, Civita obteve o empréstimo .

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Veja. Carta ao Leitor. Ed.283 – 06/02/1974. Veja. Carta ao Leitor. Ed.330 – 01/01/1975. Já evidenciadas anteriormente. Veja. Carta ao Leitor. Ed.354 – 18/06/1975. Como demonstra HERNANDES, Nilton. A revista Veja e o discurso do emprego na globalização: uma análise semiótica. Salvador: Edufba; Maceió, Edufal, 2004. É claro que estas relações não aparecem na revista. Pelo contrário, a edição de 18/2/1976 é marcado por dois editoriais: um de Victor Civita e outro de Guzzo e Pompeu, destinado a “registrar o nosso pesar pela perda do amigo e velho colaborador” que teria pedido “demissão” da revista. Veja. Carta do Editor. Ed.389 – 18/02/1976. Esta demissão teria sido por “divergências surgidas com a direção da empresa durante suas férias”. Veja. Carta ao Leitor. Ed.389 – 18/02/1976.

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Não podemos negar que houve censura à imprensa durante o período estudado . Entretanto, não podemos esquecer a existência da auto-censura, ou seja, a obediência às proibições nas redações. Exemplo disso é a análise de Beatriz Kushnir, que analisou os procedimentos censórios no Brasil, do AI5 à Constituição de 1988, abordando a relação entre censores e jornalistas sob a perspectiva do 55 colaboracionismo, ou da não oposição às medidas repressivas . A revista Veja foi censurada e isto é um fato incontestável. Mas manifestações que reivindicavam a necessidade da ditadura também estavam presentes como estamos demonstrando. Além disso, a “troca de favores” entre Civita e a ditadura eram tão fortes a ponto do dono de Veja oferecer a “cabeça” 56 do seu próprio amigo para garantir os interesses da sua revista. Mino Carta havia sido responsável por praticamente todos os editoriais de 1969 até 1975. Neste tempo, de várias maneiras procurou mostrar as 57 formas de fazer jornalismo, consolidando o “estilo Veja” e angariando credibilidade para a revista . Não defendemos uma postura mais à esquerda de Mino Carta como parte da bibliografia parece acreditar. Em junho de 1976 Veja é liberada da censura, levando-nos a acreditar na relação da censura com Mino Carta. Mas convém lembrar que Mino Carta se posicionou criticamente à ditadura quanto esta feriu os interesses da revista e os seus interesses profissionais. Em outros momentos, Mino Carta apoiou e exaltou o desenvolvimento proporcionado pela ditadura. Com a saída de Mino Carta, o editorial ficou sob responsabilidade de José Roberto Guzzo e Sérgio Pompeu. A partir deles, com as influencias diretas de Elio Gaspari, a posição de sintonia com a ditadura e seus eixos programáticos ficaram ainda mais claros. Como podemos perceber, Victor Civita se utilizou da revista Veja para angariar da ditadura militar, recursos financeiros e outros benefícios. Em troca, reproduziu na revista o discurso e o projeto desenvolvimentista da ditadura, além de atender as exigências propostas por esta (demissão de Raimundo Pereira e Mino Carta). No entanto, este projeto e esta posição não são evidenciadas na revista. Ao contrário, nossa pesquisa demonstrou todo o processo de construção editorial de Veja em se 58 declarar enquanto neutra, imparcial e honesta . Apesar das delimitações deste artigo, procuramos demonstrar que as falas de apoio à ditadura, não vieram apenas de Civita, mas também de Mino Carta, o que desconstrói as afirmações deste ter uma postura contrária a ditadura. Acreditamos na importância do trabalho com a imprensa durante a ditadura militar, pois a partir destas análises podemos analisar a importância desta na criação de consenso e de memória que auxiliaram na sustentação de uma ditadura de 21 anos e que constantemente reconstrói seu posicionamento daquele período.

Fontes Acervo Digital Veja, disponível em http://veja.abril.com.br/acervodigital/

Referências bibliográficas: ABREU, Alzira Alves de. Os anjos e os demônios da revista Veja. Um discurso contra a censura. In: MENEZES, Lenan (Org.). História e violência. APuh-RJ/CCS-UERJ. Rio de Janeiro, 1996. ABREU, Alzira Alves de. VEJA. In: Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Coordenação: Alzira Alves de Abreu. Ed.rev.atual. RJ, EFGV, CPDOC, 2001.

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Existem vários trabalhos que se detêm sobre analise da censura à imprensa escrita nesse período. Como exemplo citamos Paolo Marconi (1980), Gláucio Ary Dillon Soares (1989), Carlos Fico (2004), Maria Aparecida Aquino (1990), etc. KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Campinas: UNICAMP, 2001. Em 13/02/1974, em editorial assinado por Victor Civita, o editor relembra o projeto de lançar Veja e as dificuldades enfrentadas por ele e Mino Carta nos primeiros anos da revista, até chegar “á publicação corajosa”. Segundo Civita, “E tudo isso é somente um preâmbulo para informar aos leitores que, em recente reunião da diretoria da Abril, Mino foi convocado para lutas mais árduas. Além de continuar na direção de Veja, passa a integrar a diretoria da Editora. É um reconhecimento merecido, que vem acompanhado pelo aplauso unânime da empresa e pelo abraço pessoal de que invadiu este espaço privativo para saudar um excelente jornalista e querido amigo”. Veja. Carta ao Leitor. Ed.284 – 13/02/1974. Ou seja, assim como com Raimundo Pereira, Victor Civita não teve dúvidas ao ter que escolher entre um “bom profissional” e um bom amigo ou um favorecimento econômico por parte da ditadura. No editorial de 31/12/1975, quando do anuncio dos três meses de férias, Mino Carta desabafa: “Deixo-a sofrida no espírito, porém ainda e sempre esperançosa – e sadia fisicamente, com sua circulação média de 165.000 exemplares”. Resultados estes que infelizmente não puderam ser descritos neste texto, mas que podem ser visualizados em nossa dissertação de mestrado.

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ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo: Jaboticaba, 2009. ALVES, Ronaldo Sávio Paes. Legitimação, publicidade e dominação ideológica no governo Médici (19691974): a participação da iniciativa privada no esforço de legitimação. Estudos de inserções publicitárias na mídia impressa. Dissertação de Mestrado em História, Niterói, UFF, 2000. CHAGAS, Carmo; MAYRINK, José Maria; PINHEIRO, Luiz Adolfo. Três vezes trinta – os bastidores da imprensa brasileira. São Paulo: Editora Best Seller, 1992. CONTI, Mario Sérgio. Notícias do Planalto – a imprensa e Fernando Collor. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. FREITAS, Jorge Roberto Martins. A entrevista nas páginas amarelas da revista Veja: a imagem do milagre econômico sob o ponto de vista do primeiro newsmagazine brasileiro. Diss. Mestr. UFRJ, 1989. GAZZOTTI, Juliana. Imprensa e ditadura: a revista Veja e os governos militares (1968-1985). Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, 1998. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. HERNANDES, Nilton. A revista Veja e o discurso do emprego na globalização: uma análise semiótica. Salvador: Edufba; Maceió, Edufal, 2004. KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Campinas: UNICAMP, 2001. MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal, 1985. PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. O ―milagre‖ brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973). IN: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilda de Almeida Neves (Org.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. RJ: Civilização Brasileira, 2003. RAUTENBERG, Edina. A revista Veja e as empresas da construção civil (1968-1978). Dissertação de Mestrado em História pela Unioeste/MCR. Marechal Cândido Rondon, 2011. SILVA, Carla Luciana Souza. A Carta ao Leitor de Veja: um estudo histórico sobre editoriais. IN: Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.32, n.1, jan./jun. 2009. SILVA, Carla. Grande imprensa brasileira: Ditadura apagada e Democracia forjada. In: SILVA, Carla; CALIL, Gilberto; CASTELANO, Maria José; Kolling, Paulo José (Org.). Estado e Poder: ditadura e democracia. Cascavel: Edunioeste, 2011. SILVA, Carla. Imprensa e Ditadura Militar: padrões de qualidade e construção de memória. In: Revista História e Luta de Classes. Ano 1 – Edição 1, Abril de 2005. SILVA, Carla. Veja: O indispensável partido neoliberal 1989-2002. Niterói: UFF, Tese de Doutorado. 2005. SOUZA, Ulysses Alves de. A história secreta de Veja. IN: Revista Imprensa. Ano II, nº 13, setembro de 1988. VILLALTA, Daniella. Artesanato industrial na produção jornalística de 1968. O surgimento da Revista Veja no contexto da modernização brasileira. Dissertação de mestrado em Teoria e Ensino da Comunicação. UMESP – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 1999. VILLALTA, Daniella. Reflexos da modernização econômica brasileira no mercado editorial de revistas. IN: Comum – Rio de Janeiro – v.14 – n°31 – p.117 a 143 – julho/dezembro 2008.

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O Tratamento das Revistas Semanais À Abordagem Do PNDH-3 Sobre A Questão da Memória e da Verdade

Diego Airoso da Motta

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Resumo: À luz da teoria da ideologia e do referencial metodológico da hermenêutica de profundidade, propostos por john b. Thompson, o texto busca analisar como a mídia brasileira trabalha a questão da memória histórica presente no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), a partir da forma como as revistas semanais Veja, Época, IstoÉ e CartaCapital trataram do tema. A escolha destes veículos de comunicação ocorre em função do poder de influência que detêm perante a opinião pública,seja diretamente sobre seu público leitor, seja sobre as pautas de outros segmentos midiáticos, além de exercer importante ascendência sobre as discussões realizadas no meio político. Palavras-chave: Direitos Humanos. Mídia. Memória. Comissão da Verdade. Abstract: based on the theory of ideology and methodological framework of depth hermeneutics, proposed by john b. Thompson, the text seeks to analyze how the Brazilian media works in issue of historical memory in the 3rd National Program for Human Rights (PNDH-3), from the way the weekly magazine Veja, Época, IstoÉ and CartaCapital treat the subject. The choice of these media is because of the holding power to influence public opinion, either directly on your readership, is on the agendas of other media segments, and have an important influence over the discussions at the political environment. Key-words: Human Rights. Media. Historical Memory. Truth Commission.

Apresentação O presente artigo busca levantar questões sobre as possibilidades e limites dos meios de comunicação como ferramenta de educação em direitos humanos, especialmente no contexto do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), em seu eixo “Educação e Mídia” (BRASIL, 2007). Para isso, propõe analisar a abordagem da mídia – precisamente as revistas semanais de informação geral brasileiras, de significativo poder de influência sobre as classes socioeconômicas médias e altas, sobretudo A e B, mas também C (BENETTI; HAGEN, 2010) – à questão da reconstituição da memória histórica e da verdade, na forma como tratado no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). O respeito aos direitos humanos, em sua integridade, só poderá ser um horizonte alcançável na medida em que seu universo conceitual e axiológico for amplamente conhecido e discutido. Nesse sentido, a questão da memória e o esclarecimento público sobre as violações de direitos humanos que marcam a história brasileira, especialmente após o golpe de 1964, adquirem severa relevância. Evidencia-se, assim, que o encobrimento histórico da opressão atenta diretamente contra os direitos humanos e coloca à prova seu caráter universal e indivisível. Mesmo violando sistematicamente os direitos humanos, o “poder” cinicamente diz defendê-los. As grandes potências, capitaneadas pelos EUA, promovem a guerra e a morte em sua autoatribuída missão civilizadora, supostamente levando os direitos humanos e a democracia a todos os povos (VIOLA, 2007). À cauda da realidade mundial, no Brasil se processa o que Fonseca (2009, p. 264) chama de “manuseio retórico dos direitos humanos”, vistos como algo que serve a bandidos, discurso gestado durante o regime militar (ROLIM, 1998; VIOLA, 2007) e que gradualmente passa a ser substituído por versões particularistas mais requintadas, como a que se condensa na expressão “direitos humanos para 2 humanos direitos” (CARBONARI, 2010) . 1

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Formação acadêmica: Mestre em Ciências Sociais (UNISINOS); Doutorando em Sociologia (UFRGS). Email: diegoairoso@yahoo.com.br Telefone p/ contato: (51) 9271-3734. Estudo promovido em 2010 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República sobre a percepção dos direitos humanos na opinião pública brasileira aponta que cerca de um terço da população (34%) concorda com a ideia de que “direitos humanos deveriam ser só para pessoas direitas” (VENTURI, 2010, p. 249). Ainda que não configure uma maioria, esse percentual é preocupantemente significativo.

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A mídia, sobretudo a comercial, regida pela lógica do capital e da concentração de poder, acaba tendo papel imprescindível na reprodução dessa conjuntura de usos dos direitos humanos e reprodução de valores caros à dominação. Porém, também na mídia pode estar uma importante possibilidade de alteração estrutural desse quadro, disseminando uma cultura de paz, justiça social e protagonismo político. Para discutir o lugar da mídia no contexto das demandas por direitos humanos, este texto deverá, após esboçar os aportes metodológicos e teóricos da pesquisa, trazer um breve histórico do PNDH-3, do modo como este abordou o tema da memória e da verdade e da polêmica que o envolveu, analisar, ainda que de forma superficial, qualitativamente os dados obtidos e, por fim, tecer algumas considerações sobre a pesquisa. Considerações metodológicas e teóricas O corpus da pesquisa se refere a matérias jornalísticas de revistas semanais de grande 3 influência na opinião pública nacional e cuja orientação editorial, mais ou menos explicitamente, guarda identificação com diferentes pontos do espectro político-ideológico: Veja, Época, Istoé e CartaCapital. Cabe salientar que as duas primeiras editoras referidas pertencem a grandes conglomerados de comunicação do país: o Grupo Abril, fundado por Victor Civita em São Paulo, em 1950; as Organizações 4 Globo , fundadas por Irineu e Roberto Marinho em 1925, no Rio de Janeiro, sendo o maior conglomerado de mídia da América Latina. As outras duas empresas, a Editora Três – criada em 1972, em São Paulo, por Domingo Alzugaray – e a Editora Confiança – fundada em 2001, também em São Paulo, por Mino Carta, diretor de redação e criador de CartaCapital, e Luiz Gonzaga Belluzo, economista e consultor editorial da mesma revista, em 2001, quando passou a publicar a revista em lugar da Editora Carta Editorial, criada pelo irmão de Mino, Luis Carta, em 1976 – têm uma atuação restrita ao mercado editorial de revistas, com oferta de títulos bem menor que suas gigantes concorrentes e tendo como principal produto justamente as semanais. Foram examinadas as edições publicadas entre 20/12/2009 e 29/03/2010 – 3 meses subsequentes ao lançamento do PNDH-3 – para, assim, apreender a sua repercussão, especialmente quanto à questão da memória e da verdade. Para analisar esses textos, utilizou-se a hermenêutica de profundidade (HP), instrumental metodológico proposto por Thompson (1995) para analisar a construção de sentidos presentes nas ações e relações cotidianas, o contexto sócio-histórico da produção das formas simbólicas constituintes deste processo (textos, imagens, falas e ações) e o uso dos sentidos aí produzidos. O método é comumente aplicado à análise da ideologia – vista como um processo de construção de sentidos por meio de formas simbólicas para produzir e reproduzir relações de poder sistematicamente assimétricas, isto é, relações de dominação. Tendo a ideologia relação com as circunstâncias sociais de sua emissão e recepção, não é difícil projetar seus efeitos sobre as representações sociais, das quais, no contexto da midiação da cultura moderna, parte considerável, em dado momento de seu desenvolvimento, é manejada e disseminada via comunicação de massa, um de seus principais vetores. É aí que se torna importante falar em opinião pública e a influência que recebe da opinião publicada. Para Thiollent (1983, p. 190), “os meios de comunicação […] contribuem para formar as tendências da opinião pública ao divulgar posições ou interpretações de fatos favoráveis ou desfavoráveis ao poder político vigente ou a grupos de interesses”. Controlar a opinião publicada é exercer poder simbólico, já que “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a força da ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU, 1998, p. 15). As representações sociais envolvem o peso da palavra e o capital simbólico disponível e empenhado por quem as diz e guardam íntima relação com o que o autor chama de habitus, as disposições historicamente construídas, exteriores e inconscientes aos indivíduos, mas que são acessados por eles em suas práticas cotidianas: “O habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a 3

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O poder de influência das revistas é corroborado pelos números de circulação que apresentam: segundo o Instituto Verificador de Circulação – IVC, em 2010 a circulação média semanal da revista Veja foi de 1.086.191 exemplares; da Época, 408.110; da Istoé, 338.861; da Carta Capital, 30.703, ocupando, respectivamente, o 1º, o 2º, o 3º e o 21º lugar no ranking nacional de circulação de revistas semanais de todos os segmentos. Nos anos 60, a Globo firmou ilegalmente acordo com o grupo norte-americano Time-Life, no momento da ascensão golpista dos militares ao poder federal, apoiados pelos EUA contra uma suposta ameaça comunista no Brasil. O regime necessitando de legitimidade e a Globo de vista grossa à sua aliança proibida, os interesses se fundiram. A Globo serviu de importante suporte ideológico à ditadura (GUARESCHI, 1999), cuja defesa era objeto de matérias e editoriais dos veículos da empresa, como o jornal O Globo, alguns deles assinados por seu próprio presidente, Roberto Marinho (COSTA, 2007).

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hexis, indica a disposição incorporada, quase postural” (BOURDIEU, 1998, p. 61, grifos do autor). A mídia participaria, então, na formação do que se poderia chamar um habitus moderno, onde o 5 conjunto de mensagens que cria e transmite seria tendencialmente aceito como expressão de verdade . O PNDH-3 Apesar das persistentes violações de direitos humanos, nas discussões sobre o tema nos fóruns regionais e internacionais o Brasil tem desempenhado importante papel. Bem o atesta a decisiva participação da representação brasileira no Comitê de Redação da Declaração e Programa de Ação adotada na Conferência de Direitos Humanos de Viena, em 1993, aprovada consensualmente por 171 países. Com isso, mais do que pelo compromisso diplomático assumido, o Estado brasileiro passou a ter uma obrigação moral perante a comunidade internacional em assumir as recomendações da Declaração da qual foi o principal redator. Dentre essas recomendações está o artigo 71, que orienta que “cada Estado considere a conveniência de elaborar um plano nacional de ação identificando medidas com as quais o Estado em questão possa melhor promover e proteger os direitos humanos”. A edição desses documentos revela o compromisso dos Estados em efetivar, fortalecer e ampliar no plano interno o respeito aos direitos humanos com base nas orientações internacionais. Seguindo esta diretriz, o governo federal elaborou o 1º Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-1 (Decreto n. 1.904/96), tendo sido o Brasil um dos países pioneiros nesse sentido. Sua implantação, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso trouxe uma discussão ainda limitada e que enfatizava os direitos civis e políticos (CICONELLO, 2008; SOUSA JÚNIOR; BENEVIDES, 2010). Diante da necessidade do Programa ser revisado e ampliado, ao final da gestão FHC, produz-se o 2º Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-2 (Decreto n. 4.229/02). De sua discussão, iniciada em 2001, participaram órgãos governamentais, sociedade civil e a academia (BRASIL, 2002), gerando um conjunto de 518 proposições que integravam à versão anterior os direitos sociais, econômicos e culturais. Em 2008, o Governo Federal inicia novo processo de atualização do Programa, com vistas a elaborar o PNDH-3, concebendo documentos de referência e promovendo conferências regionais, debates temáticos e, enfim, a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, que sintetizou as discussões que a antecederam e as aprofundou (BRASIL, 2010). Depois do evento, a interlocução com a sociedade permaneceu aberta. Conforme Piovesan (2010, p. 12), também os diversos ministérios foram convidados a participar da revisão do Programa, tendo em vista a “transversalidade e a interministerialidade de suas diretrizes”. Ao final do processo, coordenado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos – então capitaneada por Paulo Vannuchi –, cerca de 14 mil pessoas tinham participado da formulação do novo Programa (SOUSA JÚNIOR; BENEVIDES, 2010). O documento apresentado à sociedade por meio do Decreto n. 7.037/09, contava com 521 propostas, refletindo uma agenda contemporânea de direitos humanos e, ao mesmo tempo, sintonizado com a complexa realidade brasileira ao tratar de temas como “direito ao meio ambiente, direito ao desenvolvimento sustentável, direito à verdade, direitos dos idosos, direito à livre orientação sexual, direito aos avanços tecnológicos, entre outros” (PIOVESAN, 2010, p. 13, grifo nosso). Entre os avanços mais significativos está o Eixo VI, que trata do Direito à Memória e à Verdade, com vistas a esclarecer as violações de direitos humanos protagonizadas, pelo Estado brasileiro sobretudo no período ditatorial 1964-1985. Poucas semanas após o lançamento do PNDH-3, alguns setores sociais de orientação conservadora, minoritários, mas estruturalmente influentes no meio político e econômico, se insurgiram contra algumas proposições apresentadas. Gerou-se grande celeuma que agitou os espaços de discussão política nos meios de comunicação de massa e nos fóruns institucionais do país. Seis foram os temas que agitaram os ânimos: a prevenção da violência em conflitos agrários (e urbanos), o reconhecimento de direitos dos homossexuais (união civil, adoção etc.), o apoio à descriminalização do aborto, a restrição à ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos da União, o respeito aos direitos humanos pela mídia e a criação da Comissão Nacional da Verdade para resgatar a memória das violações de direitos humanos ocorridas no regime militar. Estes temas mobilizaram críticas principalmente dos grandes produtores rurais, de grupos religiosos, dos representantes das empresas de comunicação de massa e de membros das Forças Armadas (SOUSA JÚNIOR; BENEVIDES, 2010. 5

Atribui-se aqui a qualidade de moderno à expressão de Bourdieu em função da identidade temporal que Thompson refere haver entre modernidade e desenvolvimento da comunicação de massa, isto é, dentre as disposições historicamente incorporadas pelo homem moderno estaria, segundo a tese aqui defendida, a crença na veracidade das formas simbólicas, das mensagens, produzidas pela mídia, ainda que haja margem para a crítica e a contestação dos produtos midiáticos.

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Tal foi a pressão política – em boa parte exercida através da mídia – que, para acalmar os ânimos dos descontentes, o governo alterou diversos dispositivos do Programa, o que, por outro lado, gerou protestos dos movimentos sociais, entidades de defesa dos direitos humanos, acadêmicos e partidos políticos que apoiavam o teor original do documento. A questão da Comissão da Verdade e o resgate da memória Severas críticas foram dirigidas às propostas de busca de esclarecimento sobre as violações de direitos humanos ocorridas no período ditatorial, especialmente as relativas à criação da Comissão 6 Nacional da Verdade e à proibição de denominação de logradouros e prédios públicos em homenagem a autores de crimes de lesa-humanidade. Representantes das Forças Armadas, capitaneados pelo então ministro da Defesa, Nelson Jobim (Ministro da Justiça quando do lançamento do PNDH-1), foram as primeiras vozes a se manifestar contra o PNDH-3. O centro da discórdia foi a utilização de certas expressões na redação do Programa, como “no contexto da repressão política”, o que os militares diziam ser uma tentativa de direcionar as investigações somente a eles, deixando à parte os crimes cometidos pelos “terroristas de esquerda”. Supostamente, a supressão desses termos teria sido motivo de acordo entre o Ministério da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos quando das discussões internas do governo sobre o documento. Jobim chegou inclusive a pedir demissão ao presidente Lula como forma de protesto ao lançamento do Programa com o texto censurado pelos militares. Explorou-se, com isso, a ideia de que nem mesmo dentro do próprio governo o PNDH-3 contava com apoio unânime. Dias após a manifestação da caserna, seguiuram-se as dos demais grupos divergentes ao PNDH-3, como que se dando conta de que o Programa continha itens que, se tornados concretos, bateriam contra seus interesses. Imbuídos de um forte corporativismo, os militares queriam evitar a possibilidade de que, a partir da apuração da verdade histórica e do resgate da memória pela referida Comissão, aqueles que praticaram o terror de Estado entre 1964 e 1985 pudessem ser responsabilizados criminalmente por violações de direitos humanos então protagonizadas, como prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos, sequestros e homicídios. Os argumentos iam da acusação de revanchismo por parte de membros do governo que lutaram na resistência à ditadura até uma dita tentativa de enfraquecimento 7 das Forças Armadas . Sobre a real importância da memória e da verdade sobre a barbárie, especialmente em um país fortemente marcado pela violência do aparato de segurança, fala Mezarobba (2010): Assim como aconteceu na Argentina e no Chile, no caso do Brasil, a criação de uma comissão da verdade poderá contribuir não apenas para deslegitimar a ditadura e confirmar a opção nacional pela democracia, mas para reafirmar, de forma categórica, a intrínseca e indispensável relação do (nem tão) novo regime com a promoção e o respeito aos Direitos Humanos e sua impossibilidade de conviver com expedientes ainda praticados de forma disseminada, como a tortura e o abuso de poder. Também poderá contribuir para aprofundar a reflexão em torno de um tema que persiste contemporâneo no debate nacional: a impunidade. […] deve ser acolhida pela sociedade como uma oportunidade de melhor definição e aperfeiçoamento do papel de importantes instituições, como o Judiciário e as forças de segurança (MEZAROBBA, 2010, p. 34).

A discussão sobre a criação da Comissão da Verdade foi atravessada pela questão da Lei da Anistia de 1979. Segundo o ponto de vista dos críticos ao PNDH-3, o trabalho da Comissão – que em si mesmo não tem caráter punitivo – levaria automaticamente a uma, para eles indesejada, revisão da Lei

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Segundo Mezzaroba (2010, p. 32), “partindo-se do pressuposto de que os povos têm o ‘direito inalienável’ de conhecer a verdade a respeito de crimes do passado, o que inclui as circunstâncias e os motivos envolvendo tais atos de violência, independentemente de processos que possam mover na Justiça, uma comissão da verdade pode ser definida como órgão estabelecido para investigar determinada história de violações de Direitos Humanos”. O Programa não fala em punições e, quando se refere de forma expressa à Lei de Anistia, diz que a Comissão da Verdade poderia “colaborar com todas as instâncias do Poder Público para a apuração de violações de Direitos Humanos, observadas as disposições da Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979” (grifo nosso), ou seja, a Lei da Anistia. O Programa reafirma-a e não intenta anulá-la, o que talvez devesse ser objeto de crítica por parte das vítimas da repressão militar e não dos militares torturadores. Contudo, há que se destacar que o Programa propõe ainda “Criar Grupo de Trabalho para acompanhar, discutir e articular, com o Congresso Nacional, iniciativas de legislação propondo: revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações” (grifo nosso), o que poderia englobar a Lei da Anistia, que isentou de responsabilidade os militares que torturaram e assim praticaram graves violações de direitos humanos, mas isso não fica claro no texto.

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de Anistia , cujo objetivo teria sido fazer a passagem reconciliadora entre a ditadura e a democracia, pretensamente anistiando ilegalidades de defensores e opositores do regime militar. Há que se destacar, porém, que a referida Lei não parece ter a incondicionalidade que se tenta atribuir-lhe, já que seu caráter autoanistiante – o fato de que leis como essa são elaboradas por agentes que, dentro do Estado, são responsáveis por esmagadora maioria das violações de direitos humanos em períodos de exceção – é sinônimo de impunidade, como bem mostra Piovesan (2010, p. 13): A jurisprudência internacional reconhece que leis de anistia violam obrigações jurídicas internacionais no campo dos Direitos Humanos […] perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e a seus familiares o acesso à Justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma direta afronta à Convenção Americana [de Direitos Humanos].

Além disso, a Lei de Anistia teria de ser relativizada em razão de sua subordinação a certos princípios e direitos de que a sociedade não deve abrir mão, conforme colocado por Britto (2010, p. 30): Flávia Piovesan e Hélio Bicudo, coerentes defensores dos Direitos Humanos, externaram que “o direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da memória coletiva. Serve a um duplo propósito: proteger o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas”. A este direito não se opôs a Lei de Anistia. E não poderia: a Anistia cumpriu seu papel, propiciou a transição pacífica do regime ditatorial para o democrático. Isso não quer dizer que impediu que a História venha a ser passada a limpo. Não se trata de revanchismo, nem muito menos de revogá-la. Mas não pode ela ser utilizada para impor a amnésia a toda uma sociedade, sobretudo porque só se pode propor esquecimento ao que se conhece.

A celeuma em torno desse e de outros pontos teve forte repercussão nas revistas semanais. A análise dos textos A análise dos textos se baseou no exame de seu caráter ideológico. A leitura dos que abordaram o tema da memória e da verdade no PNDH-3 nas revistas semanais foi orientada pelo que Thompson (1995), Guareschi (2000) e Veronese e Guareschi (2006) – com complementações concebidas no decorrer da pesquisa – revelam sobre os modos mais típicos de operação da ideologia e as estratégias de construção simbólica que os concretizam. Assim, os escritos que seguem procuram apontar esses elementos nos textos em que foram encontradas abordagens ideológicas, ancorando-os nos aportes teóricos e históricos discutidos e traçando reinterpretações julgadas pertinentes à compreensão dos textos. Em face do elevado número de textos, optou-se por trazer aqui apenas um esboço geral da análise desenvolvida, a ser discutida um pouco mais enfaticamente nas considerações finais. Entre matérias, editoriais, artigos e cartas de leitor, chegou-se a um total de 24 textos com referência à questão da memória e da verdade presente no PNDH-3: 10 publicados por Veja, 4 por Época, 2 por IstoÉ e 8 por CartaCapital. Praticamente não houve nuances quanto à presença de textos com abordagens ideológicas a respeito desses pontos: todos os textos de Veja, IstoÉ e Época trataram do tema ideologicamente, reiterando o uso de expressões e juízos que viam a abordagem do Programa como sinônimo de “revanchismo”, “vingança” ou ainda a tentativa, sempre vista com maus olhos, de revisar a Lei de Anistia. Além disso, em diversas oportunidades, houve a tentativa de vinculação da imagem de Paulo Vanuchi ao terrorismo, ao crime e à barbárie, para, assim, depreciar de arrasto o teor do Programa. CartaCapital, por sua vez, embora sobre um ou outro ponto do PNDH-3 tenha manifestado posição editorial diferente, abordou o assunto de forma não-ideológica em todos os textos analisados, precisamente porque, nos juízos expressos, propôs o esclarecimento e o resgate da memória como uma necessidade da democracia e opôs-se a posições conservadoras, sobretudo dos militares. Analisados os textos, passa-se às considerações finais, momento em que os dados aqui apresentados serão articulados com as reflexões trazidas nas seções anteriores. 8

Em 2008, o Conselho Federal da OAB apresentou ao STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153, propondo nova interpretação ao artigo 1º da Lei de Anistia para que ele não abrangesse agentes do Estado que teriam praticado crimes comuns, e não políticos. Em abril de 2010, por 7 votos a 2, a ADPF foi considerada improcedente pela Corte. Sobre a ação fala Britto, (2010, p. 30): “Nela se diz que a Lei de Anistia tratou de crimes políticos e conexos – isto é, decorrentes de um combate político. A lei abrange apenas os lados que combateram. E o torturador não é um combatente: é um criminoso. A tortura ou o assassinato de prisioneiros indefesos, depois de consumada a rendição, configuram crime comum – hediondo e imprescritível, segundo a Constituição –, sem qualquer conteúdo político”.

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Considerações finais Diversos modos de operação da ideologia estiveram presentes entre os textos avaliados como ideológicos. Entre os modos e as estratégias encontrados nos textos que assim se apresentaram se destacaram a Legitimação, sobretudo através de racionalizações para justificar a validade da Lei de Anistia; a Reificação, por meio da eternalização, com vistas a convencer de que a referida lei não pode ser alterada e a versão histórica vigente não pode ser investigada; a Reestruturação da narrativa, pelo uso da simplificação, para persuadir de que a tentativa de esclarecer as violações de direitos humanos é mero revanchismo e vontade de vingança; a Unificação, por via da padronização, colocando vítimas e agressores no mesmo plano de forças, e da simbolização da unidade, considerando a Lei de Anistia como emblema da suposta igualdade de condições entre ambos; a Fragmentação, através da diferenciação entre práticas semelhantes produzidas em momentos históricos umbilicalmente conectados – a repressão da ditadura e a violência policial contemporânea. É de se citar, especialmente pela revista Veja, a utilização da Fragmentação, através do “Expurgo do outro” para atacar principalmente um dos proponentes do PNDH-3 (e por extensão as propostas do próprio Programa), atrelando sua trajetória de resistência ao regime ditatorial à imagem de um terrorista, criminoso, mal e vingativo, cujo trabalho político objetivaria tão-somente efetivar essas características. A crítica sobre quem propõe se imbrica com a crítica sobre o que é proposto, para tentar esvaziar sua legitimidade. 9 Partindo das definições de Wallerstein (2002) e Bobbio (2001) , o PNDH-3 foi elaborado por um governo alicerçado em uma aliança política liderada pelo PT, um partido de esquerda, acompanhado por outras agremiações de mesma orientação, por partidos de centro-esquerda, de centro e um de direita (PT, PC do B, PSB, PDT, PTB, PMDB, PL [depois PR] e PP). A construção do Programa foi conduzida por Paulo Vannuchi, militante de direitos humanos que se destaca pela atuação partidária e junto a sindicatos, mas, mais do que isso, pelo fato de ter participado da resistência armada contra o regime militar. Com um perfil supostamente mais confrontador e tendo sua origem partidária em forças efetivamente de esquerda, sua ação poderia tornar real a possibilidade de concretização direta e imediata das medidas previstas no Programa, algumas delas também frontalmente desfavoráveis às expectativas dos grupos conservadores. Por conta de sua luta contra o poder autoritário, este apoiado por boa parte daquelas mesmas forças conservadoras, a imagem de Vannuchi acabou sendo vinculada ao radicalismo e à contestação. Seu trabalho em relação ao PNDH-3 passou a ser depreciado e a criação da Comissão da Verdade, prevista no Programa, passou a ser vista como revanchista. De certa forma, as abordagens das revistas sobre a questão da memória e da verdade dentro do PNDH-3 também reflete as diferenças que envolvem a díade direita/esquerda, sobretudo ao se considerar o passado recente dos posicionamentos políticos expressos pelas revistas. Em 2010, a cobertura das eleições presidenciais tornou explícitos esses posicionamentos em relação às forças políticas então em disputa. Se apenas se confirmaram as orientações antipetistas e pró-José Serra por parte de Veja e favoráveis a Lula e Dilma de CartaCapital, a esta juntou-se IstoÉ e àquela uniu-se Época (PEREIRA, 2010).Quanto mais à direita a orientação da revista, mais o Programa foi rechaçado; tanto mais à esquerda, maior foi a aceitação do documento (ou menos intensa foi a crítica sobre ele). Embora o intuito principal dessa pesquisa não tenha sido o de manifestar alinhamentos a quaisquer dos “lados políticos” inerentemente envolvidos na discussão, ficou clara a defesa ao conteúdo trazido pelo PNDH-3. Isso se justifica pelo fato de o documento objetivar combater relações de dominação das quais boa parte é defendida nos conteúdos ideológicos identificados na abordagem do PNDH-3, dentre elas o ocultamento e reificação da história e a promoção da violência estatal. A forma como o tema foi apresentado pelas revistas indica seu efeito potencial para a criação de representações sociais sobre a questão da memória e da verdade. Essas representações, por sua vez, vão se fazer manifestas à opinião pública por meio da opinião publicada. Dito de outra forma, a opinião publicada pelas revistas – com todo o capital simbólico, cultural e econômico que detêm e que se traduz em poder simbólico – traz embutidas as representações que elas querem compartilhar, com seu público em particular e com a sociedade em geral. Dotam, assim, essas representações de seu caráter “social”, tornando-as acessíveis à opinião pública. Se, com o peso que tem no contexto de uma crescente midiação da cultura, a opinião publicada 9

Para Bobbio (2001, p. 111), esquerda e direita se diferenciam pela forma como consideram o “ideal de igualdade, que é, com o ideal da liberdade e o ideal da paz, um dos fins últimos que os homens se propõem a alcançar e pelos quais estão dispostos a lutar”. Segundo o autor, ao pensamento de esquerda importa o que os homens têm em comum, o que os une, enquanto que a concepção de direita considera relevante politicamente o que os diferencia. Wallerstein (2002) tem definições próximas das de Bobbio, na medida em que, enquanto este se refere à esquerda como defendendo a inclusão, aquele remete essa reivindicação aos que chama de “democratas (ou socialistas)”, que buscariam compatibilizar igualdade e liberdade, em oposição aos “liberais”, que priorizariam a liberdade, sobre a liberdade individual, tomando a igualdade como seu oposto.

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é conformada e apresentada com base em representações propositalmente viciadas por dados falsos para sedimentar ou criar relações de dominação, isto é, de forma ideológica, a opinião pública que dela se alimenta toma a sua forma. Assim, o erro na apuração e uso dos dados sobre os temas de que tratam faz com que as revistas, muitas vezes, atuem na construção de representações sociais que não guardam relação com a verdade dos fatos. Essas questões revelam aspectos significativamente contraditórios da mídia em geral, além de denunciar limites às revistas semanais em particular como ferramenta de educação em direitos humanos, salvo exceções. Como pensar, por exemplo, na efetividade do uso destes espaços para campanhas em prol dos direitos humanos se, em seus conteúdos jornalísticos, as revistas, sobretudo as de maior alcance de público, jogam contra os valores aí difundidos? Como pensar na concretização do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, especialmente em seu eixo “Educação e Mídia”, quando o cenário em que esse processo deve se dar é intensamente permeado por desrespeito a esses direitos? Demonstra-se, com isso, a necessidade de que discussões como a aqui proposta estejam presentes na mesa de negociação política entre Estado e instituições midiáticas, a fim de conceber mecanismos de educação em direitos humanos que tenham na comunicação de massa um de seus locais de sedimentação.

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"O Arauto do Bem e da Verdade": o Jornal do Comércio (1964-1965) e o apoio à ditadura civil-militar em Campo Grande Sabrina Rodrigues Marques

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Coautor: Jhonathan Cleyson Silvano Reynaldo

Resumo: Este artigo é um resultado parcial de uma pesquisa que toma como objeto de estudo o Jornal do Comércio, durante os dois primeiros anos da ditadura civil-militar em Campo Grande, situado no antigo estado de Mato Grosso. Procura-se definir a postura do jornal como mecanismo político e ideológico de legitimação e apoio ao governo ilegítimo instaurado pelo golpe de 31 de Março de 1964, a partir da análise de diversas notícias e fragmentos de publicações do periódico, durante o período de 1964-1965. O artigo buscará evidenciar o posicionamento concreto do jornal, elucidando a sustentação à ditadura civil-militar por meio de recortes de publicações, matérias, artigos e passagens de teor anticomunista. Palavras-chave: Ditadura civil-militar – Imprensa – Jornal do Comércio – Campo Grande Abstract: This article is a partial result of a research that takes as its object of study, Jornal do Comércio, during the first two years of the civil-military dictatorship in Campo Grande, located in the former state of Mato Grosso. It seeks to define the position of the newspaper as a mechanism of political and ideological legitimacy and support to the ilegitimate government introduced since coup of March 31, 1964, from the analysis of fragments of various news and periodical publications during the period 1964-1965. The paper will seek to highlight the specific positioning of the newspaper, elucidating the support to civil-military dictatorship through clippings of publications, materials, articles and passages of anticommunist content. Keywords: Civil-military dictatorship – Press – Jornal do Comércio – Campo Grande

A Produção Historiográfica e o Jornal do Comércio em Campo Grande A produção historiográfica sobre o período da ditadura civil-militar de 1964-1985, em Mato Grosso do Sul, encontra-se em "processo embrionário” e restrito a pouquíssimos trabalhos acadêmicos que abordam, sob diferentes ângulos, a temática. Este trabalho é uma primeira aproximação com o tema, consequência de debates na graduação, fomentados tanto pela precariedade de fontes regionais quanto pelos silêncios que pairam sobre o tema. A partir das discussões promovidas por uma disciplina que aborda as relações civis e militares, suas identidades e arcabouço ideológico, assim como, a complexa relação com a respectiva sociedade civil, dentre outros aspectos, propôs-se a elaboração de uma pesquisa que contemplasse a temática e a produção local. A necessidade de compreensão dessas abordagens incentivou a busca sobre o conhecimento do contexto da ditadura de 1964 na cidade de Campo Grande, na época Mato Grosso Uno, levando-nos a encontrar no Instituto Histórico e Geográfico do Mato Grosso do Sul (IHGMS) e no Arquivo Histórico de Campo Grande (ARCA) um jornal de circulação diária que se revelou um interessante objeto de estudo, o Jornal do Comércio, autoconsagrado, “O Arauto do Bem e da Verdade”, como destacava o seu slogan. Fundado em 1921, pelo Dr. Jaime Ferreira de Vasconcelos, Presidente da Associação da Imprensa Matogrossense e da Associação Brasileira de Imprensa e membro da Academia Matogrossense de Letras, teve como diretor seu próprio fundador e, como Redator-Chefe, o Dr. Amintas Maciel. Deve ser destacado que o jornal se proclamava como sendo um "órgão dedicado exclusivamente aos interêsses legítimos do comércio e das classes produtoras”. Logo, em seu primeiro número, o Jornal do Comércio traz a seguinte apresentação: [...] trabalhar sem cessar pelos legítimos interêsses do comércio e das classes produtoras, tal é o nosso principal escopo. Sem ligações ou dependência partidárias que nos obriguem a apoiar incondicionalmente quaisquer administrações ou nos forcem a 1

Graduanda em História Licenciatura 3º Ano, Bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Sob orientação do Prof. Dr. Jorge Christian Fernández. E-mail: jhonathan.silvano@gmail.com

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silenciar sôbre quaisquer abusos, procuramos sempre, de acôrdo com essa orientação, dar aos atos dos poderes públicos, municipal ou estadual, a colaboração franca da nossa crítica desapaixonada e serena, ou do nosso apoio desinteressado e sincero [...].

Sendo o único diário de toda a região Sul de Mato Grosso e o terceiro mais antigo do Estado, nos propomos a analisar este importante veículo de informação destinado aos comerciantes e aos donos dos meios de produção, em sua atitude frente ao golpe de 1964. Legitimar o ilegítimo Em toda a produção onde o tema é a imprensa e o jornal, é necessário atentar-se ao teor tendencioso e subjetivo que possui este veículo de informação, mesmo quando este tenta construir o mito da objetividade jornalística, portadora da verdade e proporcionando-nos um relato "verdadeiro" e imparcial dos fatos: [...] As duas posturas são contestáveis. O jornal não é um transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos e tampouco uma fonte desprezível porque permeada pela subjetividade. A imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida social [...].

A questão da subjetividade e intencionalidade do jornal está relacionada aos interesses pessoais e políticos de seu "dono" e seu caráter partidário, são "meios para organizar e difundir determinados tipos de cultura". O golpe de 1964 empenhou-se, por meio dos jornais e revistas, a legitimação do governo ilegítimo, no sentido de que buscou impedir que qualquer crítica negativa fosse publicada. Os meios de comunicação sofreram os efeitos da censura estatal, já que, em quase todos os casos concretos, uma das primeiras medidas adotadas a partir dos golpes de Estado foi a intervenção (voluntária ou compulsória) de jornais, rádios e canais de televisão com a finalidade de influir na opinião pública, divulgar a “informação oficial” e transmitir os novos códigos e valores em vigor [...].

A maioria da grande imprensa, principalmente nos dois primeiros anos, exultara o governo, contribuindo para a construção de uma imagem positiva do mesmo e seu caráter “democrático” e nacional. [...] a preocupação dos governos militares, a partir de 1964, atingiu a outra face da mesma moeda do setor de comunicação social: a informação veiculada aos cidadãos. Encarava-se como necessário o controle da informação a ser divulgada, para preservar a imagem do regime, num exercício de ocultação que passa, inclusive, pela negação de visibilidade, ao leitor, de suas próprias condições de vida. Ao analisarmos os anos de 1964 e 1965 do Jornal do Comércio observamos a postura explicita de apoio ao governo de facto, o cunho legalizador presente em suas matérias e uns posicionamentos concretos, empenhados em construir uma pretensa identidade democrática da nova ordem implantada pela força.

“O Arauto do Bem e da Verdade” e o Golpe de 1964 A pesquisa constatou a peculiaridade do jornal ao tratar de forma explicita e clara seu posicionamento político e ideológico contribuindo para a construção de uma imagem positiva do regime. A seguir, examinaremos a forma de como este diário sustentou este apoio, sendo assim necessário compreender a organização do periódico. O jornal, no ano de 1964 traz em seu cabeçalho informações editoriais como Diretor e RedatorChefe o Pe. Félix Zavattaro e Redator-Secretário Herbert de Almeida, endereço, data, telefone, seu valor comercial, número da edição, o slogan o "Arauto do Bem e da Verdade" sempre acompanhado da premissa "Órgão de maior penetração em todo o Estado de Mato-Grosso". Já no ano de 1965, há uma alteração na organização do cabeçalho, permanecendo o nome, o valor, data, número da edição com uma nova frase, "De Campo Grande para Mato Grosso". A primeira página, na totalidade das edições analisadas (1964-1965), sempre contem manchetes e notícias sobre o governo instituído e os desdobramentos políticos nacionais e regionais. No decorrer das páginas são encontradas, por exemplo, a seção "Prelúdio", a qual contêm passagens bíblicas e diversas matérias de teor religioso. "Tudo entre vós faça dentro da caridade - (Primeira carta de São Paulo aos Coríntios, capítulo 16 versículo 14)".

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Paulo VI abençoa governo Castelo Branco D. Armando Lombardi, núncio apostólico no Brasil, foi portador ao Marechal Castelo Branco de uma mensagem do Papa Paulo VI, contendo bênção especial ao novo presidente do Brasil, com votos de feliz govêrno, em pról da prosperidade do povo.

Tanto essas passagens quanto as publicações de autoria de padres como, Pe. Félix Zavattaro (Diretor e Redator-Chefe) e Pe. Francisco Agreiter (redator de vários artigos) exemplificam a relação e influência de setores conservadores da Igreja com o jornal, aliados ao Estado, mas esta perspectiva é foco para outros estudos. Nas mesmas páginas onde estão localizados os "Prelúdios", frequentemente, encontram-se grandes matérias e/ ou artigos de posição anticomunistas que atacam e repudiam quaisquer ações e avanços dos “ideais comunistas”, como se depreende do artigo: Anti-Comunismo Uma imensa tarefa impõe-se aos homens de boa vontade: livrar a humanidade da ideologia marxista, anti-humana, materialista, anti-teista, histórica, econômica e socialmente superada. [...] uma filosofia que nega o espírito, os valores religiosos, a origem divina da realidade e do homem [...] O marxismo será vencido por forças intensamente espirituais e humanas e cristãs. Só homens profundamente impregnados dos valores cristãos universais e nos quais as qualidades clássicas do homem autêntico chegaram à sua maturidade, são "anti-comunistas" eficientes e válidos e legítimos.

Todas as edições estão mergulhadas em inúmeros anúncios e propagandas do comércio local. Assim, nas manchetes atrativas de empresas comerciais exibiam publicidade de diversos produtos (máquinas de costura, óculos, pomadas, bicicletas, gás, etc.), A partir dessas especificidades podemos perceber, primordialmente, o financiamento do jornal pelas empresas e casas comerciais privadas. Além disso, o Jornal do Comércio, por destacar-se no antigo estado como um grande veículo de informação, sendo o único diário de toda a região do Sul de Mato-Grosso, tornou-se importante mecanismo de expressão de opinião pública. Seu papel como imprensa não se restringiu apenas em relatar os fatos, mas também, a opinar posicionando-se politicamente e influenciando na legitimação do governo. [...] Todos os jornais procuram atrair o público e conquistar seus corações e mentes. A meta é sempre conseguir adeptos para uma causa seja ela empresarial ou política, e os artifícios utilizados para esse fim são múltiplos. Na grande imprensa, onde se mesclam interesses políticos e de lucro os recursos para a sedução do público são indispensáveis [...].

Durante a observação dos exemplares do ano de 1964 notam-se inserções no formato de quadrinhos estrategicamente posicionados entre as matérias, espalhados pelo corpo do jornal, sem uma obrigatoriedade de rotinização. Repetindo-se em várias edições, essas mensagens ideológicas, como definimos nomeá-las, constituem-se em propaganda do jornal, preocupado em forjar a imagem democrática do governo ditatorial, remetendo-se ao ideal de paz e segurança nacional. Ao atentar-se a esta construção verificamos o posicionamento político do jornal. É evidente este intuito de criação do teor democrático e nacional do Golpe, na mensagem direta de 23 de abril 1964: "A REVOLUÇÃO não se fêz para garantir privilégios ou para dar o poder a grupos. Ela é democrática e nacional. Procurará construir o bem coletivo, através de todos os brasileiros”. Podemos inferir da mesma página uma mensagem empenhada na cooptação dos setores civis e militares buscando a idealização de uma coletividade: "Coopere com o Govêrno na tarefa de reconstrução. Economise (sic), produza e pense nos problemas coletivos como pensa nos seus próprios problemas." Demonstramos em seguida alguns exemplos de como isso se dá nas diferentes páginas e edições: Voltaram, ao Brasil, a confiança, a esperança e a ordem. Ajudemos o Govêrno e as Forças Armadas a tornar a democracia respeitada e desejada por todos os brasileiros. As reformas que serão feitas pelo atual Govêrno da República não representarão meras fórmulas demagógicas destinadas a impressionar o povo e predispor a aventura continuísta. Em lugar de odiar e maldizer a sociedade em que a Providência nos fez viver, tratemos de entendê-la, de servi-la, de curá-la e de amá-la.

Como elemento justificador da legitimidade do golpe há, em todo o contexto do periódico, passagens e mensagens diretas contra o "avanço comunista" do governo de João Goulart e sua suposta relação com os ideais marxistas. Também observamos uma aproximação no texto do jornal entre as matérias que relatam as atitudes do governo frente a "subversão" e as mensagens ideológicas que 190


demonstram o posicionamento conservador, aliado as políticas repressivas do governo surgido do golpe de 1964. Examinando a construção do texto é indiscutível esta postura do periódico, as noticias e matérias utilizam termos e palavras que remetem a proposta do Estado emanado do Golpe: descomunização, subversão, anticomunismo e expurgo. Gov. Ademar: campanha anti-comunista continuará até seu fim Em declarações prestadas ontem à imprensa paulistana, o governador Ademar de Barros afirmou que a campanha anti-comunista que se processa em todo o país, deverá ter continuidade até o fim, com o expurgo total dos elementos esquerdistas, sem o qual perderá tôda a finalidade o movimento vitorioso das forças democráticas nacionais. Prisão de subversivos Brasília, 8 – Foi prêso nas primeiras horas da manhã de hoje Umberto Schettini, presidente do Sindicato dos Empregados da Construção Civil de Brasilia e um dos que constavam da lista de dois elementos procurados pelas autoridades como responsáveis pelos recentes acontecimentos. Também foi preso José Cançado. Material subversivo na Guanabara A polícia política do Estado da Guanabara já apreendeu até esta data 15 toneladas de material subversivo, em vários pontos daquela capital, informa a Secretaria de Segurança. Êsse farto material ficará exposto ao público, para que o povo se aquilate do desenvolvimento que vinha atingido no país a hidra comunista. DOPS continua expurgo em São Paulo Notícias procedentes de S. Paulo, informam que na tarde de ontem foram presos pelo DOPS. Luiz Firmino Lima, ex-presidente da Federação dos Texteis e o artista teatral Luiz Campos Vergueiro, conhecidos líderes comunista.

Em relação às mensagens ideológicas de teor anticomunista é relevante citarmos os seguintes exemplos: Como não admite a existência de Deus nem da alma, o comunismo não reconhece a dignidade do homem e nega que o direito exista. Somente reconhece a fôrça. O antídoto do comunismo é a democracia autêntica e vigilante. Um povo que conhece a liberdade não se conforma em perdê-la.

Depreende-se que o jornal apoiava os atos governamentais em consonância com o anticomunismo embasado na Doutrina de Segurança Nacional que inspirava a ditadura civil-militar, abordando uma imagem negativa do movimento comunista, de tal forma que até mesmo ressalva uma justificativa à repressão ao afirmar que: [...] (o) fato da revolução recorrer a poderes excepcionais não lhe desfiguram a natureza nem os propósitos democráticos, pois excepcional é tambem a conjuntura e transitórios aquêles poderes.

Desta forma, o anticomunismo se confunde com a democracia, dentro de uma concepção totalmente distorcida do que representava um Estado democrático de direito e do próprio conceito de democracia em si. Considerações Finais O estudo parcial do Jornal do Comércio nos permite compreender a sua postura como mecanismo político e ideológico de legitimação e apoio ao governo vigente, ao passo, que nos anos analisados, o periódico coloca-se como um agente ativo na defesa e propaganda do regime, contribuindo para a construção de uma imagem positiva e de sua pretensa roupagem democrática nacional, chancelando os atos governamentais. Para tal era necessário obter a adesão das classes populares em prol de uma “união nacional”, paradoxalmente baseada na exclusão e eliminação dos opositores políticos. Assim, uma suposta harmonia entre o povo e o governo deveria surgir. No entanto, mais do que uma comunhão de interesses o regime pretendia enquadrar, disciplinar e doutrinar a sociedade civil para facilitar a aceitação de um projeto de Estado autoritário, sob a chancela do capital estrangeiro e das elites locais. Pode-se perceber que, em Campo Grande, esse modelo de Estado encontrou sustentação no posicionamento concreto do Jornal do Comércio, um autêntico mecanismo ideológico, o “arauto” das 191


classes dominantes da região.

Referencias Bibliográficas: AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado Autoritário (1968-1978). Bauru: EDUSC,1999. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Jornal do Comércio (1964); Arquivo Histórico de Campo Grande (ARCA). Jornal do Comércio (1965); Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS). MENDONÇA, Rubens de. História do Jornalismo em Mato-Grosso. [S.l.: s.n.].[195-?]. PADRÓS, Enrique Serra. As ditaduras de segurança nacional: Brasil e Cone Sul / org. Enrique Serra Padrós – Porto Alegre: CORAG : Comissão do Acervo da Luta contra a Ditadura, 2006. REINHOLD, O.; RYZHENKO, F. (Orgs.). El anticomunismo moderno. Política. Ideologia. Moscú, Progreso, 1976. WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, César A. B. (Orgs.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004 WASSERMAN, Cláudia. O império da segurança nacional: O golpe militar de 1964 no Brasil. In: WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, César A. B. (Orgs.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004 ROUQUIÉ. Alain. El Estado militar en América Latina. Buenos Aires: Emecé, 1984. SILVA, Carla Luciana . Imprensa e Ditadura militar padrões de qualidade e construção de memória. Revista História & Luta de Classes, N 1º, 2004, p. 43-54. ARAKAKI, Suzana. Dourados: memórias e representações de 1964. Editora UEMS,2008.

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O Jornal A Razão e o discurso anticomunista Silvania Rubert

Resumo: Neste trabalho buscou-se, através da análise das notícias e editoriais veiculados no jornal A Razão, durante o contexto sócio-histórico estruturado da iminência da intervenção militar de 1964, visualizar, partindo da análise da metodologia para interpretação da ideologia, proposta por Jhon B. Thompson, as formas como o jornal A Razão colaborou para construir, no contexto regional, um panorama ideológico legitimador da ruptura institucional ocorrida a nível nacional, bem como da ordem autoritária surgida a partir desta ruptura, através, também, de um forte discurso anticomunista. Palavras-chave: Jornal A Razão – ditadura militar – anticomunismo – imprensa – ideologia. Abstract: In this study we sought, through the analysis of the news and newspaper editorials broadcast on A Razão for the socio-historical context of structured imminent military intervention of 1964, viewing, analyzing the methodology for interpretation of ideology, proposed by Jhon B . Thompson, forms like the newspaper A Razão collaborated to build, in the regional context, an overview of the ideological legitimating institutional rupture occurred at the national level as well as the authoritarian order arising from this break through, too, a strong anticommunist discourse. Key-words: newspaper A razão - military dictatorship - anticommunist - press - ideology.

Introdução Este trabalho objetiva analisar o conteúdo do discurso construído pelo jornal A Razão, a partir da análise de seus editoriais, dentro do contexto sócio-histórico estruturado da iminência do golpe militar de 1964 e imediatamente posterior à ruptura institucional. Aqui se entenda o conceito de discurso na perspectiva do método de análise da ideologia proposto por Thompson (1995, p.371) como sendo “instâncias de comunicação correntemente presentes”. O diário A Razão foi fundado em 1934, na cidade de Santa Maria, localizada na região central do estado do Rio Grande do Sul. Em poucos anos, tornou-se o maior jornal da região, graças à organização de um sólido departamento comercial e do emprego dos serviços ferroviários como meio de distribuição, que 1 lhe permitiram conquistar mais da metade do mercado regional, suplantando a concorrência . Em 1941, Assis Chateaubriand comprou o jornal A Razão e o submeteu a diversas reformas gráficas. A presente análise tem como embasamento teórico a metodologia da interpretação, referencial que evidencia o fato de que o objeto de análise é uma construção simbólica significativa, que exige uma interpretação, no caso o jornal A Razão. Esse referencial metodológico foi proposto por Jhon B. Thompson, em sua célebre obra Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa, mais especificamente, a teoria da hermenêutica de profundidade usada para a análise da ideologia. Thompson enquadra a interpretação da ideologia como uma forma específica de hermenêutica de profundidade. Para o autor, interpretar a ideologia é explicitar a conexão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar. Estudar a ideologia exige a indagação acerca de se o sentido construído e usado pelas formas simbólicas serve, ou não, para manter relações de poder sistematicamente assimétricas, sendo que, após reformular o conceito de ideologia, Thompson (1995, p.79) o definiu como: as maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas.

Por “formas simbólicas”, Thompson (1995, p.79) entende “um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como constructos 1

A respeito do estudo dos antigos jornais do Rio grande do Sul, ver: RUDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: EDIUFRGS, 1993.

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significativos”. Os modos de operação da ideologia propostos por Thompson, bem como as estratégias de construções simbólicas serão os pontos norteadores da estruturação da análise, tendo em vista que deles advém a tônica e as especificidades do discurso construído, a fim de que, a partir destes dados, se possa identificar as formas como o sentido estaria sendo mobilizado para estabelecer ou justificar relações de dominação. Ao longo do trabalho será utilizado, principalmente, a legitimação, onde “relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas, pelo fato de serem apresentadas como legítimas, isto é, justas e dignas de apoio”, cujas construções simbólicas vislumbram-se a partir da estratégia da racionalização, onde “o produtor de uma forma simbólica constrói uma cadeia de raciocínio que procura defender, ou justificar, um conjunto de relações, ou instituições sociais, e com isso persuadir uma audiência de que isso é digno de apoio”; e da universalização, onde “interesses de alguns 2 indivíduos são apresentados como servindo aos interesses de todos” . Outra categoria de análise utilizada será a dissimulação, onde “o ocultamento, negação ou obscurecimento de relações de dominação, são apresentadas de uma maneira que desvia nossa atenção, ou passa por cima de relações e processos existentes”; como modo geral de operação da ideologia e como estratégia de construção simbólica o deslocamento – que se visualiza quando “um termo usado para se referir a um determinado objeto ou pessoa é usado para se referir a um outro, e com isso conotações positivas ou negativas do termo são transferidas para o outro”, e a eufemização – “ações, instituições ou relações sociais são descritas ou redescritas de modo a despertar uma valoração positiva”, como estratégias de construção simbólica. A estratégia da unificação também foi utilizada e pode ser identificada onde “relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas através da construção, no nível simbólico, de uma forma de unidade que interliga os indivíduos numa identidade coletiva”. A última categoria foi a fragmentação, que é divulgada a partir da estratégia de expurgo do outro – “construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é retratado como mau e perigoso, contra o qual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente ou a expurgá-lo”. Dentro do jornal, optou-se por trabalhar, prioritariamente, com os editoriais, todavia, também serão utilizadas manchetes, crônicas e reportagens distribuídas na capa e na contra capa do jornal, onde situavam-se as matérias de ordem política. 1. Contexto local: Santa Maria Durante as décadas de 1950 e 1960, a política municipalista santamariense baseava-se muito nos programas políticos e ideológicos de cada partido em nível nacional. Na década de 1950, Santa Maria era uma cidade de pequeno porte. Não tinha uma forte produção industrial devido à falta de infraestrutura, com uma precária prestação dos serviços ferroviários, que já estavam em larga decadência. Nesta década, a influência da União Democrática Nacionalista era fraca e existia uma forte 3 aliança da oficialidade militar com o Partido Trabalhista Brasileiro , em nível local. Em janeiro de 1964, o então prefeito Paulo Devanier Lauda, seu vice Adelmo Simas Genro, e demais vereadores eleitos no pleito de 1963, tomaram posse. No dia da ruptura institucional, o prefeito estava afastado do cargo, sob licença pessoal, só retornando ao comando do município em 14 de abril. O prefeito em exercício era o vice. Este fato se repetiria diversas vezes ao longo dos meses em que estiveram na prefeitura. Logo começaram a surgir as notícias de alterações nas estruturas políticas e sociais em nível local. A exemplo, a nomeação de interventores para a Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea, para a Coordenadoria Regional dos Correios e Telégrafos, para o Serviço de Repressão ao Contrabando, para a União Santamariense dos Estudantes e para a Inspetoria Seccional do Ensino. Para a ocupação destes cargos, foram designados superiores do Exército tanto da ativa, como da reserva. Em 10 de maio sai o primeiro de vários relatórios realizados pelos interventores recém-nomeados: Relatório da intervenção federal na Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea: Através dos desmandos praticados pela administração oposta, quer pela irregular e criminosa condução dos negócios sociais, quer pelo livre e ostensivo trabalho subversivo, contra a ordem constituída e de um agressivo processo de comunização, inspirado e dirigido pelos próprios administradores, a cooperativa tornou-se uma das maiores células subversivas, da cidade, onde comunistas e inocentes úteis se 2 3

Os modos gerais de operação da ideologia, bem como suas respectivas estratégias de construção simbólica se encontram em Thompson, 1995, p. 82-88. Sobre a política local na década de 1960, ver a monografia: FAVARIN, Magale. A política em Santa Maria durante o segundo governo de Vargas- 1951-54, defendida no curso de Especialização em História do Brasil da Universidade Federal de Santa Maria, em março de 1999.

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irmanavam, para transformar a meritória instituição, em foco de alta periculosidade.

Em 17 de abril, os representantes dos setores vitoriosos em 31 de março organizaram a “Marcha do agradecimento”, manifestação de homenagem à ação das Forças Armadas. Este ato movimentou a cidade, inclusive com a decretação de ponto facultativo nos órgãos públicos. No início do mês de maio, a Divisão de Infantaria revelou os nomes das primeiras pessoas detidas. Nesta, o prefeito e o vice ainda seriam poupados. Em 8 de maio de 1964, o A Razão anuncia que Lauda e Genro sairiam da prefeitura e a Câmara de Vereadores elegeria - de forma indireta- o próximo prefeito. O presidente da Câmara –Waldir Aita Mozzaquatro - assumiu interinamente a prefeitura, escolhendo seus novos secretários e nomeando os novos subprefeitos. Enquanto isso, o reitor da Universidade de Santa Maria viajava seguidas vezes para os Estados Unidos, a fim de angariar verbas para o ano de 1965. Em 15 de maio, a Câmara de vereadores de Santa Maria elegeu para prefeito Miguel Meirelles, médico, 62 anos, que representava a seguinte coligação: PSD, PDC, PL e MTR. Para vice, Francisco Alvares Pereira. Em 10 de setembro, o diário informa que teria sido decretada a prisão de Adelmo Genro, Paulo Lauda e outros, inclusos na lei de Segurança Nacional, e continuavam sob auditoria os outros inquéritos realizados no setor estudantil, inclusive com uma lista com nomes como João Gilberto Lucas Coelho e Renan Kurtz. Os professores da rede estadual de ensino também não escaparam dos inquéritos e das punições. Muitos foram aposentados e outros simplesmente afastados do exercício do magistério. 4 — Em outubro o A Razão notícia: “Expurgo de professor da USM” Paulo Lauda, acusado de organizador do Grupo dos Onze e Eduardo Martins de Oliveira Rolim, acusado de atos contrários ao regime democrático (ambos da Faculdade de Medicina) foram demitidos de seus cargos. Além de perder o cargo de prefeito, Paulo Lauda também teve que deixar de ser professor. O mesmo aconteceu com seu vice, Adelmo genro, que era professor da rede pública estadual e foi demitido pelo regime militar. No dia 10 do mesmo mês, saiu a lista com os nomes dos servidores que teriam aposentadoria forçada e outros que foram absolvidos, num total de 150 processos apreciados pela comissão Especial de Investigações instituída pelo governo do estado. O primeiro aniversário da Revolução foi comemorado festivamente na cidade, através de uma grande parada cívico-militar, que teria tomado conta das ruas centrais, e da aprovação pela Câmara local de congratulações pelo primeiro aniversário da Revolução. 2. A comunização e a cubanização-sovietização – a construção do comunismo como “inimigo interno” Em editorial de 1964, o jornal A Razão classifica o comunismo como um “regime despótico, 5 inumano, anticristão” . A fragmentação, onde relações de dominação podem ser mantidas, não unificando, mas segmentando indivíduos ou grupos que possam ser capazes de se transformar num desafio real aos grupos dominantes, dirigindo forças de oposição potencial a estes, é o modo de operação da ideologia que se destaca, quando analisada a sustentação, por parte do jornal, da suposta comunização, cubanização ou sovietização dos rumos políticos brasileiros. O ícone representativo desse modus operandis da ideologia pode ser vislumbrado na criação de um inimigo interno ou externo: o comunismo dentro do país e o comunismo internacional – ambos sendo retratados como maus e perigosos, contra os quais os “verdadeiros brasileiros” são chamados a lutar. No caso do Brasil, pode-se analisar a presença destes dois inimigos, que foram criados e, constantemente, alimentados pela difusão simbólica do discurso construído pelo jornal A Razão. Essa construção simbólica que Thompson, em sua hermenêutica de profundidade para interpretação da ideologia, classifica como expurgo do outro, aparece estampada claramente nas páginas do jornal A Razão. Salientando-se que, a racionalização como uma estratégia de construção simbólica, está presente ao longo de todo o material analisado. Cabe aqui esclarecer, também, que os termos bolchevização, cubanização e sovietização, utilizados ao longo do discurso, inserem-se dentro do 6 modo de operação da ideologia da dissimulação, com ênfase no deslocamento , onde termos de um contexto são transportados para outro. Em editorial, o jornal critica a posição de apoio a Cuba, sustentada pelo chanceler Araújo de Castro, em declarações prestadas à imprensa em Brasília: Disse que não mudou o pensamento do Brasil em relação a Cuba e que, na próxima 4 5 6

09/10/1964, Agência Meridional, Rio de Janeiro, capa. 04/01/1964, “O muro e a brecha”, editorial. Op. Cit., p.83.

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reunião do Conselho de Segurança da OEA, a nossa posição será contrária a qualquer medida punitiva contra a ditadura castrista [...]. Fidel Castro reiterou, no aniversário da revolução, que nada afastará Cuba, dos princípios do marxismo-leninismo. Só isto bastaria para que o Brasil se desinteressasse pela sorte de Cuba, por fidelidade aos princípios cristãos e democráticos que estão arraigados na consciência da esmagadora 7 maioria do seu povo.

Embasando-se no pressuposto de que, as ditaduras comunistas se configuram como estados totalitários, cujas respectivas populações viveriam privadas de liberdades individuais, o jornal constrói a ideia – oposta – de mundo livre, do qual fariam parte os países capitalistas e onde a liberdade e o desenvolvimento, supostamente, alimentam-se mutuamente. Neste, ponto racionalização e expurgo do outro aparecem como possibilidades de análise e fortalecem-se na construção do discurso ideológico legitimador. A economia no mundo livre registrou, em 1963, uma notável expansão, a contrastar com as aperturas em que se viram e veem os Estados totalitários, melhor dizendo, os países do bloco comunista. À parte algumas nações da América Latina, os demais Estados democráticos tiveram um ano propício, com execuções orçamentárias regularmente procedidas e ingressos apreciáveis, suficientes para o correto atendimento dos 8 compromissos e do custeio da máquina administrativa.

Racionalização e expurgo do outro, novamente, se complementam, no intuito de racionalizar para legitimar, expurgar para fragmentar, visando, em última instância, a legitimação da ruptura políticoeconômica que o Brasil viveria no ano de 1964. Ao mesmo tempo em que o discurso construído pelo jornal A Razão apresenta uma imagem unificada do ocidente, e de um suposto mundo livre, o inimigo seria representado pelo comunismo totalitário. E segue: Na área que tem como centro político e econômico a União Soviética, as coisas correram pessimamente, a tal ponto, que os chefes vermelhos, pondo o orgulho de lado, confessaram de público o malogro de seus milaborantes planos e dirigiram patéticos apelos ao detestado “mundo capitalista”, pois sem o pão desse mundo passariam a jejuar.

Seria o mundo capitalista ocidental, em imagem unificadora, que estaria “matando a fome” do mundo comunista oriental. Elaborar uma imagem negativa -e unificada- dos países que aderiram à ideologia comunista, bem como das pessoas que a professam, mesmo em países democráticas e capitalistas, fazia parte do processo de criação e alimentação do “monstro” do comunismo, através da difusão da simbolização do diferente como perigoso e, portanto, como um inimigo comum ao, também unificado através do discurso, “mundo livre”. Pode-se interpretar, no mesmo sentido: Os devaneios continuístas e ditatoriais que tumultuam o cenário político nacional geralmente sob inspiração extracontinental, certamente estão verificando que seu programa de subversão da ordem pública é impraticável: a consciência democrática brasileira vem demonstrando capacidade magnífica para reagir às ações destinadas a destruir o regime de liberdades individuais vigentes no País. [...] É preciso lembrar, também, que a liberdade – que os comunistas reclamam para pregar a dissolução da 9 democracia – não existe na sua pátria intelectual, a União Soviética.

Segundo a cadeia de racionalização proposta pelo diário A Razão, ao longo do período pesquisado, pode-se analisar que, os termos ditadura, comunismo e falta de liberdade estão geralmente atrelados, ressaltando a ideia recorrente de que um golpe comunista desferido pelo presidente da República João Goulart e seus assessores privaria os brasileiros de suas liberdades individuais. Nessa perspectiva, a possibilidade da decretação de um golpe seria atribuída apenas ao governo e seus “assessores comunistas”. Se a intervenção viesse por parte das Forças Armadas não poderia ser classificada como golpe, pois segundo o jornal, seria uma “intervenção defensiva”. Sob o título “Ninho de ratos vermelhos” o editorial de 29 de janeiro de 1964 trata da “infiltração comunista” na Petrobrás, fato este que teria trazido consequências prejudiciais ao país, já que muito dinheiro, segundo o jornal, teria sido roubado dos cofres públicos pelos comunistas, instalados neste órgão federal: 7 8 9

09/01/1964, “Apoio à OEA”, editorial. 15/01/1964, “Prosperidade no mundo livre”, editorial. 25/03/1964, “Devaneios”, editorial.

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O período em que esteve entregue ao sr. Francisco Mangabeira marcou o início da anarquia na Petrobrás, caracterizada pelo predomínio dos grupos comunistas que ali se instalaram, com o propósito indisfarçável de bater moeda fácil e abundante. [...] Milhões e milhões de cruzeiros são despendidos para benefício gáudio dos comunistas que estão aboletados em cargos de comando, sob o amparo dos sindicatos. [...] Ninguém ignora que as autarquias e os organismos paraestatais constituem, hoje, os mais descalibrados centros de corrupção da história administrativa do Brasil. A maioria dessas entidades está sendo dirigida por espertalhões tirados das fileiras do PTB, com a aprovação do Partido Comunista que, segundo se afirma leva para os seus cofres uma parte considerável da roubalheira praticada. Podem roubar, contanto que deem uma percentagem do roubo à caixinha vermelha.

Note-se que a fonte da informação foi velada, pois o trecho “segundo se afirma” não possibilita ao leitor vislumbrar quem estava afirmando a respeito dessa “roubalheira” na Petrobrás. Esse recurso de omissão do sujeito torna-se possível quando os verbos são colocados na voz passiva, e representa uma estratégia de construção simbólica, pertencente ao modo geral de operação da ideologia classificado por Thompson como reificação. “Os acontecimentos são apresentados sem um sujeito responsável pelo 10 fato”. Pode-se inferir que o resultado desta construção simbólica seria a descontextualização do fato noticiado. Ao associar a tática de Hitler à mesma utilizada por Fidel Castro em Cuba, constrói-se uma racionalização que objetiva construir uma imagem negativa do comunismo, bem como dos países que o representavam. É, como se vê, uma ameaça igual as que têm por objetivo sustentar, em Havana, o detestado traidor de Sierra Maestra, igual também as que Adolf Hitler proferia aos berros para preparar os seus crimes, os seus latrocínios políticos, conseguindo com essas ameaças manter a distância os que eram jurídica e moralmente obrigados a opor-se á 11 sua prepotência.

Os trechos que seguem procuram desqualificar a teoria comunista desenvolvida no Brasil, cuja base vem do continente europeu: Mas, limitadamente aberto ou inteiramente fechado, o “Muro da Vergonha”, com a sua ruptura, foi significativamente condenado pelos autores. Pode impedir que os inconformados com a sua condição de prisioneiros do detestado regime fujam das 12 trevas para a plena luz”.

A parte do globo que aderiu ao comunismo representava as trevas, que obscurecem o mundo todo. Já a parte capitalista seria a luz, que poderia nortear os rumos com clareza e sem obscuridade. A metáfora criada explicita bem a cadeia de raciocínio defendida constantemente nas páginas do A Razão - onde o capitalismo seria a melhor ou única saída viável para as nações, já que somente dentro desse regime o desenvolvimento poderia ser alavancado de forma plena. O comício realizado dia 13 de março de 1964, na Guanabara, foi configurado e desconfigurado pelo jornal, sob vários aspectos. O que permanece constante nos comentários é a associação direta ao comunismo como mentor intelectual, e do governo brasileiro – João Goulart – como o patrocinador oficial do acontecimento que alcançou imensurável projeção no contexto da época e que teria sido classificado como o estopim da deflagração do golpe. No comício da Praça Cristiano Otoni falou-se mais ou menos em português, mas o subconsciente foi russo, um russo superado porque a própria União Soviética, farta de tantos malogros causados pela estatização, ensaia a volta aos métodos que fazem a grandeza dos povos livres, os povos que fornecem o pão que os próprios comunistas 13 comem.

Novamente, a racionalização defende que seriam os países capitalistas que alimentariam o mundo socialista, enaltecendo a “função social” do ocidente e o “atraso social” do oriente comunista.

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Op. Cit., p.81. 25/01/1964, “O inimigo comanda a fortaleza”, editorial. 04/01/1964, “O muro e a brecha”, editorial. 19/03/1964, “um carnaval na quaresma”, editorial.

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3. Desenvolvimento da mentalidade de revolta Em diversos momentos, em maior ou menor grau, o jornal lançava questões pertinentes ao desfecho que o contexto em estudo viria a ter. O discurso construído pelo jornal A Razão, objetivava contribuir para a legitimação da ruptura institucional. Paulatinamente, trabalharia com temas e incutiria conceitos que, posteriormente, seriam utilizados pelo regime militar, a exemplo ditadura e intervenção das Forças Armadas. Esses conceitos são construídos sob a égide da racionalização visando à legitimação, do expurgo do outro visando à fragmentação, da simbolização da unidade visando à unificação. Desta forma, estas simbologias constituem e corporificam o discurso ideológico legitimador do jornal A Razão. Estamos vivendo momentos de indisfarçável gravidade. A sensação do perigo está em todos os espíritos. E o fato de as forças democráticas se virem na contingência de sair às ruas para defender o nosso regime de liberdades individuais é uma amostra de que, continuasse a omissão, os totalitários já teriam sepultado a democracia brasileira. Felizmente esta possui vitalidade suficiente para sobreviver mesmo aos maiores 14 embates.

O jornal expõe a sua linguagem de maneira clara e direta. As palavras são articuladas de forma a gerar um sentimento de revolta no leitor. O próximo passo seria transformar essa revolta em articulação para a luta contra a causa maior dos problemas brasileiros, como fica claramente visível no trecho a seguir: Precisamos, isso sim, desenvolver o quanto antes a mentalidade de guerra, preconizada pelo Deputado João Calmon. Guerra à baderna, guerra sem tréguas aos conspiradores do “paredón”, aos torvos autores da “revolução com data marcada”, denunciada pelo governador Ildo Meneghetti. Mas, sobretudo, guerra implacável ao arqui-inimigo à vista: 15 a inflação. Essa deve ser a palavra de ordem, a flama nacional para 1964.

Deste modo, lutar contra a inflação, que seria a causadora de tantos males à economia do país, significaria lutar contra os maus governantes, que não teriam conseguido deter seus avanços. Ao se declarar “guerra à inflação”, também se declararia guerra ao governo de Jango. Essa mentalidade de revolta foi divulgada, insistentemente, pelo jornal A Razão no período em estudo. O ano de 1964 deve, assim ser para o Brasil o ano da luta sem quartel contra a inflação, em defesa do desenvolvimento econômico, da paz social e da sobrevivência do regime. [...] Há uma questão por demais séria para as atuais gerações – os destinos da Nação – que não tolera transigências nem acomodações com o mal inflacionário. Devemos repelir os engodos da demagogia e os passes de mágica dos falsos líderes do 16 passionalismo caboclo.

Ao evocar a “sobrevivência” do regime, o jornal tenta mobilizar, ideologicamente, a população e também as Forças Armadas, incitando os “democratas” e defensores dos “verdadeiros interesses da Nação”, a lutar contra a infiltração do inimigo. Mas, mesmo assim, “ninguém de bom senso pensa em arrebatar o poder das mãos do presidente da República, embora todos vejam e saibam que o está 17 exercendo em detrimento dos mais sagrados interesses do Brasil”. Ao se intitular porta-voz das Forças Armadas, o jornal emitiu, em tom de comunicado, como os setores das três armas estariam se articulando diante do contexto de turbulências políticas. Cita-se a crônica de Oscar de Andrade, intitulada “A consciência militar”, onde pode-se analisar, com maior clareza, qual seria a possível posição tomada: Podemos afirmar a todos os brasileiros que existe uma consciência firmada dentro dos quartéis, de absoluta respeito à lei. Comandantes e comandados comungam com o mesmo pensamento de acatar a autoridade constituída, mas nunca estar a serviço de quem quer que seja para ferir à Carta Magna. Consideramos isso o amadurecimento de consciências que não se deixam empolgar por paixões. O soldado de hoje é um esclarecido, Não pode nem deve cumprir ordens contrárias à sua missão, tão bem definida nos regulamentos e no próprio compromisso que assumiu quando ingressou 18 nas classes armadas. 14 15 16 17 18

“O inimigo comanda a fortaleza”, editorial. 03/03/1964, “A flama para 1964”, editorial. 03/01/1964, “A flama de 1964”, editorial. 24/01/1964, “Petulância vermelha”, editorial. 23/01/1964, “A consciência militar”, Oscar de Andrade, crônica, contracapa.

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Exaltando o dever sagrado das Forças Armadas de salvaguardar a unidade nacional, a crônica esclarece que isso não fará das três armas fantoches nas mãos de propósitos contrários ao bem do país. Ou seja, mesmo respeitando o presidente da República como chefe supremo da nação, se este vier a cometer atos ilícitos que representassem desrespeito à Constituição, seria impedido, pois acima das vontades do presidente estaria o bem maior da nação, identificado através da manutenção da unidade nacional. A sociedade civil começaria a se organizar, criando movimentos de revide às manobras governamentais. Desses movimentos emanariam manifestações diversas, como por exemplo, a Marcha da Família realizada em São Paulo. A democracia vale a luta, o sacrifício e esforço que cada homem ou mulher fizer para preservá-la. Todos devem prezar a liberdade pois só os que têm vocação para a fraude a menosprezam. Juntemos as mãos sem ódio, mas sem covardia para que a nossa pátria continue livre. O objetivo do movimento não é o combate histérico ao comunismo, [...] pois as reformas são necessárias também para o bem-estar do povo brasileiro. O que será apregoado são as reformas dentro da justiça social e através do clima de 19 liberdade e da democracia.

Mais e mais acusações são expostas nas páginas do jornal A Razão, no intuito de não deixar dúvidas na população de que governo brasileiro estaria cada vez mais perto do desfecho deste período de dúvidas e “trevas”. A ruptura institucional estaria próxima. Considerações finais A análise do jornal A Razão baseou-se na busca das construções simbólicas e de seus possíveis significados, dentro da estruturação do discurso, sendo que entendemos o discurso como uma forma de comunicação, que, por sua vez, objetiva divulgar uma ideia que pode representar os interesses do órgão comunicador e/ou de quem o representa. Como afirmou Motter (1990, p.58): “o poder lhe confere a palavra e a palavra lhe assegura o poder”. Nesse sentido, a manipulação das informações se transforma em manipulação da realidade, haja vista a dimensão alcançada pelos veículos de comunicação principalmente a partir do século passado. O jornal também participa do fazer da História, podendo frear ou estimular movimentos sociais. Na atualidade, os veículos de comunicação se apresentam como sujeitos constituídos, pois possuem um status, um nicho e uma atuação que já se incorporou à vida moderna. Um jornal não existe deslocado de um contexto histórico-ideológico. A História nos traz diversos exemplos de momentos em que jornais e revistas atuaram como agentes ativos, formadores de opiniões, padrões culturais, políticos e sociais. O jornal, utilizando-se de sua função de comunicador, tendo como espaço de visibilidade a sociedade interiorana do Rio grande do Sul, particularmente Santa Maria, empreendeu a criação de diversas formas expositivas da legitimação pretendida. Essas formas, analisadas á luz da metodologia de interpretação de Jhon Thompson, nos permitiram concluir que, o jornal A Razão contribuiu, ideologicamente, para legitimar a ruptura institucional de 1964 e referendar o Estado militar que veio a seguir. Não existe uma rigidez na estrutura dos discursos. A conduta é definida pela circunstância. Assim, os meios de comunicação de massa tornaram-se mais eficientes não na criação de novos valores ou padrões de comportamento, mas no reforço dos existentes e aceitos na sociedade. O conteúdo dessas mensagens buscou, sobretudo, não impossibilitar ao indivíduo a auto-compreensão de seu papel enquanto sujeito histórico, mas sim, construir uma dada versão do contexto em questão, a fim de que a partir deste, pudesse delinear quais seriam as aspirações deste sujeitos. O jornal A Razão classificou os fatos de 31 de março como uma Revolução cívica, contrariando o conceito de ditadura militar. O estudo da ideologia, empreendido neste trabalho, exige que perguntemos se o sentido construído e usado pelas formas simbólicas serve ou não para manter relações de poder sistematicamente assimétricas. No caso do jornal A Razão, o sentido mobilizado pelo discurso contribuiu para legitimar, no campo ideológico, a Revolução cívica e a nova ordem organizacional do país surgida a partir desta.

Referências Bibliográficas: ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 19

31/01/1964, “Rede da Democracia – Sobrevivência do regime exige de todos a vigilância e o sacrifício”, Agência Meridional, Rio de Janeiro, crônica, contracapa.

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2003. ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1987). Petrópolis: Vozes, 1984. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995. BEBER, Cirilo Costa. Santa Maria 200 anos – História da economia do município. Santa Maria: Pallotti, 1998. CAPELATO, Maria Helena. A imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1998. FILHO, José M. da Rocha. Universidade para o desenvolvimento. 1973. GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1999. LABIN, Suzanne. Em Cima da Hora – A Conquista Sem Guerra. Rio de Janeiro: Record, 1963. MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. MOTTER, Maria Lourdes. História e imprensa. In: Revista Comunicação e Artes, Ano 15, n.24, set/dez, 1990. RUDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993. TAVARES, José Antônio Giusti. A estrutura do autoritarismo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. __________. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998. Jornal utilizado: Jornal A Razão – de 1/1/1964 a 30/4/1965.

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V – Recursos discursivos e discussão conceitual acerca da Ditadura



O discurso da Ditadura na obra de Elio Gaspari Carla Luciana Silva

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Resumo: O texto trata da concepção de Ditadura presente na obra de Elio Gaspari, especialmente A Ditadura Escancarada. Busca mostrar a forma como os movimentos de resistência à ditadura são mostrados, de forma desqualificadora. Mostra como o uso de determinados recursos discursivos permitem a construção de sentido não apenas para o projeto da ditadura como para o projeto dos resistentes, sempre vistos como “terroristas”.

Neste texto busco apontar elementos sobre as relações da grande imprensa brasileira com a Ditadura brasileira, tanto as empresas de comunicação, como os jornalistas. Nesse sentido vem sendo desenvolvidas pesquisas sobre a revista Veja, a revista Visão, a revista Isto É e o jornal Folha de São Paulo. A partir do referencial gramsciano, buscamos perceber a imprensa na sua complexidade: uma empresa capitalista; um agente concreto do processo político, podendo ser um aparelho privado de hegemonia ou mesmo tendo atuação como partido. Cada caso em estudo é diverso e precisa ser estudado nas suas especificidades. Recentemente publicamos uma leitura sobre o jornalista Alexandre Garcia, mostrando suas 1 vinculações com a Ditadura e também seu apoio incondicional à mesma, mesmo depois do seu fim. Contribui o jornalista para a afirmação no senso comum da idéia de que a Ditadura brasileira foi “branda”, ou seja, coadunando com a defesa da “ditabranda”, termo usado em 2009 pelo jornal Folha de São Paulo, conceito que estamos buscando definir à luz do seu uso histórico. O objeto desse texto específico é o trabalho do jornalista Elio Gaspari, mais propriamente sua obra 2 A Ditadura Escancarada. Na leitura busco a forma como a Ditadura é interpretada, e mais propriamente, a forma como a luta armada é tratada. Algumas questões servem de guia na problematização do livro. Em primeiro lugar, a visão que Gaspari está buscando consolidar sobre o que foi a ditadura, mais propriamente sua tese de que a ditadura foi uma grande “anarquia”. Em segundo lugar, o seu papel ideológico, e a forma específica com que faz uso do discurso, dando sentido às expressões próprias da ditadura, mas não apenas, também às expressões e significados da própria esquerda, a partir de seu próprio (de Gaspari) referente. Por fim, o próprio sentido das ações da luta armada e da possibilidade concreta de reação à ditadura e de um projeto revolucionário no Brasil. Transcende-se portanto à luta armada, pensando as formas distintas de resistência. Sobre a obra de Elio Gaspari Não é necessário atestar a importância do texto de Gaspari, porque mesmo aqueles que não gostam dele se vêem obrigados a ler e discuti-lo. Tem se tornado uma referência na historiografia que tem aceitado esse tipo de texto de forma acrítica, em nome de um “texto bem escrito”, fácil de ler. É interessante que o texto de Gaspari é uma metanarrativa, busca interpretar ao seu modo a história recente do Brasil. Mas ele é recuperado na onda editorial que o coloca como um texto “leve”, sem a marca explicativa dos historiadores preocupados com a totalidade. É necessário lembrar que Elio Gaspari escreve dentro de um contexto, e esteve desde sempre envolvido com o próprio regime militar por escolha própria. Jornalista da editora Abril, optou por tornar-se amigo de suas fontes, ganhar delas confiança e nelas confiar. Assim conseguiu chegar em Ernesto Geisel e em Golbery do Couto e Silva, as grandes fontes inspiradoras de sua obra. Há aqui dois problemas, um deles é a relação que um profissional de imprensa estabelece com as fontes e com a realidade política, os possíveis favorecimentos que podem daí advir para si e para sua empresa. O outro é o fato de que os documentos históricos aos quais teve acesso no seu trabalho foram privilégios recebidos diretamente dos seus produtores. Fontes históricas, sobre a história política e pública que foram transformadas em material de uso particular. Mesmo que os livros tenham sido publicados efetivamente nos anos 2000, seria equívoco achar que não foi fruto da relação do autor com as fontes

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Docente do Curso de História e do Programa de Pós Graduação em História da UNIOESTE. SILVA, Carla. Imprensa e ditadura: a trajetória intelectual de Alexandre Garcia. Antíteses. Goiania. N. 10, 2011, Issn 1808-9194, p. 106-124. GASPARI, Elio. A Ditadura escancarada. As ilusões armadas. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

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ainda durante a ditadura, “uma amizade de quase trinta anos”. Por fim cabe dizer que, de fato, sua obra é relevante, é necessário estudá-la, seja pelas interpretações que propõe, pelos documentos que traz ou ainda pelo fato de que está se tornando referência historiográfica e para o ensino de história, mesmo que o autor tenha alertado que sua intenção não era escrever uma história geral da ditadura: Em nenhum momento passou pela minha cabeça escrever uma história da ditadura. Falta ao trabalho a abrangência que o assunto exige, e há nele uma preponderância de dois personagens (Geisel e Golbery) que não corresponde ao peso histórico que tiveram nos 21 anos de regime militar. O que eu queria contar era a história do estratagema que 4 marcou suas vidas. Fizeram a ditadura e acabaram com ela.

Ora, aqui uma incoerência. Se não tiveram tal preponderância, porque são a inspiração e o guia de leitura, pelo menos dos dois primeiros volumes de sua obra? Há aqui também uma questão relevante, que nos mostra a tese que Gaspari desenvolve ao longo de todos os seus quatro livros: a de que a ditadura terminou por obra e dedicação dos próprios ditadores, chegando a afirmar que Geisel “acabou 5 com a ditadura”, o que é um absurdo insustentável, mas parte da lógica de que ele teria amenizado a ditadura acabando com o AI-5, e que “acabara com a censura à imprensa e com a tortura de presos 6 políticos, pilares do regime desde 1968”. Essa fala em primeiro lugar faz de conta que a Ditadura não começara em 1964, e desconsidera o fato do Pacote de Abril ter decretado recesso no Congresso e alterado significativamente as regras da sucessão presidencial, mantendo a ditadura por ainda mais 7 tempo. E sem falar ainda da permanência da Lei de Segurança Nacional que mantinha os poderes da Ditadura através da Doutrina de Segurança Nacional, questão que é também questionada por Elio 8 Gaspari. O que se dirá do fato de que a tortura teria “acabado” durante o período Geisel, sendo que o próprio general admitia a tortura? O que foi a ditadura A forma que Gaspari qualifica a ditadura tem a ver com a forma que constrói uma interpretação para o seu fim. Mas há um detalhe tangenciado pelo autor, que é a existência de projetos sociais contrahegemônicos distintos, tanto no início da ditadura como no seu final. Há uma sistemática insistência em 9 desqualificar o que foi o governo de João Goulart e os projetos sociais ali colocados, ao mesmo tempo em que posteriormente se desqualifica o conteúdo das lutas sociais pelo fim da ditadura. O argumento de que “Jango era um fraco” e que seu governo era uma completa desordem aprece em Gaspari, o que já discutimos em outro momento. Mesmo assim, costura-se um argumento de que havia uma revolução em curso e que portanto o golpe foi um “contra-golpe”, justificando a ditadura. Mas, depois, quando vai explicar a luta armada, será insistente em dizer que a contestação à ditadura era inexistente e que aqueles que lutaram não tinham qualquer projeto válido, que colocar a pauta da revolução no debate era uma esquizofrenia “esquerdista”. Quando, no processo social que levou ao fim da ditadura se recoloca o problema da revolução, o debate “socialismo ou democracia”, esse debate será apagado por obras como a de Gaspari. Ou seja, o que se está construindo é uma versão falsa que nega que tenha havido pensamento revolucionário no Brasil pré-64; desqualifica e mostra o aniquilamento que as forças de repressão impuseram aos que lutaram contra a ditadura; ignora que as lutas sociais dos anos 1980 colocavam na pauta uma alternativa socialista. É a negação da luta de classes e apassivação dos conflitos reais. Segundo Gaspari, A Doutrina de Segurança Nacional serviu também de conduto para racionalizar tudo o que aconteceu de ruim na ditadura. Quando essa mesma ditadura começou a se retrair, jogou-se fora a demonologia militar e entronizou-se a beatificação das massas. Cada recuo do regime foi entendido como consequências de uma pressão de forças libertárias da sociedade. A fé em que ‘o povo unido jamais será vencido’ é insuficiente para explicar 3

GASPARI, Elio. A Ditadura envergonhada. As ilusões armadas. São Paulo, Companhia das Letras, 2002. p. 15. Idem, p. 20. 5 Idem, p. 35. 6 Idem, p. 36. 7 MACIEL, David. A argamassa da ordem: da ditadura militar à Nova República. 1974-1985. São Paulo, Xamã, 2004, p. 149. 8 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. Op; cit, p. 39. 9 Para uma visão crítica da crise dos anos 1960 e do governo de Jango, ver: MELO, Demian Bezerra. Crise orgânica e açõa política da classe trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5/7/1962). Tese de Doutorado. UFF, Niterói. 2013. 4

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mudanças ocorridas antes que aparecessem, como tais, as pressões.

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Trata-se, obviamente de optar por um motor histórico, as lutas sociais ou a vontade de um ou dois homens iluminados. Mais que isso, Gaspari reitera que o regime se desfez por inépcia dos militares: “Para quem quiser cortar caminho na busca do motivo por que Geisel e Golbery desmontaram a ditadura, a resposta é simples: porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da desordem, era 11 uma grande bagunça”. Para sustentar esse argumento será fundamental uma utilização específica do discurso histórico, construindo sentidos para seu projeto de hegemonia, e como tal, atribuindo sentidos para qualquer projeto de contra-hegemonia que se colocar no caminho. O discurso e a ideologia Elio Gaspari não deixa qualquer dúvida sobre o papel da tortura na Ditadura, que inclusive ele coloca como um pilar do regime (embora diga que Geisel tenha acabado com ela), negando a tese de 12 que “a tortura era produto da atividade de agentes desautorizados e passíveis de punição”. Segundo ele, “a tortura envenenou a conduta dos encarregados da segurança pública, desvirtuou a atividade dos 13 militares da época, e impôs constrangimentos, limites e fantasias aos próprios governos ditatoriais”. No livro especialmente dedicado ao contexto da repressão, Gaspari quando fala do contexto da tortura intitula “a praga”, portanto algo fora de controle, algo natural, fruto da reprodução indesejada de algum ser vivo que ameaça e destrói. A dúvida é qual seria a praga, se a existência da tortura ou daquilo que a justifica sob a lógica da ditadura, ou seja, de opositores do regime. Isso porque o foco do seu texto não é a tortura em si, mas a sua existência, a estrutura que lhe permitia existir, sempre se referindo às ameaças: “a ação policial da ditadura foi rotineiramente defendida como resposta adequada e necessária 14 à ameaça terrorista”. Ao deixar claro, de forma irrefutável a tortura, Gaspari traz junto como natural que ela se opunha ao “terrorismo”, sempre associado aos opositores do regime. É uma forma sutil de atribuir um sentido à ação dos torturadores, afinal, haviam “terroristas”, sobretudo publicando seu livro num momento histórico em que o termo terrorista estava no auge do debate público com o atentados das Torres Gêmeas de Nova Iorque em 2001. Há, segundo Gaspari um certo exagero: “no caso brasileiro, 15 faltou ao surto terrorista a dimensão que lhe foi atribuída”, ou seja, o problema fica apenas no exagero da tortura e alem disso, de novo, o surto terrorista existiu, na sua reprodução da fala oficial. Uma característica do discurso ideológico hegemônico é a sua negação enquanto ideologia, atribuindo ao discurso opositor a pecha de ideológico. O capitalismo se coloca como vencedor histórico, livre de ideologia, mas contestações a ele são mostradas como delírios ideológicos. Gaspari ouve defensores e torturadores. Mostra que há uma rede social de apoio à tortura, não nega de forma alguma sua existência. No entanto, quando fala de torturados não faz qualquer distinção entre o tipo de ação cometida que leva à tortura, são simplesmente “terroristas”. Por isso traz várias páginas sobre o caso da Argélia, como a tortura foi utilizada para debelar a guerrilha, lá “o pau cantou, e 16 o terrorismo sumiu”. Gaspari deixa clara a lógica: O que torna a tortura atraente é o fato de que ela funciona. O preso não quer falar, apanha e fala. É sobre essa simples constatação que se edifica a complexa justificativa 17 da tortura pela funcionalidade. O que há de terrível nela é a sua verdade.

Portanto, está concluído, é terrível mas... funciona. E o problema, segundo ele, é que “os militantes são treinados para resistir aos interrogatórios, para dar tempo a que seus companheiros se ponham em 18 segurança”, citando Jarbas Passarinho. E, nas palavras do próprio Gaspari, mostra como a esquerda, mais propriamente o PCB teve um papel nesse processo: “expulsou diversos dirigentes que, uma vez capturados, contaram aos seus torturadores segredos da organização”, citando Jacob Gorender: “são mais aptos a resistir à tortura os militantes que interiorizaram a ideologia socialista e fizeram dela sua norma moral”. Há, dessa forma, uma divisão de responsabilidade. Além do torturador seria responsável o partido que ensina a resistir e daquele militante que obedece, que aceita uma dada moral. Se falassem logo seria mais fácil e menos “dolorido”. O passo seguinte é apresentar a lógica dos que defendem a 10 11 12 13 14 15 16 17 18

Idem, p. 40. Idem, 41. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada, p. 285. Idem, p. 13. Idem, p. 17. Idem, p. 18 Idem, p. 31. Idem, p. 37. Idem, p. 38.

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tortura: A proposição é curta: imagine-se um avião cheio de crianças no qual se saber que há uma bomba. Ela explodirá dentro de duas horas, e acaba de ser preso o terrorista que com quase toda a certeza sabe onde ela foi escondida. Ele se recusa a falar. (...) parece 19 preferível tortura-lo.

Ele conclui a questão dizendo que se houvesse de fato a bomba, “poucos seriam os tribunais do mundo capazes de condenar o torturador”. Ora, é uma falácia esse argumento, porque se a tortura fosse autorizada, ela seria desde logo, legal, portanto nenhum torturador iria a julgamento por isso. Há, portanto, uma apropriação de discursos e uma disputa de sentidos que mistura tudo e faz tudo parecer lógico e possível, inclusive a tortura, inclusive a ditadura. A luta armada Quando passa a apresentar mais claramente os casos de tortura, Gaspari vai adentrando no campo da luta armada, utilizando de bibliografia historiográfica e criando um quadro de “vitórias” e “derrotas” dos militantes. Chega inclusive a narrar algumas mortes. Mas não dá voz ao projeto, não dá voz ao que justificava a ação, usa para isso a expressão militar “guerra revolucionária”, dentro da lógica da Segurança Nacional. São incontáveis as vezes que Gaspari fala em “terrorismo” e “surto terrorista”. Quando fala de um 20 refluxo do movimento, é sarcástico: “os combatentes refluíram para lamber as feridas”. Ora, quem lambe ferida é cachorro, animal, guerrilheiro. Terrorismo, portanto aparece como uma palavra natural. Já 21 “expropriações”, nas poucas vezes que aparece está entre aspas. Se não há motivo, não há projeto que embase a ação de resistência, a solução é romantiza-la. Assim define Gaspari: Ao longo de 1969 as organizações esquerdistas brasileiras que se lançaram em atos terroristas foram submetidas ao primeiro grande teste que a existência lhes reservava. Na infância de sua formação, qualquer grupo revolucionário beneficia-se da falta de informações da polícia, da capacidade de surpreender seus alvos e do apoio de uma rede de militantes suja fidelidade é proporcional à segurança que lhe faculta a mística do segredo da organização. É uma fase de esplendor, na qual o romantismo dos primeiros tiros se confunde com a sensação de onipotência oferecida pela perplexidade do inimigo. 22 Parece ser a prova factual da clarividência da opção política.

Depois disso, reorganizada a repressão, “já não se organizam como a revolução precisa, mas como a repressão condiciona, produzindo uma rotina de gato-e-rato”. Há uma permanente descaracterização e desrespeito à posição da luta armada enquanto uma tentativa de resistência contrahegemônica. Após mostrar alguns intentos de sucessos da resistência, quando Gaspari é impiedoso com a ineficiência da repressão, falando do seqüestro do embaixador Elbrick, Gaspari conclui: “a tigrada 23 miou”. A ação é considerada espetacular, desmoralizante para o regime, humilhante. É portanto, uma questão quase sentimental. O passo seguinte é descaracterizar os resistentes, que estariam apenas “lutando pela sobrevivência”, sem conseguir ampliar suas bases ou avançar posições. O texto é rico em citações advindas da imprensa, sobretudo da revista Veja. São citadas como fonte, sem questionamento. Mostra, de forma indubitável a crescente de mortes dos “esquerdistas”, outro termo usado como natural e que é profundamente preconceituoso. O mais intrigante é que Gaspari insiste em dizer que o que gerou o aumento da repressão, da tortura e das mortes é a “anarquia” e “desordem” militar, quando tudo o que ele mostra aponta o contrário, para um sistema ordenado, orquestrado e assumido internamente. Quando fala de Carlos Marighella, Gaspari torna mais clara sua posição sobre a guerrilha. Para o autor, Marighella era mais que nada um propagandista, que “em declínio” usava de todos os meios para parecer forte, mas que era um incompetente a julgar pela apresentação que ele faz do Manual do guerrilheiro urbano, considerado pelo autor um “documento triunfalista, desordenado. Sua grandiloqüência escondia uma concepção primária de organização”. Sua figura é sintetizada como um “personagem radical, mistura de escoteiro e agente secreto, era um adereço propagandístico”, cheio de 19 20 21 22 23

Idem, p. 43. Idem, p. 49. Idem, p.56. Idem, p. 57. Idem, p. 97.

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“erros e omissões incompreensíveis”. Aqui percebemos uma outra característica ideológica do discurso de Elio Gaspari: ele avalia os atos da esquerda, aponta erros, critica opções, como se fosse ele parte autorizada por esse mesmo projeto para dar opinião. No fundo, é como se tratasse de uma guerra em que todos tinham a mesma intencionalidade: As organizações de esquerda e a máquina repressiva do governo tinham um interesse comum: assegurar a continuidade da ameaça terrorista negando que a morte de Marighella fosse resultado do abalo da estrutura da ALN. Senão, uns ficariam sem 25 evolução e os outros, sem ocupação.

Era como se fosse uma retroalimentação, guerrilheiros e repressores precisam um do outro, o resto não existe, não há sociedade nem interesses políticos. Do ponto de vista da guerrilha seria apenas 26 obra do “mestre da propaganda”, Marighella. O presente texto buscou apresentar, ainda que brevemente, a interpretação de Elio Gaspari sobre a ditadura, seus condicionantes, seus sujeitos e seu projeto. Gaspari foi escolhido como objeto da análise pela importância de sua obra, lida e vista por muitos como uma “nova forma” de fazer história. Buscamos mostrar que a concepção de Gaspari sobre a ditadura reproduz a lógica da própria ditadura. Ele trata de forma desigual suas fontes, reproduzindo como verdade o discurso dos generais e questionando a intencionalidade das falas resistentes. Há muito ainda a ser pesquisado sobre as relações entre os jornalistas, a imprensa e a ditadura brasileira. Mas está muito claro que boa parte dessas relações foram de franco colaboracionismo, seja por afinidade ideológica seja por interesses marcadamente econômicos.

24 25 26

Gaspari, A ditadura escancarada, op. Cit. P. 144. Idem, p. 156 Marighella foi ostensivamente retratado na revista Veja, e sua morte estampada e comemorada pela grande imprensa.

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Entre Civis e Militares: Conceitos e Versões do Golpe e da Ditadura Pós-1964 no Brasil. Yuri Rosa de Carvalho

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Diorge Alceno Konrad

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Resumo: Este artigo tem a finalidade de discutir as diferentes conceituações e caracterizações sobre o Golpe e a Ditadura iniciada em 31 de março de 1964. Para além de uma discussão meramente terminológica, que vise apenas identificar as diferentes representações presentes nos discursos ao longo do tempo, temos o objetivo de entender qual conceito sintetiza melhor a essência do Golpe e da Ditadura, sua expressão de dominação política de classe, sua relação com o o capital estadunidense, sua conexão com outras ditaduras do Cone Sul; em todas suas contradições. Este esforço se dá no sentido de melhor identificar a intensa disputa ideológica do presente pela memória sobre o período, quando diferentes grupos sociais ou buscam legitimar seu status quo ou questionar a falta de respeito aos Direitos Humanos praticado na época. Palavras-chave: Ditadura Brasileira – Golpe Civil-Militar – Classes Social. Abstract: This article aims to discuss the different conceptualizations and characterizations about the Coup and the Dictatorship started in March 31 of 1964. To beyond a purely terminological discussion, that seeks only identifying different representations present on the speeches over time, our objective is to understand which concept best summarizes the essence of the Coup and the Dictatorship, its expression of political class domination, their relationship with the U.S. capital, its connection with other dictatorships of the South Cone, in all its contradictions. This effort takes place in order to better identify the intense ideological struggle that takes place in the present by memory on the period where different social groups or seek to legitimize their status quo or question the lack of respect for human rights practiced at the time. Keywords: Brazilian Dictatorship – Civil-Military Coup – Social Class. Introdução Tem-se acalorado recentemente o debate em torno do caráter da Ditadura que se iniciou no dia 31 de março de 1964 e acabado, como convencionalmente tem-se dito, no ano 1985. Isso se deve graças ao novo fato político criado pela presidente Dilma Roussef ao oficializar em novembro de 2011 a Comissão Nacional da Verdade, a qual, recentemente, teve seus membros indicados, visando investigar violações de direitos humanos no período por parte dos agentes de Estado. Logo, esta Comissão tem sido questionada por diversos setores da sociedade brasileira, muitos próximos daqueles que tiveram algum tipo de participação nos crimes cometidos naquela época, principalmente os militares. De outro lado, faz-se pressão de setores populares comprometidos com a luta pelos Direitos Humanos para que o caráter da Comissão seja o de punição aos agentes relacionados com torturas, assassinatos, sequestros, estupros e etc. Nessa luta pela memória do período, vemos todo tipo de caracterização, tanto do sistema político compreendido naquele tempo, como das próprias relações de poder que se deram a partir do Estado. Por isso, a elaboração conceitual que defina o pós-1964 é uma questão política, e dependendo do lado em que apareciam as forças sociais no espectro político da época, diferentes nuances podem se apresentar hoje. Podem-se perceber várias definições e debates em tornos delas: foi uma Ditadura ou não? Um sistema autoritário? Um “regime brando” que, em pontos específicos, como na repressão política, se excedeu? Uma burocracia tecnocrata que impôs um projeto autoritário, mas modernizante? Que outras possibilidades existem? O papel do historiador no atual contexto é buscar atualizar, se assim for necessário, os conceitos que por ventura estejam socialmente defasados, ou por não responderem mais ao processo histórico a que se refere (em decorrência do surgimento de novas fontes, por exemplo), ou resgatar, se for o caso, interpretações feitas à época que, por alguma razão, não vingaram historiograficamente, mas que, hoje, 1

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Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisa realizada com o auxílio da bolsa CAPES. Contato: yuri.rc@gmail.com (55)9654-6905. Professor Doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente é Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria. Contato: gdkonrad@uol.com.br, (55) 9971-4703

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havendo o distanciamento temporal possam responder o que até agora não se conseguiu resolver de maneira satisfatória. Esta não é meramente uma discussão linguística. Não pretende-se fazer aqui uma síntese das diferentes formas utilizadas nos discursos ao longo do tempo para caracterizar o estado de coisas que se deu no pós-1964. O objetivo é demonstrar como os diferentes conceitos correspondem a diferentes posições político-ideológicas, evidenciando aproximações e distanciamentos, buscando a melhor chave explicatória que defina a essência da formação social brasileira, em suas contradições. Autoritarismo e Eufemismos Ao se tratar do processo político iniciado em 31 de março de 1964, com o Golpe articulado por militares, setores civis conservadores e a pressão/articulação do capital estadunidense, nos deparamos com vários conceitos interpretativos. O que permeia grande parte das discussões é o conceito de “autoritarismo”. Este conceito se mostra ardiloso, pois tem sido base para uma gama de definições que reproduzem ideologicamente posições dos interlocutores que se utilizam desse recurso. José Antônio Giusti Tavares (1982) defende a hipótese de uma estrutura autoritária tipicamente brasileira. Para ele, 1964 é a continuação de um processo iniciado com a crise da República Velha, na qual o Estado, enquanto potência burocrática racional legal, se forma sob o que ele chama de “República Autoritária Populista”, se colocando acima dos conflitos sociais e fazendo o que historicamente a burguesia deveria fazer: impor um “padrão nacional burguês de sociedade”, desenvolvendo o capitalismo. Para o autor, um processo notadamente “bismarckiano”, pois repetiria um modelo criado no processo de unificação alemã na segunda metade do século XIX, no qual o Estado substitui a burguesia no seu papel histórico, desenvolvendo as forças produtivas capitalistas. Esta via “bismarckiana” levaria consigo a gênese do autoritarismo político moderno no Brasil, uma estrutura que se ergueu com a reorganização do Estado no pós-1930, e que novamente se fazia presente com os militares de 1964. Além disso, uma segunda corrente, a via “bonapartista” também se mostraria presente no caso brasileiro. Frente à crise das classes dominantes hegemônicas de se sustentar seu projeto político, criando um “vazio de poder”, crescentemente pressionado por um proletariado cada vez mais revolucionário frente as fissuras desse sistema e a contínua fragmentação das coalizões entre as classes e frações de classe; levam ao poder uma ditadura autoritária tanto no caso dos Bonaparte, na França de Napoleão e seu sobrinho Luís, quanto no Brasil de João Goulart. Consolidado o novo “regime”, assim como na França, houve um forte incentivo industrial e crescimento econômico, segundo Tavares, apesar do claro “recuo” político que as classes dominantes permitiram ao se suicidar politicamente pra garantir de maneira autoritária seus interesses. Ainda, de acordo com o autor, os militares em 1964 viam-se como “pretores” da sociedade, moderando-a de acordo com o que entendiam ser os interesses da Nação, rompendo este padrão, como pensado por Alfred Stepan (1974), por entenderem que, frente ao contexto de “estatismo autoritário” da deposta “República Populista”, deviam rever seu papel político e não intervir de maneira pontual, mas permanente, mesmo que isso contrariasse uma suposta postura liberal do primeiro Ditador a frente do executivo, General Castelo Branco, como afirma Tavares. O poder instituído teria se orientado por um “pragmatismo autoritário”, se legitimando pela eficácia, na “competência tecnocrática” daqueles que seriam a elite política no comando. Apesar de não ter tido muito eco no mundo acadêmico, José Tavares sintetiza amplo pensamento social sobre o período, se detendo a modelos pré-concebidos de orientação sobretudo de referência teórica weberiana e seus tipos ideais e elementos aparentes. Aqui, o papel dos militares se destaca e o autoritarismo aparece quase como suis generis brasileiro. Esteve presente desde a origem, para o autor, com o Movimento de 1930. Assim, há uma suposta tradição histórica autoritária do Estado brasileiro e, inerentemente, da “sociedade brasileira como um todo”. Esta “cultura política autoritária por natureza”, pretensamente histórica, acaba por ignorar as resistências e aspectos singulares da dominação política do período. Por esse viés, “Regime Militar” será o conceito chave amplamente favorecido, pois oculta práticas ditatoriais, pulverizando o golpismo em padrões deste “autoritarismo” naturalizado. Desta forma, Tavares referencia o período do pós-1964 como “Autoritarismo Burocrático-Militar”. “Autoritarismo” passa ser amplamente enfatizado não só na historiografia como de maneira geral pela imprensa brasileira. O entendimento é que o “regime militar” foi autoritário e que o Ato Institucional Nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que fechou o Congresso e retirou direitos jurídicos civis, um golpe de militares mais radicais, um processo comumente chamado de “golpe dentro do golpe”, no qual o uso da tortura, o assassinato de opositores políticos e o aprofundamento da censura passaram a ser mais intensificados e abrangentes. Assim, em 1979, com a Lei da Anistia, já ter-se-ia um processo de redemocratização em andamento e novamente uma relativização do “autoritarismo exacerbado”. 209


Alguns autores de destaque flertam com estas definições. O jornalista Elio Gaspari (2002), reconhece o autoritarismo político dos militares e acompanha a definição mais comum desde o processo de redemocratização: Ditadura Militar. Há uma condenação em sua obra dos “excessos” que estes teriam cometido no poder, mas ao mesmo tempo o protagonismo nos mesmos, inclusive em sua derrocada, arquitetado por Ernesto Geisel, ditador do período de 1974 e 1979, e o general Golbery Couto e Silva, uma das principais figuras políticas dos altos escalões militares. De maneira mais refinada e mais profunda, o historiador Carlos Fico (2001) analisa as entranhas do sistema repressivo e de informação, evidenciando e reforçando o caráter ditatorial do governo da época. Mesmo percebendo a articulação de um golpe com participação de civis, o historiador salienta o papel dos militares e seu projeto particular de desenvolvimento conservador. Para o autor, que defende que o Golpe é Civil-Militar, mas a Ditadura é apenas Militar, este é o conceito chave, amplamente utilizado em sua obra. Este conceito se demonstra apenas parcialmente correto, pois não evidencia o papel de civis na Ditadura, se mostra simples ao se resumir a questão aparente, de que militares detiveram o poder entre 1964 e 1985. Para esta definição, não há dúvidas quanto ao fim da Ditadura: quando José Sarney, mesmo que indiretamente assume o Executivo, no início de 1985, não dever-se-ia mais falar em Ditadura, mas já em Democracia. Assim, pelo menos a concepção de “Ditadura” é utilizada para demonstrar o caráter repressivo e antidemocrático, diferente do editorial da Folha de São Paulo, de 17 3 de fevereiro de 2009, que qualifica o Brasil entre 1964 e 1985 de “Ditabranda” , dando a entender que não houve grande repressão ou violação dos Direitos Humanos no Brasil”. Tangenciando o número de vítimas assassinadas e desaparecidas do período (considerado baixo frente a outras ditaduras), principalmente depois do Ato Institucional Nº 5, chamados por esta corrente como “anos de chumbo”; para o editorial da Folha, nem Ditadura deveria ser usado para definir o pós-1964. Nada estranho pra empresa que fornecia veículos de entrega de jornal para a Operação Bandeirantes – organização paramilitar de repressão que contava com financiamento e apoio empresarial – realizar suas ações ditas “brandas” (KUSHNIR, 2004). De qualquer maneira, a utilização de Regime Militar ou Ditadura Militar, apesar de evidenciarem esta nuance, em absoluto sintetizam ou compreendem todo o complexo fenômeno histórico iniciado em 31 de março de 1964. Tampouco, tornar o autoritarismo político algo inerente ao Brasil auxilia no aprofundamento do conhecimento sobre o tema. Ao se naturalizar o autoritarismo em toda a História nacional, se eufemiza as ditaduras, tanto a de Getúlio Vargas quanto a do pós-1964, afinal, se sempre fomos autoritários por excelência, qual a diferença de um período um pouco mais autoritário? Fica-se com a questão apenas aparente, os militares, e perde-se a essência, o papel que cumpriram e seus aliados civis, uma visão liberal que esconde o caráter de classe do Estado. Aqueles que tentaram compreender a Ditadura como uma articulação mais complexa, profunda e de classe, entre civis e militares, que não inicia em 1964, mas é construída com seguidas tentativas de golpe desde o suicídio de Getúlio Vargas, estimulada e financiada pela política externa estadunidense, no contexto da chamada “Guerra Fria”, sem dúvida nenhuma deram um salto de qualidade na conceituação teórica relativa à Ditadura. Civis e Militares: A Ordem dos Fatores Altera o Resultado? Talvez o primeiro a ter cunhado o termo Ditadura Civil-Militar, e expressar conceitualmente a articulação que existiu entre civis e militares, tanto para o Golpe que depôs o governo eleito de João Goulart, tanto para legitimar e operacionalizar a Ditadura, tenha sido René Dreifuss (1981). Seu trabalho clássico 1964: A conquista do Estado ainda hoje é um dos principais referenciais na pesquisa sobre financiamento empresarial classista da oposição ao governo Jango, e como se articularam interesses político econômicos do governo estadunidense e setores oposicionistas na construção do golpe que o depôs. Principalmente, através da criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais(IPES), criado em 1961, órgão que deveria ser responsável por pesquisa e produção científica oposicionista; e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o qual, apesar do nome, deveria fazer o contrário, construir entre a sociedade um forte sentimento contrário à permanência de Jango no poder. Sabe-se do intenso esforço que a burguesia brasileira e seus aliados capitalistas externos moveram para desestabilizar o governo João Goulart. As “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, contando com amplo apoio das classes médias, sob influência do complexo IPES/IBAD, foram um exemplo deste esforço golpista. Consumado o Golpe, a movimentação intensa de setores conservadores para legitimar 3

A passagem do editorial é a seguinte: “(...) Mas, se as chamadas "ditabrandas" - caso do Brasil entre 1964 e 1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça – (...)”. Cf. Limites a Chavez. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm. Acesso em 17 fev, de 2013.

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e justificar a ação militar como “vontade geral da nação”, travestindo-a de um discurso que os ditadores diriam até o fim: tratava-se de uma “democracia”. Esta articulação entre civis e militares, uma vez colocada às claras, reforça o conceito de Ditadura Civil-Militar. O Golpe e o que se deu depois dele, uma Ditadura, foram arquitetados, executados e levados a adiante por militares e civis. Os militares eram a ponta de lança de um bloco no poder muito maior, contendo frações e classes sociais dominantes, sendo a manutenção de seus interesses a razão da existência deste “regime de exceção capitalista”. Outro autor que mais contemporaneamente vem defendendo o conceito de Ditadura Civil-Militar é o historiador Daniel Aarão Reis Filho (2004). Nele encontramos o esforço pela desmistificação no campo da memória a cerca dos acontecimentos em tempo de Ditadura. Para o historiador, na época da redemocratização, especialmente durante as “Diretas Já”, em 1984, neste amplo movimento nacional que pedia eleições diretas, unificou-se a agenda política de diversos setores, inclusive aqueles que construíram o Golpe e apoiaram a Ditadura, tornando-os todos “democratas”, como se sempre o tivessem sido. A Ditadura Civil-Militar se esgotava e nenhum apoiador ia restando. Logo, a redemocratização parecia como o lugar certo para se ir, e nada mais natural no campo da memória do que mistificações que legitimem viradas de posições. Tanto à direita e à esquerda, apontando o autor para o fato de que, parte da esquerda revolucionária, ao autocriticar sua estratégia de luta armada, se colocar como uma luta “democrática”, no sentido liberal da palavra. O problema presente na obra de Reis Filho é a tentativa de evidenciar em demasia o amplo apoio social aos militares, equalizando a participação de civis no Golpe, legitimando, mesmo sem ter essa intenção, o discurso oficial dos próprios golpistas, os quais justificavam sua “Revolução”, por atender um suposto chamado da sociedade civil. Civis e militares articularam um Golpe e erigiram uma Ditadura que governaram até a década de 1980. Pelo menos politicamente, a questão é: qual foi o papel que coube historicamente a cada um destes grupos? De um lado, os militares, a categoria social secular com projeto próprio de País e, de outro lado, frações de classe e classes dominantes que se debatiam para recuperar a hegemonia político-social perdida e questionada em tempos de Jango. Qual o peso de cada uma nesta Ditadura? Foram iguais? O sociólogo Marcelo Ridenti (2010) acredita que não. No posfácio da segunda edição de seu também clássico O fantasma da Revolução Brasileira, de 2010, o autor levanta o debate sobre o peso dos militares, tanto no Golpe, quanto na Ditadura em si. Para o autor, por mais que esta complexa articulação de civis fosse extremamente importante, e no final das contas, fundamentalmente estivessem protegendo seus interesses, os militares impuseram o seu próprio projeto conservador modernizante ao País eliminando qualquer oposição política ameaçadora, à revelia de seus aliados, os empresários civis. Pelo menos até a década de 1980 os militares nunca vacilaram sobre quem deteria o poder institucional central. Tanto é que, aliados de primeira hora como Carlos Lacerda, político conservador, e Jucelino Kubitschek, ex-presidente do Brasil, mudaram suas posições logo nos primeiros anos, quando perceberam que não se tratava de apenas uma intervenção para destituir Jango e repassar o poder aos civis. Não houve retorno do poder aos civis, até pelo menos 1985, quando, já enfrentando seu derradeiro fim, a Ditadura, no seu processo de abertura política, lenta e gradual, que garantisse a impunidade de seus atos, elegeu José Sarney, político maranhense historicamente ligado aos militares. 4 Para Ridenti, a definição que melhor corresponde ao passado histórico é “Ditadura Militar-Civil” , pois expressa tanto a articulação de civis e militares, mas demonstra o papel preponderante que estes últimos tiveram praticamente toda a Ditadura. Aqui o fim desse processo histórico não pode ser entendido como antes de 1988, quando a nova Constituição é feita, e prepara eleições, daí sim, livres para o ano seguinte. De qualquer maneira, se entendermos que o Golpe e a Ditadura como alianças entre categorias sociais, frações de classe e classes dominantes, que não só em regime de exceção preservaram seus interesses capitalistas, mas se articulando internacionalmente com outras Ditaduras, como as do Cone Sul, em um movimento mais amplo no contexto de Guerra Fria, apoiando e garantindo a falência das democracias eleitorais na região; podemos então ficar satisfeitos também com estes conceitos de Ditadura Civil-Militar ou Militar-Civil? Não seria interessante buscar um conceito que entenda esse amplo processo social mais profundamente, sem perder de vista a relação com a geopolítica da América Latina? Podemos pensar 4

Yuri de Carvalho (2010) também utilizou esta conceituação na monografia de conclusão de graduação, por entender na época ser o conceito que melhor respondia, ou pelo menos problematizava o conceito de Ditadura Civil-Militar hegemonicamente usado pela historiografia, mas pensado há 30 anos. De maneira provocativa, o autor pensava em utilizar o espaço pra fomentar o debate necessário sobre a definição da Ditadura do pós1964.

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algo assim para o Brasil ou temos especificidades tamanhas que não podemos em absoluto ser comparados com qualquer outro país da região? Seria possível novamente um salto de qualidade em termos de conceituação? Ditaduras de Segurança Nacional e Fascismo Entende-se que, no esforço de compreender o processo histórico brasileiro, os estudiosos tem se esmerado mais em fazer sobressair às diferenças históricas com outros países e menos as semelhanças com as ditaduras vizinhas, como Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. Essa negação a priori de semelhanças, na tentativa de colocar o Brasil como um país acima dos demais, e cuja compreensão só se dá nele mesmo, acaba por atrapalhar um possível salto na compreensão de um fenômeno permeado de conexões, que ajudou a moldar tanto a nossa, quanto as Ditaduras vizinhas. Buscando-se uma compreensão mais ampla do processo, como um fenômeno latino-americano, o historiador Enrique Padrós organizou, em 2006, uma coleção que levava o sugestivo nome As Ditaduras de Segurança Nacional: o Brasil e o Cone Sul. A definição de Ditadura de Segurança Nacional busca justamente demonstrar a semelhança e conexão entre as Ditaduras do Cone Sul e, ao mesmo tempo, expressar parte da ideologia desses “regimes de exceção”, a política da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), oriunda da Escola das Américas estadunidense e da experiência francesa na Guerra de Independência da Argélia, elegendo o inimigo interno a ser combatido e eliminado. Nos anos 1960, os governos estadunidenses passaram a fomentar as oposições políticas que se alinhavam ideologicamente, apoiada pelas classes proprietárias dependente de sua economia, incitando a derrubada de governos independentes pelo subcontinente sul-americano. Com isto, ditaduras começavam a brotar pelo Cone Sul. Em todos os casos, em maior ou menor grau, se instalaram ditaduras civil-militares baseadas na DSN, tendo como principais características um anticomunismo militante, a identificação do inimigo interno, a execução da guerra interna (contrainsurreição), a imposição do papel político das Forças Armadas e a definição de fronteiras ideológicas. Além disso, essas ditaduras colocaram em prática programas econômicos desnacionalizadores e privatistas, os quais iniciaram a abertura ao capital 5 internacional e geraram o abismo social a partir da concentração de riqueza. A primeira tese a defender o uso do termo é a de Caroline Bauer, apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul e à Universitat de Barcelona, em 2011. Intitulada Um estudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civil militares argentina e brasileira e a elaboração de políticas de memória em ambos os países, Bauer vai chamar as ditaduras brasileira e argentina de “Ditaduras Civil-Militares de Segurança Nacional”, demonstrando como as duas têm práticas culturais repressivas em comum. No livro, resultado desta tese de doutorado, Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória, de 2012, a historiadora parte de aspectos subjetivos, como medo e terror, para entender como se desenvolveu o que chama de “cultura do medo”, base do Terrorismo de Estado, disseminado pelas Ditaduras latino-americanas: As estratégias usadas para disseminar o medo como forma de dominação política das populações basearam-se em métodos refinados de terror físico, ideológico e psicológico, assimilados de outras experiências e do desenvolvimento de doutrinas regionais próprias. As práticas que compõe essas estratégias variaram em intensidade e extensão, de acordo com os casos. Porém, todas possuem um núcleo comum, caracterizado pela produção de informações a partir da “lógica de suspeição”; pelo sequestro como forma de detenção; pela censura e desinformação; pela realização do interrogatório e a tradição inquisitorial das práticas policias; pela presença de torturas físicas e psicológicas; pela censura e desinformação; e, principalmente, pela prática do desaparecimento forçado de pessoas, característica específica da repressão desses regimes. Acredita-se que, nesse período, desapareceram aproximadamente 90 mil pessoas, entre argentinos, chilenos, uruguaios e brasileiros. A consequência foi a formação de uma “cultura do medo” como condição necessária e o resultado estratégico 6 esperado.

Apesar da formalização DSN se dar a partir dos exércitos estadunidense e francês, antes já 5

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PADRÓS, Enrique Serra. Conexão repressiva internacional: o Rio Grande do Sul e o Brasil na rota do Condor. In. PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA,Vânia M.; LOPEZ,Vanessa Albertinence; FERNANDES, Ananda Simões (orgs). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. – 2. ed., rev. e ampl. – Porto Alegre : CORAG, 2010. – v. 3, p. 56. BAUER, Caroline. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre: Medianiz, 2012, p. 29.

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haviam opositores enquadrados em leis de “Segurança Nacional”. A ocupação nazista na TchecoEslováquia, depois de um atentado contra um quadro do Partido Nacional Socialista, “mobilizou 450 mil policiais, que detiveram e revistaram 4.750 milhões de pessoas, das quais 13.119 acabaram indicadas em processo por crime contra a segurança nacional” (KONDER, 2009). No próprio Brasil, a partir da Lei se Segurança Nacional de abril de 1935 e, sobretudo, depois da Insurreição Nacional-Libertadora, em novembro do mesmo ano, a maioria dos integrantes da Aliança Nacional Libertadora (ANL) foram enquadrados em “crimes de Segurança Nacional” (KONRAD, 1994). Na historiografia, o fascismo é reduzido hegemonicamente a um simbolismo sociológico (MANN, 2008), tornando-se fascistas apenas grupos que se adequarem a um modelo pré-concebido e fechado nos moldes do Partido Nazista ou do exemplo clássico da Itália. Assim, nada fora do eixo Roma–Berlin da década de 1930 pode ser considerado fascista ou com influência nítida deste. O filósofo grego Nico Poulantzas já alertava, em 1971, que o fascismo não era um fato histórico estanque, mas um fenômeno intrínseco às crises capitalistas, portanto, fadado a ressurgir sempre que o capitalismo estivesse em perigo. Segundo Poulantzas: Quanto à atualidade da questão do fascismo, digamos simplesmente que os fascismos – como, aliás, os outros regimes de exceção – não são fenômenos limitados ao tempo. Podem muito bem ressurgir atualmente, mesmo nos países de área europeia, na medida em que se assiste a uma crise grave do imperialismo, crise que atinge o seu próprio centro. O ressurgimento, pois, do fascismo continua possível, sobretudo hoje – mesmo que, provavelmente não se revista agora exatamente das mesmas formas 7 históricas de que revestiu no passado.

O fascismo não seria resumido a aspectos aparentes, mas a uma essência tanto econômica quanto política e cultural. Como aponta Poulantzas, “no processo de fascização e do fascismo, nenhuma classe ou fração de classe dominante parece ser capaz de impor”, seja “pelos seus próprios meios de organização política, seja pelo intermédio do Estado ‘democrático-parlamentar’”, a sua direção às outras classes e frações do bloco no poder (POULANTZAS, 1978, p. 77). Desta maneira, quando em uma crise política leva à desestabilização do bloco no poder, há um rearranjo de categorias sociais, frações de classe, e classes sociais para garantir a continuidade do capitalismo e sua hegemonia. Ceder espaço político para um destes atuar em regime de exceção para garantir os interesses destes grupos, constitui economicamente e politicamente o fascismo. João Goulart e o projeto de seu governo pelas Reformas de Base são justamente a crise política que ameaçou socialmente o bloco dominante no poder. O rearranjo das frações de classe e classes dominantes articuladas com a categoria social dos militares levou ao Golpe de 1964 no Brasil. Estes governaram para garantir a hegemonia das classes dominantes e garantir a perpetuação do capitalismo. Em julho de 1965, Theotônio Júnior publicou, na Revista Civilização Brasileira, um artigo chamado Ideologia fascista no Brasil, no qual tentava analisar se no Brasil havia condições históricas para o desenvolvimento do fascismo. Para ele, o País ainda não era “maduro” o suficiente no estágio que o capitalismo se encontrava para desenvolver relações tipicamente fascistas. No entanto, percebia que havia um “germe” fascista presente, mas que encontraria limitações. Não imaginava o autor os desdobramentos que a Ditadura teria; que o AI-5 permitiria toda a repressão possível, e ao mesmo tempo, a injeção de empréstimos estrangeiros e crédito facilitado criariam a bolha do chamado “milagre econômico”, ajudando na tentativa de legitimação e respaldando discursivamente o que era dito oficialmente. No fim, profeticamente, Júnior faz um apelo para união de forças para barrar o crescimento do fascismo no Brasil, não “cometendo erros passados”, para não enfraquecer o movimento popular, e pedindo uma posição ofensiva nesse enfrentamento. Mas se Poulantzas e Júnior possam ser tomados como corretos então não houve realmente uma espécie de processo bismarckiano/bonapartista, como colocara Tavares? Houve apenas uma rearticulação de frações e classes dominantes em um regime de exceção? A diferença aqui é a reprodução de práticas culturais repressivas, se não inauguradas, pelo menos transformada em política de Estado com o nazifascismo durante os anos de 1930. A desumanização do outro, do “inimigo interno”, não serve só como dispositivo de legitimação discursiva, mas naturaliza a eliminação da oposição política com respaldo de parte da população. Quando o Estado, e aqui se entende aquelas classes sociais que o controlam, tem a prerrogativa da morte, e a polícia se torna política, a vida se torna descartável, e o descarte tem uso político (AGANBEN, 2002). Como a recente descoberta da cremação de corpos de pelo menos dez guerrilheiros na década de 1970, incinerados em uma usina de açúcar de um ex-governador do Rio de Janeiro, por um grupo de 7

POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo: Martins Fontes, 1978, p. 10.

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extermínio do Exército, liderados por Cláudio Guerra (GUERRA; NETTO; MEDEIROS, 2012). Fora o uso da nomenclatura “terrorista” como conceituação deste inimigo interno, já sem identidade, desumanizado, que sobre o qual todo tipo de força deveria ser utilizada para ser erradicado. Há aqui um duplo sentido nas práticas repressivas inauguradas no nazifascismo e reproduzidas nas Ditaduras da América Latina. O primeiro é relativo à função central na implantação do terror como forma de dominação política, como exemplifica Bauer: Por “estratégia de implantação do terror” entende-se o conjunto das práticas de sequestro, tortura, morte e desaparecimento, assim como a censura e a desinformação e suas consequências, principalmente a formação da “cultura do medo”. Essa estratégia pode ser entendida como “projetos”, em seu sentido consciente e racional, pois o terror, como forma de dominação política, foi uma “opção” dos civis e militares responsáveis 8 pelas ditaduras e não uma “fatalidade” ou “imposição” conjunturais.

Em segundo lugar, estas estratégias de implantação do terror, principalmente através da política dos desaparecimentos, tem como objetivo, além de consolidar essa “cultura do medo”, garantir uma memória oficial, hegemônica e sem oposição. Como explicita Gagnebin: Os arquivos dos campos de concentração foram queimados nos últimos dias da guerra, "os nazistas explodiram as câmaras de gás e os fornos crematórios de Auschwitz". Depois da derrota de Estalingrado, isto é,quando se torna claro que o Reich alemão não seria o vencedor e que, portanto, ele não poderia "ser também o mestre da verdade" futura, os prisioneiros dos campos foram obrigados a desenterrar os milhares de cadáveres de seus camaradas (agora já em decomposição) que haviam sido executados e jogados em valas comuns, para queimá-los em gigantescas fogueiras: não 9 poderia restar nenhum rastro desses mortos, nem seus nomes, nem seus ossos.

Assim, reforça-se a compreensão de que não só a Ditadura Civil-Militar de Segurança Nacional no Brasil, mas também as outras ditaduras de segurança-nacional no resto da América Latina foram fundamentalmente ditaduras de classe. O objetivo último destas ditaduras foram fundamentalmente garantir a reprodução do Capital, a exploração dos trabalhadores, a manutenção da propriedade privada e das classes governantes, incapazes de se garantir no controle do Estado sem exacerbar a ditadura capitalista. Daí a proximidade destas experiências históricas, não só em aspectos culturais e ideológicos, com os fascismos mundo a fora. As classes trabalhadoras não foram, obviamente, as únicas atingidas pela implantação do Estado de Terror imposto no Brasil a partir de 1964; outras categorias e camadas sociais também o foram, principalmente quando se colocaram frontalmente contra a dominação política dos setores golpistas, como parte de estudantes e militares legalistas, por exemplo. Contudo, não resta dúvida que a deflagração do movimento grevista do grande ABCD paulista no final dos anos 1970, entre metalúrgicos do setor da indústria automobilística, do qual a figura de Luis Inácio Lula da Silva ganhou projeção nacional, significou uma clara demarcação de ruptura no processo de distensão política que vinha sem sobressaltos até então, demonstrando que foi a classe operária que mais sofreu com o peso da Ditadura Civil-Militar de Segurança Nacional, ao contrário das classes médias, cujo apoio aos grupos golpistas flutuou durante todo o período. Assim, o uso do conceito de Ditadura Civil-Militar de Segurança Nacional é o que mais consegue expressar a essência do processo histórico brasileiro a partir de 1964, até pelo menos 1988, evidenciando as conexões existentes entre as outras ditaduras latino-americanas, além da sua influência ideológica doutrinária da DSN, ligando-as ao quadro maior do imperialismo capitalista estadunidense da época, tanto em relação às condições objetivas, quanto às subjetivas. Aqui, é possível perceber, também, como a crise de hegemonia no bloco no poder, a reorganização das classes dominantes alicerçando-se na categoria social dos militares para garantir a reprodução do capital e seus interesses, assim como as práticas repressivas que erigiram o Estado de Terror, a partir da cultura do medo, são características fundamentalmente fascistas. Como bem demonstra Rosa Cavalari (1999), “a participação [...] de ex-dirigentes integralistas em posições de destaque na conspiração e no golpe militar de 64, na liderança do Congresso e no primeiro escalão do poder executivo durante a ditadura”, levou Plínio Salgado, chefe do grupo brasileiro mais nitidamente fascista dos anos 1930, a declarar que “os Integralistas estavam no poder”.

Fontes 8 9

BAUER, Caroline, op. cit., p. 31. GAGNEBIN, J. Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: ed. 34, 2006, p.46.

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Segurança Nacional: Uma Discussão Conceitual Aline Aparecida Faé Inocenti

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Resumo: este artigo tem a intenção de discutir a conceitualização da segurança nacional dentro do sistema de implantação do regime cívico-militar no brasil. Esse conceito vai ao encontro da articulação política executada pelos militares que tiveram sua formação aos moldes americanos, introduzindo no país a Doutrina de Segurança Nacional fundamentada nas ideias estadunidenses de “defesa do território” e o “inimigo interno e externo do sistema”. Palavras-chave: Conceito – Segurança Nacional – Regime cívico-militar. Abstract: this article has the intention to discuss the conceptualization of national security within the system of deployment of civic – military regime in brazil. This concept goes to meet of the policy articulation implemented by the military that had their education to the American mold, introducing the country´s National Security Doctrine based on American ideas of “homeland defense” and the “enemy within and outside the system”. Key-Words: Concept – National Security – civic – military regime.

Introdução: Inserção dos Conceitos na Sociedade “De acordo com uma conhecida frase de Epiteto, não são os fatos que abalam os homens, mas 2 sim o que se escreve sobre eles”. A frase citada acima faz parte de uma antiga tradição que se ocupa da relação entre as palavras e as coisas, entre linguagem e o mundo, focalizando a discussão no mundo conceitual e social. Reinhart Koselleck, ao citar essa frase em uma das suas obras – Futuro Passado – faz nos lembrar do poder que as palavras possuem na relação de transmissão sobre fatos e ideias. Neste sentido, pode-se considerar que o uso de tais palavras ou expressões na sociedade podem servir tanto para se comunicar, quanto para ressaltar seu poderio frente a grupos sociais. Com o passar do tempo estas palavras adquirem um caráter de conceito, de ideia formada, ou de uma tradição se transformando em um costume que passa a ser seguido. Esses conceitos adquiridos por uma determinada ordem social devem ser parcialmente aceitos por um grupo de indivíduos, para assim formar e formatar os sistemas políticos e ideológicos. Como exemplo disso, pode-se utilizar a efetivação do golpe cívico-militar no Brasil, que foi incorporado pelo grupo dos militares e de alguns civis do país, possibilitando o estabelecimento do regime. Este golpe se utilizou de conceitos que advinham de outras sociedades, onde desempenhavam poder dominante sobre a população. Voltados para o conceito de Segurança e de Defesa contra o que acreditavam serem inimigos, o grupo organizou-se e inseriu essas ideias na estrutura social e política do Brasil. Durante toda a trajetória da humanidade, pode-se visualizar a utilização de conceitos para determinar e compreender certas relações e conflitos. Os acontecimentos de relevância social sempre se utilizam de palavras de significação para caracterizar o fato ocorrido. Pode-se aqui citar a questão do conceito de “guerra fria”, que muito mais do que diz as palavras carrega significados abundantes, o principal deles é o confronto ideológico entre capitalismo e socialismo. Assim, considera-se que “[...] os conceitos não servem mais para apreender os fatos de tal ou tal 3 maneira, eles apontam para o futuro” . Nesta dinâmica, pode-se entender que os conceitos surgidos em uma determinada época, carregada de algumas simbologias, não servem apenas para retratar a realidade presente, mas sim para modificar os fatores que estavam envolvidos no acontecimento ou o fato passado. Assim, cabe ao historiador compreender os conflitos sociais, políticos e ideológicos do passado por meio das delimitações conceituais para se ter uma conclusão, ou uma interpretação do presente, dando ênfase para as mudanças sociais e culturais durante o passar dos anos. Portanto, a história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método especializado da 1 2 3

Programa de Pós-graduação em História – Mestrado em História. fone: (49) 35530278 / (49) 99713185 KOSELLECK, 2006, P.97. KOSELLECK, 2006, P. 102.

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crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de vista social e político e que analisa com particular empenho expressões fundamentais de 4 conteúdo social ou político.

Existem conceitos que permanecem por entre os tempos, entretanto, outros sofrem modificações estruturais em longo prazo dependendo da realidade de cada época e do olhar humano sobre tal termo, levando em consideração toda a camada de sentido estruturado em cada interpretação. Assim o campo da história dos conceitos necessita atentar para todos os conteúdos semânticos de cada palavra conceitual, entendidos em diferentes épocas históricas. Os processos de mudança e permanência de tais conceitualizações, portanto, podem ser analisados após uma longa série de significados e do uso desses termos na sociedade. Pode-se considerar então, que cada conceito depende da época e da sociedade vivenciada, refletindo a partir do significado dado a ele pelos indivíduos. Cada conceito é preso a uma ou mais palavras, mas nem toda palavra pode ser considerada conceito social, político ou ideológico. Eles dependem de uma exigência de generalização na sociedade. Para que uma determinada palavra se torne conceito, é necessária a homogeneização da mesma nos preceitos sociais, dependendo sempre dos elementos associados a ela. 5 Para Koselleck “[...] uma palavra se torna um conceito se a totalidade das circunstâncias político-sociais e empíricas, nas quais e para as quais essa palavra é usada, se agrega a ela”. Assim, os conceitos são vocábulos que concentram diversos e abundantes significados. Pode assim, reunir a diversidade da experiência histórica ou ser analisado através de uma única circunstância. Uma história dos conceitos deve sempre considerar os acontecimentos e as situações políticas e sociais que já tenham sido compreendidos e também os resultados obtidos por uma pesquisa destes determinados eventos na sociedade, para poder compreender seus elementos constitutivos. Através do trabalho da história dos conceitos, a problematização e as premissas históricas podem ser avaliadas a curto, médio e longo tempo. Ela consegue confrontar mudanças e permanências desses conceitos por entre os anos e fatos sociais decorridos deles. Dentro deste parâmetro, este artigo busca discutir o conceito de Segurança Nacional, e sua recepção e aplicação no Brasil durante os anos da ditadura cívico-militar (1964 a 1985), apontando suas origens e sua manutenção durante os anos, e os fatos surgidos com tal acontecimento que modificaram os moldes políticos e sociais do país. “Traçar a história dos conceitos significa identificar as continuidades e transformações que, dentro da perspectiva de uma imersão definitiva do mundo moderno, constituem os eixos de longa 6 duração da experiência política do Ocidente” . Neste sentido, a análise proposta neste trabalho se baseia no conceito de Segurança Nacional e sua articulação na sociedade durante os anos da ditadura cívico-militar no país, delimitado entre 1964 e 1985. A Doutrina de Segurança Nacional advinda das características propostas pelos Estados Unidos proporciona transformações na esfera política, econômica e social do Brasil. Assim, primeiramente será delimitada a origem deste conceito e sua estruturação e meio a este contexto histórico, seguindo com a análise da Doutrina de Segurança Nacional e sua caracterização. Origens do Conceito de Segurança Nacional. Entre os anos de 1964 e 1985, o Brasil viveu a ditadura cívico-militar, anos estes que se caracterizaram pela inserção da política de segurança nacional e a busca pela erradicação do chamado “inimigo interno”. Neste período o grupo militar, dividido internamente entre os radicais de direita e os militares moderados controlaram as decisões do país e governaram á partir das ideias da Segurança Nacional, de maneira a defender os “interesses do país”, mantendo a ordem e a paz. Este fato originário do regime da ditadura cívico-militar, apesar de suas várias interpretações, teve origem na tentativa de erradicar governos de cunho esquerdista no país, por meio das ideias advindas da ideologia da Segurança Nacional. “A Segurança Nacional é a capacidade que o Estado dá à Nação para impor seus objetivos a 7 todas as forças oponentes” . É através da aplicação dessa Segurança, que o Estado defende os ideais que acredita ser o melhor para a nação, utilizando qualquer forma, sendo esta violenta ou não. Para isso os militares fizeram uso de um aparato legal que sustentava todas as decisões e ações, denominado aqui no Brasil de Atos Institucionais. A origem do conceito de Segurança Nacional advém dos Estados Unidos com a sua política de defesa contra o comunismo, considerado para eles o “inimigo”. Após o término da Segunda Guerra 4 5 6 7

KOSSELECK, 2006, P. 103 KOSSELECK, 2006, P. 109. (CHIGNOLA, apud FERES JUNIOR, 2007, p.112). COMBLIN, 1978, P. 54

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Mundial, os estadunidenses reformularam sua política ideológica a fim de reestruturar as bases de seu novo plano político voltado para a defesa da ideologia de Segurança Nacional e para a proteção de seus interesses. Os Estados Unidos dentro desse contexto buscava cumprir sua meta, que era delimitada como a vitória frente a nova guerra que se aproximara (Guerra Fria). Para isto os objetivos que necessitavam, eram de deter o poder absoluto frente às nações aliadas, para conseguir assim se defender do que estava por vir. “[...] desse modo parece-lhes normal que a segurança – um bem absoluto e ilimitado – 8 seja a meta da guerra, a meta da guerra fria e a meta de sua política externa” . Dentro do contexto da Guerra Fria, a política norte-americana pautada no objetivo de Segurança Nacional, passou a ser marcada pelo acentuado anticomunismo iniciando assim, uma forte influência frente às nações que estavam ameaçadas pelo chamado “inimigo”. Seu objetivo era assegurar os mercados tradicionais e os novos que estavam abrindo devido o processo de descolonização de antigos impérios. Assim, os Estados Unidos organizaram dois planos visando fortalecer o regime capitalista liderado por eles. Primeiro o Plano Marshall, “elaborado para reconstruiu a economia europeia, visando barrar o avanço do comunismo [...]”. Segundo, a Doutrina Trumann “e a sua política de contenção, através da qual os Estados Unidos se comprometiam a enviar forças militares a qualquer país do mundo 9 ameaçado pela União Soviética [...]”. Esses dois projetos criados pelos Estados Unidos acabaram por “influenciar” em toda a sociedade, modificando as metas políticas de defesa dos interesses nacionais, tanto nos países influenciados pelo capitalismo que deveriam seguir os ideais norte-americanos, quanto para os países socialistas que necessitavam elaborar assim, um projeto econômico e político a fim de se desenvolver em meio a essa conjuntura. Toda essa concepção intelectual, frente à disputa entre capitalismo e socialismo, está fundamentada no conceito de “interesse nacional”. Esse conceito vai muito além do que se pode pensar em ser do interesse social, pois dentro de cada nação há divergências de ideias na questão do que considerar interesse, e o sobre o que deve se defender. Consequentemente, a meta de toda política nacional é a defesa do interesse nacional. O conceito de interesse nacional é muito pouco claro em si mesmo. Assim que se tenta definir lhe o conteúdo, torna-se vago e inapreensível. No entanto é muito enfatizado: 10 nele se vê, acima de tudo, a recusa de qualquer finalidade ideal abstrata . (COMBLIN, 1978,P. 109).

No Brasil, este conceito sempre esteve presente na sociedade, com o intuito de proteger o território nacional contra os inimigos internos, ou contra a ameaça externa. Entretanto, mais recente e objeto desse estudo, é dado ênfase ao período cívico-militar, onde as forças governamentais utilizavam dessa conceitualização para explicar toda e qualquer ação desempenhada por eles. “a segurança nacional é eminentemente política e, portanto, ideológica; é uma das modalidades de que se reveste a política geral de um país. Seu conteúdo não é estático, mas historicamente variável. Um mesmo país terá políticos de segurança nacional diferentes, conforme as etapas de seu desenvolvimento.

A partir desse período, com esses ideais muito fortemente ligados à política interna e externa do país, a Segurança Nacional passa a ser uma regra para a Nação poder se desenvolver e se proteger. E que para todos os objetivos entendidos para o desenvolvimento do país sejam alcançados é necessário a implementação dessa Doutrina nos âmbitos sociais e políticos. Com o fundamento de bem-estar social ligado ao conceito, a sociedade inicia a implementação das características da Segurança Nacional como sendo a única maneira na época (Golpe Militar – 1964) de poder assegurar sua economia e sua política nacional, sem correr riscos de ser atacados ou ser influenciados pelo “maléfico” comunismo. Constituindo assim o aparato legal que regia a sociedade - Lei de Segurança Nacional e Atos Institucionais – a partir da influência exercida pelos Estados Unidos sobre os militares que se preparavam nos colégios ou escolas de guerra. A preparação direta para o novo regime militar brasileiro foi a Escola Superior de Guerra, fundada em 1949. Porém os homens que fundaram a Escola Superior de Guerra para imitar o National War College de Washington e introduzir suas doutrinas no

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COMBLIN, 1978, P. 108. FERNANDES, Antíteses, 2009, p.832. REZNIK, 2004,P. 36 apud Ramos, 1957.

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Brasil não partiram do nada .

O National War College, fundado em 1946 pelos Estados Unidos, teve como objetivo a criação de um centro coordenado para estudar e aprimorar a política externa dentro do contexto da Guerra Fria, visando a segurança do território e da nação. Ele também foi responsável pela criação da Doutrina de Segurança Nacional, que mais tarde foi difundida pelos países da América Latina. Após a Revolução Cubana, com a disseminação da ideia do avanço comunista, foram realizados programas militares que ensinavam sobre a proteção contra esse novo modelo político-econômico, considerando por alguns grupos “um modelo maléfico” para a sociedade. Os primeiros treinamentos foram realizados na zona de ocupação do canal do Panamá e estendidos para os militares de toda a América Latina, orientando sobre a estratégica de contensão da expansão desse regime, iniciando a defesa pela segurança interna. Dessa forma, a enorme rede de comunicação criada pelos Estados Unidos com os países da América Latina a partir de centros de instrução e de missões militares, acabou por reforçar ainda mais a ideologia do conceito de Segurança Nacional e sua aplicação pelos militares, que no momento eram as pessoas treinadas e indicadas para tal situação. Assim, mais uma vez fortificava a ideia que somente um governo militar conseguiria organizar e recuperar o desenvolvimento de um país que passava por uma 12 crise econômica ou devido a existência de um governo com abertura para os ideais comunistas . Assim, sob a influência dessa instituição, os países latinos americanos fundaram suas próprias escolas de guerra, tendo a mesma finalidade: a segurança e proteção de sua nação. No Brasil foi fundada a Escola Superior de Guerra, a qual determinou a aproximação de setores civis e militares, uma campanha que já vinha se estruturando na sociedade brasileira a muito tempo. Esta Escola, mais tarde vai recepcionar a Doutrina de Segurança Nacional teorizando o conteúdo ideológico para a aplicação manutenção do golpe militar em 1964. A Escola Superior de Guerra teve suas origens remotas em 1922, época de despertar nacional em vários setores e anos também do modernismo nacional. Neste mesmo período um pequeno grupo de tenentes se organizou e ocupou por algumas horas o Forte de Copacabana querendo o poder, esse episódio é conhecido pelo movimento do Tenentismo. Essa tentativa fracassou no momento, mais serviu de ponto inicial para a organização dos militares enquanto grupo para protagonizar a política do país. Desse modo, dentro de uma linha evolutiva o exército passou a ter participação ativa na política do Estado, aonde em 1964 chega ao poder, a partir de uma estruturação ideológica, baseada na metodologia desenvolvida pelas suas instituições de guerra e proteção. Além de toda a influência norte americana, os objetos de análise desse grupo se fundamentaram no pensamento positivista: progresso, ciência e indústria; no novo nacionalismo, onde se destaca a busca por um Brasil grande e poderoso; nas ideias políticas pautadas no novo liberalismo econômico, argumentando que o país ainda não estava suficientemente maduro ou organizado para a democracia, sendo necessário um autoritarismo político centrado na importância da geopolítica, que passa a ser o elemento necessário para o país cumprir seu destino em ser potência mundial. A Escola Superior de Guerra é uma instituição de “próprio gênero”, sendo independente do 13 Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Ela destina-se a formar uma classe dirigente de civis e militares . Desde o início está, formulou conceitos fundamentais esquematizando a Doutrina de objetivos nacionais, segurança nacional, poder nacional e estratégia nacional. 14 Até 1964, os teóricos da ESG , são pouco explícitos quanto aos seus objetivos em relação ao regime político do país, não colocando em ação a Doutrina de Segurança Nacional no estado, defendido por eles. Com o golpe cívico-militar a oportunidade de se colocar em prática todos os seu ideais se torna possível. Desse modo, a Doutrina de Segurança Nacional, através dos militares apoiados pela elite civil, foi adotada pela política brasileira com pouca reação adversa, pois o movimento reacionista não possuía no momento força para se contrapor, se comparado ao aparato que possuíam os militares.

A Doutrina de Segurança Nacional no Brasil. O golpe cívico-militar e a manutenção desse regime sofreu influência direta da Doutrina de 11

COMBLIN, 1978.P. 151).

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No caso o governo citado aqui, seria o governo de Jânio Quadros e depois de João Goulart, que por disseminar ideias de reforma agrária e reformulações sociais, acabaram por ser considerados governos pré-comunistas por alguns grupos políticos brasileiros. COMBLIN, Pe J. A Ideologia da Segurança Nacional. O poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, P. 153. ESG: Escola Superior de Guerra.

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Segurança Nacional, como já citado anteriormente. Ela forneceu inerentemente a estrutura necessária para a instalação e a manutenção de um estado forte com uma determinada ordem social. “Objetivamente, a Doutrina de Segurança Nacional é a manifestação de uma ideologia que repousa sobre uma concepção de guerra permanente e total entre o comunismo e os países 15 ocidentais” . Essa Doutrina pode ser assim considerada como o esqueleto teórico que fundamentou os regimes cívico-militares com justificativas na emergência das Forças Armadas assumirem o conturbado cenário político dos anos 60. Ela foi disseminada através de academias e escolas de guerra, formando quadros de profissionais especializados na área com os preceitos de bipolaridade, delimitação de zonas de influências, caracterização do inimigo e consequentemente sua derrota frente aos combates e a introdução de proteção do Estado e da nação (organismos passíveis de contaminação) contra o comunismo. Dessa maneira, os teóricos do período aproximaram as ideias de necessidade de segurança 16 com a doutrina de contrarrevolução . Ou seja, além de reforçar os aportes teóricos de proteção e da disseminação do ideário de Segurança era necessário também buscar introduzir políticas que confrontassem os “inimigos” e os mostrasse incapazes perante o poderio capitalista ou anticomunista. Os fundamentos dessa Doutrina de Segurança Nacional se modificam perante o cenário mundial, configurando-se na noção de segurança coletiva, de uma segurança hemisférica, ampliando a 17 noção desde a Doutrina Monroe . Essa segurança considerada neste momento coletiva, se configurou frente a ameaça comunista que “obrigou” os Estados Unidos a lançaram um programa de assistência militar em vários países americanos, inclusive no Brasil. O clima de Guerra Fria faz entender o conceito de guerra em todos os seus parâmetros, primeiro fazendo apelo a todas as formas de participação, eliminado de seu caráter a neutralidade ou a ambiguidade. Segundo a ideia de guerra total, é possível identificar o conflito dentro e fora das fronteiras nacionais, podendo este ser gerado tanto no exterior quanto no interior, criando aqui o conceito de “inimigo interno e inimigo externo”. A formulação dessa Doutrina de Segurança Nacional passa por diversas etapas, desde a sua fundação até a colocação em prática de seus objetos políticos no meio social. Apesar das mudanças, o elemento fundamental – considerado o conflito ideológico – se mantém, possibilitando assim uma guerra total entre Ocidente e Oriente. Além do conflito ideológico, outro elemento de importância a se considerar é a geopolítica na conjuntura internacional. Segundo alguns pensadores brasileiros, que estudaram a origem da palavra (geo = terra, política=arte de governar) o objetivo dessa pode estar em tentar dar teoria a uma marca política e não apenas ou somente geográfica. A geopolítica, dentro dessa caracterização se apresenta como uma teoria do e para o Estado, mas para um Estado de características militares, com uma teoria de Estado absoluto, de poderio. De um Estado que se caracteriza pela vontade de um líder ditador ou de um grupo coletivo ditatorial, como é o caso das Forças Armadas, modelando-se a partir da vontade de poucos e articulando estas à vida social de uma sociedade inteira. Essa geopolítica se fundamenta no conceito de ditadura soberana, elaborada por um jurista alemão chamado Karl Schmidt. A base desse conceito se articula do ideário de que o direito, ou conjunto de regras que rege a sociedade não se baseia somente em normas gerais e sim no regimento de 18 múltiplas situações, podendo estas serem individuais ou coletivas . Assim, o governo passaria a ser absoluto e encarregado de tomar todas as decisões, sendo estas em momentos de crise ou não. Podendo ainda suspender ou criar constituições legais, a fim de seguir seus preceitos. “A ditadura soberana se caracteriza não somente pela usurpação do poder (golpe militar), mas também pela concentração em suas mãos de todos os poderes e funções do Estado (a manutenção do 19 regime)” . Desse modo, foi a partir dessa concepção de geopolítica, ligado a Segurança Nacional e ao conceito de ditadura soberana que o grupo cívico-militar toma a liderança do governo em 1964, se 15 16

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BORGES, 2003, p. 24 PADRÓS, Henrique Serra. Como el Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional - Uruguai (19681985): do Pachecato a Ditadura Cívico-Militar. 2005. 876 f. Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005, p. 184 A Doutrina Monroe foi proferida pelo presidente James Monroe no dia 02 de dezembro de 1823, no Congresso norte-americano. BORGES, Nilson. A Doutrina da Segurança Nacional e os governos militares. In: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves, FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P.26, BORGES, 2003, p. 27

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utilizando do poder de governar e concentrando de forma considerada legal pelos “olhos da lei”, ou seja, com todo o aparato de Atos, Leis, Constituições conseguem se manter no poder por mais de 15 anos, sem surgir nesse meio tempo um grupo forte capaz de derrubar o governo e instaurar um modelo político democrático. Além de todas as características já citadas, a geopolítica dentro dos países latino-americanos no período trabalha com as chamadas “fronteiras ideológicas”. Estas não delimitam um território nacional do outro separando os Estados-Nação, e sim separa os povos dentro das nações, devido os divergentes modelos ideológicos existentes. Desse modo, os militares se colocam em pontos estratégicos dentro das nações, aonde podem controlar através de ações civis, toda a sociedade. Nos governos militares, surgidos nos anos 60 dentro da América Latina, a geopolítica se fundamenta na concepção bélica e se sobrepõe na ciência política, ou seja, o sentimento de defesa, de guerra, de luta, torna-se de maior importância se comparado ao sentimento político. Pois a política passa a ser absorvida pelas estratégias criadas pelos militares. Assim; 20 Neste contexto denominado arte militar , a política torna-se o elemento fundamental para a manutenção do poder por parte dos participantes da instauração do golpe. Assim a guerra interna com a busca e a eliminação incessante do inimigo interno passa a ser uma estratégia imposta para impor a chamada segurança nacional no país. Com estreita ligação entre a manutenção do poder militar e a Doutrina de Segurança, a obtenção dos objetivos nacionais passam a ser realizados pelo desenvolvimento da competição política que surge com o novo cenário global, pautado nas novas estratégias de guerra e de luta interna, transformando assim o país em um cenário de luta política que não abre espaços para novas negociações. A guerra interna é, pois, uma guerra total e permanente, o que vai atribuir um forte papel, na sociedade civil, aos aparelhos de segurança e informações que agem, preferencialmente, pela violência, com suas táticas de guerra e métodos desumanos 21 (tortura física) .

A guerra total, que foi o contexto institucionalizado durante a manutenção da política da Doutrina de Segurança Nacional, defende a ideia de que as ações tomadas frente a população não são somente militares, mas também psicológicas, que definem a forma de agir das lideranças governamentais do país. Essas ações psicológicas são necessárias à Doutrina para que seu projeto seja incorporado e desempenhado, pois nessa guerra tratava-se de aniquilar moralmente os inimigos e de assegurar que essa oposição não se colocasse contra a projeção política da Doutrina de Segurança Nacional. Essa guerra psicológica se fundamenta na ideia de terror de Estado, utilizado diretamente com o fim de intimidar o inimigo e evitar que os indecisos partam para o lado contrário dos militares. O Estado assim se configurou como um elemento repressivo, que varia o grau de violência, tendo como marca comum a supressão das instituições democráticas. [...] o Estado, que deveria ser uma estrutura de mediação e de proteção da sociedade, agindo como fiador da segurança das pessoas, foi utilizado, de forma geral, em toda a 22 região, como um mecanismo que devia enfrentar e derrotar o “inimigo interno” .

Cada país que adotou o regime fundamentado nas ideias militares efetivaram sua interpretação individual da Doutrina de Segurança e aplicaram a partir de um aparato estatal que de certa forma extrapolou os limites constitucionais, transformando a política em um sistema de terror de Estado. Esse terror de estado se constitui como um instrumento de análise da realidade dos governos militares que se basearam no conceito de Segurança Nacional e nos objetos políticos da Doutrina. Enrique Serra Padrós (2005), defende que a política do Terror de Estado implementada pelos governos civil-militares, foi o mecanismo utilizado para aplicar as premissas da Doutrina de Segurança Nacional. Segundo ele esse Terror de Estado se fundamenta como uma modalidade de terrorismo. Além desta linha de discussão sobre o terrorismo, outra linha de interpretação surge dentro do contexto de governo militar e da Doutrina de Segurança Nacional, que coloca os chamados “inimigos internos”, ou seja, os adeptos ou simpatizantes do comunismo, como os protagonistas desse terrorismo. A partir das colocações sobre o conceito de Terror de Estado, de guerra, pode-se começar a traçar um dos objetivos ou talvez uma justificativa da Doutrina de Segurança Nacional em não realizar a escolha dos dirigentes da população através da eleição popular. Pois segundo essa Doutrina, o inimigo e o próprio ato de agressão surgem do grau de entendimento político e socioeconômico do povo, e somente as pessoas que atingem um “certo patamar”, considerado por eles um grau de preparação e 20

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Arte Militar: a expressão neste sentido quer se relacionar ao poderio militar durante os anos da ditadura no cenário político brasileiro. BORGES, 2003, p. 28. PADRÓS, 2005, p.58.

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experiência, possuindo os saberes militares de como agir, podem ter legitimidade do poder no país. Assim, esses dirigentes nomeados pelo corpo militar precisam impor sua autoridade perante a nação. Para isso estes se utilizam de meios concretos, sendo estes a política e a censura, visado serem organizados em vista de ações repressivas mantendo a ordem pública e impedindo ações subversivas contra o governo. A Doutrina de Segurança Nacional trabalha com quatro conceitos principais: os objetivos nacionais, que se dividem em permanentes e atuais [...]; o poder nacional [...]; a estratégia nacional [...]; segurança nacional [...]. É pois, em torno desses conceitos, adaptados às características estruturais e conjunturais de cada país, que gira a 23 Doutrina .

Esses quatro conceitos estão descritos na política dessa Doutrina de Segurança Nacional, mas o que merece mais atenção, sem dúvida são os objetivos nacionais. Na prática eles são a teorização dos interesses, das aspirações e das regras de uma nação inspirada nesses conceitos. No Brasil, a Doutrina serviu como base ideológica do regime militar implantado em 1964 e contribuiu para a formação do aparato de informações da nova ordem constitucional do país. O Serviço Nacional de Informações (SNI) foi criado logo após a efetivação do golpe, no governo de Castelo Branco e foi a forma criada pelos militares para tentar controlar os “inimigos internos”. Esse Serviço de Informações passa a concentrar dentro do país todo e qualquer tipo de informação e de tratar de assuntos internos e externos. O grupo assim passa a assumir uma superioridade no bloco do poder, tendo em vista a função de coletar, analisar e julgar as informações pertinentes para a contenção dos inimigos do regime. Assim, na medida em que a Doutrina era difundida pela sociedade, o governo militar articulava uma estrutura jurídica forte e fundamentada nos preceitos de defesa da nação, impondo para todas as suas ideias e regimentos, perseguindo os chamados “inimigos”, fundamentado nos aparatos do Terror criado pelo Estado. Considerações Finais A Doutrina de Segurança Nacional, baseada no conceito de segurança Nacional e disseminada na sociedade pela política de defesa dos Estados Unidos, fundamentou todos os governos militares surgidos na América Latina. Esses governos surgiam com o objetivo de ordenar o país, protegendo toda a nação contra o inimigo, considerado por essa política; os adeptos ao comunismo. Esse modelo político instaurado chegou às forças governamentais através da instrução dada aos militares através das Escolas de guerra que eram ministradas pelos norte americanos. No caso brasileiro foi a Escola Superior de Guerra a responsável pela orientação dada aos militares e civis que mais tarde vão ser os protagonistas do golpe de 1964. No Brasil, a permanência do regime militar no país se deve a duas características: primeira; a existência de uma ideologia que ultrapassa as particulares nacionais e mantém a estrutura e coerência política através da base constitucional criada para manter os militares no governo brasileiro. Segunda; a utilização da política do Terror do Estado, que advinha do uso de torturas psicológicas e também físicas, causando medo da população em geral. Dentro da estruturação política dos militares brasileiros, a Doutrina de Segurança serviu para abolir dois princípios fundamentais do regime democrático: a subordinação dos militares ao poder civil, pois agora eles estavam no alto patamar governamental; e a não intervenção no processo político, pois agora a política estava toda fundamentada no conceito de segurança contra os inimigos submetidos aos militares. Assim, a base ideológica do regime militar decorrem várias ações que afetam distintos setores sociais, pois, a prática das eleições indiretas para presidente, e a de nomeação para governadores, prefeitos de capitais e prefeitos das Áreas de Interesse de Segurança Nacional, era uma forma de dizer que o povo brasileiro não sabia escolher seu representante. Disseminado a ideia de que isso era uma forma de se defender contra os “inimigos internos” que poderiam chegar ao poder. Durante todo o governo militar e a manutenção da Doutrina de Segurança, os direitos civis e políticos foram os que mais sofreram com a ação dos governantes militares. Pois além do povo não poder escolher seus representantes, a manutenção do sentimento de terror, através das torturas e perseguições faziam com que a maioria dos brasileiros aceitassem as determinações sem se manifestar contra. Dessa maneira, o objeto de estudo desse artigo que era analisar a trajetória e fundamentação da Doutrina de Segurança Nacional foi discutido, utilizando como foco de discussão o golpe militar brasileiro. Portanto, o que de fato precisa ser levado em consideração é a forma como o poder foi 23

BORGES, 2003, p. 30.

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manipulado e controlado pelos militares, e a não efetivação dos direitos legais do povo brasileiro, que não teve opção de escolha política durante os anos analisados.

Referências Bibliográficas: BORGES, Nilson. A Doutrina da Segurança Nacional e os governos militares. In: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves, FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. COMBLIN, Pe. J. A Ideologia da Segurança Nacional. O poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.pg. 103 á 149. FERNANDES, Ananda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança nacional pela Escola Superior de Guerra no Brasil: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva. Antíteses, vol. 2, n. 4, jul-dez. de 2009, pp. 831-856. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php;antiteses. JASMIN. Marcelo Gantus & FERES Jr.. João. História dos Conceitos: dois momentos de um encontro intelectual. IN: Jasmin, Marcelo Gantus & FERES Jr,. João (org). História dos Conceitos; debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC – Rio: Edições Loyola: IUPERJ, 2006. (p. 9-38). KOSELLECK, Reinhardt. História dos conceitos e história social. \\\ “Espaço de experiência” \\\ e \\\ “horizonte de expectativa”\\\: duas categorias históricas. In: Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006. PADRÓS, Henrique Serra. Como el Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional – Uruguai (1968-1985): do Pachecato a Ditadura Cívico-Militar. 2005. 876 f. Tese (Doutorado – Programa de PósGraduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. REZNIK, Luís. Democracia e Segurança Nacional: a polícia política no pós-guerra – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.188p. TAPIA, 1981, p. 161; In, BORGES, Nilson. A Doutrina da Segurança Nacional e os governos militares. In: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves, FERREIRA, Jorge. O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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VI – Ditaduras: Arte, Cultura e Censura

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A Memória da Censura durante a Ditadura Civil Militar em Campo Grande/MS. Mariana Duenha Rodrigues

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Resumo: O presente artigo tem como objeto de pesquisa, a repressão política, com foco na cesura, na cidade de Campo Grande/MS, durante os anos de 1964-1985, marcados pela Ditadura Civil Militar no Brasil. Levantando a discussão de como foi esses 21 anos em cidades interioranas, e até então, tidos como “pacatas”, que historiograficamente pouco se conhece. Utilizando como, principal fonte de pesquisa, a História Oral, com entrevistas e vídeo documentário. Palavras-chave: MT/MS – Ditadura – Repressão – Censura.

Mato Grosso do Sul localiza-se no Centro-oeste do Brasil, fazendo fronteira com a Bolívia e Paraguai. Estado conhecido pelas riquezas naturais, grandes rebanhos, e agricultura, que foi criado em meio ao caos que o país passava, enfrentando um governo ditatorial de extrema repressão política e ideológica, que teve de sua história, ainda jovem, uma parte abafada. O Estado “interiorano” não era tão calmo assim, o governo de opressão e o Terror de Estado deixaram suas marcas. Entretanto, historiograficamente, pouco se fala da ditadura civil-militar no Estado de Mato Grosso do Sul, o que torna ainda mais intrigante o porquê de tanto silêncio. A escolha da metodologia, História Oral, deu-se a partir desses silêncios, não apenas por se mostrar uma fonte de pesquisa viável, mas principalmente por se tratar da memória individual e coletiva de diferentes grupos e pessoas que estiveram envolvidas, diretamente ou indiretamente, nos anos de chumbo, principalmente entre os anos de 1969 a 1985 na cidade de Campo Grande. 2 Em entrevista ao documentário “Gritos do Mato” da Jornalista Tainara Rebelo, a professora 3 Maria da Glória Sá Rosa diz, “Chamada de “Revolução”, em 1964, tinha como lema combater a corrupção e a subversão. Então tudo aquilo que podia ferir a moral e os bons costumes, eram proibidos, (...) em todos os níveis, havia aqueles olhos arregalados da censura, dos pseudos “defensores” da moral e dos bons costumes, tentando cortar o que pudesse fazer mal as consciências.” (Maria da Glória Sá Rosa, Gritos do Mato, 2009)

Campo Grande e a Censura Na virada da década de 1960-1970, Campo Grande era uma cidade “pacata” dos imigrantes paraguaios, portugueses, japoneses e sírio-libaneses, além da presença indígena, expressiva, que constituiu parte de sua cultura. Com a criação de Mato Grosso do Sul, em 1977, tornou-se a capital do novo Estado. Perfilava-se como uma cidade em grande desenvolvimento e abrigava diferentes posições políticas do Mato Grosso. Mas, apesar de sua aparente “calmaria”, não se livrou da “mão pesada” da ditadura civil-militar no Brasil. Entretanto, a proporção e a intensidade em que se era “aplicada” os meios 4 repressivos pareciam variar de acordo com o Estado da federação. Segundo Paulo Simões , o fato de Campo Grande ser considerada uma cidade calma, favorecia para que qualquer comportamento “diferente” fosse logo repreendido. “Além do fato de Campo grande ser uma cidade do interior, uma cidade, relativamente, “provinciana” na época. Ao mesmo tempo o clima era de censura, de medo, de restrição de liberdade. Qualquer coisa que destoasse, era vista com muito mais preocupação.” 1 2

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Email: mariduenha@uol.com.br Telefone: (67)9150-6033 Graduada em História/UFMS. Graduada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Artigo realizado a partir do Trabalho de Conclusão de Curso, sob orientação do Professor Dr. Jorge Christian Fernandez. (2012) REBELO, T. P. 2009. “Gritos do Mato – a contracultura – expressão artística – no período da Ditadura Militar em Campo Grande.” Maria da Glória Sá Rosa – também conhecida como “Glorinha” - Professora aposentada da Universidade Federal de Mato grosso do Sul (UFMS), onde lecionou, por 26 anos, Literaturas de Língua Portuguesa e História da Arte. Fundadora da Revista Estudos Universitários (FUCMAT) o Teatro Universitário Campo-grandense (TUC) e o Cine Clube de Campo Grande. Responsável por diferentes movimentos culturais na cidade de Campo Grande/MS. Atualmente compõe a Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Disponível em: http://www.acletrasms.com.br/membro.asp ?IDMCad=37, (Acessado em 02/07/2012). Paulo Simões- Músico e Jornalista.

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(Paulo Simões, Gritos do Mato, 2009)

Em entrevista, ao ser questionado sobre a ditadura ter sido “branda” no estado de Mato 5 Grosso/Mato Grosso do Sul, Américo Calheiros diz: “Obviamente nós aqui no Estado de Mato Grosso do Sul, não tivemos aquela... Não chegamos a ver com muita projeção, como aconteceu em outros lugares do Brasil, nos grandes centros, Rio, São Paulo, aqui não houve uma manifestação publica a exemplo de Rio São Paulo, né? (...) à medida que a gente foi crescendo foi entendo a força dos Atos Institucionais, o de 68 (AI-5), por exemplo, foi muito visível já por que a gente estava compreendendo melhor o que estava acontecendo. Sabia noticias de pessoas que tinham... de políticos que tinha sido cassados aqui, de acontecimentos envolvendo homens públicos, prisão, cassação, etc... Tudo isso começou a transparecer.” (Américo Calheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012) 6

Sob a mesma pergunta Celito Espindola diz: “Pelo que a gente tem conhecimento, do ponto de vista nacional, chegou de uma forma mais branda, nós conhecemos história de pessoas que foram torturadas, presas, de maneira bem forte mesmo, mas aqui, eu percebo eventos dessa repressão física. Alguns fatos.” (Celito Espindola, entrevista realizada pelo autor em 15 de março de 2012)

Na década de 1960, os movimentos culturais efervesciam em todo o mundo. A onda “paz e amor”, e os movimentos nacionais como tropicalismo, influenciaram os artistas regionais, que impulsionados pela vontade de criar, deram vida, a partir de companhias de teatro, festivais músicas e apresentações, a uma cidade que se abria para uma nova vertente cultural. Em 1968, iniciava-se em Campo Grande um Festival de música regional, coordenado pela Professora Maria da Glória Sá Rosa, conhecida como Professora Glorinha, e que foi palco de muita censura, já que o festival teve seu nascimento no mesmo ano que se institucionalizou o AI-5. Segundo Glorinha, a censura agiu desde o primeiro festival, quando vetou uma música do compositor Paulo Simões, que em seus versos continha uma frase em inglês, e naquela época não se podia fazer qualquer referência que fosse ligada ao “estrangeiro”. No segundo festival, a censura vetou um texto de José Otavio Guizzo, intitulado “Zé Galo, costureiro e matador”, argumentando que se trava de um texto contra a polícia e que estava atacando os “valores” da polícia. Nesse trecho da entrevista, Glorinha fala de como acontecia o processo de análise da censura: “A gente tinha que apresentar as letras em três copias para censura, ela analisava, cortava as coisas, e aquilo irritava profundamente as pessoas que assistiam, né?”(Maria da Glória Sá Rosa, Gritos do Mato, 2009)

Diversos músicos tiveram problemas com a censura regional, Celito Espíndola teve a música “Alice” censurada, e só pode tocá-la no festival após fazer alterações na letra. O músico e compositor Geraldo Espindola conta que também teve duas músicas censuradas, “Eu cheguei a ter músicas censuradas, pela ditadura, como “muito sacana”, que é uma critica sobre o império norte americano, na época não era de “bom tom” se criticar o governo aliado, os Estados Unidos. (...) Teve também uma musica, que eu ganhei um festival com ela, chamada, “ponha na sua cabeça”, que nós tivemos que mudar, por que tinha palavras muito agressivas, tive que mudar e mexer em toda letra, por que o governo também não permitia que se falassem palavras pesadas. Talvez por consciência pesada.” (Geraldo Espíndola, Gritos do Mato, 2009)

A indefinição da censura gerava conflito dentro do próprio sistema de repressão, desaprovando em meios regionais, e aprovando na censura nacional, Paulo Simões e Geraldo Roca, compositores de umas das canções mais conhecidas do estado de Mato Grosso do Sul, “Trem do Pantanal”, viveram na pele essa realidade. “Foi enorme a nossa surpresa, quando a censura local, regional, vetou a musica “Trem do Pantanal”, eu tenho inclusive a cópia com o carimbo VETADO, não era censurado, era vetado. Lá fomos nós, eu e o Roca, discutimos com a censura da época, mas eu confesso que eu não resisti a ser um pouco mais duro e eu disse: “- Escuta, essa aqui 5

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Américo Calheiros – Professor, teatrista e criador do Grupo Teatral Amador Campo-Grandense (GUTAC). Atualmente assume o cargo de Presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Celito Espindola - Professor, Produtor e Compositor.

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tudo bem que ali a gente coloca estojo, faz um negocio, agora Trem do pantanal, francamente, o que é que você viu aí de tão perigoso?”,ela falou: “- A primeira aqui, a primeira estrofe: “Mas um fugitivo da guerra”, que guerra é essa?”(...) Mas, eu voltei para o Rio de Janeiro, com o Roca, e nós mandamos para a censura de lá, que era uma censura de peso nacional, a daqui tinha peso apenas regional. Foi absolutamente aprovada, até por que não foi entendida.” (Paulo Simões, Gritos do Mato, 2009).

Eram também realizados festivais de teatro, e segundo a professora Glorinha, a censura no teatro foi ainda mais expressiva. Diversas peças foram censuradas, algumas delas totalmente impedidas de serem apresentadas como a peça “Arena contra zumbi”. Outra peça que foi vista com maus olhos pela censura foi à peça: “O outro lado, do lado de cá, visto do lado de lá dos lados”, também conhecida por “A estupefaciente conclusão que se chegou da discussão que teve lugar, entre Sargento X e Recruta Y, no país da nuvem azul”, de Paulo Simões e Cândido Fonseca, peça essa que ganhou o festival de teatro, e se tratava de um monólogo entre dois soldados que tinham morrido, mas não sabiam que tinham morrido. Outra peça que foi censurada, do grupo de Teatro Universitario Campograndense (TUC), foi a peça “Liberdade, Liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel. Professora Glorinha conta que precisou ir pessoalmente a Brasília para conseguir o aval da censura para apresentar essa peça, e mesmo assim a peça veio toda cortada, com várias partes censuradas. Porém essa peça fez grande sucesso, sendo levada até Cuiabá, Três Lagoas e interior do Estado. Na apresentação em Três Lagoas, um dos atores da peça, desafiabdo a censura disse: “Atenção pessoal, se continuarmos a defender os princípios da liberdade, se continuarmos a levar a efeito peças como essa, com tudo que a gente disse e ainda vai dizer, eu acho que nós vamos cair numa democracia.”, após esse fato, Glorinha relata: “Quando eu voltei com o grupo para Campo Grande, o chefe da censura, veio aqui em casa, e disse que eles não iriam mais deixar a peça ser levada em frente, por que estávamos desobedecendo, os atores falando texto que a censura tinha proibido. Ai eu disse: “-Mas eu não posso colocar um esparadrapo na boca dos atores!”no final, acabou ai aceitando.” (Maria da Glória Sá Rosa, Gritos do Mato, 2009)

Em 1971 fora criado em Campo Grande o Grupo Teatral Amador Campo-Grandense (GUTAC), por Américo Calheiros. O GUTAC teve grande participação em festivais, e Américo Calheiros teve uma peça totalmente censurada, chamada “Nada é Grátis”. Em entrevista, Américo conta sobre a censura, “Para nós, jovens daquela época, e para mim especificamente, a censura oriunda da ditadura passou influenciar, diretamente, a minha e a nossa vida, a partir da manifestação de arte e cultura que a gente decidiu realizar, então eu tive uma peça de teatro minha proibida, literalmente, o texto todo, uma peça que se chamava Nada é grátis, da minha autoria e foi o último texto de teatro que eu escrevi, a gente já tava ensaiando, estávamos bastante animados, era uma peça que tinha toda uma simbologia, mas incompreensivelmente , quer dizer, ela foi proibida, censurada. (...)Eu disse na ocasião que esse tipo de coisa não ia afetar a minha capacidade criativa, mas foi o último texto de teatro que eu escrevi, de uma certa forma, eu senti com o passar dos anos, que foi uma marca, uma castração, né?” (Américo Calheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012).

Em outro trecho, ao perguntar sobre como acontecia os processos de censura, relatou: “Todos os textos de teatro tinham que passar pela censura Federal, não apenas o texto, que você tinha que mandar por antecedência, mas também você tinha que fazer um ensaio final, antes de apresentar o espetáculo, para uma pessoa que representava a Polícia Federal, nessa área especifica de censura de espetáculos, como se fosse já o espetáculo no dia. Com roupa, com iluminação, com música, com todos os detalhes possíveis para que houvesse, fidedignamente, uma amostra do que você apresentaria e a pessoa ficava assistindo com o texto na mão acompanhando letra por letra, fala por fala, pausa por pausa, que tinha que obviamente estar de acordo com a censura que havia sido previamente feito no texto que você tinha enviado para censura Federal.” (Américo Calheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)

Américo levanta uma questão importante em sua fala, que são as marcas que a repressão do Estado, neste caso a censura, deixou em todos os que sofreram com o governo opressor. Ainda diz que o GUTAC não teve sua formação para “atingir” a ditadura, mas que na medida em que o tempo passava, e eles se davam conta do que a ditadura representava, os textos mais “politizados” foram surgindo, escritos, principalmente, pela Cristina Matogrosso. Sobre essa “castração” feita pela censura, Cristina 229


Mato Grosso lembra: “O teatro para o povo, a arte para o povo, ela praticamente não chegava ao povo, da forma que ela deveria ser, na essência, no âmago do povo, entende? Não havia uma participação, era algo de elite para o povo. Então era algo que, existia uma pretensão, existia um ideal, existia uma plataforma disso ai tudo, só que ela não chegou a atingir. Ela poderia ter atingido, ela poderia ter avançado, nesse sentido, só que ouve o golpe militar e o sonho acabou. Ai nasce o movimento de Campo Grande, quando o sonho acabou.” (Cristina Mato Grosso, Gritos do Mato, 2009).

A aproximação com outros Estados, também facilitou essa abertura e real dimensão da repressão, sobre isso, Américo diz: “Começamos a conhecer pessoas e grupos e... tinham posturas muito claras contra a questão da censura no país. O país de uma certa forma também, na medida que a censura... que a ditadura foi ganhando mais anos, digamos assim, no país... foi trazendo por meio intelectual, do meio político, e de grande parte da classe artística nacional, toda uma consciência e um nível de participação muito forte e com muita clareza com o que se pretendia. E o que se pretendia realmente era acabar com a Ditadura pelo Brasil.” (Américo Calheiros, entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)

Com parte da imprensa manipulada pelo AI-5, também passou por momentos de forte repressão, 7 o Jornalista José Ramos de Almeida , conhecido como “Zeca do Trombone”, conta que passou por apuros durante a ditadura e que existia também nas redações de Campo Grande um censor que permitia ou não a publicação das matérias: “Então, você imagina, a dificuldade que era para um jornal diário fechar. Para um boçal qualquer, ficar tendo que ler tudo aquilo, para dar o aval. Nós sabíamos que ali na redação, tinha um censor, mas nem ver a cara do “fulano” não via, por que era uma questão de “segurança”, né?” (Zeca Do Trambone, Gritos do Mato, 2009).

Não se podia falar em miséria e pobreza do povo, que era considerado grande afronta ao Estado, assim como não podia publicar nada que incentivasse a revolta, ou “difamasse” o Estado. Zeca do Trombone conta que em meados de 1973, fez um artigo questionando sobre a votação do novo diretor da União Campo-Grandensse de Estudantes (UCE), já que após a saída do então presidente, ninguém teve coragem de se candidatar: “E eu fiz um artigo, simplesmente dizendo: “Mas como que isso pode acontecer?!”, sorte que eu não assinei. Mas, houve o seguinte, tava na redação, e chegou um comunicado do Comandante, do General, não sei quem era, não lembro, acho que era governo do “Garrastazu”, convocando toda a imprensa no seu gabinete. Rapaz! Todos os jornalistas apareceram lá, e pareciam tudo cordeirinhos, sabe? E o aparato militar era incrível, né? Os caras tudo lá... Ai, então entramos na sala do General, e o General praguejava: “- Eu não vou permitir uma coisa dessas, incitação a baderna”, e pegou o artigo e mostrou, “Isso aqui não pode acontecer, isso aqui se eu pegar o responsável, ele vai para cadeia”, E era eu! [Risos]” (Zeca Do Trambone, Gritos do Mato, 2009)

Outro caso de repressão aconteceu na redação do jornal “O Democrata”, localizado na Rua Maracaju 8 esquina com a Rua Calógeras, região central de Campo Grande. Segundo Lairson Palermo , em 1964 o jornal “O Democrata” foi invadido pelos militares, que retirou o dono do jornal a força, atirou todo o maquinário e arquivo do jornal na rua e destruiu. O jornal “O Democrata” era financiado por comunistas, logo, sua destruição foi “justificada” como: “Ameaça aos interesses do país.” Abaixo, matéria vinculada no Jornal Correio do Estado.

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José Ramos de Almeida -“Zeca do Trombobe”: Músico e Jornalista. Advogado Lairson Palermo em entrevista ao Jornalista Celso Bejarano, para o Jornal Correio do Estado. Disponível em: http://flip.siteseguro.ws/pub/correiodoestado/index.jsp?ipg=56328, (Acessado em: 02/07/2012)

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Figura 1. Matéria: “Arquivos de jornal foram destruídos pelos militares”, (Acervo Correio do Estado, Maio 2012) Observa-se que os entrevistados tiveram melhores lembranças dos acontecimentos, entre os anos de 1969 a 1985, principalmente no governo do militar, Emilio Garrastazu Médici. Momento de grande repressão em todo o Brasil. Observa-se também que os entrevistados, embora fizessem alguma referência ao longo das entrevistas, não falaram em prisões e torturas no meio artístico, o que leva a acreditar que essas medidas eram tomadas em Mato Grosso do Sul, principalmente, em militantes engajados nas causas de Reforma de Bases. Nesse trecho da entrevista, nota-se o cuidado com o silêncio que a ditadura tinha: P – Você teve, ou conheceu alguém, que teve algum problema com a repressão, além da censura(prisões, cassações, torturas)? Américo: A gente ouvia falar, de políticos que foram cassados, o Nelson Trad, a família Neder também teve pessoas que foram aprisionadas, a gente ouvia falar... P – Mais voltado para política? Américo: É! Mais voltado para política, mas era tudo muito, como se diz? Tudo muito velado. Doutor Wilson Barbosa Martins também foi cassado. (Entrevista realizada pelo autor em 21/03/2012)

Entretanto, não se pode anular a possibilidade de artistas – músicos, atores, radialistas, escritores, jornalistas – locais, terem sido vítimas de prisões e torturas. Os silêncios causados pela ditadura ainda são muitos. Isso fica evidente no receio que as pessoas ainda têm de falar sobre os “anos de chumbo”. Considerações finais Muitas pessoas que estiveram envolvidas em movimentos contra o regime, em Campo Grande, parecem se recusar a falar e a relembrar os acontecimentos. Assim, podemos considerar que o “não 9 dito” , exerce papel fundamental para o entendimento de como todo esse processo aconteceu. Segundo Michael Pollak, (1989, p.7) “Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angustia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos de se expor a mal-entendidos.” As marcas deixadas pelos 21 anos de governo militar, na cidade de Campo Grande, parecem ser maiores do que se pode imaginar e talvez a maior evidência disso seja a “falta” de evidências sobre a existência da repressão no Estado de Mato Grosso/Mato Grosso do Sul. O que nos leva a pensar que talvez seja mais cômodo acreditar que o Estado de Mato Grosso/Mato Grosso do Sul, não tenha sofrido com o Terror de Estado. Dessa forma:

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POLLAK, Michael. Memória Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p. 315.

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“A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor.” (POLLACK, 1989, p.6)

O que levanta as seguintes duvidas: as pessoas envolvidas não querem mesmo falar, ou o Estado que não quer ouvir!? O terror das lembranças dos fatos, causados pela ditadura e a falta de interesse do Estado, talvez esteja impedindo que a história seja, de fato, escrita.

Referências Bibliográficas BITTAR, Marisa. MATO GROSSO DO SUL a construção de um estado, volume I: regionalismo e divisionismo no sul de Mato Grosso/ Marisa Bittar. – Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009. BITTAR, Marisa. MATO GROSSO DO SUL a construção de um estado, volume II: poder político e elites dirigentes sul-mato-grossenses/ Marisa Bittar. – Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009. DUENHA, Aline. Do palco à academia: arena de conflitos em mão na luva, de Oduvaldo Vianna Filho, 2011. LEITE, Eudes Fernandes. Aquidauana: A baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma pretensa revolução. / Eudes Fernandes Leite. – Dourados, MS: Editora da UFGD, 2009. MOREIRA ALVES, Maria H. Estado e Oposição no Brasil (1964- 1984). Petrópolis: Vozes, 1989. POLLAK, Michael. Memória Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p. 3-15. POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v.5, n.10, 1992. PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo: PUC/SP. N. 14, fev. 1997. Videodocumentário REBELO, T. P.“Gritos do Mato – a contracultura – expressão artística – no período da Ditadura Militar em Campo Grande.” 2009.

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Memórias da ditadura nos Cinemas Latino-americanos contemporâneos Rosângela Fachel de Medeiros

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Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar e analisar algumas obras cinematográficas de uma geração de cineastas latino-americanos que eram crianças durante a ditadura de seus países e que, de diferentes maneiras, trouxeram essas memórias para sua produção cinematográfica. Palavras-chave: Cinema – América Latina – Ditadura – Memória. Abstract: The objective of this work is to present and analyze some films by a generation of Latin Americans filmmakers who were children during the dictatorship in their countries and that, in different ways, brought those memories to his cinematographic production. Keywords: Cinema – Latin America – Dictatorship – Memory

Observa-se uma tendência nos Cinemas Latino-americanos contemporâneos a enfocarem em suas narrativas, direta ou indiretamente, as ditaduras vividas nos países da região. Tal fato contribui, por exemplo, para que dentre as indicações dos países Latino-americanos à pré-seleção para o Oscar 2013 na categoria de Melhor Filme Estrangeiro estivessem duas produções que abordam diretamente o tema: o chileno, No – 2012, de Pablo Larraín, e o argentino, Infância Clandestina – 2011, de Benjamín Ávila. O filme de Larraín acabou ficando entre os cinco concorrentes finais à premiação. Vale lembrar que o primeiro filme argentino a receber o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro foi A história oficial (La historia oficial – 1985), de Luis Puenso, que aborda a delicada questão das crianças que eram retiradas de seus pais, presos políticos que seriam executados, e entregues em adoção a famílias de militares ou de colaboradores da ditadura. E O segredo de seus olhos (El secreto de sus ojos – 2010), de Juan José Campanella, que recebeu o segundo Oscar para o cinema argentino, trata do passado obscuro préditadura de 1976. Além disso, outras recentes indicações de países Latino-americanos ao Oscar abordavam as ditaduras da região: o argentino Kamchatka (2002), de Marcelo Piñeyro; o chileno Machuca (2004), de Andrés Wood e o brasileiro O Ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger. Essas indicações ao prêmio mais cobiçado da indústria cinematográfica, bem como as demais premiações recebidas por esses filmes em festivais ao redor do mundo não apenas corroboram a qualidade cinematográfica dessas obras, mas também sinalizam o interesse internacional pela revisão cinematográfica e artística desse período e das questões sociais, culturais, políticas e econômicas a ele relacionadas. É interessante destacar que Argentina e Chile são os países latino-americanos que mais 2 produzem filmes sobre o tema. E considerando que os Cinemas Latino-americanos são quase totalmente realizados graças a acordos de coprodução, multi ou binacionais, e são dependentes de políticas públicas de incentivo, sendo os projetos submetidos a editais que visam promover e desenvolver os cinemas nacionais, bem como preservar e incentivar a cultura dessas nações e da região através de obras que apresentem comprometimento com questões culturas e identintárias; não é ao acaso que muitos de seus filmes 3 abordem o período das ditaduras direta ou indiretamente. O historiador Marc Ferro (1992) propõe duas vias de leitura do cinema em relação à história: a “leitura histórica do filme” e a “leitura cinematográfica da história”. A primeira lê o filme em relação ao período em que foi produzido, o filme é lido através da história; e a segunda lê o filme enquanto discurso sobre o passado, a história é lida através do cinema e, em particular, dos "filmes históricos". O intuito desse artigo, apesar de sua brevidade, é combinar essas duas formas de leitura para analisar os filmes 1

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É graduada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e possui mestrado e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), participa como pesquisadora do grupo Cinema Latino-americano da Universidade Federal Fluminense (UFF). O site argentino Memoria Abierta possui uma página onde é possível encontrar informações sobre os filmes nacionais que abordam a ditadura, La Dictadura em el Cine: http://www.memoriaabierta.org.ar/ladictaduraenelcine/index.html Sobre a questão da coprodução nos Cinemas Latino-americanos proponho a leitura de meus textos: “Cinemas latino-americanos: do Nacional ao Transnacional” e “Cinemas do Mercosul: políticas de incentivo, coproduções e identidade cultural”.

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enquanto discursos sobre o passado ditatorial, mas também como testemunhos sobre o presente. Os cineastas e seus filmes: o cinema como memória reconstruída O cineasta chileno Pablo Larraín, filho do senador Hernán Larraín (que era defensor da ditadura de Augusto Pinochet), nasceu em 1976, três anos após o golpe militar que colocou Pinochet na presidência do Chile. Larraín era criança enquanto os crimes contra os direitos humanos eram perpetrados pelos militares chilenos e tinha quatorze anos, em 1990, quando a ditadura terminou, dando lugar à democracia. É justamente o processo de transição instaurado pelo plebiscito de 1988, que resultou no afastamento de Pinochet da presidência e permitiu o regresso do país ao regime democrático, o tema de No, seu filme mais recente e de maior repercussão. No, coproduzido por Chile, Estados Unidos e França, trata de fatos reais relativos à realização da campanha publicitária ao voto pelo “não” no Plebiscito Nacional de 1988 no Chile em que a população votaria “sim” ou “não” à permanência de Pinochet no poder por mais oito anos. O roteiro do filme foi escrito por Pedro Peirano a partir da peça El plebiscito (nunca encenada), de Antonio Skármeta, e de um processo de pesquisa e de entrevistas a respeito da realização da campanha publicitária. O filme acompanha René Saavedra, um publicitário que viveu um exílio no México e agora trabalha em uma grande agência de publicidade. Procurado pelos opositores ao governo de para comandar a campanha do “não”, Saavedra precisa harmonizar as forças e os conceitos da oposição, o que consegue aos poucos impondo sua racionalidade publicitária aos políticos e afastando os mais radicais. Com poucos recursos e sob a constante observação dos agentes do governo, sua estratégia é usar a alegria e a esperança associadas a técnicas de propaganda e marketing para vender o “não” como se fosse um produto. Seu chefe, Lucho Guzmán, que é envolvido com a ditadura, acaba ficando a cargo da campanha pelo “sim”. No entanto, esse antagonismo não representa um rompimento entre eles que seguem trabalhando juntos e a vitória do “não” acaba sendo um trunfo para agência. A fim de reproduzir a definição das imagens apresentadas pela televisão na década de 1980, que habitam sua memória, Larraín optou por rodar o filme em suporte de vídeo U-matic 3/4, o mesmo usado na época. Pois para o cineasta, realizar o filme com a tecnologia atual, em película ou com câmeras digitais de alta definição, geraria um distanciamento em relação ao imaginário da época (LARRAÍN, 18/05/2012). Desta forma, as imagens ficcionais apresentam as mesmas texturas e cores das imagens da época que são exibidas no filme, fazendo com que o ficcional amalgama-se imageticamente ao arquivo, borrando os limites entre o documental e o ficcional. Com No Larraín encerra a trilogia, que não havia planejado, sobre a ditadura chilena, composta ainda por: Tony Manero e Post Mortem. No entanto, No é o único dentre os três filmes em que a ditadura é o tema central da trama, nos anteriores a ditadura é a força motriz não nominada, mas onipresente, que transforma não apenas a vida, mas a própria identidade dos protagonistas. Tony Manero – 2008, foi escrito em coautoria por Larraín, Mateo Iribarren e Alfredo Castro, e foi coproduzido por Chile e Brasil. A narrativa se passa em Santiago, Chile, no ano 1978, durante a ditadura de Pinochet. Raul Peralta é um homem de meia idade que vive no submundo chileno. Obcecado pelo personagem Tony Manero, interpretado por John Travolta, de Embalos de sábado à noite (Saturday Night Fever – 1977, de John Badham), ele passa seus dias ensaiando os passos de dança do personagem para um concurso televisivo e ensaiando os números de dança do filme com um grupo de parceiros com os quais se apresenta na mesma pocilga em que moram. Indiferente à ditadura que aflige seu país, ele sabe como agir para manter-se à margem. As ações dos militares (as rondas, as perseguições, as invasões e os espancamentos) são vista apenas como situações a serem evitadas. Amoral, Peralta não tem escrúpulos para obter o que deseja. Mas sucumbe emocionalmente frente à derrota no programa de televisão. Ao apropriar-se do personagem Tony Manero e de cenas do filme, Laraín não apenas constrói 4 um perverso discurso intertextual através da transculturação, mas também estabelece um paralelo alegórico entre a situação cultural do Chile no período, dominada pela cultura hollywoodiana, e o apoio da CIA ao regime de Pinochet. Post Mortem – 2010, escrito e dirigido por Larraín, foi coproduzido por Chile, México e Alemanha. A trama está ambientada em setembro de 1973, em Santiago, Chile. Mario Cornejo trabalha no Instituto Médico Legal, sendo o encarregado de redigir as descrições referentes às autópsias. Com o golpe de estado que derruba Salvador Allende, Cornejo tem de trabalhar com os militares nas numerosas autópsias dos executados e inclusive na do ex-presidente (em uma cena que corrobora a teoria de que a morte de Allende não foi um suicídio). Mesmo assim, Cornejo mostra pouco envolvimento ou preocupação com o que está acontecendo a sua volta, seu único e real interesse é sua vizinha, uma 4

Sobre a questão da transculturação nos Cinemas Latino-americanos proponho a leitura de meu texto: “A transculturação como estética dos Cinemas latino-americanos”.

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dançarina de cabaré, Nancy Puelma. Após a vitória de Pinochet, que nunca é referida na película, a casa de Nancy, reduto de reuniões de sindicalistas organizadas por seu pai, é assolada pelos militares. A família da bailarina desaparece e ela foge. Cornejo a procura e descobre que ela se escondera em sua própria casa, passando então a protegê-la até descobrir que ela trouxera o amante para o seu esconderijo. A trilogia de Larraín não segue a ordem cronológica dos acontecimentos, mas é reconstruída em um sentido decrescente de intensidade: o primeiro filme, Tony Manero, está ambientado no momento mais intenso e violento com a ditadura já instaurada; o segundo, Post Mortem, transcorre no início quase absurdo do período de ditadura; e o terceiro, No, apresenta o encerramento da ditadura de Pinochet. Larraín não vivenciou as agruras da ditadura, não há em seus filmes referências a sua infância, ou a memórias pessoais: Mis primeros recuerdos son de los últimos años de la dictadura (...) No viví eso, realicé mi propio juicio a partir de recuerdos de otras personas, pero es algo que no he resuelto totalmente ni he entendido aún y eso es lo que me lleva a este tema (LARRAIN, 05/09/2010).

Mas, se Larraín se apropria de memórias para desconstruir uma memória idealizada propagada pelo poder, outros cineastas latino-americanos da mesma geração utilizam as memórias da própria infância para revisitar e reconstruir as memórias coletivas sobre a ditadura. É o caso de Machuca (2004), de Andrés Wood; O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger, Andrés no quiere dormir la siesta (2009), de Daniel Bustamante, El premio – 2011, de Paula Markovitch, e Infância clandestina – 2011, de Benjamín Ávila. E mesmo que a presença das memórias infantis não tenha um objetivo biográfico, todos os filmes estão centrados em protagonistas infantis que são também o foco narrativo dessas obras, sendo, de certa forma, “alter egos” dos cineastas. Esses filmes narram histórias íntimas de conflitos individuais (na família, na escola, entre os amigos) que se articulam à história coletiva. E, nesse aspecto, se aproximam ao Romance de Formação, caracterizado por apresentar o processo de desenvolvimento interior (moral, psicológico, social e/ou político) de um personagem, geralmente a partir de sua infância, no confronto aos acontecimentos exteriores. Mas, antes de passarmos a esses filmes, é relevante apresentar Kamchatka – 2002, de Marcelo Piñeyro, coprodução Argentina, Espanha e Itália, que não faz parte do corpus selecionado, pois Piñeyro pertence a uma geração anterior, que já era adulta à época da ultima ditadura argentina. No entanto, Kamchatka, roteiro original escrito por Piñeyro e Marcelo Figueira, pode ser visto como o fundador dessa linhagem de filmes sobre a ditadura narrados a partir do olhar infantil. A história, ambientada na Argentina, em 1976, no início da última ditadura do país, é contada pelo foco narrativo de um menino, Harry, cuja voz em off narra situações e revela pensamentos. Harry é o nome escolhido pelo menino, em alusão a Harry Houdini, que precisa ocultar a sua verdadeira identidade. O desaparecimento de vizinhos e amigos faz com que os pais de Harry decidam fugir com os filhos para uma “quinta” retirada de Buenos Aires. Guiado pelo olhar de Harry, o espectador pouco sabe sobre a vida dos pais “fora” de casa, que é o “fora de campo”, e sobre os motivos da fuga. São poucas as referências à ditadura e à realidade do país, mas a tensão referente ao “pior”, que pode acontecer a qualquer momento, é constante, principalmente, para o espectador que traz para o filme suas referências e memórias. No entanto, quando algo ruim acontece é longe dos olhos do menino e, por conseguinte, dos do espectador. Ao contar essa história vivida na ditadura através do foco narrativo de um menino, Piñeyro evoca as crianças que viveram aquele período a contarem a sua versão da história. A resposta dessa geração, ao assumir a voz narrativa, provou que o olhar infantil não é ingênuo. Machuca, coproduzido por Chile, Espanha, Inglaterra e França, escrito a quatro mãos por: Andrés Wood, Eliseo Altunaga, Roberto Brodsky e Mamoun Hassan; conta a histórias da amizade, cheia de emoções e descobertas, de dois meninos de onze anos, Gonzalo Infante e Pedro Machuca em Santiago, Chile. Eles se conhecem em 1973 alguns meses antes do golpe que derrubaria Allende. De classes sociais diferentes; Infante vive em um bonito bairro de classe alta e Machuca em uma vila ilegal da periferia. A amizade entre eles nasce da ação do padre McEnroe, diretor de um colégio renomado e exclusivo, que decide admitir gratuitamente alunos de famílias pobres. Juntos, Infante e Machuca, experimentam o surgimento do desejo pelas meninas e conhecem o mundo das mentiras, traições e compromissos em que vivem os adultos e serão testemunhas da chegada da ditadura e de suas conseqüências. Wood recorreu às memórias do tempo de escola para construir sua narrativa. De classe média, ele estudou em uma escola particular renomada e participou de um programa de integração semelhante ao que apresenta em seu filme até que em 1973 seu colégio foi tomado pelos militares e os padres foram expulsos. Assim a escolha de Infante como foco narrativo revela a identificação entre o personagem e as memórias do cineasta. No entanto, Wood faz questão de dizer que seu filme está baseado en la memoria subjetiva, en el relato oral y también en libros, diarios y documentales (WOOD, 235


sd). Contando então os roteiristas com material advindo de pesquisas realizadas em arquivos e de entrevistas para escreverem sua história. Além disso, o filme apresenta imagens televisivas da época, de Allende e Pinochet, que são imbricadas à narrativa ficcional, sendo assistidas pelas personagens. O ano em que meus pais saíram de férias, roteiro escrito por Cao Hamburger, Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani e Anna Muylaert, se passa em 1970, quando os pais de Mauro, um garoto de doze anos, saem de férias de uma forma inesperada e abrupta. Militantes de esquerda, os pais do menino precisam fugir da perseguição militar e decidem deixá-lo com o avô paterno. No entanto, no mesmo dia que Mauro chega a São Paulo seu avô morre e ele acaba ficando aos cuidados de seu vizinho, Shlomo, um solitário senhor judeu. Enquanto espera por um contato dos pais, Mauro tem que aprender a lidar com uma nova realidade que combina momentos de tristeza, por sua situação, e de alegria, pelo desempenho da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970. A solidão vivida por Mauro ao ser afastado da família e ir viver com um “estrangeiro” é usada como uma metáfora do exílio vivido por aqueles que precisaram fugir do Brasil durante a ditadura. A relação antagônica entre o estado repressor de ditadura e o júbilo pela vitória da Copa de 1970 subjaz à narrativa na inocência de Mauro. Hamburger recorreu às suas memórias e a elementos pessoais para compor sua narrativa, assim como seu protagonista, ele gosta de futebol e jogava na posição de goleiro. Hamburger tinha oito anos quando seus pais, o casal de físicos, Ernst e Amélia Hamburger, desapareceram, ficando dias afastados da família. E, nesse período, ele e os irmãos ficaram aos cuidados das avós, uma judia e outra católica. Mas, apesar das similaridades, para o cineasta esse não é um filme autobiográfico. E embora seja uma obra de ficção, o filme utiliza imagens reais dos jogos do Brasil na Copa de 1970, as quais são assistidas pelos personagens, passando então a fazer parte do universo diegético da narrativa. El premio, escrito e dirigido por Paula Markovitch, coproduzido por México, França, Alemanha e Polônia, conta a história de Ceci, uma menina de sete anos que durante a ditadura vive com a mãe em uma casa defronte ao mar em San Clemente del Tuyú enquanto o pai mora em Buenos Aires. Elas estão vivendo quase na clandestinidade e por temor à repressão militar a menina precisa manter segredos. Para proteger a vida de sua família, ela não pode repetir na escola o que escuta em casa e nem revelar a ninguém sua verdadeira identidade. Os problemas aparecem quando Ceci começa a questionar-se a respeito do que está ocultando e do que deve ou não dizer. O filme trata ainda da relação estabelecida na época entre a escola e o regime militar: livros são enterrados na praia e professoras argumentam em favor da delação. O título do filme se refere ao prêmio recebido por Ceci em um concurso escolar para propagandas do regime militar. Assim como em O ano em que meus pais saíram de férias novamente estamos diante de uma criança “exilada” por conta da ditadura. El premio nasceu das memórias de infância de Markovitch que, assim como sua protagonistas, viveu sua infância em uma casa defronte ao mar em San Clemente del Tuyú, freqüentou a mesma escola que mostra no filme e muitas das situações apresentadas na narrativa foram vividas por ela. Além disso, assim como sua protagonista, Markovitch viveu vários períodos de angustiante ausência paterna. Uma vez que seus pais eram artistas e ativistas políticos e ajudaram a muitos clandestinos. Andrés no quiere dormir la siesta é uma produção independente e foi escrita e dirigida por Daniel Bustamante. A trama transcorre na cidade argentina de Santa Fé em 1977. Andrés e seu irmão vivem com a mãe, que ninguém sabe ser uma militante política, seus pais estão separados e a relação entre eles não é boa. Com a morte repentina da mãe, os meninos vão morar com o pai e a avó, Dona Olga. A vida no bairro é tranqüila apenas na superfície, pois em uma casa vizinha ao lugar onde os meninos jogam bola funciona um centro clandestino de detenção, um segredo que todos conhecem, mas sobre o qual não se fala. A relação entre o pai e os meninos é rígida, mas é entre Andrés e sua avó que se estabelece uma guerra pelo poder. O clima opressivo dos anos de chumbo está por todos os lados, da sala de aula à mesa de jantar. E no transcorrer de um ano, em que Andrés acaba vendo o que não devia ser visto, ele se torna um menino perverso. Justamente, assim como seu protagonista, é santafesino e era menino durante os anos da ditadura, ele recorre as suas memórias daquela época e daquele lugar para construir o universo infantil de Andrés e seus amigos. A inspiração para o roteiro, no entanto, nasceu de um documentário assistido pelo cineasta, em que uma ex-prisioneira de um centro de detenção em Santa Fé contou que diferenciava o dia da noite através dos sons das crianças em uma escola próxima a seu lugar de detenção, justamente a escola que ele freqüentara na época. Ao dar-se conta da proximidade que estivera do terror da ditadura durante a sua infância, Bustamante “imagina” filmicamente como seria se uma das crianças que estavam por ali se interasse do que estava acontecendo, criando uma memória imaginada possível da própria infância. Assim como em Machuca, em Andrés no quiere dormir la siesta as memórias infantis são recriadas e ressignificadas a partir de conhecimentos e entendimentos que o cineasta obtém na vida adulta. Infância clandestina, coprodução Argentina, Brasil e Espanha, foi escrito por Benjamín Ávila em parceria com o brasileiro Marcelo Müller e produzido por Luis Puenso (diretor de A história oficial). O filme conta a história de Juan, um menino de doze anos, que, após um exílio em Cuba, regressa com sua família para a Argentina em 1979. O país ainda vive a mesma ditadura militar que os obrigou a 236


partirem. Juan testemunha a luta e os debates ideológicos de seus pais, mas tenta levar uma vida normal apesar de precisar viver sob uma falsa identidade, com o novo nome que escolheu: Hernesto (em homenagem a Che Guevara). Juan/Hernesto tem como aliado o tio Beto que entende que os ideais e a luta não devem suplantar os prazeres da vida. Mas a dupla vida do menino se complica quando ele se apaixonando por uma colega de escola. E após a morte de seu tio em combate, ele decide abandonar a família para viver seu amor infantil. Mas após a fuga frustrada, ele regressa para sua família que nesse ponto já está sob a vigilância dos militares que acabam invadindo a casa. Ele e a irmã menor são separados da família, mas, enquanto Juan/Hernesto é interrogado e torturado psicologicamente para posteriormente ser deixado em frente à porta da casa de sua avó, o paradeiro da irmã é desconhecido. Apesar de Infância Clandestina, conforme afirmar Ávila, não ser autobiográfico, é, assim como El premio, uma história que apresenta muitos elementos literais da infância do diretor. Filho de uma militante dos Montoneros, cujo parceiro era um dos líderes da organização, Ávila viveu um período no exílio com a família e, após o regresso à Argentina, teve de conviver com o desaparecimento da mãe e do irmão menor, que tinha então nove meses, em 1979. Seu irmão foi recuperado em 1984, sendo um dos primeiros netos a ser restituído pelas Abuelas de La Plaza de Mayo. Seu primeiro trabalho, o documentário Nietos (identidad y Memoria) – 2004, conta justamente histórias de crianças que foram retiradas de seus pais militantes para serem criadas por outras famílias, mas que posteriormente foram restituídas às suas famílias e às suas identidades. Ávila reconstrói as próprias memórias da infância na intimidade dos Motoneros, em um jogo entre realidade e ficção, mas sem se abster de um comprometimento histórico, como ele declara: No fue fácil enfrentarme a mi propia vida, a mis propios fantasmas, a mis propias obligaciones históricas, etcétera (ÁVILA in: RANZANI, 20/05, 2012). Infância Clandestina difere de seus predecessores por ser uma obra que, apesar de ser contada através do foco narrativo de uma criança (Juan/Ernesto), é politicamente engajada. Também é diferente ao escolher usar a animação para construir o foco narrativo de Juan/Ernesto em relação às cenas de violência, que se tornam menos terríveis, mas não menos dramáticas. A animação é a forma encontrada para representar o absurdo que a violência insere no universo infantil, instaurando outro tempo/espaço narrativo no interior do filme. Esse artifício narrativo é um dos aspectos mais efetivos da obra pela maneira com imbrica a forma e o conteúdo, criando uma cena em que a dramaticidade é traduzida pelo e para o olhar infantil. Além disso, a escolha pela animação revela a interferência do presente sobre a narrativa do passado, na escolha por artifícios (tecnológicos e narrativos) contemporâneos. Justamente o inverso do que faz Larraín em No, que no afã de reproduzir a definição (de baixa qualidade) da televisão dos anos 1980, utiliza a mesma tecnologia imagética da época, o que, no entanto, é igualmente uma marca do presente. História, memória e ficção: a metaficção historiográfica Ao serem obras realizadas por cineastas que eram criança durante as ditaduras latinoamericanas e que recorrem a memórias (pessoais e/ou coletivas) para confeccionar seus enredos, esses filmes se aproximam da chamada literatura de testemunho; a qual está arraigada à memória e geralmente narra uma experiência-limite vivida no passado para um leitor no presente. Além disso, ao realizarem pesquisas e entrevistas para a escritura de seus roteiros esses artistas trazem para suas narrativas outras memórias, midiáticas e pessoais, que transformam a suas obras também em testemunho daquela época. No entanto, nem mesmo as obras que trazem mais literalmente as memórias pessoais de seus realizadores, como Infância clandestina e El premio, podem ser consideradas autobiográficas, pois como bem observa Markovitch: cualquier relato es ficticio, ya que, (incluso los recuerdos que aparecen sólo en nuestra mente), reflejan una idea distorsionada de lo que pasó realmente (MARKOVITCH, 19/09/2011). Havendo para a cineasta um paralelo entre a memória e a ficção, idéia que parece ser compartilhada por Larraín: Yo siento que la memoria, en general, es mucho más desordenada y caótica, y que los recuerdos se van organizando a partir de cómo uno quiere que sea el presente. O cómo uno quiere que se recuerde eso. Tal vez ahí está lo que produce fricción entre mi trabajo y algunas personas (LARRAÍN, 20/01/2013).

Realidade e ficção, memória e esquecimento, fala e silêncio articulam-se na construção dessas narrativas, que buscam rearticular esse passado traumático, mostrando que a memória está sempre na articulação entre a lembrança, o esquecimento e a imaginação. E que o passado, como declara Paul Ricoeur (2008), é uma construção narrativa na qual também participa o trabalho da imaginação. Já ao trazerem o fato histórico, a ditadura, para a narrativa ficcional, esses cineastas transpõem para o contexto fílmico a estrutura do romance histórico, o qual, conforme Michel Vanoosthuyse (1996), é um gênero híbrido por articular a ficção, do romance, com o verídico, do discurso histórico. No entanto, eles não apenas ambientam suas narrativas no período das ditaduras, eles propõem a releitura desse 237


momento, recontando a história por novos pontos de vista. E ao proporem essas releituras do passado e das memórias eles confluem com a produção literária pós-moderna latino-americana, que, conforme Carlos Rincón (1995), está alicerçada na metaficção, na intertextuadalide e na reescritura da história. Desta forma, esses cineastas realizam em linguagem cinematográfica o mesmo processo narrativo do romance histórico pós-moderno ou, como Linda Hutcheon (1991) prefere denominar, da “metaficção historiográfica”: que ao incorporar os domínios da literatura, da história e da teoria, traz uma autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas, que passa a ser base para o repensar e a reelaboração das formas e dos conteúdos do passado. A “metaficção historiográfica” reconhece os limites entre literatura e história para em seguida desafiá-los: “estabelece a ordem totalizante, só para contestá-la, com sua provisoriedade, sua intertextualidade e, muitas vezes, sua fragmentação radicais” (HUTCHEON, 1991, p. 155). Para Linda Hutcheon: “reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico” (HUTCHEON, 1991, p. 147). No contexto cinematográfico diríamos então que a metaficção historiográfica incorpora os domínios do cinema (ficção), da história (documentário) e da teoria, compreendendo que tanto a história quanto a ficção são criações humanas, que atuam no repensar e na reelaboração das formas e dos conteúdos do passado. A metaficção historiográfica no cinema questiona então os limites entre a realidade e a ficção, entre o documental e o ficcional; se nutre de outras narrativas (cinematográficas, midiáticas, literárias e musicais) através da intertextualidade; experimenta novos focos narrativos e novas linguagens; e é auto-reflexiva. O que faz com que esse cinema seja, simultaneamente, fictício, histórico e discursivo. Ao se apropria de imagens de arquivo da televisão da época (“imagens reais”), como em Machuca, Tony Manero, O ano em que meus pais saíram de férias e No, esses filmes infringem o limite entre o ficcional e o documental, entre a realidade e a ficção, conferindo credibilidade às narrativas. Pois, como diz José Carlos Avellar: “os fragmentos de cinejornais colados na ponta de ficção, ajudam mesmo é a levar o espectador a aceitar a ficção como se ela fosse também um registro do real” (AVELLAR, 1982, p. 57). Essas imagens de arquivo do passado, que estavam mortas e congeladas em seu tempo, ganham vida na narrativa ficcional, que as resignificam para recontar a história no presente. Em um processo que vai ao encontro da noção de arquivo, proposta por Jacques Derrida, como um material que por organizar e conter itens do passado "deveria por em questão a chegada do futuro" (DERRIDA, 2001, p.48), ou seja, rearticular o passado no presente para o futuro. Esses filmes rearticulam também os imaginários referentes à ditadura construídos midiaticamente como, por exemplo, as memórias de outras produções cinematográficas, com as quais dialogam. Isso fica evidente no comentário de Ávila acerca da relação de seu filme com o filme de Puenso, pois estando ambos diegeticamente no mesmo período, a irmã menor de Juan levada pelos militares no final de Infância Clandestina poderia ser Gaby, a menina adotada por Alícia e Roberto em A história oficial, que se descobre ser possivelmente a filha de prisioneiros políticos executados. Inversamente à cronologia da realização das obras, Infância Clandestina seria então o prelúdio do filme de Puenso. Essa construção metaficcional se revela também na referência a outras obras cinematográficas levada ao extremo em Tony Manero, na auto-reflexão sobre o fazer midiático apresentada em No, bem como no imbricamento de diferentes linguagens realizado em Infância Clandestina. E, em concordância a Jean François Lyotard (1993) que vê a condição pós-moderna como a representação da desconfiança frente as narrativas-mestras, a cena da autópsia de Allende, em Post Mortem, desconstrói a versão oficial sobre sua morte. De maneiras variadas, confluentes ou dissonantes, as narrativas fílmicas aqui analisadas provocam o questionamento sobre o passado histórico ditatorial da região a partir do passado e através da (meta)ficção. E quando os países Latino-americanos se unem em coproduções para contar essas histórias imbricam-se não apenas incentivos econômicos, mas também memórias, em uma integração que, ao inverso da Operação Condor, propõe o desvelamento das ditaduras. E filmes como Tony Manero e Infância Clandestina, ao terem o Brasil como coprodutor são considerados também filmes brasileiros, condição que lhes é conferida quando agraciados pelos editais, passando então a receberem tratamento igual às demais obras nacionais e chegando assim às salas de cinema brasileiras. Dentre as produções aqui apresentadas, apenas duas não são coproduções internacionais: O ano em que meus pais saíram de casa e Andrés no quiere dormir la siesta; o primeiro realizado graças ao trabalho conjunto de três produtoras brasileiras, tendo a Globo Filmes como coprodutora, e o segundo realizado de forma independente por duas produtoras argentinas. Realizados por cineastas/roteiristas que viveram a infância durante a ditadura, esses filmes revelam um desejo de compreender o passado nebuloso que assombra ou paira sobre suas memórias de infância, oferecendo novos olhares sobre um tema que, apesar de já recorrente nas cinematografias Latino-americanas, eles provam que necessita ser revisitado por outras perspectivas. E ao reapresentarem e ressignificarem o passado a partir de suas memórias, de suas experiências e de seus intertextos, eles reelaboraram no âmbito fílmico discursos incompletos ou silenciados a respeito das 238


ditaduras latino-americanas. E, mais que isso, sugerem que cada época fará a sua revisão desse passado, buscando responder os seus próprios questionamentos. Esses filmes participam então na composição das memórias e das identidades da maioria de seus espectadores, que não viveram as ditaduras, incidindo ainda sobre o imaginário referente à própria nação. Cientes do poder do cinema e de seus filmes na rearticulação das memórias nacionais, esses cineastas não vêm explicar ou responder, mas sim questionar e problematizar, convocando a um constante repensar sobre esse período histórico. Em um momento em que ainda lutamos pela abertura dos arquivos da ditadura, a busca das produções cinematográficas pela reinterpretação do passado dá voz e força a essa resistência frente ao desejo do poder de fechar o extenso e dramático capítulo do terrorismo imposto pelas ditaduras militares na América Latina. Assim sendo, esses filmes têm muito mais a ver como o presente do que com o passado, pois ao representarem o passado, eles traduzem o presente.

Referências Bibliográficas: AVELLAR, José Carlos. Imagem e som, imagem e ação, imaginação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. HUTCHEON, L. Poética do pós-podernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. HUYSSEN, Andreas. “Pretéritos presentes: medios, política, amnésia”. In: Em busca del futuro perdido: cultura y memoria em tiempos de globalización. Fondo de Cultura Económica, Goethe Institut. México, 2002. PP. 13-40. LARRAÍN, Pablo. In: “Película Post Mortem relata romance durante golpe de estado en Chile” (entrevista). América Econômica. 05/09/2010. Disponível em: http://www.americaeconomia.com/politicasociedad/cultura-y-espectaculos/filme-post-mortem-relata-romance-durante-golpe-de-estado-en Acessado em 25 jan 2013. LARRAÍN, Pablo. In: CHERIN, Andrew. “Entendiendo a Pablo Larraín” (entrevista). Cultura. La tercera. Chile. 20/01/2013. Disponível em: http://www.latercera.com/noticia/cultura/2013/01/1453-504671-9entendiendo-a--pablo-larrain.shtml Acessado em 24 jan 2013. LARRAÍN, Pablo. In: Película chilena sobre el plebiscito de 1988 es aclamada en Cannes (Entrevista). Cultura. La tercera. Chile. 18/05/2012. Disponível em: http://www.latercera.com/noticia/cultura/ 2012/05/1453-461597-9-pelicula-chilena-sobre-el-plebiscito-de-1988-es-aclamada-en-cannes.shtml Acessado em: 24 jan. 2013. LYOTARD, Jean François. O Pós-Moderno. José Olímpio Editora: Rio de Janeiro, RJ, 1993. MARKOVITCH, Paula. In: Festival de Lima 2011: Entrevista a Paula Markovitch, directora de “El premio”. Cine Encuentro. Peru. 19/09/2011 Disponível em: http://www.cinencuentro.com/2011/08/19/festival-lima-2011-entrevista-paula-markovitch-el-premio/ Acessado em: 20 jan. 2013. MEDEIROS, Rosângela Fachel. : “A transculturação como estética dos Cinemas latino-americanos”. Imagofagia. Argentina, Nº 6, 2012. Disponível em: http://www.asaeca.org/imagofagia/sitio/index.php ?option=com_content&view=article&id=240%3Aa-transculturacao-como-estetica-dos-cinemas-latinoamericanos&catid=48&Itemid=132 Acessado em: 11 fev. 2013. _________. Cinemas latino-americanos: do Nacional ao Transnacional”. In: III Congresso Internacional do Núcleo de Estudos das Américas, 2012, Rio de Janeiro. Anais: NUCLEAS, 2012, CD ROM. _________.“Cinemas do Mercosul: políticas de incentivo, coproduções e identidade cultural”. Mouseion, Canoas, nº 13, 2012. Disponível em: http://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Mouse ion/article/view/687/757 Acessado em: 11 fev. 2013. RANZANI, Oscar. “Cannes Benjamin Ávila, diretor de Infância Clandestina”. Pagina 12. Argentina, 20/05/2012. Disponível em: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/2-25270-201205-20.html Acessado em: 26 jan. 2013. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Ed. Unicamp, 2008 RINCÓN, Carlos. La no simultaneidad de lo simultáneo: postmodernidad, globalización y culturas en América Latina. 2. ed. Bogotá: Editorial Universidad Nacional, 1995. VANOOSTHUYSE, M. Le Roman historique: Mann, Brecht, Döblin. Paris: Presses Universitaires de France, 1996. 239


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O malabarista, a farda e o nanquim: o governo Jango e golpe nas charges de Sampaulo publicadas no jornal Diário de Notícias em março e abril de 1964 Dante Guimaraens Guazzelli

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Resumo: Este artigo analisa as charges de Sampaulo publicadas no jornal portoalegrense Diário de Notícias em março e abril de 1964, buscando ver como foi retratado o fim do Governo de João Goulart e o início da Ditadura Civil-Militar. São apresentadas as formas como o artista retratou os grupos políticos envolvidos, dando especial atenção ao Golpe Civil-Militar e suas consequências. Além disso, este artigo pretende apontar as possibilidades que o estudo das charges pode trazer para o conhecimento histórico. Palavras-chave: Governo João Goulart – Golpe de 1964 – Ditadura Civil-Militar – Charges – Imprensa. Abstract: This paper analyzes the cartoons of sampaulo published in the newspaper of porto alegre diário de noticias in march and april 1964, showing how was presented the end of the government of joão goulart and early civil-military dictatorship. Forms are presented as the artist portrayed the political groups involved, paying particular attention to the Civil-Military Coup and its aftermath. Furthermore, this article points to the possibility that the study of the cartoons can bring historical knowledge. Keywords: government goulart – coup of 1964 – civil-military dictatorship – charges – press.

No dia 1º de abril de 1964, o centro de Porto Alegre encontrava-se em ebulição: diante da notícia de que havia um golpe de estado ocorrendo no país, grupos de partidários do Governo de João Goulart 2 decidiram tomar a frente e defender o governo legitimamente instituído. E já tinham um alvo em potencial: o governador Ildo Meneghetti: a massa rumava em direção ao Palácio Piratini, sede do governo estadual, com o intuito de depor Meneghetti. Frente a isso, o governador, que fazia parte da conspiração golpista, pôs a Polícia Civil e a Brigada Militar em prontidão e requisitou as emissoras de rádio e televisão da cidade. Essas medidas, ao mesmo tempo em que buscavam proteger Meneghetti da turba, tinham como objetivo evitar a reedição da Campanha da Legalidade. Para evitar o confronto, o prefeito da cidade, Sereno Chaise, que era do partido do presidente, PTB, clamou a população que aguardasse o desenlace dos acontecimentos em frente à Prefeitura. Com a possibilidade de embate entre os golpistas e os resistentes, o governador decidiu pôr em prática a Operação Farroupilha e 3 transferiu a sede do governo para a cidade de Passo Fundo. Em 25 de agosto de 1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, os ministros militares 4 vetaram a posse do vice, João Goulart, que estava em viagem oficial a China. Para garantir a posse, Brizola lançou a Campanha da Legalidade, mobilizou a população, principalmente através da chamada Rede da Legalidade, cadeia de emissoras de rádio que difundiu a resistência democrática por todo país. Após obter grande apoio popular, a Campanha da Legalidade foi vitoriosa, devido ao apoio dos militares, que seguiram a postura legalista do comandante do III Exército, o Gal. Machado Lopes. Ao desembarcar em Porto Alegre, no dia 1º de abril de 1964, Brizola reuniu-se com Sereno Chaise e o novo comandante do III Exército, Gal. Ladário Pereira Telles, com o objetivo de novamente transformar a capital gaúcha no bastião da democracia nacional. Esses acontecimentos foram a culminância da disputa que existia no Brasil entre dois projetos 5 políticos concorrentes. De um lado haviam os nacionalistas, formados por setores populares, movimento 1 2

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Doutorando em História/UFRGS. E-mail: dante.guimaraens@gmail.com PADRÓS, Enrique Serra; LAMEIRA, Rafael Fantinel. “Introdução – 1964: O Rio Grande do Sul no furacão”. In: In: PADRÓS, Enrique Serra ET all. A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985): História e Memória. Volume 1: Da Campanha d a Legalidade ao Golpe de 1964. Porto Alegre, Corag, 2009, pp. 33-50; WASSERMAN, Claudia. “O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, ‘celeiro’ do Brasil”. In: PADRÓS, Enrique Serra ET all. Op. cit. , pp. 51-70. ZARDO, Murilo Erpen. Operação farroupilha: a transferência do governo estadual do Rio Grande do Sul para Passo Fundo durante os dias do golpe civil-militar de 1964. Porto Alegre, UFRGS, 2010. Monografia de conclusão de curso de História FERREIRA, Jorge. A Legalidade Traída: os Dias Sombrios de Agosto e Setembro de 1961. Revista Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3, 1997. RODEGHERO, Carla Simone. Regime militar e oposição no Rio Grande do Sul. In: GERTZ, René (Org.). História Geral do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Méritos, vol. 4, 2007

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estudantil, movimento sindical, sem-terra, grupos progressistas das Forças Armadas e da Igreja, o PTB e o PCB, que buscavam diminuir as diferenças sociais, econômicas e culturais existentes na população brasileira. Já do outro lado, havia os conservadores, que eram os latifundiários, os grandes empresários, militares de direita, que eram liderados pela UDN e tinham como maior representante o jornalista e político Carlos Lacerda. Nos veículos de comunicação vemos os embates entre estes projetos. A maior parte da grande imprensa estava contra o projeto nacionalista, demonstrando seu comprometimento com os setores conservadores. Durante o Governo de Jango, os conservadores utilizavam manchetes e artigos nos grandes jornais para apresentar o presidente como alguém que subverteria a ordem legal e levaria o país ao caos e ao comunismo. No Rio Grande do Sul os jornais do grupo Caldas Junior, o Correio do Povo e a Folha da Tarde, e o representante gaúcho dos Diários Associados, o Diário de Noticias, eram os principais representantes disto: nas páginas destes periódicos vemos nos dias e meses que antecederam o golpe uma campanha de desmoralização tremenda. Do outro lado, estava o tabloide Última Hora, que pertencia a Samuel Weiman e estava afinado com o projeto e rumos que o governo estava tomando e a linha do jornal refletia isto. Desta forma, uma pessoa que passasse por uma banca de jornal durante o Governo Jango podia ver nas manchetes as mesmas palavras, mas que se referiam a grupos diferentes: enquanto que o Correio do Povo, a Folha da Tarde e o Diário de Noticias acusavam o governo de querer subverter a ordem legal, a Última Hora fazia as mesmas denúncias à oposição. No entanto, o que se percebe é que, se em agosto/setembro de 1961 os nacionalistas foram bem-sucedidos em impor suas imagens, em março/abril de 1964 foram os conservadores os vitoriosos na batalha dos símbolos. Pretendo, neste artigo, analisar como foi retratado este embate entre estes projetos nas charges do artista Sampaulo publicadas no jornal Diário de Notícias nos meses de março e abril de 1964. O material apresentado aqui é fruto da pesquisa Memória Visual da Ditadura no Rio Grande do Sul, projeto do Centro de Assessoria Multi-Profissional (CAMP) com financiamento da Comissão da Anistia do 6 Ministério da Justiça. Este projeto tem como objetivo a publicação de um livro com imagens produzidas no estado durante a ditadura civil-militar, acompanhadas de textos que sintetizam a produção acadêmica mais recente, que será distribuído na rede de ensino estadual. Assim, este projeto busca levar o conhecimento acadêmico mais recente sobre o período no estado para os professores, que poderão trabalhar em sala de aula estas questões partindo de imagens que mostram como foi representado este período por fotógrafos e artistas. Ao mesmo tempo, ao dar espaço para a produção dos chargistas gaúchos, salientamos a característica do Rio Grande do Sul como um “celeiro” de artistas gráficos: segundo o pesquisador Joaquim da Fonseca, há, no Rio Grande do Sul, mais artistas gráficos do que espaço para publicação de seus trabalhos, mostrando que o estado é um “celeiro” de cartunistas, 7 chargistas, quadrinistas, etc. Um dos um desses representantes é o chargista e cartunista Paulo Sampaio, que era conhecido como Sampaulo: ele nasceu em Uruguaiana-RS em 1939 e atuou entre 1954 até sua morte em 1999, em Porto Alegre. Ele, que iniciou na carreira a exemplo de seu irmão o cartunista Sampaio, trabalhou nos jornais Clarim, A Hora, Diário de Noticias, Folha da Tarde, Folha Esportiva, Correio do Povo, Folha da Manhã e Zero Hora, além de contribuir com revistas como a Revista do Globo. Lançou diversos livros, tanto individuais quanto coletivos. Sampaulo foi reconhecido internacionalmente, ganhando prêmios no Brasil e em outros países. As charges analisadas aqui foram pesquisadas das edições do Diário de Noticias, de março e abril de 1964, encontradas no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa e retratam o momento da crise e queda do governo de Joçao Goulart e a institucionalização da ditadura civil-militar. A expressão charge (que vem do francês charger, ou seja, carregar, exagerar) refere-se a uma representação pictórica de caráter burlesco e caricatural(...) em que se satiriza um fato específico , tal como uma idéia, um acontecimento, situação ou pessoa, em geral 8 de caráter político, que seja de conhecimento público. 6

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Este projeto não seria possível sem a disposição e ajuda de fotógrafos e artistas e seus familiares que abriram suas casas e seus acervos para os pesquisadores. Gostaria de agradecer, principalmente, a Maria Lucia Sampaio, sobrinha de Sampaulo, que fez tudo para contribuir com a pesquisa. Para mais informações sobre este acervo visitar sampaulocartunista.blogspot.com.br/ . FONSECA, Joaquim da. Caricatura – a imagem gráfica do humor. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999, p. 271. Idem, p. 26. A charge se distingue do cartum pelo caráter específico do acontecimento tratado: assim, o cartum trata de temas mais genéricos, atemporais, até “universais”. Uma distinção mais complexa é a da charge e da caricatura: segundo Joaquim da Fonseca, a caricatura é um termo que abarca a charge, o cartum, o desenho de humor, a tira cômica, a história em quadrinhos de humor e a caricatura pessoal. Por esta razão, alguns autores, como Rodrigo Patto Sá Motta, preferem se referir ao desenho de humor editorial como caricatura e não charge. Optei por utilizar o termo charge e não caricatura, pois penso que este termo acaba se referindo mais a obras que focam-se em personalidades, a chamada caricatura pessoal. Prefiro utilizar o termo charge, já que tratarei

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A charge tem como objetivo fustigar a sociedade: por esta razão muitas vezes existe uma relação tensa entre chargistas e os donos do poder. A charge pode ser uma arma contra aquele que está sendo retratado, ou melhor, satirizado. Isto se dá porque é uma expressão visual, podendo obter um efeito superior ao discurso verbal, fixando imagens na sociedade. A charge ajuda a traduzir os eventos, conflitos e grandes personagens políticos para a linguagem popular, tornando tais temas mais palatáveis para indivíduos iletrados e/ou socialmente excluídos. (...) Ela contribui para desmitificar e dessacralizar o poder, mostrando líderes e chefes de Estado como seres falíveis e, eventualmente, ridículos. Ao mesmo tempo, torna os assuntos políticos menos misteriosos e mais próximos do universo de 9 compreensão do povo.

Um exemplo disso é a Figura 1, publicada no Clarim, jornal vinculado ao PTB, durante a eleição para prefeito de Porto Alegre em 1955: ela mostra o então prefeito, Walter Peracchi Barcellos, mostrando pontos turísticos a seu candidato, Euclides Triches que havia se transferido recentemente a capital. Ao ser transformada em imagem, a ideia por traz dela, que Triches não conhecia a cidade que queria governar, ganhou força e, segundo alguns autores, mudou os rumos de uma eleição: a esta charge é 10 atribuída a vitória eleitoral de Brizola.

Figura 1 – Charge de Sampaulo publicada no Jornal Clarim, em 1955. Acervo de Maria Lucia Sampaio.

Desde o século XIX a charge tem importante papel dentro de um jornal, tomando a forma de um 11 editorial no qual o jornal expressa seu ponto de vista, ilustrando a posição política do jornal. Assim, as charges e caricaturas constituem documentos muito ricos para o conhecimento histórico, já que podem 12 ser vistas como crônica e interpretação, mostrando a visão que um grupo tem de um acontecimento. Isto serve para analisarmos as charges exibidas aqui: elas são de autoria de Sampaulo, mas dizem tanto sobre sua visão quanto sobre a visão que seu jornal, o Diário de Noticias, queria passar. O trabalho de Sampaulo foi, no início de sua carreira muito marcado pela política: ele – que era filho do desembargador João Pereira Sampaio, que concorreu ao governo do estado em 1954 pelo PSB, apoiado pelo PCB – surgiu publicando no periódico Clarim, vinculado a Brizola, e trabalhou no Comitê de Resistência, durante a Legalidade. Por outro lado, seu jornal havia assumido o projeto conservador. As charges que ele publicou durante este período podem ser vistas sobre este prisma da dualidade: ao mesmo tempo que atacam os conservadores, criticam posturas dos nacionalistas. Durante o ápice da disputa entre os dois projetos políticos são realizados grandes eventos, tanto por aqueles que apoiavam Jango, quanto pelos que queriam sua deposição: destacam-se entre as manifestações de apoio, os comícios de 9 de março em Porto Alegre e o de 13 de março na Central do Brasil; entre as da oposição, a Marcha da Família Com Deus pela Liberdade, resposta ao comício da Central, organizado em São Paulo em 19 de março.

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aqui de obras que tratam de situações e acontecimentos e não pessoas específicas. Além disso, penso que este termo é mais genérico, e, desta forma, de melhor utilização. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 18 FONSECA. Op. cit., p. 12. MOTTA, Op. cit, p. 19. Idem, p. 23.

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Figura 2: Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 13/3/1964

No dia do Comício da Central foi publicada no Diário de Notícias a Figura 2: nela vemos dois personagens representando o homem comum (o que fica claro através da linguagem coloquial utilizada) falando, com certo temor, do Comício que ocorreria naquele dia no Rio de Janeiro. É interessante ver a forma como o Comício da Central foi visto por Sampaulo: em sua charge ele brinca que a primeira reforma (já que a manifestação era em prol das reformas de base) deveria ser do dia em que se realizaria. Era uma sexta-feira 13, um dia mal assombrado. É digno de nota o fato de que outros dois eventos marcantes da história pregressa haviam ocorrido em épocas agourentas: tanto o suicídio de Getúlio Vargas quanto a tentativa de Golpe em 1961 deram-se no mês de agosto, um mês assombrado segundo crenças populares. Pode-se pensar que ao mencionar o mau-agouro que havia no dia, Sampaulo estava fazendo referência a estes eventos. Em março de 1964 a disputa entre os nacionalistas e os conservadores chega ao limite: os setores populares pressionavam o governo pelas reformas, enquanto os setores conservadores brandiam contra o governo e suas medidas que refletiam, para eles, o plano de implantação do comunismo no Brasil. Isto é evidenciado nas Figuras 3 e 4: na primeira vemos Jango acuado sentado em uma cadeira (representação da presidência da república), enquanto o “Congresso” afirma que está com vontade de fazer uma “desapropriaçãozinha”, isto é, retirar o presidente de seu lugar. Na forma como Jango é visto por Sampaulo são ressaltadas algumas características físicas, como sua calvície incipiente, seu nariz proeminente e seu rosto rechonchudo, além de ser apontado um certo retraimento, ou timidez: estes 13 elementos também foram utilizados por outros chargistas para retratar o político.

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MOTTA. Op. cit., pp. 43-4.

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Figura 3 – Charge de Sampaulo- Diário de Notícias 18/3/1964

Mas o que é mais claro na charge é a insatisfação do Congresso em relação ao presidente. Podemos ver aqui uma indicação do posicionamento dúbio que as charges de Sampaulo tinham neste momento: por um lado, ela apresenta que o todo o Congresso, ou seja, todos os representantes do povo brasileiro, estava contrário a Jango. Isto é uma distorção, já que, mesmo que fossem minoria, havia congressistas favoráveis a Jango e suas medidas reformistas enviadas no início do ano, como a reforma agrária mencionada na palavra “desapropriação”. Por outro lado, a forma como são retratados os dois personagens nos permite outra leitura: Jango, o vice-presidente eleito legitimamente, está intimidado por um “Congresso” que quer se impor: ele está sussurrando seus planos, o que denota uma conspiração. Já na Figura 4, é feita uma metáfora da situação política tomando como base os personagens de desenho animado, Frajola e Piu-piu: o Gato/Governo deseja matar o Pássaro/Constituição, que está no alto, protegido por uma gaiola. O que não está dito são as razões do governo: as mudanças que queria fazer na Constituição visavam permitir as reformas que buscava trazer ao país, as reformas de base, que eram as reformas urbana, política, econômica, agrária, de ensino, e sindical. Esta metáfora, que poderia ser compreendida até por uma criança, mostra uma forma como Jango era visto pela imprensa conservadora: ele seguia os passos de seu “mestre” Getúlio Vargas e queria implantar uma ditadura no Brasil. Ao utilizar esta metáfora, o artista faz ironia, já que Frajola, por mais elaborados que sejam seus planos, nunca consegue comer o Piu-piu: de acordo com a charge, a Constituição não era um alvo tão fácil como pensava o Governo.

Figura 4 – Charge de Sampaulo 24/3/1964

Já a Figura 5, publicada poucos dias antes do golpe, mostra o “malabarista” Jango tentando equilibrar diversos tijolos: estão representadas as refinarias de Ipiranga, Capuava e Manguinhos, além da destilaria Rio-Grandense, que eram particulares e haviam sido encampadas pelo governo federal. Além disso, Goulart tem em sua posse também outro tijolo chamado “Terras”, que se refere ao movimento que o governo estava fazendo no sentido de desapropriar terras para a Reforma Agrária. Estas medidas haviam sido tomadas e anunciadas no Comício da Central. Os próximos “malabares” a serem utilizados eram “Papel”, “TV” e “Rádio”: estes eram referências a intenção do Governo de 14 controlar o monopólio do papel. Segundo os temores da grande imprensa, Jango se utilizaria do monopólio do papel para reprimir e controlar a imprensa.

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Idem, pp. 152-3.

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Figura 5 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 25/3/1964

Desta forma, esta charge mostra que Jango buscava controlar todas as esferas da vida econômica e política em suas mãos, instalando assim uma ditadura totalitária. Por esta razão ele queria equilibrar também a “Propaganda”: se iniciaria no Brasil um regime que, assim como no Estado Novo, além de cercear a imprensa e a iniciativa privada, buscaria impor sua visão de mundo através de uma forte política de propaganda. Nesta charge, Sampaulo retrata Goulart como alguém que, ao mesmo tempo em que tem uma aparência simpática e agradável, aparentemente não sabe o que está fazendo: esta era uma visão muito difundida entre os chargistas da época, que viam o presidente “como político desastrado, que promovia eventos e alianças que fugiam ao seu controle, agindo como uma espécie de 15 aprendiz de feiticeiro”. A partir do dia 25 de março, com uma manifestação de marinheiros, a crise política vai crescendo em ritmo acelerado, especialmente a relação do presidente com os oficiais conservadores. Eles pressionavam cada vez mais o presidente para reprimir militares subalternos revoltosos; em reposta, Jango atacou os oficiais golpistas no dia 30 em uma reunião com 5 mil sargentos e suboficiais da Polícia Militar da Guanabara no Automóvel Clube. Este evento fortaleceu a união do grupo pró-reformas, mas aumentou o temor dos oficiais das Forças Armadas. Após este evento, em Minas Gerais o comandante do IV Exército, General Olympio Mourão Filho, com o apoio do governador Magalhães Pinto, insurgiu-se contra o governo estabelecido em 31 de março, recebendo apoio de outros conspiradores, como os governadores de São Paulo, Adhemar de Barros, e da Guanabara, Carlos Lacerda, o que levou a tomada do poder em um golpe de estado no dia 1º de abril. Após o Golpe, o presidente deposto viajou a Porto Alegre na madrugada do dia 1º para o dia 2, sendo recebido por uma parcela da população de Porto Alegre, formada tanto por civis quanto por militares, que estava disposta a resistir ao Golpe. Apesar destas mobilizações, Jango chegou a Porto Alegre decidido a não provocar derramamento de sangue; no final da manhã do mesmo dia, Jango decidiu ir para o exílio no Uruguai, recusando-se a distribuir armas para a população e ampliar a resistência. Ele nunca mais voltou com vida ao seu país. Os acontecimentos ocorridos imediatamente após o Golpe Civil-Militar são retratados nas Figuras 6 e 7. Na primeira vemos Jango e Brizola, que também buscou exílio no Uruguai, saindo do Prédio/Brasil vestindo somente um barril: eles haviam perdido suas roupas em um jogo, possivelmente pôquer. Jango fala para o cunhado que não era possível blefar (“passar o cachorro”) duas vezes na mesma mesa. A situação é vista sob a metáfora do jogo: a crise política é vista como um pôquer, em que os golpistas e os governistas estavam disputando o Brasil, sendo que o primeiro blefe seria a Campanha da Legalidade e o segundo a tentativa de resistência em 1964.

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Idem, p. 56.

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Figura 6 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 7/4/1964

É digno de nota a forma como são representados os políticos: enquanto Jango está entre a constrangimento e a conformação, Brizola está irritado. Sampaulo apresenta o político de forma similar a outros artistas do país: é ressaltado seu “perfil radical, que transparece na composição das feições, 16 quase sempre agressivas(...)”. Assim, enquanto um cunhado é mostrado como passivo e conformado, o outro é radical e indignado.

Figura 7 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 8/4/1964

Imediatamente após o Golpe ser bem-sucedido, inicia-se a repressão: em Porto Alegre os primeiros alvos são os civis que encontravam-se em frente à prefeitura dispostos a resistir e que, já na tarde do dia 2, foram brutalmente reprimidos pelos golpistas. Posteriormente, são expedidos mandados de prisões a diversos líderes da resistência, tanto civis quanto militares, em especial o prefeito Sereno Chaise, que não havia ido imediatamente para o exílio. Isto é retratado na charge de Sampaulo do dia 8 de abril (Figura 7), que mostra Sereno Chaise representando a expressão popular “ficou agarrado no pincel”: ele cai após duas figuras (possivelmente Jango e Brizola) levarem sua escada. A mensagem da charge é clara, já que ele é o único entre os líderes nacionalistas que é preso nos dias seguintes ao Golpe. No dia seguinte foi baixado o Ato Institucional que representou “a necessidade de 17 institucionalizar um novo aparato que apoiasse a ‘revolução’”. Este aparato, que permitiu a Operação Limpeza, dizia respeito a medidas punitivas aos apoiadores do regime anterior: ele “visava a erradicar 16 17

Idem, p. 37. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru: EDUSC, 2005, p.65.

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ameaças potenciais a algo que era definido como segurança nacional”. Além disso, fortalecia o poder do Executivo, em detrimento do legislativo. Com este dipositivo, foi ampliada a repressão, que se deu através de prisões e expurgos.

Figura 8 – Charge de Sampaulo – Diário de Noticias 18/4/1964

É esta situação que é descrita na charge do dia 18 de abril: um homem está a comemorar o fato de não estar presente na lista das pessoas presas pela Ditadura em função de vinculação com o governo deposto. Ainda há a menção a outra lista, a dos novos ministros. Pode-se dizer que o artista retrata os primeiros dias do novo regime como um dia do juízo final: algumas pessoas eram abençoadas com o paraíso (uma participação no novo governo) ou amaldiçoadas ao inferno (sendo encarceradas e reprimidas). Neste momento também se iniciam os expurgos, através dos quais a ditadura afastou todos aqueles que tinham relação com o governo anterior. Foram instauradas comissões de expurgos em órgãos dos governos federal, estadual e municipal e além de empresas estatais e de economia mista. Após o expurgo, a pessoa via-se privada de sua fonte de renda, sendo obrigada a modificar radicalmente seus planos de vida.

Figura 9 – Charge de Sampaulo – Diário de Notícias 23-4-1964

Este foi o caso dos expurgados da Brigada Militar, já que havia muitos apoiadores do governo Jango nesta instituição. Isso é mostrado na Figura 9: nesta charge Sampaulo mostra alguns brigadianos saindo do Prédio/Brigada Militar sob as ordens do Oficial/Ato Institucional. O que chama a atenção na imagem é a agressividade do “Oficial”, que se impõe aos brigadianos, que estão com ar triste e desesperançoso. Assim, analisamos a forma como os acontecimentos políticos de março e abril de 1964 foram 18

PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 117.

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retratados pelo chargista Sampaulo: da mesma forma que criticava os nacionalistas, ele atacava os conservadores. As imagens escolhidas aqui foram as que sintetizaram melhor esta postura dúbia do artista. O que ficou esboçado aqui é que, com a institucionalização da ditadura civil-militar este artista vai produzir mais obras que apontam as arbitrariedades do novo regime. Ao mesmo tempo, ficou clara a grande contribuição que a charge pode trazer ao conhecimento histórico: através de um desenho podemos ver a forma como um indivíduo ou grupo posicionou-se frente a um acontecimento. Fontes pesquisadas Edições do Jornal Diário de Noticias de Porto Alegre, de março e abril de 1964 . Setor de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. http://sampaulocartunista.blogspot.com.br/

Referências Bibliográficas: ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru: EDUSC, 2005. FERREIRA, Jorge. A Legalidade Traída: os Dias Sombrios de Agosto e Setembro de 1961. In: Revista Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3, 1997. FONSECA, Joaquim da. Caricatura – a imagem gráfica do humor. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 18 PADRÓS, Enrique Serra; LAMEIRA, Rafael Fantinel. “Introdução – 1964: O Rio Grande do Sul no furacão”. In: PADRÓS, Enrique Serra ET all. A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985): História e Memória. Volume 1: Da Campanha d a Legalidade ao Golpe de 1964. Porto Alegre, Corag, 2009. PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 117. RODEGHERO, Carla Simone. “Regime militar e oposição no Rio Grande do Sul”. In: GERTZ, René (Org.). História Geral do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Méritos, vol. 4, 2007. WASSERMAN, Claudia. “O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, ‘celeiro’ do Brasil”. In: PADRÓS, Enrique Serra ET all A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985): História e Memória. Volume 1: Da Campanha d a Legalidade ao Golpe de 1964. Porto Alegre, Corag, 2009. ZARDO, Murilo Erpen. Operação farroupilha: a transferência do governo estadual do Rio Grande do Sul para Passo Fundo durante os dias do golpe civil-militar de 1964. Porto Alegre, UFRGS, 2010. Monografia de conclusão de curso de História.

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VII – Ditaduras em arquivo: documentos da repressão e da resistência



Análise do Processo Descritivo Como Produção de Conhecimento Arquivístico: o caso das oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos na ditadura militar. Anna Luiza de Moura Saldanha

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Resumo: O presente artigo visa demonstrar a forma como os processos descritivos amplos e contextualizados historicamente servem como ponto de produção de conhecimento arquivístico, demonstrando o papel de pesquisador do arquivista nos acervos documentais, através da análise da descrição feita nas unidades documentais “oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos”, constantes na série 3 – terrorismo de estado nas ditaduras do cone sul, do fundo documental movimento de justiça e direitos humanos. Palavras-chave: Descrição Arquivística – Movimento de Justiça e Direitos Humanos - Ditaduras do Cone Sul Abstract: The present article aims to demonstrate how the processes descriptive contextualized historically serve as a point of producing archival knowledge, demonstrating the role of the archivist as researcher on documentary collections, by examining the description given in units documentary "hearings of family of uruguayans disappeared" appearing in the series 3 – state terrorism in the southern cone dictatorships, the fund documentary movement for justice and human rights. Keywords: Archival Description – Movement for Justice and Human Rights dictatorships

Southern Cone

Introdução Os regimes militares na América Latina produziram diversos documentos que identificavam os cidadãos contrários ao sistema que vigorava. Além disso, estratégias de ação como capturas, torturas e desaparecimentos de opositores geraram uma infinidade de registros escritos que atualmente se transformam nas principais provas das violações cometidas pelo próprio Estado. De suma importância, o acervo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos possui grande funcionalidade para a história da humanidade, por ser detentor de fontes que contém retratos da luta, resistência e resgate dos Direitos Humanos. O arquivo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos se constitui por um acervo que possui como fundo documental esse mesmo nome. Dentro deste fundo existem 6 séries, com suas subséries, que retratam sua história de luta, resistência, resgate e respeito aos direitos fundamentais do homem, revelando a história da repressão militar no Rio Grande do Sul, no Brasil e na América Latina – identificando personagens e redes de solidariedade na luta contra a ditadura. A problemática que se definirá ao longo do trabalho é a forma como os processos descritivos amplos e contextualizados historicamente servem como ponto de produção de conhecimento arquivístico, demonstrando o papel de pesquisador do arquivista no acervo, a partir da análise do processo de descrição dos itens documentais “Oitivas de Familiares de Uruguaios Desaparecidos” que se encontram arquivados na série Terrorismo de Estado no Período da Ditadura no Cone Sul do Fundo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Descrição arquivística e representação informacional A descrição arquivística é uma das tarefas primordiais no tratamento dos acervos, visando garantir o acesso às informações contidas nos documentos. Antônia Heredia (1997, p. 299) defende que a descrição: “[…] es el analisis realizado por el archivero sobre los fondos y los documentos de archivo agrupados natural o artificialmente, a fin de sintetizar y condensar la información en ellos contenida para oferecerla a los interesados.” Para ela, a análise aplicada aos documentos de arquivo devem ser feitas com subjetividade, e que os arquivistas devem se limitar a representar os documentos, condensando ou substituindo o mais fiel possível as informações de um documento. Em seguida, ela diz que a descrição deve ser: 1

Arquivista e historiadora. Telefone para contato: 51-99007717. Cursando especialização em Gestão em Arquivos EAD pela UFSM/UAB

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Exacta: en cuanto que os documentos no son algo impreciso, sino testimonios únicos y concretos. Suficiente: par la unidad que se está informando (archivo, fondo, serie o documento), sin ofrecer más de lo necesario, por exceso o por defecto, Oportuna: en cuanto que ha de reflejar una programación que marque una jerarquía de la información. (HEREDIA, 1997, p.301).

Dessa forma, a autora acredita que a descrição arquivística pode facilitar o controle do arquivista e dar informação aos demais (usuários). Ainda, Heredia (1997) fala que a obtenção dos dados da descrição pelo arquivista não é uma “explotação” das informações dos documentos em benefício próprio, como pode ser a atividade de um historiador, e sim, que este trabalho é encaminhado a “dar a conhecer” a informação indispensável a quem a solicite. Na abordagem pós-custodial ou funcional desenvolvida pelos canadenses, os princípios arquivísticos são reformulados de acordo com os novos paradigmas da sociedade contemporânea. Dessa forma, o princípio da proveniência dos documentos é visto por essa corrente não mais baseado na estrutura física dos documentos e da instituição que os criou, mas sim, no contexto de produção, na herança documental e no valor social da informação (TOGNOLI e GUIMARÃES, 2010). Como conseqüência desta reformulação, os conceitos de arranjo e descrição são desenvolvidos mais dentro de um entendimento contextual das relações do documento, do que na entidade física documental. (2012, p.30). Para Cook (apud TOGNOLI, 2012, p.30): A descrição pós-moderna refletiria as pesquisas contextuais sustentadas pelosarquivistas na história dos documentos e de seus criadores, e produzira descrições em constante-mudança, uma vez que a criação dos documentos e a própria história custodial nunca termina. A descrição é continuamente reinventada, reconstruída, renascida. Adescrição pós-moderna, focando-se dessa maneira na história do documento, refletiria uma maior nuance no contexto, o que abriria uma riqueza de conteúdo informacional. (COOK, 2007a, p.34)

Para que se garanta amplo acesso, na visão pós-custodial, a descrição é feita através de uma metodologia escolhida pelo arquivista com base nas políticas que envolvem o arquivo, o contexto no qual os documentos foram criados e as atividades a que eles serviram. 2 Sobre o conceito de representação, ainda Hagen (1998, p. 3) faz considerações citando Cook : A descrição tem como base a teoria da representação: “a teoria da representação é a de que enquanto os arquivos originais devem ser necessariamente armazenados na estante numa determinada ordem e localização física (normalmente em embalagens fechadas), as representações dos originais podem ser multiplicadas e armazenadas em qualquer ordem e em qualquer lugar que seja considerado útil.

Hagen (1998) analisa as características da teoria da representação que os originais não tem, dizendo que são duas: a primeira é que podem ser distribuídas para fora do arquivo, podendo se tornar públicas de forma impressa ou pelo suporte digital, para atender os usuários; a segunda é que elas podem ser organizadas internamente para facilitar a busca de informações pelos usuários. O processo descritivo no acervo do MJDH – O quadro de arranjo, as séries documentais e a reconstrução do contexto arquivístico A preocupação em dar acesso aos documentos de um acervo é uma função primordial dos arquivistas. Sendo assim, seu trabalho na organização dos arquivos – o arranjo e a descrição – pressupõe a compreensão da origem dos documentos, de quem foram seus produtores, suas funções sociais e o papel que ocuparam perante a sociedade. Dessa forma, o arquivista, em seu trabalho de pesquisa, produz conhecimento ao iniciar um programa descritivo com metodologia própria da Arquivologia, objetivando difundir acervo que está organizando. Os documentos de organizações de direitos humanos foram os testemunhos da atuação repressiva do Estado e a prova da existência de mortos, desaparecidos, perseguidos ou torturados por ordem deste. Posteriormente, foram constituídos como acervos, não perdendo o seu papel de denúncia, agregando em sua valoração a construção e preservação da memória da luta contra a ditadura e sistemas repressivos. Estes acervos foram tema de debate durante o Fórum Social Mundial de 2005. A partir daí, surge 2

COOK, Michael. Information Manegement and archival data. London: Library Association Publishing, 1993, apud HAGEN, 1998, p.3.

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uma ação da Archiveros Sin Fronteras, aqui Arquivistas Sem Fronteiras, de formar grupos de trabalho para localizar e intervir em acervos da luta contra a ditadura civil-militar no Cone Sul. No Rio Grande do Sul, sob a coordenação do arquivista Jorge Enriquez Vivar, em conjunto com a pró-reitoria de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é montado um grupo de trabalho para recuperar o acervo do MJDH. Segundo o arquivista Jorge Vivar, em entrevista cedida para este trabalho, encontravam-se misturados documentos sobre a Operação Condor no Brasil, informes da polícia de inteligência de Buenos Aires, documentos simbólicos sobre tortura, prisão e perseguição de lideranças políticas, sindicais, estudantis e sociais, entre vários outros. É recorrente compreender os conceitos arquivísticos dentro do trabalho de organização de um acervo, pois para que se chegue à atividade descritiva é necessário percorrer um longo caminho de análise e entendimento dos documentos, as relações deles entre si, com sua origem e seus produtores e a pertinência com as atividades e funções da instituição que os abriga. Assim, o arquivista determina o tipo de acervo a ser organizado, e inicia o processo de organização e conhecimento do acervo, aplicando a metodologia própria da arquivística, através dos seus principais conceitos. O quadro de arranjo do MJDH foi construído sob a concepção de que um arquivista não deve ser neutro ou imparcial ao aplicar a teoria arquivística em seu trabalho. Segundo o arquivista Jorge Vivar, ao falar sobre a Série 3 “Terrorismo de Estado no período da Ditadura no Cone Sul”, diz que a reflexão na elaboração do quadro de arranjo da instituição foi feita a partir dessa perspectiva. Para ele: Havia uma outra discussão na arquivística sobre a neutralidade, a imparcialidade do arquivista..não existe isso né...todos nós, seres humanos, temos, a ver, isso que se chama ideologia também, todos nós temos...princípios, temos ideais, temos éticas, e elas estão associadas àquilo que nós pensamos, do ser humano, da vida e da sociedade. Então não existe isso de uma arquivista ser um neutro, um profissional imparcial. (VIVAR, 2012)

Para Cook e Schwartz (2004): “[...] os arquivistas são artífices da política de identidade” (p.26) e, com isso, exercem poder sobre a construção do conhecimento histórico e sobre como nos conhecemos como indivíduos, grupos e sociedades. Dado o fato de o acervo ser constituído por uma instituição que combate as violações aos direitos humanos, seu quadro de arranjo reflete sua política e visão de mundo. A série 1 – organização e funcionamento – como toda instituição contem documentos sobre a fundação do MJDH, o regimento e estatuto, bem como documentação administrativa, fiscal e de recursos humanos. A série 2 – Promoção e intervenção na defesa dos direitos humanos – é constituída por subséries que abarcam documentos sobre a defesa das violações cometidos pelo poder público no período democrático da história do país e do mundo. As subséries são denominadas a partir das intervenções feitas pelo MJDH na saúde e segurança pública, nas questões agrárias e de moradia urbana – com grande participação no nascimento do Movimento dos Sem-Terra -, questões de xenofobia e discriminação social, as parcerias feitas entre o MJDH e organizações internacionais, como a UITA, e a subsérie que demonstra as ações feitas pela instituição na educação pelos Direitos Humanos. A série 3 – Terrorismo de Estado no período da Ditadura no Cone Sul – que dentro do quadro de arranjo, pode ser visualizada no anexo A deste trabalho, aborda as intervenções feitas pelo Movimento entre 1964 e 1984, desde sua clandestinidade na luta contra os órgãos repressores na América Latina. Contém documentos que denunciam torturas, prisões arbitrárias, desaparecimento de pessoas, além do auxílio dado aos refugiados e às famílias de mortos e desaparecidos políticos. A série 4 – Transição política no Cone Sul – que trata das questões de abertura democrática e de como ela foi promovida nos países latino-americanos que sofreram o golpe militar. Há documentos, panfletos, recortes, correspondências sobre as interferências e ações do Movimentos nas discussões sobre as questões de anistia, abertura de arquivos do Estado e reparação e indenização de vítimas e familiares. A série 5 – Prêmio de Justiça e Direitos Humanos – traz toda a documentação do evento promovido pelo MJDH há 29 anos, que premia jornalistas dos mais variados meios que cobrem as notícias de violação ou premiação dos direitos humanos. Finalmente, a série 6 traz os clippings de jornais sobre as ações às quais o MJDH esteve envolvido e que foram coletados desde o inicio de suas ações. Nesta série optou-se por classificar os documentos de acordo com o quadro de arranjo, ou seja, traz como subséries as séries anteriores a esta, porque noticiam as ações da instituição. A função da pesquisa na descrição arquivística O acervo do MJDH, como pudemos ver, demonstra ter uma peculiaridade ímpar no que diz respeito à origem e organicidade de seus documentos, e o conteúdo que carrega. Na identificação de 255


usuários, percebeu-se que os documentos tem sido solicitados principalmente para a elaboração de artigos, dissertações e teses nas áreas das Ciências Humanas - História, Sociologia - e também áreas de Comunicação, como o Jornalismo. Diante desse quadro, optou-se por maximizar o conteúdo da descrição, procurando obter referências com os seus produtores e o contexto no qual eles foram criados. Assim, a documentação obtida através da atividade descritiva torna-se um complemento à fonte de pesquisa, ampliando ao usuário informações que antes poderiam ser ignoradas, conforme se posiciona BELLOTTO (2007): Cabe, portanto, ao elaborador da descrição apreender, identificar, condensar e, sem distorções, apresentar todas as possibilidades de uso e aplicações da documentação por ele descrita. Se o historiador deve submeter-se às coordenadas que limitam seu trabalho, isto é, à existência de documentos utilizáveis e à lógica de sua própria análise, interpretação e síntese, o arquivista, por seu conhecimento do acervo e por sua técnica de descrição, indexação e resumo, pode fornecer-lhe elementos que, muitas vezes, permaneceriam para sempre ignorados, gerando lacunas, distorções graves ou mesmo fatais para a historiografia. (p.177) Nesse sentido, o que pode-se perceber é que se procurou desenvolver um minucioso trabalho de pesquisa, de forma a reconstruir o contexto arquivístico do acervo do MJDH. Para isso, a atividade descritiva partiu das seguintes etapas: a) Identificação dos membros do Movimento de Justiça e Direitos Humanos; b) Identificação de personagens e eventos mais recorrentes na documentação do acervo entre ativistas do próprio MJDH, vítimas e agentes de violações aos Direitos Humanos; c) Elaboração de cronologia com base na documentação e em fontes bibliográficas; d) Pesquisa em fontes bibliográficas sobre os personagens, os eventos e os fatos históricos recorrentes no acervo; e) Entrevistas com membros do MJDH e com personagens da história da instituição, através do Projeto Marcas da Memória; f) Construção do quadro de arranjo. Para Velloso (2010), a descrição documental é o trabalho intelectual do arquivista, é onde se dá a produção de conhecimento de um arquivo. Segundo ela: A compreensão da descrição arquivística como processo de pesquisa redimensiona o seu próprio lugar na Arquivologia. Tradicionalmente entendida como atividade voltada à elaboração de instrumentos de pesquisa, perdeu-se sua dimensão científica e foi reforçada sua perspectiva prática até chegarmos a ponto da produção de modelos de “confecção” de descrição. (VELLOSO, 2010, p.53).

De importante conteúdo no que se refere às ações do Movimento e Justiça e Direitos Humanos e das Ditaduras Militares no Cone Sul, as Oitivas de familiares de Uruguaios Desaparecidos forneceram amplo auxílio para a construção do contexto arquivístico da instituição. Utilizada como produto de uma análise, sua descrição pode ser encontrada no anexo deste trabalho. A descrição deste item documental é visto no anexo C deste trabalho. A importância deste item documental, e a sua procura por pesquisadores fizeram com que se optasse pela elaboração de um catálogo, seguindo uma descrição analítica para a sua disponibilização e consulta. Antonia Heredia (1991) o define como: Catálogo es el instrumento que describe ordenadamente y de forma individualizada las piezas documentales o las unidades archivistitas de una serie o de un conjunto documental que guardan entre ellas una relación o unidad tipológica, temática o institucional. (p.360)

O catálogo geralmente é utilizado em descrições de unidades ou itens documentais, em resposta aos interesses relativos à política da instituição ou à demanda de pesquisa – determinado esse valor, fica justificada sua elaboração. O catálogo analítico imprime uma possibilidade maior de demonstrar o instrumento de pesquisa como produção de conhecimento. A relevância do valor histórico desses itens documentais faz com que o arquivista possa elaborar uma pesquisa minuciosa sobre determinado tema, e sendo o item documental uma composição de uma série e de um fundo, maior será a compreensão do arquivo e do contexto ao qual ele faz parte. 256


No período repressivo, a ONU, através de sua subcomissão de Direitos Humanos, propôs a realização de audiências para as oitivas de familiares de desaparecidos uruguaios, ao preocupar-se com as violações aos Direitos do Homem pelas ditaduras do Conesul. Em setembro de 1979, a OEA (Organização dos Estados Americanos) enviou funcionários a Buenos Aires, a fim de investigar e inspecionar o Estado buscando denúncias dos crimes cometidos por este contra cidadãos comuns que conforme Eric Nepomuceno, em seu artigo na revista Carta Maior: Imunes a tudo isso, na porta do prédio onde funcionava a representação da OEA, na Avenida de Mayo, havia filas de gente disposta a falar, apesar dos riscos, apesar do medo. Na verdade, desde 1975 a OEA recebia denúncias de violações dos direitos fundamentais. Mas depois do golpe de março de 1976, 3 essas denúncias viraram uma torrente. (2011, documento on-line. ) O relatório foi finalizado em abril de 1980 e proibido de circular na Argentina, sob imposição do regime ditatorial latino-americano. Essa campanha resultou em repercussão negativa para a ditadura argentina, fazendo com que a regime uruguaio não aceitasse o pedido da OEA para fazer um processo igual em seu território. No entanto, a investigação na Argentina já havia registrado denúncias de parentes de desaparecidos políticos uruguaios, e a OEA fez com que a existência de desaparecidos uruguaios e a negativa do regime militar de realizar as oitivas em solo uruguaio se tornasse amplamente conhecida, chamando a atenção de outras entidades de luta pelos Direitos Humanos. Nessa mesma conjuntura, foi criada em Paris a A.F.U.D.E. (Agrupación de Familiares de Uruguayos Desaparecidos), uma associação semelhante à da Madres da Plaza de Mayo, o que proporcionou maior organização na busca e maior registro de denúncias de desaparecimentos políticos uruguaios. Tamanha repercussão chamou a atenção da Subcomissão de Direitos Humanos da ONU, que através da A.F.U.DE. negociou a oitiva desses familiares de uruguaios desaparecidos, com audiências a serem realizadas no Brasil, que nesse momento vivia sua fase de “transição democrática”. A seqüência de oitivas e o andamento do processo fizeram com que 130 casos de desaparecidos uruguaios fossem conhecidos e investigados e aliado a isso, escancarou a tensão vivida no território uruguaio sob a égide do regime militar. Além disso, a operação ter sido realizada em Porto Alegre facilitou sua realização, pela proximidade com o Uruguai, e deu mais base para a luta da A.F.U.DE., que ganhou novos membros, pois muitos familiares se conheceram através da oitiva no Brasil. Michael Cook (2007b, p. 126) enfatiza a importância do aspecto da pesquisa no processo descritivo: [...] há muito que afirmo que a pesquisa é uma característica fundamental de nosso trabalho profissional. Mas, geralmente, essa pesquisa tem sido direcionada para a analise da estrutura e dos métodos da organização produtora dos documentos, ao invés de ser voltada para a produção de um instrumento de pesquisa. Se adotarmos o último ponto de vista (uma idéia relativamente nova), podemos rapidamente ver que nossa pesquisa pode ser conduzida de forma útil – de fato necessária – para criar o que Mc Neil chama de ‘texto cultural’. Nossas descrições são interpretativas, e não simplesmente sistemas neutros de indicativos. Para ele, algo deveria ter sido pensado, no que se refere às discussões sobre descrição arquivística, para a inclusão de resultados de pesquisa visando a interpretação de materiais, e não 4 somente às referências de produção e transmissão de dados. Quando cita Mc Neil (2007), dizendo que o trabalho de descrição, finalizado com um instrumento de pesquisa é visto como um texto cultural, se refere a que os arquivistas neste trabalho fazem tanto um trabalho de pesquisa quanto de interpretação. Bellotto (2007, p. 174) acredita que: [...] os instrumentos de pesquisa são vitais para o processo historiográfico. Escolhido um tema e aventadas as hipóteses de trabalho, o historiador passa ao como e ao aonde. Diante de um sem-número de fontes utilizáveis, a primeira providência, pela própria essência do método histórico, é a localização dos testemunhos. Para tanto, farão o seu papel as referências documentais em trabalhos publicados, o “colégio invisível” e o próprio conhecimento dos arquivos: as diferentes tipologias das instituições já definem 3

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NEPOMUCENO, Eric. A memória encaixotada sai das trevas. Carta Maior, São Paulo, 29 nov. 2011. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19096>. Acesso em: 03 jun. 2012. MC NEIL. Heather. Recent Trends in archival description: the finding aid as cultural text. Paper to the ARMEeN workshop. Londres: University College London, 2007, apud COOK, 2007b.

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as espécies documentais que guardam e possibilitam desenhar o perfil das informações contidas. Ir da análise crítica do material documentário até a síntese e a interpretação é o caminho a seguir.

Nesse paradigma, o uso de outras fontes que contemplem e completem o material documentário possibilitam a reconstrução do contexto arquivístico e a ampliação da descrição documental. Segundo o Professor Jorge Vivar, a principal metodologia empregada na pesquisa e reconstrução do contexto dos documentos do acervo do MJDH – além da pesquisa na própria documentação e no acervo bibliográfico - foi a de História Oral. Na entrevista concedida, ele diz que: Para a organização do acervo evidentemente nós utilizamos a metodologia da História Oral. Entrevistamos os atores dessa história do Movimento que, evidentemente os que se conseguiram localizar. [...] a partir desses depoimentos passou-se entender essa documentação e sua informação e, na medida em que procedia com sua organização, solicitávamos a presença deles quando as dúvidas faziam-se presentes. Exemplos: de repente nos deparávamos com um pedaço de folha escrita com anotações que continham informações aparentemente insignificantes e inorgânicas, entre aspas não? Porém esse pedaço de papel junto a outro documento e a informação do depoente legitimava a informação. A partir daí optamos por não eliminar absolutamente nada, e sim encontrar a organicidade dos documentos e o significado disto e, evidentemente para isto, tínhamos que trabalhar em conjunto com os produtores. Neste caso, muito nos ajudou Jair Krischke, quase nesse processo todo, quase que diariamente... desde o início. Diria que esta foi a metodologia adotada. Claro, evidentemente que somada e esta, foi necessária a pesquisa em fontes bibliográficas, procurando encontrar diferentes significados e aprendizados relacionados aos direito humanos, ditaduras, história recente, terrorismo de Estado no Mercosul, bibliografia a respeito disto...tudo o que a gente encontrasse. Muito útil nos foi o próprio acervo bibliográfico que se tem lá. Muitas teses, dissertações em fim, muitas indicações a respeito deste período. (VIVAR, 2012)

O uso da História Oral é usado como mecanismo de resgate de possíveis esquecimentos dentro da pesquisa arquivística, de ver o contexto ao qual o documento ou o acervo pertence, sob outro ponto de vista. Para Favier et. al. (2003, p; 48), Nuestra época, sin embargo, ha agregado a los archivos que yo calificaria como espontáneamente formados, los archivos orales, que son creados de manera deliberada. Aquí nos encontramos con la memoria. Su interés radica en que permiten conservar un rastro de testimonios de gente que nunca ha escrito ni escribirá nada, por ejemplo, las confidencias de un ex diplomático que no tiene la intención de escribir sus memórias, pero que puede aportar mucho respecto a los pormenores de una negociación o sobre la evolución del ámbito en que trabajó, o los recuerdos de un antiguo artesano ou obrero atinentes a una herramienta que inventó o a un oficio que desempeñó y que ahora ya no existe, o, en fin, las apreciaciones de un particular respecto a un cima social que él conoció bien. El término “archivo” quizá no sea del todo exacto en estos casos, pero tales ‘archivos orales’ llenan ostensibles vacios de los archivos escritos. Assim, na História Oral resultam narrativas dos protagonistas, que assumem a condição de fontes à pesquisa histórica, e dentro da Arquivologia permite que o arquivista conheça profundamente o arquivo em que está trabalhando, no que diz respeito ao seu acervo e ao contexto ao qual se insere. Outro aspecto salientado na questão do processo descritivo como produção de conhecimento é a visão crítica do arquivista ao pesquisar e elaborar uma descrição arquivística. Cook e Schwartz (2004) ressaltam que por muito tempo o arquivista era considerado e se considerava como neutro, objetivo e imparcial – onde apenas recebiam documentos de entidades e disponibilizavam ao pesquisador. Não imprimia o seu trabalho de construção do acervo e sua visão de mundo em relação ao contexto histórico do arquivo. Em seu artigo “Arquivos, Documentos e Poder: a construção da memória moderna”, os autores apontam a tomada de consciência dos arquivistas sobre a reflexão crítica nos acervos documentais. Para eles: Os arquivos – como registros – exercem poder sobre a construção do conhecimento histórico, da memória coletiva e da identidade nacional, sobre como nós nos conhecemos como indivíduos, grupos e sociedade. E, por fim, na busca de suas responsabilidades profissionais, os arquivistas – como gestores de arquivos o detêm o poder sobre os próprios documentos 258


essenciais à formação da memória e da identidade, por meio da gestão ativa dos registros antes deles se tornarem arquivos, de sua avaliação e seleção como arquivos e, posteriormente, de sua descrição, preservação e uso em permanente evolução enquanto fonte histórica. (COOK; SCHWARTZ, 2004, p.15). Na análise feita nas descrições das oitivas de familiares de uruguaios desaparecidos na ditadura militar podemos ver essa idéia refletida. O grupo de trabalho formado pelos Arquivistas sem Fronteiras (AsF) estava em pleno acordo com a história e política do MJDH – este, defensor dos direitos humanos e principalmente, denunciante das violações cometidas pelo Estado durante a ditadura militar na América Latina. Dessa forma, o processo de descrição arquivística para a difusão do acervo é uma forma de representação da história contida dentro dos documentos e de seu contexto de criação. A reconstrução do contexto arquivístico através da organização do acervo, a análise dos documentos, a pesquisa feita interna e externamente através da história oral, o posicionamento do arquivista ao refletir sobre o contexto onde os documentos foram criados, e a escolha de uma metodologia de trabalho própria da Arquivologia, isso tudo converge para que haja uma descrição arquivística bem fundamentada, que represente o contexto histórico do acervo, o contexto de origem dos documentos e as atividades que levaram à sua criação, tornando-se, dessa forma, uma produção de conhecimento arquivístico, facilitando o entendimento do que é o arquivo e todo o seu conteúdo informacional. Considerações Finais Diante da análise do trabalho feito para o arranjo e descrição do acervo do MJDH, foi importante perceber a forma e a metodologia de trabalho escolhida pelos Arquivistas sem Fronteiras nesta intervenção. De características singulares, pois se tratava de um arquivo privado de uma organização social que desenvolveu seu trabalho em ações na defesa dos direitos humanos, os arquivistas tiveram dificuldades em perceber as relações entre os documentos, os personagens identificados neles e as atividades às quais eles faziam parte. A partir disso, o exercício de identificação dessas relações proporcionou a busca por uma metodologia arquivística que esclarecesse a organicidade dos documentos, e a utilização de métodos combinados de pesquisa, para que fosse possível obter, no momento de sua descrição, a representação da complexidade do conteúdo deste acervo. Assim, a pesquisa do contexto histórico da atuação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, passou pela interpretação do quadro de arranjo, pela análise dos documentos e da busca de suas relações, e a pesquisa bibliográfica sobre os principais conceitos que moveram a instituição a atuar em prol de seus objetivos. Aliada à pesquisa bibliográfica, o uso da metodologia de História Oral foi determinante para que os documentos fossem entendidos como um conjunto documental, além de proporcionar ao trabalho de arranjo e descrição a interpretação do lugar que os documentos ocupam nas ações de defesa dos direitos humanos. Consequentemente, o arcabouço teórico que a pesquisa traz ao trabalho de arranjo e descrição, fornece ao arquivista um amplo conhecimento dessas relações entre os documentos e seus personagens, e assim, possibilita a inclusão de sua reflexão crítica em relação ao contexto histórico do arquivo, levando em consideração a função social da instituição e os usuários do mesmo. Como vemos, a organização de um acervo arquivístico fundamentado através da busca por fontes de pesquisa que possam embasar a escolha de uma metodologia arquivística, além da percepção do arquivista como pesquisador e produtor de conhecimento, trazem a possibilidade de elaborar um programa de descrição arquivística amplo e contextualizado historicamente, onde o usuário, ao se utilizar deste produto para o acesso à informação, encontrará não só a localização desta, mas também seu sentido enquanto informação pertencente ao arquivo que a abriga. No arquivo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, é possível perceber e demonstrar ao usuário o acervo como marco interpretativo das ditaduras do Cone Sul, contendo uma memória emblemática com os objetivos de legitimar a história das pessoas afetadas pelo regime de repressão e conscientizar a sociedade a razão da luta por verdade e justiça. Fontes Pesquisadas: Quadro de Arranjo do Fundo Documental Movimento de Justiça e Direitos Humanos - Projeto de Organização do Acervo do Movimentos de Justiça e Direitos Humanos. Coordenação e elaboração Prof. Jorge Eduardo Enriquez Vivar. Disponível na sede do arquivo de MJDH. Catálogo analítico do item documental “Oitivas de Familiares de Uruguaios Desaparecidos”. Disponível na sede do arquivo do MJDH. 259


Item documental “Oitivas de Familiares de Uruguaios Desaparecidos”. Série 3 “Terrorismo de Estado no Período da Ditadura no Cone Sul”. Fundo Documental Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Disponível na sede do arquivo do MJDH. VIVAR, Jorge. O acervo do MJDH. [2012]. Porto Alegre. Entrevista concedida para este trabalho. Referências Bibliográficas: BELLOTTO, Heloisa. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: FGV, 2007. COOK, Michael. Desenvolvimentos na descrição arquivística: algumas sugestões para o futuro. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1-2, p. 125-132, jan./dez. 2007. COOK, Terry. SCHWARTZ, Joan. Arquivos, Documentos e Poder: a construção da memória moderna. Registro: Revista do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba/Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, Indaiatuba, v. 3 n.3, p.15-30, jul. 2004. Disponível em: <http://www.promemoria.indaiatuba.sp.gov.br/ arquivos/galerias/registro_3.pdf>. Acesso em: 28 maio 2012. FAVIER, Jean et. al. Memória y archivos. In: RICOEUR, Paul. Por qué recordar? Barcelona: Granica, 2003. HAGEN, Acácia Maria Maduro. Algumas considerações a partir do processo de padronização da descrição arquivística. Ciência da Informação, Brasília, DF, v. 27, n. 3, 1998. Disponível em: <http://revista.ibict.br/ciinf/index.php/ciinf/article/view/312/278>. Acesso em: 28 maio 2012. HEREDIA, Antonia. Archivística general: teoria y practica. Sevilla: Diputación de Sevilla, 1997. NEPOMUCENO, Eric. A memória encaixotada sai das trevas. Carta Maior, São Paulo, 29 nov. 2011. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19096>. Acesso em: 03 jun. 2012. TOGNOLI, Natália B. GUIMARÃES, José Augusto C. Arquivística Pós-Moderna, Diplomática Arquivística e Arquivística Integrada: novas abordagens de organização para a construção de uma disciplina contemporânea. In: ENCONTRO NACIONAL Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, 11., 2010, Rio de Janeiro. Comunicação Oral. Rio de Janeiro: IBICT/MCT, 2010. Disponível em: <http://enancib.ibict.br/index.php/xi/enancibXI/paper/download/249/215 > Acesso em: 14 nov. 2012. VIVAR, Jorge. O acervo do MJDH. [2012]. Porto Alegre. Entrevista concedida para este trabalho. VELLOSO, Lucia Maria. Modelagem e status científico da descrição arquivística no campo de arquivos pessoais. 2010. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

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O DOPS e os arquivos da repressão: as atribuições da Delegacia de Ordem Política e Social no Maranhão. Manoel Afonso Ferreira Cunha

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Resumo: Este trabalho tem por objetivo buscar compreender a vigilância institucionalizada sob a forma de atribuições identificadas em ofício da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS-MA) em São Luís do Maranhão, na segunda metade da década de 1970, tendo por base os documentos produzidos e/ou arquivados pela mesma instituição (DOPS-MA) e que atualmente se encontram disponibilizados para pesquisa no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). Antes se faz necessário salientar a importância da História do Tempo Presente,das principais perspectivas de entendimento do golpe militar, da atuação da polícia política (DOPS), da Doutrina de Segurança Nacional e da funcionalidade dos arquivos como alternativa para o estudo da História Contemporânea brasileira. Palavras-chave: Ditadura – DOPS – Polícia – Segurança Nacional–Atribuições. Abstract: This paper aims at seeking to understand surveillance institutionalized in the form of assignments identified in a letter from the Department of Political and Social Order (DOPS-MA) in São Luís do Maranhão, in the second half of the 1970s, based on the documents produced and / or archived from the same institution (DOPS-MA), and that are currently available for research in the Public Archives of the State of Maranhão (Ampem). Before it is necessary to stress the importance of the History of the Present Time, the main perspectives of understanding of the military coup, the role of the political police (DOPS), the National Security Doctrine, and the functionality of the files as an alternative to the study of Contemporary History Brazilian. Keywords Dictatorship – DOPS – Police – National Security – Assignments.

1. Introdução O estudo da História do Tempo Presente no Brasil é algo ainda bastante delicado e suscetível a inúmeras críticas, haja vista que investigar determinados assuntos e traçar qualquer tipo de análise, levando em consideração o aspecto inquietante de lidarmos com problemas do nosso dia a dia, de trabalharmos temas históricos em que diversos atores de grande relevância ainda estão vivos, torna-se um interessante desafio para a História e para aqueles que desejam desenvolver estudos nesta área. Há uma forte tendência da historiografia atual em se trabalhar com objetos relativos à contemporaneidade, construir um novo modo de pensar as relações entre passado e presente, seguindo o movimento de abandono da noção de um passado estático e acabado. Assim, o processo de renovação da História Contemporânea está conseguindo responder de maneira positiva a questões referentes às disponibilidades de fontes, antes tidas como raras (inacessíveis e enclausuradas em arquivos que há tempos atrás tolhiam a pesquisa acadêmica) e abundantes (maior quantidade e diversidade) ao mesmo tempo. Como prova disso, vimos surgir, em contraposição aos tradicionais centros de pesquisas e produções históricas, institutos paralelos que universalizam a noção de historicidade, democratização e dilatação da História. Exemplos disso são o Instituto de Estudos Políticos e o Instituto de História do Tempo Presente. Dentro desse contexto de abordagem histórica do Tempo Presente, encontramos os estudos relacionados à ditadura civilmilitar no Brasil, ao golpe que deu início a um regime que durou 21 anos e marcou de maneira funesta a história do nosso país. Logo, devemos atentar para o compromisso que as pesquisas de História Contemporânea devem trazer tanto para a academia quanto para a sociedade brasileira. Para isso, vale destacar a importância da análise da trajetória de estudos e pesquisas sobre o tema. Diferentemente de outros períodos da história brasileira, a ditaduracivil militar conheceu na ciência política seu pioneiro instrumento de estudo. Essa perspectiva começa a se modificar na década 1

Graduando do 7° período do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do NUPEHIC (Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea). Bolsista FAPEMA pelo Projeto de Organização, Indexação, Informatização e Publicização do acervo documental sobre História Contemporânea presente no Maranhão, sob coordenação da prof. Drª Monica Piccolo.

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de 1970 (coincidentemente o período mais duro do regime) quando ocorre a reforma universitária e sistematiza-se aprofissionalização da pesquisa histórica em terras brasileiras, o que acaba, nos anos 2 seguintes, proporcionando a difusão de programas de pós-graduação por todo o país. Nessa atmosfera de sigilo, de escassez documental estimulada por membros envolvidos no processo, que os brasilianistas vão ganhar destaque nas pesquisas históricas sobre a ditadura militar. Historiadores de outras nacionalidades, em sua maioria norte-americana, terão acesso privilegiado a determinados documentos que pesquisadores brasileiros não tiveram na época, dentre esses podemos destacar Alfred Stepan, com a obra “Os Militares na Política”, publicada originalmente em 1975. 2. O golpe em diferentes perspectivas A inovação da pesquisa histórica republicana, com objetivo de romper com o passado, baseada no forte interesse pela trajetória nacional mais recente, tem suas vantagens, mas nem por isso se livrou das amarras do tradicionalismo. Ao analisar algumas das principais obras sobre a ditadura militar, podemos perceber que ainda existe uma tendência que busca personalizar a história do regime. É comum identificar tanto na direita (que via no Goulart um demagogo e corrupto) quanto na esquerda (a qual apontava Jango como um burguês de massa vacilante) a avaliação exclusiva do comportamento e da personalidade de João Goulart para explicar o golpe de 1964. Assim, partindo de um panorama tradicionalista, o regime instaurado na década de 1960 “teria ocorrido devido à falta de 3 talento de um único indivíduo.” Além dessas explicações, temos também interpretações voltadas para as grandes estruturas e 4 para a “grande conspiração”. Como afirmam Luís Carlos Prado e Fábio Sá Earp , a primeira compreende o golpe enquanto consequência do colapso do Populismo. Seus principais representantes são Octávio Ianni, Guilherme O`Donnel e Fernando Henrique Cardoso. Estes apontam, respectivamente, que o golpe resultou da crise do modelo agroexportador e os modelos de desenvolvimento nacionalista em aliança com as empresas estrangeiras; a aproximação entre industrialização e autoritarismo; e a necessidade de gestões autoritárias para coordenar esse processo de acumulação de capital. 5 A segunda, referente às grandes conspirações , tem um importante enfoque nos arranjos feitos pelos grupos sociais conservadores brasileiros, com influencia externa norte – americana que, para muitos, teria sido o fator primordial para a eclosão do processo golpista em 1964. No entanto esse tipo de interpretação desconsidera o papel dos grupos sociais que atuaram de forma litigiosa dentro do país, tendo como resultado o deslocamento externo do protagonismo da história do Brasil.  O caráter militar Podemos notar outras versões interpretativas do que os próprios militares chamaram de “Revolução”. Existemtrabalhos de historiadores e cientistas políticos que atribuem um caráter estritamente militar para a tomada de poder após o fim do governo Goulart. Entretanto, existempesquisas que discordem dessa análise e apontem a forte presença civil no processo de desgaste da presidência de João Goulart e da instauração do regime militar. Acreditamos, portanto, ser de total necessidade, trazer luz, de maneira sintetizada, alguns desses pontos de vista sobre o golpe militar de 1964. A interpretação que confere caráter predominantemente militar ao golpe de 1964 enfatiza o desempenho dos militares no processo de tomada de poder, sustentado pelo fechamento de partidos políticos, do enfraquecimento exacerbado do congresso nacional, do arrocho salarial e das práticas de repressão em todos os níveis.Carlos Fico afirmar em Além do Golpe que “se a preparação do golpe foi 6 de fato civil-militar, no golpe, propriamente, sobressaiu o papel dos militares” , visto que ocorreu uma intensa militarização a partir da progressiva institucionalização dos aparatos repressivos, inserindo diretamente os militares nas ações de polícia política. Partindo de análises que seguem a mesma linha anteriormente citada, temos ainda dois 2

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FICO, Carlos. Além do Golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 21. FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Licília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 346. PRADO, Luís Carlos; SÁ EARP, Fábio. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973). In FERREIRA, Jorge; DELGADO, Licília (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 210. DELGADO, Lucília de Almedida Neves. 1964: temporalidades e interpretações. In REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta anos depois. Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 22. FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.38.

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importantes historiadores: Jacob Gorender, autor de Combate nas Trevas, e Carlos Werneck Sodré, História Militar do Brasil. O primeiro afirma que “a consciência de classe de crescentes contingentes de 7 trabalhadores” estava “cada vez menos compatível com a expressão populista” , intensificaram os conflitos no âmbito da sociedade civil. Em consonância como fortalecimento das disputas sociais, a industrialização adquire, nessa época, feições nacionalistas, incomodando os setores conservadores, que estavam bastante receosos da influência comunista dentro do Brasil. A partir do objetivo de estudar a esquerda e a luta armada no contexto ditatorial, Gorender, na mesma obra, afirma que essa efervescência trabalhista se produziu, aos olhos da direita, numa ameaça a classe dominante e ao imperialismo. Para Werneck Sodré, a atuação das forças armadas jamais poderia ser interpretada isoladamente, desvinculada das outras esferas da sociedade. Ao corroborar com o discurso que defende 8 o cunho militar ao golpe de 64 seu caráter militar em sua exteriorização e político em sua essência.. Alfred Stepan em Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira também aponta o protagonismo militar na articulação e execução do golpe de 1964, o destaque de sua análise se trata da quebra do padrão moderador. Ou seja, em diversos momentos da história do Brasil, os militares assumiam o poder para resgatar a ordem e depois voltavam para os quartéis, no entanto, em 1964, essa postura é modificada. A singularidade estava no fato de que, na década de 1960, os militares se sentiam profundamente ameaçados pela ineficiência das instituições civis. 2.2 Os civis no golpe Afastando-se da tendência bastante valorativa do papel dos militares no golpe de 1964, temos 9 interpretações que defendam uma forte participação civil na “revolução” , levando em consideração a ideia de que se a ditadura militar não tivesse uma ampla aceitação das bases sociais internas do Brasil, o golpe não teria sido efetivado. 10 Nessa linha temos René Dreifuss e sua obra 1964: a conquista do Estado, na qualé trabalhada a participação central do complexo IPES/IBAD como explicação para o processo de derrocada do governo Goulart, e da instauração do regime civil – militar. O perfeito trabalho empírico, mostrando claramente os membros que atuavam nessas agências, e que fariam posteriormente parte da ossatura 11 material doEstado restrito . Com isso, pode ser comprovado que os ativistas desse complexo acabaram por capitanear o processo de formulação de diretrizes, além de constituírem papel central nas decisões a serem tomadas, já que esses colaboradores moldaram o sistema financeiro e assumiram as principais pastas do governo e os maiores órgão públicos administrativos. Portanto, assumiram a função social de 12 intelectuais orgânicos dentro de um instituto que, na concepção gramsciniana, exercia o papel de partido político, ou seja, de organizador da vontade coletiva. Outro historiador já citadoque trabalha nessa linha do golpe civil – militar é o brasiliniasta, de nacionalidade norte – americana, Thomas Skidmore, em sua obra Brasil de Castelo a Tancredo fica bastante clara essa opinião, já queos conspiradores militares e civis que depuseram João Goulart em março de 1964 tinham dois objetivos: frustrar o plano comunista e estabelecer a ordem de modo que se 13 pudessem executar reformas legais. Há de se concordar, levando em consideração as perspectivas discutidas anteriormente, que o regime autoritário nascido em 1964 não se sustentaria sem elaborar, um consolidado sistema de informações, espionagem e repressão, legitimados por atos e decretos que faziam parte de um grande projeto de proteção dos interesses da fração dominante da classe dominante que se encontrava no 7

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GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987, p. 16. SODRÉ, Nelson Werneck. A História Militar do Brasil. Editora Expressão popular, 2010. BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1ª ed., 1998. Vol.1, p. 1122. DREIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro, Vozes, 1987, p. 455. O conceito de Estado para Gramsci sofre a chamada “renovação e superação dialética” frente à obra de Marx e Lênin já que não é visto somente como um aparelho que garante a dominação da classe burguesa. Para o intelectual sardo, o Estado possui uma dupla dimensão: sociedade civil (Portadora material da figura social da hegemonia) e sociedade política (Estado em sentido Restrito ou Estado Coerção). Para maiores detalhes, ver GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Intelectual que, na concepção moderna de Gramsci, além de elaborar discursos, também organizaria as práticas sociais, e seriam gerados dentro da própria classe, exprimindo as experiências e os sentimentos que as massas não poderiam exprimir. Cadernos do Cárcere, vo. 2, ,vol. 2, . Os intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 45.

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controle do Estado Restrito. 

A doutrina de Segurança Nacional, os Direitos Humanos e as informações nos arquivos de Estado. 3.1 A doutrina de Segurança Nacional

Com o advento da ditadura militar no Brasil, e em nome da Segurança Nacional, instalou-se um complexo sistema repressivo para combater a subversão e, ao mesmo tempo, reprimir preventivamente 14 qualquer atividade considerada suspeita por se afigurar como potencialmente perturbadora da ordem: Crahan identificou as origens da ideologia de segurança nacional na América Latina já no século XIX, no Brasil, e no início do século XX, na Argentina e no Chile. Elas vinculam-se então a teorias geopolíticas, ao antimarxismo e às tendências conservadoras do pensamento social católico, expressas por organizações como a 15 Opus Dei, na Espanha, e a ActionFrançaise.

A Escola Superior de Guerra foi esteve incumbida de elaborar e difundiras diretrizes da Doutrina de Segurança Nacional. Houve, na sua formulação, a participação do complexo IPES/ IBAD, existindo em seu interior, um corpo de intelectuais de formação técnica que, no campo da sociedade civil, contribuíram na formulação de diretrizes para a busca do consenso, já que métodos de coerção se tornariam ineficientes a médio e longo prazo. Dentro da DSN, destaca Márcia Moreira Alves, havia o conceito de guerra total que se baseava na estratégia militar da Guerra Fria que definia a guerra moderna como total e absoluta, entrando em conflito com a ação revolucionária de esquerda, pautada esta no conflito interno, visando o controle da nação sem abrir mão de apoio externo, no caso países comunistas (URSS, Cuba e China), com intuito de angariar mentes descontentes com a ordem vigente. Enquanto elemento importante da DSN, temos a função geopolítica exercida pelo Brasil no contexto latino-americano. Tanto os militares, quanto o governo norte- americano acreditavam que o Brasil era a grande potência da América do sul, e que se transformara na prioridade da luta contra a “subversão” comunista na região, visto que a Revolução Cubana de 1959 abrira os olhos das direitas no continente. Havia, portanto,a estreita relação entre Segurança Nacional e desenvolvimento econômico. O Brasil, por ser um Estado de modelo capitalista, demandaria a proteção e legitimação da aliança entre das frações dominantes da classe dominantee o capital externo. Para isto, tinha-se a necessidade de intervenção no meio político e social visando atender as exigências dos interesses internacionais, deslocando do âmbito social a prioridade do Estado, que não mais se colocava na função de provedor da elevação do padrão de vida da maioria da população. A repressão, característica dos governos de segurança nacional, decorrente das pressões do capital externo e das elites locais que ansiavam por um novo modelo de acumulação de capital, fez 16·. surgir o que se chama de Terror de Estado, o uso da violência estatal na “defesa” da democracia. E para que existisse pleno desenvolvimento dos interesses da Doutrina de segurança Nacional, se fazia necessária atuação de uma polícia política que objetivasse a manutenção da ordem, o estabelecimento da vigilância e da repressão daqueles que contestassem a ordem vigente. Nesse contexto, ocorre o remodelamento da Delegacia Política de Ordem Social, o DOPS, criada em 1924, e que juntamente com o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) e o SNI (Sistema Nacional de Informações), formariam um dos pilares de sustentação da ditadura no Brasil.

3.2 A luta pela informação e direitos humanos As primeiras intenções voltadas para a publicização de informações classificadas como secretas, e das preocupações referentes aos direitos humanos datam do período medieval, ao analisarmos a

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MAGALHÃES, Marionildes Dias Brehpol de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos a época da ditadura militar no Brasil. MOREIRA ALVES, Márcia Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2°edição, 1984, p.33. PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latinoamericanas.In: FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 141 a 176.

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trajetória de luta pela informação e da gênese do debate sobre o que são direitos humanos, destacamos a Declaração das Cortes de Leão, em 1188, na península ibérica; e a Magna Carta inglesa de 1215. No entanto, é apenas no final do século XVIII que se formulará o conceito moderno de direitos humanos, com dois documentos de grande repercussão na história ocidental: a Declaração de Virgínia, de 1766, no contexto da Independência dos Estados Unidos da América; e a famosa Declaração dos Homens e dos Cidadãos, de 1789, durante a Revolução Francesa. Contudo, vai ser na Renascença que se dará a conceitualização do termo “privado”. Ao longo do século XIX o termo ganha dimensão nacional, já que o surgimento dos Estados Nacionais modernos difundirá os debates sobreas questões relativas aointeresse público e privado, como também sobre os assuntos classificados como segredos de Estado. Com o pós-guerra, exatamente em 1948, na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) ocorrerá a universalização da temática relacionada aos direitos humanos, com isso abre-se a discussão sobre o direito a liberdade de assuntos de âmbito privado e da valoração das informações presentes nos arquivos de Estado. No Brasil, desenvolveu-se a Comissão Nacional da Verdade visando a apurar graves violações aos direitos humanos no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. Criada a partir da Lei 12.528, a comissão foi instalada em 16 de março de 2012 com prazo de dois anos para depurar as transgressões anteriormente citadas. Os trabalhos estão divididos em três subcomissões (Pesquisa, 17 Relações com a sociedade e Informação), todas estas fragmentadas em grupos temáticos. Logo, as questões relativas aos direitos humanos e divulgação de informações antes inerentes ao Estado, acaba por atribuir grande importância às pesquisas executadas nos arquivos públicos, através das fontes documentais provenientes dos arquivos da polícia política, nesse caso o DOPS. Assim, a divulgação desses documentos pode denunciar práticas nocivas à sociedade (tortura), 18 tornando-se de interesse público. 3.3 Os arquivos da polícia política brasileira Ao pesquisarmos os arquivos da polícia política, temos a oportunidade de analisar os conteúdos inseridos presente nos documentos apreendidos e/ou elaborados dentro da Delegacia de Ordem Política e Social(DOPS), reconstituindo e identificando o discurso deordem, genuinamente repressivo, como também avaliar a função daqueles que enfrentaram o autoritarismo. A partir das vastas fontes documentais, existe a possibilidade de pesquisa, para aqueles que estudam a História do Brasil Contemporâneo, de como era exercido o poder pelas instituições públicas, especialmente o órgão de polícia política. Porém, não podemos esquecer que essa variedade de arquivos expressacoexistência de diversos discursos: o discurso polícia (ou da ordem), o do delator ou 19 da imprensa (parte da imprensa em convergência com Estado de exceção)e o da resistência ou “desordem”. Por conseguinte, livros, jornais, fichas, relatórios, panfletos, ofícios, todos estes materiais, que se encontram arquivados pelos DOPS de todo o país, trazem discursos que sofreram algum tipo de manipulação e/ ou gerenciamento, expressando certas condutas e práticas previamente estabelecidas 20 pelo organismo policial. ” Notamos assim, que a vastidão de fontesdocumentais relativas a policia política brasileira oferece a possibilidade deestudos em diferentes aspectos. Podemos avaliá-las do ponto de vista cultural, identificado no corpus documental desta instituição valores e preconceitos arraigados no imaginário coletivo do período; do prisma organizacional desse órgão, que por muitos anos disfarçou sua essência ditatória; e sobre o panorama exclusivamente documental, visto que os documentos possam ter sido alvo de manipulação. 

As atribuições do DOPS no Maranhão

A fonte analisada para o desenvolvimento deste trabalho trata de atribuições da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) enviadas em ofício para a Secretaria de Segurança do Estado do Maranhão. As orientações estão contidas em dossiê inserido na série intitulada “Subversão” e servem 17 18

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Ver melhor sobre a Comissão da Verdade em http://www.cnv.gov.br. COSTA, Célia Maria Leite. O direito à informação nos arquivos brasileiros. In: FICO, Carlos (org.)Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p.20. “Assim, para usar o termo com propriedade a fim de pensar a resistência brasileira, importa mais o significado do combate à ditadura do que o de ofensiva revolucionária”. RIDENTI, Marcelo. Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura: armadilha para pesquisadores. In REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta anos depois. Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 54. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Os arquivos da polícia política brasileira – uma alternativa para os estudos do Brasil Contemporâneo. ProIn, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. S/d disponível em http://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_arquivos_policia_politica.pdf. Acessado em 03 de março de 2012.

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para esclarecer como estas diretrizes, provenientes da Doutrina de Segurança Nacional, foram difundidas por todos os setores de segurança pública em todas as regiões do país. Essas tarefas, aos serem propagadas explicitam a intenção de obstar as disparidades de pensamento existentes no país. Aos pesquisarmos os acervos do DOPS no Estado do Maranhão, identificamos a atuaçãode um órgão com intento de coibir a disseminação de ideias revolucionárias, em um claro exemplo de predomínio da estratégia de coerção e não da busca do consenso.A organização desses arquivos estava a critério das próprias autoridades policiais, explicitando uma simbologia representativa dos preceitos da segurança nacional. A fonte primária deste trabalho nos permite problematizar, de maneira geral, os valores presentes no discurso de ordem do Departamento de Polícia e Ordem Social contra qualquer tipo de ameaça a ordem social em solo maranhense.Assim, identificamosum ofício da Delegacia de Ordem Social e Política, destinado a Secretária de segurança pública do Estado do Maranhão, contendo lista de atribuições que deveriam orientar o setor de segurança pública do Estado no ano de 1977. O ofício assinado pelo delegado do DOPS-MA Francisco Florimar de Almeida, e enviado ao secretário de segurança pública do Estado do Maranhão traz atribuições relativas ao controle e vigilância contra atentados a ordem política e social. As onze orientações basicamente se referem àmissão de manter osecretário de segurança informado a respeito de tudo que tenha relação à ordem política e social.

As duas primeiras páginas do Ofício 0142/SI/DOPS/SSP/MA contendo todas as onze atribuições do DOPS/MA. Documento constituído de quatro páginas, assinadas por Francisco Florimar de Almeida, delegado do DOPS na data de 03 de Novembro de 1977, e enviadas ao Secretário de Segurança Pública do Estado do Maranhão. Documento localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão – APEM, série Subversão. (Páginas 1,2, respectivamente)

Afirma-se em tal ofício que a Polícia de Ordem Política e Social (DOPS-MA) não abriria mão de empregar de meios policiais para prevenção, repressão e controle de atividades “subversivas” e crimes de natureza comum, organizar os serviços de informação, além de solicitar, junto a Secretaria de Segurança, materiais e equipamentos necessários para a execução de tais atribuições. Neste caso, como afirma Tucci Carneiro no texto acima trabalhado, a autoridade policial se põe na função de construtor de uma história oficial, produzindo realidades a partir do uso da violência e do controle exercido pelo DOPS. Estas “verdades” ao serem disseminadas nas instancias superiores (Secretária de Segurança Pública do Maranhão) e difundidas na grande imprensa, tornam-se diretrizes morais que, aliadas ao domínio pela força, acabam por objetivar o consenso, constituindo a supremacia do grupo social dominante e legitimando a repressão. Portanto, a ação da polícia faz transparecer a atuação repressiva de um Estado de tipo Ocidental 266


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no qual a sociedade civil é complexa e maior do que a sociedade políticaque então busca enfrentar seus inimigos através da repressão direcionada e de uma legislação de segurança nacional. Logo, a atuação das instituições jurídicas e da polícia política (DOPS) representa, segundo Gramsci, a perspectiva negativa desta sociedade civil. Percebe-se, então, a legitimação da repressão, da suspeição e de todas as formas de violência em detrimento das liberdades civis, de expressão e dos ideais democráticos.O crime político passava a ter estrita ligação com aqueles que se tornavam suspeitos por contestarem a ordem, ou até mesmo por si manterem neutros às problemáticas existentes no período da ditadura. Ao recolher informações de indivíduos suspeitos aos olhos da repressão, constrói-se uma imagem negativa de inúmeras pessoas, o discurso da ordem passa a ter um caráter inquisitório. Essa prática, durante a ditadura, assumiu proporções elevadas visando à derrubada da ameaça comunista, sustentando mitos como o da nacionalidade, e que como vemos nas atribuições do DOPS-MA, chegaram até a cidade de São Luís. O DOPS se constitui no Maranhão, assim como na grande maioria do Brasil, através de suas prisões, interrogatórios, torturas, num elemento formulador de diretrizes do interesse da classe dominante, e também do autocontrole na sociedade civil (a esfera da vida privada e do consentimento). Procurava-se exaltar a imagem negativa dos indiciados, e transformar o discurso da ordem num caráter humanitário de defesa do povo e pátria. Considerações Finais Para finalizar, podemos compreender que os estudos históricos sobre o período da ditadura militar no Brasil atendem as inúmeras exigências e indagações provenientes da abordagem referente à história do tempo presente. Portanto, é bastante louvável analisar a produção historiográfica sobre período, enfatizando suas nuances, diferenças e peculiaridades que, livres das amarras do tradicionalismo, dos preconceitos ideológicos, poderão trazer ainda muitos frutos para a história contemporânea de nosso país. Com a decorrente democratização das fontes provenientes dos acervos da polícia política, cabe a nós historiadores, sabermos problematizar de maneira competente todos os discursos ali presentes direta ou indiretamente, já que “fazer História do Brasil Contemporâneo a partir de documentos policiais, 22 implica uma maneira de ler esses registros, avaliando-os no sentido inverso ao do raciocínio policial” . A partir desse novo olhar sobre documentos ainda não investigados e explorados, importantes abordagens históricas a serem reveladas trarão novos olhares e debates tanto no âmbito da academia quanto da sociedade. Democratizar os acervos da polícia política, e esmiuçá-los em todas as suas perspectivas, identificado os erros de um período tão nefasto da história contemporânea brasileira, servirão de exemplo para que as falhas do passado não mais se repitam e jamais se esqueçam.

Referências Bibliográficas: I. Documentação Arquivos DOPS/MA Ofício 0142/SI/DOPS/SSP/MA contendo todas as onze atribuições do DOPS/MA. Documento constituído de quatro páginas, assinadas por Francisco Florimar de Almeida, delegado do DOPS na data de 03 de Novembro de 1977, e enviadas ao Secretário de Segurança Pública do Estado do Maranhão. Documento localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM), na série Subversão. II. Obras Gerais BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. trad.Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev.geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1 la ed., 1998. Vol.1. 21

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A partir da dupla dimensão do Estado (sociedade civil e sociedade política), Gramsci identifica o dois tipos de Estado: Oriental (sociedade civil fraca e predomínio do Estado Coerção com uma sociedade política forte em que deve predominar a Guerra de Movimento) e Ocidental (sociedade civil forte e complexa, em equilíbrio com a sociedade política; deve predominar a Guerra de Movimento como estratégia revolucionária). O Brasil aparece como uma formação de tipo Ocidental, em função da complexização de sua sociedade civil.Para maiores detalhes, ver GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Os arquivos da polícia política brasileira – uma alternativa para os estudos do Brasil Contemporâneo. ProIn, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. S/d disponível em http://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_arquivos_policia_politica.pdf. .

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CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Os arquivos da polícia política brasileira – uma alternativa para os estudos do Brasil Contemporâneo. ProIn, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. S/d disponível em http://www.usp.br/proin/download/artigo/artigo_arquivos_policia_politica.pdf. COSTA, Célia Maria Leite. O direito à informação nos arquivos brasileiros. In: FICO, Carlos. Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas/ Organizadores Carlos Fico...[et al].- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. DREIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro, Vozes, 1987. FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004. GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 3. Maquiavel e a Política do Estado Moderno (caderno nº 13). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. MAGALHÃES, Marionildes Dias Brehpol de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos a época da ditadura militar no Brasil. MOREIRA ALVES, Márcia Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Editora Vozes, 2°edição, 1984. PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-americanas.In: FICO, Carlos (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SODRÉ, Nelson Werneck. A História Militar do Brasil. Editora Expressão popular, São Paulo, 2010. STEPAN, A. C. Os Militares na Política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Artenova, 1975.

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Arquivos Repressivos da Polícia Política: o caso do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul Ananda Simões Fernandes

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Resumo: O presente artigo pretende abordar a discussão sobre a abertura, o acesso e a utilização dos chamados arquivos repressivos produzidos pelos aparatos de segurança e informação do Estado ditatorial brasileiro. Para tanto, será analisada a documentação da polícia política do estado do Rio Grande do Sul, do Departamento de Ordem Política e Social do estado do Rio Grande do Sul, ao qual estavam atribuídas as funções de polícia política. Palavras-chave: ditadura brasileira – arquivos repressivos – polícia política – Departamento de Ordem e Política Social do Rio Grande do Sul Abstract: This article intends to address the debate on openness, access and use of the named files produced by repressive apparatuses of security information and the Brazilian dictatorial rule. Therefore, we will analyze the documentation of the political police of the state of Rio Grande do Sul, Department of Political and Social Order in the state of Rio Grande do Sul, to which were assigned the roles of political police. Keywords: Brazilian dictatorship – repressive files – political police – Department of Political and Social Order of Rio Grande do Sul

Os arquivos repressivos O tratamento dado aos “arquivos repressivos” caracteriza-se como um dos assuntos centrais dos processos de investigação dos crimes cometidos pelo Estado durante a vigência das ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul. Pouco se fez para avançar na abertura desses arquivos, e mesmo nos 2 países onde há leis específicas para essa questão (caso do Brasil, por exemplo), não há uma política arquivística específica para esse tipo de documentação. Para Gerardo Caetano, o tratamento a estes 3 arquivos ainda não foi compreendido a partir da lógica da questão dos direitos humanos. A reflexão sobre a abertura dos arquivos repressivos e a sua utilização na construção histórica dos regimes de exceção insere-se nos debates referentes à História do Tempo Presente (ou Historia 4 Reciente). Vertente da chamada Nova História Política, após muitas discussões teórico-metodológicos, foi inserida definitivamente como um campo do saber histórico. Os historiadores europeus consideram o marco para o início da abrangência da história recente o fim da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, os autores concordam que a História do Tempo Presente não é um período demarcado cronologicamente. Assim, é importante destacar a transposição da História do Tempo Presente para o caso específico das ditaduras da região. Pode-se afirmar, então, que “en el Cono Sur latino-americano, fue la experiencia de las últimas dictaduras militares, que asumieron modalidades inéditas en estados criminales y terroristas, el punto de ruptura que ha promovido los 5 estudios sobre el passado cercano”. A História do Tempo Presente nos traz mais interrogativas do que respostas, conforme constata Bruno Groppo, que alerta para o fato de que o discurso sobre o passado ditatorial dos países do Cone Sul se mantenha aberto. Para ele, em cada país “la dictadura marcó una ruptura cuyo balance queda por 1

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E-mail: anandasfernandes@gmail.com Telefone: (51) 9135-2046 Formação acadêmica: Doutoranda em História/UFRGS Instituição: Técnica em Assuntos Culturais do Arquivo Histórico do RS BRASIL. Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII o o o o do art. 5 , no inciso II do § 3 do art. 37 e no § 2 do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei n 8.112, de 11 o o de dezembro de 1990; revoga a Lei n 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei n 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2011/Lei/L12527.htm>. Acesso em: 2 ago. 2012. CAETANO, Gerardo. Los archivos represivos en los procesos de “justicia transicional”: una cuestión de derechos. Perfiles Latinoamericanos, Ciudad de México, n. 37, p. 9-32, ene./jun. 2011. CHAVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (orgs.). Questões para a história do presente. Bauru/SP: EDUSC, 1999. FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia (comps.). Historia reciente: perspectivas y desafíos para un campo en construcción. Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 15.

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hacer, un balance que interrogue por sus causas, sus consecuencias y su significado. Mientras este 6 trabajo no se realice, el pasado seguirá estando presente”. Os chamados arquivos da repressão (ou repressivos) são conjuntos documentais produzidos e acumulados em decorrência de atividades de controle, vigilância e punição pela rede do sistema repressivo durante a vigência das ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul. Compõem-se por um amplo conjunto de documentos que inclui, entre outros, prontuários, dossiês, fichas criminais, relatórios sobre possíveis agentes “subversivos”, documentos e objetos pessoais apreendidos em buscas 7 policiais. Estes arquivos se apresentam como um caso paradigmático, porque afetam grande parte da sociedade da qual foram recuperados, desde o Estado e seus agentes até as vítimas e seu entorno. Na utilização dessas fontes, é necessário realizar uma análise apurada dos arquivos da repressão, pois se trata de fontes oficiais do aparelho repressivo que têm como qualidade intrínseca o 8 fato de carregarem consigo a marca impressa das instituições que as produziram. Ana Maria Camargo distingue entre os conceitos de autenticidade – o documento de arquivo constitui uma prova do processo que o gerou – e de veracidade – elemento o qual, independentemente da origem do documento, precisa ser buscado num universo que ultrapasse o seu horizonte. Além disso, é importante também chamar a atenção para o fato de que muitas das fontes produzidas pelos agentes da repressão permitem “ver o que eles [agentes secretos] viam”. De acordo com Beatriz Kushnir, estas fontes Se por um lado, tem como objetivo identificar o “fichado” no mundo, por outro, trata-se de um arquivo que explicita o universo do outro a partir da lógica interna do seu titular, ou seja, da perspectiva da Polícia. Assim, seu acervo permite tanto reconstituir uma história do “fichado”, a partir da perspectiva do agente policial, como a do “fichador”; 9 mas a óptica que deve dirigir a consulta deve ser a do “fichador”.

No momento de sua confecção, esses documentos representavam o resultado funcional de uma atividade cotidiana, e não um procedimento clandestino. Sua preservação deve-se justamente ao fato de ser o interrogatório uma operação realizada dentro de uma engrenagem instituída pelo Estado, ainda que nem todas as suas atividades estivessem inscritas no plano da legalidade. Assim, o cotejamento entre outras fontes e a produção historiográfica é imprescindível. A eficácia das medidas de reparação às vítimas das ditaduras, assim como a apuração das responsabilidades dos agentes envolvidos nos crimes de Estado ficam, em grande parte, condicionadas pelo uso dos documentos produzidos e armazenados pelas instituições repressivas daquele período. Esses arquivos facilitam vários direitos à população, tanto no nível individual quanto no coletivo. Na questão individual podem-se elencar diversos direitos, entre eles: direito dos familiares de saber onde estão os restos mortais dos desaparecidos; direito de conhecer os dados existentes sobre qualquer pessoa nos arquivos repressivos; direito à anistia para presos e perseguidos políticos; direito à reparação por danos sofridos pelas vítimas da repressão; direito à restituição de bens confiscados; direito à investigação histórica e científica. Já na questão dos direitos coletivos, os arquivos repressivos facilitam: o direito à integridade da memória escrita dos povos; o direito à verdade; o direito de conhecer os responsáveis de crimes contra os direitos humanos; o direito dos povos e nações de escolher a sua própria transição política. Nesta última questão, levanta-se a efetividade da instalação das comissões da verdade, efetuadas durante o período da chamada justiça de transição, e que experiências em diversos países já demonstraram que variam muito de acordo com a disponibilidade ou não de se ter acesso à documentação repressiva. Por fim, é importante trazer à tona a reflexão de Ludmila da Silva Catela, que expõe quatro 10 elementos centrais referentes à organização, preservação e difusão dos arquivos repressivos. Em 6

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GROPPO, Bruno. Traumatismos de la memoria e imposibilidad de olvido em los países delConoSur. In: ______; FLIER, Patricia (comps.). La imposibilidad del olvido: recorridos de la memoria en Argentina, Chile y Uruguai. La Plata: Al Margen, 2001. p. 21. Já os arquivos sobre a repressão são acervos que se originaram em decorrência da própria demanda social por esclarecimentos, pela verdade e pela justiça. Também podem ser considerados arquivos constituídos pelos próprios indivíduos ou famílias em decorrência das atividades que desempenharam no contexto dos regimes repressivos, assim como documentos que se constituíram com o objetivo de preservação da memória e conta também com fontes diversas de informações, principalmente depoimentos pessoais. Cf. GONZÁLEZ QUINTANA, Antonio. Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidos regímenes represivos. Paris: UNESCO, [1995?]. Disponível em: <http://www.unesco.org>. Acesso em: 27 mar. 2009. CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Os arquivos da polícia política como fonte. Registro, Indaiatuba/SP, n. 1, p. 7-17, jul. 2002. KUSHNIR, Beatriz. Pelo buraco da fechadura: o acesso à informação e às fontes (os arquivos do DOPS – RJ e SP). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. História da Censura no Brasil. São Paulo: Ed. da USP, 2002. p. 567. SILVA CATELA, Ludmila da. El mundo de los archivos. In: ______; JELÍN, Elisabeth (comps.). Los archivos de la

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primeiro lugar, os documentos que formam os acervos provenientes dos aparatos repressivos servem no presente para uma ação diametralmente oposta da sua origem. Produzidos na lógica da suspeição e da inculpação, são utilizados agora para compensar as vítimas que tiveram seus direitos violados durante esse período de exceção (o chamado “efeito bumerangue”). Em segundo lugar, servem para identificar os responsáveis pelos crimes cometidos pelo Estado, constituindo-se como provas. Em terceiro lugar, esses documentos são fontes para a investigação científica, permitindo à sociedade a escrita da sua história. Por conseguinte, em quarto lugar, geram ações pedagógicas e educativas sobre a intolerância, a tortura, entre outros fatores tão presentes nas ditaduras civil-militares do Cone Sul. A estrutura da polícia política no Rio Grande do Sul O Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS), vinculado à Secretaria de Segurança Pública e localizado em Porto Alegre, tinha por função exercer as ações de polícia política neste estado. A este órgão competia a coleta de informações e a repressão dos “inimigos internos” do regime ditatorial, traduzindo-se em prisões arbitrárias, sequestros, torturas, assassinatos e desaparecimentos. Embora o DOPS/RS tenha sido criado em 1937, foi com a instalação da ditadura de 11 1964 que suas diretrizes passaram a acompanhar as premissas da Doutrina de Segurança Nacional. Essa nova orientação pode ser percebida na primeira circular expedida pelo órgão, após o golpe de Estado, com as determinações que as delegacias regionais deveriam seguir, intitulada “Instruções para as delegacias de Política do Interior do Estado, no que se refere à ordem política e social”: MODELO DELEGACIA DE POLÍCIA DE: RELATÓRIO DE INFORMAÇÕES Órgão: (Delegacia de Polícia) Período: x/xx/xx a X/XX/XX Referência: Plano de Busca nº. 1/64-DOPS 1. ARTICULAÇÃO DE ELEMENTOS ESQUERDISTAS (comunistas e comunobrizolistas) 1.1 Reuniões – registrar as que tiverem sido constatadas, dando hora, data e local, casa de quem; citar nomes, filiação e residência, a periodicidade das reuniões; como são preparadas ou convocadas; quem lidera; assunto tratado (exato ou presumido, etc). 1.2 Chegadas – elementos esquerdistas ou suspeitos de o serem que chegam ao município. Nomes, filiação, tipos físicos. Datas de chegada e saída. Meio utilizado para chegar e sair. Local onde ficam hospedados (endereço). Em companhia de quem chegaram, com quem partiram. Com quem entraram em contato, quem os procurou? Onde? De onde vieram, para onde foram? Participaram de reunião? Quais seus objetivos (exato ou presumido)? 1.3 Saídas – elementos esquerdistas que tenham viajado: nomes, filiação e residências. Datas de saídas e de chegadas. Com quem viajaram? Com quem voltaram? Datas. Destino da viagem? De onde retornaram? Meios que utilizaram para ir e vir? Objetivos? Etc. 1.4 Atuação Suspeita – nomes e filiação dos elementos esquerdistas que têm tido a atuação suspeita. O que têm praticado? Quando? Como? Onde? Etc. Contatos – locais, horários, etc. 1.5 Outras Informações – citar outras informações julgadas importantes e úteis, dentro 12 do assunto geral e que não tenham sido enquadradas dentro dos itens acima.

Os órgãos de repressão, nessa nova conjuntura proporcionada pelo golpe de Estado, necessitaram de reformulação e reestruturação, pois, além das novas orientações impostas pela Doutrina de Segurança Nacional, havia a necessidade de se ajustarem aos sistemas de segurança e de informação organizados em nível federal. O Secretário de Segurança Pública do Estado deixou de ser um civil, assim como outros cargos vinculados a esta secretaria começaram a ser ocupados por militares. No contexto das comemorações dos 20 anos da decretação da Lei da Anistia, em 1999, foi criada uma comissão de representantes, escolhidos em vários segmentos organizados que outrora 11

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represión: documentos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. p. 195-221. Para uma análise das ações do DOPS/RS durante o período da ditadura brasileira, ver BAUER, Caroline Silveira. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982). Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2006. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Santo Ângelo. SOPS/SA – 4.-.136.12.1. Porto Alegre, 1964.

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estiveram envolvidos na luta armada e em movimentos de direitos humanos contra a ditadura militar, para assumir a responsabilidade de gerir os documentos produzidos pelos órgãos de repressão do estado do Rio Grande do Sul durante este período. O grupo recebeu a denominação oficial de “Comissão do Acervo da Luta contra a Ditadura”. A iniciativa integrava o processo de políticas reparatórias do estado gaúcho, fortalecendo os trabalhos da Comissão que trabalhou na busca, organização, ordenação e divulgação do acervo que conseguiu reunir. No entanto, havia uma lacuna importante no acervo histórico do período. Tratava-se da quase inexistência de remanescentes da vida material do DOPS/RS, pois praticamente toda a sua documentação foi queimada em ato público por iniciativa do governador Amaral de Souza, quando da extinção do órgão repressivo. No dia 27 de maio de 1982, quatro caminhões levaram toneladas de documentos do DOPS/RS para uma olaria da Brigada Militar em Gravataí (município da Grande Porto Alegre), onde demoraram oito horas para serem queimados. Porém, apesar da destruição física destes documentos, é possível rastrear a sua rede de informações, no que se refere à produção, circulação e difusão. A polícia política do rio Grade do Sul se 13 estendia para o interior do estado através das chamadas Seções de Ordem Política e Social (SOPS). Estas funcionavam como filiais do DOPS divididas nas regiões do interior, que recebiam e expediam informações diárias a este departamento. O Rio Grande do Sul estava dividido em 24 regiões policiais, 14 sendo que em cada delegacia-sede havia uma sala destinada à SOPS. Entretanto, somente foram encontrados e recolhidos ao Acervo da Luta contra a Ditadura documentos de dez SOPS, localizadas nos seguintes municípios: Alegrete, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul, Cruz Alta, Erechim, Lajeado, Lagoa Vermelha, Osório, Rio Grande e Santo Ângelo. Assim, o DOPS remitia ordens e instruções (como ordens de busca, por exemplo) às diversas SOPS do Rio Grande do Sul, recebendo, em contrapartida, informações. Estas seções deveriam comunicar-se diariamente com o DOPS, conforme pode ser percebido no radiograma de caráter urgente enviado por este departamento às delegacias: Solicito se digne informar este DOPS, diariamente, via rádio, pela manhã e pela tarde, situação político social dessa região, bem como qualquer fato relevante. Estes radiogramas deverão ser passados mesmo que se limitem a informar que nada ocorreu de anormal. Esta determinação visa atender determinação Senhor Secretário 15 Segurança Pública.

Os documentos que integram o Fundo Secretaria de Segurança Pública, composto de 85 caixas, são os únicos que sobreviveram à queima da documentação do DOPS/RS, em 1982, quando da sua extinção. Apesar de não se constituir em um volume documental grande, sua importância é singular, pois é o único registro da atuação da polícia política no Rio Grande do Sul, o DOPS/RS, e a sua rede de SOPS. De maneira específica, constituem o Fundo Secretaria de Segurança Pública: fichas nominais, fichas datiloscópicas, prontuários de presos, processos e resoluções, relações de pessoas que interessavam aos organismos de informação, listas de indivíduos citados em processos da polícia política, listas de indivíduos enquadrados na Lei de Segurança Nacional, entre outros. O Fundo Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul demonstra padrões de coleta, codificação, organização e difusão da informação. Assim, há a possibilidade de se reconstituir, em parte, a lógica do funcionamento do sistema repressivo brasileiro, os diferentes órgãos participantes, sua metodologia de atuação e os seus principais interesses, assim como a lógica da distribuição e da difusão da informação. Entretanto, a informação contida na documentação do Fundo Secretaria de Segurança Pública não está restrita à dimensão regional ou nacional, pois ultrapassa as dimensões das 13

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Para uma análise das ações das SOPS durante o período da ditadura brasileira, ver LIEBERKNECHT, Vanessa. “Conhece teu inimigo mas não deixa ele te conhecer”: as Seções de Ordem Política e Social (SOPS): 19641982. Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: PUCRS, 2011. De acordo com o Art. 389 do Decreto Nº. 19.998, de 1º de dezembro de 1969, a área do interior do Estado ficava organizada em 24 Regiões Policiais, com uma Delegacia Regional de Polícia em cada uma, nas seguintes localidades: 1ª Região Policial, sede em São Leopoldo; 2ª, Taquara; 3ª, Santa Maria; 4ª, Alegrete; 5ª, Cruz Alta; 6ª, Passo Fundo; 7ª, Rio Grande; 8ª, Caxias do Sul; 9ª, Bagé; 10ª, Santa Rosa; 11ª, Erechim; 12ª, Livramento; 13ª, Santo Ângelo; 14ª, Palmeira das Missões; 15ª, Lagoa Vermelha; 16ª, Santa Cruz do Sul; 17ª, São Jerônimo; 18ª, Pelotas; 19ª, Lajeado; 20ª, Cachoeira do Sul; 21ª, Santiago; 22ª, Três Passos; 23ª, Osório; 24ª, Soledade. RIO GRANDE DO SUL. Decreto Nº. 19.998, de 1º de dezembro de 1969. Estabelece a Estrutura e o Regulamento Geral da Polícia Civil da Secretaria da Segurança Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099. ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=39241&hTexto=&Hid_IDNorma=39241>. Acesso em: 31 out. 2012. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Cachoeira do Sul. SOPS/CS – 1.-.32.1.1B. Porto Alegre, 1 set. 1969.

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próprias fronteiras nacionais. Desse modo, este fundo confirma a rede de informações no âmbito do Cone Sul nas décadas de 1960 a 1980. Atualmente, o Fundo Documental Secretaria de Segurança Pública é formado pela documentação da SOPS, dos prontuários do DOPS e das fichas informacionais e datiloscópicas do Instituto de Identificação. Constitui-se de ofícios, relatórios, correspondências, bilhetes, memorandos, dossiês, ordens de busca e demais documentos. Essa massa documental reveste-se de imensa importância para os pesquisadores e para a sociedade brasileira, na medida em que o período ditatorial pode ser mapeado e discutido através de ordens de instâncias superiores e sua recepção e execução no interior do estado do Rio Grande do Sul e demais cidades do Brasil e, inclusive, de outros países, destacadamente, os do Cone Sul. Os arquivos repressivos do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul e seus registros durante a ditadura brasileira O estado do Rio Grande do Sul, devido à sua localização geográfica, adquire uma importância ímpar durante a ditadura brasileira, pois é a única unidade administrativa da federação que possui simultaneamente fronteiras com a Argentina e o Uruguai. Esta informação é fundamental, porque explica o trânsito quase incessante, durante duas décadas, de refugiados, perseguidos políticos, integrantes da luta armada e de órgãos de segurança de ambos os lados da fronteira. A primeira geração de exilados, a partir de 1964, se concentra em território uruguaio, o que se transforma em motivo de preocupação para a nascente ditadura. O monitoramento que o Brasil fará em relação ao Uruguai se deve, inicialmente, à presença de uma forte oposição política exilada: João Goulart, Leonel Brizola, Paulo Schilling, Darcy Ribeiro, Cândido Aragão, etc. Esta vigilância da polícia política do Rio Grande do Sul – que inclusive desconheceu fronteiras políticas – está atestada na documentação, assim como o monitoramento dos acontecimentos internos do país vizinho, especialmente quando da maior atuação da luta armada e da coalizão de esquerdas da Frente Ampla, no Uruguai. Considerando sua importância geopolítica, a região do Rio Grande do Sul converteu-se em área de segurança nacional, principalmente suas fronteiras com a Argentina e o Uruguai, e os municípios com presença intensa de militares e zonas portuárias. No contexto regional, destacam-se algumas conjunturas específicas: em 1964, a perseguição política contra os simpatizantes do ex-governador Leonel Brizola – principalmente os chamados Grupos dos Onze – e os militantes do Partido Trabalhista Brasileiro; entre 1964-1967, o controle das redes locais que mantém contato com os grupos de exilados no Uruguai; em 1967-1968, a perseguição ao movimento estudantil; de 1968 a 1970, a repressão aos grupos da luta armada; na década de 1970, a percepção do recrudescimento do regime, através do controle cotidiano, como a censura, o controle policial; já o final dos anos 1970 são marcados pela vigilância sobre estrangeiros que pudessem estar em território gaúcho (inclusive utilizando-se da Operação Condor para isso, como foi o caso do sequestro dos uruguaios em Porto Alegre, em 1978) e as tentativas de impedir a crescente articulação partidária, sindical e de grupos de direitos humanos. É interessante observar como os órgãos brasileiros não se restringiam a obter informações somente de atividades ocorridas no Rio Grande do Sul. A amplitude dessa rede sofisticada chegava até os países vizinhos. Pela ótica da vigilância do “inimigo interno” (mesmo que em outro país) e das “fronteiras ideológicas” isso era plenamente aceitável, dir-se-ia até, imprescindível. A averiguação das ações dos exilados brasileiros pode ser observada na ordem de busca enviada pela Secretaria de Segurança Pública para a SOPS de Lagoa Vermelha: 1 – INFORME: Há vários dias que o asilado PAULO MELO BASTOS não é visto circulando na cidade de MONTEVIDÉU (ROU). Acredita-se que MELO BASTOS tenha viajado clandestinamente para o Brasil ou para algum país da órbita socialista. 2 – PROVIDÊNCIAS SOLICITADAS: Observar e informar qualquer movimento de asilados no interior do RGS, assim como qualquer assunto relativo aos mesmos, que por ventura seja comentada nas 16 áreas regionais.

A presença do ex-governador Leonel Brizola no Uruguai era um fato alarmante para as autoridades brasileiras. Além de manter contato constante com políticos e militantes que ficaram no 16

Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. SOPS/LV – 1.2.894.10.4. Porto Alegre, 24 abr. 1967.

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Brasil, através dos seus “pombos-correio”, foi um dos responsáveis pela criação do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), em 1965. O nome de Brizola também estava vinculado aos chamados “Grupos dos Onze”, considerados como possíveis baluartes de resistência contra a ditadura, logo após o golpe de Estado. Os “grupos dos onze” foram organizados antes da deflagração do golpe, em 1963, surgindo da mobilização popular liderada por Leonel Brizola a fim de que as reformas de base fossem realizadas; para tanto, esses vários grupos de “onze companheiros” deveriam pressionar o Congresso e o presidente João Goulart. Também deveriam resistir ao golpe que os setores conservadores estavam organizando (na concepção de Brizola, o golpe de Estado encontrava-se em gestação). Os setores conservadores, na época do chamamento de Brizola para a formação dos “grupos dos onze”, utilizaram-se muito desses grupos de pressão para fomentar a campanha anticomunista estabelecida contra o presidente João Goulart, mas também contra Leonel Brizola, alegando que a existência desses grupos era prova cabal de que a “guerra revolucionária” (na concepção da Escola Superior de Guerra) estava prestes a ser deflagrada. Essa visão, que beneficiava a ditadura civil-militar brasileira, persistiu após o golpe de 1964, segundo demonstra a ordem de busca emitida pelo DOPS, de caráter secreto: ORDEM DE BUSCA 1. FATO: BRENO ARAÚJO, irmão de JAYME ARAÚJO, é viajante e reside em IJUÍ, à rua 13 de Maio; consta que sua progenitora, ALCÍDIA ARAÚJO, possui indústria em CACHOEIRA DO SUL e reside à rua Bento Gonçalves, 340 naquela cidade. Esta viaja seguidamente ao URUGUAI, sendo JAIME ARAÚJO elemento ligado e pertencente ao “GRUPO DOS ONZE”, tendo auxiliado a ELIZEU TORRES a exilar-se no Uruguai. 2. PROVIDÊNCIAS: a) Verificar a veracidade do informe; b) Antecedentes políticos dos nominados; c) Viagens, atividades políticas dos nominados; 17 d) Enviar relatório ao DOPS.

É interessante observar que a maior parte da documentação das SOPS encontrada no Acervo da Luta Contra a Ditadura no período imediato à instauração da ditadura faz referência a possíveis atuações dos “grupos dos onze”, constando muitos interrogatórios de pessoas que assinaram as listas 18 para integrá-lo. Os números divergem: desde 20 mil a 70 mil “grupos dos onze” teriam sido criados. Cabe destacar que os “grupos dos onze” não eram grupos guerrilheiros, mas, sim, grupos de pressão às reformas de base. Possivelmente, esses grupos se constituiriam em núcleos de um futuro partido revolucionário (em realidade, reformista) sob a liderança de Leonel Brizola. Eles possuíam uma orientação de defesa da legalidade, e não uma postura de deflagração de guerra, caso os setores conservadores arquitetassem um golpe contra a democracia. Outro elemento que pode ser encontrado nos documentos da polícia política é a aplicação de práticas que configuraram a ditadura brasileira como detentora do terrorismo de Estado. A aplicação das premissas da Doutrina de Segurança Nacional arrastou consigo a violência, o terror e o medo. Dessa maneira, associada a ela, manifestou-se o terrorismo de Estado, pois, para sua eficácia e a de seus instrumentos ideológicos nos locais onde necessitava ser instalada, o terrorismo advinha como consequência. A imposição do medo entre a população é elemento central no terrorismo de Estado. Utilizandose de um conjunto de instrumentos que visava “educar” (pela força e pela alienação) a sociedade – a “pedagogia do medo” – a ditadura brasileira pôde estabelecer a denominada “cultura do medo”. Os instrumentos “pedagógicos” do terrorismo de Estado objetivavam impactar os cidadãos, “ensinando-os”, através do “efeito demonstrativo”, como deveriam agir no Estado de Segurança Nacional. Ou seja, a “pedagogia do medo” era a aplicação direta das práticas coercitivas sobre a população, constantemente lembrando de que as faltas seriam castigadas. Já a utilização sistemática das práticas do terrorismo de Estado levava à construção dessa “cultura do medo”, “um cenário com um clima de tons cinzas e opacos, no qual predomina o silêncio, pois uns calam porque lhes falta a voz e outros por medo de 19 punição exemplar”. 17

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Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Cachoeira do Sul. SOPS/CS – 1.2.1282.17.5. Porto Alegre, 4 jan. 1966. Para maiores informações sobre os “grupos dos onze”, ver BALDISSERA, Marli de. Onde estão os grupos de onze?:os comandos nacionalistas na região Alto Uruguai – RS. Dissertação (Mestrado em História). Passo Fundo/RS: UPF, 2003. PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay… Terror de Estado e Segurança Nacional. Uruguai (19681985): do Pachecato à ditadura civil-militar. 2 v. Tese (Doutorado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2005. p. 97.

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Durante os “anos de chumbo” da ditadura brasileira, o principal “inimigo interno” da ditadura foi a luta armada. Esta situação, entretanto, não excluía que qualquer cidadão fosse um inimigo em potencial; na realidade, isso era desejável, pois ampliava o alcance do leque de terror. Esta definição do “inimigo potencial” amplificava o terror e o arbítrio porque o “universo das vítimas potenciais jamais é claramente 20 definido de antemão” e isto dá então “ao impacto subjetivo da ameaça um lugar totalmente particular”. O caráter da imprevisibilidade é o que gera sua maior eficiência. Atos considerados simples e triviais, em outros tempos, poderiam ser considerados perigosos e passíveis de punição. Isso gerava a “cultura do medo”, baseada em um medo estrutural, ou seja, decorrente das práticas produzidas pelo próprio Estado, e disseminadas para a população. Instalava-se um “terror permanente”, que atingia as situações mais corriqueiras do cotidiano, percebido no olhar autoritário do policial, no medo de expressar opiniões, de escutar determinadas músicas, de ler determinados livros, entre outros, conforme se depreende do documento a seguir: Pedido de busca nº 441/72 / DCI/SSP/RS 1 – Dados conhecidos: 1.1 – No dia 06/10/72 foi detido nessa cidade o estudante de nome ERWIN ROMMEL DOS SANTOS. 1.2 – O nominado é filho de LOURIVAL CÂNDIDO DOS SANTOS e LUCI CÂNDIDO DOS SANTOS. 1.3 – Quando de sua detenção o nominado trazia consigo um livro intitulado “COMO 21 TORNAR-SE UM BOM COMUNISTA”, de Wayko.

Uma das principais especificidades do território gaúcho é a questão da fronteira simultânea com Argentina e Uruguai. Assim, o Rio Grande do Sul exerceu um papel de baluarte da defesa nacional da ditadura brasileira, utilizando-se intensamente do seu aparato repressivo para tal. Paradoxalmente, para a oposição e para as vítimas da Doutrina de Segurança Nacional, era praticamente uma rota obrigatória para conexão com o exterior. O Rio Grande do Sul, inclusive, foi palco de operativos da Condor. O Brasil havia se tornado local de encontros e de rota de saída e de entrada de organizações estrangeiras em função de, no final da década de 1970 e início da década de 1980, apontar caminhos para a abertura, como a liberdade de imprensa, a reorganização do movimento sindical e a oposição partidária, entre outros. Entretanto, a máquina repressiva da ditadura brasileira não havia sido desmontada, e tampouco estava desconectada da realidade global do Cone Sul, como se observa no documento abaixo: Pedido de busca nº 23-1015/76/DCI/SSP/RS Dados conhecidos: 1. Terroristas argentinos integrantes das organizações “EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO DO POVO – ERP” e “MONTONEROS” receberam orientação de seus chefes para procurarem homiziar-se em território brasileiro. Aqui, aguardariam a diminuição da pressão anti-subversiva na REPÚBLICA ARGENTINA, para onde regressariam quando a situação fosse menos desfavorável. No momento, a identificação do combate contínuo à subversão empreendido pelas FFAA e de SEGURANÇA argentinas impondo contínuos revezes às principais organizações terroristas, tem forçado um retraimento geral. 2. Em consequência, os terroristas argentinos poderão penetrar em nosso território através de diversos pontos e utilizando os mais diferentes meios de transportes, explorando os atuais tratados recíprocos que facilitam o trânsito dos respectivos nacionais. DADOS SOLICITADOS: a) Manter rígido controle sobre a permanência de argentinos em nosso território coibindo qualquer situação irregular. b) Deter e identificar todo o estrangeiro encontrado em situação irregular no País, encaminhando-o para o SR/DPF (DPF) para a observância estrita [...]. 22 c) Caso ocorra tal detenção, informar a este Departamento.

Por fim, apesar de a documentação do DOPS/RS ter sido oficialmente destruída em 1982, ainda é possível averiguar a sua rede de atuação, por meio de diversos outros órgãos que integravam a comunidade de segurança e informação. Entretanto, essas ações não se dão na totalidade: o que se 20 21

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CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 190. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. SOPS/LV – 1.2.1118.13.5. Porto Alegre, 9 out. 1972. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. SOPS/LV – 1.1.792.8.3. Porto Alegre, 15 dez. 1976.

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consegue são juntar algumas peças para tentar-se chegar a uma dinâmica e metodologia próprias deste órgão repressivo. Assim, é importante destacar que a documentação sob a guarda do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul foi totalmente preservada e tem caráter único, não possuindo originais em outros lugares. Somente esse conjunto documental demonstra a atuação da polícia política do estado do Rio Grande do Sul. Os documentos têm acesso irrestrito, sendo intensamente acessados, tanto para pesquisas de cunho histórico, como para subsidiar processos de reparação judicial.

Fontes Consultadas: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – Acervo da Luta Contra a Ditadura – Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Santo Ângelo. SOPS/SA – 4.-.136.12.1. Porto Alegre, 1964. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Cachoeira do Sul. SOPS/CS – 1.-.32.1.1B. Porto Alegre, 1 set. 1969. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Cachoeira do Sul. SOPS/CS – 1.2.1282.17.5. Porto Alegre, 4 jan. 1966. Fundo: Secretaria de Segurança Pública. Subfundo: Polícia Civil. Departamento de Polícia do Interior. Delegacia Regional de Lagoa Vermelha. SOPS/LV – 1.1.792.8.3. Porto Alegre, 15 dez. 1976. Referências Bibliográficas: AQUINO, Maria Aparecida de et al (orgs.). A alimentação do leviatã nos planos regional e nacional: mudanças no DEOPS/SP no pós 1964. Família 50. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial, 2002. BALDISSERA, Marli de. Onde estão os grupos de onze?:os comandos nacionalistas na região Alto Uruguai – RS. Dissertação (Mestrado em História). Passo Fundo/RS: UPF, 2003. BAUER, Caroline Silveira. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982). Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2006. BRASIL. Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm>. Acesso em: 2 ago. 2012. CAETANO, Gerardo. Los archivos represivos em los procesos de “justicia transicional”: una cuestión de derechos. Perfiles Latinoamericanos, Ciudad de México, n. 37, p. 9-32, ene./jun. 2011. CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Os arquivos da polícia política como fonte. Registro, Indaiatuba/SP, n. 1, p. 7-17, jul. 2002. CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: Ed. 34, 2001. CHAVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (orgs.). Questões para a história do presente. Bauru/SP: EDUSC, 1999. FERNANDES, Ananda Simões. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre a ditadura civil-militar brasileira e o Uruguai (1964-1973). Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2009. JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). Tese (Doutorado em História). São Paulo: USP, 2008. GONZÁLEZ QUINTANA, Antonio. Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidos regímenes represivos. Paris: UNESCO, [1995?].Disponível em: <http://www.unesco.org>. Acesso em: 27 mar. 2009. KUSHNIR, Beatriz. Pelo buraco da fechadura: o acesso à informação e às fontes (os arquivos do DOPS – RJ e SP). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. História da Censura no Brasil. São Paulo: Ed. da USP, 2002. LIEBERKNECHT, Vanessa. “Conhece teu inimigo mas não deixa ele te conhecer”: as Seções de Ordem Política e Social (SOPS): 1964-1982. Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: PUCRS, 2011.

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PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay… Terror de Estado e Segurança Nacional. Uruguai (1968-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. 2 v. Tese (Doutorado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2005. PADRÓS, Enrique Serra; BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, Vanessa Albertinence; FERNANDES, Ananda Simões. A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul(1964-1985): história e memória. 2. ed. rev. Porto Alegre: Corag, 2010. 4 v. RIO GRANDE DO SUL. Decreto Nº. 19.998, de 1º de dezembro de 1969. Estabelece a Estrutura e o Regulamento Geral da Polícia Civil da Secretaria da Segurança Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.ASP? Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=39241&hTexto=&Hid_IDNorma=39241>. Acesso em: 31 out. 2012. SILVA, Shirlene Linny da. Construindo o direito de acesso aos arquivos da repressão: o caso do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação). Belo Horizonte: UFMG, 2007. SILVA CATELA, Ludmila da. El mundo de los archivos. In: ______; JELÍN, Elisabeth (comps.). Los archivos de la represión: documentos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. p. 195-221.

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VIII - Debates sobre ditaduras no campo jurĂ­dico

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Uma luta inconclusa: reflexões sobre a Lei da Anistia (L. 6.683/79) e o processo de redemocratização no Brasil Débora Strieder Kreuz

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Resumo: O presente trabalho objetiva refletir sobre o processo de criação da Lei 6.683/79, conhecida como a Lei da Anistia, bem como sobre seus aspectos jurídicos mais polêmicos, e ainda sobre os reflexos de tal regramento na sociedade brasileira atual. Dessa forma, pretende-se contribuir para o debate que se acentua cada dia mais, tendo em vista o seu crescimento na sociedade, incitado, sobretudo, pela nomeação, em 2012 da Comissão Nacional da Verdade. Ressalte-se que a referida lei é uma afronta explícita à legislação internacional da qual o Brasil é signatário, tendo em vista a suposta proteção que oferece aqueles que violaram direitos fundamentais dos que se opuseram às arbitrariedades do governo. Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar – Anistia – Direitos Humanos Abstract: This paper aims to reflect on the process of creation of the Law 6.683/79, known as the Amnesty Law, as well as its most controversial legal issues, and even on the reflections of such rules in brazilian society today. Thereby, we intend to contribute to the debate that has increased more each day, given the growth in Brazilian society about the theme, urged especially by the nomination in 2012 of the “National Commission of Truth”. It should be noted that this law is an explicit affront to international law to which Brazil is a signatory, in view of the supposed protection it offers those who violated the fundamental rights of those who opposed the arbitrariness of government. Key words: Civil-Military Dictatorship - Amnesty - Human Rights

Introdução Durante cerca de 20 anos o Brasil viveu uma Ditadura Civil-Militar, a qual foi implantada com o golpe de 1964 e perdurou até 1985, com a eleição, mesmo que indireta, de um presidente civil. Nesse espaço de tempo, o país esteve imerso em um regime político que prendia, torturava, matava e desaparecia com aqueles que se opusessem de qualquer forma às arbitrariedades cometidas. Em 1979, ainda sob a vigência de tal governo, foi promulgada a Lei da Anistia (Lei 6.683/79), a qual foi um marco muito importante no processo de retorno ao regime democrático. Após a sua promulgação grande parte dos exilados políticos puderam retornar ao país e auxiliar em tal momento de transição. Contudo, a referida lei possui inúmeros pontos controversos, pois, na percepção militar e de alguns setores conservadores da comunidade jurídica e da sociedade, instituiu-se a anistia para os militares que comandavam práticas que atentam os direitos fundamentais mínimos, como a tortura. Deve-se ressaltar que essa foi uma política de estado vigente no período ditatorial, ou seja, não foi apenas “excesso” de alguns, como muitas vezes é argumentado. Após o retorno ao regime democrático, assuntos referentes à Ditadura Civil-Militar, como a tortura, desaparecimentos forçados e julgamentos de militares que praticaram tais atos e que violaram direitos básicos foram colocados no esquecimento, tendo em vista a suposta “reconciliação” entre torturadores e torturados. Deve-se ressaltar que tal argumento é equivocado, pois, para que realmente haja a reconciliação nacional, deve-se promover políticas públicas que busquem o resgate de memória do período, a análise de como os fatos ocorreram - pois muitos deles, inclusive mortes e desaparecimentos foram forjados pelos agentes da repressão, de forma a se isentarem de 2 responsabilidade - e o julgamento daqueles que perpetraram tais práticas. Tais medidas, em nosso país, andam a passos lentos. O argumento principal daqueles que defendem o silêncio ante tal período é o de que a Lei da Anistia colocou um ponto final em tais questionamentos. Contudo, acredita-se que o equívoco ante tal 1

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Graduação em História pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Acadêmica do curso de Direito da mesma instituição. Email: debora_kreuz@yahoo.com.br. Tel: (55) 8122-9659 Esses são os fundamentos da chamada Justiça de Transição. Conforme: MEZAROBBA, Glenda. Da necessidade de discutir a anistia. Disponível em: http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2008/jusp840/ pag02.htm. Acesso em: 02/01/13.

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afirmativa deve ser esclarecido, pois, muitas são as confusões daí derivadas. E esse será o foco do presente trabalho, ao qual nos deteremos a partir de agora. A Ditadura Civil-Militar e o contexto de surgimento da Lei da Anistia A imersão a que foi submetido o país ao regime autoritário a partir de 1964 foi quase que total. Muitas das garantias existentes naquele momento foram suprimidas, tendo em vista a concentração de poderes nas mãos dos comandantes militares, muitas vezes em detrimento, inclusive, do poder do Congresso Nacional. Os ditadores poderiam, dessa forma, legislar sem serem submetidos ao poder de fato competente para tal. O meio utilizado para levar a cabo tal empreitada foram os chamados Atos Institucionais, os quais se sucederam no decorrer do regime. Em 1965, com a promulgação do Ato Institucional nº2: “que acaba com todos os partidos políticos e permite ao Executivo fechar o Congresso Nacional quando bem entender; torna indiretas as 3 eleições para presidente da República e estende aos civis a abrangência da Justiça Militar.” , teve-se a dimensão do quão afetadas poderiam ser as garantias individuais, pois, todo aquele que fosse processado por algum crime previsto nos decretos-leis 314 e 898, de 1967 e 69, definidos pelos militares como sendo contra a segurança nacional passou a ser julgado pela justiça militar, ferindo assim, a clássica separação de competências garantida em um estado democrático de direito. Também foram extintos todos os partidos políticos, passando a existir, legalmente, somente a oposição consentida, representada pelo Movimento Democrático Brasileiro – MDB, sendo que, aqueles que não concordavam com as suas diretrizes, passaram a atuar na clandestinidade. Em dezembro de 1968, a situação tornou-se ainda mais grave, tendo em vista a promulgação do Ato Institucional nº 5, o qual dava ao presidente: [...] em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a: decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco 4 de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus.

Ou seja, além de serem julgados por um tribunal militar, os opositores tiveram uma das principais garantias contra a prisão arbitrária – o habeas corpus – extinto. Dessa forma, e com os métodos que utilizavam os agentes da repressão, toda a qualquer forma de contestação passou a ser duramente 5 reprimida, inclusive com a tortura, a morte e o desaparecimento de inúmeras pessoas . Para Mezarobba: Marcada pela inexistência de estado de direito e, portanto pelo constante desrespeito a princípios jurídicos fundamentais e pela ampla margem de arbítrio de que dispunham as autoridades policiais, a realidade imposta pela doutrina de segurança nacional contava 6 com a ajuda da Justiça Militar para manter-se.

Até 1975, foram praticamente aniquiladas todas aquelas organizações que, de forma armada ou 7 não, opuseram-se as arbitrariedades dos governos. O exílio foi o caminho dos que não foram presos ou mortos e, de lá, que se iniciou o movimento de denúncia das atrocidades que estavam sendo cometidas pelo governo brasileiro. Já em 1974, o general Ernesto Geisel assumiu o governo com a proposta de realizar a abertura política “lenta, gradual e segura”, ou seja, a transição democrática deveria realizar-se sem inconveniências para o regime militar. Tal processo derivou da grande crise econômica enfrentada pelo país, bem como com o aumento da oposição interna e externa. A transição foi realmente lenta, de forma a terminar somente em 1985. Em 1979 foi promulgada a Lei da Anistia, a qual, mesmo sendo fruto de uma luta intensa de amplos setores da sociedade civil, não contemplou todas as suas demandas. O que se almejava era a anistia “ampla, geral e irrestrita”, ou seja, que abrangesse a todos os perseguidos políticos e condenados pela ditadura, o que não ocorreu, tendo em vista que os condenados pelos chamados “crimes de sangue” não foram beneficiados pela mesma. Dessa forma, cabe já salientar, que o argumento de que a 3 4 5

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ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5. Acesso em: 28/02/13. Até hoje, não sabemos ao certo o número de pessoas que foram torturadas naquele período. Estão desaparecidos 138 indivíduos e mortos 357. Contudo, tal número pode ser muito maior, em virtude do silêncio que ainda impera em inúmeras regiões. Fonte: Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos / Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos - - Brasília : Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007 MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências – um estudo do caso brasileiro. Dissertação de mestrado em Ciência Política. Universidade de São Paulo: 2003. GORENDER, Jacob. O combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003, 6ª ed.

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anistia foi negociada entre os todos os setores envolvidos no processo não procede, pois, mesmo com inúmeras propostas da sociedade civil, o texto que foi aprovado, num Congresso Nacional ainda dominado pelo medo, foi a proposta enviada por João Figueiredo, general que estava no poder. Discussão sobre os aspectos jurídicos mais polêmicos da Anistia Inicialmente, cabe destacar que um dos pontos mais polêmicos da lei ora em comento se encontra no seu artigo 1º e também no inciso 1º: Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza 8 relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

Ressalte-se que a redação de tais dispositivos, obviamente dúbia e obscura, foi proposital, tendo em vista o interesse do governo autoritário de se incluir na proteção concedida e garantir, dessa forma, a sua total tranquilidade após o término do regime. Cabe destacar, nesse sentido, que a autoanistia é condenada, tendo em vista que a mesma impede que aqueles que prenderam arbitrariamente, torturaram e mataram sequer possam ser investigados, diferentemente dos perseguidos, que foram processados, muitas vezes, inclusive, sem respeito às mínimas garantias processuais. A interpretação que prevaleceu já naquele momento, não sem críticas, foi a de que os agentes da repressão que, supostamente, cometeram crimes conexos com os dos guerrilheiros também foram abrigados pela lei ora em comento. Tal posicionamento, desde o início, foi atacado por inúmeros juristas, como se pode depreender da afirmação de Nilo Batista: A tortura e o homicídio de um preso não são crimes políticos, nem são crimes conexos a crimes políticos, objetiva ou subjetivamente. São crimes comuns, são repugnantes 9 crimes comuns, que estão a merecer - até quando? - processo e julgamento.

Tal entendimento também é presente na atualidade. De acordo com Soares: A constituição de 1988, bem como a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis reconhecem a tortura como crime contra a humanidade, sendo assim imprescritível e não sujeito à graça ou anistia. O próprio texto na lei de anistia não 10 concede anistia a crimes contra a humanidade, mas apenas a crimes políticos.

Nesse sentido, é importante ressaltar que inúmeras leis de autoanistia já foram condenadas por Tribunais Internacionais. Cita-se o exemplo da Lei existente no Peru, que foi declarada incompatível com os Tratados de Direitos Humanos assinados pelo país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para Trindade: “[...] as leis de auto-anistia estão viciadas de nulidade ex tunc, de nulidade ab initio, 11 carecendo portanto de todo e qualquer efeito jurídico.” No comento de Piovesan: Conclui a Corte que as leis de “autoanistia” perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que 12 constituiria uma manifesta afronta à Convenção Americana. 8

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BRASIL. Lei nº 6.683/79. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. Acesso em: 25/02/13. BATISTA, Nilo. Aspectos jurídicos-penais da anistia. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, nº26. JulDez 1979. Pg 33-42. SOARES, Adalgisa Bozi. Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da Verdade. Disponível em: http://mundorama.net/2008/11/21/lei-de-auto-anistia-no-brasil-obstrucao-da-justica-e-da-verdade-por-adalgisabozi-soares/. Acesso em: 25/02/13. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O fim das “leis” de auto-anistia. Disponível em: http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2394&Itemid=2. Acesso em: 26/02/13. PIOVESAN, Flávia. Direito Internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pg. 91-107.

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Faz-se também necessária a discussão no referente a questão dos crimes conexos mencionados no artigo 1º supra mencionado. De acordo com Bicudo: Nos crimes conexos, um crime é pressuposto do outro. A unidade delitiva que se manifesta pela unidade do fato é o fundamento do instituto. Fora daí não existem crimes conexos, mas independentes, porque palmilham caminhos diferentes e perseguem 13 objetivos que não se confundem.

Dessa forma, não é possível que delitos cometidos por lados que se opunham completamente naquele momento sejam considerados conexos uns com os outros. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, na sentença da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF153, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB em 2008, afirma que a conexidade dos crimes faz-se presente, fato que, acredita-se, é um equívoco, tendo em vista toda a doutrina, que fala no sentido oposto, que envolve tal instituto. Para Piovesan: “Não se pode falar em conexidade entre os fatos praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou a estas e não àqueles; 14 perdoou as vítimas e não os que delinquem em nome do Estado.” ******* Também se deve comentar que, para que exista anistia, é necessário que haja um processo, onde exista a menção da prática do delito pelo sujeito. Os militantes de esquerda foram, mesmo que sem as garantias básicas, processados e punidos, o que não ocorreu com os agentes do governo. Estes 15 sequer foram denunciados pela prática de ilícitos penais. Dessa forma, se não existiu a denúncia, de forma alguma poderiam ser anistiados, afinal, não houve o reconhecimento da prática do delito. ******** Os argumentos acima citados são de ordem interna, ou seja, já no ordenamento jurídico nacional existem incompatibilidades inadmissíveis. Em nome da segurança jurídica e para que o respeito aos princípios democráticos seja garantido, tais aberrações não poderiam ocorrer. Outros tantos problemas podemos encontrar se analisarmos a Lei de Anistia brasileira face ao Direito Internacional, especialmente 16 no tocante aos Direitos Humanos, os quais são, nas palavras de Piovesan o “mínimo ético irredutível” . Inúmeras são as convenções assinadas pelo Brasil que proíbem toda e qualquer forma de tratamento degradante ao indivíduo, especialmente a tortura. Em nenhum momento esta pode ser admitida. Contudo, sabe-se que a mesma foi aplicada sistematicamente pelos agentes da repressão para que todas as informações possíveis fossem colhidas. Para citar apenas alguns regramentos internacionais que fazem referência à temática ora em comento, ratificados pelo Brasil temos a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Piovesen, fazendo uma síntese de tais regramentos, dispõe que: Ao direito de não ser submetido à tortura somam-se o direito à proteção judicial, o direito à verdade e o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violação a direitos humanos. [...] Também é dever do Estado assegurar o direito à verdade, em sua dupla dimensão – individual e coletiva – em prol do direito da vítima e de seus familiares (o que compreende o direito ao luto) e em prol da sociedade à construção da memória e 17 identidade coletivas.

Para finalizar tal momento, menciona-se também que a Constituição Federal, no seu artigo 5º, é enfática quando trata de crimes contra a humanidade, como a tortura: 5º: [...] XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos 13

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BICUDO, Helio. Lei da Anistia e crimes conexos. In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs. 85-7. PIOVESAN. Flávia. Op. Cit. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/970/anistia-graca-e-indulto-renuncia-e-perdao-decadencia-eprescricao. Acesso em: 25/02/13 PIOVESAN, Flavia. Op. Cit. PIOVESAN. Op Cit.

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como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, 18 podendo evitá-los, se omitirem;

Assim, percebe-se que as falhas jurídicas da lei são inúmeras. A obscuridade é marca presente, pois, como já mencionado, interessava aos agentes do governo autoritário saírem ilesos das prováveis consequências de seus atos. O lento caminhar brasileiro Desde a promulgação da anistia a luta para que a história do período autoritário não seja apagada continua. Mesmo com o processo de esquecimento a qual foi submetida a sociedade brasileira, com a suposta “reconciliação” entre os lados opostos, especialmente os familiares de mortos e desaparecidos políticos e os que lutam pela causa dos direitos humanos não deixaram que a amnésia coletiva prevalecesse. Sua luta teve uma das primeiras conquistas em 1995, quando foi aprovada a Lei 9.140/95, também conhecida como Lei dos Desaparecidos. Por meio dela, o Estado brasileiro “[...] reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em 19 atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.” Ou seja, houve o reconhecimento, por parte do estado brasileiro, de que opositores foram mortos em razão da sua militância. Contudo, não existiu nenhum esforço, por parte desse mesmo estado em punir aqueles que executaram tais atos, com o argumento de que a Lei da Anistia seria ferida. Os familiares puderam apenas requerer atestados de óbito de seus entes e requerer indenizações, sendo que os responsáveis pelo seu desaparecimento continuaram impunes. Para Mezarobba: Se não há dúvidas de que a Lei 9.140 representou um avanço [...], seus termos não foram suficientes, na interpretação dos parentes das vítimas, entre outros motivos, pelo fato de a iniciativa desobrigar o Estado a identificar e responsabilizar os que estiveram diretamente envolvidos na prática dos crimes e pelo ônus da prova ter sido deixado aos 20 próprios familiares.

Nessa sequência, em 2001, foi criada, por Medida Provisória, a Comissão da Anistia, a qual “[...] está analisando os pedidos de indenização formulados pelas pessoas que foram impedidas de exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política desde 18 de setembro de 1946 até cinco 21 de outubro de 1988.” Até o momento, já foram encaminhados para a comissão mais de 50 mil requerimentos. A partir desse número, pode-se ter uma pequena noção de como a ditadura afetou a vida de milhares de pessoas. Para dar visibilidade a tal temática, são promovidas por todo o país as chamadas Caravanas da Anistia, onde alguns requerimentos são analisados de forma pública. Em 2008, uma das famílias atingidas pela repressão, protocolou Ação Declaratória contra o coronel do Exército, Carlos Brilhante Ustra, de forma a poder chamá-lo de torturador. Já na primeira instância, em 2010 foi julgada procedente e, em sede de recurso, no ano de 2012, também. Embora não possua efeitos penais, a sentença demonstra que o judiciário, em certos setores, encontra-se mais aberto a discutir tais questões e, novamente, tais questões ganham visibilidade perante a sociedade. A sentença do “Caso Gomes Lund e outros versus Brasil”, proferida em 2010 foi emblemática, tendo em vista a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por inúmeros fatos, como a não persecução penal daqueles que violaram os direitos humanos, em contraposição ao assinado pelo país nas convenções internacionais, a ausência de informações sobre os desaparecidos, dentre inúmeros outros aspectos. Uma das recomendações ao país era de que fosse criada uma Comissão da Verdade, com o objetivo de esclarecer as violações de direitos ocorridas no período, bem como promover políticas de resgate da memória e também a punição dos repressores. Em 2011 foi criada a lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade – Lei 12.528/11 –, como forma de cumprir parte da sentença. Embora não tenha o poder de punir penalmente e com o tempo de atuação muito curto – apenas dois anos - veio como meio de fazer conhecer a verdade sobre o período e dar visibilidade a demandas que há décadas perturbam parte da sociedade. Assim, faz-se importante a quebra de um argumento utilizado, que menciona que o “remexer nas 18

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BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 25/02/13. BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Mortos e desaparecidos políticos. Disponível em: http://www.sedh.gov.br/mortosedesap. Acesso em: 26/02/13. MEZAROBBA, Glenda. O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pg. 109-119. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJABFF735EITEMID48C923D22C804143 AB475A47E582E1D8PTBRIE.htm. Acesso em: 26/02/13.

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feridas faria mal a sociedade”: O esquecimento e a negação da memória têm sido um traço marcante no comportamento das elites brasileiras. O passado é visto como uma presença incômoda que deve ser soterrada em nome da tranqüilidade do presente. Tranqüilidade para quem?, deve-se perguntar. Uma pessoa, uma cidade, um povo ou um país que 22 desconhece sua história e esquece seu passado caminha sem rumo para o futuro.

Conclusão Muito se avançou no tocante às questões ainda abertas da Ditadura Civil-Militar. Porém, muito mais se tem a avançar. A recente condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso referente à Guerrilha do Araguaia, demonstra o quanto algumas questões polêmicas devem ser objeto de análise com a busca de soluções, especialmente no que se refere aos desaparecimentos políticos, a elucidação de como, de fato, as mortes ocorreram e também o julgamento/punição daqueles que violaram os direitos mais fundamentais. Sabe-se que a impunidade dos agentes da repressão não contribui para a efetivação de um regime democrático, como menciona Herzog: Não há nada que justifique a tentativa de pôr um ponto final na questão sem esclarecer o que ocorreu, negando-se a apurar a circunstâncias das mortes e torturas. O conhecimento desses fatos não abala a democracia brasileira. Ao contrário, é quando 23 não prevalece a justiça que os princípios democráticos são enfraquecidos.

Assim, acredita-se que, para além do conformismo jurídico existente, o Judiciário, impulsionado também pela sociedade civil organizada deve cumprir seu papel de protetor da coletividade. Para Moreira: Nessa ótica, é imprescindível ao desenvolvimento de uma democracia que ela possa confrontar-se com o seu passado de barbárie e repressão política, demarcando claramente a diferença que guarda deste passado obscuro e sinalizando fortemente para uma nova direção, na qual o respeito aos direitos humanos e a manutenção das 24 liberdades públicas sejam pilares inegociáveis e inexpugnáveis.

Dessa forma, pretendeu-se apresentar os argumentos mais utilizados em defesa da Lei da Anistia, demonstrando o quão inadmissíveis os mesmos são, tanto no tocante ao direito interno quando ao direito internacional. Acredita-se que o Estado brasileiro caminha em direção à efetiva garantia dos direitos humanos, mas, enquanto as lacunas de tal momento ainda persistirem, não há que se falar em “passado”, pois, os questionamentos estão presentes e a sociedade precisa de respostas.

Referências Bibliográficas: ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985. BATISTA, Nilo. Aspectos jurídicos-penais da anistia. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, nº26. Jul-Dez 1979. Pg 33-42. BICUDO, Helio. Lei da Anistia e crimes conexos. In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs. 85-7. BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: 22

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PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2012, 4ª edição. HERZOG. André. Anistia não é lei do silêncio. In: In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs 81-3. MOREIRA, José Carlos. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (coords.). Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Fórum, 2010.

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. BRASIL. Lei 6.689/79. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Mortos e desaparecidos políticos. Disponível em: http://www.sedh.gov.br/mortosedesap HERZOG. André. Anistia não é lei do silêncio. In: In: TELES, Janaína (org). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. 2ª Ed. Pgs 81-3. GORENDER, Jacob. O combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003, 6ª ed. MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências – um estudo do caso brasileiro. Dissertação de mestrado em Ciência Política. Universidade de São Paulo: 2003. _______________. O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pg. 109-119. ________________. Da necessidade de discutir a anistia. Disponível em: http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2008/jusp840/pag02.htm MOREIRA, José Carlos. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virginia Prado (coords.). Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Fórum, 2010 PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2012, 4ª edição PIOVESAN, Flavia. Direito Internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (coord). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pg. 91-107 SOARES, Adalgisa Bozi. Lei de (Auto) Anistia no Brasil: Obstrução da Justiça e da Verdade. Disponível em: http://mundorama.net/2008/11/21/lei-de-auto-anistia-no-brasil-obstrucao-da-justica-e-da-verdadepor-adalgisa-bozi-soares/. Acesso em: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O fim das “leis” de auto-anistia. em:http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2394&Itemid=2.

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Disponível


Bourdieu e o campo jurídico: debate sobre a autonomia do Supremo Tribunal Federal durante a ditadura militar brasileira (1964-1979) Mateus Gamba Torres

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Resumo: Conforme explica Pierre Bourdieu, em seu livro O Poder Simbólico, em seu capítulo VIII intitulado A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico, os juristas e historiadores do direito concebem a história do direito como a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos e dos seus métodos, que somente podem ser compreendidos através de sua dinâmica interna, concebendo-o como um sistema fechado e autônomo. A intensão de Kelsen em sua “teoria pura do direito” foi de construir um campo de doutrinas e regras que fossem totalmente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo seu próprio fundamento. Durante a ditadura militar brasileira de 1964 a 1979, o Supremo Tribunal Federal sofreu diversas intervenções pelo Executivo golpista e sofreu pressões vindas do mundo social tanto conservadoras como contestadoras, por isso a pesquisa se baseia no conceito de autonomia do campo jurídico de Bourdieu e como isso faz parte de um poder simbólico atribuído a este campo que muitas vezes se adapta as situações de pressões advindas de outros poderes ou outros setores da sociedade. Palavras-chave: Bourdieu, Ditadura Militar, Supremo Tribunal Federal

Dias após o golpe civil-militar de 1964, acontecimentos referentes às esferas de poder faziam notícias explodirem nos jornais em letras garrafais. Eram muitos os acontecimentos, uma “revolução” estava acontecendo, segundo os militares, para reestabelecer a ordem. Para isso acontecer, o Presidente da República João Goulart, foi deposto e o Congresso Nacional declarou vaga a Presidência da República. Assume o Presidente da Câmara Ranieri Mazzili, porém havia um aparato constitucional ao menos teoricamente a cumprir. Esse aparato, porém, que não previa golpes de estado que depunham presidentes, e que não dava respostas legais para se resolver o impasse: quem iria posteriormente assumir a Presidência da República e de que forma? A Constituição de 1946 previa que naquele caso, na ausência definitiva do Presidente da República e do Vice-Presidente da República, assumiria o Presidente da Câmara dos Deputados e se convocariam em 30 dias eleições indiretas para presidente, na qual os eleitores seriam os membros do congresso nacional. (BRASIL, 1946) Nesse contexto, vários políticos que apoiaram o golpe de estado se lançaram candidatos: General Kruel, Eurico Gaspar Dutra (ex-presidente) e o próprio Presidente da Câmara Ranieri Mazzili. (FOLHA DE SÃO PAULO, 1964). Porém o “Candidato” escolhido foi o General Humberto Castelo Branco, militar que foi um dos conspiradores do golpe. (FOLHA DE SÃO PAULO, 1964) Porém, a solução “Constitucional” pelo visto parecia democrática demais. No dia 09 de abril de 1964, após a aprovação de uma lei que regulamentava a eleição indireta para Presidente da República, o Comando Militar, com o intuito de “institucionalizar” a “revolução”, como já mencionado pelo então Ministro da Guerra Costa e Silva, decreta o primeiro de muitos outros “Atos Institucionais”.(FOLHA DE SÃO PAULO, 1964) Mas, o que seria um Ato Institucional? Uma lei emergencial? Uma reforma constitucional? Qual era o discurso oficial sobre a natureza do Ato Institucional? À época algumas explicações foram dadas. Segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Medeiros Silva, sem o Ato Institucional, não teria havido uma Revolução, mas um golpe de estado, ou uma revolta, destinados a substituir pessoas dos altos postos do Governo, conservando, porém, as mesmas regras jurídicas, os mesmos métodos de governo, políticos e administrativos, que provocaram a deterioração do poder e a sua perda.(1964) 2

Temos então a opinião de um jurista reconhecido pelo seu notório saber jurídico. Um Ministro do Supremo explica que, sem mudança na estrutura legal brasileira, o movimento de 1964 seria apenas um 1 2

Doutorando em História – UFRGS, Professor Assistente – UFFS. Email: mateustorres@ig.com.br. O notório saber jurídico era um dos requisitos da Constituição Federal de 1946 para que um jurista fosse nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal. Conforme: BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/legislacao>. Acesso em: 5 jun. 2012.

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golpe ou uma revolta. No raciocínio do Ministro, a mudança legal após uma tomada de poder não só se justifica como também se faz necessária, sob pena de o movimento ser considerado apenas uma mudança de postos administrativos no alto escalão do governo. Mesmo assim, não é uma explicação conceitual do ato ou de sua natureza. Nesse artigo percebe-se que o ministro se esforça para explicar a situação vigente do ponto de vista jurídico, porém, analisando as palavras do Ministro, percebe-se que este apenas deu-se ao trabalho de plagiar formalmente o que já está escrito no próprio Ato Institucional. Tais explicações, retiradas de um artigo “científico”, foram dadas apenas dois dias após a publicação do Ato. O próprio Ministro afirma que está estabelecendo apenas uma leitura rápida do Ato Institucional. Mas 20 dias depois, o Ministro já parecia ter as respostas necessárias, os conceitos jurídicos necessários para internalizar na linguagem jurídica este acontecimento no mundo social explica juridicamente o que ocorreu e porque tudo aquilo era perfeitamente aceitável. O Ato Institucional de 09 de abril de 1964, é uma lei constitucional temporária, cuja vigência, iniciada na sua data, terminará em 31 de janeiro de 1966. No período limitado, que corresponde ao Mandato do Presidente da República, eleito pela forma nele estabelecida, alguns preceitos da Constituição de 1946 deixarão de vigorar, porque outros também de natureza constitucional inscritos no próprio ato, sobre aqueles prevalecerão. (SILVA, 1964)

Essas medidas judicias tomadas no Brasil, após o golpe de 1964, o governo ditatorial possuem o objetivo de interferir no funcionamento do poder judiciário e consequentemente do campo judiciário como um todo. Todavia, o ato institucional nº 1 não modificou a estrutura judiciária brasileira, mas determinava a investigação sumária através de inquéritos administrativos que tinham o objetivo de apurar a responsabilidade de servidores públicos na prática de crimes contra o Estado ou o seu patrimônio e contra a ordem política e social. Estes poderiam ser demitidos, dispensados, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados por decreto do Presidente da República ou Governador do Estado, sem prejuízo das sanções penais a que estivessem sujeitos. Cabia ao judiciário apenas apreciar as formalidades extrínsecas, ou seja, se o “procedimento” adotado pelas comissões de inquérito eram corretos. (BRASIL, 1964) 3 Devido à grande quantidade de Habeas Corpus e outros instrumentos jurídicos pelos por meio dos quais o judiciário interveio no funcionamento dessas comissões de inquérito, revisando procedimentos, revertendo decisões, soltando presos políticos, etc., o Ato Institucional nº 2 interveio de forma direta no funcionamento do Poder Judiciário (BRASIL, 1965): 1) mudou a composição do Supremo Tribunal Federal de 11 para 16 ministros, visto que estes eram nomeados pelo Presidente da República. 2) transferiu para a competência da Justiça Militar os processos e julgamentos de crimes previstos na Lei de Segurança Nacional de 1953.(BRASIL, 1953) 3) Passou o julgamento de Governadores e de Secretários de Estado passou para o Superior Tribunal Militar. Assim, o governo teria mais certeza de que as decisões judiciais seriam favoráveis ao regime, pois tirou a atribuição da justiça comum no julgamento de civis, para que estes fossem julgados por juízes ou ministros dos tribunais militares e aumentou o número de ministros do Supremo, de nomeação direta pelo Presidente da República; restava como possibilidade de recorrer à justiça comum, diretamente ao Supremo Tribunal Federal, para o julgamento de Habeas Corpus e de Recurso Ordinário em caso de “crimes políticos”. O Habeas Corpus é um pedido que podia ser feito diretamente ao STF no caso de prisão ilegal, independentemente de haver processo já instaurado contra o réu; tinha o objetivo de ser célere, fazendo com que o STF tivesse ciência da ilegalidade da prisão e diretamente determinasse a soltura do réu caso aquela fosse comprovada. Já o Recurso Ordinário pressupunha uma decisão anterior do Poder Judiciária sobre um crime que estava sendo imputado ao acusado, e sob cuja 4 decisão deveria se pronunciar o Supremo Tribunal Federal . Após a outorga da Constituição de 1967, ocorreu a manutenção do direito de Habeas Corpus bem como o julgamento por parte do STF de recurso ordinário relacionado a decisões do Superior 3

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É medida judicial destinada a garantir e proteger a liberdade de quem está preso ou ameaçado de prisão. O habeas corpus serve, também, para reparação de qualquer constrangimento em processo penal, pois o processo penal, podendo resultar em pena privativa de liberdade, é ameaça ao ir e vir. O nome, em latim, significa, tome o corpo. Disponível em < http://www.esmpu.gov.br> Acesso em: 22 mar. 2012. Conforme a Constituição Federal de 1946 o recurso ordinário era julgado pelo Supremo Tribunal Federal em caso de crimes políticos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em 22 mar 2012.

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Tribunal Militar em crimes contra a segurança nacional . Ou seja, a Constituição especificamente determinava a existência desse recurso no qual a decisão final cabe ao STF. (BRASIL, 1967) Após o Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968, no entanto, fica suspensa a garantia de Habeas Corpus em caso de crime político, contra a segurança nacional, a ordem econômica e a economia popular. Além disso, o STF sofre um golpe direto. Os Ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva são cassados. Dois ministros se aposentaram em solidariedade: Antônio Gonçalves de Oliveira e Carlos Lafaiete de Andrade. (MATTOS, 2002). Após a saída destes cinco ministros, com o sexto ato institucional, o regime diminui o número de Ministros do STF de 16 para 11, aproveitando o fato de que praticamente todos os membros do colegiado tinham sido nomeados pela ditadura.(BRASIL, 1969) Após o ato institucional nº 6, de 1º de fevereiro de 1969, o recurso ordinário ao STF passou apenas a ser admitido no caso do parágrafo 2º do artigo 122, ou seja, somente no de julgamento de Governadores de Estado e seus Secretários. Os civis acusados de crime contra a segurança nacional seriam julgados pela justiça militar, sendo o único recurso passível ao STF o Extraordinário. Por este expediente, o Supremo não revisaria as provas colhidas contra os acusados, nem ao menos se foi correta ou não a condenação de acordo com a Lei de Segurança Nacional; ficaria responsável somente por verificar se a Constituição de 1967 foi devidamente aplicada. Isto faria com que o nenhum tribunal civil apreciasse as provas existentes nos processos contra acusados de crime contra a Segurança Nacional, fazendo com que apenas os militares, através de sua justiça, fizessem um juízo de validade das provas dos autos, decidindo se condenavam ou não os réus. Porém tal determinação, mesmo demonstrando a vontade existente de dominação por parte da Justiça Militar de tudo o que fosse relacionado a crimes contra a segurança nacional, foi revogada 10 meses depois. Com a Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969, é restabelecida a possibilidade de Recurso Ordinário ao STF, nos casos do artigo 119 da Constituição, bem como com os parágrafos 1º e 2º do artigo 129, que tinham a seguinte redação: Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal: II – Julgar em Recurso Ordinário b) os casos previstos no artigo 129,§ 1 e 2º. (...) Art. 129. À Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes são assemelhadas. § 1º Êsse fôro especial estender-se-á aos civis, nos casos expressos em lei, para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares. § 2º Compete originariamente ao Superior Tribunal Militar processar e julgar os Governadores de Estado e seus Secretários, nos crimes de que trata o § 1º. (BRASIL, 1967)

Voltam assim a ter direito de interpor Recurso Ordinário ao STF os condenados pelo STM no caso de crimes contra a segurança nacional. O STF poderia modificar todos os aspectos da decisão do STM, inclusive revisar provas e procedimentos, determinar novas perícias, ou seja, o STF voltou, nesse caso, a ser um Tribunal revisor das decisões do STM. E foi assim até a revogação do AI-5. O Recurso Ordinário ao STF continuou sendo a única possibilidade de um cidadão ter revisada a sua sentença por um tribunal civil. O Supremo verificaria ao menos se a decisão respeitava ou não a legislação estipulada pela ditadura, e se foi dada com base nas provas presentes nos autos, mesmo nas condições adversas que existiam durante a sua coleta. Ao interporem tais Recursos Ordinários ao STF, os advogados de presos políticos ou os Procuradores Militares poderiam requerer uma revisão integral do acórdão julgado pelo Superior Tribunal Militar. Assim, ficava o STF com a obrigação de confeccionar um novo acórdão, analisando todos os aspectos da decisão do STM. Os Ministros do STF decidiam conforme o que tenha sido requerido pelo advogado do réu ou em alguns casos pelo Ministério Público Militar. Todo Recurso é um instrumento de revisão de uma decisão e, caso seja interposto, é porque uma das partes, acusação ou defesa, necessariamente não ficou satisfeita com o resultado da demanda. Da interposição destes recursos, resultou a confecção de acórdãos desde o ano de 1964 até o ano de 1979, nos casos de crime contra a segurança nacional. Este material é uma rica fonte de pesquisa sobre o judiciário durante a ditadura. Os acórdãos dão a dimensão de como o STF se movia em relação a legislação, ao executivo, as pressões sociais. São parte de um processo histórico, de um acordo entre uma elite militar e judiciária no sentido 5

Conforme Pedro Lenza em razão do autoritarismo implantado pelo Comando Militar da Revolução, não possuindo o Congresso Nacional liberdade para alterar substancialmente o novo Estado que se instaurava, é preferível considera-la como outorgada unilateralmente (apesar de formalmente votado, aprovado e “promulgado”) pelo regime ditatorial militar implantado. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2008. P.26

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de se estabelecer um regime repressivo, estando a disposição para consulta pública no site do Supremo Tribunal Federal. Conforme explica Pierre Bourdieu, em seu livro O Poder Simbólico, em seu capítulo VIII intitulado A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico, os juristas e historiadores do direito vislumbram a história do direito como a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos e dos seus métodos, que somente podem ser compreendidos através de sua dinâmica interna, concebendo-o como um sistema fechado e autônomo. A intensão de Kelsen em sua “teoria pura do direito” foi de construir um campo de doutrinas e regras que fossem totalmente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo seu próprio fundamento. (BOURDIEU, 2010) Em contraposição, Bourdieu propõe que a prática dos agentes encarregados de produzir o direito ou de aplicá-lo em um determinado caso judicial, deve muito às afinidades ideológicas, econômicas e até culturais que unem os detentores por excelência desta forma de poder simbólico aos detentores do poder temporal, político ou econômico. Com interesses próximos e, sobretudo, a afinidade do habitus ligada a formações familiares e escolares semelhantes, as visões do mundo da classe dominante e dos membros do corpo jurídico não se diferenciam. Segue-se aqui que as escolhas que os integrantes da classe jurídica devem fazer em cada momento, entre interesses, valores, visões do mundo diferentes ou antagonistas, destoantes do que está estabelecido na ideologia da classe dominante, têm poucas probabilidades de desfavorecê-los. De tal modo o ethos dos agentes jurídicos, que é invocado tanto para justificar seus atos como para os inspirar, está adequado aos interesses, aos valores e à visão de mundo dos dominantes. A pertença dos magistrados à classe dominante está atestada em toda a parte.(BOURDIEU, 2010) Para Bourdieu, a função de manutenção da ordem simbólica que é assegurada pela contribuição do campo jurídico é – como a função de reprodução do próprio campo jurídico, das suas divisões e das suas hierarquias, e do princípio de visão e de divisão que está no seu fundamento – produto de inúmeras ações que não têm como fim a realização desta função e que podem mesmo se inspirar, em intenções opostas, como os trabalhos subversivos das vanguardas, os quais contribuem, definitivamente, para determinar a adaptação do direito e do campo jurídico ao novo estado das relações sociais e para garantir assim a legitimação da forma estabelecida dessas relações. É a estrutura do jogo e não um simples efeito de agregação mecânica, que está na origem da transcendência, revelada pelos casos de inversão das instituições, do efeito objetivo e coletivo das ações acumuladas. (BOURDIEU, 2010)

Como acima mencionado, Bourdieu aponta como característica do campo jurídico a sua constante afirmação de autonomia, essa, formadora de sua própria identidade como campo. O campo jurídico, caracterizado pelas leis, técnicas e linguagens trabalhadas pelos profissionais da área, considera-se um mundo diferenciado do restante da sociedade. Mesmo fazendo parte dela e nela atuando, os agentes do campo jurídico consideram-se autônomos no sentido de não aceitar pressões sociais externas, daquilo que consideram estar fora de seu próprio campo. Seus membros trabalhariam relacionando-se exclusivamente com as legislações, doutrinas e jurisprudências, colocando-se como aplicadores das técnicas judiciais, sem levar em conta os acontecimentos políticos, sociais e econômicos, ocorridos no mundo social que consideram apartados do judicial. O campo jurídico afirma-se autônomo em relação a tudo que não é jurídico, judicial, e seus membros procuram afirmar essa diferenciação através de símbolos que consideram próprios do campo: linguagens, indumentária, técnicas de trabalho e procedimentos para a aplicação da justiça que, segundo seus profissionais, são completamente imparciais e neutros em relação a tudo que não seja a aplicação da lei. Essa neutralidade e imparcialidade os diferenciam dos outros poderes instituídos (executivo, legislativo), bem como de instrumentos de reivindicação social (movimentos sociais, imprensa, ideologias), pois ambos não teriam a aura da imparcialidade (tomariam partido, dependeriam de voto, precisariam de eleitores, expressariam opiniões), do Judiciário. Dentre os aspectos que querem revelar a autonomia e imparcialidade do campo jurídico encontra-se na linguagem jurídica, uma retórica de impessoalidade e de neutralidade. Dois efeitos são gerados na utilização desta linguagem: neutralidade e universalização. A neutralidade é obtida pelo conjunto de características sintáticas tais como o predomínio de construções passivas e das frases impessoais. A universalização é obtida por meio de vários processos convergentes: utilização de verbos no indicativo para enunciar normas (aliciar, subverter), a utilização de verbos na terceira pessoa do singular ou do passado composto, (compromete-se, declarou); o uso dos indefinidos (todo o condenado), o presente intemporal ou o futuro jurídico, para exprimirem a generalidade e a omnitemporalidade da regra do direito; as referências a fatores transubjetivos, que pressupõem a existência de um consenso ético, fórmulas lapidares e formas fixas. (BOURDIEU, 2010) 291


O poder judiciário, órgão do Estado definido pelo campo jurídico como detentor do poder de decisão sobre as demandas propostas, somente pode ser provocado e instado a decidir por um profissional também do campo jurídico (advogado ou promotor de justiça), sendo que nisso o cidadão é obrigado, por não estar inserido no campo jurídico, a tacitamente renunciar a qualquer possibilidade de se expressar pessoalmente frente ao Estado. Ocorrida esta renúncia tácita, a autonomia do campo se estabelece, excluindo qualquer mudança ou subversão do que está posto e já previamente estabelecido como única possibilidade de aplicação da justiça na sociedade. O campo jurídico se apresenta e é reconhecido como tendo um poder autônomo em relação à sociedade, com um funcionamento específico e um corpus jurídico relativamente independente de constrangimentos externos. Então, a ilusão da autonomia não diz respeito apenas à relação entre o judiciário e os poderes instituídos (executivo e legislativo), também diz respeito: à demarcação de quem tem autoridade e competência para interpretar a lei; à posição do juiz na estrutura da distribuição do capital específico de autoridade jurídica; ao vocabulário utilizado para impor noções de universalidade e de neutralidade; ao controle das divergências possíveis entre os “intérpretes autorizados”; à hierarquização das instâncias decisórias, divididas em juízes de primeira instância, e os Tribunais, que irão, através dos recursos interpostos, revisar as decisões dos juízes de primeira instância.

Referências Bibliográficas: ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru, SP: Edusc, 2005. p.67 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 13ª ed. 2010. P. 209 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil <http://www.presidencia.gov.br/legislacao>. Acesso em: 9 jun. 2012.

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COSTA e Silva Desejamos que o povo confie em nós. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 abr. 1964. p.1. Disponível em <http://acervo.folha.com.br/fsp/1964/04/01/>. Acesso em 01 jun. 2012. DUTRA também é candidato. Folha de São Paulo, São Paulo, 09 abr. 1964. p.1. Disponível em <http://acervo.folha.com.br/fsp/1964/04/01/>. Acesso em 01 jun. 2012. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2008. P.26 MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de. Em nome da Segurança _acional: os processos da Justiça Militar contra a Ação Libertadora Nacional (ALN), 1969-1972. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002. Dissertação de Mestrado em História.p.25 e 26. SILVA, Carlos Medeiros. Observações sobre o ato institucional. Revista de Direito Administrativo, n. 76, p. 473-475, abr./jun. 1964. SILVA, Carlos Medeiros. O ato institucional e a elaboração legislativa. Revista dos Tribunais, v. 53, n. 347, p. 7-17, set. 1964.

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As vozes da contemporaneidade e a questão da imprescritibilidade dos crimes de tortura perpetrados na ditadura civil-militar no Brasil Fabiano Negreiros

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Resumo: O presente artigo é elaborado no intuito de contribuir com a fundamentação acerca da imprescritibilidade dos crimes de tortura praticados pela ditadura civil-militar no brasil durante o período de 1964 a meados de 1980, partindo da premissa de que em relação a esses delitos jamais pode restar dúvida quanto à sua inafastabilidade do campo jurisdicional por institutos como a prescrição, uma vez que se enquadram nos crimes de lesa-humanidade. O método escolhido para a elaboração desta pesquisa foi entrevistas com especialistas na matéria, buscando uma análise jurídica com um recorte histórico relacionando a pesquisa de campo como principal instrumento, haja vista o intuito de abordar o problema à luz da prática. Assim, pode-se observar uma gama de profícuos argumentos no que tange ao controle jurisdicional dos crimes de tortura; compreensão que se coaduna com a doutrina e jurisprudência internacional, que não deixam dúvidas quanto à imprescindível responsabilização dos agentes públicos. Palavras-chave: Imprescritibilidade – Tortura – Ditadura civil-militar – Direitos Humanos – Direito Internacional. Abstract: This article is elaborated in order to contribute with the grounding related with the imprescriptibility of the crimes of torture committed by the civil-military dictatorship in Brazil during the period of 1964 until the middle of 1980, starting with the premise that there isn’t have any doubt about the exclusion of these delicts of the institutes as an example the prescription, because they are crimes against humanity. The method chose for this research was interviews with specialists in this content, combining a juridical analysis with a historical view using the field research as a principal instrument, in order to attend the problem in a practical way. It can be observed a lot of arguments related with jurisdictional control about the crimes of torture; comprehension that incorporate the doctrine and international jurisprudence: they don’t let any doubts about the necessary punishment of the public agents. Keywords: Imprescriptibility – Torture – Civil-military dictatorship – Human Rights – International Law.

Introdução O Brasil teve um dos maiores períodos de ruptura constitucional da América Latina, a partir de 1964, quando da deposição do presidente João Goulart, interregno que deixou marcas profundas na sociedade brasileira, com consequências que até hoje são sentidas. O presente artigo aborda esse capítulo da história brasileira, mais especificamente os crimes de tortura praticados pelos “agentes de segurança do Estado” que, em “nome do País”, aprisionaram, torturaram e mataram pessoas que sequer tinham possibilidades de se defender ante um Estado opressor e violador de preceitos fundamentais que, hoje, inclusive, fundamentam a vigente Constituição Federal. Será usada a expressão ditadura civil-militar, uma vez que houve direta intervenção de 2 segmentos da sociedade civil no processo de organização e consolidação da cisão da democracia em 1964. A tortura é de tamanha afronta à dignidade humana que, principalmente, desde o pós-2ª Guerra, toda a construção do Direito Internacional em relação aos Direitos Humanos vem estabelecendo um inequívoco consenso: em hipótese alguma o homem deve ser violentado na sua identidade mais íntima de ser humano, que é a sua dignidade. Por isso, é pacífico no cenário internacional o dever dos Estados de promoverem todas as ações possíveis a fim de erradicar esses crimes. Com o objetivo de consubstanciar a imprescritibilidade da tortura, buscou-se pareceres de especialistas no intuito de oferecer uma abordagem contemporânea fundada no conhecimento empírico dos mesmos.

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Advogado liberd@bol.com.br (51) 9242-5075 O documentário Cidadão Boilesen joga luzes acerca da participação de setores influentes da sociedade brasileira no governo inconstitucional de 1964.

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Jogar a “sujeira para debaixo do tapete” é se condenar a uma alienação equivalente à dos anos de chumbo, mantendo a sociedade em uma constante situação de perigo. Pois, se não se tem o necessário discernimento da história com a devida consequência de imputação de responsabilidade àqueles que torturaram, corre-se o risco de a qualquer momento, a partir de rompantes de efêmera desilusão, relativizar-se valores tão caros à humanidade, como o reconhecimento da pessoa em sua condição de inviolabilidade, e sentir “saudades” de um tempo que, oxalá, jamais volte. 1. Os Crimes Contra a Humanidade Antes de se aprofundar na análise trazida pelo presente artigo, entende-se como de grande relevância um resgate das primeiras considerações acerca dos crimes contra a humanidade, com enfoque na tortura, pois compreender tais ilícitos sob o contexto histórico contribui no discernimento dos mesmos. A partir dessa premissa, segundo Santos (2010), é preciso remontar à 1ª Guerra Mundial, mais especificamente “após o massacre da minoria Armênia na Turquia”. Conforme o autor, o “Tratado de Sèvres, firmado entre a Turquia e as potências aliadas vencedoras da 1ª Guerra Mundial, trouxe o embrião da responsabilidade internacional de crimes praticados por agentes de um Estado contra minorias internas” (p. 103). Já no âmbito da 2ª Grande Guerra, conforme Santos (2010), os crimes cometidos pela Alemanha Nazista contra sua própria população não se subzumiam aos “crimes de guerra”, uma vez que “não havia precedente na história das guerras a expulsão, a deportação e o extermínio levados a cabo por um país contra seus próprios nacionais”. Por isso, a fim de que tais delitos não ficassem impunes, o conceito de crimes contra a humanidade foi delineado (p. 103). O autor ainda destaca que o entendimento sobre os crimes de lesa-humanidade se desenvolveu consubstanciando os Estatutos do Tribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia (artigo 5º) e para Ruanda (artigo 3º); Estatuto do Tribunal Especial para Serra Leoa (artigo 2º); Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (artigo. 7º); e julgados dos tribunais penais internacionais. Em suma, os crimes de lesa-humanidade podem ser caracterizados: (i) são ofensas particularmente repulsivas, no sentido de que constituem um sério ataque à dignidade humana, uma grave humilhação ou degradação de seres humanos; (ii) não são eventos isolados ou esporádicos, mas sim parte de uma política de governo ou de uma prática sistemática e frequente de atrocidades que são toleradas, perdoadas ou incentivadas por um governante ou pela autoridade de fato; (iii) são atos proibidos e podem ser consequentemente punidos, independente se tenham sidos perpetrados em tempos de guerra ou de paz; (iv) as vítimas do crime devem ser civis, ou no caso de crimes cometidos durante um conflito armado, pessoas que não tenham tomado parte nas hostilidades. (CASSESE, 2005 apud SANTOS, 2010, p. 109-110).

Segundo Gomes e Mazzuoli (2011), a primeira definição acerca dos crimes contra humanidade se deu “com toda a clareza” a partir do Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945, que instaurou o Tribunal de Nuremberg. Os julgamentos que ali aconteceram, tais como de réus nazistas que, com sua 3 política de extermínio de seus próprios cidadãos (somente crianças judias mataram um milhão e meio ), tiveram como principais fundamentos o costume internacional e o jus cogens – “direito cogente de validade universal” (p. 88). Na visão de Weichert (2008), em relação aos crimes contra a humanidade, “o que os caracteriza é a especificidade do contexto e da motivação com que praticados”. O autor afirma que, à luz do Direito Internacional, o crime de lesa-humanidade “é aquele praticado dentro de um padrão amplo e repetitivo de perseguição a determinado grupo (ou grupos) da sociedade civil, por qualquer razão (política, religiosa ou racial e étnica)” (p. 174). No Brasil, sobre os crimes (torturas, sequestros, assassinatos, etc.) praticados pela ditadura civilmilitar, Weichert (2008) é expresso em caracterizá-los como crimes de lesa-humanidade, tendo em vista que “foram consumados dentro de um padrão sistemático e generalizado de atos violentos praticados contra a população civil por agentes do Estado brasileiro sob o comando de oficiais do Exército” (p. 181). 1.1 A Tortura, Um Instrumento que Anula a Personalidade O crime de tortura vem sendo constantemente objeto de estudo, tanto no âmbito nacional quanto no cenário internacional, inclusive sendo positivado nos mais variados ordenamentos jurídicos. Todavia, antes de adentrar em tal campo do conhecimento, é mister fazer, em breves palavras, um recorte histórico dos referidos ilícitos. 3

Número segundo a ONU. Disponível em: < http://www.onu.org.br/dia-internacional-em-memoria-das-vitimas-doholocausto-27-de-janeiro-de-2012>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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Dessa forma, como bem refere Ramella (1987, p. 70 e 71): Desde antigamente se tem praticado a tortura ou o tormento como um meio legal para obter a confissão do réu. Na Grécia assim se agia, Isócrates afirmava: “Nada mais seguro do que o tormento para se saber a verdade”. Demóstenes participava desse pensamento. Em Roma usava-se o potro (instrumento de tortura) para os escravos e gladiadores. Tito disse que se aplicava também a todos os cidadãos. A Lex Julia majestatis ordenava que se devia aplicar a tortura aos cidadãos incursos em acusações de lesa-majestade. Na Alemanha de admitiu a tortura vários séculos depois do cristianismo: a lei Carolina previa tormentos. O mesmo nos Países Baixos e Inglaterra. Igualmente na Rússia. Como nesta nação ninguém podia ser condenado se não confessasse um delito, mesmo que houvesse testemunhas do fato, era autorizado o tormento a fim de que se obtivesse a confissão. O tormento foi abolido por Catarina II, em 1769. Na Suécia, onde era considerado legal, foi ele abolido em fins do século XVIII pelo rei Gustavo III. Na França, a Ordenança de 1670 estabelecia as normas para os tormentos. Foram abolidos pela lei de 9 de outubro de 1789. Na Espanha, a Partida 7ª, título 3º, continha nove leis dedicadas a definir o que é tormento, a determinar as pessoas que podiam aplicá-lo e aqueles a quem se deviam infligir. Aboliu-se por decreto da Corte de 22 de abril de 1811.

Nessa esteira, o autor destaca o entendimento da Corte Europeia de Direitos Humanos no Caso 4 Grécia , acerca da tortura: “Denota um tratamento desumano que tem um propósito, tal como a obtenção de informações ou uma confissão, ou a inflição de um castigo, e é geralmente uma forma agravada de tratamento desumano” (p. 72). Marques (2011, p. 143) ressalta o artigo 7º do Estatuto de Roma, que é taxativo ao dispor sobre o conceito de tortura: Ato por meio do qual uma dor ou sofrimento agudos, físicos ou mentais são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controle do acusado; este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas.

Assim, conclui o autor: os crimes cometidos pelas ditaduras que se subsumem aos delitos acima descritos por força dos tratados internacionais (Estatuto do Tribunal Penal Internacional) e decisões internacionais, vide a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Guerrilha do Araguaia, são crimes contra a humanidade, logo são insuscetíveis de serem fulminados pelo instituto da prescrição (p. 144). 5 Segundo a Convenção Interamericana para Prevenir a Tortura , essa se entende como todo o ato realizado intencionalmente pelo qual se inflija a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos e/ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio intimidatório, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Se entenderá (sic) também como tortura a aplicação sobre uma pessoa de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima ou a diminuir sua capacidade física ou mental, ainda que não cause dor física ou angústia psíquica.

Baldi (2011) destaca a lição de Marilena Chauí acerca da tortura como uma significativa contradição a partir do pressuposto de que se destrói um ser humano a fim de que seja humanizado e complementa: Tem como correspondente as técnicas de simulacro e de teatralização da violência: não somente pela atuação de papéis, mas pelo aparato técnico da tortura que só opera quando exibido, mas uma exibição, porém, que é clandestina. Não só porque se opera em porões, mas também porque “torturados e torturadores não tem nome nem identidade”: e que, portanto, possibilita que os torturados se sintam “sem direitos”, mas que os torturadores se confessem “sem poderes” (CHAUÍ, 1987, p. 34-35 apud BALDI, 2011, p. 164).

De profunda lucidez as palavras de Maria Rita Kehl, citadas por Baldi (2011), acerca da 4

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Segundo o Centro di Documentazione su Carcere, devianza e Marginalità, historicamente, foi a Comissão Europeia de Direitos Humanos (CEDH) o primeiro órgão internacional a enfrentar o desafio de definir o crime de tortura, diferenciando-o dos demais tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, quando da análise do Caso Grego (Greek Case), de 1967-1969. Disponível em: <http://www.altrodiritto.unifi.it/ricerche/latina/dias/cap2.htm#1>. Acesso em: 14 jan. 2013. Disponível em:< http://www.cidh.oas.org/basicos/basicos6.htm>. Acesso em: 14 jan. 2013.

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conivência da sociedade: “A tortura somente existe porque a sociedade, explícita ou implicitamente, a admite”. Segundo a autora, “não se pode considerar a tortura desumana”, mas humana, “porque não conhecemos nenhuma espécie animal capaz de instrumentalizar o corpo do indivíduo da mesma espécie, e além disso gozar com isso, a pretexto de certo amor à ‘verdade’”. Ainda ela: um corpo violentado é um “corpo roubado ao seu próprio controle; corpo dissociado de um sujeito, transformado em objeto nas mãos poderosas de outro – seja o Estado ou um criminoso comum” (KEHL, 2010, p. 130 e 131 apud BALDI, 2011, p. 165). Já, para Mello (2010), a tortura representa a total dissonância axiológica em face dos preceitos constitucionais. Em suas palavras: “Eis, pois, que não pode padecer a mais remota, a mais insignificante dúvida de que a tortura representa a antítese dos valores básicos que a Constituição Brasileira professa enfaticamente” (p. 94). A tortura causa consequências psicológicas tão graves que muitas vezes deixa a vítima numa espécie de limbo temporal em que sua memória é esfacelada pelos traumas sofridos. Segundo Kolker (2012): Para evitar o contato com a experiência da dor e do desamparo, as marcas psíquicas da violência são encapsuladas e dissociadas, e, no lugar da vivência traumática, o que subsiste são bolhas de tempo, zonas de silêncio, fragmentos de vida que não podem ser integrados aos demais.

Saavedra (2008) destaca a abstenção cognitiva do torturador em relação à identidade humana da vítima como pressuposto da plena concretização de seus atos. Ensina: “Para que alguém se torne um torturador, é necessário que ele primeiro passe por um processo de aprendizagem negativo. Ele precisa aprender a perder essa capacidade, essa percepção do sofrimento do outro, de sofrer-com, de compaixão” (p. 98). Para o autor (p.98), ele precisa aprender “a não se ver mais no outro. Ele precisa aprender a não ser mais humano” (grifo do autor). A fim de demonstrar toda a repercussão dos efeitos da tortura no comportamento da vítima, Alvarez (2008) menciona a lição de Sussman: A tortura não apenas prejudica ou danifica a capacidade de agir da vítima mas antes coloca essa capacidade contra si mesma, ao forçar a vítima a experimentar-se como desamparada e ainda cúmplice de sua própria violação. Não é apenas um assalto ou uma violação da autonomia da vítima mas também uma perversão dessa autonomia, uma espécie de escárnio sistemático das relações morais básicas que um indivíduo estabelece tanto com os outros quanto consigo mesmo. Talvez seja por isso que a tortura pareça qualitativamente pior que outras formas de brutalidade e crueldade (SUSSMAN, 2005, p. 30 apud ALVAREZ, 2008, p. 278).

Ante o exposto, não resta dúvida acerca da inexorável violência da tortura contra as vítimas que padeceram sob a força daqueles que instrumentalizaram os crimes contra a humanidade com o aparato do Estado brasileiro, causando ofensas que atingiram a esfera mais íntima da pessoa, a partir da violação de seu corpo e mente. Entender esses atos como inaceitáveis e insuscetíveis de qualquer benesse, por parte do Estado, é pressuposto a uma sociedade que pretenda pautar o seu desenvolvimento por valores humanistas que, no caso brasileiro, são expressos em sua Carta Constitucional, esta por sua vez em consonância com as normas internacionais. 2. Vozes da Contemporaneidade Entende-se de relevância decisiva para este artigo a pesquisa de campo. A partir da busca de fontes empíricas pode-se vislumbrar um estudo crítico à luz de percepções práticas que enfrentam tal temática totalmente vinculadas à realidade. Acredita-se que, dessa forma, seja possível oferecer um ângulo diferenciado do problema. 2.1 A Imprescritibilidade da Tortura Sob a Ótica da Práxis 6

O ativista de Direitos Humanos e advogado Jair Krischke ressalta que a imprescritibilidade dos crimes de tortura e outros considerados como crimes contra a humanidade são incorporados como norma internacional a partir de 1950, visto que seu conceito começa a ser delineado pelo Tribunal de Nuremberg alguns anos antes de sua aplicação como regra cogente. No mesmo sentido, o advogado 7 José Carlos Moreira da Silva Filho entende que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade deriva da própria essência de tais crimes e também devido a uma importante fonte de Direito 6 7

Em entrevista ao autor. Em entrevista ao autor.

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Internacional, que é o direito costumeiro. Nas suas palavras: É claro que nesse momento não houve uma explicitação no texto do tratado (de Nuremberg) de que esses crimes seriam imprescritíveis, porém, pela própria definição do que esses crimes são, e por uma fonte de direito que é extremamente importante no Direito Internacional Público, que é o costume. [...]. 8

O procurador da República Ivan Marx ressalta que, embora a tortura não constasse de forma expressa nos Princípios de Nuremberg, ela era plenamente dedutível a partir dos atos inumanos constantes naqueles princípios. Em suas palavras: “A tortura, com esses termos, não está colocada lá, mas ela pode ser claramente interpretada como outros atos desumanos, que está previsto tanto em Nuremberg como em Tóquio também”. Krischke reconhece o pleno desenvolvimento desses conceitos a partir da intensa deferência, no que tange à sua fundamentação, pelas convenções internacionais não só admitidas pela ONU, mas também pela Organização dos Estados Americanos (OEA), assim como a ampla jurisprudência internacional consoante à imprescritibilidade de tais delitos. Silva Filho também destaca que: [...] esse entendimento de que a imprescritibilidade é parcela inerente da definição de crimes contra a humanidade se apresentou em uma série de documentos da ONU, em memorandos, em assembleias, em comunicados tão bem documentados que mencionam essa característica. 9

Para o historiador Enrique Padrós , tal compreensão do Direito Internacional denota uma verdadeira e inafastável evolução histórica: “Isso torna, digamos assim, um avanço civilizatório do qual a gente não deve abrir mão”. O historiador ainda lembra acerca da tortura em relação ao seu momento de caracterização: A tortura começa quando a pessoa é detida e imediatamente colocam um capuz na sua cabeça e ela perde o controle sensorial de tudo aquilo que diz respeito ao seu entorno, aos seus movimentos, e de qualquer certeza do que a partir dali possa lhe ocorrer.

Nessa esteira, à luz do direito comparado, Krischke destaca a “lei de obediência devida” na Argentina, que visava, a exemplo do Brasil, à impunidade dos agentes estatais perpetradores de crimes contra a humanidade. Silva Filho ressalta que na Argentina se enfrentou a questão da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade a partir do entendimento de que, independentemente de qualquer positivação no ordenamento internacional, esse princípio já detinha força cogente. Ele entende que tal interpretação é aplicável no Brasil. Na sua lição: “A Suprema Corte Argentina evoca um argumento de que a imprescritibilidade desses crimes não precisa estar escrita para que só a partir desse momento ela pudesse ser considerada”. Para Silva Filho, há outra fundamentação de grande relevância no que diz respeito à imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, que é a norma imperativa de direito jus cogens e que, a seu juízo, não é devidamente observada pelo “pessoal do Direito Penal” quando da análise da presente matéria, uma vez que se tem apenas uma visão interna em prejuízo de um campo de análise mais amplo, ou seja, em “termos internacionais ou macropolíticos”. No mesmo sentido, acerca das normas imperativas como instrumento de afastamento da anista, pondera Marx: “Então, pelo direito imperativo internacional, jus cogens, esses crimes seriam imprescritíveis e deles também podem retirar a insuscetibilidade da anistia por uma previsão cogente internacional que se aplicaria”. Conforme Silva Filho, o direito consuetudinário detém mais força inclusive em relação aos tratados internacionais. Nas suas palavras: Tem muito mais peso no cenário internacional a construção de um conjunto de práticas, de convicções e de costumes internacionais que demoram muito mais tempo para serem sedimentados e que têm muito mais densidade jurídica, segurança jurídica, do que os próprios tratados internacionais, que, muitas vezes, podem ser alterados, podem ser denunciados ou podem simplesmente não obter a adesão de uma série de países.

Para ele, o costume internacional vincula os países independentemente de sua adesão formal, assim não restando aos Estados outra alternativa senão respeitarem os entendimentos da comunidade internacional no que tange à compreensão dos Direitos Humanos e a melhor forma de tutela dos 8 9

Em entrevista ao autor. Em entrevista ao autor.

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cidadãos em relação ao Estado. Ainda sobre a gravidade desse tipo de crime, é taxativo: “É quase incestuoso”. Ainda que se compreendesse possível uma eventual contagem do prazo prescricional dos crimes de tortura cometidos pela ditadura civil-militar, Silva Filho entende como impossível de se contar tais prazos a partir do seu efetivo cometimento, visto que era o próprio Estado que os cometia num contexto de perseguição à população civil. Assim, enfatiza: “A gente não vivia numa democracia, como você pode querer contar um prazo prescricional de um crime num contexto onde era impossível iniciar uma investigação desse crime, impossível porque o Estado não dava condições para isso”. Portanto, conclui: ainda que se quisesse efetuar qualquer contagem prescricional, seria necessário ter como marco temporal inicial a promulgação da presente Constituição. Ensina: “Pelo menos deveríamos arguir a possibilidade do início da contagem prescricional desses atos só depois da Constituição de 88 porque até lá não havia condição nenhuma para investigação”. É claro o entendimento de Marx ao citar um contexto de completa omissão do Estado: “Quando o Estado realmente não quer fazer e deixa esse prazo correr, então se poderia entender que a prescrição não corre”. Para o procurador, a fim de fundamentar a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade cometidos no Brasil durante o período de exceção, cabe fazer uma análise acerca de elementos que caracterizam tais crimes. Dessa forma, não deixando dúvidas sobre o efetivo cometimento desses ilícitos. Ensina ele: “Então você precisa um ataque generalizado e sistemático contra a população civil e com conhecimento desse ataque”. Segundo o procurador, era o que acontecia naquele período: “Então, a ditadura militar brasileira fazia uma perseguição sistemática e generalizada? Sim”. Ele ainda refere os crimes contra a humanidade a partir da teoria de Luban, na qual o indivíduo, que é um “animal político”, se organiza em sociedade, abrindo mão, em parte, da autotutela para o Estado, que, em troca, lhe oferece proteção. “O ser humano se organiza em sociedade e entrega a parcela do seu poder, digamos assim, pelas teorias contratualistas, para um governo que tem por obrigação garantir a sua segurança.” Por isso, segundo Marx, quando o Estado falha no seu papel de proteção aos indivíduos, quebra esse “pacto”. Esse rompimento se torna ainda mais dramático quando é o próprio Estado que comete esses crimes. Assim, defende Marx: Esse tipo de violação fere o ser humano como um animal político. Ele está entregue ao criminoso, que é justamente quem deveria protegê-lo. Então, quando esse Estado, que tem esse poder e essa obrigação, fere os direitos e faz um ataque generalizado, sistemático contra essa população civil, por isso, o conceito de população civil, não é, porque é um inocente que está ali e deveria ser protegido, ele pratica crime contra a humanidade, contra esse ser político.

O ativista de Direitos Humanos Krishke não deixa de mencionar o reconhecimento do indivíduo na sua condição individual de inviolabilidade inerente à compreensão de humanidade. “Ou nós conseguimos entender que quando apenas um homem tem os seus direitos violados toda a humanidade foi violada, é disso que se trata.” Nesse mesmo sentido, ele afirma: “Alguém já disse na questão do Tribunal de Nuremberg que o Holocausto foi a morte de um judeu, apenas um judeu, os outros cinco milhões novecentos e noventa e nove mil são decorrência, mas apenas um seria suficiente [...]”. Segundo o advogado, é essa compreensão que coloca a sociedade num processo de desenvolvimento e evolução histórica. “E esse entendimento que é importante, isso é que vai nos dando fóruns de civilidade, é o avanço do homem, o homem saindo da barbárie, saindo da caverna e crescendo. Então, por isso que esses crimes não podem ser anistiáveis, não podem ser de forma alguma.” O procurador Ivan Marx faz uma análise do instituto da prescrição e da anistia em relação ao comportamento estatal. Segundo ele: Enquanto a prescrição acontece por uma inação do Estado, ou seja, o Estado pratica crimes e não pune por inação, a anistia é uma atitude positiva do Estado, ou seja, ele deixa correr a prescrição porque não age e ainda assim ele vai lá e toma uma atitude no sentido de proteger melhor ainda esses crimes, vai lá e diz que esses crimes estão anistiados.

Lembra ainda, acerca das várias discussões internacionais no que tange à repulsa à prescrição dos crimes contra a humanidade, e que acontece o mesmo com a anistia, uma vez que iria de encontro ao “princípio de justiça”. Assim pondera: “Isso também não é aceito pela mesma lógica, ou seja, se existe uma pressão internacional de dar uma resposta a esses crimes, também não pode ser aceita a anistia”.

Conclusão 298


Desde o pós-2ª Guerra, a preocupação em limitar as ações estatais em relação ao cometimento de crimes de lesa-humanidade se tornou uma tônica nas deliberações das organizações internacionais. Sempre com o intuito de evitar que perseguições à população civil voltassem a acontecer. Essas decisões inegavelmente adquiriram uma força cogente que contribui para uma aceitação cada vez mais pacífica no que tange às normas imperativas de direito, isto é, o jus cogens. Essa evolução fica nítida ao se observar as decisões de tribunais internacionais que reafirmam constantemente o dever de respeito, pelos Estados, acerca de tais normas. Os crimes de tortura foram cometidos no Brasil dentro de uma lógica de Estado, na qual as agressões se deram de forma sistematizada, em que seus agentes contaram com todo o aparato governamental, causando uma verdadeira perseguição contra a sociedade civil. Essa situação teve como consequência a tortura como uma marca desse período histórico. Pode-se observar uma sintonia no que tange a uma inequívoca aversão em relação a qualquer possibilidade de afastamento da persecução penal sobre aqueles agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade. No caso em estudo, a tortura. Nota-se uma construção doutrinária e jurisprudencial que caminha no mesmo sentido: repulsa a qualquer impunidade que coloque em xeque os preceitos oriundos do Direito Internacional, que detém em seu escopo a tutela dos Direitos Humanos. Nesse sentido, cabe aos Estados respeitarem não só os tratados internacionais de que são signatários, mas principalmente todos os princípios internacionais imperativos de direito que guardam relação com a temática de Direitos Humanos. Assim, não resta ao Brasil outra alternativa senão respeitar os princípios internacionais regidos pela proteção do indivíduo na sua condição inafastável de ser humano, sob pena de enquadrar-se como um país violador não só de tratados internacionais pelos quais soberanamente manifestou adesão, mas pelas normas imperativas de direito. Uma cultura democrática passa necessariamente pela total repulsa ao cometimento de crimes contra a humanidade que alcança uma unanimidade no plano internacional há muitos anos. Essa compreensão exige um amadurecimento tanto do Estado quanto da sociedade que têm como corolário o discernimento exato dos caminhos a serem percorridos sem chance de retrocessos. Para que isso ocorra, o Direito não pode ser instrumentalizado com o intuito de obscurecer tais premissas, baseandose numa hermenêutica jurídica que tem como plano de fundo o cultivo à impunidade. Por fim, ter a coragem de olhar para a história sob um ponto de vista crítico viabiliza uma maior compreensão das mazelas que assolam as nossas relações sociais no presente. Não há como negar o peso de mais de duas décadas de violações sistemáticas sobre um povo, e, por isso, o exercício da memória é imprescindível numa dimensão pedagógica em que a autocrítica é mister a uma melhor compreensão dos fatos históricos, aliada ao comprometimento de justiça inerente à pacificação social. Assim, para se vislumbrar um futuro avesso a valores antidemocráticos se faz necessária a promoção de ações que cauterizem as feridas abertas e possibilitem o desenvolvimento da sociedade guiada tãosomente pela carga axiológica emanada da Constituição Federal de 1988.

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A atuação do Poder Judiciário na Argentina frente aos crimes de lesa humanidade perpetrados pela Ditadura de Segurança Nacional (1976-1983). Patrícia da Costa Machado

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Resumo: o presente artigo pretende analisar a reivindicação ao direito à memória e à justiça no âmbito da jurisdição argentina, buscando compreender os mecanismos que permitem a concretização destes direitos relacionados ao período da ditadura civil-militar (1976-1983). Palavras-chave: Direito à Memória. – Justiça – Ditadura Civil-Militar Argentina – Julgamentos Crimes de Lesa Humanidade

Introdução Frente ao irreparável, o perdão carece de sentido. Estas célebres palavras, atribuídas a Primo Levi, podem ajudar-nos a compreender a importância que a realização de justiça pode ter em uma sociedade herdeira de um passado autoritário. Justiça, contudo, não se confunde com o direito, tampouco com a lei. Também não se confunde com aqueles que a aplicam. É algo mais complexo, difícil de delimitar ou conceituar de maneira objetiva. Do ponto de vista filosófico, o sentimento de justiça é intrínseco à consciência humana, do homem dotado de discernimento entre o certo e o errado, o justo e o injusto. Através dos tempos, desde Aristóteles e São Tomás de Aquino, passando por Hobbes, Montesquieu e Rousseau, se sustenta que cabe à lei definir o que é justo e injusto. Justo é o que está permitido em lei, e injusto o que está proibido. No passado esta concepção tinha um fundamento, que era o de acreditar que jamais o governante usaria do poder para prejudicar o bem comum. Modernamente, não se admite isso depois que o fascismo mostrou o que é possível fazer em uma sociedade usando o poder legislativo de forma ilegítima. Os recentes acontecimentos desencadeados na Argentina, contudo, tem se tornado exemplo na concretização de uma justiça plena. Porque no país vizinho foi desencadeado um processo, aparentemente irreversível, de confronto com o passado autoritário? Porque lá a justiça de transição tem se tornado cada vez mais presente e eficaz? Primeiramente, importante compreender que a noção de justiça de transição abrange o conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas de uma sociedade em chegar a um acordo quanto ao legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos, que podem ser judiciais ou extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), abarcam o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, ou a combinação de 2 todos esses procedimentos. Com base neste conceito, e conforme veremos neste breve artigo, podemos afirmar que a Argentina tem obtido sucesso nesta busca por justiça nos últimos anos. Para compreendermos o longo caminho percorrido e o atual estágio em que se encontra o país platino no que diz respeito aos julgamentos por crimes de lesa humanidade cometidos durante a última ditadura civil-militar, será necessário compreender, primeiramente, o significado de crimes contra a 3 humanidade. A experiência nazista impulsionou o surgimento da figura dos crimes contra a humanidade no cenário internacional, quando foi constatada a possibilidade de que o Estado poderia voltar-se contra seus próprios cidadãos. Sua primeira conceituação legal está no Acordo de Londres, de 1945, que instituiu o Tribunal de Nuremberg. Ao contrário dos crimes de guerra convencionais, os crimes de lesa humanidade pressupõem um absoluto desequilíbrio – a ausência total de reciprocidade, a negação da vítima como pessoa, sua anulação completa seja pela tortura, seja pela sua inclusão em um campo de concentração. 1

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Mestranda em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul Email: patydcm@hotmail.com Endereço: Rua Tomaz Flores 60/31, POA/RS Telefone: (51) 99628889 NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretario Geral S/2004/616. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, 2009, n.1. p.320-351. Para fins deste artigo, crimes contra a humanidade e delitos de lesa humanidade serão utilizados como sinônimos.

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Trinta anos após o fim da segunda guerra, as sociedades latino-americanas experimentariam o peso da violência sistemática cometida em nome, não mais da pureza genética ou da conquista do espaço vital, mas da segurança nacional. A ditadura argentina é comumente apontada como a mais feroz das ditaduras de segurança nacional latino-americanas. De fato, o regime do país vizinho dispensou qualquer tipo de estratégia legal, engajando-se, entre os anos de 1976 a 1983, em uma guerra total e implacável contra os supostos agentes da subversão. Esta realidade avassaladora afetou –e ainda afeta- profundamente os argentinos. O desaparecimento assegurou não somente o assassinato físico e simbólico de pessoas desvinculadas de qualquer militância, opositores políticos e integrantes de grupos guerrilheiros, como também foi um fator determinante para a intimidação e a submissão de setores da sociedade, atingidos direta ou indiretamente pela multiplicação de seus efeitos. Para ilustrar a dimensão do ocorrido no país platino, de acordo com dados do relatório Nunca Más, 62% das vítimas de desaparecimentos foram retiradas de suas próprias casas. Outras 24,6% foram sequestradas na rua, e apenas 7% e 6%, respectivamente, foram detidas no trabalho ou na escola. Apenas 0,4% dos desaparecidos estavam legalmente detidos em estabelecimentos militares, penais ou policiais, sugerindo que esse reconhecimento legal conferia proteção aos presos e que, de modo 4 inverso, os sequestros clandestinos acobertavam as execuções praticadas pelas autoridades. As feridas decorrentes dessa política sistemática de eliminação, tão presentes na sociedade argentina atual, somada às intensas lutas protagonizadas por diversos atores sociais (organizações de familiares de mortos e desaparecidos, sobreviventes, instituições defensoras de direitos humanos), alçou a Argentina como exemplo mundial no que diz respeito à concretização da justiça frente a impunidade de um regime autoritário. A revogação das chamadas leis de impunidade (Lei do Ponto Final e Lei da Obediência Devida), em 2003, a mudança de paradigma da jurisprudência argentina e as decisões emanadas pela Corte Interamericana de Justiça da OEA resultaram em uma drástica alteração no rumo da luta ao direito à verdade, à memória e à justiça naquela nação. Feitas estas observações iniciais, o presente artigo pretende analisar brevemente o contexto que possibilitou a retomada dos julgamentos criminais por violações aos direitos humanos ocorridos na 5 ditadura civil-militar argentina de 1976-1983. 1. A ditadura civil-militar argentina e o terrorismo de estado: síntese Em 24 de março de 1976, um golpe militar derrubou o governo civil de María Estela Martínez de Perón e instaurou o regime autoritário mais repressivo da história argentina. Como conseqüência do golpe de Estado, a Junta Militar se transformou na principal entidade política de Estado e tomou para si uma ampla gama de faculdades governamentais que a Constituição atribuía aos Poderes Executivo e Legislativo. Esse regime compartilhava algo em comum com as outras ditaduras instauradas na região: se sustentava na Doutrina de Segurança Nacional que, sinteticamente, pregava que o inimigo estava dentro do país e que deveria ser procurado entre o povo. Para defender o estado de segurança, justificava-se a violação aos direitos humanos e constitucionais. O golpe de Estado substituiu o governo representativo pela ditadura militar, o que implicava, por conseqüência, no desaparecimento do Legislativo. A partir disso, as leis não emanariam dos legisladores eleitos democraticamente, mas sim do poder militar com a assistência de civis, selecionados entre os elementos mais conservadores e reacionários que davam o necessário suporte social ao novo regime. Entre 1976 e 1983, quatro juntas militares governaram a Argentina. Ainda que se tratasse de um mandato conjunto, o representante do Exército era considerado o Presidente da Nação durante o governo de cada junta. Cinco foram os presidentes de fato. Para compreender os acontecimentos deste contexto histórico, é de suma importância entender o conceito de Terrorismo de Estado, que é a idéia de que o Estado pode, em períodos extraordinários, governar mediante a intimidação, utilizando-se, para tanto, do monopólio da violência. Nesse sentido, explica Enrique Padrós que o Terrorismo de Estado (TDE) configura-se como modalidade essencialmente distinta do terrorismo individual ou de grupos extremados não-estatais. Enquanto este é responsabilidade de indivíduos que utilizam a violência de forma indiscriminada para atingir e desestabilizar o Estado e a sociedade, o TDE se fundamenta na lógica de governar mediante a intimidação. Em suma, é um sistema de governo que emprega o terror para enquadrar a sociedade que conta com o respaldo dos setores dominantes,

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PEREIRA, Anthony. W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, Chile e Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.202-203. Para fins deste trabalho, consideramos a nomenclatura “ditadura civil-militar”. Contudo, utilizaremos sinônimos como “regime militar”, “ditadura argentina” e “regime autoritário”, para fins semânticos.

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mostrando a vinculação intrínseca entre Estado, governo e aparelho repressivo.

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Durante o denominado Processo de Reorganização Nacional (ou simplesmente Proceso), os militares argentinos definiram o conceito de subversão de maneira propositadamente ampla: todo aquele que não estivesse aliado com as pautas dos golpistas era subversivo, o que incluía, obviamente, grande parte da população. 7, Segundo Ricardo Lorenzetti e Alfredo Kraut dentro do marco ideológico do golpe de Estado, o conceito de nacionalidade excluía qualquer forma de heterogeneidade possível. Esta busca de homogeneidade da sociedade marginalizava as minorias, tomando em conta, por exemplo, suas raízes, sua orientação sexual e sua identidade de gênero, ou suas crenças religiosas além, é claro, de sua ideologia. O plano de extermínio e perseguição era sistemático. Se, por um lado, seqüestros, torturas e assassinatos por razões políticas foram cometidos por outras ditaduras militares da América Latina e do resto do mundo, nem todas produziram um dispositivo como o desaparecimento de pessoas e a supressão das provas dos crimes, como fez a Argentina. Para conseguir esses propósitos, os militares estabeleceram uma rede de centros de detenção clandestinos. Nesses campos de concentração, as pessoas desaparecidas eram submetidas a interrogatórios mediante tortura feroz, que em muitos casos levava a morte das pessoas. De acordo 8 com Lorenzetti e Kraut , se dividiu o país em 50 zonas, 19 subzonas e 117 áreas. Em uma das zonas, o comandante regional tinha plena autonomia sobre as coerções clandestinas. Ao mesmo tempo, dentro de cada zona militar, oficiais de médio escalão e agentes de segurança intervinham nos seqüestros dos supostos subversivos. Eram freqüentes os fuzilamentos em simulações de enfrentamentos. Ainda nos anos 1974 e 1975, foram realizadas numerosas detenções, principalmente de militantes de organizações políticas que haviam sido declaradas ilegais por parte do governo de “Isabel” Perón. Muitos dos que estavam detidos foram colocados em cárceres comuns e ficaram a disposição da justiça, pois eram presos legais. Contudo, logo após o golpe, foram transferidos para prisões “especiais”, despojados de todos os direitos constitucionais. Como essas detenções eram “legais”, existiam registros delas, o que levou a organização repressora a implementar, em muitos casos, a chamada “lei de fuga”. Desta maneira, os detidos eram transladados de uma unidade penitenciária para outra, e eram fuzilados no caminho, sob o pretexto de tentativa de fuga. Segundo pesquisa desenvolvida por Anthony Pereira, a judicialização da repressão desempenhou papel importantíssimo para compreender os regimes autoritários instaurados no Conesul. Segundo este autor, as diferentes características dos sistemas legais são moldadas, em parte, pela história de cooperação e do antagonismo existente entre duas organizações estatais: alto oficialato das 9 Forças Armadas e poder judiciário. Quanto maior a cooperação entre estes setores, maior o grau de interferência do judiciário nas atividades repressivas. Ao contrário do Brasil, que manteve a maior parte do aparato judicial de tempos de paz durante o regime militar e o utilizou para processar dissidentes políticos, na Argentina a opção foi pela “guerra suja”. Como bem demonstra Pereira, a matriz institucional argentina foi a mais drástica de todas as ditaduras da região. Lá, grande parte dos tribunais não se envolvia no regime repressivo exceto para negar pedidos de habeas corpus e para servir como camuflagem do terror estatal. 10 Segundo Pereira , o papel político dos militares argentinos era muito mais conservador do que em outros países. Isso ocorreria devido a fatores estruturais próprios daquela sociedade, como a polarização profunda entre um movimento de trabalhadores industriais forte e altamente militante e uma classe dominante rica e intransigente, dominada por interesses agrários e financeiros. Nesses confrontos ideológicos, o uso da força direta dos militares quase sempre acabava por prevalecer e a cooperação entre civis e militares era muito menor quando comparados com outros países, como o Brasil. A Argentina, portanto, representa um caminho extremo, radical e extrajudicial. A violência política argentina nasceu numa sociedade polarizada entre os partidários e os opositores do ex-presidente Juan Domingo Perón, e cresceu de modo gradual, após o golpe militar de 1955, que o depôs. Uma esquerda armada surgiu no país em inícios da década de 1960, e o golpe de 1966 levou ao poder um novo regime militar. Em fins da década de 1960, as ações armadas dirigidas contra pessoal militar por forças de 6

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PADRÓS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai (19651985): do Pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre 2005. p.64. LORENZETTI, Ricardo Luis; KRAUT, Alfredo Jorge. Derechos Humanos: justicia e reparación. La experiência de los juicios en la Argentina. Crimines de Lesa Humanidad. 2ª ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2011. p.80. LORENZETTI, Ricardo Luis; KRAUT, Alfredo Jorge Op.cit, p.81. PEREIRA, Anthony.Op.cit.p.26. Ibid. p.100.

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guerrilha, como os Montoneros, converteram-se numa preocupação central do governo. Quando o regime militar deixou o poder em 1973, permitindo a restauração de um governo peronista, a repressão intensificou-se. Durante a presidência de Isabel Perón, o grupo paramilitar Triplo A (Alianza Anticomunista Argentina) deslanchou uma guerra suja contra a esquerda armada. A ofensiva acabou tomando maiores proporções, até se transformar numa grande operação militar comandada pelo Exército na província de Tucumán, em 1975. Como bem afirma Pereira, diferentemente de Brasil e Chile, 12 na Argentina, a repressão começou antes, e não depois do estabelecimento do regime militar. Em 1983, o governo de fato seu viu obrigado a convocar eleições livres, celebradas em outubro daquele ano, decisão tomada frente a um acúmulo de motivos, como o crescente número de história de violações aos direitos humanos que apareciam em organismos internacionais, e o desfecho desastroso da Guerra das Malvinas. Nestas eleições, resultou vencedor o candidato da União Cívica Radical, Raúl Ricardo Alfonsín, que tomou posse em dezembro do mesmo ano. O novo presidente defendia a investigação e julgamento de chefes militares pelos crimes cometidos, mas pregava que fossem excluídos os delitos cometidos por subalternos, que teoricamente cumpririam seu dever legal de obediência. Entre suas primeiras decisões – que irão ter papel fundamental no contexto atual do país no que diz respeito aos julgamentos – ratificou as principais convenções internacionais de direitos humanos e suprimiu a jurisdição militar por delitos cometidos por membros das Forças Armadas em relação a atos 13 de serviço. 2. O retorno democrático, as leis de impunidade e os indultos presidenciais. Poucos dias após tomar posse, Alfonsín emitiu um decreto pelo qual ordenava a detenção e o julgamento do Conselho Supremo das Forças Armadas. Antes disso, contudo, foi necessário declarar nula a lei de autoanistia aprovada pelo governo militar, decisão que posteriormente foi ratificada pela 14 Suprema Corte argentina. O julgamento das Juntas Militares iniciou em 22 de abril de 1985 e durou 8 meses. Foram processados os comandantes das três armas (Exército, Marinha e Aeronáutica) que haviam integrado o governo de fato. Em 9 de dezembro de 1985, a Câmara Federal da Capital promulgou a sentença definitiva. O tribunal se pronunciou sobre 700 casos emblemáticos de desaparecidos, previamente selecionados pelos fiscais de acordo com as provas. Dos nove comandantes julgados, cinco foram condenados por privação de liberdade qualificada por violência e ameaça. Esta sentença, que continha mais de 1000 páginas, não tinha precedentes na América Latina e colocou a Argentina no centro das 15 atenções da imprensa e da comunidade internacional. Contudo, um setor importante dos militares se opunha aos julgamentos. Sob pressão, em 1987 o governo apresentou um projeto de lei ao Congresso conhecido como “Lei do Ponto Final”, que foi aprovado pela Lei nº. 23.492 e que fixou um prazo de 60 dias para apresentação de novas denúncias por delitos cometidos durante a ditadura militar. Alguns meses mais tarde, o Congresso aprovou a “Lei de Obediência Devida”, buscando acabar com as revoltas existentes – e cada vez mais numerosas – dentro das Forças Armadas. Esta lei estabeleceu uma presunção absoluta no sentido de que oficiais de médio e baixo escalão haviam atuado seguindo ordens e, em conseqüência disso, não poderiam ser punidos. Meses depois, a Suprema Corte argentina afastaria a inconstitucionalidade dessas leis, que se 16 mantiveram vigentes até 2003. Nos anos de 1989 e 1990, o então presidente Carlos Menem emitiu um total de dez decretos concedendo indultos a militares e civis que haviam sido condenados ou que estavam sendo julgados por feitos ocorridos durante a ditadura. Assim, os oficiais excluídos da Lei de Obediência Devida e os comandantes das Juntas condenados foram indultados. A Argentina, portanto, enfrentou um caminho tortuoso desde o final da ditadura civil-militar. Ao mesmo tempo em que se fizeram avanços importantes, como os julgamentos das Juntas e o informe da Conadep (o Nunca Mais Argentino), existiram retrocessos e limites, como as leis acima citadas e os indultos. Contudo, algo curioso ocorreu no país vizinho: nenhuma das chamadas leis de impunidade incluíram os delitos de subtração e ocultação de menores. Isso porque, a época dos julgamentos das Juntas, apenas dois casos de apropriação de crianças e supressão de suas identidades haviam sido registrados. A ideia de que se tratava de uma prática sistemática exercida pelo Estado não existia, o que permitiu que casos de subtração de menores pudessem ser investigados criminalmente. Segundo dados fornecidos pelas Abuelas de Plaza de Mayo, mais de 500 crianças foram seqüestradas junto com seus 11 12 13 14 15 16

PEREIRA. Op.cit.,p.61. Idem p.62. LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.84. Idem.p.86. LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.90. LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.97

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pais ou nasceram em cativeiro. Durante a década de 90 e inicio dos anos 2000, a maioria dos casos que chegaram aos tribunais versavam sobre essa matéria. Simultaneamente com o processo de ex-militares pro subtração, ocultação e substituição da identidade civil de menores, o Estado começou a compilar informações sobre bebês nascidos em centros clandestinos de detenção que foram apropriados ou dados a adoção ao pessoal das Forças Armadas ou seus conhecidos. Em 1992, Menem criou a Comissão Nacional pelo Direito a 17 Identidade (CONADI). Entretanto, o retorno dessas crianças a sua famílias biológicas está cercada de vários problemas. Alguns dessas crianças (hoje adultos) não querem expor a família que os adotou e por isso, não procuram informações e muitos se negam a realizar os exames, mesmo quando há evidências de seu seqüestro. O conflito entre o direito individual a intimidade e o direito coletivo a verdade gerou – e ainda gera – muita discussão. Há em trâmite no Congresso Argentino um projeto de lei que visa possibilitar a extração compulsiva de material genético de pessoas sobre as quais existam dúvidas 18 convincentes de que se trata de filho de desaparecido. No entanto, as implicações dessa questão fogem ao recorte deste artigo. 19 De acordo com Guillermo Yacobucci , a reforma constitucional de 1994, denominada “Pacto de Olivos”, culminou com uma mudança constitucional no que concerne aos instrumentos internacionais de direitos humanos firmados pela República Argentina. O artigo 75, inciso II da nova Carta Magna, incorporou, entre outros, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose) e elevou os tratados internacionais de direitos humanos a categoria de norma constitucional. Isso significou uma mudança de paradigma quanto à compreensão da ordem jurídica argentina e impulsionou uma transformação de sua cultura legal, pois colocou as obrigações do Estado argentino frente à graves violações de direitos humanos em primeiro plano, abrindo o caminho para a revisão das leis de anistia e indultos. 3. A retomada dos processos envolvendo crimes de lesa humanidade A discussão jurídica que permitiu a mudança radical no entendimento da Suprema Corte Argentina frente à questão dos crimes cometidos pelo regime militar, baseia-se, em linhas gerais, em um confronto entre normas de direito interno e internacional.. A existência da prescrição (instituto que visa regular a perda do direito de acionar judicialmente, devido ao decurso de determinado período de tempo), da coisa julgada (que é a qualidade conferida a sentença judicial contra a qual não cabem mais recursos, tornando-a imutável e indiscutível) e princípios como o da legalidade (não há crime sem lei anterior que o defina), da presunção de inocência e da irretroatividade da lei (qualidade de não ser válido no passado, mas sim a partir de sua elaboração ou publicação) são os pilares de um Estado de Direito pois estabelecem que o Estado deve se submeter ao império da lei, afastando a insegurança e garantindo que a sociedade não está presa às vontades particulares daquele que governa. Os fundamentos jurídicos para a reabertura dos processos penais, impossibilitados de serem levados adiante em razão das leis e indultos citados, implicam a superação de um marco de legalidade formal. Essa legalidade, como visto acima, se expressa no princípio que dita que não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem previsão legal. Dentro dessa lógica, os crimes cometidos antes da ratificação dos tratados internacionais que versam sobre imprescritibilidade de crimes de lesa humanidade (dentre eles o assassinato, o genocídio, a tortura e o desaparecimento forçado), não poderiam ser levados a julgamento pela inexistência legal e legitima de previsão desses crimes à época de seu cometimento. 20 De acordo com Lorenzetti e Kraut , contudo, não haveria uma violação ao princípio da legalidade na medida em que os crimes de lesa humanidade sempre estiveram previstos pelo ordenamento jurídico argentino, mesmo antes da reforma constitucional de 1994 e das ratificações dos tratados de direitos humanos, ocorridas no governo Alfonsín. Como bem aponta o jurista argentino: Las garantias e los derechos constitucionales – verdaderas trabas a la persecución penal por parte del Estado – con los que cuenta cualquier persona (derechos del imputado), son conquistas del Estado de Derecho logradas trabajosamente a traves del tiempo. Sin embargo, cuando se trata de crimines perpetrados por agencias estatales 17 18

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Ibid. p.105. Disponível no link http://www1.hcdn.gov.ar/proyxml/expediente.asp?fundamentos=si&numexp=2730-D-2007. Visualizado em 12.07.2012. YACOBUCCI, Guillermo. J. El juzgamiento de las graves violaciones de los derechos humanos en la Argentina. In: Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. GOMES, Luis Flavio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizadores). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.28. LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo. Op.cit. p.42

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por fuera del próprio aparato – delitos cometidos contra la humanidad – la respuesta que proporciona el diseno constitucional penal tradicional empieza a tornar-se imprecisa o, al menos, dudosa. Em efecto, en estos casos se plantearon diversos problemas procesales y doctrinales: la prescripción de la acción penal, el principio de legalidad, la validez constitucional de las llamadas leyes de impunidad y los indultos dictados por 21 Carlos Saul Menem, la cosa juzgada, entre otros.

Nesse sentido, a jurisprudência da Suprema Corte argentina formulada entre 2000 e 2004 marca uma evolução cujos fundamentos tem permitido aos tribunais inferiores investigar, instruir e eventualmente sancionar graves violações dos direitos humanos. A mudança contextual iniciou-se em 2003, quando se outorgou hierarquia constitucional a adesão à Convenção sobre Imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes de lesa humanidade, aprovada pela Lei nº. 24.584 de 1995. Conjuntamente, no mesmo ano o Congresso revogou as leis de Obediência Devida e de Ponto Final (Lei nº. 25.779, promulgada em 2 de setembro de 2003). Importantíssima, também, a evolução da jurisprudência da Corte Interamericana sobre Direitos Humanos (OEA), que especificava o dever dos Estados de investigar, sancionar os responsáveis e reparar as vitimas pelo dano causado por feitos aberrantes cometidos durante as décadas de 60/70. Com base nessas modificações, a Suprema Corte entendeu que era possível encarar os processos e investigações acerca dos delitos de lesa humanidade cometidos. Três decisões são encaradas como emblemáticas e serviram de suporte a todas as modificações sociais e jurídicas que a Argentina presenciou e ainda presencia. O caso “Arancibia Clavel”, o caso “Simón” e o caso “Mazzeo”. No primeiro caso, o tribunal supremo decidiu acerca da aplicação do princípio da imprescritibilidade dos delitos de lesa humanidade, não importando a data do cometimento dos crimes. Entre março de 1974 e novembro de 1978, o réu Arancibia Clavel integrou uma associação ilícita chilena conhecida como DINA, cuja atividade consistia na perseguição de opositores políticos do regime de Pinochet que se encontravam na Argentina. Ele foi acusado, dentre outros crimes, de participar no atentado a bomba que provocou a morte do General chileno Carlos Prats e sua esposa Sofia Cuthbert, em Buenos Aires no ano de 1974. Foi condenado à prisão perpétua. O acórdão (decisão judicial tomada pelos tribunais) estabeleceu que a conduta imputada era um crime de lesa humanidade e, por conseqüência, imprescritível, o que não violaria o principio da legalidade formal frente a adesão a Convenção sobre Imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa humanidade. No segundo caso, a Corte enfrentou o problema da inconstitucionalidade das leis de Ponto Final e de Obediência Devida. Em 1978, o cidadão chileno Jose Poblete e sua esposa argentina Gertrudis Marta Hlaczik formavam parte do grupo “Cristianos por la Liberación”. Foram seqüestrados pelo Exercito argentino e conduzidos ao centro clandestino “El Olimpo”. Foram torturados e a filha deles, de apenas oito meses, foi subtraída dos pais. Entre aqueles que participaram do seqüestro, estavam Julian Simón e Juan Antonio del Cerro, que utilizaram como defesa as Leis de Ponto Final e Obediência Devida. Neste precedente, a Corte fixou que as leis – revogadas e anuladas – não poderiam ser aplicadas em virtude do caso em pauta configurar delitos de lesa humanidade. Esta foi a grande importância desta decisão: por maioria, a Suprema Corte declarou a validade constitucional de Lei nº. 25.779 – que anulou as Leis de Ponto Final e Obediência Devida – e declarou sem efeito qualquer ato fundado nelas que pudessem 22 obstar o avanço dos processos e julgamentos de responsáveis por crimes de lesa humanidade. No terceiro caso, a Corte se pronunciou sobre a inconstitucionalidade dos indultos, concluindo que nenhum tipo de perdão pode opor-se e deixar sem efeito a persecução penal e a condenação de crimes de lesa humanidade. Em 2004, a Liga Argentina pelos Direitos Humanos ingressou com ação de inconstitucionalidade, buscando a anulação do indulto concedido, em 1989, a Santiago Omar Riveros, que era investigado por participação, junto com outros agentes das Forças Armadas, em diversos homicídios, privações ilegais de liberdade, torturas, lesões e violações de domicilio. Por maioria, a Suprema Corte declarou inconstitucional os indultos, por entender que este ato de governo resultava na renuncia a verdade, à investigação, a comprovação de feitos, a identificação de autores e a desarticulação dos meios e recursos eficazes para evitar a impunidade, violando, assim, não só a Constituição nacional mas a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de 23 Direitos Civis e Políticos . Muitos dos delitos ocorridos a partir do golpe de 1976, com seu saldo de desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias em centros clandestinos de detenção, mortes, apropriação de crianças e bebês e milhares de exilados, dentre outros crimes, foram e seguem sendo julgados na atualidade. Esta política de julgamentos reconhece uma forte pressão social e uma luta incansável dos organismos de direitos humanos e de muitos atores sociais, em busca da verdade, justiça e reparação. Nesse contexto, 21 22 23

LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo. Op.cit p.130. Ibid.p.147-148. Ibid. p.160-161.

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as decisões da Suprema Corte possibilitaram as condições para que se levassem adiante as 24 investigações jurisdicionais. 25 Segundo Lorenzetti e Kraut , a Suprema Corte criou uma unidade especial para coordenar as medidas necessárias para levar a cabo os ajuizamentos de todos os casos de supostas violações aos direitos humanos causadas pelo Terrorismo de Estado. Criada em 2007, a “Unidade de Assistência e Seguimento das causas penais nas quais se investiga o desaparecimento forçado de pessoas ocorrido antes de 10 de dezembro de 1983”, a fim de ajudar os tribunais federais que atualmente levam adiante os julgamentos. Muitos julgamentos estão ocorrendo nas jurisdições federais argentinas. Alguns já foram finalizados e muitos responsáveis foram condenados. Devido a grande quantidade de delitos ocorridos nos diversos centros de detenção clandestinas existentes naquele período, muitos processos reúnem diversos réus e vítimas, como o caso da ESMA (Escuela de Mecánica de la Armada), que reúne mais de 5000 vítimas e, ao menos, 1000 autores, e o caso “Plán Condor”, no qual se investiga casos de desaparecimentos e mortes oriundos da operação coordenada entra as Forças Armadas da Argentina, 26 Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai. De acordo com dados da Unidade Fiscal de Coordenação e Seguimento de causas por violações aos direitos humanos, da Procuradoria-geral da Nação, até o momento, 273 pessoas foram condenadas por delitos de lesa humanidade cometidos durante o terrorismo de estado; 875 pessoas estão sendo processadas; 15 julgamentos (orais e escritos) estão em andamento; 7 novos julgamentos 27 orais já tem data para iniciar. Números expressivos que demonstram a irreversibilidade deste processo em busca de uma justiça contra os arbítrios cometidos pelo terrorismo de estado argentino. Considerações Finais Como se pode ver, a Argentina é o país que mais avançou na América Latina na tarefa de julgamento dos crimes cometidos durante o período ditatorial que assolou o continente. Nesta busca pela verdade, pela reconstrução da memória e pela construção da justiça, nossos vizinhos inovaram – e seguem inovando – em matéria de direito civil, penal e constitucional. Pactos e tratados internacionais de direitos humanos, subscritos e ratificados pelo país, foram incorporados à Constituição, possibilitando sua utilização para superar os obstáculos jurídicos internos, que proibiam a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Além disso, segundo entrevista concedida pelo deputado nacional Remo Carlotto à revista Carta Maior, na Argentina, tem-se discutido a responsabilização de civis e grupos empresariais que participaram ativamente do golpe e da repressão, como verificamos no trecho abaixo: A empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires, um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz e com a principal empresa açucareira argentina, Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o seqüestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nacion, a empresa Papel Prensa, a partir do seqüestro e da tortura dos proprietários dessa 28 empresa que produz papel para jornais.

Os processos de conhecimento da verdade, de construção da memória e da justiça são processos inexoráveis para qualquer sociedade com um passado autoritário. Os instrumentos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem um papel de suma importância nesse sentido, pois suas recomendações não são apenas morais ou políticas, ao contrário do que muitos afirmam. Ao subscrever e ratificar um tratado internacional, o Estado assume uma responsabilidade perante esses organismos. Essa consciência, que infelizmente não existe no Brasil, é uma das responsáveis por reverter o processo de impunidade no marco estrito da justiça. A importância destes processos não reside somente na penalização dos responsáveis, mas também em seu legado para o futuro. A garantia de que não haverá lei nem perdão para aqueles que cometem atos de perseguição política e que, mais cedo ou mais tarde, aqueles que cometem crimes 24 25 26 27

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LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.Op.cit. p.169. Ibid. p.241. Ibid. p.297. Disponível em http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/subnotas/190350-58358-2012-03-24.html. Visualizado em 12.07.2012. Disponível no link: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19916. Visualizado em 12.07.2012.

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horrendos serão levados a justiça, constitui um forte incentivo institucional que ajuda a prevenir o terrorismo de estado. Como bem aponta Ricardo Lorenzetti: Aunque el olvido sea imposible, debemos ejercitar la memória, reactivar el pasado, perseverar em la búsqueda de justicia y reparación. Sin memória y justicia no hay 29 presente, no hay futuro.

A esperança, para o restante da América Latina reside no fato de que o primeiro passo é a busca pela verdade. Havendo a preocupação em não esquecer, procurando compreender os fatos ocorridos no passado e não deixando a memória se esvair, pode-se continuar lutando em busca da justiça.

Referências Bibliográficas: BAUER, Caroline Silveira. Um estudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civilmilitares argentina e brasileira e a elaboração de políticas de memória em ambos os países. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. LORENZETTI, Ricardo Luis; KRAUT, Alfredo Jorge. Derechos Humanos: justicia e reparación. La experiencia de los juicios en la Argentina: Crímenes de Lesa Humanidad. 2ª ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2011. NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretario Geral S/2004/616. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, 2009, n.1. PADRÓS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai (1965-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre 2005. PEREIRA, Anthony. W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, Chile e Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. YACOBUCCI, Guillermo. J. El juzgamiento de las graves violaciones de los derechos humanos en la Argentina. In: Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. GOMES, Luis Flavio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizadores). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

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LORENZETTI, Ricardo e KRAUT, Alfredo.op.cit.p.307.

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A Comissão Nacional da Verdade e a Ausência de Função Jurisdicional Gabriela Goergen de Oliveira

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Resumo: foi instaurada no brasil, em maio de 2012, a comissão nacional da verdade, responsável pela apuração das violações aos direitos humanos praticadas por agentes públicos ou pessoas a seu serviço durante o período de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988, tendo como foco central dos trabalhos o período que corresponde ao regime militar (1964-1985). A maior polêmica em torno da CNV é o fato de que não irá punir, ao final dos trabalhos, qualquer investigado. O presente artigo analisará a figura de uma comissão da verdade e a característica de não possuir função jurisdicional. O objetivo é o esclarecimento de que independentemente de não ter função judicial, os trabalhos de uma comissão da verdade podem contribuir, mesmo que de forma indireta, porém significativamente, na responsabilização criminal dos investigados. Palavras-chave: Direitos Humanos – Justiça de Transição – ditadura militar – comissão da verdade – justiça. Abstract: it was instaured in brazil, in may 2012, the national comission of truth (comissão nacional da verdade), responsible for the calculation of human rights practiced by public agents or people working for it during the period of september 18, 1946 until october 5, 1988, having as main focus of the works the corresponding period of the military regime (1964-1985). The major controversy among CNV is the fact that it will not punish, in the end of the works, the ones investigated. The main purpose is to clarify that, independently of not having a judiciary function, the works of a truth comission can contribute, even indirectly, but meaningfully, in the criminal responsability of the investigated. Keywords: human right – transiction justice – military dictatorship – truth comission, justice – criminal responsability.

Introdução Vinte e oito anos após o fim de um regime civil-militar está em funcionamento, no Brasil, uma Comissão da Verdade. A Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio de 2012, surgiu em meio a um complicado cenário. O processo de transição no Brasil é ambíguo e segue em andamento desde o final do regime militar. Em comparação a América Latina, por exemplo, ao mesmo tempo em que está atrasado em alguns aspectos, encontra-se adiantado em outros. Dessa forma, no âmbito da verdade e memória, assim como da reparação (material e simbólica), o Brasil já realizou consideráveis avanços. No entanto, no que se refere à punições das violações aos direitos humanos ocorridas no decorrer do regime militar, o Brasil pouco – ou nada – evoluiu. Os vizinhos latino-americanos que também enfrentaram regimes de exceção durante o século XX, principalmente em relação a seus vizinhos latino-americanos, que, reconhecendo e respeitando o direito internacional, já implementaram e seguem a tomar medidas no sentido dos crimes cometidos não restarem impunes. Existe, por fim, porém não menos importante, o desconhecimento a respeito da figura da “comissão da verdade”, assim como do tema “Justiça de Transição”. A falta de conhecimento sobre o tema pode gerar equívocos que, já enraizados na opinião pública, dificilmente podem ser revertidos. No Brasil, tudo que é público já nasce desacreditado, e não foi diferente com a CNV – criada pelo Estado, mais especificamente pela Casa Civil. A opinião pública já sentenciou que a Comissão Nacional da Verdade “já nasceu derrotada”, sob o argumento de que os militares responsáveis por mortes, desaparecimentos, torturas e demais crimes não serão julgados, condenados e presos. Como se verá no decorrer do presente estudo, a Comissão Nacional da Verdade não tem poder punitivo. Não se trata de uma característica da Comissão brasileira, mas sim das mais de quarenta Comissões da Verdade já instaladas em todo o mundo. Dessa forma, o presente artigo pretende analisar a figura de uma comissão da verdade e a característica de não possuir função jurisdicional, para então esclarecer que, independentemente de não ter função judicial, os trabalhos de uma comissão da verdade podem contribuir, mesmo que de forma 1

Acadêmica do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Contato: gabrielagoergen@hotmail.com

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indireta, na responsabilização criminal dos investigados. 1. Comissões da Verdade As comissões da verdade correspondem a um dos diversos mecanismos que compõem a 2 Justiça de Transição , normalmente aplicadas em países emergentes de regimes autoritários ou de guerras civis. O principal objetivo dessas comissões é descobrir, esclarecer e reconhecer os abusos ocorridos no passado, dando voz às vítimas, e, quando isso não for possível pelo fato de estarem mortas ou desaparecidas, através de seus familiares. Somente entrevistando livremente os que foram sujeitos a abusos e dando voz aos que permanecem em silêncio é que se poderá constituir a “história silenciada” 3 do período. O direito de particulares de conhecer a verdade acerca da sorte que tiveram as pessoas desaparecida ou de receber informações sobre outros abusos cometidos no passado foi confirmado pelos órgãos criados em virtude de tratados internacionais, tribunais regionais, internacionais e 4 nacionais. As comissões são órgãos temporários, e, analisando algumas das comissões já instaladas no mundo, os mandados que lhes são atribuídos para que possam desempenhar suas funções valem por um lapso de tempo que varia entre seis meses e três anos, sendo que a maioria atua por cerca de dois. Não existe um molde exato a partir do qual as medidas de Justiça de Transição, assim como as comissões da verdade devam ser criadas e realizadas. O que existem são parâmetros, medidas que mais proporcionam resultados positivos, as quais são costumeiramente seguidas e aplicadas. 2. Sobre o surgimento e a instalação da comissão nacional da verdade Não se trata de uma questão recente. Em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil ingressou no Supremo Tribunal Federal com uma Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental, então chamada de ADPF n.º 153, 5 questionando a interpretação da Lei da Anistia. Segundo a ADPF, em seu §1º do artigo 1º , a Lei teria anistiado os agentes públicos que promoveram torturas, desaparecimentos e outras violações aos direitos humanos durante a ditadura militar. A OAB requereu ao STF uma interpretação da Lei conforme a Constituição Federal, de modo a declarar-se que a Lei da Anistia não atinge os crimes comuns praticados por agentes da repressão. Nesta Ação Constitucional, a OAB afirma que o §1º não pode ser recepcionado pela Carta de 1988, pois esta, no inciso XLIII do artigo 5º, reputa o crime de tortura como insuscetível de anistia ou graça. A inicial ressalta, ainda, o fato da Lei ter sido votada durante a vigência plena do regime militar, em um Congresso amordaçado pelos militares e, inclusive, composto pelos chamados “senadores biônicos”, e, ainda, ter sido sancionada por um presidente da república militar, não eleito pelo povo. Em 2009, quando o governo brasileiro publicou o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (o 6 PNDH-3) . O Eixo Orientador VI tratou o Direito à Memória e à Verdade, fez remissão ao período da ditadura militar e evocou o dever por parte do Estado de resgatar a história do período de repressão política visando a erradicação de políticas violentas, como a tortura, “ainda persistente no cotidiano brasileiro” (Secretaria, 2009, p. 170). Dessa forma, o PNDH-3 previu a criação de uma Comissão da 2

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O processo de transição após experiências autoritárias compõe-se de pelo menos quatro dimensões fundamentais: (i) reparação, (ii) o fornecimento da verdade e construção da memória, (iii) a regularização da justiça e reestabelecimento da igualdade perante à lei e (iv) a reforma das instituições perpetradoras das violações contra os direitos humanos. ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de transição e eficácia da lei de anistia no Brasil: alternativas para a verdade e justiça. In: Direitos Humanos – justiça, verdade e memória. ASSY, Bethania; MELO, Carolina de Campos; DORNELLES, João Ricardo; GÓMES, José Maria (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. BRASIL. A Comissão da Verdade no Brasil: Por quê, o que é, o que temos de fazer? Org.: Núcleo de Preservação da Memória Política. São Paulo: 2012, p. 08. Nações Unidas: Gabinete do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Instrumentos do Estado de Direito para sociedades que tenham saído de um conflito. Comissões da Verdade. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça – N. 5 (jan. / jun. 2011). – Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p. 295. §1º do artigo 1º da Lei n.º 6.683/79: “Consideram-se conexos, para os efeitos desse artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.” O PNDH é um programa plurianual do Governo Federal elaborado por setores da Sociedade Civil, movimentos sociais e entidades de classe, que propõe diretrizes e metas a serem implementadas em políticas públicas voltadas para a consolidação dos direitos humanos. O programa, em si, não é auto-executável. Para as propostas ou temas de debate sugeridos pelo PNDH entrem em vigor é necessária a aprovação pelo Congresso Nacional. O PNDH-1 e PNDH-2 foram publicados durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, e o último e mais polêmico, o PNDH-3, no Governo Lula.

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Verdade com o objetivo de apurar os crimes e demais violações aos direitos humanos ocorridos no período ditatorial. A polêmica estava lançada: militares ameaçaram pedir demissão, a ponto do Presidente Lula chegar a fazer modificações no Plano. Foi criado um Grupo de Trabalho formado por representantes da Casa Civil, do Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa, da Secretaria de Direitos Humanos e da Sociedade Civil, a fim de que fosse elaborado um projeto de Lei que instituísse uma Comissão da Verdade. O julgamento da ADPF 153 ocorreu em 28 de abril de 2010, quando o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Ação, deliberando pela eficácia da Lei da Anistia àqueles que violaram os direitos humanos durante o regime militar. Ainda em 2010, em novembro, após o julgamento da ADPF, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund x Brasil (Caso Guerrilha do Araguaia), em ação provocada pela resistente militância de familiares de mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. O pedido foi a condenação do Estado brasileiro pela não abertura dos arquivos e pela não revelação do paradeiro dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. A Corte declarou o Brasil culpado pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, á vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal das pessoas indicadas na denúncia. Na Ação, ainda, foi solicitado à CIDH que ordenasse o Brasil a criação de uma comissão da verdade. Na sentença, a Corte não condenou objetivamente o País à criação de uma comissão. A CIDH considerou que a criação de uma comissão se trata de um mecanismo importante no sentido do Estado brasileiro cumprir a obrigação de garantir o direito da sociedade a conhecer a verdade sobre o ocorrido. Assim, o Tribunal valorou a iniciativa de criação de uma Comissão Nacional da Verdade e exortou o Brasil a implementá-la. Sobre responsabilizações individuais dos crimes cometidos, a Corte foi clara: A Corte julga pertinente, no entanto, destacar que não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de 7 responsabilidades individuais, através dos processos judiciais penais.

O Projeto de Lei n.º 7.376/10 foi assinado pelo Presidente Lula e enviado ao Congresso Nacional, que, através da Lei n.º 12.528/12, criou, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. A Comissão foi instalada em 16 de maio de 2012 e terá prazo de dois anos para apurar as violações aos direitos humanos praticadas por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. 3. As comissões da verdade e a relação com a justiça A Comissão Nacional da Verdade tem quatro finalidades principais: promover o direito à memória; efetivar a verdade histórica, promover a reconciliação nacional e recomendar reformas no aparato institucional. A promoção do direito à memória e à verdade são típicas de uma comissão da verdade e integram o rol de medidas de justiça transicional. Relativamente ao modo de operação, em termos gerais, as comissões possuem caráter consultivo, explicativo, que dispensa qualquer tipo de procedimento legal ou julgamento. De acordo com a essência do papel de uma comissão da verdade, a Lei n.º 12.528/12 não atribuiu à Comissão brasileira tarefa jurisdicional ou persecutória, atividade que somente pode ser 8 realizada por iniciativa do Ministério Público . A Lei da Anistia, que até hoje foi o empecilho para a punição dos agentes do Estado que cometeram crimes durante o regime militar, é um “fato” que a Comissão Nacional da Verdade não tem o poder de questionar. Da mesma forma, como já referido, a falta de poder jurisdicional não se trata de característica exclusiva da Comissão brasileira: nenhuma comissão da verdade instaurada no mundo até hoje teve, em seus mandatos, o poder de punir qualquer indivíduo. E é na relação entre verdade e justiça que se concentra a maior polêmica em torno da Comissão Nacional da Verdade: a falta de conhecimento no que se refere à Justiça de Transição e seus mecanismos (nos quais as comissões da verdade se incluem) e o fato da Comissão brasileira não possuir tarefa jurisdicional acabou por resultar no equívoco de que, “pelo fato de não ter poder de punição, ela não terá efetividade, sendo apenas de uma comissão de fachada”. Trata-se de um malentendido que deve ser esclarecido o quanto antes, afinal não são poucos os que já sentenciaram a sua “derrota” justamente por não promover a responsabilização dos perpetradores de violações aos direitos 7

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CORTEIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund y otros (Caso Guerrilha do Araguaia). Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2010. Disponível em: <http://www.carteidh.or.cr/casos.cfm>. Acesso em 15 de fevereiro de 2013, p. 107. Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.

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humanos. As comissões da verdade tratam de muitos fatos que poderiam ser também sujeitos a processos legais, e, por não possuírem caráter judicial, a relação delas com o sistema judiciário é muitas vezes mal compreendida. O fato de não terem poder persecutório pode causar, muitas vezes, equívocos, os quais devem ser sanados o mais breve possível. Daí a importância de um estudo, mesmo que breve, das atribuições de seus mandatos. As expectativas com relação às comissões da verdade muitas vezes são exageradas na mente dos cidadãos, por isso, é importante manipular devidamente essas expectativas, mantê-las dentro do razoável e descrever com franqueza desde o princípio o que uma 9 comissão da verdade pode oferecer.

Até o momento, já foram instauradas em todo o mundo cerca de quarenta comissões da verdade, e uma característica comum entre todas foi o fato de nenhuma possuir função jurisdicional. Nenhuma pessoa foi denunciada, processada, julgada e condenada por uma. Em muitos países, não é incomum a dificuldade ou a impossibilidade de empreender a acusação por crimes massivos, aliado à falta de capacidade do sistema judicial ou de uma anistia de fato ou de direito. Diante de tais dificuldades, mesmo não sendo um substituto da ação judicial, através das comissões da verdade é oferecida certa possibilidade de explicar o passado. O resultado do seu trabalho é apontado como revelação da “verdade histórica”, em contraponto àquela que surge de um processo judicial, identificada 10 como “verdade judicial”. Embora as relações entre comissões da verdade e a instância legal tenham variado dependendo do país e das condições políticas específicas, não resta dúvida de que a maioria delas teve a intenção de contribuir no sentido do fortalecimento do processamento civil e/ou criminal dos mandantes e executores de violências e crimes praticados. De fato, para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, uma comissão da verdade “não substitui a obrigação do Estado de estabelecera a verdade e 11 assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, através de processos penais”. Independente de não possuírem poder de punição, as comissões não são aceitas, atualmente, pelo direito internacional dos direitos humanos, como substitutivas dos órgãos judiciários de investigação. E tampouco suprimem a necessidade de promoção da responsabilidade penal. O trabalho de uma comissão da verdade pode impulsionar ou reforçar uma acusação a ser instalada no futuro. Ao final dos mandados, a missão das comissões é a produção de um relatório final, o qual deverá constituir-se na postura oficial do Estado, sendo por ele assumido e amplamente divulgado. Além de proporcionar à sociedade o conhecimento da verdade sobre o regime que oprimiu e violou direitos e garantias fundamentais, a grande maioria das comissões recomenda, em seu relatório final, a instauração de ações penais (ou investigações judiciais que levem a possíveis processos) pelos fatos que foram por elas documentados. As comissões não podem processar ninguém, mas sim recorrer ao sistema judicial para que seja dado início a processos penais. A recomendação pode se referir a pessoas específicas ou tratar-se de uma recomendação geral para que sejam realizadas mais investigações além daquelas já realizadas e que seja dado andamento no sentido da responsabilização dos crimes cometidos no passado. É possível, ainda, mas menos comum, que as informações obtidas pelas comissões sejam entregues ao Ministério Público no decorrer dos seus trabalhos. Sobre a atuação do Ministério Público Federal, Weichert afirma que o órgão, em especial, atua nesta matéria tanto na seara criminal (para a promoção da persecução penal) como na cível, onde busca a promoção do direito à verdade, à informação e à memória, bem como o aperfeiçoamento do aparato estatal de segurança pública. Em ambos os campos é recomendável a sinergia, sem prejuízo da maior afinidade entre os objetivos da Comissão Nacional da Verdade e as funções constitucionais do Ministério Público na promoção dos direitos fundamentais dos 12 cidadãos.

Diante disso, o que se pode concluir é que a CNV, mesmo não tendo caráter jurisdicional, pode impulsionar, ao seu término, a instauração de processos civis e criminais no sentido da responsabilização daqueles que cometeram assassinatos, tortura e demais violações aos direitos 9 10

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Nações Unidas (2012), op. cit., p. 296. WEICHERT, Marlon Alberto. A Comissão Nacional da Verdade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRÃO, Paulo (Orgs.). Justiça de Transição nas Américas – olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. CORTEIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund y otros (Caso Guerrilha do Araguaia). Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2010. Disponível em: <http://www.carteidh.or.cr/casos.cfm>. Acesso em 06 de fevereiro de 2013, p. 106. WEICHERT (2013), op. cit., p. 14.

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humanos durante a ditadura militar. Além disso, em muitos casos as comissões não somente determinam a responsabilidade do Estado e de suas várias instituições na consecução de práticas repressivas – fossem estas oriundas de forças públicas ou militares –, mas também responsabilizam, em seus relatórios, o Judiciário por sua omissão e até mesmo por sua conivência. No relatório final, as comissões também apresentam recomendações que visam o aprimoramento de determinadas instituições estatais que devem ser reformadas ou extintas, no sentido de contribuir para uma política de não repetição. Quando não for o caso de sugestão de eliminação, trata-se da apresentação de propostas que visem a reforma do mandato, a capacitação, assim como das operações das instituições específicas (principalmente àquelas relacionadas à segurança pública) a fim de garantir a sua operação efetiva, no sentido da proteção – e não de violação e desrespeito – dos direitos humanos. A Comissão Nacional da Verdade instaurada no Brasil foi criada a partir das características de todas as demais Comissões que já funcionaram no mundo. Como já referido, nenhuma delas teve o poder de punição – assim como a brasileira também não possui. A CNV desempenhará, mesmo de forma indireta, relevante papel no sentido de uma possível responsabilização criminal, assim como civil, dos responsáveis pelo cometimento de violações aos direitos humanos durante o regime militar brasileiro. A impunidade corrói as bases do Estado de Direito e afeta a essência da democracia. É necessário discorrer sobre a importância e sobre o significado do acesso ao “direito à justiça” para entender a concretização dos processos de transição política e consolidação da democracia. O cumprimento desse direito assegura a 13 responsabilização, além de ter uma função pedagógica.

A instauração de processos e consequentes julgamentos e condenações contribuem significativamente para o restabelecimento da confiança dos cidadãos para com o Estado e suas instituições, no sentido de afirmar que o objetivo principal é a proteção do cidadão e de seus direitos e garantias fundamentais, e não do próprio Estado. Os julgamentos não devem ser vistos somente como expressões de um anseio social de retribuição, dado que também desempenham uma função vital quando reafirmam publicamente normas e valores essenciais cuja violação implica sanções. Os processos também podem auxiliar a restabelecer a confiança entre os cidadãos e o Estado demonstrando àqueles cujos direitos foram violados que as instituições estatais buscam 14 proteger e não violar seus direitos.

No Brasil, até o momento, há um esforço por parte do Poder Executivo federal e certa participação do Poder Legislativo (no que tange à promulgação de leis relativas a reparações e reconhecimentos de mortos e desaparecidos visando à efetivação da transição brasileira). O Judiciário, por sua vez, ainda não contribuiu positivamente neste processo transicional. A Lei de Anistia de 1979 tem sido o maior obstáculo para o processamento de responsáveis pelas violações de direitos humanos, sobretudo após a decisão do STF que, ao decidir pela improcedência da ADPF n.º 153, só reforçou a sua postura inerte e até mesmo conivente com os crimes cometidos ao longo do regime militar. Conclusão A “derrota” da Comissão Nacional da Verdade parece ter sido, por muitos, anunciada: baseado no caráter não punitivo da CNV, o ceticismo acerca dos seus trabalhos é uma realidade. Afinal, “de que adianta uma comissão da verdade se nenhum torturador será preso”? Não é de se surpreender com tamanha falta de otimismo. No país do carnaval, tudo o que é ou vem do público já nasce desacreditado. E isso não foi causado pelos militares – talvez por eles somente reafirmado. Trata-se de uma herança de uma Coroa e de toda a sua Corte que aqui firmaram residência em 1808, dando início ao carnaval no qual dançamos até hoje. Além da falta de credibilidade daquilo que publico é, aliado a posição de retaguarda do Brasil em comparação com demais países no que se refere a implementação das medidas de justiça transicional, os perpetradores de graves violações aos direitos humanos durante o regime militar não foram sequer processados, muito menos punidos pelos seus crimes. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal ratificou a 13

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BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre: Medianiz, 2012, p. 176. VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. In: Justiça de Transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (Coord.) – Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011, p. 35.

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postura conservadora do Judiciário brasileiro e sua inércia diante dos crimes ocorridos durante o regime militar. Afrontou os compromissos internacionais assumidos pelo País, como o Pacto de São José da Costa Rica (a Convenção Interamericana de Direitos Humanos). Ignorou o fato dos vizinhos latinoamericanos, em respeito ao entendimento da Corte Interamericana em considerar nulas as auto-anistias, estarem anulando as suas próprias leis de anistia, como o caso da Argentina, que anulou a sua em 2005. No entanto, mesmo diante desse quadro, já existe uma movimentação no meio jurídico para tentar contornar as barreiras impostas pela Lei da Anistia. Antes mesmo do debate em torno da validade da Lei de 1979 vir à tona, uma ação cível foi impetrada, em 2005, na 23ª Vara Cível da Comarca de São Paulo contra o Coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra. Com a sentença, de eficácia meramente declaratória, o Coronel passou a ser declarado como torturador. Atualmente, o Ministério Público Federal tem entrado com ações em varas federais requerendo a abertura de investigações de crimes de desaparecimentos ocorridos durante o regime militar. Em agosto de 2012, por exemplo, a Justiça Federal do Marabá recebeu denúncias do Ministério Público Federal contra o Coronel Sebastião Curió Rodrigues e contra o Major Lício Augusto Maciel, acusados de seqüestro qualificado de militantes capturados durante a repressão à Guerrilha do Araguaia. Em São Paulo também foram recebidas em agosto de 2012 denúncias pelo crime de seqüestro qualificado contra o Coronel Ustra, Alcides Singillo e Carlos Alberto Augusto (“Carlinhos Metralha”), estes dois últimos delegados da Polícia Civil. A interpretação dos promotores é a de que não poderia haver um marco temporal nesses casos, pois não tendo sido encontrado o corpo, este seria um crime permanente, ou seja, ainda em vigor, e, assim, fora do período estabelecido pela Lei da Anistia. O ponto causador de maior polêmica em torno da CNV é a ausência de caráter judicial. De fato: a punição é, sem dúvida, o maior anseio das vítimas, de seus familiares e, por que não, da sociedade em geral. Representa a certeza de que aqueles que proporcionaram sofrimento e dor por um crime paguem por aquilo que fizeram. As expectativas em relação aos resultados dos trabalhos da Comissão não poderiam ser menores: embora se diga que o objetivo da CNV é levantar a “história silenciada” do País, a pressão popular e política será – e se espera que seja – mais forte quando responsáveis mortes e torturas passarem a ser indicados. Ao final de dois anos, os membros da CNV deverão apresentar um relatório elaborado a partir da análise de documentos, muitos deles sigilosos, e depoimentos. No entanto, ainda que identifique envolvidos e responsáveis por torturas, assassinatos ou desaparecimentos de opositores do regime militar, uma possível punição poderá esbarrar nos limites estabelecidos pela Lei da Anistia. Ocorre que a idéia de que anistias e violações aos direitos humanos ocorridas durante regimes autoritários bloqueiam a possibilidade de julgamentos já é passado na maior parte da América Latina. Com o tempo, essa noção está passando a ser suprimida a partir de casos como o da Argentina, em que grupos conseguiram driblar a Lei da Anistia sugerindo interpretações criativas ou explorando brechas. Engana-se quem pensa que não existe mais razão para a instauração de uma comissão da verdade, sob o argumento de que a mesma não terá poder de punição. Sociedades que não superaram as barbáries históricas cometidas por governos autoritários impregnaram em seu tecido social e na sua cultura práticas que neutralizam as violências e o autoritarismo. O Brasil ainda não concluiu a transição à democracia e convive até hoje com a herança do regime militar. Órgãos responsáveis pela segurança pública seguem como enclaves contrários a certos valores democráticos adotados pela Constituição de 1988, até hoje desrespeitando e/ou ignorando completamente os direitos humanos: matando, torturando e cometendo as mais diversas barbáries. O resultado de tamanho descaso é o estímulo à violência sistemática, à cultura da impunidade, da falta de informação e da falta de espírito crítico da sociedade. Mesmo que tardiamente, com o advento de uma comissão da verdade o Brasil vivencia grandes desafios – ou melhor, grandes oportunidades – que, se bem aproveitadas, permitirão prósperos avanços na consolidação da democracia e na superação do estado de transição. Trata-se de uma oportunidade ímpar tanto para a investigação dos crimes cometidos durante a ditadura militar como para aprofundar um exame sobre as causas e principalmente das consequências do regime instaurado em 1964 – estas últimas até hoje presentes. O papel primordial de uma comissão da verdade é, sem dúvida, levantar a história do período autoritário ocorrido em um Estado. Da mesma forma, é também o de alimentar um debate na sociedade sobre o que ocorreu no passado. Isso, em muitos casos, favoreceu a abertura de julgamentos para estabelecer responsabilidades criminais. Nesses casos, a função das comissões da verdade foi ajudar a munir advogados e Ministério Público com evidências para a abertura de processos. Nesse cenário, passa a ser criado um clima favorável para a ocorrência de decisões judiciais favoráveis à flexibilização das anistias. Passados quase trinta anos do final da ditadura militar, ainda há muitos que gostariam de manter embaixo do tapete verdades que virão à tona a partir dos trabalhos da CNV. Para tanto, o ideal é que a sociedade desconheça a real importância de uma comissão da verdade e desacredite em seus trabalhos pelo fato de não ter o poder de punir os responsáveis pelos crimes ocorridos. 314


A instauração de uma Comissão da Verdade é de suma importância no sentido de uma ruptura com o passado autoritário e seu legado – o qual perdura até hoje. Como já esclarecido, a CNV não terá o poder de punir qualquer investigado. No entanto, ao final de seus trabalhos e a partir do relatório que será elaborado é que as denúncias podem começar a surgir. Julgamentos podem dar fim à impunidade e fortalecer a democracia e o respeito aos direitos humanos. Amanhã vai ser outro dia.

Referências Bibliográficas: ASSY, Bethania; MELO, Carolina de Campos; DORNELLES, João Ricardo; GÓMES, José Maria (coordenadores). Direitos Humanos: justiça, verdade e memória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre: Medianiz, 2012. BRASIL. A Comissão da Verdade no Brasil: Por quê, o que é, o que temos de fazer? Org.: Núcleo de Preservação da Memória Política. São Paulo: 2012. BRASIL. Justiça de Transição: manual para a América Latina. Félix Reátegui (Coordenação) – Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011. BRASIL. Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça – N. 2 (jul. / dez. 2009). – Brasília: Ministério da Justiça, 2009. BRASIL. Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça – N. 5 (jan. / jun. 2011). – Brasília: Ministério da Justiça, 2012. SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRÃO, Paulo (Orgs.). Justiça de Transição nas Américas – olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

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IX - ResistĂŞncias e redes de solidariedade nas Ditaduras do Cone Sul

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Los tortuosos caminos: a fuga dos argentinos para o Brasil, no marco temporal das ditaduras civis-militares de Segurança Nacional Jorge Christian Fernandez

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Introdução A travessia de uma fronteira internacional costuma provocar nas pessoas certa tensão e nervosismo, em maior ou menor grau. Mesmo em condições político-institucionais “normais”, ou seja, quando o “império das leis” rege as ações normativas do Estado. Isso depende de uma multiplicidade de fatores que incluem desde a estabilidade emocional do sujeito que está cruzando a fronteira e passando pela formação e a habilidade dos agentes do Estado encarregados de efetuar os controles migratórios, alfandegários, etc. E, sem esquecer o contexto histórico específico no qual se insere o processo que envolve o atravessar uma fronteira entre dois países. Pode até dizer-se que a natureza da travessia já encerra um componente de constrangimento. O atravessar uma fronteira é um fato complexo que envolve verificação de documentos, um escrutínio do transporte empregado, da bagagem pessoal e, por vezes, se submete o indivíduo à revista corporal, o que acarreta uma humilhação, tanto seja por sentir-se “alvo” de suspeita ou discriminado, quanto pela violação do espaço íntimo pessoal. Ou seja, a tensão da travessia é geralmente composta por um caleidoscópio de sensações que incluem apreensão, insegurança, desconhecimento, desamparo e medo. Em grande parte, esses sentimentos começam a ser construídos com antecedência ao ato de partir da “sua” zona de conforto e adentrar em um terreno desconhecido, os domínios do “outro”. Ao desconforto de índole psicológica, ainda podem-se adicionar entraves objetivos, como a barreira da língua associada à corriqueira ausência ou a áspera negativa de informação por parte das autoridades fronteiriças. Uma situação que normalmente se agrava quando o estrangeiro prestes a cruzar a fronteira é inexperiente ou com baixo nível de instrução escolar. A reação do indivíduo perante essas regras burocráticas com as quais não possui familiaridade e códigos sociais desconhecidos também causa muito estresse. Imagine-se então o que representava passar a fronteira Argentina–Brasil nos anos 1970-1980, em um contexto repressivo, onde as garantias constitucionais e o respeito pelos direitos humanos existiam de modo figurativo, como no Brasil, ou simplesmente inexistiam, como na Argentina. Nesse quadro de horror, pânico e insegurança, pessoas das mais diversas origens sociais, desde militantes políticos ou sociais, estudantes, operários ou profissionais liberais, não somente de “esquerda”, mas sim dos mais variados matizes e militâncias, procuraram um lugar de refúgio. Para alguns, esse refúgio seria apenas temporário, na espera da mudança dos instáveis ventos da política; para outros seria uma passagem em direção a um terceiro lugar, geralmente além-mar e considerado mais seguro, longe dos horrores que haviam padecido em seu próprio lar. Nessa conjuntura, o Brasil se apresentou como uma das poucas possibilidades plausíveis de sobrevivência. No entanto, atravessar a linha de fronteira podia se transformar em algo tão temerário e perigoso quanto permanecer no país de origem. Pois o Brasil ainda era governado por um regime ditatorial análogo ao da Argentina (embora em processo de distensão) e, paradoxalmente, ao intentar fugir do terrorismo de Estado (TDE) implantado na Argentina podia cair-se nas experientes garras do TDE brasileiro, em um momento histórico onde as fronteiras 2 ideológicas tornaram fluidas as fronteiras entre os Estados nacionais do Cone Sul , favorecendo a colaboração repressiva. Independente de todos esses perigos, muitos perseguidos políticos ousaram fazer a travessia ao longo daqueles anos. Uma travessia dramática que, em muitos casos, adquiriu contornos quase que cinematográficos, como veremos. A Fuga: Como e Por Onde Sair da Argentina? Para aqueles que tiveram que sair da Argentina com a sensação, real ou presumida, de que a repressão estava no seu encalço, o processo de abandono do país podia adquirir contornos verdadeiramente dramáticos. Todos os meios de transporte eram válidos: aéreos, terrestres e fluviais. O 1

Professor UFMS. E-mail: intbrig@yahoo.com.br PADRÓS, Enrique S.; MARÇAL, Fabio A. O Rio Grande do Sul no Cenário da Coordenação Repressiva de Segurança Nacional. In: PADRÓS, Enrique S.; BARBOSA, Vânia M.; LOPEZ, Vanessa A.; FERNANDES, Ananda, S. (Org.). Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2009. v.3, p. 47. 2

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ônibus e o trem eram opções bastante comuns além de serem mais populares; o avião e o automóvel não eram acessíveis para a maioria, de escassos recursos financeiros. Muitas vezes combinavam-se os meios de forma variada, intercalando um e outro no sentido de despistar um possível monitoramento. Em grande parte desses processos de fuga foi essencial à intervenção ou a participação solidaria de amigos e parentes que, ao ajudar das mais diferentes formas, muitas vezes arriscaram suas próprias vidas com o objetivo de salvar a vida de um terceiro. Mesmo no auge da repressão política, durante a década de 1970, tratados internacionais recíprocos garantiam e amparavam a liberdade de trânsito em ambos os sentidos da fronteira Brasil – Argentina. Essa prerrogativa legal possibilitou a fuga de muitos perseguidos, especialmente em períodos de férias escolares quando a circulação de pessoas aumentava vertiginosamente dificultando os controles nos principais pontos de fronteiras onde existia concentração de intenso fluxo de turistas, como Uruguaiana-Paso de los Libres. Mas, para poder cruzá-la, primeiro era necessário chegar até a fronteira. E nesse sentido atingir o Brasil, por via terrestre, partindo de qualquer cidade argentina de grande porte não era uma tarefa muito fácil, dada a quantidade de controles policiais existentes nas rodovias do lado 3 argentino. Um de nossos entrevistados se recorda do contraste entre a vigilância do lado brasileiro e a do lado argentino: Los caminos de acá (Porto Alegre) hasta Uruguaiana no te paraba ni un “tero” y allá, a cada veinte kilómetros, más o menos, un puesto de gendarmería, o cosa por el estilo, parándome a cada 4 rato. Mas não se precisava ser um opositor ou “subversivo” para ser maltratado ou se sentir 5 ameaçado pelas forças de segurança, pois o caráter horizontal da repressão na Argentina via o conjunto da população com suspeição. Residentes argentinos no Brasil, sem motivo político aparente, relataram ter passado por experiências desagradáveis nas mãos de militares e policiais quando estavam de retorno ao país natal. Um de nossos entrevistados, Carlos P., relatou momentos de tensão vividos durante uma simples viagem de férias para visitar a família: Una vez, en un viaje (…) me desvié del camino y tuve que entrar por Curuzú Cuatiá, cosa que yo no quería y no dio otra: entre por una calle que justamente estaba un cuartel. Me pararon y me llevaron para adentro. Y nosotros estábamos viajando de aquí para allá con mi mujer y las dos criaturas… los tuve que dejar en el auto y ahí me llevaron a hablar con el “capo general”… y el tipo me hizo unas preguntas, que se yo que, me demoró no sé cuánto tiempo. Yo, bien, por las dudas, quieto. Yo sentí el olor del 6 peligro.

Foi similar o caso de Ernesto, quem residia no Brasil desde 1975, mas tinha de se deslocar para a Argentina com frequencia, o que não lhe agradava. Ele recorda-se em especial de uma destas viagens em que foi alvo de um destes controles ameaçadores e perdeu a calma ao ver a intimidade da sua família vulnerada pelos agentes do Estado: (depois do Golpe) Empezaban a revisar el auto. Una vez, con mi nena chiquita, en la zona de Entre Ríos, me agarró un ataque de nervios… Mi mujer es toda higiénica, lavaba y hervía los pañales… Nos abrieron las valijas y los gendarmes sucios empezaron a meter las manos en ropa, y aparte es prohibido: “¡no, que está hervido, es de la nena! Y me agarró un ataque de nervios… (…) no me fusilaron porque… (...) Era 7 una cosa muy tensa, no fue fácil.

Cruzando o Rio Uruguai Para aqueles que eram perseguidos, a travessia do Rio Uruguai não se constituía em uma 3

Uma viagem de campo exploratória realizada pelo autor, em 2009, permitiu observar que mesmo nos dias atuais, o controle sobre os veículos e pessoas que circulam nas estradas argentinas é bastante rigoroso. Somente trafegando pela Ruta Nacional 14, no trecho de Paso de los Libres até Zárate (divisa da província de Entre Rios com a província de Buenos Aires), o autor contabilizou, além do controle aduaneiro na fronteira, mais treze postos da Gendarmeria (espécie de guarda de fronteira) e cinco da polícia provincial de Entre Rios e Corrientes. Em quase todos estes postos podiam ver-se veículos e documentação sendo examinados. Pode-se deduzir que no período da ditadura civil-militar este controle de tráfego interno era, provavelmente, ainda mais minucioso e obviamente agressivo e intimidador. 4 Tero: o pássaro “quero-quero”. Entrevista com C. P. realizada em Porto Alegre, 07/08/2008. 5 ABOS, Álvaro. La racionalidad del Terror. El Viejo Topo, Barcelona, n° 39, dic. 1979. 6 Idem. 7 Segunda entrevista com E.T. realizada em Porto Alegre - 08/08/2008.

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empresa simples. Por um lado porque, a exceção de Paso de Los Libres, as outras cidades costeiras argentinas não contavam com pontes que fizessem a ligação. Por outro, porque estas cidades não passavam (e não passam ainda) de pequenos povoados onde a simples presença de um indivíduo (ou um grupo) desconhecido seria facilmente notada pela população podendo ser denunciada as autoridades do local. Especialmente se este “visitante” tivesse um sotaque diferenciado (portenho ou cordobés, por exemplo) aliado a uma aparência física de tipo europeu caucasiano, a qual também contrastaria com certa homogeneidade do biótipo físico dos nativos da região correntina e misionera, onde é marcante a ascendência étnica indígena. Além do mais, por ser região de fronteira, cada um destes povoados conta com unidades militares geralmente desproporcionais ao tamanho das localidades onde estão assentadas. Um memorando secreto do Ministério das Relações Exteriores brasileiro ao Conselho de Segurança Nacional, datado de fevereiro de 1982, destacava o elevado grau de controle da margem argentina do Rio Uruguai: Sob o comando de oficiais, com recursos humanos e material apropriado existiriam instalações de “Prefectura Naval Argentina” em Monte Caseros, Paso de los Libres, Yapeyú, La Cruz, Alvear, Santo Tomé, Garruchos e San Javier. A partir desta última cidade até Monteagudo, na província de Misiones, a vigilância do Rio Uruguai seria feita 8 pela “Gendarmeria Nacional” que disporia de uma infra-estrutura bem montada.

Mesmo assim, ainda havia a possibilidade de atravessar o Rio Uruguai em pontos inóspitos. Entretanto, para realizar a travessia atalhando campos e mata era necessário que a pessoa tivesse um conhecimento prévio da região, ou que contasse com o suporte de algum nativo que servisse de guia. Ou seja, um mateiro, pescador ou até mesmo um contrabandista, para saber exatamente os pontos onde a passagem poderia ser facilitada por acidentes geográficos que estreitassem as margens, pela pouca profundidade do leito do rio ou pela simples ausência de controle em determinada parte e determinado horário. Assim, a passagem da fronteira pelo rio poderia ser realizada com uma pequena lancha, bote ou, dependendo da qualificação e da capacidade física do “fugitivo”, até mesmo a nado. Eis um possível exemplo deste tipo de fuga. Em um documento confidencial da Polícia Federal e difundido ao Exército Brasileiro, à Brigada Militar e à Polícia Civil do Rio Grande do Sul, em 08 de dezembro de 1977, pedia-se a localização e captura de [...]a. Pedro Mancias, 38 anos, moreno, forte, cerca de 1,75m, gordo, cabelos brancos, é ex-oficial da Polícia de Misiones/RA. b. O nominado atravessou a fronteira para o Brasil, na região do Canal Torto, no dia 04 de outubro de 77. Elementos do Exército Argentino que se encontravam em Alba Posse, solicitaram a colaboração da Polícia Federal para localizar e capturar o nominado. c. Segundo informações colhidas junto aos militares argentinos, Pedro Mancias possui 9 entre outros cursos, o de guerrilha urbana, além de ser técnico em explosivos.

Logo, este tipo de saída se adequava mais aos paisanos da região (provavelmente o caso de Mancias), acostumados desde sempre a cruzar a fronteira de um lado para o outro, geralmente ignorando os controles migratórios, uma característica típica da particular dinâmica de zona fronteiriça, onde é frequente o contato próximo entre os habitantes dos dois lados. Também é bem claro no documento o tipo de colaboração direta e sem maiores impedimentos exercida na faixa de fronteira entre as forças repressivas de ambos os países.

8

Memorando (Secreto). DAM-1/DF/SCDL/36/24 (B46) (B29) Brasil – Argentina. Patrulhamento do trecho compartilhado do Rio Uruguai. N° 013/82 - 29/01/1982, p.426. Cx. 008-D2, Fundo CSN, Arquivo Nacional - Brasília. 9 DOPS/RS: Pedido de Busca - PB 086 - S2/77 de 08/12/77 - SOPS/RG 1.1.341.3.1 – Acervo da Luta Contra a Ditadura - Porto Alegre

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Figura 1. Região do Alto Uruguai (divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina) detalhe da parte central da fronteira Brasil - Argentina. Cabe destacar que, em determinados pontos desta região, as margens do Rio Uruguai se estreitam facilitando a sua travessia apesar da ausência de pontes. Além disso, a faixa de fronteira conta com centros urbanos de menor índice populacional, uma malha rodoviária bastante precária e descontínua (mesmo atualmente) e vastas áreas inóspitas ou de difícil acesso, o que dificultava o controle desta zona (Fonte: http://info.lncc.br/wrmkkk/aruru2.html).

Por outro lado, uma vez em território brasileiro, a fiscalização da movimentação de pessoas diminuía consideravelmente. A extensão de nossas fronteiras e a falta de pessoal das forças de segurança encarregado para exercer a vigilância na faixa de fronteira sempre foi um dos problemas apontados pela administração pública brasileira: A insuficiência da fiscalização da margem brasileira do Rio Uruguai é clara, ao longo dos aproximadamente 700 km que separam a localidade brasileira de Barra do Quarai (...) do Alto Uruguai, constituindo-se pequenas exceções às áreas frente às cidades de Uruguaiana, Itaqui e São Borja. Na parte brasileira, da Barra do Quarai até Santo Ângelo, a Policia Federal contaria com um efetivo de aproximadamente 80 homens, voltados mais para a segurança interna, e a Delegacia da Capitania dos Portos, em Uruguaiana, disporia de dois oficiais e dezesseis praças, além de um capataz em São Borja, um em Porto Lucena, um em 10 Porto Mauá e outro em Alto Uruguai.

Portanto, esta linha imaginária, que separa o Rio Grande do Sul das províncias argentinas de Corrientes e Misiones era um dos pontos mais vulneráveis da fronteira, apesar da barreira natural oferecida pelo Rio Uruguai. Assim, esta longa e pouco controlada fronteira fluvial (pelo menos do lado 11 brasileiro) se tornou, em um primeiro momento, uma “porta de entrada” ( e posteriormente uma espécie de “corredor”) para guerrilheiros e militantes perseguidos, além do histórico contrabando de gado e de mercadorias, e também do então incipiente tráfico de entorpecentes. Aliás, os agentes do Estado frequentemente também atribuíam estas duas últimas atividades criminosas, de um modo genérico, aos chamados “subversivos”, como podemos ver neste documento: Pedido de busca N° 728/75/DCBI/DOPS/RS DADOS CONHECIDOS: CONCEPCIÓN NOEMI DIAZ MARTINEZ, Argentina, antropóloga, portadora da cédula de identidade argentina/ n°6.795.547 (expedida pela Polícia Federal), seria ligada a 10

Memorando (Secreto). DAM-1/DF/SCDL/36/24 (B46) (B29) Brasil – Argentina. Patrulhamento do trecho compartilhado do Rio Uruguai. N° 013/82 - 01/02/1982, p. 428. Cx. 008-D2, Fundo CSN, Arquivo Nacional - Brasília. 11 Posteriormente seria um ponto de reingresso clandestino ao território argentino.

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JUAN CARLOS PERALTA, recentemente preso na Argentina, por tráfico de tóxicos e atividades subversivas, desenvolvidas naquele país. Segundo as autoridades argentinas, a nominada estaria presa no Brasil, onde teria 12 chegado proveniente de MISIONES/RA.

Via Uruguaiana Uruguaiana era uma das principais portas de entrada ao Brasil e uma das principais rotas usadas pelos refugiados e militantes em fuga. Por um lado, eram conhecidos os perigos da zona fronteiriça e se temia a fluida conexão repressiva entre os dois países. Porem, em contrapartida, como toda passagem de fronteiras de porte, o considerável e constante trafego de veículos comerciais, particulares e pessoas, cujo fluxo crescia enormemente na temporada de férias e especialmente no verão, dificultava a eficiência 13 do controle pretendido pelas forças de segurança. Era essencial desenvolver estratégias de mimetismo para sobreviver. Portanto, aproveitando-se da estação do ano muitos refugiados conseguiram escapar da Argentina, mesclados na avalanche de turistas ávidos por fazer compras em um ou outro país, de acordo com a oscilação cambial da época. Desta forma, só o PRT/ERP conseguiu retirar em torno de uma centena de militantes pelo Brasil, segundo afirmam Anguita e Caparrós: La mayoría de los militantes del PRT salía por Paso de los Libres,(...) además el verano resultaba ideal: el flujo de turistas complicaba los controles de Gendarmería, desde fines de año anterior (verão 1975-1976) que estaban mandando gente por ahí, y 14 todavía no había caído nadie .

No entanto, em certos períodos o controle aduaneiro era reforçado. Por exemplo, no dia do Golpe de Março de 1976, a Argentina bloqueou as saídas de todas suas fronteiras: aéreas, marítimas e terrestres. Alguns dias depois, a Gendarmeria reabriu a fronteira, porém impediu que os táxis brasileiros transportassem mais de três passageiros para Paso de los Libres e proibia que os mesmos retornassem para o Brasil com passageiros, o que suscitou protestos dos motoristas brasileiros perante as 15 autoridades de ambos os países , o que nos dá uma idéia do controle exercido na fronteira. Para os militares, este controle sobre os táxis tinha sua razão de ser.

12

DOPS/RS: Pedido de Busca - PB n° 728/ 75/ DCBI/ DOPS/ RS - 09/12/75 - SOPS/CX 1.1.31.2.1– Acervo da Luta Contra a Ditadura - Porto Alegre 13 ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. ANGUITA, Eduardo; CAPARRÓS, Martín. La voluntad. Una historia de la militancia revolucionaria en Argentina. V Tomos, Buenos Aires: Booket, 2006, p.356-357 e 466-467. 14 ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. op. cit., p.356-357 e 466-467. 15 Zero Hora, 7/4/76 p.30 e 8/4/76 p.29. Arquivo Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa – Porto Alegre.

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Figura 2. Detalhe da bacia hidrográfica do Rio Uruguai entre as cidades de São Borja e Uruguaiana (RS), pelo lado brasileiro, e Santo Tomé e Paso de los Libres (Província de Corrientes) pelo lado argentino. Na década de 19701980 a ligação entre os centros urbanos da margem ocidental e oriental do Rio Uruguai era ainda muito precária sendo feita por balsa ou outro meio fluvial. A exceção ficava por conta de Uruguaiana e Paso de los Libres, onde estava à única ponte que ligava fisicamente Brasil e Argentina, a Ponte Internacional Getúlio Vargas-Agustín P. Justo construída na década de 1940. Apenas em 1998 foi inaugurada uma segunda ponte sobre o Rio Uruguai, a que liga São Borja e Santo Tomé, mas as outras cidades costeiras (como Itaqui e Alvear) continuam aguardando suas respectivas pontes que são reivindicações de longa data (Fonte: http://info.lncc.br/wrmkkk/aruru1.html).

Cabe explicar que a travessia por meio de táxis era algo muito comum para quem chegava a Paso de los Libres por ônibus intermunicipal ou trem e se constituiu em um expediente bastante empregado pelos refugiados. Acontece que os táxis, cujos motoristas ou donos eram conhecidos na região, costumavam não ser muito controlados na fronteira, seja por algum tipo de relação pessoal com os guardas ou por simples corrupção: pequeno contrabando, câmbio ilegal de moeda, etc. Daniel de Santis, quadro do ERP, foi um dos que atravessou a ponte de táxi. Acompanhado na fuga por uma companheira que se passava por sua mulher, Disse a companheira: Tratemos de salir hoy 16 mismo para Porto Alegre. Acá (em Uruguaiana) podemos terminar en manos del DOPS , consciente do perigo que o acossava na cidade fronteiriça. Um de nossos entrevistados afirmou conhecer uma rede de taxistas encarregados de fazer esse translado clandestino entre as duas cidades, mediante o pagamento de uma “taxa extra”. Ele nos contou como diversos conhecidos seus fizeram o trajeto: P- ¿Y Ud. Sabe como venían? Si, y totalmente en negro, no hacían ingreso al país, nada. Clandestinos, totalmente. Corrían el riesgo de quedar ‘enganchados’ en la frontera. Y… iban a la frontera tomaban un taxi, o venían por Uruguay, siempre había maneras. Se tomaba un taxi, arreglabas con el tachero, le dabas 50 mangos en un taxi de Paso de los Libres y te pasaba del otro lado… en el otro (lado) te tomabas otro y así…era así. Había un 17 control, pero no tanto…de la parte brasilera era así.

Todavia, outros refugiados acabariam entrando no Brasil dentro de automóveis particulares, geralmente conduzidos por parentes, companheiros ou amigos, apesar dos enormes riscos que esta 16 17

ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. op. cit., Tomo 5, p.376. Segunda entrevista com E. T. realizada em Porto Alegre - 08/08/2008.

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ação envolvia. Ricardo, quem fugiu em 1979, após ser ameaçado de morte em Buenos Aires, lembra bem como foi feita sua retirada às pressas da Argentina. Inclusive ele contou com a ajuda de uma insuspeita “escolta militar” no carro que o trouxe até o Brasil: La vez que rajé para venirme a Brasil (…) vino un muchacho que es ingeniero, pero que llegó a capitán de fragata de la Armada argentina. (…) El vino con mi hermano; entonces yo me tiré en el asiento de atrás… era de noche, muy tarde. Mi hermano y el capitán, este con su cédula militar, pese a que retirado, ¿no? Presentó la cédula… 18 claro, capitán de la Armada… y pasamos.

Já Juan, ex-funcionário público e combatente montonero, encontrava-se na clandestinidade desde 1976 na cidade de Córdoba, onde continuava a militar, em meio ao perigo da repressão e as inúmeras quedas dos seus colegas de armas e militância. Em março de 1977, segundo o entrevistado, foi expedida contra ele uma “ordem de execução” dada pelo comandante militar da região. Isso significava que deveria tentar fugir urgentemente e permanecer era equivalente a cometer suicídio. Uma arriscada travessia de 950 km entre Córdoba e Uruguaiana foi feita a bordo do automóvel de um familiar. Ou seja, o processo todo teve de ser feito na mais absoluta clandestinidade para poder aumentar as chances de sucesso da fuga e sobreviver. Explicou-nos melhor o narrador: (...) ¡orden de fusilamiento! Y si, a mi me dieron la orden, entonces el 5 de marzo estoy pasando la frontera. (...) yo salí de Córdoba escondido en un auto hasta la frontera. 19 Pasé (a fronteira) escondido y estuve un año clandestino acá (em Porto Alegre).

Também as linhas de ônibus internacionais, usadas comumente por turistas, foram igualmente utilizadas pelos exilados em fuga. Mas, tal como outros métodos já descritos, a fuga utilizando o transporte rodoviário apresentava alto risco, pois a repressão conhecia de antemão estes estratagemas. Por exemplo, um informe do Centro de Informações do Exército (CIEx), de março de 1975 já alertava aos órgãos de segurança pública sobre o uso do transporte rodoviário pelos “subversivos”: Consta que elementos subversivos argentinos estariam ingressando no Brasil, com a finalidade de descansar ou de se ocultar por algum tempo das autoridades argentinas. O ingresso seria feito por Uruguaiana/RS, na qualidade de turistas, utilizando-se de carros particulares ou de ônibus da empresa Pluma-Conforto e Turismo e Expresso 20 Americano, que fazem a linha Buenos Aires - Rio de Janeiro.

A escalada da violência paramilitar na Argentina durante 1975 e a intensa e sistemática repressão estatal logo após o Golpe, que provocou uma verdadeira debandada humana, colocou em estado de prontidão as forças de segurança nas fronteiras brasileiras. Na concepção dos militares, [...]Em conseqüência [da repressão] os terroristas argentinos poderão penetrar em nosso território através de diversos pontos e utilizando os mais diferentes meios de transportes, explorando os atuais tratados recíprocos que facilitam o transito dos respectivos nacionais. 3. É pois de máxima conveniência para a SEGURANÇA NACIONAL manter um rígido controle sobre a permanência de argentinos em nosso território coibindo qualquer 21 situação irregular, face a legislação existente.

O governo brasileiro temia que o Brasil pudesse oferecer, devido a sua imensidão territorial, um espaço de refúgio e/ou articulação para os grupos guerrilheiros da Argentina e/ou de outros países vizinhos, sem falar numa possível “contaminação ideológica” advinda de uma suposta conexão internacional entre as esquerdas. E embora esta última pudesse ser hiper-dimensionada (já que muito dela era alimentada pela paranóia da Guerra Fria) era, no entanto, funcional ao servir de principal justificativa para a cooperação entre os governos militares na região. Não obstante os perigos inerentes, a viagem pela fronteira terrestre utilizando-se da malha rodoviária ou ferroviária foi um recurso muito utilizado. Foi esse o método utilizado pelos irmãos Diego e Gabriel ao sair da Argentina. Em agosto de 1976, eles viajaram em ônibus de linha comercial, direto de Buenos Aires a Porto Alegre. E, apesar de ser familiarmente vinculados à chefia dos Montoneros, o que 18

Entrevista com R. A. realizada em Porto Alegre - 17/03/2008. Entrevista com J. P. realizada em Porto Alegre – 09/08/2008. 20 DEOPS/SP: CIE: Entrada de Subversivos Argentinos no Brasil, 12/03/75 - Dossiê DEOPS 50-E016 – 175. Arquivo do Estado de São Paulo (AESP) – São Paulo. 21 DOPS/RS: INFO 41/EM/2 de 29/11/76 - SOPS/CX 1.1.20.2.1 – Acervo da Luta Contra a Ditadura – Porto Alegre. 19

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obviamente implicava em maiores riscos, eles conseguiram atravessar a fronteira utilizando seus 22 próprios documentos. Mas o fato é que Uruguaiana era um lugar muito perigoso e, evidentemente, nem todos tiveram a mesma sorte dos entrevistados acima. Em junho de 1977, dois supostos montoneros, José Maria Rodriguez e Jorge Alfredo Iturburo, foram presos na Estação Ferroviária de Uruguaiana, quando intentavam adquirir passagens no “trem húngaro”, composição que fazia regularmente o trajeto Uruguaiana - Porto Alegre. De acordo com o noticiado nos jornais da época Os dois homens, sem documento, (...) foram detidos pela Brigada Militar, em cujas dependências confessaram sua condição de terroristas especializados na “montagem de armas”, segundo informações fornecidas às rádios Charrúa e São Miguel por elementos da corporação. Na Policia Federal, para onde foram encaminhados pela Polícia Militar, José Maria Rodriguez e Jorge Alfredo Iturburo negaram pertencer àquela organização e se identificaram como comerciantes de Buenos Aires. Sobre o caso, o delegado Marco Pólo, da Policia Federal, disse que “existem suspeitas de que sejam mesmo montoneros, pois suas histórias são contraditórias. As autoridades argentinas 23 investigarão o caso, o qual vamos acompanhar”.

Segundo a polícia, eles não haviam cruzado pela Ponte da Amizade, mas sim pelo Rio Uruguai. No dia 30 de junho, a Polícia Federal removeu os dois homens e os entregou a uma unidade do Exército Argentino em Paso de los Libres. A partir daí seus rastros se perdem. Cabe destacar que é na região de Uruguaiana onde se concentra a maioria dos diversos casos de prisões, sequestros e desaparecimentos efetuados no marco da colaboração repressiva transnacional entre as ditaduras civis-militares, alguns dos quais não resolvidos ainda hoje. E não só de argentinos. Em março de 1974, o dirigente do PCB, David Capistrano da Costa, ex-militar e veterano da Guerra Civil Espanhola, desapareceu por essa região junto com o motorista que guiava o Fusca que os transportava, 24 José Roman. Seus corpos nunca foram encontrados. Sobre algumas das vítimas não se sabe quase nada, como Gregorio Bregstein, argentino supostamente desaparecido em Uruguaiana em janeiro de 1975; ou Cristina Glória Fiori de Vina, quem 25 foi sequestrada por policiais civis do Rio Grande do Sul a mando de um policia federal argentino. Também ocorreu na região de Uruguaiana, em junho de 1980, os sequestros de Jorge Oscar Adur e Lorenzo Ismael Viñas, militantes da organização Montoneros que viajavam desde a Argentina em ônibus de linha internacional, quando foram interceptados e capturados, e desaparecendo a seguir. Via Uruguai Outra forma de sair da Argentina para chegar ao Brasil era pelo Uruguai. Entretanto, este país também estava sob uma ditadura civil-militar análoga e colaboradora dos regimes vizinhos. Assim, cruzar o Rio da Prata, por via fluvial ou aérea, representava um enorme risco dado à vigilância constante, não só no porto e nos aeroportos de Buenos Aires, mas também do outro lado, onde os serviços de informação argentinos tinham agentes e “marcadores” ou “dedos”, ex-militantes quebrados que (geralmente após serem reduzidos a farrapos humanos graças à tortura) se convertiam em delatores 26 para identificar aqueles que tentavam escapar. Por via terrestre, a opção era atravessar pelas pontes sobre o Rio Uruguai que ligam cidades da Argentina e do Uruguai, respectivamente: Gualeguaychú Fray Bentos, Colón – Paysandu e Concórdia - Salto. Segundo Bonasso, pelo menos em Salto, havia 27 espiões e “dedos” a espreita dos fugitivos. As vantagens residiriam principalmente em encurtar uns 100 km o trajeto a fronteira brasileira, assim como o tempo de viagem. Todavia os riscos eram dobrados, pois havia que atravessar duas alfândegas, a uruguaia e a brasileira. Apesar disso, alguns se arriscaram por este caminho de solitárias e intermináveis estradas cortando o pampa oriental. O fato de a região ser escassamente povoada talvez aumentasse psicologicamente a sensação de segurança nos refugiados. Um entrevistado nos contou um episódio onde ele e um amigo brasileiro foram à Argentina, supostamente a passeio, mas na verdade a “missão” era trazer na volta para o Brasil uma jovem argentina perseguida na sua cidade. 22

Entrevista com Diego Martinez Agüero realizada em Porto Alegre - 21/08/2010. Correio do Povo, 30/06/1977, p. 5. Arquivo Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa – Porto Alegre. 24 COMISSÃO DE FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLITICOS; INSTITUTO DE ESTUDOS SOBRE A VIOLÊNCIA DE ESTADO. Dossiê Ditadura: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). São Paulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009, p. 546-550. 25 Ambos os casos constam nos registros da CONADEP: Gregorio Bregstein – Actor 5918; Gloria Cristina Fiori de Viña – Actor 6561. 26 BONASSO, Miguel. Recuerdo de la muerte. Buenos Aires: Brugera, 1984, p. 373-375. 27 Idem. 23

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Un día, me dice un amigo: “bah, está fea la cosa. Ya le reventaron la casa, si no se va…”Y fuimos a pasear con un amigo a La Plata y a la vuelta, en la ruta cerca de Gualeguaychú, me la pasaron de un auto para el mío y pasamos la frontera… ¡Que irresponsabilidad! Y mi amigo brasilero, el pobre no entendía nada (…) era un tipo buenísimo, si supiera…La pusimos en el auto brasilero (…) entré por Fray Bentos y en Uruguay ni se dieron cuenta que estaba en el auto, sentada, cuando hicimos los trámites. Ni preguntaron. Y fuimos y la largamos en Passo Fundo y de ahí se fue a 28 Suecia.

Destaca-se a solidariedade dos que já estavam no Brasil como um elemento importante com o qual podiam contar aqueles que precisavam fugir da Argentina. O caso acima também é exemplar por nos revelar a articulação de redes solidarias que não necessariamente se vinculavam à militância, mas que seriam impensáveis sem a existência de profundos laços de amizade e diversas identidades em comum. Via Aérea Empresas de transporte aéreo também foram empregadas para retirar pessoas da Argentina, embora menos utilizado em função do custo elevado das passagens aéreas na época. Como todos os outros métodos descritos anteriormente, a fuga utilizando o transporte de linha internacional apresentava igualmente um alto risco, devido à estrita vigilância nos aeroportos e a presença de delatores nos mesmos. Em março de 1980, Horacio Domingo Campiglia e Monica Pinus de Bistock foram detidos logo ao desembarcar no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Pelo menos um de nossos entrevistados havia escolhido este meio convencional para sair do seu país. A travessia de Carlos para o Brasil, em outubro de 1976, foi feita em diversas escalas para não chamar a atenção, como se fosse uma viagem de negócios qualquer: (...) había un vuelo de Aerolíneas 29 que salía de Aeroparque a Iguazú, o Formosa, y de ahí a São Paulo. Antes de deixar a Argentina, na última escala, apresentou um “convite” de um suposto congresso para poder justificar a continuação da viagem para o exterior. Como ele mesmo colocou: (…) así pude salir, seguro que fue un riesgo terrible... 30 el ’76. Pero, todavía no habían empezado a hacer ‘dedo’ en la frontera. De fato, embora a fuga de Carlos tenha ocorrido durante o auge da repressão, por outra parte, ele teve a sorte que nos primeiros meses de 1976 o regime argentino ainda não havia começado a utilizar-se dos tais “marcadores”. Via Foz do Iguaçu Outro ponto bastante utilizado para sair da Argentina era a fronteira Puerto Iguazú–Foz do Iguaçu, no Paraná. Devido ao grande fluxo de turistas internacionais na região durante a maior parte do ano devido às Cataratas do Iguaçu, o controle migratório tornava-se aqui muito dificultoso para as autoridades fronteiriças, mesmo que naquele tempo a travessia ainda era feita por balsa. Daí em diante seguia-se geralmente para São Paulo, Rio de Janeiro ou descia-se ao Rio Grande do Sul, pois permanecer em qualquer zona de fronteira era muito arriscado. Foz do Iguaçu também foi palco das trágicas mortes de Liliana Goldemberg e Eduardo Escabosa. No dia 02 de agosto de 1980, o casal de militantes montoneros suicidou-se ingerindo 31 cápsulas de cianureto, pouco antes de ser entregue a militares argentinos.

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Segunda entrevista com E. T. realizada em Porto Alegre - 08/08/2008. Entrevista com Carlos Claret realizada em Foz do Iguaçu - 18/09/2009. CLARET, Carlos A. Requerimento Certidão de Inteiro Teor, Estocolmo, 05/02/2009, p.1. Acervo Movimento Justiça e Direitos Humanos (MJDH) – Porto Alegre. 30 Entrevista com Carlos Claret realizada em Foz do Iguaçu - 18/09/2009. 31 Clamor, Dez de 1980, p. 48-49, APOF, cx. 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura - Porto Alegre. 29

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Figura 3. Detalhe da zona da tríplice fronteira Brasil, Paraguai e Argentina. Esta região parece ter sido uma das rotas de fuga prediletas dos perseguidos políticos argentinos. O intenso tráfego de turistas, praticamente durante o ano todo, facilitava o mimetismo dos exilados entre a massa de visitantes das Cataratas e do Parque Nacional do Iguaçu. Na época, a travessia ainda era feita por balsas, já que a ponte somente seria inaugurada em 1985 (Fonte: http://www2.mre.gov.br/daa/puertigua.htm ).

Um de nossos entrevistados, militante no Partido Socialista de los Trabajadores (PST) havia feito esse mesmo trajeto, apenas alguns meses antes. Jose e sua companheira atravessaram a fronteira 32 utilizando-se do pretexto de “conhecer as cataratas” do lado brasileiro . Ele estava preocupado que as autoridades detectassem seu documento de identidade adulterado. Mas, ironicamente, o que salvou o entrevistado foi levar na bagagem um inusitado florete de esgrima. O guarda se encantou tanto com a peça e com a conversa de Jose sobre esgrima que sequer prestou atenção ao documento, liberando a passagem do casal. Tentando controlar o nervosismo, para dar verossimilhança ao seu papel de turista, eles embarcaram na balsa. José descreveu intensamente o momento gravado na lembrança: (…) la sensación de estar en la mitad del río, viste, que vas llegando, vas llegando... ¡te da un ataque de euforia! (...) el clima (...) ¡nunca había sentido tanto calor en mi vida! Yo estaba muy nervioso, con bronca, con rabia. Me sentía como si me hubieran dado una patada en el culo. Todo me parecía feo (...) Brasil era maravilloso, pero yo 33 estaba tenso, muy tenso... .

Sua abalada estrutura emocional e psíquica distorcia as imagens reais e lhe produzia sensações contraditórias. O Brasil que ele via era “outro”, não era “normal” e sequer parecia ser real. Mais se assemelhava a um cenário de filme de terror, apesar de perceber que estava rodeado por uma natureza exuberante. Doía-lhe quase fisicamente a terrível sensação de haver sido arrancado, expulso da sua terra, e jogado numa dimensão incógnita a qual teve de enfrentar para poder continuar a viver.

32 33

Entrevista com J. V. realizada em Porto Alegre - 20/06/2007. Entrevista com J. V. realizada em Porto Alegre - 20/06/2007.

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Considerações finais As narrativas e a documentação aqui analisada nos oferecem uma mostra, mesmo que em escala reduzida, do que foi o complexo e diverso processo de saída da Argentina em função da brutal repressão, iniciada antes do Golpe de 24 de março de 1976, mas exacerbada e ilimitada após a tomada do poder pela junta militar. Em virtude do descompasso temporal entre ambas as ditaduras, o Brasil costumou ser percebido pelos argentinos como um “mal menor”, se comparado aos outros países vizinhos, onde a repressão ainda estava na ordem do dia. Assim, o Brasil da “Anistia, lenta gradual e restrita” de Geisel oferecia-se, aparentemente, como um “corredor” ou “trampolim” para os refugiados. No entanto, o Estado brasileiro (que desde 1969 já tinha uma política xenófoba, discriminatória e intolerante contra os estrangeiros em geral assentada nas bases da Segurança Nacional) reforçou um comportamento discriminatório especificamente direcionado aos argentinos. Desse modo, para os militares brasileiros, ao emigrado “argentino” cabia normalmente, na melhor das hipóteses, o adjetivo “suspeito”; quando não “terrorista” ou “subversivo”, somente por sua condição de origem nacional. Ou seja, para a ditadura civil-militar brasileira, os argentinos que circulassem ou estivessem no Brasil deveriam ser monitorados de perto, pois a vigilância específica deste grupo nacional (dadas suas peculiares características e contexto do movimento migratório) se inseria na própria dinâmica da chamada Doutrina de Segurança Nacional.

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Mortos e desaparecidos políticos no Brasil, no Chile e no Uruguai: notas sobre a atuação dos seus familiares Carlos Artur Gallo

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Resumo: O presente trabalho analisa as formas como os familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil, no Chile e no Uruguai se organizaram para reivindicar a elucidação das circunstâncias dos crimes cometidos pelo aparato repressivo, a responsabilização dos culpados e a preservação da memória sobre o período. Dividido em duas seções, na primeira é realizado um breve panorama histórico sobre o período autoritário em cada um dos países mencionados. Na sequência, apresenta-se os principais fatos referentes à trajetória destas associações. Palavras-chave: Direito à Memória e à Verdade – Direitos Humanos – Ditaduras de Segurança Nacional – Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Abstract: This work analyzes the ways in which the families of dead and disappeared political activists in Brazil, Chile and Uruguay have organized themselves to demand the clarification of the circumstances of the crimes committed by the repressive apparatus, the accountability of perpetrators and preserving the memory of the period. Divided into two sections, at the first we do a brief historical overview of the authoritarian period in each countrie. Finally, we present the main facts concerning the history of these associations. Keywords: Human Rights – Families of the Dead and Disappeared Political Activists – Right to Memory and the Truth – Security National Dictatorships.

Introdução A partir das ditaduras de Segurança Nacional instauradas no Cone Sul entre as décadas de 1950 e 1970, muitos indivíduos que eram considerados inimigos do Estado de acordo com a Doutrina de Segurança Nacional – DSN foram perseguidos e presos pelo aparato repressivo, sendo, nas situações 2 extremas, mortos ou desaparecidos . O presente estudo foca nas estratégias utilizadas por familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985), chilena (19731990) e uruguaia (1973-1985) para tratar da questão. Dividido em duas partes, na primeira apresenta-se algumas informações sobre o período autoritário em cada um dos países referidos; na segunda parte do estudo, são analisadas as principais políticas públicas elaboradas para dar conta do saldo da repressão 3 referente aos mortos e/ou desaparecidos políticos nestes países . A Ditadura Civil-Militar no Brasil, no Chile e no Uruguai A ditadura civil-militar brasileira foi instaurada entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964, 1 2

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Formação acadêmica: Doutorando em Ciência Política, Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. e-mail: galloadv@gmail.com AMNISTÍA INTERNACIONAL. Desapariciones. Madrid: Editorial Fundamentos, 1983; _____. Crímenes sin castigo: homicidios políticos y desapariciones forzadas. Madrid: EDAI, 1993; ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1985; BRASIL; Secretaria Especial de Direitos Humanos; Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e direito à verdade. Brasília: SEDH, 2007; _____; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dos desaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. Salienta-se que, embora o uso das expressões desaparição forçada, desaparecimentos e desaparecidos tenha adquirido novos contornos no cenário internacional a partir das experiências repressivas vivenciadas na Guatemala, no Chile e na Argentina (AMNISTÍA INTERNACIONAL. Desapariciones. Madrid: Editorial Fundamentos, 1983. p. 7-8), tais situações não se tratam, contudo, de uma novidade criada pelas ditaduras latino-americanas. Neste sentido, as origens do desaparecimento de opositores civis como uma política repressiva específica de um Estado autoritário podem ser encontradas na doutrina contrarrevolucionária francesa, na Alemanha nazista e na Espanha franquista (PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay, no hay... Terror de Estado e Segurança Nacional Uruguai (1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. 874f. [2v.]. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. p. 613-614).

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estando o seu acontecimento intimamente relacionado, além das motivações econômicas e marcadamente anticomunistas, à desestabilização política vivenciada no país desde agosto de 1961, 4 quando ocorrera a renúncia do presidente Jânio Quadros . Naquele momento, para que ocorresse a posse do vice João Goulart na Presidência da República, foram necessárias, além de uma transação política que adotou temporariamente o parlamentarismo para o país, ampla mobilização popular encabeçada, no Rio Grande do Sul, pelo governador Leonel Brizola, que criou a “Rede da Legalidade”. Garantida a posse do presidente João Goulart, retardou-se o golpe por pouco mais de dois anos e meio. Em 1964, os mesmos setores das Forças Armadas que em 1961 tentaram impedir a posse de João Goulart por verem nas suas ações tendências comunistas, mas, desta vez contando com o apoio de elites, efetivam o golpe frustrado anteriormente, iniciando no país um período de 21 anos autoritarismo. Na sua vigência, entretanto, foi criado um sistema político bipartidário dividido entre ARENA (Aliança da Renovação Nacional, partido governista) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro, abrangendo a oposição consentida), sendo realizadas eleições periódicas e regulares para os cargos dos poderes legislativos municipal, estadual e federal. 5 De acordo com Carlos H. Acuña e Catalina Smulovitz : As estratégias políticas dos militares de início foram eficazes, mas, [...] de 1968 a 1974, a sistemática exclusão política e econômica que caracterizava as políticas do regime militar levou a um aprofundamento do conflito com a oposição que não estava integrada no jogo bipartidário. A taxa média de crescimento anual, que entre 1962-1967 foi de 3,7%, subiu para 10,1% durante o período de 1968-1974. Este processo foi acompanhado por uma exclusão distributiva consistente: a renda da metade mais pobre da população caiu em relação à renda nacional total de 17%, em 1960, para 14,9% em 1970, e 12,6% em 1980, enquanto a renda dos dez por cento mais ricos da população cresceu, nesses anos, de 39,6% para 46,7% e 50,9%, respectivamente.

Em 1974, época em que o regime ainda colhia os frutos do crescimento econômico e a neutralização dos opositores que atuavam fora do sistema partidário atingia seu auge, Ernesto Geisel (ditador-presidente entre 1974 e 1979) formata e inicia, de dentro do próprio governo, um projeto de transição “lenta, gradual e segura” que se estenderia até 1985. Altamente pactuado e controlado ao longo da sua trajetória, o processo de transição no Brasil garantiu que os envolvidos com a repressão não fossem punidos pelas violações aos direitos humanos praticadas, garantindo ainda aos setores da elite civil diretamente relacionados à ditadura sua sobrevivência enquanto atores relevantes no novo 6 cenário político . Os golpes de Estado no Chile e no Uruguai ocorreram em 27 de junho e em 11 de setembro de 1973, respectivamente. Se as Forças Armadas uruguaias não intervinham diretamente na política interna 7 do país desde 1890, quando se deu o golpe de Estado no Uruguai, a situação foi diversa . Decorrente de uma crise política que teria iniciado em 1967, quando houve a radicalização de grupos de esquerda e o governo de Pacheco Areco (1967-1972) declarou-lhes ilegais, na consolidação do Estado de exceção, e apesar da interferência direta dos militares, o país esteve sob a presidência do civil Juan María Bordaberry, que fechou o Congresso e criou um Conselho de Estado para assumir as funções legislativas. A transição no país começou em julho de 1981, em virtude da detrioração do prestígio dos militares junto à sociedade. A proposta feita pelas Forças Armadas para alguns dirigentes políticos em direção à abertura, consistiu em quatro pontos: 1º) ela seria realizada em três anos e contando com a participação de membros partidários em um Conselho de Estado; 2º) seria organizado um estatuto para criação de partidos políticos; 3º) haveria uma reforma constitucional; 4º) seriam realizadas eleições 8 diretas . Em 1984, quando foi concretizado o último item referido, iniciou-se o último ato da ditadura uruguaia, que se encerraria em 1985, com a posse do presidente eleito, Juan María Sanguinetti, do Partido Colorado. O golpe no Chile, embora também tenha sido levado a cabo no mesmo contexto internacional 4

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MARTINS, Luciano. A “liberalização” do regime autoritário no Brasil. In: O’DONNELL, Guillermo; SCHMITTER, Philippe C.; WHITEHEAD, Laurence (Org.). Transições do regime autoritário: América Latina. São Paulo: Vértice / Revista dos Tribunais, 1988; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2002. ACUÑA, Carlos H.; SMULOVITZ, Catalina. O ajuste das Forças Armadas à democracia: sucessos, fracassos e ambigüidades no Cone Sul. In: JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric (Org.). Construindo a democracia: direitos humanos, cidadania e sociedade na América Latina. São Paulo: EDUSP / NEV, 2006. p. 47. ARTURI, Carlos S. O debate teórico sobre mudança de regime político: o caso brasileiro. Revista de Sociologia e Política, n.17, Curitiba, nov. 2001. p. 11-12. VILLALOBOS, Marco Antônio Vargas. Uruguai: autoritarismo e ditadura. In: PADRÓS, Enrique Serra (Org.). As ditaduras de Segurança Nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: Corag, 2006. p. 23. VILLALOBOS, Marco Antônio Vargas. Op. cit. p. 29.

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que os demais, deu-se em um ambiente político-institucional diferente do caso brasileiro e uruguaio, uma vez que neste país já existia um sistema partidário consolidado pelo menos desde a década de 1930, 9 quando havia sido estabelecido um “Estado de Compromisso” que garantia a estabilidade . O golpe foi possível porque a partir de 1964, quando a Democracia Cristã chilena obteve ampla maioria, o pacto político que vinha sendo respeitado desde 1932 começou a ser deteriorado, sendo a crise agravada com a eleição do socialista Salvador Allende. No que diz respeito à transição chilena, a mesma se deu de forma organizada. A realização de eleições presidenciais, que ocorreriam em 1989, foi prevista na Constituição Federal promulgada em 1980. Em 1988, em um plebiscito que, também previsto na nova Constituição, seria realizado para que o povo decidisse se o ditador-presidente Augusto Pinochet continuaria no poder por mais 8 anos, votaram pelo “não”, e, no ano seguinte, elejeram seu novo presidente. 10 Sobre a transição no Chile, Francisco Rojas Aravena salienta que: Após o triunfo do “não”, iniciou-se um processo de transição que partiu de um ponto muito diferente daquele de outras transições latino-americanas. No caso chileno, as Forças Armadas não foram derrotadas militarmente. Não estavam divididas e mantinham parcelas significativas de poder e autonomia. O projeto e o contexto constitucional não foi negado, apenas sofreu ajustes parciais. Finalmente, uma questão muito importante, as Forças Armadas deixavam o poder com uma auto-estima muito elevada. Além disso, cabe lembrar, a coalizão militar-civil que governou o país até 1990 obteve 43% dos votos no plebiscito.

Notas sobre a luta dos familiares brasileiros, chilenos e uruguaios.

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Iniciada na vigência do próprio regime autoritário de forma quase que instintiva, uma vez que a busca de informações sobre seus familiares começava a partir do momento em que havia a falta total de notícias dos militantes, em alguns casos, ou a descoberta das suas prisões, em outros, a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil ganha força na década de 1970. Foi nesta época, por exemplo, que, rompendo com as barreiras da própria repressão e contando com o apoio dos grupos de defensores dos direitos humanos que se estruturavam, foram organizadas, atreladas às cerimônias religiosas em memória de algumas vítimas do aparato repressivo, manifestações públicas de repúdio ao regime e à violência de Estado por ele praticada desde 1964. Mas, se na clara tentativa de tornar público uma situação dramática que era muitas vezes negada ou minimizada pelos porta-vozes do Governo ditatorial, e, com frequência, adulterada ou ignorada pelos meios de comunicação silenciados pela censura, a demanda dos familiares ía tomando forma e fortalecendo-se com a organização de manifestações quase que artesanais, um ponto de inflexão nesta trajetória pode ser encontrado na campanha pela Anistia. Saindo de uma atuação ainda embrionária e integrando-se às mobilizações em prol da anistia, os familiares potencializaram o alcance de suas demandas, que, se num primeiro momento estiveram fragmentadas pela própria força da repressão e da censura, encontraram junto aos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA’s) um ambiente propício à sua apresentação, através de uma causa compartilhada coletivamente. A luta pela anistia não teve o alcance pretendido pelos movimentos organizados em torno dos CBA’s, embora possa ser interpretada como uma conquista parcial. Como resultado, foi editada uma lei que não libertou todos os presos políticos, não legislou a respeito da situação dos mortos e desaparecidos, limitando-se a possibilitar aos seus familiares a obtenção de um atestado de paradeiro ignorado já previsto na legislação civil vigente à época, e, lançando as bases para que a punição dos agentes da repressão não ocorresse, consolidou uma política de esquecimento junto à sociedade em 12 nome da reconciliação nacional . 9 10

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ACUÑA, Carlos H.; SMULOVITZ, Catalina. Op. cit. p. 54-55. ROJAS ARAVENA, Francisco. A detenção do general Pinochet e as relações civis-militares. In: D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (Org.). Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 133-134. Parte dos dados que apresento sobre a trajetória dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil foram extraídos de minha dissertação de mestrado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em março de 2012. Para maiores informações, consultar: GALLO, Carlos Artur. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça: um estudo sobre o trabalho da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil. 117f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências: um estudo do caso brasileiro. 213f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003; _____. Anistia de 1979: o que restou da lei forjada pelo arbítrio? In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (Org.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. v.2. São Paulo: HUCITEC, 2009.

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Repercutindo diretamente na organização dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, o fim das mobilizações a favor de uma anistia “ampla, geral e irrestrita” e, consequentemente, da desarticulação dos CBA’s, representou para este segmento não só o fim de um momento de luta compartilhada em torno de uma causa geral, mas também o início de uma nova reestruturação na trajetória da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP). É no período imediatamente posterior a agosto de 1979, que, enfrentado inicialmente a desmobilização de seus participantes, a Comissão toma sua forma atual, constituindo-se como uma organização autônoma, que, composta por familiares e/ou pessoas próximas às vítimas fatais da repressão, engaja-se na luta pela elucidação das circunstâncias das mortes e dos desaparecimentos ocorridos, pela identificação e punição dos envolvidos e pelo resgate dos seus restos mortais. Caracterizada por uma baixa organicidade, os integrantes da Comissão nunca chegaram, em 13 mais de 30 anos de atividades, a constituir uma estrutura organizacional interna real , estando a sua atuação, inclusive, marcada por uma grande informalidade. Inicialmente melhor organizados em São Paulo e no Rio de Janeiro, ao longo da década de 1980 integrantes da CFMDP assistiram, além da formação de outras entidades vinculadas à causa dos direitos humanos – caso dos Grupos Tortura Nunca Mais –, o retorno de lideranças políticas que estavam exiladas, o fim do sistema bipartidário, o surgimento de novos partidos políticos, o movimento Diretas Já e a derrocada do regime autoritário. No que diz respeito às estratégias postas em prática pela Comissão, e, uma vez que suas demandas foram preteridas quando da edição da Lei de Anistia, coube aos familiares, pouco a pouco, angariar apoio político à causa e, dentro do possível, legitimá-la publicamente. Até o início dos anos de 1990, quando ocorreu a abertura da Vala de Perus (onde ocorreram sepultamentos clandestinos de vítimas da repressão), a criação de uma CPI na Câmara Municipal de São Paulo e de uma Comissão de Investigação para busca das ossadas de militantes mortos e desaparecidos, a CFMDP passou por momentos delicados, nos quais, para persistir na luta pelo reconhecimento das suas demandas, foram enfrentados, além da falta de apoio dos parlamentares e das dificuldades de veiculação das suas histórias na opinião pública, problemas diretamente relacionados à falta de recursos, que limitava as 14 possibilidades concretas de ação dos seus integrantes . Em 1995, após mais de vinte anos de luta, e, no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi aprovada a Lei nº 9.140 (chamada de Lei dos Mortos e Desaparecidos), na qual o Estado brasileiro assumiu a sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos de 136 pessoas. Ademais, a partir da 15 edição da lei foi criada a CEMDP , que, vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República desde 2003, passou a analisar e julgar os casos de morte e de desaparecimento de militantes políticos e a fixar indenizações aos familiares, sendo reconhecidos 221 16 casos em quase 11 anos de trabalho . Ainda que a Lei tenha possibilitado inegáveis avanços, a CFMDP aponta os seguintes problemas decorrentes da sua aprovação: 1º) eximiu o Estado de identificar e responsabilizar os agentes envolvidos nos crimes ocorridos durante a ditadura; 2º) legou o ônus da prova aos familiares; 3º) não obrigou o Estado brasileiro a localizar os corpos dos desaparecidos; 4º) excluiu a possibilidade de outros interessados ingressassem com o pedido de reconhecimento das mortes e/ou desaparecimentos, reforçando, com isto, a ideia de que os interessados são única e exclusivamente parentes das vítimas, 17 algo que nega o caráter público da questão . Posteriormente, os familiares obtiveram outras duas conquistas no âmbito legislativo. Em 2002, com a Lei nº 10.536, o período de responsabilidade do Estado brasileiro, inicialmente compreendido entre 1961 e 79, foi ampliado até 1988. Em 2004, com a Lei nº 10.875, foram consideradas mortes passíveis de responsabilização do Estado e fixação de indenização aquelas que se deram em 13

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Em 1993 foi criada uma instituição, o Instituto de Estudos Sobre a Violência do Estado, com sede em São Paulo, para representar formalmente a causa da CFMDP. Suzana K. Lisbôa refere (In: Entrevista, Porto Alegre, 16 de junho de 2011) que, na prática, sua criação não acarretou nenhuma alteração na atuação dos familiares, sendo a sua estrutura interna, inclusive, uma mera formalidade cumprida para que eles, caso fosse necessário, tivessem uma personalidade jurídica à disposição. Entrevista com Suzana K. Lisbôa, Porto Alegre, 16 de junho de 2011. Em 2007, o trabalho desenvolvido pela CEMDP desde a sua criação até 2006 foi publicado em um livrorelatório, intitulado Direito à memória e direito à verdade, contando, na sua elaboração, com a participação de integrantes da CFMDP e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, que, sendo uma publicação oficial, além de ter procedido à apresentação de um histórico da Comissão e do seu trabalho, fez um resgate da história política brasileira a partir dos anos de 1960, reconhecendo a responsabilidade do Estado pelas mortes e desaparecimentos, e, ainda, apresentando a listagem e o resumo dos casos analisados e julgados. Esta publicação encontra-se disponível em: <http://www.sedh.gov.br>. BRASIL; Secretaria Especial de Direitos Humanos; Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e direito à verdade. Brasília: SEDH, 2007. p. 17-18, 41. ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. Dossiê ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). 2.ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 33-34.

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manifestação pública mediante repressão policial, bem como os casos de pessoas que cometeram 18 suicídio para evitar prisão ou devido às sequelas da tortura . Com o início dos trabalhos da “Comissão Nacional da Verdade” (CNV) em 2012, novas perspectivas com vistas ao esclarecimento das circunstâncias desses casos, além da averiguação dos locais de sepultamento e dos envolvidos nos crimes, despontaram como algo a ser realizado pelos membros da Comissão. Na prática, as possibilidades de efetivação das expectativas dos familiares para com a CNV restam reduzidas por que, além de ter sua atuação atrelada-limitada à interpretação da 19 anistia recíproca , e, consequentemente não visar a realização da Justiça, vê-se pelos menos outros três fatores limitadores: 1º) o fato de a Lei que cria a CNV estender o lapso temporal a ser investigado para o período compreendido entre 1946 e 1988, ou seja, um período que, embora abranja os 21 anos de ditadura, é extenso demais; 2º) o prazo de funcionamento da Comissão, que terá 2 anos para investigar situações ocorridas em um país do tamanho do Brasil; 3º) o número reduzido de integrantes da CNV, limitado a 7 membros. No que se relaciona à organização dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Uruguai e no Chile, observa-se que a mesma não é muito diferente da trajetória dos familiares no Brasil, uma vez que as demandas que canalizariam a formação de grupos de familiares teve início, nos dois países analisados, no exato momento em que as violações aos direitos humanos dos opositores da ditadura ocorriam, valendo-se, para tanto, de todos os meios possíveis (como a realização de passeatas e de denúncia para organismos internacionais). Começando na segunda metade da década de 1970, a formulação das demandas dos familiares dos “detenidos desaparecidos” no Uruguai, contudo, difere do ocorrido com os familiares no Brasil porque, conforme visto, os familiares brasileiros centralizaram sua atuação em torno de uma estrutura única saída dos CBA´s: a CFMDP. No Uruguai, até que a causa fosse centralizada em torno do grupo “Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos” (MFUDD), no ano de 1983, existiram pelo menos três grupos que tratavam, de forma fragmentada e independente, da questão: a “Asociación de Familiares de Uruguayos Desaparecidos” (AFUDE), formada por exilados políticos uruguaios vivendo na Europa; o grupo de “Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos en Argentina”, atuante desde 20 1977; e os “Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos em Uruguay”, criado em 1982 . Basicamente, como objetivo da sua luta, os familiares uruguaios buscam: [...] conocer la suerta de estas personas, procurar la verdad y la justicia y la no reiteración de estos crímenes. Familiares ees El lugar donde se busca asesoramiento, se piensa cada situación política, se evalúa y se decide, se logran y se organizan los 21 apoyos .

No que diz respeito às políticas da memória formuladas e implementadas no Uruguai após a transição à democracia, e buscando atender, ainda que de forma pouco exitosa, as demandas dos familiares, parece importante destacar que: En el caso de las experiencias de violaciones sistemáticas desarrolladas durante la dictadura uruguaya, esta lucha por la memoria fue un largo proceso que lentamente rompió los cercos de las experiencias privadas de las víctimas, sus familiares y compañeros de militancia. En primer término se debió superar la indiferencia o negación mayoritaria de la sociedad uruguaya, hasta constituir, con el advenimiento de los compañeros de las víctimas al gobierno, un discurso también oficial pero que pretende consagrar una visión posible de los hechos. El periplo histórico uruguayo referido a las violaciones sistemáticas de los derechos humanos perpetrados por los agentes del Estado muestra un conflicto pretendido de historias oficiales o puntos finales que procuran de algún modo establecer de manera totalizadora una verdad definitiva sobre 22 los hechos .

Embora o processo de rememoração-resgate-reflexão possa ser referido como lento, note-se que, no Uruguai, políticas da memória começaram a ser postas em prática logo após o final do período 18 19

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ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. Op. cit. p. 35-36. A interpretação da anistia recíproca foi reforçada no Brasil, em abril de 2010, com o julgamento da ADPF nº 153. Nesse julgamento, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte do Judiciário no país, decidiram, por maioria dos votos dos seus membros, que a Lei da Anistia de 1979 era válida, e que a interpretação corrente, de que agentes da repressão foram anistiados sem sequer serem levados a julgamento, devia ser mantida em nome da reconciliação nacional. Ver site do MFUDD: <http://www.desaparecidos.org.uy>. Ver Histórico dos Familiares em: http://www.desaparecidos.org.uy/>. MIRANDA, Javier (Coord.). Itinerários de los derechos humanos en el Uruguay 1985-2007: temas, actores y visibilidad pública. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer-Stiftung / CLAEH, 2009. p. 25.

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autoritário . Ainda em 1985, foi criada a “Comissão Investigadora sobre a Situação de Pessoas Desaparecidas e Fatos que a Motivaram”. Passados seis meses desde o início dos seus trabalhos, a Comissão apresentou um relatório à Suprema Corte uruguaia, relatando que 160 pessoas haviam morrido devido à violência estatal perpertrada durante a ditadura. O alcance do relatório, embora tenha se tratado de uma política implementada em âmbito nacional, foi pequeno, visto que os trabalhos realizados por seus membros dedicaram-se exclusivamente à questão da identificação de desaparecidos políticos. Ainda no Uruguai pós-ditadura, duas leis foram editadas para tratar das violações: a Lei de Anistia (Lei nº 15.737 de 1985) e a Lei de Caducidade (Lei nº 15.848 de 1986). A anistia uruguaia anistiara todos militantes envolvidos em crimes políticos, comuns e militares cometidos no país a partir de 1962. A Lei de Caducidade, destinada aos setores que sustentaram o golpe, e, dentre eles, dos agentes da repressão, declarou que, em nome da transição e da ordem, caducara o direito de punir estas pessoas. Duas tentativas de revogar esta Lei foram implementadas, sem sucesso, em 1986 e 2009. Apesar de não terem sido vitoriosos com os plebiscitos de 1986 e 2009, os setores que eram favoráveis à punição dos responsáveis pela repressão têm obtido certo êxito no Poder Judiciário uruguaio, onde, como consequência da absorção da normativa internacional de proteção aos direitos humanos, foram julgados e condenados alguns dos seus ex-ditadores. Em 2000, outra medida implementada e que parece despontar como ponto de inflexão na tratamento do tema no Uruguai foi a criação, pelo presidente Jorge Batlle, de uma Comissão da Verdade, chamada oficialmente de “Comissão para a Paz”. Vindo na esteira das tentativas do Governo esclarecer 24 o caso “Gelman” , a Comissão foi criada através de um decreto onde estabeleceu-se que: Se entiende necesario para consolidar la pacificacion nacional y sellar para siempre la paz entre los uruguayos, dar los pasos posibles para determinar la situación de los detenidos desaparecidos durante el régimen de facto, así como de los menores 25 desaparecidos en similares condiciones .

Com duração inicialmente prevista para atuar durante o período de 120 dias, a Comissão teve seu prazo de funcionamento ampliado. Quando chegou ao final do seu mandato, em abril de 2003, seus membros realizaram um novo e detalhado relatório sobre os casos de presos desaparecidos no país e nele sugeriram ao governo que revisasse sua legislação de forma que os crimes de tortura, genocídio e 26 desaparecimento forçado fossem integrados à legislação nacional uruguaia . Ainda que estas medidas possam ter sido identificadas como saldo positivo da atuação da Comissão uruguaia, é possível, contudo, apontar limitações em seus resultados. Nesse sentido, ao tentar avaliar os resultados dos mecanismos adotados no Uruguai para tratar 27 da questão da violência praticada durante e em nome do regime autoritário, Pablo Galain Palermo constata que: Con la creación de la Comisión para la Paz [...] se procura “la paz del alma” y se pretende ofrecer información verídica y oficial a las víctimas para cumplir con los principios del derecho a la verdad y a la reparación, así como reconstruir la memoria colectiva. Sin embargo, esa información se limitó a los casos de desapariciones forzadas y no hizo referencia a los sistemáticos crímenes de tortura practicados indiscriminadamente a todos los detenidos durante la dictadura. Además, la Comisión para la Paz no tuvo potestades para determinar responsabilidades ni para investigar, por 23

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BRASIL; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dos desaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. p. 49-52; PALERMO, Pablo Galain. Justicia de transición: informes nacionales (Uruguay). In: AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Edit.). Justicia de Transición: con informes de América Latina, Alemania, Italia y España. Montevideo: Fundación KonradAdenauer-Stiftung, 2009. p. 391-414. O caso “Gelman” relaciona-se ao processamento, junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), do caso de sequestro, morte e desaparecimento da militante política argentina María Claudia García de Gelman, nora do poeta argentino Juan Gelman. Sequestrada nos marcos da Operação Condor em Buenos Aires em 1976 e grávida de sete meses, María Claudia foi levada para Montevidéu, onde teve a filha María Macarena, e, pouco tempo depois de dar à luz à criança, desapareceu. Sua filha, María Macarena foi adotada ilegalmente e criada por uma família de oficiais uruguaios, tendo sua verdadeira identidade restabelecida somente no ano 2000. Em março de 2011 a CIDH condenou o Estado uruguaio a esclarecer as circunstâncias da morte e desaparição e a atribuir as devidas responsabilidades aos oficiais envolvidos no crime. Em março de 2012, o presidente do Uruguai, José Mujica, em cumprimento à determinação da sentença da CIDH reconheceu publicamente a responsabilidade do Estado uruguaio e pediu desculpas oficias pelos crimes cometidos contra a família de Macarena. MIRANDA, Javier. Op. cit. p. 33. BRASIL; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dos desaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. p. 50-51. PALERMO, Pablo Galain. Op. cit. p. 411.

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lo que la verdad oficial recabada es parcial y no tiene por ende capacidad para cerrar la transición.

No que diz respeito aos primeiros anos de atuação e organização da causa dos familiares no Chile, familiares chilenos foram apoiados por organizações religiosas, como a “Vicaría de Solidaridad”, sendo grande parte deste apoio obtido com o surgimento, fortalecimento e/ou ampliação dos 28 movimentos em defesa dos direitos humanos na América Latina. De acordo com Kathryn Sikkink : O golpe de 1973, no Chile, foi um divisor de águas na criação da rede de direitos humanos na América Latina. [...] Em resposta ao golpe chileno, aumentaram os membros das organizações existentes de direitos humanos, tais como a Anistia Internacional (tanto na Europa como nos Estados Unidos), e novas organizações foram criadas, inclusive o Washington Office on Latin America [Escritório de Washington para a América Latina] e o Council on Hemispheric Affairs [Conselho sobre Assuntos Hemisféricos]. As organizações chilenas que se formaram para enfrentar a repressão do governo, especialmente o Comitê pela Paz (depois conhecido como Vicaría de Solidaridad), tornaram-se modelos para os grupos de direitos humanos em toda a América Latina assim como fontes de informação e inspiração para os ativistas de direitos humanos nos Estados Unidos e na Europa.

Verifica-se a existência de uma diferença na organização da causa por parte dos familiares no Brasil e no Chile quando observa-se que, enquanto no Brasil as demandas dos familiares de mortos e desaparecidos políticos foi centralizada em uma organização específica, a CFMDP, no Chile a questão também foi trabalhada de forma fragmentada. Isto é, foram criadas organizações para tratar dos 29 interesses doa familiares dos mortos, a Agrupación de Familiares de Ejecutados Políticos en Chile (AFEP), e outra para dar conta das famílias de desaparecidos, a Agrupación de Familiares de Detenidos 30 Desaparecidos (AFDD). A ditadura chilena terminou em março de 1990. Em abril, quando foi criada a “Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação”, começou a ser trilhado o caminho das políticas da memória 31 naquele país , fato este que permite, portanto, que se diga que falar nos caminhos do Direito à Memória e à Verdade no Chile é falar sobre os resultados do trabalho da Comissão da Verdade. Também conhecida como “Comissão Rettig”, por ter sido presidida pelo advogado Raúl Rettig Guissen, a Comissão da Verdade chilena produziu um relatório sobre as maiores violações aos direitos humanos ocorridas entre 1973 e 1990 no Chile, e teve uma vigência de nove meses. Apesar de serem enfrentados 32 problemas referentes à aceitação do relatório por parte das Forças Armadas e do Judiciário , como decorrência da implementação dessa primeira política de larga escala para recomposição-enfrentamento da memória do período autoritário chileno, encontra-se, em 1992, a criação da “Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação”. Desde a sua criação, a Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação reparou familiares de mortos e desaparecidos políticos, realizou programas de apoio social e legal à estas famílias; organizou centros de documentação sobre o período; promoveu a busca dos cadáveres das vítimas do aparato repressivo estatal; além de ter empreendido uma série de políticas educacionais voltadas para a consolidação do respeito aos direitos humanos. A partir de 2003, uma nova comissão (“Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura”) também passou a reparar pessoas que foram presas e/ou torturadas pela ditadura. Quando o relatório produzido na primeira etapa de trabalhos desta nova comissão estava para ser publicado, em novembro de 2004, o Comandante-Chefe das Forças Armadas chilenas reconheceu publicamente a responsabilidade das Forças Armadas pelos crimes cometidos. 33 Sobre a atuação das Comissões chilenas José Luis Guzmán Dalbora diz: Tanto la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación como la Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura dieron cima a sus informes con un conjunto de propuestas de reparación, reconciliación y prevención. No todas, ni siquiera la mayoría, 28

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SIKKINK, Kathryn. A emergência, efetividade e evolução da Rede de Direitos Humanos da América Latina. In: JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric (Org.). Construindo a democracia: direitos humanos, cidadania e sociedade na América Latina. São Paulo: EDUSP / NEV, 2006. p. 102-103. Para mais informações sobre o trabalho da AFEP, ver: <http://www.afepchile.cl>. Para mais informações sobre o trabalho da AFDD, ver: <http://www.afdd.cl>. BRASIL; Secretaria de Direitos Humanos. Habeas Corpus: que se apresente o corpo: a busca dos desaparecidos políticos no Brasil. Brasília: SDH, 2010. p. 44-49; GUZMÁN DALBORA, José Luis. Justicia de transición: informes nacionales (Chile). In: AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (Edit.). Justicia de Transición: con informes de América Latina, Alemania, Italia y España. Montevideo: Fundación KonradAdenauer-Stiftung, 2009. p. 201-234. GUZMÁN DALBORA, José Luis. Op. cit. p. 226. GUZMÁN DALBORA, José Luis. Op. cit. p. 219.

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se han incorporado formalmente al ordenamiento jurídico. Las leyes aprobadas hasta el momento tratan del asunto más urgente, la reparación de las víctimas y sus familias. En cambio, no se divisan aún las modificaciones que demanda el ordenamiento jurídico para adecuarlo al derecho internacional de los derechos fundamentales, imprimir en el entero aparato público las valoraciones resultantes y sancionar convenientemente los atentados más graves contra los bienes jurídicos respectivos.

Apesar dessas críticas e de a Lei de Anistia chilena não ter sido revogada ou revista até a atualidade, processos judiciais baseados na normativa internacional, que compreende os crimes de tortura, morte e desaparecimento de pessoas como crimes contra a humanidade, têm permitido que alguns agentes sejam processados. Pinochet, entretanto, faleceu em 2006 sem ter sido definitivamente julgado em nenhum dos mais de 200 processos que tramitavam contra ele na Justiça chilena. Comparado às experiências ditatoriais de países vizinhos como a Argentina e o Chile, o saldo da repressão relativo aos mortos e desaparecidos políticos no Brasil é menos impactante. Enquanto na Argentina estima-se em aproximadamente 30 mil o número de desaparecidos, e, no Chile, este cálculo fica em torno de 5 mil ocorrências, no Brasil foram identificados pela CFMDP, até a atualidade, 436 34 casos de mortes e/ou desaparecimentos políticos . O baixo saldo de vítimas fatais da repressão brasileira comparada à argentina e chilena, contudo, não deve servir como fundamento à deslegitimação da causa dos familiares de uma país ante os demais, afinal, o que deve ser levado em conta não é o número de casos, mas sim a existência ou não desta modalidade de crime político. Considerações finais Ainda que o período autoritário nos países estudados contenha particularidades evidentes no que diz respeito ao momento do golpe, à duração da ditadura e ao processo de transição, como aspecto semelhante no saldo da repressão praticada verifica-se a existência de mortos e desaparecidos políticos. Como é possível depreender da exposição, encontra-se no Brasil, Chile e Uruguai uma série de avanços e limitações atrelados à forma como a memória do período foi trabalhada a partir da transição à democracia. Mecanismos jurídicos para que as demandas dos familiares das vítimas sejam atendidas, existem. O que persiste, no entanto, é uma dificuldade – visivelmente maior no caso brasileiro – de se enfrentar-refletir pública e coletivamente sobre a questão. As possibilidades são muitas, mas, sem debater o tema e resgatar essas memórias, as mesmas continuarão sendo tão limitadas quanto as políticas elaboradas em cada país.

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ALMEIDA, Criméia Schmidt de; et al. Op. cit.

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A ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul e a formação de redes de solidariedade na fronteira Brasil-Uruguai Marla Barbosa Assumpção

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Resumo: O artigo se propõe a analisar a formação de redes de solidariedade e resistência na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, desencadeadas a partir da deflagração do golpe de Estado em 1964. Com a instauração de uma ditadura civil-militar, a fronteira do Rio Grande do Sul assume um papel de destaque no cenário nacional e internacional em função de sua localização privilegiada, tanto do ponto de vista da repressão como da resistência. Nesse contexto, o Uruguai se destacou como o principal endereço daqueles que foram impelidos a deixar o Brasil e a fronteira terrestre entre ambos os países – sobretudo as cidades de Santana do Livramento e Rivera – foi a rota de saída mais utilizada. Ademais de se constituir como uma região de passagem, ela se configurou enquanto local de permanência para muitos militantes que se deslocaram para o outro lado da linha divisória, fato este que desencadeou a formação das mencionadas redes. Palavras-chave: ditadura civil-militar – fronteira – redes de solidariedade Abstract: The article aims to analyze the formation of solidarity and resistance networks on the border between Brazil and Uruguay, unleashed by the deflagration of the coup d'etat in 1964. With the establishment of a civil-military dictatorship, the border of Rio Grande do Sul assumes a prominent role in the national and international scene due to its prime location, both from the point of view of repression and resistance. In this context, Uruguay stood out as the main address of those who were compelled to leave Brazil and the land border between the two countries - especially the cities of Rivera and Santana do Livramento - was the most used exit route. In addition to constitute itself as a region of passage, it was configured as a place of residence for many activists who have moved to the other side of the dividing line, a fact that prompted the formation of the mentioned networks. Keywords: civil-military dictatorship – border – solidarity networks

O presente artigo objetiva analisar as dinâmicas diferenciadas atravessadas pelo Rio Grande do Sul, tendo em vista a sua configuração fronteiriça, no contexto desencadeado com a deflagração do golpe de Estado no Brasil, em 31 de março de 1964. Nesse momento, o estado era uma rota quase obrigatória de passagem para os demais países do Cone Sul, despertando a preocupação das autoridades brasileiras, que almejavam por fim ao fluxo de pessoas que atravessavam a fronteira gaúcha rumo aos territórios vizinhos – sobretudo em direção ao Uruguai, nos primeiros anos que se seguiram ao golpe – ou que reingressavam no Brasil, na tentativa, muitas vezes, de conectar o exílio com uma debilitada resistência interna. Nesse sentido, percebe-se que o Rio Grande do Sul configurou-se como um estado-chave no mapa da mobilidade tanto da repressão quanto da resistência. Tendo em vista os mencionados aspectos, o presente trabalho analisará a constituição de redes de solidariedade na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, destacadamente em Santana do Livramento e Rivera, que auxiliaram na passagem e, inclusive, na permanência de diversas pessoas que foram, direta ou indiretamente, impelidas a deixar o território brasileiro no contexto supracitado. Com esse intuito, acredita-se ser de suma importância discutir as dinâmicas específicas características do ambiente fronteiriço para, em seguida, analisar a estruturação das mencionadas redes. O intercâmbio político entre os agentes fronteiriços de Brasil-Uruguai Primeiramente, é importante destacar que a noção de fronteira, que constitui um dos cernes da presente análise, apresenta um caráter, aparentemente, contraditório, mas que lhe é inerente, qual seja, sendo o limite entre objetos ou fenômenos, ela tanto separa, quanto os põe em contato. Em outras palavras, conforme afirmaram Adriana Dorfman e Gladys Rosés, “a fronteira é uma característica de qualquer objeto ou fenômeno, cuja existência possua extensão e fim. O fim, ou fronteira, representará 2 também o contato, caso haja um objeto ou fenômeno de igual natureza adjacente ao primeiro.” 1

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Licenciada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda com bolsa CNPq do Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS. E-mail: marlalua@yahoo.com.br DORFMAN, Adriana; ROSÉS, Gladys. Regionalismo fronteiriço e o “Acordo para os nacionais fronteiriços

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Ainda que noções como limite e fronteira sejam antigas, esses termos passaram a ser sistematicamente utilizados e alcançaram acentuada relevância para os campos da Geografia Política, Ciência Política, entre outros, sobretudo com o desenvolvimento do sistema de estados nacionais. A partir de então, noções como a de limite internacional tornaram-se centrais nas análises que versam sobre esse tema. Segundo Lia Osório Machado, O limite internacional foi estabelecido como conceito jurídico associado ao Estado territorial no sentido de delimitar espaços mutuamente excludentes e definir o perímetro máximo de controle soberano exercido por um Estado central. Apesar de não ter vida própria nem existência material (por definição, a linha é abstrata e não pertence a nenhum dos lados) o limite internacional não é uma ficção e sim uma realidade 3 geográfica que gera outras realidades.

A noção de fronteira internacional, por sua vez, refere-se a uma realidade mais complexa do que aquela encerrada pelo limite, já que o conceito de fronteira internacional se refere a uma área indefinida, uma zona percorrida pelo limite internacional e que se aproxima da noção geográfica de região. No entanto, na realidade o ambiente geográfico de fronteira é mais complexo do que aquele simbolizado pelo limite, pois se faz pela territorialização de grupos humanos e de redes de circulação e intercâmbio, unidos pela permeabilidade dos limites estatais através da 4 comunicação entre populações pertencentes a diferentes sistemas de poder territorial.

A posição geográfica singular, responsável por marcar o começo e o fim do estado nacional, confere à fronteira uma territorialização definida pela proximidade entre populações separadas, ainda que, muitas vezes, apenas formalmente, pelo limite internacional. Tal noção de zona de fronteira referese a um espaço relacional e não dicotômico. E é justamente a partir dessa concepção relacional que não constitui um paradoxo o fato de a zona de fronteira ser ao mesmo tempo lugar de comunicação e troca e também de tensão e conflito, visto ser intrínseco à fronteira reunir noções aparentemente contraditórias. Nesse sentido, no que concerne à fronteira internacional, percebe-se um espaço onde se entrelaçam as influências dos estados em contato, a partir do compartilhamento de diversas práticas no âmbito social, econômico, político e cultural. Assim, ao mesmo tempo em que distingue os territórios estatais, a fronteira não os torna estanques, uma vez que o fluxo de pessoas, objetos, práticas, informações, entre outros, cruza permanentemente o limite. Em síntese, em relação às noções elencadas anteriormente, pode-se dizer que enquanto a fronteira pode ser um fator de integração, na medida que for uma zona de interpenetração mútua e de constante manipulação de estruturas sócio-políticas e culturais distintas, o limite é um fator de separação, pois separa unidades políticas soberanas e permanece como um obstáculo fixo, não importando a presença de certos 5 fatores comuns, físico-gegráficos ou culturais. (grifos da autora)

No tocante ao estado do Rio Grande do Sul e, mais especificamente, à sua região fronteiriça, foco da presente análise, pode-se dizer que este constitui um espaço diferenciado em relação aos centros – políticos e econômicos – do país. Nesse sentido, vale destacar que a região de fronteira é marcada por uma sobreposição de dinâmicas sócio-econômicas diversas que a tornam uma difusa zona de transição que acaba diferindo das características nacionais dos países em contato. [...] Conseqüentemente, forma-se um novo espaço que contém territórios dos países em contato e que sofre, além dos influxos das economias nacionais, uma 6 dinâmica própria resultante da interação social dos agentes fronteiriços.

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brasileiros e uruguaios”. In: OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de (Org.). Território sem Limites: estudos sobre fronteiras. Campo Grande: Editora UFMS, 2005. p. 196. MACHADO, Lia Osório. Cidades na fronteira internacional: conceitos e tipologia. In: NÚÑEZ, Ángel; PADOIN, Maria Medianeira; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de (Org.). Dilemas e diálogos platinos: fronteiras. Dourados: Ed. UFGD, 2010. p. 60-61. Ibid., p. 62-63. MACHADO, Lia Osório. Limites, Fronteiras, Redes. In: STROHAECKER, Tânia Marques; DAMIANI, Anelisa; SCHÄFFER, Neiva Otero; BLAUTH, Nely; DUTRA, Viviane Saad (Org.). Fronteiras e espaço global. Porto Alegre: Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Porto Alegre, 1998. p. 42. PADRÓS, Enrique. Fronteiras e Integração Fronteiriça: elementos para uma abordagem conceitual. Humanas: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, Porto Alegre, v. 17, n. 1/2, jan./dez. 1994. p. 69.

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O mencionado estado possui uma linha divisória internacional com a Argentina e o Uruguai de 7 aproximadamente 1700 Km de extensão, dos quais 1003 Km de divisa com a Banda Oriental. É válido ressaltar, ainda, que o Rio Grande do Sul é o único estado brasileiro a fazer fronteira com o Uruguai. Ao longo desse limite, com o passar do tempo, estabeleceram-se pares de centros urbanos entre as populações orientais e suas contrapartes brasileiras, que se tornaram “áreas privilegiadas de contato e 8 entrelaçamento político” . Ao se trabalhar com um espaço singular, como é o caso das cidades de fronteira – foco do presente trabalho –, é importante levar em consideração que nem todas as interações que conformam as dinâmicas locais possuem respaldo institucional. Trata-se, muitas vezes, de práticas originárias de 9 demandas que não são legitimadas juridicamente, mas que são características do cotidiano fronteiriço. Ainda que um panorama histórico de formação da fronteira aqui analisada esteja além dos propósitos do presente trabalho, acredita-se ser importante destacar que, a despeito dos conflitos serem a tônica da região quando de seu delineamento, este espaço, desde muito cedo, foi marcado por 10 relações de troca que forjavam uma história com elementos em comum. Nesse sentido, constituiu-se, com o passar dos anos, uma situação de cooperação, chave para o entendimento das relações traçadas entre os agentes fronteiriços desde então: La realidad espacial de contacto e integración de hecho, genera un espacio fronterizo singular, son verdaderos territorios diferenciados con códigos comunes que le dan sentido. Ese espacio fronterizo de interrelaciones de profundidad histórica, de cotidianos que construyen el presente, escapa a limitaciones políticamente impuestas, hacia 11 construcciones comunes y específicas.

Cabe ainda destacar que a fronteira analisada configura o que muitos autores chamam de cidades-gêmeas, ou seja, “núcleos localizados de um lado e outro do limite internacional, cuja interdependência é com freqüência maior do que de cada cidade com sua região ou com o próprio 12 território nacional.” Essas aglomerações próximas ao limite internacional – dentre as quais destacamse as mencionadas cidades geminadas – possuem potencial acentuado de atuarem como nódulos articuladores de redes locais, regionais, nacionais e transnacionais. Vale ainda ressaltar que, a despeito de operarem, em maior ou menor grau, em todo território nacional, “essas redes encontram um ambiente que favorece o estabelecimento de nódulos de articulação transnacionais nas cidades de fronteira, 13 particularmente nas cidades situadas na divisa internacional – o ambiente fronteiriço.” Conforme se pode observar pelos aspectos supracitados, nesse espaço singular, as relações travadas perpassam as mais variadas esferas da sociedade. Sendo assim, essa região era e é impactada pelos fatos ocorridos em ambos os lados da linha demarcatória: “os acontecimentos políticos daqui repercutiam lá e vice-versa. Isto é, na esfera política igualmente se manifestou a interação inter-regional já anteriormente percebida nas imbricações socioeconômicas e culturais 14 antecedentes.” No tocante ao intercâmbio político nessa região de fronteira, vale destacar que este remonta às primeiras tentativas de apropriação desse espaço. E esse entrelaçamento político, registrado 15 historicamente, chega até o presente momento. É válido ressaltar também que a forte atração exercida pela região fronteiriça, e o decorrente trânsito bilateral, era fonte de preocupação para as autoridades constituídas, especialmente em conjunturas de conturbação política, quando a fronteira acabava atraindo os grupos sublevados: “También en el plano político, la frontera se asume como ‘refugio’: Movimientos revolucionarios y 16 dictaduras han movilizado la búsqueda del ‘otro lado’ en ese sentido.” Este recurso foi historicamente utilizado em diferentes contextos, sendo válido também em relação ao período abarcado pelo presente 7

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SCHÄFFER, Neiva Otero. A especificidade funcional da urbanização na fronteira meridional do Estado. História Debates e Tendências: Revista do PPGH, Passo Fundo, V. 3, n. 2, dez. 2002. p. 136. DORMAN; ROSÉS. In: OLIVEIRA, op. cit, p. 201. OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de. Tipologia das relações fronteiriças: elementos para o debate teóricopráticos. In: ______ (Org.), op. cit., p. 378. SOUZA, Suzana Bleil et al. (Org.). Práticas de integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre: Ed. UFRGS / Instituto Goethe, 1995. p. 155. BENTANCOR, Gladys Teresa. Las fronteras en un contexto de cambios: la vida cotidiana en ciudades gemelas Rivera (Uruguay) y Sant’Ana do Livramento (Brasil). Revista Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 2, n. 3, maio de 2008. p. 24. MACHADO, Lia Osório.Cidades na fronteira internacional... p. 66. Ibid., p. 71. RECKZIEGEL, Ana Luiza. A fronteira como marco das conexões políticas inter-regionais. História Debates e Tendências: Revista do PPGH, Passo Fundo, V. 3, n. 2, dez. 2002. p. 29. BENTANCOR, op. cit, p. 28. Ibid,, p. 35-36.

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trabalho. Nesse sentido, Ao longo do século XX, foi prática comum na política do Cone Sul a brusca mudança na ordem do poder, com a substituição dos líderes e a perseguição dos derrotados. Como consequência, sucederam-se os exílios, tendo como destino frequente a área fronteiriça do país vizinho, lugar de asilo e proteção sem distanciamento, facilitado pela familiaridade cultural e proximidade geográfica, e possibilitando a continuidade das lutas. Esse foi o caso de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, entre muitos outros. Da mesma forma, a repressão política durante o período ditatorial no Cone Sul 17 desconsiderou os limites nacionais e criou a região de ação do Plano Condor.

Assim, em 31 de março de 1964, com a deflagração do golpe de Estado no Brasil e a decorrente instauração de uma ditadura de Segurança Nacional, o estado do Rio Grande do Sul – e, sobretudo, a sua região fronteiriça – assume um papel de destaque, dentre outros motivos, em função de sua localização privilegiada, tanto do ponto de vista da repressão como da resistência. Nesse contexto, o Uruguai – que possuía uma longa tradição democrática e profunda solidariedade na acolhida aos asilados políticos – se destacou como o principal endereço da primeira geração de exilados. Por essas questões, possivelmente aliadas a outros motivos, o mencionado estado, ao possuir uma extensa e importante faixa de fronteira com os países do Prata, torna-se central nesse contexto, despertando a atenção dos agentes da repressão brasileira, que monitoravam a região no intuito, principalmente, de pôr fim ao fluxo de pessoas que a atravessavam rumo, sobretudo, ao Uruguai, mas que também procuravam reingressar no país, na tentativa, muitas vezes, de articular o exílio com uma debilitada resistência interna. Tais elementos, somados a tantos outros, contribuíram para o clima de efervescência política e, possivelmente, concorreram para que a região fronteiriça gaúcha sofresse um processo de intervenção, por parte do Conselho de Segurança Nacional, em 1968. Redes de solidariedade na fronteira de Santana do Livramento e Rivera A ditadura civil-militar brasileira, desencadeada com o golpe de Estado em 1964, já em um primeiro momento, repercutiu na fronteira de Santana do Livramento e Rivera. Nesse sentido, vale destacar que o então prefeito petebista de Livramento, Sérgio Fuentes, criou um foco de resistência na Prefeitura do Município com vistas a defender a ordem democrática e a apoiar o presidente deposto. É patente, nesse momento, a participação e a solidariedade dos riverenses com os brasileiros de Santana do Livramento, fruto, possivelmente, dos já citados vínculos existentes entre ambos os lados. Essa região possuía forte influência do trabalhismo – um dos “inimigos internos” a ser combatido pelo novo regime, segundo premissas da Doutrina de Segurança Nacional. De acordo com Marlon Assef, [...] com o golpe já em andamento, nos primeiros momentos do dia 1º de abril, Sérgio Fuentes decide dispor a Prefeitura Municipal como sede da resistência. No saguão do prédio é instalado um transmissor de rádio, doado por militantes comunistas de Rivera. Para lá se dirigem representantes sindicais, jornalistas, ativistas políticos e 18 simpatizantes do governo deposto.

Contudo, a percepção da efetivação do golpe, ainda nos primeiros dias de abril de 1964, produziu forte impacto sobre a dinâmica fronteiriça e sobre os atores locais. Assim, para os envolvidos diretamente com os partidos opositores e líderes sindicais, a saída emergencial foi um breve resguardo em Rivera, à espera dos acontecimentos. A movimentação dos atores políticos perseguidos e autoexilados começava a aumentar dia a dia, conferindo outro perfil político à fronteira, renovando um ciclo que mais uma 19 vez abraçaria a região.

Dessa forma, o fluxo de pessoas proveniente de Livramento, e que se resguardou em Rivera, assim como daqueles que vieram de diferentes regiões do país, e que atravessaram para o Uruguai, foi aumentando paulatinamente. Para aqueles que optavam pelas mencionadas cidades gêmeas enquanto rota de saída, a sobrevivência exigia uma carga de informações que incluía, dentre outras coisas, o conhecimento do sinuoso traçado entre os dois países. E para ingressar no país vizinho era necessário também burlar os complexos mecanismos de vigilância da fronteira. Dentre aquelas famílias que se estabeleceram na fronteira Brasil-Uruguai após 1964, algumas já 17 18

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DORFMAN; ROSÉS. In: OLIVEIRA, op. cit., p. 206. ASSEF, Marlon. Retratos do exílio: solidariedade e resistência na fronteira. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009. p. 65. Ibid., p. 72.

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possuíam laços de parentesco em Livramento e Rivera, o que certamente facilitou, em alguma medida, o estabelecimento na região. Não obstante, outras pessoas lá chegaram com pouca ou nenhuma referência. Em ambos os casos, a constituição de redes de solidariedade locais se mostrou de fundamental importância para aqueles que lá se instalavam. Assim, o êxito da passagem para o país vizinho dependia da conexão realizada, através de militantes políticos, entre aqueles que almejam deixar o país e a base de apoio na cidade fronteiriça. Inicialmente, o núcleo santanense do Partido Comunista Brasileiro (PCB), acostumado à clandestinidade dos anos precedentes, assumiu a recepção aos que buscavam refúgio na região de fronteira. Vale destacar que o PCB, justamente por estar na clandestinidade, reunia-se, muitas vezes, do lado uruguaio, mesmo antes do golpe de Estado de 1964, conforme destacou Sérgio Alves Perez, filho de comunista brasileiro exilado em 1950, em função do massacre responsável pela morte de militantes comunistas, ocorrido na Praça Internacional situada na fronteira em questão. É válido ressaltar que o Partido Comunista Uruguaio (PCU) também auxiliou aquelas pessoas que, por diversas razões, foram impelidas, direta ou indiretamente, a deixar o território brasileiro, saindo pela fronteira estudada. Nas palavras do próprio Sérgio, “o PCU cumpriu um papel fundamental em toda essa história, porque [...] se encarregou 20 de ajudar todas essas pessoas que passavam para o outro lado.” Essa ajuda, segundo relata, envolvia desde a obtenção de comida até um lugar para se dormir. Estoecel Santana destaca também, em seu depoimento, a participação de cidadãos uruguaios na constituição dessas redes locais: “Nós tínhamos muito apoio dos uruguaios e de cidadãos brasileiros que moravam aqui [...] e do Partido 21 Comunista do Uruguai, que nos deu um grande apoio.” A marcante atuação do PCB e do PCU se conjugava com a ação de diversos outros grupos partidários ou não, como, por exemplo, religiosos e funcionários públicos locais de ambos os lados da fronteira, assim como de diversas famílias. Além disso, estabeleceu-se uma rede de informações, que envolvia contatos da polícia brasileira e uruguaia, assim como eram obtidos dados privilegiados do próprio Exército, conseguidos, muitas vezes, através de redes de parentesco e amizades. Segundo Edair Machado Pujol, “aqui na fronteira as pessoas eram solidárias. Às vezes, não eram nem políticos, 22 mas ajudavam. Não estavam nem envolvidas com política e ajudavam.” Assim, a colaboração de cidadãos sem um histórico de envolvimento político – e, portanto, longe dos olhos da polícia – com aquelas pessoas que necessitavam de auxílio para atravessar para o país vizinho foi de extrema importância. O mencionado auxílio aos que se encontravam exilados na fronteira ou que a utilizavam como rota de passagem ia desde a obtenção de algum emprego até algo para se comer, um lugar para se dormir, etc. Conforme relatou América Ineu Chaves, Na minha casa passaram inúmeros exilados. Tem uns que marcam a gente. Teve um rapaz, Armênio, que era de São Paulo, de Santos. Era ele e uma irmã. E ele apareceu na minha casa com os pés em carne viva. Ele veio de carona até Rosário. Ele conseguiu carona com um caminhão. E de Rosário até chegar aqui em Rivera, ele veio por dentro dos campos, para poder não passar nos controles. Chegou praticamente só com a roupa do corpo, de pés descalços. E eu fiquei chocada de ver o estado dele. E era um menino também. [...] e daí eu fui conseguir com um sobrinho do Santana [...] 23 roupa. Daí ele me levou roupa, levou calçado.

É importante lembrar que, normalmente, os exilados tinham o seu nível social rebaixado, dadas as difíceis condições em que se encontravam em uma terra desconhecida: “Em geral, trata-se de um processo penoso, agravado pelas carências materiais, pelo descontentamento da língua, da cultura e dos trâmites burocráticos, pela falta de documentos, pela não rara impossibilidade de exercer a 24 profissão de origem.” Assim, a ajuda prestada por Estoecel Santana aos que lá chegavam sem condições materiais de sobreviver foi fundamental. Estoecel empregava algumas pessoas como professores no curso que fundara para conseguir permanecer na fronteira. A partir dos relatos de Estoecel, pode-se perceber também que, a despeito de alguns militares e policiais colaborarem com os exilados, segundo assinalado anteriormente, a vigilância era permanente: E aí, por incrível que pareça, este é um fato interessante: os milicos passaram a estudar lá [no curso fundado por ele]. Os militares, para fazer a escola militar. [...] Eu não podia entrar aqui [Santana do Livramento], mas eles iam para lá [Rivera] [...] Aí, era gente que estudava na polícia, e tinham também os que eram investigadores, que iam para aula

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Entrevista concedida por Sérgio Alves Perez, 62 anos, em Santana do Livramento, em 18 de dezembro de 2012. Entrevista concedida por Estoecel Ribeiro Santana, 72 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010. Entrevista concedida por Edair Machado Pujol, 67 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010. Entrevista concedida por América Ineu Chaves, 73 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010. ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 28.

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para observar.

A movimentação política na fronteira era intensa, a despeito da permanente vigilância a que estavam sujeitos os que por lá passavam ou viviam. Antônio Apoitia Neto assinalou alguns dos estratagemas utilizados para burlar esse controle: [...] quando havia uma reunião importante, que era uma reunião secreta, com pessoas que estavam foragidas da polícia, nós a fazíamos em um carro, dentro do automóvel, de noite. [...] E a gente discutia uma série de coisas sobre política, pra tomar alguma decisão sobre a passagem de algum fulano. E tinha um que ficava encarregado de conseguir um papel da polícia uruguaia. [...] Havia muita gente [que ajudava], tinha gente do Exército. [...] E isso era muito comum por aqui. E políticos passaram por aqui, gente do governo federal. É a natureza da fronteira, não é? Atravessa a rua e está 26 do outro lado. Com documento falso, que tinha gente aqui que fazia.

Além de todo o auxílio prestado aos que necessitavam cruzar a fronteira ou que ali buscavam abrigo, podemos notar os vínculos políticos que conectavam Montevidéu – conhecida, nesse momento, como a “capital dos exilados” – a Porto Alegre, e vice-versa, assim como a atuação dos agentes fronteiriços nessa empreitada. Nesse sentido, a partir dos relatos de Apoitia Neto, pode-se perceber a conexão realizada entre o exílio daqueles que estavam em Montevidéu com a fronteira e, inclusive, com a capital gaúcha: Vim para Rivera, daí tirei a cidadania uruguaia e passei a ir freqüentemente a Montevidéu. [...] Eu tinha a certidão de identidade com outro nome e eu viajava freqüentemente a Montevidéu. Tive contato com o Brizola, com o Jango, com o Ministro Amaury Silva [...] que estavam exilados lá, e com vários subversivos e exilados. E eu usava documento falso. Eu usava outra identidade. E vivia indo de Rivera a Montevidéu. E Porto Alegre também. Fazia documentos, passava pessoas. Eu era muito ativo 27 nesse sentido. [...] Eu era subversivo, inimigo do regime, da ditadura.

E acrescenta ainda: “a gente conseguia no Uruguai muito material político que fazia chegar até Porto Alegre. Levava aquilo clandestinamente. Material de gente como o Jango, o Amaury, o Brizola 28 que estavam lá. Às vezes, correspondência.” Esses vínculos entre o lado uruguaio e brasileiro, sobretudo no que concerne ao estado do Rio Grande do Sul, são patentes no relato de Vladimir Fagúndez, que tece comentários acerca dessa peculiaridade de um exílio vivido sem que houvesse uma marcante distância cultural, visto a proximidade espacial, social e cultural de ambos os países, 29 principalmente entre os uruguaios e os sul rio-grandenses. A título de conclusão, torna-se necessário, ainda, tecer alguns comentários sobre a noção de rede, que auxilia na compreensão de elementos que conectavam e possibilitavam a cooperação entre aqueles que necessitavam sair do país ou também reingressar em território nacional, no contexto supracitado, e os agentes fronteiriços que auxiliavam nesta empreitada. Para tanto, acredita-se que alguns aspectos referentes às análises de redes de migração possam ser úteis à compreensão da dinâmica estudada no presente trabalho, ainda que se trate de lógicas e processos, em muitos sentidos, distintos. Ao analisar a incorporação da abordagem das redes sociais às pesquisas de migração internacional, no final da década de 1980, Gislene Santos afirma que os trabalhos que possuem o mencionado enfoque evidenciaram que [...] a migração internacional ocorre ancorada nos laços das redes pessoais de relações, as quais, por sua vez, propiciam a circulação de informações e de pessoas, aliciando, amenizando e facultando a travessia e o alojamento do migrante desde o seu lugar de origem até o país de destino. Táticas e estratégias são acionadas entre os membros da rede, possibilitando que pessoas circulem e habitem em diferentes lugares, fundando 30 um uso do território que não se conforma aos limites físicos das fronteiras nacionais.

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Entrevista concedida por Estoecel Ribeiro Santana, 72 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010. Entrevista concedida por Antônio Apoitia Neto, 75 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010. Entrevista concedida por Antônio Apoitia Neto, 75 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010. Entrevista concedida por Antônio Apoitia Neto, 75 anos, em Santana do Livramento, em 2 de outubro de 2010. Entrevista concedida por Vladimir Fagúndez, 61 anos, em Santana do Livramento, em 18 de dezembro de 2012. SANTOS, Gislene Aparecida dos. Redes e território: reflexões sobre a migração. In: DIAS, Leila Christina; SILVEIRA, Rogério Leandro Lima da (Org.). Redes, sociedades e territórios. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005. p. 53.

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A autora conclui também, ao analisar estudos que focalizam a maneira como se operacionalizam processos de migração, e assentada em argumentos presentes nesses trabalhos, que “a rede social da 31 migração formou-se a partir de redes pessoais que existiam antes da ação migratória.” Nesse sentido, no tocante à presente pesquisa, podemos inferir que os laços sociais existentes antes da eclosão do golpe de 1964 mostraram-se de fundamental importância para a estruturação das redes de solidariedade na fronteira estudada, que contaram com a participação de cidadãos brasileiros e uruguaios, tendo em vista os já mencionados contatos existentes nas cidades geminadas. Diferentes relações são experimentadas pelos membros que se conectam através da rede, 32 dentre as quais se destacam as relações de amizade e parentesco . Em relação a esta última, conforme sustenta Douglas Massey, “são uma das mais importantes bases da organização social da migração e as 33 conexões familiares são um dos mais seguros laços dentro da rede.” Conforme se pode perceber, através da análise das dinâmicas das redes de solidariedade na fronteira, as relações pessoais, dentre elas as familiares, tiveram um papel de suma importância no auxílio prestado aos que ali buscavam abrigo. Seguindo ainda os referenciados estudos, Gislene Santos conclui que “pertencer à rede social implica oportunizar recursos e informações, o que permite ao migrante amenizar as dificuldades de sua 34 travessia, desde a sua partida até a hospedagem no local de destino e a garantia do emprego.” Nesse sentido, o auxílio prestado seja na passagem para o Uruguai, na acolhida de militantes em moradias na cidade de Rivera, seja ainda na obtenção de um emprego – conforme relatado por Estoecel Santana – evidencia a importância do papel desempenhado por essas redes fronteiriças de solidariedade. Sob essa ótica, é emblemática a tentativa de Claudio Gutiérrez – que teve que sair do país, em função da condenação pelo Superior Tribunal Militar, da qual foi vítima em outubro de 1969 – ao tentar criar uma rede de apoio na fronteira Livramento-Rivera em 1972: Estabelecer-me em Rivera, construir uma infra-estrutura para permitir a passagem de militantes, sem nenhum contato e sem dinheiro, revelou-se uma tarefa impossível. Por volta de junho, me convenci da inviabilidade de minha missão naquelas condições e 35 retornei a Montevidéu.

No relato supracitado, é patente a importância das mencionadas redes, uma vez que a atuação solitária mostrava-se, muitas vezes, de difícil execução. Percebe-se, pois, a importância dos agentes fronteiriços nesse contexto, que, de acordo com suas possibilidades, resistiram e burlaram os mecanismos de vigilância e repressão da ditadura, seja através de uma postura de enfrentamento mais explícita, seja através do auxílio aos que necessitavam. Considerações finais No presente artigo, buscou-se evidenciar que o Rio Grande do Sul, por ser um estado que apresenta uma situação excepcional, acabava exigindo um permanente alerta e acompanhamento por parte das forças de segurança. Nesse sentido, desde a deflagração do golpe de Estado, a fronteira brasileira passou a ser vigiada, principalmente na divisa com o Uruguai, já que muitos daqueles que foram perseguidos ou ameaçados pelo novo regime solicitaram asilo político neste país, ingressando no mesmo através da fronteira gaúcha. Vale destacar que a atuação dos agentes fronteiriços de ambos os países, tanto no tocante ao auxílio aos que por lá passavam, quanto na obtenção de recursos para que esses permanecessem na fronteira, foi de vital importância diante da nova conjuntura política atravessada pelo país. Nesse sentido, acredita-se que, para uma adequada compreensão desse processo, é necessário atentar para os mencionados vínculos característicos do ambiente fronteiriço em questão, que datam já dos momentos iniciais em que ocorreu o delineamento dessa fronteira. Por fim, vale destacar que a região de fronteira do estado gaúcho, que era um espaço-chave no mapa da mobilidade de militantes e, como decorrência, do aparato repressivo brasileiro, gradualmente, passou a ter as suas contrapartes fronteiriças marcadas pelo clima de insegurança, resultante da paulatina deterioração da democracia uruguaia, que culminou, em 1973, com o golpe de Estado no país vizinho.

Referências Bibliográficas: 31 32 33

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Ibid., p. 54. Ibid., p. 67. MASSEY, Douglas et al. Return to aztlan. Los Angeles: University of California Press, 1987. apud SANTOS. In: DIAS; SILVEIRA, op. cit.,p. 53-54. SANTOS. In: DIAS; SILVEIRA, op. cit., p. 55. GUTIÉRREZ, Claudio. A guerrilha Brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999. p. 98.

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Madres de Plaza de Mayo: o movimento que enfraqueceu o regime militar argentino (1976 – 1983) Arianne Chiogna

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Bruna Cardoso

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Resumo: O presente artigo tem como finalidade abordar a segunda fase da ditadura militar na Argentina. Iniciando desde o contexto chave desencadeador da repressão contra o comunismo que foi a Guerra Fria. O foco deste artigo é a formação do grupo Madres e Abuelas da Plaza de Mayo, onde as mães dos desaparecidos tiveram repercussão internacional na busca dos seus entes queridos e como auxiliaram no enfraquecimento do regime militar argentino. Palavras–chave: Madres e Abuelas da Plaza de Mayo – Terrorismo de Estado – Argentina – Segurança Nacional.

Em 1945, após seis anos de morte e destruição resultados na Segunda Guerra Mundial, a Grande aliança (os EUA, a Grã-Bretanha e a URSS) conseguiu por fim derrotar as forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Com o mundo abaixo de escombros no pós-guerra, restaram apenas dois países em pé: os Estados Unidos da América e a União Soviética, as chamadas superpotências. Pouco antes de deixar o cargo em julho de 1945, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill, proferiu um discurso em Missouri, acompanhado pelo presidente dos Estados Unidos, Harry Truman. Direcionado ao público americano e a opinião pública, Churchill dizia falar em nome pessoal e não em posição oficial. Seu discurso simbolizaria a troca de mãos do centro imperial ao mesmo tempo em que, 3 impulsionava a transição no caminho da Guerra Fria . Uma sombra desceu sobre o cenário até bem pouco iluminado pela vitória aliada. Ninguém sabe o que a Rússia Soviética e sua organização comunista internacional pretendem fazer no futuro imediato, ou quais os limites, se há, de suas tendências expansionistas e de proselitismo. ... De Stettin, no Bálico, até Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro foi baixada por meio do continente Europeu. Atrás delas estão as capitais dos antigos Estados da Europa Central e Oriental. Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia, todas essas famosas cidades e as populações a volta delas estão na esfera soviética, mas um controle intenso e cada vez mais forte de Moscou. Só Atenas, com suas glórias imortais, é livre de decidir seu futuro numa eleição observada pelos britânicos, americanos e franceses. ... Quaisquer que sejam as conclusões que possam tirar desses fatos, e fatos realmente são, sem dúvida não estará entre elas a de que essa é a Europa libertada que lutamos para conseguir, 4 nem que encerre os elementos essenciais de uma paz permanente .

De acordo com Magnoli, com seu discurso, Churchill ajudaria a dar um novo foco à política internacional das nações ocidentais e a mudança do inimigo, que antes era o nazismo alemão e o fascismo italiano, para ser a partir de então a União Soviética e os países aliados. Em fevereiro de 1947, o embaixador britânico nos EUA comunicava, em Washington, a suspensão de ajuda inglesa para os governos pró-ocidentais da Turquia e Grécia e solicitava que os EUA assumissem a sustentação daquela posição estratégica na política balcânica. A Grã-Bretanha começava a sair de cena para dar espaço aos EUA e a URSS no sistema de poder internacional O discurso também ajudou a criar o imaginário que a URSS e a organização comunista internacional tinham “tendência expansionista” derivado de um antagonismo inconciliável com o mundo 1

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Graduanda do 7º semestre da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). ari.chiogna@gmail.com (51) 93445005 Graduanda do 7º semestre da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). bruucardoso@gmail.com (51) 94587863 PASCUAL, Alejandra Leonor, Terrorismo de Estado. Brasília: Editora UnB. 2004. p.36. MAGNOLI apud PASCUAL. Op. Cit., p. 36.

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capitalista. Em março de 1947 na Conferência Interamericana para Manutenção da Paz e Segurança no Continente, o presidente Truman proclamava a doutrina que levou seu nome e consistia na contenção do 5 expansionismo soviético e comunista . Conforme a doutrina Truman, os EUA deveriam auxiliar as nações a se manter livres e manter suas instituições políticas quando ameaçadas pelas tentativas de agressão, sobretudo por governos 6 totalitários . A doutrina é considerada o início das disputas geopolíticas da Guerra Fria, e foi aprofundado com o anúncio do secretário de Estado, George Marshall, de um plano que visava o apoio econômico e militar dos EUA à Grécia e à Turquia, bem como outros países europeus – tal apoio foi denominado de 7 plano Marshall . A expressão Guerra Fria foi usada para refletir uma confrontação múltipla (econômica, política, diplomática, cultural, de propaganda) entre as duas potências, que questionavam a maneira incessante a 8 distribuição mundial dos fluxos de influência e de poder . Para reforçar a política anticomunista americana foi importante para o país se basear na segurança nacional para conter a ideologia inimiga. De acordo com Pascual, a segurança nacional talvez não soubesse muito bem o que estava defendendo, mas sabia muito bem de quem estava se defendendo: do comunismo internacional. O comunismo estava onipresente e para lutar contra ele, era necessário um conceito flexível; assim em qualquer lugar onde se descobrisse aparente manifestação 9 comunista, o Estado estaria presente para intervir na defesa da segurança nacional . Os EUA atribuíam-se a missão de defender o mundo livre contra o comunismo, como já haviam feito contra o nazismo e o fascismo; consideravam que existia uma ameaça comunista em qualquer país que deixasse de ser favorável a eles. Transmitiam aos demais países a ideia de sua incapacidade de se defenderem sozinhos do comunismo e a necessidade de se aliarem ao plano de segurança americano, pois a sua segurança e a segurança dos EUA eram inseparáveis. Era necessário que aceitassem a concepção de que o mundo estava dividido em dois blocos: o mundo comunista e o mundo das nações 10 livres do Ocidente; deviam acreditar que o destino do país estava associado ao destino americano . A Doutrina de Segurança Nacional teve grande influência ideológica e teórica no fundamento dos regimes cívico-militares na América Latina, justificando a emergência e o protagonismo das Forças Armadas no cenário político latino-americano dos anos 60 em diante. Refletindo a lógica bipolar da Guerra Fria e as novas estratégias de dominação dos EUA sobre a América Latina, a Doutrina de Segurança Nacional se disseminou através das Academias e Escolas de Guerra, formando quadros especializados a partir de preceitos básicos: a lógica da bipolaridade, a delimitação de zonas de influência pelas superpotências, a satanização do inimigo, a introdução da ideia de que o Estado e a 11 nação correm riscos com o comunismo e necessitam agir de acordo com a política anticomunista . Para as ditaduras de Segurança Nacional, a identificação de um “inimigo interno” é a justificativa para explicar os fracassos políticos governamentais, prejudiciais pela necessidade de combater a subversão. O que resulta na restrição da liberdade e dos direitos individuais e sociais. Sendo assim, a militarização do Estado se apresenta como a única forma de resistir a um “império do mal” crescente na Ásia, África e ameaçador na América. A melhor forma de obter eficiência ao combater a subversão seria ampliar a ação e o controle sobre a sociedade. O controle ao “mal maior” explicava muitas coisas. As críticas feitas pela oposição eram consideradas como antipatrióticas e atenuava contra os “interesses da nação”. Logo um Estado forte, autoritário, estável e militarizado era considerado o melhor contra os inimigos comunistas. A segurança na América Latina foi fortemente vinculada à segurança norte-americana e constituíram uma guerra contra revolucionária iniciada nos anos 60, emoldurada pela Doutrina de Segurança Nacional e implementadas através de políticas de terrorismo de Estado, particularmente em ditaduras emergentes no Brasil (1964), Uruguai (1973), Chile (1973), Argentina (1976), além da Bolívia e 12 do Paraguai . A partir da administração Kennedy, a Doutrina de Segurança Nacional passou a ter uma incidência especial sobre o continente latino americano. Coincidiu essa orientação, com o processo 5 6 7

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MAGNOLI apud PASCUAL. Op. Cit., p. 37. PASCUAL. Op. Cit. p. 38. XAVIER, Fernanda Ollé. Episódios da Guerra Fria: seu início meio e fim. In: Revista Diálogo e interação. V. 04, 2010. p. 06. MAGNOLI apud PASCUAL. Op. Cit., p. 39. PASCUAL. Op. Cit., p. 39. COMBLIM apud PASCUAL. Op. Cit., p. 40. PÁDROS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay: terror de Estado e segurança nacional no Uruguai (19681985): do pachecato à ditadura civil-militar. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. p. 184. PÁDROS. Op. Cit., p. 186.

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revolucionário cubano e a identificação do avanço do inimigo comunista na região, bem como pelo aprofundamento das contradições socioeconômicas do decorrente aumento das tensões sociais e da contestação do status quo. Durante a administração Johnson, Nixon e Ford a ênfase na segurança se tornou o objetivo central e se impôs em detrimento das práticas democráticas, reforçando o autoritarismo e a mecanismos repressivos considerados mais eficientes para impedir o avanço do “inimigo interno/externo” estabelecendo as coordenadas de enquadramento social e político necessário para o alinhamento da nova ordem econômica adequada ao reordenamento capitalista do pós-guerra. O advento, consolidação e extensão da Guerra Fria combinados com o crescimento dos movimentos de libertação nacional na América Latina e, especialmente, com a Revolução Cubana (sobretudo após a incorporação de Cuba ao bloco soviético) fizeram com que os Estados Unidos considerassem a América 13 Latina em estado de alerta . De acordo com Fernando Henrique Cardoso, o fato da reorganização dos países segundo a ideologia de Segurança Nacional se caracteriza como um regime autoritário burocrático, onde a instituição militar como um todo assume poder para reestruturar a sociedade e o Estado. O regime autoritário burocrático, também se difere das ditaduras de Vargas e Perón, onde o poder é tomado para 14 manter um ditador à frente do Estado. . Entre as ditaduras de Vargas e Perón seguem interessantes comparações no âmbito populista. Ambos tinham os mesmos inimigos (oligarquias da cada país), as mesmas ameaças (o comunismo), uma base política estabelecida por um Pacto Social com a burguesia detentora dos meios de produção e o proletariado, dono da força produtiva. Nacionalismo, estatização e leis trabalhistas também podem ser 15 pontos comparativos entre os dois ditadores . Já o autoritarismo burocrático, como tipo de regime que impõe regras de exclusão política em benefício do setor privado da economia. Os interesses econômicos predominantes favorecem a acumulação de capital através do controle de força de trabalho, para um desenvolvimento capitalista bem-sucedido e urgente, passando rapidamente pela fase inicial de “decolagem” econômica na qual, segundo estratégias contrarrevolucionárias de W. W. Rostow há uma 16 possibilidade maior de ocorrer à revolução social . A Argentina da década de 1970 encontrava-se em grande instabilidade política. Com o retorno de Juan Domingo Perón do exílio em 20 de junho de 1973, era visto por alguns setores populares como “a volta dos bons tempos” para o país. Com a renúncia do presidente Héctor José Cámpora neste mesmo ano, foram convocadas e realizadas eleições presidenciais. A chapa Perón-Perón com J. D. Perón candidato a presidência e sua esposa Isabelita Perón como vice, venceu as eleições com 62% dos votos. Perón, no poder, tentou realizar alianças e apoios políticos em alguns setores – o que conseguiu em partes. Porém sua presidência foi breve, com sua morte em 1º de julho de 1974, Isabel assumiu a presidência da Argentina. Em 1975 o país continuava com graves problemas econômicos e sociais. A confederação Geral Trabalhista negociava um aumento digno aos sindicatos. Nesse momento assumia o cargo de Ministro da Economia, Celestino Rodrigo, que agravou a frágil situação econômica, denominada “rodrigazo”. Assim, o país viu uma inflação acelerada dia após dia, e o rodrigazo dizimara 17 aumento de 40% que os sindicatos haviam tido naquele ano A presidente Isabel acabou por romper algumas importantes alianças que Perón tinha construído, tendo assim, em sua base de sustentação poucos aliados incondicionais. No entanto a oposição articulava-se de forma considerável. Entre os grandes opositores estava o general Jorge Rafael Videla, nomeado pela presidente como novo comandante-chefe do exército, que além de não apoiar à sucessão de Perón por Isabel, impunha prazos para o final da crise política e econômica culminada no rodrigazo. Além de Videla, os comandantes da marinha e da aeronáutica também se posicionavam 18 contra a presidente . Em março de 1976, os militares argentinos deram um golpe na presidente Isabel Perón, que foi presa pelos comandantes militares que usaram a afirmação de que tinham sido forçados a dar o golpe 19 para defender a nação argentina . De acordo com a mensagem da Junta de Comandantes das Forças 13 14

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PADRÓS Op. Cit., p. 188 CARDOSO, Fernando Henrique. Os regimes autoritários na América Latina. In. COLLIER, David (Coord.). O Novo Autoritarismo na América Latina. Tradução de Marina Teixeira Viriato de Medeiros. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1982. p. 43. GLIK, Monica Sol. Ordem e Progresso, Civilização e Barbárie. Perón, Vargas e Positivismo. (Argentina-Brasil, 1930-1955). In Revista PerCursos. V. 07. N. 2. Santa Catarina. 2006. p. 4 CARDOSO, Op. Cit., p. 50. FREITAS, Bruno Cordeiro Nojosa; SOUZA, Francisco Iderlan Meneses. O coro dos descontes: O ato de contestar e resistir na ditadura militar argentina. Revista Ameríndia. V. 04. Curitiba. 2007. p. 01. FREITAS;SOUZA, Op. Cit, p. 02. PASCUAL, Op. Cit., p. 49.

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Armadas para a população em 29 de março de 1976, os militares se validaram na ideologia de Segurança Nacional para validar o golpe. Esgotadas todas as instâncias de mecanismos constitucionais, superada a possibilidade de retificação dentro do marco das instituições... a impossibilidade da recuperação de um processo por suas vias naturais, chega ao fim uma situação que lesa a nação e compromete seu futuro... Nosso povo tem sofrido uma nova frustração. Perante um vazio de poder e a falta de uma estratégia global que, dirigida pelo poder político, combatesse a subversão: a carência de soluções para problemas básicos da nação, cuja consequência tem sido o incremento permanente de todos extremismos; [...] Tendo se traduzido numa irreparável perda de grandeza e fé; as Forças Armadas, no cumprimento de uma obrigação irrenunciável, assumiram a condução do Estado [...] Esta decisão tem o objetivo de acabar com o desgoverno, a corrupção e o flagelo subversivo e está dirigido unicamente contra quem tem delinquido ou cometido abusos 20. de poder. É uma decisão pela pátria

Sob a vigência da Segurança Nacional, para erradicar a subversão e suas causas, foi instaurado a ideia de que teria sido deflagrada a terceira guerra mundial – guerra contra o comunismo internacional 21 -, que determinou toda a ação aplicada na Argentina de 1976 a 1983 . Após o golpe, grande parte da população recebeu como alívio a intervenção militar, acreditando nas afirmações dos líderes no sentido em que o objetivo do golpe era de fato o reestabelecimento da ordem e da democracia no país e que atuariam respeitando as normas vigentes. O plano executado pelas Forças Armadas fundava-se na repressão clandestina, na negação de informações, no terror e na apresentação de uma fachada de respeitabilidade e paz, numa tentativa de 22 criar uma máscara enquanto eram usados métodos repressores clandestinos à margem da lei . A caça às bruxas ao comunismo se intensificou logo após o golpe. Durante o regime não houve determinação precisa sobre o que é ser subversivo em normas específicas. O significado deveria ser buscado nos discursos dos próprios militares quando falavam sobre os inimigos. Os termos mais utilizados eram: ser inimigo ideológico, ser de esquerda, ser não argentino, ser judeu, ou um ser 23 irrecuperável . O trato da repressão contra os subversivos pode ser notado também em números, de acordo com os arquivos da Comissão Nacional Sobre Desaparecimento de Pessoas na Argentina (CONADEP), constam denúncias de aproximadamente 600 pessoas desaparecidas antes de 1976. Contudo foi a partir do golpe que o sequestro foi “institucionalizado” como forma de ação das Forças Armadas. Desde então milhares de pessoas foram ilegitimamente privadas da liberdade em todo 24 o país . Em 1979, a Assemblea Permanente por los Derechos Humanos registrou 5.818 casos documentados. O Ministério do Interior contava com 3.447 denúncias até o mesmo ano. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) em visita à Argentina, em setembro de 1979, recebeu 5.580 denúncias, das quais muitas não estavam incluídas em listas anteriores. Já a CONADEP recebeu 8.960 reclamações. Nenhuma das pessoas em que o nome constava nessas listas foi vista novamente com vida. Contudo organizações dos direitos humanos calculam que o número seja infinitamente maior, podendo chegar a 30 mil desaparecimentos, se fossem 25 incluídas pessoas que após sair do cativeiro se omitiram ao realizar denuncias . O método de desaparecimento forçado de pessoas era usado de forma indiscriminada, foram sequestrados e torturados tanto membros de grupos armados como seus familiares, amigos, colegas, militantes de partidos políticos, sacerdotes ou laicos comprometidos com os problemas dos pobres, ativistas, estudantes, sindicalistas... mas também um grande número de pessoas sem nenhuma ligação a práticas sindicais ou políticas. Houve casos de pessoas sequestradas porque seu nome constava em alguma 26 agenda telefônica de um dos desaparecidos .

Houve também um caso de um grupo de doze adolescentes de dezesseis anos da Escuela 20 21 22 23 24 25 26

PASCUAL, Op. Cit., p. 48. PASCUAL, Op. Cit., p. 49. PASCUAL, Op. CIt., p. 58. PASCUAL, Op. Cit., p. 50. COMISSIÓN apud PASCUAL, Op. Cit., p. 64. MIGNONE apud PASCUAL, Op. Cit., p. 64. PASCUAL, Op, Cit., p. 69.

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Nacional de Educación Técnica Nº 1, foram sequestrados e enviados a um centro clandestino de detenção e torturados por causa de um incidente com um professor que também era oficial da Marinha. Com o término das aulas, havia um clima de alegria na escola, o citado professor reclamou pelo barulho e os alunos não se submeteram as suas ordens, sendo expulsos da escola. Os pais dos alunos protestaram perante as autoridades militares, pedindo a reintegração dos estudantes. As autoridades ‘advertiram’ que finalizassem com seus pedidos ou ‘se arrependeriam’. Dias depois, grupos de encapuzados, fortemente 27 armados, sequestraram estudantes em seus domicílios .

A tortura foi um elemento comum na metodologia empregada. Segundo a CONADEP quase na totalidade das denúncias recebidas pela Comissão, mencionam-se atos de tortura. Nos relatos estão refletidos os terríveis sofrimentos psíquicos e físicos das vítimas, como relata Miguel D’Agostino, caso Nº 3901: “Se ao sair do cativeiro me tivessem perguntado: Torturaram-te muito? Teria respondido: sim, os três meses sem parar... Se a pergunta me é formulada hoje posso lhes dizer que logo completarei sete 28 anos de tortura ”. As torturas em feitas na maioria das vezes nos Centros Clandestinos de Detenção que existiram aproximadamente 340 ao longo do território Argentino e constituíram na base material indispensável para a política de desaparecimentos. Foi nesses Centros Clandestinos que mulheres e homens foram ilegitimamente privados da sua liberdade em estadias que duraram anos ou então nunca mais 29 retornaram . Aos poucos foram circulando notícias de desaparecimento de amigos, familiares, vizinhos que tinham sido levados de suas casas ou local de trabalho por um grupo de pessoas armadas e desconhecidas e que sua família não conseguia achá-los. As autoridades negavam tê-lo detido e afirmavam desconhecer o paradeiro do sequestrado. As poucas pessoas que retornavam normalmente não faziam nenhum tipo de comentário sobre as experiências durante o cativeiro e se mantinham em 30 silêncio absoluto . Esta onda de repressão brutal invade a Argentina na década de setenta e termina de paralisar as estruturas legais que poderiam ter auxiliado na diminuição do impacto causado a população pela violação dos direitos humanos. Contudo, em meio aos conflitos formaram-se grupos de direitos humanos buscando frear as violações cometidas aos direitos do homem. Inicialmente dentro destes “grupos”, todos colaboravam inclusive com outros organismos ao mesmo tempo, existia uma grande solidariedade entre os grupos. Entretanto havia diferentes formas de manifestações: “La diferencia entre organismos se Manifestaba em la elección de la estrategia a seguir: cuánta prudência em la denuncia y la difusion? 31 Qué demandar ou reclamar? Com quem Hablar? ” Nesta situação, com base em manifestações públicas o movimento “Madres de Plaza de Mayo” ganhou grande destaque na Argentina, bem como em todo o cone sul e consequentemente uma repercussão mundial. Mais tarde deste grupo sairá outro movimento conhecido como “Abuelas da Plaza de Mayo”. A grande questão que unia todas essas mulheres era o grande vazio político deixado pelo desaparecimento de seus entes queridos. Na busca por resposta uniram-se, indo contra o regime e arriscando suas próprias vidas. Inicialmente todas já tinham feito a tradicional busca pelos despachos nos organismos oficiais, contudo não encontravam maiores esclarecimentos. Azucena Villaflor De Vicenti uma das mães do movimento, certa vez diante da falta de informações declarou: Madres, así no conseguimos nada. Nos mientem em todas partes, nos cierram todas las puertas. Tenemos que salir de este laberinto infernal que nos lleva a recorrer inútilmente despachos oficiales, cuarteles, Iglesias y juzgados. Tenemos que ir directamente a La Plaza de mayo y quedarnos allí hasta que nos den una respuesta. Tenemos que llegar a cien, doscientas, mil madres, hasta que nos vean, hasta que todos se entern y El proprio 32 Videla se vea obligado a recerbirnos y darnos una respuesta .

As reuniões familiares tiveram inicio um pouco antes do golpe de estado, em fevereiro de 1976, 27

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SÁBATO, Ernesto. Nunca Mais: informe da Comissão Nacional sobre o desaparecimento de pessoas na Argentina. L&PM. Porto Alegre. 1984. p. 244. SÁBATO, Op, Cit., p. 16. SÁBATO, Op, Cit., p. 41. PASCUAL, Op, Cit., p. 59. JELIN, Elizabeth. Víctimas, familiares y ciudadanos/as: las luchas por la legitimidad de la palabra. Cadernos Pagu, v. 29. 2007. p. 37. GORINI apud GUERIN, Mariángeles. Memória e conformação da identidade nos integrantes dos movimentos de “Madres y Abuelas de Plaza de Mayo”. Dissertação (Mestrado em História), UnB. Brasília. 2010. p.68.

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contudo sua concorrência só foi aumentando ao decorrer da repressão. Muito antes de fazerem parte do movimento de Madres da Plaza de Mayo, algumas mulheres chegaram a participar de encontros de outras organizações familiares de desaparecidos políticos, porém algumas “Madres” sentiam-se incomodadas, pois mesmo existindo uma discussão de tarefas a serem levadas adiante, as questões principais seguiam apenas nas mãos de um grupo da comissão. Esta “diferenciação” no trato das políticas administrativas se é assim que podemos chamar, fomentou a necessidade de realizar algo 33 diferente por parte das mães . Sendo assim surge um novo grupo com diferentes manifestações que serviram para diferenciar as “Madres” dos outros movimentos de direitos humanos, mais que isso, auxiliando na identificação do grupo aos olhos da sociedade. A primeira iniciativa do grupo foi a marcha ao redor da pirâmide da Plaza de Mayo, consequentemente mais tarde esta atividade marcaria a identidade o nome do movimento até os dias atuais. Assim como assinalou Gorini, a decisão de realizar o encontro na praça foi exclusiva do grupo de mulheres. No inicio das atividades a praça era usada como 34 lugar de encontro para trocar informações obtidas e organizar as atividades . Mais tarde, em consequência do estado de sítio que viria impossibilitar reuniões de mais de três pessoas em áreas públicas, as “Madres” deixaram de ficar sentadas nos bancos da praça e marcharam. Inicialmente esta marcha não tinha o significado que o protesto iria adquirir, começaram a fazer a chamada ronda para poder continuar se reunindo na Plaza de Mayo. As reuniões na praça era uma forma de chamar atenção do governo e da sociedade para a questão dos desaparecidos, esperava que 35 se fazendo presentes o governo fosse ouvir as questões e poderiam trazer alguma resposta . Para os militares, a aparição das “Madres” não só os surpreendeu como também colocou em dúvida as suas representações, segundo eles a única explicação possível era que o surgimento deste grupo fosse uma tática ou uma nova estratégia política do grupo considerado subversivo. Logo os militares demoraram em compreender o erro de acreditar que donas de casa não poderiam formar este 36 tipo de movimento . Sendo assim, na quinta-feira de 18 de agosto de 1977 as Madres começaram sua primeira marcha de protesto ao redor da pirâmide da Plaza de Mayo, o que inicialmente era um espaço para troca de informações e “desabafos”, virou um local simbólico, onde recordavam e manifestavam a 37 dor da ausência de seus filhos . Intencionalmente ou não, o grupo de mães tinha uma identidade em comum, pois chegaram a definir e encarnar a uma comunidade de oposição ao estado ditatorial como também a própria máquina estatal. As mães foram recebendo mais consciência e perceberam que o fato de serem vistas ajudava muito em suas reivindicações, a partir desta nova mentalidade procuraram por se fazer mais visíveis, como consequência surgiu mais um novo símbolo para a identidade do grupo: “los pañuelos”, enquanto se organizavam para assistir como grupo à peregrinação anual à Basílica de Guadalupe surgiu a ideia de lenços, mais como uma ideia de 38 diferenciação, assim criaram um novo elemento que marcaria o grupo . Após a consolidação do grupo, o número de mães que buscavam seus filhos e netos crescia cada vez mais, e foi chegado o momento de separação devido a quantidade de integrantes que havia no grupo. Sendo assim ficou decidido que as “Abuelas” ficariam encarregadas de procurar os netos – que a 39 estimativa fica em cerca de 500 crianças desaparecidas -, enquanto as “Madres” seguiram com o objetivo inicial de buscar por seus filhos. Porém o vínculo que ainda unia tanto “Madres” quanto “Abuelas” era bem intenso, pois a luta tinha iniciado no grupo das Madres. Os objetivos do grupo foram modificando-se no decorrer das diversas lutas, e como, consequência direta das mudanças do contexto. Durante o período de transição da ditadura para a democracia, a questão dos detidos desaparecidos apresentou-se novamente como um problema para a consecução dos objetivos das Forças Armadas. Onde os militares tentaram garantir a não revisão judicial das ações levadas adiante, durante a guerra contra la subversión, portanto procuraram o estabelecimento de acordos com partidos políticos que se tinham agrupado na multipartidária, agora uma outra questão começava-se a questionar “o que iam fazer o grupo de Madres e Abuelas no contexto 40 democrático? ” Dentro desse sentido as Madres decidiram fazer pública sua posição naquilo que diz respeito à continuação da luta pela democracia. Tendo em vista o estudo realizado, podemos concluir que a segunda fase da repressão militar na 33 34 35 36 37 38 39 40

GORINI apud GUERIN, Op. Cit., p. 60. GORINI apud GUERIN, Op. Cit., p. 67. GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 68. GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 70. GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 71. GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 73. PADRÓS, Op. Cit., p. 638. GORINI apud GUERIN, Op. Cit p. 80.

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Argentina foi a mais violenta do cone sul, em termos de terrorismo de Estado, se apoiando na ideologia de Segurança Nacional contra o inimigo interno/externo do comunismo. Nesta luta os militares argentinos não tiveram receio em abusar dos poderes que passaram a possuir pós-golpe. Dando inicio a uma série de violências e atentados, o principal deles contra a liberdade e os direitos humanos. Deixando feridas mal cicatrizadas até hoje na sociedade Argentina. Em tempo onde o paradeiro dos subversivos era negado pelas autoridades, um grupo de mães unidas pela ausência de seus filhos e de respostas sobre o destino dos mesmos. Decidiram assim, unir-se para buscar informações, surgindo o Madres de Plaza de Mayo , um movimento encabeçado por mulheres que compartilhavam da mesma dor e não tiveram medo de arriscar suas vidas nas mãos do regime. Nesta procura, muitas mães sofreram agressões ou também desapareceram. A repercussão internacional do movimento foi um dos motivos pelo enfraquecimento do regime. Mesmo com a chegada da democracia, muitas Madres e Abuelas continuaram atuantes e viraram referência internacional na luta por justiça e na busca contínua dos direitos humanos, esquecidos durante a ditadura na América Latina.

Referências Bibliográficas: CARDOSO, Fernando Henrique. Os regimes autoritários na América Latina. In. COLLIER, David (Coord.). O Novo Autoritarismo na América Latina. Tradução de Marina Teixeira Viriato de Medeiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. FREITAS, Bruno Cordeiro Nojosa; SOUZA, Francisco Iderlan Meneses. O coro dos descontes: O ato de contestar e resistir na ditadura militar argentina. Revista Ameríndia. v. 04. Curitiba, 2007. GLIK, Monica Sol. Ordem e Progresso, Civilização e Barbárie. Perón, Vargas e Positivismo. (ArgentinaBrasil, 1930-1955). In Revista PerCursos. v. 07. n. 2. Santa Catarina, 2006. GUERIN, Mariángles. Memória e conformação da identidade nos integrantes dos movimentos de “Madres y Abuelas de Plaza de Mayo”. Dissertação (Mestrado em História). UnB, 2009. JELIN, Elizabeth .Víctimas, familiares y ciudadanos/as: las luchas por la legitimidad de la palabra. Cadernos Pagu, v. 29, julho-dezembro, pp. 37-60, 2007. PÁDROS, Enrique Serra. Como El Uruguay no hay: terror de Estado e segurança nacional no Uruguai (1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. PASCUAL, Alejandra Leonor. Terrorismo de Estado. Brasília: Editora UnB. 2004. SÁBATO, Ernesto. Nunca Mais: informe da Comissão Nacional sobre o desaparecimento de pessoas na Argentina. Porto Alegre. L&PM, 1984. XAVIER, Fernanda Ollé. Episódios da Guerra Fria: seu início meio e fim. In: Revista Diálogo e interação. V. 04, 2010.

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O Grupo Clamor e a atuação em redes na defesa dos Direitos Humanos frente as ditaduras do Cone Sul Guilherme Barboza de Fraga

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Resumo: O presente artigo visa analisar a constituição de uma rede integrada de defesa dos direitos humanos no final da década de 1970 a partir do estudo da documentação do Clamor. O grupo atuou de 1978 a 1991 com os seguintes objetivos: denunciar as arbitrariedades cometidas pelas ditaduras de Segurança Nacional, dar abrigo aos refugiados e auxiliar na localização de desaparecidos políticos. Assim, apresenta-se a rede composta a partir dos contatos do grupo e analisa-se como a ação do grupo com outros organismos congêneres constituiu forte resistência ao aparelho repressivo das ditaduras do Cone Sul por meio de uma atuação além-fronteiras. Palavras-chave: Clamor – ditaduras – rede – direitos humanos. Abstract: This article aims to analyze the creation of an integrated network of human rights in the late 1970s from the study of documentation Clamor. The group acted from 1978 to 1991 with the following objectives: to denounce the arbitrarinesses committed by the dictatorships of National Security, to give shelter to refugees and assist in locating missing politicians. Thus, presents the network of contacts from the group and analyzes as a group action with other bodies congeners was strong resistance to the repressive apparatus of the dictatorships of the Southern Cone through a cross-border operation. Key-words: Clamor – dictatorships – Network – human rights.

Este texto analisa a constituição de uma rede integrada de defesa dos direitos humanos a partir da análise dos documentos e da trajetória do grupo Clamor. Diferente do artigo apresentado na I Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos que faz uma apresentação do grupo a partir de ações empreendidas ao longo de sua existência, o presente trabalho amplia a análise percebendo a ação do Clamor dentro de uma atuação conjunta com organismos congêneres com o objetivo de por fim ao Terrorismo de Estado vigente nas ditaduras do Cone Sul. Para tanto, este artigo apresenta, primeiramente, o grupo Clamor e, logo depois, a rede constituída a partir do grupo para, em seguida, abordar como se deu a relação com outras entidades pela análise do Seminário promovido pelo Clamor em 1985 e por ações empreendidas no exterior em parceria com outras organizações. Inclinando os ouvidos aos clamores contra a repressão Em 1978, ano de início das atividades do grupo Clamor, os países do Cone Sul eram governados por ditaduras militares. Em um cenário de Guerra Fria, tais ditaduras apoiaram-se nas premissas da Doutrina de Segurança Nacional percebendo a política como um conflito planetário, uma verdadeira guerra, cujo fim seria a destruição total e permanente do adversário. Para tanto, recorreram ao Terrorismo de Estado, um modo de governar mediante o uso da intimidação. Torturas, desaparecimentos forçados, exílios, desterros, banimentos, utilização de pressões, chantagens, 2 demissões laborais, intervenção nos meios de comunicação de massa com o uso da censura e de propaganda sistemática do regime foram alguns métodos utilizados na difusão de uma cultura do medo e criação de um cenário de silêncio, desconfiança, alienação e terror permanente, evitando ou limitando manifestações contestatórias. Nessa conjuntura, diversos grupos, entidades, organizações e indivíduos passaram a denunciar as violações dos direitos humanos cometidas por esses regimes repressivos e a dar apoio aos perseguidos políticos. No Brasil, ganhou destaque uma ala progressista da Igreja Católica buscando ser a voz daqueles que tiveram sua voz silenciada. A atuação engajada desse clero progressista teve influência das mudanças promovidas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), das Conferências Episcopais 1

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Graduado em História (Licenciatura) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – guilhermebarbozadefraga@hotmail.com Em todos os países do Cone Sul, os golpes de Estado que impuseram as ditaduras de Segurança Nacional foram apoiados por importantes meios de comunicação.

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Latino-americanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979) , do surgimento e difusão da Teologia da 4 Libertação, da criação da CNBB e do início dos trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s). Desde a nomeação de dom Paulo Evaristo Arns, a Arquidiocese de São Paulo passou a ser estruturada na tentativa de acolher os que não tinham mais a quem recorrer em busca de asilo político. E o número de refugiados estrangeiros só aumentou em meados da década de 1970 com o aumento do autoritarismo nos países vizinhos. Foi nesse momento que surgiu o CLAMOR (Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul). As reuniões de estruturação do grupo – ocorridas após solicitações de exilados argentinos – foram organizadas pelos três membros fundadores: Jan Rocha, Luiz Eduardo Greenhalgh e Jaime Wright. A jornalista inglesa Jan Rocha morava no Brasil desde 1969, era correspondente internacional do jornal The Guardian e da rádio BBC de Londres e casada com o advogado brasileiro Plauto Tuiuti da Rocha. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh era referência entre os familiares de presos políticos 5 brasileiros e também militava na luta pelos direitos humanos. O pastor presbiteriano Jaime Wright vivera de perto a violência do sistema repressivo brasileiro – em setembro de 1973, seu irmão Paulo Stuart Wright foi desaparecido pelo regime. Wright era filho de missionários estadunidenses, sempre esteve engajado na defesa dos direitos humanos e foi companheiro de dom Paulo Evaristo Arns em diversos projetos. Assim, a jornalista, o advogado e o pastor engajados em causas solidárias, usaram sua atividade profissional como militância em prol dos direitos humanos. Desde o início, perceberam a necessidade de 6 articular-se com a Igreja Católica, que funcionaria como “guarda-chuva institucional” garantindo proteção ao grupo. Desse modo, Greenhalgh, Rocha e Wright procuraram o cardeal-arcebispo de São Paulo e famoso pela atuação a favor dos direitos humanos em sua arquidiocese. O projeto do Clamor encaixava-se perfeitamente na estrutura solidária montada em sua arquidiocese. Assim, o Clamor foi incorporado à Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, criada em 1976, tornando-se um anexo da Comissão com intuito de cuidar da grande quantidade de estrangeiros que acorriam à Cúria Metropolitana em busca do amparo do cardeal-arcebispo. O nome Clamor surgiu nas primeiras reuniões e foi escolhido por ser forte, mobilizador e ter o mesmo significado em português, inglês e espanhol, por conter a palavra amor e as letras L e A, de América Latina. O nome fez o pastor lembrar um texto bíblico, o salmo 88, que se tornou lema do grupo: “Inclina os teus ouvidos ao meu clamor.” O símbolo do Clamor – uma vela acesa atrás das grades – veio de um cartão de Natal recebido por Greenhalgh do preso político Manuel Cirilo de Oliveira Neto e simbolizava a busca de esperança aos prisioneiros e perseguidos pelos sistemas repressores. Os objetivos do grupo foram estabelecidos: dar assistência aos refugiados que buscavam auxílio 7 na Cúria e não eram reconhecidos pelo ACNUR ; divulgar as denúncias recebidas após confirmação de 8 sua veracidade ; e o estabelecimento de contatos com entidades nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos para a formação de uma rede: CLAMOR tem por objetivo a defesa dos direitos humanos na América Latina, especialmente nos países do Cone Sul. (...) É interesse do CLAMOR estreitar vínculos com órgãos congêneres para cooperação mútua. A perspectiva do CLAMOR é cristã, ecumênica, sem filiação partidária e seus objetivos 9 são humanitários.

A presença do pastor Jaime Wright no grupo garantiu a concessão de uma verba periódica junto ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI) que agrupava, à época, cerca de 500 milhões de fiéis de igrejas protestantes, ortodoxas e anglicanas e tinha um setor específico de direitos humanos para a América Latina. 3

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As duas Conferências tiveram importante papel para ajustar o discurso do Concílio Vaticano II à realidade latinoamericana de capitalismo dependente com a confirmação da “opção preferencial pelos pobres” e a tendência de uma teologia centrada na libertação social e não mais na salvação eterna individual. Cf. SALEM, Helena (Org.). A Igreja dos oprimidos. São Paulo: Brasil Debates, 1981. p. 39 a 42. Criada em outubro de 1952, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) foi promovida e inspirada por dom Hélder Câmara, um dos bispos mais famosos da “ala progressista” da Igreja. Ao lidar com clientes torturados e presos de forma arbitrária, o trabalho do advogado tinha um caráter afetivo, pois desempenhava uma função humanitária e estabelecia uma ligação entre os presos e suas famílias. LIMA, Samarone. Clamor: a vitória de uma conspiração brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 35. O comissariado da ONU não acolhia, por exemplo, militantes envolvidos na luta armada. O meio utilizado para difundir tais denúncias foi a publicação de boletins não periódicos distribuídos em três idiomas: português, espanhol e inglês. Cerca de 1.500 boletins eram distribuídos a cada edição, sendo 500 em cada língua. CLAMOR, nº 1, Ano I, junho de 1978, capa.

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Dada a grande quantidade de trabalho, logo o grupo recebeu dois reforços oriundos da Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo: a freira 10 estadunidense Michael Mary Nolan e o padre canadense Roberto Grand-Maison, então coordenador da Pastoral de Direitos Humanos da Comissão e engajado na Ação Católica Operária (ACO) e na Juventude Operária Católica (JOC). Com o aumento da demanda de trabalho, em 1979, o quadro de voluntários precisou ser ampliado e mais dois integrantes da Comissão Arquidiocesana foram recrutados 11 para o Comitê: o advogado Fermino Fecchio e a química Thereza Brandão . Após um desentendimento interno, que levou à saída de Jaime Wright do grupo em abril de 1984, foram incorporadas ao grupo: a psicóloga e psicanalista Maria Auxiliadora Arantes, ex-presa política; Maria Aparecida Horta, ex-presa política e esposa de Luiz Eduardo Greenhalgh; e Inge Schilling, mãe de Flávia Schilling, brasileira que foi prisioneira política no Uruguai de 1972 a 1980. Os dois últimos reforços do grupo foram a leiga católica Lilian Azevedo e o frei maltês João Xerri. Além desses membros já nominados, cabe ressaltar a importância da participação dos familiares dos integrantes do Clamor em seu apoio estratégico ao grupo. Merecem destaque a missionária presbiteriana Alma Jane Wright, esposa do pastor, e Plauto Tuyuty Rocha, esposo da jornalista Jan Rocha. É importante salientar que, durante a ditadura brasileira, alguns grupos sociais utilizaram as brechas legais para fazer oposição ao regime, entre eles advogados, jornalistas, familiares de presos políticos, militantes de esquerda, leigos e religiosos católicos e protestantes. Esses grupos de oposição tinham no Clamor seus representantes, pois nele havia uma jornalista (Jan Rocha), advogados (Luiz Eduardo Greenhalgh, Fermino Fecchio e Plauto Rocha), familiares de presos políticos (Jaime Wright e Inge Schilling), militantes de esquerda (Cida Horta e Maria Auxiliadora Arantes), leigos católicos (Thereza Brandão e Lilian Azevedo), religiosos católicos (dom Paulo, Pe. Roberto, Ir. Michael e Frei João) e religiosos protestantes (Jaime e Alma Wright). Ou seja, o Clamor foi, ao mesmo tempo, uma reação cidadã aos excessos cometidos pelos governos ditatoriais e um reflexo da oposição existente na ditadura brasileira engajada na causa solidária de defesa dos direitos humanos nos países vizinhos que, da mesma forma, sofriam dura repressão. A rede integrada de defesa dos direitos humanos Tendo entre seus integrantes representantes de diferentes grupos que se opuseram à ditadura, o Clamor atuou na tentativa de impedir e denunciar o avanço da repressão estatal (e multinacional) sobre a população que procurava refúgio. Sua atuação foi possível graças a um trabalho conjunto com organismos congêneres para colaboração mútua, união capaz de garantir eficácia às ações de um grupo pequeno e dotado de uma estrutura bastante simples. A articulação entre grupos, entidades e ativistas interessados em denunciar as arbitrariedades dos regimes de Segurança Nacional e em garantir auxílio aos exilados políticos culminou na criação, provavelmente involuntária, de uma espécie de rede informal e internacional de defesa dos direitos humanos. Em uma concepção simples, porém eficaz, rede pode ser definida como a “identificação de 12 sujeitos coletivos em torno de valores, objetivos ou projetos em comum.” Assim, a identificação de sujeitos interessados na defesa dos direitos humanos, articulando em prol desse objetivo, indica a formação de uma rede. Ela se estabelece a partir de relações ou ligações sociais entre um conjunto de indivíduos ou entidades – os quais podem nunca ter se encontrado pessoalmente, mas estabelecem contatos com relativa frequência – que possuem uma mesma situação sistêmica antagônica a ser combatida e transformada: a situação de repressão vigente nos países do Cone Sul. O principal motivo da articulação em rede está na necessidade de “ganhar visibilidade, produzir impacto na esfera pública e 13 obter conquistas para a cidadania.” Portanto, o sucesso do Clamor está diretamente relacionado à rede na qual o grupo inseriu-se e ajudou a constituir. Por meio dos boletins, atas de conferências, correspondências, relatórios de ações e informações prestadas pelos membros do grupo Clamor foi possível reconstituir a rede integrada de 10

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Graduada em Administração de Empresas e Ciências Sociais pela Saint Mary´s College cf. <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Materia/MateriaMostra.aspx?idItem=36431&idModulo=8758> Acesso em 28/03/2012. O engajamento de Thereza e sua família fez sua casa ser “visitada” pelos agentes do Cenimar (Centro de Informações da Marinha), em abril de 1964, por oferecer refúgio a duas amigas cariocas procuradas pela repressão. Desde 1975, atuou na Comissão de Justiça e Paz e poucos anos depois se tornou a representante da Igreja Católica junto ao CBA (Comitê Brasileiro pela Anistia). Cf. MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel (orgs.). Pela democracia, contra o arbítrio. A oposição democrática do golpe de 1964 à campanha das Diretas já. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 286-287. SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v. 21, n.1, p. 109-130, jan./abr. 2006. p. 113. Idem.

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direitos humanos responsáveis por tantas denúncias de arbitrariedades cometidas pelos militares nas ditaduras da América Latina, por garantir asilo a perseguidos políticos de diversos países e por auxiliar na busca por desaparecidos e seus filhos. Caracterizar e reconstruir uma rede corresponde a um trabalho que lida com inevitáveis imprecisões. No caso dessa pesquisa, a situação não é diferente, pois a reconstituição completa da rede da qual fazia parte o Clamor é tarefa de difícil execução dado o grande espaço de atuação do grupo e sua longa duração. Além disso, o fato de o grupo ter encerrado suas atividades há mais de vinte anos traz a possibilidade de caírem no esquecimento grupos ou indivíduos que estabeleceram poucos contatos ou contatos pontuais com o Comitê. Da mesma forma, nem todas as entidades e colaboradores do grupo podem estar contemplados na documentação seja por sigilo, cautela, omissão, esquecimento ou outros motivos. A partir da pesquisa realizada é possível reconstituir, mesmo com alguma cautela, a rede 14 integrada de direitos humanos na qual o Clamor estava inserido :

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Autoria de Guilherme Barboza de Fraga.

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Vale ressaltar que essa rede representa aquela na qual o Clamor inseriu-se e com quem o grupo interagiu ao longo de toda a sua trajetória – a figura pode não incluir todos os elos possíveis, mas corresponde aos elos identificáveis nas fontes consultadas. Assim, a rede ora apresentada faz alusão ao conjunto de organismos que estabeleceu contatos com o Clamor garantindo o sucesso de suas ações, não dando conta, necessariamente, da totalidade de instituições atuantes na defesa dos direitos humanos para os países do Cone Sul nas décadas de 1970 e 1980. Essa rede integrada, constituída de maneira informal, permitiu localizar crianças, filhas de 15 militantes políticos presos e/ou assassinados pelas ditaduras latino-americanas. A atuação em rede permitiu, também, difundir campanhas pela libertação de presos políticos, como ocorreu com o caso dos Flávios brasileiros – Flávio Koutzii, Flávia Schilling e Flávio Tavares – que se encontravam presos pelas ditaduras argentina e uruguaia. Rompendo o círculo vicioso da violência Correspondências, contatos telefônicos, viagens coletivas, seminários e congressos internacionais estão entre as atividades realizadas coletivamente pelas entidades que integraram a rede de defesa dos direitos humanos. 15

Entre os casos mais conhecidos nos quais o Clamor interviu estão a localização de Mariana Zaffaroni Islas e dos irmãos Anatole e Victoria Julien Grisonas. Tais casos e outras denúncias apresentadas pelo Clamor foram abordados no artigo publicado na 1ª Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos: “A solidariedade não tem fronteiras: o grupo Clamor e a busca por desaparecidos políticos no Cone Sul”. O presente artigo, utilizando novas fontes, busca apresentar a ação do Clamor no contato com outras entidades de defesa dos direitos humanos optando por valorizar a atuação coletiva em detrimento da análise de casos específicos.

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Preocupado em estabelecer um contato bem próximo com outros organismos de direitos humanos para debater sobre o papel e atuação desses, o Clamor organizou o “Seminário sobre o Papel das Entidades de Direitos Humanos na Atual Conjuntura Política, Social e Econômica dos Países do 16 Cone Sul”, em São Paulo, entre os dias 22 e 25 de fevereiro de 1985. O Seminário reforçou o interesse em manter a articulação em rede como forma de continuar atingindo os objetivos de defender os direitos humanos frente ao terrorismo de Estado, além de analisar novos problemas como a questão da impunidade dos responsáveis pela aplicação da política repressiva e a necessária educação para os direitos humanos como forma de impedir a repetição dessas práticas. Dom Paulo, em sua intervenção, ressaltou a exigência de lembrar e registrar o que aconteceu para evitar o esquecimento: “Deve-se publicar tudo o que passou, termos programas escolares de direitos humanos fundamentais. Se não, nós, da América Latina, vamos de uma ditadura a outra, e cada geração, menos 17 de uma geração, se esquece do que aconteceu...” Expressando reivindicações políticas concretas num período em que partidos políticos e movimentos sociais eram silenciados em suas manifestações públicas, as entidades de defesa dos direitos humanos exerceram o papel de oposição possível, sendo alternativa de contestação dentro da sociedade civil. Foi por meio de um serviço à causa popular e democrática praticando a solidariedade a favor dos reprimidos pelo regime ditatorial que o Clamor e a rede representaram uma resistência ao sistema repressivo. Por utilizar ações públicas destinadas a revelar as atuações mais repudiáveis e secretas implementadas pelo regime e por defender valores humanitários de caráter universal que 18 transcendiam posições políticas particulares , as entidades contribuíram para o desgaste moral das ditaduras de Segurança Nacional por meio de um discurso de solidariedade capaz de atingir amplas camadas da sociedade. No caso específico do Clamor, sua composição explicitou a ação cidadã/civil das diversas camadas da sociedade brasileira que demonstrou publicamente seu descontentamento com o regime na figura de jornalistas, advogados, familiares de vítimas, militantes de esquerda, religiosos católicos e protestantes. Na prática, as organizações de defesa dos direitos humanos substituíram os partidos – limitados em sua ação política – desenvolvendo, contudo, suficiente autonomia em relação a seus objetivos. Elas apareceram como a resposta possível em um período no qual as instituições democráticas tiveram sua atividade restringida. Além disso, sua ação enfatiza a legitimidade dos meios 19 pacíficos na luta política. Para Mario López Martínez, a ação decidida e constante das organizações não-governamentais de direitos humanos e sua forma de trabalho fundamentado em metodologias nãoviolentas acabaram por causar grande dano a muitas ditaduras devido a sua influência maior sobre a 20 sociedade do que outras formas de resistência. O objetivo da não-violência é romper o “círculo vicioso” da violência com um “círculo virtuoso” dando origem a uma sociedade democrática que saiba resolver 21 seus conflitos de forma pacífica, sem o uso da violência. Por isso mesmo, la no violencia se nutre de personas – no ingenuas – sino resueltas, empreendedoras e inquietas, (...) sujetos que obedezcan a la voz de su conciencia, gentes que ejerzan su poder para cambiar las injusticias del mundo, personas empoderadas que sean desobedientes frente a la abyección, objetores de conciencia respecto del mal, que no

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Participaram do Seminário diversas entidades argentinas (Abuelas, Asociación Madres de Plaza de Mayo, Asamblea Permanente por los Derechos Humanos, Comisión de Familiares de Detenidos Desaparecidos y Presos por Razones Políticas, Liga Argentina por los Derechos del Hombre, Movimiento Ecuménico por los Derechos Humanos e SERPAJ), chilenas (Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos, FASIC, SERPAJ e Vicaría de la Solidariedad), uruguaias (Comisión Paz y Bien, Familiares de uruguayos desaparecidos en Argentina e SERPAJ), paraguaias (CIPAE e Comisión Permanente de Familiares de Desaparecidos y Asesinados), brasileiras (CBS, CJP-SP, Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo e Movimento de Justiça e Direitos Humanos), a Asamblea Permanente de Derechos Humanos da Bolívia e o grupo Vivir do Peru. Também estiveram presentes dom Paulo Evaristo Arns, Belela Herrera do ACNUR e representantes da FEDEFAM, SIJAU e AALA. Além dessas organizações, várias outras, impossibilitadas de enviarem representantes, deixaram sua mensagem de adesão e apoio ao Seminário como a Anistia Internacional, Comissão Chilena de Direitos Humanos, Comisión Episcopal de Acción Social (CEAS), Fundação Lelio Basso, Madres y Familiares de Procesados por la Justicia Militar del Uruguay e Washington Office on Latin America (WOLA). Após o Seminário, o Clamor lançou um editorial de imprensa com uma síntese das discussões e conclusões do encontro. Cf. CLAMOR, Editorial, [s.d.], p. 2-3 e 11. Ibid., p. 2. EHRLICH, Hugo Frühling. Represion politica y defensa de los derechos humanos. Chile: Chile y America: CESOC, 1986. p. 18. Ibid., p. 33. LÓPEZ MARTINEZ, Mario. Transiciones y reconciliaciones: cambios necesarios en el mundo actual. In: RODRÍGUEZ ALCÁZAR, Francisco Javier [ed.]. Cultivar la paz. Granada: Universidad de Granada, 2000. p. 61. Ibid., p. 98-99.

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crean en la “obediencia debida” (por simple obediencia).

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Sem fronteiras para a ação solidária Questionado por intervir, pessoalmente ou por meio do Clamor, em casos de violações dos direitos humanos nos países vizinhos, dom Paulo respondia que a solidariedade não tem fronteiras. Mas a repressão também não respeitava limites territoriais e atingia mesmo quem utilizava métodos nãoviolentos como instrumento de resistência. Não ter fronteiras para a repressão faz caracterizar como ameaça todo indivíduo que divergir das crenças, instituições, religião e valores apregoados pela civilização ocidental. Não ter fronteiras para a solidariedade indica prestar ajuda humanitária independente de crenças, instituições, religião e valores. Assim como a repressão, as ações solidárias do Clamor e das entidades que atuaram em conjunto com o grupo não limitaram sua atuação às fronteiras definidas, conforme balanço realizado pelo grupo em seu quinquenário: “Solidariedade não tem fronteiras” foi a frase que transformamos em “slogan” para mostrar que se por um lado as forças da repressão não respeitavam fronteiras, invadindo países vizinhos para violar direitos humanos, então porque não deveria a solidariedade fazer a mesma coisa na defesa dos mesmos direitos? A frase tem significado bem mais amplo, na verdade, porquanto também significa que – além das fronteiras geográficas – a solidariedade não pode ser limitada por barreiras políticas, 23 religiosas, ideológicas, raciais, sociais, econômicas e linguísticas.

A solidariedade sem fronteiras praticada pelo Clamor sempre ocorrer com máxima cautela, pois, mesmo com o guarda-chuva institucional da Igreja Católica, qualquer atitude equivocada poderia pôr a perder outras conquistas, contribuindo, inclusive, para o recrudescimento da repressão. Por isso, as ações foram executadas em sigilo até o momento correto de expor a denúncia. Essa estratégia era 24 chamada pelo grupo de “teologia das brechas” ou, ainda, de acordo com o Pe. Roberto Grand-Maison, 25 de “pastoral da sanfona” , pois a ousadia do grupo aumentava e diminuía de acordo com as “brechas” permitidas em cada momento específico da repressão. E foi em meio a essas brechas, sempre com o apoio firme de dom Paulo, que o grupo participou de ações no exterior, quase sempre em conjunto com outras organizações. Em outubro de 1979, o Clamor recebeu a denúncia da detenção clandestina de Sigifredo Alberto Arostegui Valdez, preso na divisa do Brasil com a Argentina, no dia 21. Sigifredo era um uruguaio residente na Argentina que havia colaborado com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da 26 OEA fornecendo dados de cidadãos uruguaios desaparecidos na Argentina. As autoridades da fronteira negavam a detenção. Sabedores do quanto obter informações sobre uma detenção era garantia de evitar o desaparecimento permanente do indivíduo, o grupo enviou Plauto Rocha à região para descobrir o paradeiro de Sigifredo. O advogado do Clamor localizou o rapaz preso no Regimento das Forças Armadas em Posadas, na Argentina. Com posse da informação, dom Paulo apelou junto ao embaixador 27 suíço em Buenos Aires visto Sigifredo estar sob a proteção do ACNUR. A Anistia Internacional também participou da intensa campanha pela libertação do uruguaio que só ocorreu no dia 3 de setembro de 28 1980. Em janeiro de 1987, o Clamor realizou uma viagem ao Chile em conjunto com a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo (CJP-SP) e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) de Porto Alegre e articulada com a Vicaría de la Solidariedad e grupos de familiares de presos, mortos e desaparecidos políticos chilenos. Participaram da viagem: Fermino Fecchio pelo Clamor; Belisário dos Santos Júnior, Margarida Genevois e Márcia Jaime pela CJP-SP; Jair Kirschke e Augustino Veit pelo MJDH. Os representantes de entidades foram recepcionados, no Chile, pelo embaixador brasileiro, Jorge Ribeiro, que havia preparado uma reunião na embaixada com diversos membros da oposição a 29 Pinochet. O embaixador brasileiro organizou, ainda, um encontro da comitiva brasileira com o Ministro do Interior chileno a quem foram levadas denúncias de agressão a ativistas de direitos humanos do país. 30 Depois disso, os brasileiros visitaram presos condenados à morte , grupos de familiares de 22 23 24 25 26 27 28 29

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Ibid., p. 99-100. CLAMOR, nº 15, dezembro de 1983, p. 5. Ibid., p. 7. Informações prestadas em entrevista concedida ao autor em 08/07/2011. CLAMOR, nº 9, Ano II, março de 1980, p. 2. Ibid., p. 4. CLAMOR, nº 12, Ano III, dezembro de 1980, p. 17. Diferentemente do início da década de 1970, quando o golpe de Estado foi gestado na embaixada brasileira, o atual embaixador chegou a abrir os portões da embaixada para manifestantes perseguidos pela polícia. O motivo da condenação à morte foi o envolvimento no atentado contra Pinochet.

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presos e de desaparecidos políticos e a prisão feminina Cárcere San Miguel. Nos relatos, Jair Krischke recorda de uma jovem prisioneira de 19 anos que trazia nos braços um bebê, fruto de um estupro durante as sessões de torturas. Chamou a atenção de Krischke o nome da criança, inscrito no babador: Pablo Salvador. “Pablo por Neruda e Salvador por Allende”, exaltava a presa política mostrando resistência mesmo em situação tão delicada. A saída dos ativistas brasileiros da prisão, após apurar a situação das presas e levar-lhes mensagens de ânimo, foi acompanhada por canções da Unidad Popular cantadas pelas prisioneiras. O último dia da visita contou com uma homenagem aos que haviam sido mortos. Os representantes brasileiros reuniram-se com familiares das vítimas em frente ao Estádio Nacional de Santiago – importante centro de detenção e tortura da ditadura chilena – para uma rápida 31 manifestação logo desbaratada pelas forças de repressão. Considerações finais Ao encerrar suas atividades, o grupo fez um balanço positivo de seu trabalho: A história do CLAMOR prova uma coisa: pessoas que se unem em torno de um objetivo claro, definido, e que põem todas as suas energias a serviço desta causa tão nobre quanto a dignidade e a integridade da pessoa humana podem remover as montanhas do medo, da indiferença e da opressão. Nosso grupo soube superar dificuldades para 32 manter o ideal à altura das necessidades da solidariedade.

O Clamor surgiu sem a pretensão de ser uma entidade permanente. Ao contrário, desde o início, o trabalho do grupo era visto como uma atividade temporária, para ocorrer apenas enquanto a atuação das demais entidades existentes no Cone Sul tivessem suas funções limitadas pela repressão. Ou seja, nascido em um país que vivenciava sua longa e contraditória abertura política, o Clamor preencheu uma lacuna em caráter emergencial, buscando garantir o suporte ao trabalho dos organismos congêneres. Depois de atingidos seus objetivos, o grupo encerrou suas atividades em 1991, propositalmente, no dia 10 de dezembro, dia internacional dos direitos humanos. Naquele ano, mesmo as duradouras ditaduras chilena e paraguaia já haviam devolvido o poder aos civis e o grupo, após organizar toda a sua extensa documentação, decidiu que havia chegado a hora de parar. Com a democracia em vigor no Cone Sul, as entidades de defesa dos direitos humanos recuperaram o espaço perdido e não precisavam mais do Clamor como porta-voz. Poderiam, agora, trabalhar sozinhas, sem medo de sofrer represálias. À repressão, o Clamor respondeu com solidariedade. Enquanto as ditaduras unidas ocuparamse com o uso da força e da violência para aniquilar adversários, o Clamor e demais grupos trabalharam em conjunto para denunciar a opressão, oferecer resistência e restituir identidades e memórias mutiladas pelos regimes repressores. Ao invés de utilizar o conflito para enfrentar o regime repressivo, o apelo à solidariedade foi o recurso para mobilizar e angariar apoios. E, se houve uma operação internacional de repressão existiu, também, uma rede internacional de defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana na qual o Clamor representou um importante e decisivo elo.

Fontes Arquivo do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul. Disponível no Centro de Documentação e Informação Científica – CEDIC / PUC-SP. Entrevistas com Jan Rocha, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, Thereza Brandão, Fermino Fecchio, Luiz Eduardo Greenhalgh, Pe. Roberto Graind-Maison e Jair Krischke. Fundo Omar Ferri. Disponível no Acervo da Luta contra a Ditadura no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Referências bibliográficas ANDRADE, Ana Célia Navarro de. Descrição do Fundo Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul. Dissertação (Mestrado em História). São Paulo: FFLCH/USP, 2000. BAUER, Caroline Silveira. As ditaduras de Segurança Nacional do Cone Sul e o conceito de “fronteiras ideológicas”. In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos; THOMPSON FLORES, Mariana Flores da Cunha; AVILA; Arthur Lima de. (Org.). Fronteiras Americanas: teoria e práticas de pesquisas. Porto Alegre: Editora Suliani, 2009. 31

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As informações sobre a visita ao Chile, em janeiro de 1987, foram prestadas por Jair Krischke em entrevista ao autor no dia 18 de abril de 2012. CLAMOR, Clamor: uma história de solidariedade, 10 de dezembro de 199, p. 5-6.

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X – Outras experiências de repressão e resistência à ditadura

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A democracia brasileira não foi doada: a resistência na ditadura civil militar brasileira Diorge Alceno Konrad

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(...) Por isso cuidado meu bem Há perigo na esquina Eles venceram e o sinal Está fechado prá nós... (Como nossos pais, Belchior)

A Princesa Isabel já figurou em nossos livros de História como “A Redentora”, aquela que, por ter assinado a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, “libertou” os escravos brasileiros. Quando seu papel protagonista na abolição foi sendo questionado, sobretudo pelos movimentos negros e “desde que Zumbi passou a ser reconhecido como símbolo da luta antiescravista brasileira, foi reconsiderada parte de nossa visão de história, não feita por heróis, mas tendo o Quilombo dos Palmares como personificação e síntese da luta dos negros”, levando-se em consideração “os mais de 300 anos de 1 escravidão em nosso País” e “500 anos de luta pela liberdade e contra o preconceito” . A retomada da defesa de Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança Bourbon e Orléans em papel de destaque para a liberdade dos escravos, em historiografia que retoma a importância da princesa no processo abolicionista tem como exemplo a obra de Eduardo Silva. Na “crise final da escravidão”, através de um “quilombo abolicionista”, se restaura a imagem da Princesa Isabel com um novo tipo de liderança do processo, “com documentação civil em dia e, principalmente, muito bem articulados politicamente. Não mais os poderosos guerreiros do modelo anterior, mas um tipo novo de liderança, uma espécie de instância de intermediação entre a comunidade 2 de fugitivos e a sociedade envolvente”. Para o historiador, o quilombo do Leblon, que tinha como idealizador o português José de Seixas Magalhães, “ajudava os fugitivos e os escondia na chácara do Leblon com a cumplicidade dos principais abolicionistas da capital do Império, muitos deles membros proeminentes da Confederação Abolicionista”, contando com “contava a proteção da própria Princesa Isabel”, a qual “também protegia fugitivos em Petrópolis”, pois “todo o esquema de promoção de fugas e alojamento de escravos foi montado pela própria Princesa Isabel”, participando do “ jogo político da 3 transição” . Aqui, não se trata de negar o abolicionismo, cujos interessados maiores eram os próprios escravos, em luta por sua liberdade muito antes do nascimento sejam de caifazes, sejam de liberais, seja da própria Princesa. O historiador Mário Maestri, em mais de uma obra, defendeu que “foi a abolição da escravatura, não a ação republicana que pôs fim à Monarquia”, através da “conjunção do movimento abolicionistra radicalizado com as massas servis”m caracterizando a abolição como uma 4 Revolução . Muito antes da Princesa Isabel ter retomado seu papel ativo na abolição, ao menos em parte da historiografia, nossa “ciência social” defendeu outros protagonistas que saíam da seara individual: os interesses imperialistas ingleses pelo fim do tráfico com a intenção de ex-escravos tornarem-se consumidores de suas mercadorias “made in England”; os “progressistas” fazendeiros do Oeste Paulista, incentivadores da mão de obra imigrante, especialmente a italiana. Na primeira assertiva, Nelson Werneck Sodré chegou a destacar que “uma das condições que influíram no nascimento e no desenvolvimento da burguesia brasileira – a condição essencial – foi o aparecimento do imperialismo”. Assim, para o historiador, “desde a abertura dos portos, com o fim do regime do monopólio comercial, a economia brasileira estava integrada na economia mundial e o mercado interno estava, a partir de então, ligado ao mercado externo”, gerando efeitos no Brasil, a medida que o século XIX avançava: “na sua primeira metade, dependentes da economia inglesa, éramos *

Professor Associado do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP. 1 Esta hipótese já foi desenvolvida em KONRAD, Diorge Alceno. Na senzala a resistência, no quilombo a liberdade: a obra de Clóvis Moura. In. QUEVEDO, Júlio; DUTRA, Marua Rita Py (orgs.). Nas trilhas da negritude: consciência e afirmação. Discutindo a Lei 10.639/3. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2007, p. 116. 2 Ver: SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/o-z/FCRB_EduardoSilva_Camelias_Leblon _abolicao_escravatura.pdf. Acesso em 15 set. 2013. 3 Idem. 4 Cf. Uma história do Rio Grande do Sul: República Velha. Vol. 3. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2001, p. 10.

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clientes de seus banqueiros; na segunda metade, não apenas isso, também área de aplicação de seus capitais”. Assim, Sodré desenvolverá a questão, demonstrando o fim da escravidão e a introdução da 5 imigração como parte deste processo de desenvolvimento capitalista no Brasil . Em relação ao protagonismo dos fazendeiros do Oeste Paulista, Antonio Carlos Galdino sintetizou em sua tese de doutorado as principais defesas presentes na historiografia, em passagem de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, desenvolvida pelo artigo “O movimento republicano de Itu: os fazendeiros do Oeste Paulista e os pródromos do movimento republicano” de Emília Viotti da Costa (Revista de História, n. 20, 1954), bem como “a significativa produção historiográfica e sociológica nas décadas de 1960 e 70, que consagrou ‘os fazendeiros do Oeste Paulista’ como um objeto de pesquisa autônomo em relação ao problema específico do republicanismo”, reforçando a tese da “suposta mentalidade mais progressista dos cafeicultores do Oeste Paulista em relação aos escravos e imigrantes europeus”, conduzindo, assim, “inúmeras pesquisas e debates”. Galdino elenca ainda, entre outros, na defesa desta tese, o artigo “Condições sociais da industrialização em São Paulo”, escrito por 6 Fernando Henrique Cardoso e publicado na Revista Brasiliense (n. 28, 1960) . A historiografia, mesmo que ainda oculte e a academia reforce esta obliteração, já sabe há tempos da obra de Clóvis Moura, falecido em 2003. Foi o historiador, sociólogo, jornalista e poeta, um dos que mais no ensinou sobre a relação entre a escravidão em nosso passado histórico e a relação 7 com o racismo contemporâneo . Em seu clássico e pioneiro Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, cuja primeira edição foi publicada em 1959, Clóvis Moura afirma que o quilombo foi a unidade básica de resistência do escravo, enquanto, o quilombola“era o elemento que, como sujeito do próprio regime escravocrata, negava-o material e socialmente, solapando o tipo de trabalho que existia e dinamizava a 8 estratificação social existente” . Sabemos que o fim da escravidão no Brasil perpetuou a dominação de uma classe dominante de maioria branca que se metamorfoseou de senhor de escravo para uma incipiente burguesia agrária, que transformou o trabalho assalariado, um avanço histórico, em novas formas de discriminação, colocando os descendentes de escravos nos salários mais baixos, quando tiveram acesso a ele, no desemprego, no subemprego. Esta é a herança mais perversa do "medo branco" (termo apropriadamente referendado 9 pela historiadora Célia Marinho de Azevedo ), em relação à maioria negra do Brasil, a fim de que esta não tivesse, com o fim da escravidão, a igualdade social, econômica, política e cultural. Em Rebeliões da Senzala Clóvis Moura afirma: “as revoltas dos escravos, como apresentamos neste livro, formaram um dos termos de antinomia dessa sociedade”. Ou seja, não há como entender a dominação do modo de produção escravista no Brasil sem estudar o seu antônimo, a resistência de classe perpetrada pelos próprios escravos. Para Moura, que alarga esse entendimento mais ainda, as revoltas não foram apenas um dos termos dessa antinomia. Pelo contrário, “foram um dos seus elementos mais dinâmicos, porque contribuíram para solapar as bases econômicas desse tipo de sociedade”, criando “as premissas para que, no seu lugar, surgisse outro tipo” de sociedade. Assim, completa o autor, “as lutas dos escravos, ao invés de consolidar, enfraqueceram aquele regime de 10 trabalho, fato que, aliado a outros fatores, levou o mesmo a ser substituído pelo trabalho livre” . Em Rebeliões de senzala, Clóvis Moura mostrou as diversas formas dessa resistência que, para o autor, vistas em seu conjunto, representaram a luta de classes fundamental para se entender a destruição da escravidão, fundamentalmente, pela ação histórica dos próprios escravos. Evidentemente, neste processo de luta contra a escravidão, a luta escrava, bem explica o autor, não se deu apenas pela resistência escrava, mas foi ela que dinamizou as outras formas e contradições que puseram fim ao modo de produção. Ao fazer a resistência, mesmo que inconscientemente, os escravos criavam as condições para a projeção de um novo modo de produção assentado em uma forma em que o trabalhador não era mais 5

Ver. SODRÉ, Nelson Werneck. História da burguesia brasileira. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 134 a 153, especialmente 134-135. 6 Galdino mostra que Emília Viotti reveria esta posição mais tarde, em Da senzala à Colônia, quando “passou a sustentar a existência de uma diferença entre os fazendeiros do Oeste paulista e do Vale do Paraíba em termos de comportamento e não de mentalidade, particularmente nos seus trabalhos sobre o tema da escravidão e a transição para o trabalho livre em São Paulo”. Ver: GALDINO, Antonio Carlos. Campinas, uma cidade republicana: política e eleições no Oeste Paulista (1870-1889). Tese de Doutorado. Campinas: IFCH-UNICAMP, p. 5-6. 7 As passagens a seguir encontram-se de forma ampliada em KONRAD, 2007, op. cit., p. 117, passim. 8 Estas considerações conclusivas não são apresentadas na primeira edição de Rebeliões de senzala, lançada peal Edições Zumbi, em 1959. Conferi-las em MOURA, Clóvis. Rebeliões de senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. 4 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 269 e 271. 9 Cf. AZEVEDO, Célia Marinho M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. 10 Grifos nossos. As considerações acima se encontram em MOURA, Clóvis, Rebeliões da Senzala. 4 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 269.

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sim uma simples mercadoria. Vendedor da sua força de trabalho em forma de trabalho assalariado. Dessa forma, continua Clóvis Moura, o escravo rebelde possibilitava os novos níveis de desajuste, pois, ao retardar o processo de produção, criava condições para o desenvolvimento de pólos intermediários que empurravam toda a sociedade para novas formas de convivência social, cultural e econômica. Somam-se a isso as contradições geradas pelas formas coloniais de produção e de intercâmbio da economia mundial, o que contribuía para acelerar a pressão internacional para o término de formas de produção colonial e escravista. Afinal, o mercado capitalista em expansão necessitava a ampliação do número de consumidores de seus produtos. Assim o quilombola não era um termo morto ou negativo, mas, fundamentalmente, ativo e dinâmico, influenciando também o movimento abolicionista em suas diversas matizes, a fim de que o Brasil transitasse da mão-de-obra escrava para a assalariada. É justamente esta a inovação central da obra de Clóvis Moura, em contraposição a uma historiografia tradicional que apenas apresenta o escravo como elemento positivo da sociedade escravista, no qual o escravo aceitou passivamente a sujeição que lhe era imposta pelos senhores de escravos. Para Moura, mesmo quando a resistência era passiva, ela contribuía, no geral, para a luta contra a própria escravidão. Para Clóvis Moura, esta resistência veio de várias formas: as formas passivas: a) o suicídio, a depressão psicológica (o banzo); b) o assassínio dos próprios filhos ou de outros elementos escravos; c) a fuga tradicional; d) a fuga coletiva; e e) a organização de quilombos longes das cidades; as formas ativas: 1) as revoltas cotidianas pela tomada do poder; 2) as guerrilhas nas matas e estradas; 3) a participação em movimentos não escravos; 4) a resistência armada dos quilombos às invasões 11 repressoras; e 5) a violência pessoal ou coletiva contra senhores ou feitores . Não se trata de, então, de desperceber a Princesa Isabel, os interesses do imperialismo inglês ou os fazendeiros do Oeste Paulista no fim da escravidão, muito menos do abolicionismo, mas entender o eixo principal do processo de lutas de classes antiescravista. Se os ex-escravos não se constituíram em poder político e governo após a abolição, este sim ainda é um problema a ser mais bem explicado pela historiografia. Mas negar seu protagonismo na luta antiescravista ainda tem sido a marca mais contundente de nossa historiografia, outro silenciamento dos vencidos, parafraseando o que já disse 12 Edgard de Decca há alguns anos em torno de outros projetos de revolução presentes em 1930 . A Resistência Também é Historiográfica Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado (Cálice – Chico Buarque)

Dissemos tudo isto até aqui, para compararmos com outro momento do processo histórico brasileiro, sem corrermos o risco do anacronismo: a resistência durante toda a Ditadura Civil-Militar no Brasil. Desde que o ditador Errnesto Geisel passou a ser “protagonista” da “distensão”, e outro ditador, João Baptista Figueiredo foi alçado como artífice da “abertura”, se reforça a ideia de “transição pelo alto” entre a Ditadura e a Democracia pós-1985 em nosso País. Isto é, o Golpe de 1964 instaurou a Ditadura e nossas classes dominantes e as Forças Armadas golpistas e os generais de plantão, quando lhes foi conveniente, “decidiram” terminar com o Terrorismo de Estado. Desta “transação política, resultou o governo da “Nova República” e de José Sarney (1985-1990), antigo líder no Congresso do Partido Democrático Social, o PDS, nascido com o DNA da ARENA. Assim, a resistência à Ditadura e o processo da luta de classes, nesta estratégia argumentativa, são deslocados da História, transformando em elementos principais outros “fatores” históricos que explicam o fim da Ditadura de Segurança Nacional. Assim, o “Regime Militar”, termo eufemístico cunhado pelos próprios ditadores, numa das vertentes argumentativas, vai ter os personagens de Geisel e Figueiredo, somando-se com a “eminência parda” Golbery do Couto e Silva e os “sorbonnistas”, como aqueles que decidiram realizar a transição, como se a História continuasse a ser a ação de indivíduos que tomam ou mudam de posição conforme os seus desejos políticos e individuais; na outra ponta, aparece a oposição consentida, nucleada no Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, transformado em Partido com a volta do pluripartidarismo restrito de 1980. Muitos dirão que resgatar a luta de classes e os conflitos sócio-políticos para entender a o fim da Ditadura Civil-Militar pós-1964 é uma “história militante”. Mesmo que ainda seja preferível, no caso deste 11

Idem, p. 273. Ver: DECCA, Edgar de. 1930: o silêncio dos vencidos. Memória, história e revolução. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1992 12

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artigo, uma “história militante”, não se trata, por obviedade de reforçar tal “reducionismo”. A “história vista de baixo” quando não percebe as formas de dominação e de poder, também oblitera o processo, sendo tão problemática quanto uma história de heróis ou uma construção histórica que dá ao “Estado” o papel de sujeito do processo, neste caso, transformando o aparato jurídico-político em personificação social, tal como sempre fez a historiografia de fundo liberal. Evidenciar os movimentos sociais e políticos que resistiram à Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985) é colocar em patamar diferente aquilo que já foi adiantado por Caio Navarro de Toledo, quando argumentou que o Golpe de 1964 foi um Golpe contra a incipiente democracia política brasileira, contra as reformas políticas e sociais em debate durante o Governo de João Goulart; contra a politização das organizações dos trabalhadores, camponeses e estudantes e contra o rico debate cultural e intelectual que vivia o país. Para levar adiante um golpe de direita contra as reformas de base e a democracia e uma ditadura das classes dominantes, e seus ideólogos, civis ou militares, como já disse o autor, foi preciso destruir as organizações políticas e reprimir os movimentos sociais de esquerda e 13 progressistas . Aqui, sem negar-se a priori, a complexidade da luta de classes durante a Ditadura, a qual evidencia as contradições mais profundas do processo de Golpe, da Ditadura em si e da “transição democrática”, dar prioridade ao tema da resistência é deslocar do eixo secundário para o eixo principal a explicação sobre nossos 21 anos de Terrorismo de Estado perpetrado pelas nossas classes dominantes em aliança com o capital estrangeiro e, sobremaneira, com os interesses norte-americanos em nosso País. Trata-se de dizer mais sobre Caparaó e as primeiras tentativas de resistência guerrilheira ao arbítrio; de entender o significado mais profundo do descontentamento da chamada classe média readicalizada que marcha na passeata dos Cem Mil, em 1968; de se aprofundar o significado da Guerrilha do Araguaia e da tática política do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no mais longevo movimento armado de resistência à Ditadura, bem como perceber a luta de outras organizações como a Ação Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o Partido Operário Comunista (POC), a VAL-PALMARES, o Comando de Libertação Nacional (Colina), a Ala Vermelha do PCdoB e tantas outras organizações da luta armada, bem como a resistência pacífica e institucional, seja do Partido Comunista Brasileiro (PCB), seja do MDB e, no final da Ditadura, no Partido dos Trabalhadores (PT), do Partido Democrático Trabalhista (PDT) ou do próprio PMDB, entre outros. A Ditadura Civil-Militar brasileira, sempre é bom reforçar, foi marcada pela Doutrina de Segurança Nacional e pelo Terrorismo de Estado, Suas marcas foram a “Operação Limpeza” contra os movimentos sociais camponeses e sindicais, sobretudo no imediato pós-Golpe, mas insuficiente para aplacar a resistência, necessitando-se do Ato Institucional nº 5 (AI-5) de 13 de dezembro de 1968, bem como dos aparelhos de terror como o Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), o Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), a Operação Bandeirantes (OBAN), o Serviço Nacional de Informações (SNI) e os Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), assim como a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), tudo coordenado pelo 14 Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN) . Este amplo aparato do Terrorismo de Estado resultou nas prisões, na tortura, na censura, no exílio, nos assassinatos e nos desaparecimentos, exemplificados pelo extermínio da Luta Armada e pela morte de muitos que não partilhavam desta estratégia, como Vladimir Herzog e Manuel Filho, ou pela Chacina da Lapa, em 1976, assim como os atentados terroristas que explodiram bancas de revista e que levaram a carta-bomba que vitimou a secretária da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Lydia Monteiro da Silva, além do enigmático atentado do Riocentro. Somou-se a isso a Operação Condor, mas todas elas ineficientes para impedir a crise da política econômica da Ditadura que levou ao fim do “milagre econômico”, assim como ao fim da censura; a crise política e a vitória do MDB em 1974; mas especialmente a volta dos movimentos sociais e políticos através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da luta pela moradia e pela terra (CONAM e MST), bem como a mobilização nas ruas de estudantes, das greves operárias do ABC e de tantas outras categorias de trabalhadores, todas elas no processo de luta Pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita, na Luta pela Constituinte Livre e Soberana e na 13

Ver: TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In. REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar. 40 anos depois (19642004). Bauru: Ed. da USC, 2004, p. 67-68; do mesmo autor, cf. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia”. In. Revista Brasileira de História. Dossiê Brasil: do ensaio ao golpe (1954-1964), v. 24, n. 47. São Paulo: ANPUHCNPQ, jan. a jun. de 2004, p. 13-28 14 Ver mais sobre isso em: FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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luta pelas “Diretas Já”. Se a historiografia não evidenciar tudo isso e a própria resistência, aí sim abrirá mão de entender as contradições mais profundas da Ditadura Pós-1964, não deixando, portanto, de fazer uma “história militante”. A Resistência contra a Ditadura Civil-Militar Brasileira (...) Cai o rei de Espadas Cai o rei de Ouros Cai o rei de Paus Cai, não fica nada. (A Cartomante - Ivan Lins)

A resistência a Ditadura já começou imediatamente após o Golpe e qualquer levantamento factual responde a isso. Se na conjuntura de início de 1964, quando o Governo João Goulart regulamentava a lei de remessa de lucros e realizava Comício da Central do Brasil , contraposto pela ação político-ideológica dos Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais-Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IPES-IBAD), pelas marchas da Família, com Deus, pela Liberdade e pelo próprio Golpe Civil-Militar de março, as lutas sociais e políticas já demonstravam o avanço da luta de classes no Brasil, não seria apenas o 31 de março que poria fim a elas, mesmo que a tentativa de uma nova rede de 15 legalidade, a exemplo de 1961, tenha sido derrotada . Em 9 de abril, foi Decretado o Ato Institucional, o qual conferiu ao presidente da República poderes discricionários para cassar mandatos eletivos e suspender direitos políticos. Um dia depois, a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que seria declarada extinta em outubro, foi simbolicamente incendiada por defensores da Ditadura. Em 9 de novembro, por sua vez, foi sancionada a Lei n. 4.464 (Lei Suplicy) proibindo atividades políticas estudantis. De imediato, a resistência dos estudantes se iniciou, com a UNE e as Uniões Estaduais passando a atuar na clandestinidade. Ainda em dezembro de 1964, Nara Leão, Zé Keti e João do Vale denunciavam no show Opinião o aumento da escalada de arbítrio, somando-se a líderes partidários e dos movimentos sociais e políticos, os mais perseguidos nos meses que se seguiram ao Golpe. 1965 iniciou com os Ato Institucional número 2, extinguindo os partidos existentes e conferindo ao Ditador de plantão, naquele momento Castelo Branco, poderes para cassar mandatos eletivos e suspender direitos políticos, e número 3, estabelecendo eleição indireta para governadores e terminou, em outubro, com o decreto de recesso do Congresso Nacional, ainda em outubro. Mas, as manifestações e o início da guerrilha anunciava o que os ditadores iriam enfrentar. Ainda em março, enquanto Castelo Branco era vaiado em aula inaugural na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), protestos anti-ditadura ocorriam na Universidade de Brasília (UnB) e no Fundão, também no Rio de Janeiro, somando-se a tentativa guerrilheira comandada pelo coronel Jeferson Cardim, quando 23 16 homens tomaram a cidade de Três Passos, no Rio Grande do Sul . No ano seguinte, a Ditadura passou a perseguir alguns de seus apoiadores de 1964. Em junho, Ademar de Barros foi afastado do governo de São Paulo e cassado, ao mesmo tempo em que o MDB decidiu não apoiar a "eleição presidencial indireta", ação que colocava por terra a esperada eleição de 1966 que, segundo a esperança de alguns, devolveria o poder aos civis. Da eleição indireta, em outubro, saiu o Ditador Costa e Silva, somando-se com a cassação dos mandatos de vários deputados federais mais um recesso do Congresso. A resposta, no mesmo mês, foi o lançamento da Frente Ampla, antiditadura, unindo João Goulart, Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, estes dois últimos, defensores do Golpe de 1964. Antes disso, ocorrera o 28º Congresso da UNE, já o segundo na ilegalidade, num convento em Belo Horizonte e o protesto nacional estudantil se setembro, o que fez a UNE eleger o dia 22 como o Dia Nacional de Luta contra a Ditadura. Como resultado, a polícia invadiu a Faculdade de Medicina da UFRJ e expulsou os estudantes com extrema violência, no episódio conhecido como o Massacre da Praia Vermelha. Em 1967, quando foi outorgada a Constituição da Ditadura e sancionada a lei de censura da imprensa e a nova Lei de Segurança Nacional (LSN), logo jornalistas e artistas passaram a denunciar o aumento do controle e da repressão, tanto que, em novembro, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), apoiadora do Golpe de 1964, condenou as prisões de clérigos que se opunham à 15

Em relação ao Rio Grande do Sul, no processo histórico de 1961 a 1964, abordando a luta de classes entre a Legalidade e o Golpe, ver: KONRAD, Diorge Alceno; LAMEIRA, Rafael Fantinel. Campanha da Legalidade, luta de classes e Golpe de Estado no Rio Grande do Sul (1961-1964). In. Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/23249/18242. 16 Sobre a tomada de Três Passos e a ação comandada por Cardim, consultar: SILVA, José Wilson da. O tenente vermelho. 3 ed. Porto Alegre, Tchê, 1987.

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Ditadura e que se manifestaram contra a repressão ainda em agosto. Um ano depois, a Ditadura, não conseguindo impedir a resistência e os protestos, começa a construir o Golpe dentro do Golpe. Ainda em abril, foi extinta a Frente Ampla e 68 municípios são enquadrados como territórios de segurança nacional. Em 21 de junho, no Rio de Janeiro, a repressão desencadeia a “Sexta-Feira Sangrenta’, quando a Polícia Militar reprimiu a passeata por mais verbas no Rio. Depois de várias horas de luta de rua, o saldo foram 28 mortos. Além disso, a atitude do Terrorismo de Estado estimular os grupos para-militares, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) que, em São Paulo, depredou o teatro onde era apresentada a peça Roda Viva, de Chico Buarque, agredindo diversos artistas. Somou-se a isso, em julho, o atentado a bomba contra a sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), bem como, a bomba na livraria Civilização Brasileira, engajada na oposição, em setembro, o atentado, em Recife, à casa de D. Helder Câmara, vitimando seu secretário e a bomba no Teatro Opinião, Rio de Janeiro, em dezembro. Como reação a repressão, em 1968, estudantes ampliaram seus espaços de manifestação pública. Ainda em março, quando o secundarista Édson Luís de Lima Souto foi morto pela Polícia Militar no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, 50 mil pessoas compareceram ao enterro, enquanto a UNE decretou greve geral. O resultado foram os protestos estudantis por todo o País, momento em que a repressão matou mais três, no Rio e em Goiânia. O 4º aniversário do Golpe resulta em 30 feridos, quando o Exército ocupou o Centro do Rio, já no início de abril. No dia seguinte à “Sexta-Feira Sangrenta”, intelectuais fizeram passeata de protesto, estimulando para que, no dia 26, ocorresse a Passeata dos 100 mil, a maior manifestação de rua até então contra a Ditadura. Em 4 de junho, nova passeata estudantil reuniu 30 mil no Rio de Janeiro. Como resposta, o general Eurico Garrastazu Médici, então chefe do SNI, sugeriu um novo Ato Institucional para aumentar a repressão. Ainda, em 19 de julho, a 9ª assembléia da CNBB condenou a falta de liberdade no Brasil. Em São Paulo, em 2 de outubro, ocorreu a Batalha da Maria Antonia, confronto entre alunos da Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e grupos de extrema-direita e armados da Universidade Mackenzie, ocasião em que o secundarista José Guimarães foi morto pela Polícia Militar. A luta estudantil de 1968 ainda culminaria com o Congresso da UNE de Ibiúna, no interior de São Paulo, quando cerca de 1.240 estudantes de todo o País foram presos, quando participavam do 30º Congresso da clandestina entidade. Depois da prisão, aumentaram os protestos por todo o Brasil, com a palavra-deordem "A UNE somos nós, nossa força, nossa voz!", com passeatas estudantis em diversas cidades. As manifestações de rua de 1968 também foram a senha para novas greves operárias. Em 16 de abril, 15 mil metalúrgicos de Contagem, em Minas Gerais, iniciam a greve por aumento de 10% nos salários. Três meses depois, em 17 de julho, a greve atingirá metalúrgicas de Osasco, em São Paulo, com ocupação da Cobrasma, quando os operários deixam a fábrica sob a mira de metralhadoras do Exército. Neste meio tempo, no Primeiro de Maio, em São Paulo, trabalhadores jogaram pedras no governador e apoiador da Ditadura, Abreu Sodré, tomando o palanque da Praça da Sé e fazem um dos protesto mais simbólicos contra a Ditadura. Depois das greves operárias de Minas Gerais e São Paulo, em outubro, ocorreu a Greve do Cabo, em Pernambuco, com cerca de 10 mil canavieiros parados. A Ditadura de Segurança Nacional não poderia tolerar tanta resistência ao seu projeto. O pretexto para maior fechamento da Ditadura (ainda em novembro, no dia 22, o governo criou o Conselho Superior de Censura), que não continha as manifestações de rua veio com o discurso antimilitarista do deputado do MDB, Márcio Moreira Alves, contra a invasão recém ocorrida da UnB. No dia 13 de dezembro, a Câmara dos Deputados rejeitou por 216 votos a 141 o pedido de licença para processar o deputado. O AI-5 será decretado neste mesmo dia, com nova onda de cassação de mandatos e ampliação da censura. Como resultado imediato, no dia 22, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros músicos são presos na Boate Sucata, Rio de Janeiro, enquanto no dia 30, saía a primeira lista de 17 cassações, encabeçada por Márcio Moreira Alves. Findava o ano que não terminou . Mas não bastava o AI-5. Em 1969, o Ato Institucional nº 10, por exemplo, imporá aposentadoria para professores universitários por todo o Brasil, enquanto o AI-14 estabeleceu a pena de morte e o Decreto-Lei n. 898 fixou o "inimigo interno" como alvo da "Segurança nacional". Não bastasse isso, a Ditadura cassou mais trinta e três mandatos de deputados, suspendeu as eleições (no AI-7, ainda durante o Governo do Ditador Costa e Silva), estabeleceu a censura prévia de livros e revistas pelo decreto-lei n. 1.077, em 1970, bem como a edição dos “decretos reservados”, a partir de novembro de 1971. O AI-5, assim, abriu guarida para a criação do CIE e do CISA, em 20 de maio, e a criação da OBAN, também o gérmen da consolidação do Terrorismo de Estado do “sistema CODI-DOI”, o qual se consolidará com o decreto n. 68.447 , de 30 de março de 1971, o qual reorganizou o CENIMAR. Somouse a isso a inauguração da Escola Nacional de informações, já em 1972, bem como a Lei 5.786, que tornou mais repressiva a Lei de Segurança Nacional, decretada em 27 de junho de 1972. O golpe dentro do golpe era a senha também para o auge da Ditadura Civil-Militar no Brasil, 17

Sobre 1968 como o ano que não terminou, ver: VENTURA, Zuenir. 1968 - O ano que não terminou. 14 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

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simbolizada pela posse do ditador Emílio Garrastazu Médici, em 30 de outubro de 1970. Com Médici na linha de frente, a repressão esmagará a guerrilha urbana e iniciará o combate à Guerrilha do Araguaia, comandado pelo PC do B, terminando com os últimos focos de resistência apenas em 1975, já no Governo do Ditador Ernesto Geisel, mesmo que, em dezembro de 1973, a Ditadura já tivesse obtido a sua maior vitória, desarticulando a coluna vertebral dos três destacamento de resistência do maior movimento de resistência armada. O AI-5 não veio sem resistência e ela foi intensa, especialmente pelas diversas estratégias de luta armada. Pouco mais de um mês depois da sua decretação, Carlos Lamarca, capitão do Exército, e mais três militares levaram para a guerrilha da VPR um caminhão de armas, do quartel de Quitaúna, em São Paulo, seguida da primeira ação armada de Lamarca na VPR, com a expropriação de duas agências bancárias em, também em São Paulo, em 9 de maio de 1969. A ação da VPR será seguida, em 15 de agosto de 1969, através da reação da ALN, com a tomada da Rádio Nacional, em São Paulo, e a leitura do manifesto contra a Ditadura. A resistência armada à Ditadura, nos meses seguintes à decretação do AI-5 não arrefeceu. Em 18 de abril de 1970, cinco mil soldados realizam ação no Vale do 18 Ribeira, em São Paulo, contra o foco guerrilheiro dirigido pela VPR e por Carlos Lamarca . Numa ação ousada, os guerrilheiros romperam o cerco de vinte dias, seguindo em direção à capital. Menos de um mês depois, um comando do MR-8 e da ALN sequestrou o embaixador norteamericano Charles Elbrick, sendo trocado por quinze presos políticos, com repercussão intensa e internacional. Somaram-se a eles, em 1970, os sequestros do cônsul japonês Nobuo Okushi (trocado por cinco presos políticos), do embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben (trocado por quarenta presos políticos) e do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher (trocado por setenta presos políticos). A reação da Ditadura será imediata, antes de terminar setembro, a OBAN captura e assina na tortura Virgílio Gomes da Silva, o “Jonas” da ALN, um dos comandantes militares do sequestro de Elbrick. Alguns dias depois, em 4 de novembro, Carlos Marighela, dirigente da ALN foi executado pela ação do delegado Sérgio Fleury, na alameda Casa Branca, em São Paulo. A Ditadura não poupará esforços para derrotar a resistência armada e, em 16 de janeiro de 1970, nas dependências do DOICODI do Rio de Janeiro, trucida com empalamento o jornalista e dirigente comunista do PCBR, Mário Alves. Uma semana depois será preso Joaquim Câmara Ferreira, novo comandante da ALN. Em um sítio clandestino, comandado pelo delegado Fleury, depois de intensa tortura, morreu no mesmo dia. Ainda no final de 1970, Eduardo Leite, o Bacuri, da ALN, também é executado pela equipe de Fleury, tendo as 19 orelhas decepadas, os olhos vazados e os dentes arrancados na tortura . A ação para a eliminação física dos seus oponentes não tinha limites: em 20 de janeiro de 1971, o deputado cassado Rubens Paiva foi sequestrado e desaparecido no Rio de Janeiro, depois de passar pelo DOI-CODI. A resposta da resistência também será dada. Em 15 de abril de 1971, foi executado, em São Paulo, o presidente da ULTRAGÁS, Albert Boilesen, financiador da tortura na OBAN, com o costume de 20 assistir as próprias sessões de tortura . A execução de Boilesen foi uma resposta ao assassinato do operário Devanir José de Carvalho, então ex-militante da Ala Vermelha do PCdoB e dirigente do MRT, ocorrido em 7 de abril de 1971, depois de ser metralhado e imobilizado dois dias antes na rua Cruzeiro, no bairro Tremembé, em São Paulo, e levado para o DEOPS e torturado pessoalmente pelo delegado Fleury e sua equipe. A execução de Boilesen fará com que a Ditadura não dê trégua a perseguição, prisões, torturas, mortes e desaparecimentos. Em 14 de maio de 1971, foi preso Stuart Angel, jovem militante do MR-8, assassinado exatamente quatro meses depois de intensas torturas no CISA, na base aérea do aeroporto 21 do Galeão, no Rio de Janeiro . As ações de um oficial do Exército na resistência armada à Ditadura eram intoleráveis. Assim, 17 de setembro de 1971, após perseguição intensa, a Ditadura executará, em Ipupiara, no sertão baiano, Carlos Lamarca, juntamente com o operário José Campos Barreto, o Zequinha, ambos já militando no MR-8. O recrudescimento da repressão à luta armada também terá consequenecias nos grupos guerrilheiros. Se ainda em janeiro de 1969, logo após o AI-5, a direção do PCdoB elaborará o

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A VPR será destroçada definitivamente em 05 de janeiro de 1973, com o Massacre da Chácara São Bento, quando a equipe do delegado Fleury ataca a organização em Paulista, Pernambuco, com o auxílio do agente infiltrado cabo Anselmo. 19 A ALN será derrotada aos poucos pela repressão, culminando, entre outros: com a execução de do estudante de Geologia da USP, Alexandre Vanuchi Leme, morto em 17 de março de 1973, após 24 horas de torturas no DOI-CODI de São Paulo; assassinato de Ronaldo Mouthr Queiroz, também em São Paulo, em 6 de abril do mesmo ano; eliminação, sob torturas, no DOI-CODI paulista, Luís José da Cunha, em 13 de julho; assassinato de Helber Gomes Goulart, em 18 de julho de 1973. 20 Sobre este momento histórico da Ditadura, recomenda-se o filme Cidadão Boilesen, dirigido por Chaim Litewski. Brasil, 2009, 92’. 21 Sobre a trajetória de Stuart Angel, bem como a busca de sua mãe pelo corpo do filho, resultando no assassinato de sua progenitora, ver o filme Zuzu Angel, dirigido por Sérgio Rezende. Brasil, 2006, 110’

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documento “Guerra Popular, caminho da luta armada no Brasil” , definindo a sua tática de resistência armada contra a Ditadura, estabelecendo o movimento rural armado de resistência, pois o Partido já concentrava parte de sua militância há cerca de três anos, no Bico do Papagaio, região entre os estados de Maranhão, Pará e atual Tocantins. Como resposta do Terrorismo de Estado, ainda 12 de abril de 1972, cerca de cinco mil soldados do Exército, Aeronáutica e Polícia Militar atacaram moradores do sul do Pará, local da área da base guerrilheira, levando os militantes do PCdoB à resistência em armadas, começa a Guerrilha do Araguaia, a qual enfrentará a ditadura por mais de três anos. Como resultado, três meses depois, foi presa e 23 executada pelo Exército, com uma bala na cabeça, aos 22 anos, a militante Maria Lúcia Petit . O PCdoB também será atacado nas cidades: em 25 de dezembro de 1972, o dirigente partidário e ex-deputado estadual Lincoln Cordeiro Oest, preso cinco dias antes pelo DOI-CODI, foi executado no Rio de Janeiro; para não ficar atrás, em 31 de dezembro, após quatro dias de tortura, no o DOI-CODI de São Paulo assassina Carlos Danieli. O objetivo óbvio da repressão era desarticular as ligações do Partido com a base guerrilheira no Araguaia. Em 1973, com o aprofundamento da crise do “Milagre Econômico”, resultando em rearticulação social da Igreja Católica, através da organização das CEBs em oposição à Ditadura e aumento da ação da oposição consentida, através do MDB, ainda o Terrorismo de Estado fará a ação mais intensa para derrotar a Guerrilha do Araguaia. Após duas expedições fracassadas em dois anos de ação na região, em sete de outubro, o Exército iniciou a terceira e última campanha contra a Guerrilha do Araguaia, com o lema “sem uniformes e sem prisioneiros”. A repressão terá seu momento culminante no natal desse 24 mesmo ano, quando os três destacamentos guerrilheiros foram desarticulados . Dois anos depois, em Primeiro de janeiro de 1975, reconhecendo a derrota no Araguaia, o Comitê Central do PCdoB aprovará a “Mensagem aos Brasileiros”, propondo a Constituinte livremente eleita, a abolição de todos os atos e leis de exceção e a Anistia geral. A estratégia principal na luta contra a Ditadura mudará para a ação 25 institucional . As torturas, praticadas no Brasil desde os primeiros dias do Golpe e negadas pela Ditadura começam a repercutir em nível internacional. Em 21 de junho de 1970, o Brasil ganha o tricampeonato de futebol no Méxixo, revertendo em propaganda política e ideológica para Médici e as marcas de “Brasil: ame ou deixe-o” e “Ninguém segura esta Nação!”, mas, um mês depois, a Comissão Internacional de Juristas, em Genebra, denunciou para a Organização dos Estados Americanos (OEA), as torturas praticadas no Brasil. As denúncias de tortura, que naquele momento já eram feitas pela Anistia Internacional, serão fundamentais para que a CNBB começasse a sua crítica à Ditadura que apoiava até então. Em 13 de fevereiro de 1971, Dom Aloísio Lorsheider e Dom Ivo Lorsheiter foram eleitos presidente e secretário-geral da CNBB, colocando uma ala francamente progressista na direção da maior entidade dos católicos do Brasil. Como resultado político maior da crise econômica, em 1974, ocorreu a vitória do MDB nas eleições, tendo como resposta da Ditadura a chamada “Distensão”, já no governo do Ditador Ernesto Geisel. Porém, a distensão na acaba com a repressão. 18 de março, Davi Capistrano, dirigente do PCB foi morto sob tortura. Em 26 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nas dependências do II Exército, em São Paulo, desencadeando ampla mobilização social na missa de sétimo dia, reunindo cerca de oito mil pessoas e resultando no rompimento da censura da imprensa. Somou-se a isto, 19 de agosto de 1975, o lançamento de bombas pela Aliança Anticomunista Brasileira (AAB) na OAB e ABI do Rio de Janeiro, e no Centro de Estudos Brasileiros (CEBRAP), em São Paulo. Não satisfeita, a Ditadura ainda eliminará o operário Manuel Fiel Filho, no mesmo local, em 17 de janeiro do ano seguinte, enquanto no Massacre da Lapa, ação coordenada pelo II Exército de São Paulo, são fuzilados integrantes do Comitê Central do PCdoB, como Pedro Pomar e Ângelo Arroio, em 16 de dezembro, depois matando na prisão João Batista Drumond, bem como a posterior prisão e tortura de 22

Este documento será reforçado por outro, “Proclamação da União pela Liberdade e Pelos Direitos do Povo”, distribuído para a população camponesa da região. 23 Em 1996, Maria Lúcia será a primeira guerrilheirado Araguaia a ter seu corpo identificado. Jaime e Lúcio Petir, seus irmãos, também foram mortos na Guerrilha. 24 Nessa ação e nos meses seguintes, são presos e posteriormente executados os seguintes guerrilheiros oriundos do Rio Grande do Sul: o estudante Cilon Cunha Brum, Simão ou Comprido, nascido em São Sepé; o operário José Humberto Bronca, o Zeca Fogoió, nascido em Porto Alegre; Paulo Mendes Rodrigues o Paulo, nascido em Cruz Alta. João Carlos Haas Sobrinho, o Juca, nascido em São Leopoldo, comandante médico-militar havia sido morto em combate, em 30 de setembro de 1972 e também se encontra como desaparecido político até hoje. Sobre os gaúchos no Araguaia, ver: SOUZA, Deusa Maria de Caminhos cruzados: trajetória e desaparecimento de quatro guerrilheiros gaúchos no Araguaia. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: UNISINOS, 2006. Da mesma autora, cf. Lágrimas e lutas: a reconstrução do mundo de familiares de desaparecidos políticos do Araguaia. Tese de Doutorado. Florianópolis: UFSC, 2011. 25 Três meses depois, no aniversário do Golpe de 1964, o ditador Geisel fará a primeira referência pública à Guerrilha do Araguaia.

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Elza Monnerat, Haroldo Lima, Aldo Arantes, Joaquim de Lima e Maria Trindade, a caseira da Lapa, . O Ditador Geisel ainda terá no currículo de seu governo o recesso do Congresso Nacional, em Primeiro de abril de 1977, somando-se com a edição do “pacote de abril”. Nada isso impedirá a continuidade da resistência à Ditadura, mesmo que por outras formas que não a luta armada, haja vista a derrota histórica e final desta, já em 1975. Em 7 de julho de 1975, aparece o semanário Movimento (O Pasquim já vinha fazendo sua crítica política à Ditadura desde 27 1969 ), desde o início sofrendo forte censura, por defender as lutas democráticas, antiimperialistas e populares, sobretudo por abordar temas como a Constituinte e a dívida externa. Em 9 de janeiro de 1977, o 4º Congresso Brasileiro de Magistrados fará apelo pró-Estado de direito, enquanto que em 8 de fevereiro do mesmo ano, a 15ª assembléia da CNBB divulgará texto crítico à Ditadura. Em 28 de abril será a vez da assembléia geral da ABI pedir anistia geral. A conjuntura destas mobilizações e os atos repressivos do ditador Ernesto Geisel estimularão a retomada dos movimentos sociais e o retorno dos mesmos às ruas. Em 19 de maio de 1977, no dia nacional de luta estudantil pela Anistia, as punições cotidianas na UNB, deflagram uma greve estudantil. Pouco depois, 4 de junho, quando a repressão desencadeou-se sobre o 3º Encontro Nacional dos Estudantes, em Belo Horizonte, Minas Gerias, prendendo oitocentos, jornalistas da ABI assinaram por liberdade de informação, crítica e opinião. No mês seguinte, o 29º Congresso da Sociedade Brasileira da Proteção à Ciência (SBPC), também se manifestará contra a repressão aos estudantes, pois a Polícia Militar de Brasília havia prendido duzentos estudantes na UnB. A repressão em Brasília estimulará a greve dos estudantes da USP, no início de agosto, enquanto Goffredo da Silva Teles, professor de direito da mesma Universidade, lerá a “Carta aos Brasileiros”, clamando pelo estado de direito e defendendo a Constituinte. Em 20 de setembro, a Polícia Militar de São Paulo, comandada pelo coronel Erasmo Dais, bloqueou o campus da USP para impedir o 3º Encontro Nacional dos Estudantes e, dois dias depois, invadiu a PUC-SP, prendendo oitocentos estudantes e queimando gravemente duas universitárias, levantando o protesto do cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Depois disso, não há mais como segurar boa parte dos estudantes brasileiros na resistência: ainda em 23 de agosto, acontecerá o Dia Nacional de Luta dos mesmos contra a Ditadura. Ainda em setembro, como resultado, a Convenção extraordinária do MDB defenderá a Constituinte Ampla e a Anistia. Em 1978, que iniciou com 1º Congresso da Mulher Metalúrgica de São Bernardo, em 12 de março, na Assembléia popular de sete mil pessoas, foi criada em São Paulo, o Movimento do Custo de Vida, chamado depois de Movimento Contra a Carestia, um marco dos movimentos sociais urbanos e 28 populares na resistência à Ditadura . O País verá o auge do movimento pela Anistia iniciado ainda em 29 1975 , o que também estimulará os operários e o movimento sindical retornar as greves, pois o arrocho salarial imposto aos trabalhadores desde 1973, bem como um período de aumento rápido da inflação, acarretará em greves econômico-políticas. Em 12 de maio, explode a greve de mil e seiscentos operários da Saab-Scania, em São Bernardo do Campo, por aumento de 20% nos salários. Quatro dias depois a greve chega à Volkswagen do ABC Paulista, a maior fábrica do país, com 46 mil operários, fazendo o Tribunal Regional do Trabalho declará-las ilegais. O efeito será contrário: elas se alastrarão até a capital do estado. Depois de quase um mês de luta sindical, várias empresas do ABC darão a seus empregados aumentos de 5 a 15%. Em junho de 1978, no dia 7, em São Paulo foi fundado em São Paulo, o Movimento Negro 30 Unificado (MNU), um marcos do Movimento Negro em resistência à Ditadura . Quatro dias depois, as greves que atingiam até então o sindicalismo privado, chegará nos Hospital das Clínicas de São Paulo, paralisando sete mil trabalhadores da área da saúde. Em agosto, os professores estaduais de São 26

Também ainda não estão esclarecidas estão as razões das mortes de dois dos líderes da Frente Ampla, todas ocorridas em momentos próximos, entre 1975 e 1976: Juscelino Kubitschek morreu em acidente de carro, na via Dutra, em circunstâncias misteriosas, em 22 de agosto do ano seguinte. Seu sepultamento terá uma silenciosa manifestação contra a Ditadura, com presença de cerca de trinta mil presentes; em 6 de dezembro do mesmo ano, morreu de ataque cardíaco, na Argentina, João Goulart, o único Ex-Presidente a morrer no exílio em nossa História. O enterro em São Borja, também terá trinta mil presentes. Ambos os casos são investigados sob a suspeita de fazerem parte da Operação Condor. 27 Outro semanário importante foi Opinião, que, censurado pela Ditadura, deixou de circular em 23 de abril de 1977. 28 Em 27 de agosto de 1978, o Movimento do Custo de Vida reunirádez mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, após coletar 1,3 milhão de assinaturas. O protesto resultará em intensa repressão na capital. 29 Em 2 de novembro, ocorreu o Congresso pela Anistia, em São Paulo, resultando no Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). Rapidamente, formam-se CBAs na maioria dos estados, organizados por bairros, escolas e categorias profissionais, transformando a Luta pela Anistia em campanha nacional. 30 Como resultado, em 20 de novembro, o Movimento Negro elegerá a data da morte de Zumbi dos Palmares, como Dia Nacional da Consciência Negra. Para o Movimento, o 13 de Maio e a Princesa Isabel não serão mais datas simbólicas de sua redenção.

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Paulo, iniciarão vinte e três dias de greve, a primeira após 1964, enquanto em setembro, no dia primeiro, será a vez dos bancários de São Paulo, com sua primeira greve geral desde o Golpe. A Ditadura tenta impedir as greves através da Portaria nº 3.337, visando proibir as articulações intersindicais e a Lei Antigreve de três de outubro, mas no dia, quando o industrial Cássio Scatena, ex-integrante do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), assassinou o operário Nélson de Jesus, na indústria Alfa, em São Paulo, por reclamar do salário, a fábrica iniciou outra greve, agora de protesto. A mudança da “distensão’ de Geisel para a “abertura” de Figueiredo, que tomará posse em 15 de março de 1979, não resultará em doações democráticas do ditador. Pelo contrário: a pressão do CBA e das centenas de comitês pelo Brasil afora, além dos comitês de exilados, é que levará ao decreto da Anistia, em 28 de agosto. A pressão pela volta à democracia resultará no decreto que porá fim ao bipartidarismo, ainda que a Ditadura impeça a legalidade dos partidos comunistas, como o PCdoB e o PCB. Muito menos a Ditadura de Figueiredo deixará de lado a repressão, sendo enigmática a frase do Ditador: “Quem for contra a Abertura, eu prendo e arrebento!”. Em 27 de agosto de 1980, uma cartabomba explodirá na sede da OAB, no Rio de Janeiro, matando a secretária Lydia Monteiro. Desde o início daquele ano, diversas bombas explodiram no País, sobretudo atingindo bancas que vendiam jornais e revistas de oposição. Os grupos terroristas e paramilitares de direita, sem ação efetiva contra eles por parte da Ditadura, agiam aberta e/ou clandestinamente contra a redemocratização. Em 1981, em 30 de abril, integrantes do DOI-CODI do I Exército explodiram acidentalmente a bomba dentro do automóvel, antes do planejado atentado para o show de música alusivo ao Primeiro de Maio, no Rio Centro, no Rio de Janeiro. A “armação” da Ditadura para responsabilizar a esquerda logo se mostrou como um grande farsa. Depois disso, a Ditadura tratou de buscar apenas a eleição de seus candidatos, 31 como nas eleições para governadores, em 1982 , bem como impedir as Diretas para Presidente, respondendo aos movimentos políticos iniciados em 1983. Como resposta, a Emenda das “Diretas Já” foi derrotada no Congresso, um ano depois, em 25 de abril. A vitória das eleições indiretas, em 1984, entretanto, não impediu a derrota da Ditadura e o término dos vinte e um anos de terrorismo de Estado no Brasil. E isto é o mais significativo naquele processo histórico de resistência, iniciado ainda nos primeiros dias de 1964. E coube papel decisivo nesse processo ao protagonismo dos movimentos sociais e políticos de oposição que foram se construindo ao longo dos anos, os quais se ampliaram na fase final da Ditadura, especialmente a partir de 1979. Foi naquele ano, com a ampliação das greves, de diversos tipos e categorias, que uma boa parte dos brasileiros reencontrou o caminho para a reivindicação de direitos e de ampliação das mobilizações. Com quase cem participantes, entre o Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Fortaleza, a greve de fome de presos políticos contra a Anistia limitada, iniciada em 22 de julho de 1979, durou 23 dias e resultou na condenação da OAB ao projeto de anistia do ditador Figueiredo. Foi a senha para que, em 14 de agosto, vinte mil fossem às ruas no Rio pela anistia ampla, geral e irrestrita, mas ainda mobilização insuficiente para a Anistia ampla, geral e irrestrita. Ainda em agosto, Figueiredo sancionou a Anistia, parcial, limitada e recíproca, uma conquista importante, mas limitada, haja vista que colocou no mesmo pacote a isenção dos ditadores, torturadores e do Estado brasileiro em relação aos crimes praticados até então. De qualquer forma, parte dos presos políticos conquistou a liberdade, enquanto os exilados voltaram para o País e a militância clandestina retornou à atuação política legal. Finalmente, João Amazonas, Luiz Carlos Prestes, Leonel Brizola, Miguel Arraes e tantos outros poderão continuar sua luta oposicionista em território nacional. A luta política pela anistia tinha correspondência nas lutas econômicas contra a Ditadura, pois os trabalhadores foram os principais responsáveis para pagar a conta da política econômica, mais ainda com a crise decorrente, sobretudo a partir de 1973. Em 30 de julho de 1979, a greve de oitenta mil operários da construção civil de Belo Horizonte, resultou em um morto e cinquenta feridos. Uma semana depois, os professores estaduais da Bahia também pararam o trabalho, sendo seguidos, depois de mais sete dias pelos bancários de Belo Horizonte, MG e pela greve nos canaviais de Pernambuco, em 2 de setembro, a primeira da categoria em onze anos. No meio delas, ocorreu, em 31 de agosto, o 1º Congresso da Mulher Metalúrgica de São Paulo. A ampliação dos movimentos grevistas vai se transformando rapidamente em greves políticas contra a Ditadura, pois era assim que a Ditadura tratava os diversos movimentos. E os trabalhadores não poderiam ficar restritos à compreensão de que faziam apenas greves econômicas: não havia mais como derrotar a política econômica da Ditadura de Segurança Nacional no Brasil, sem derrotar a própria Ditadura. Em finais de outubro 1979, a greve dos metalúrgicos de Belo Horizonte, de Contagem e de Betim, em Minas Gerais será seguida pela parede dos metalúrgicos de São Paulo e Guarulhos, 31

Nas eleições de 15 de novembro de 1982, a oposição, em conjunto, conquista a maioria na Câmara dos deputados, mesmo que não tenha conseguido eleger a maioria dos governadores, excetuando-se alguns estados de oposição, como o Rio de Janeiro, que elegerá 15/11 - A oposição, em conjunto, conquista maioria na Câmara dos deputados Leonel Brizola.

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declarada ilegal pelo governo Figueiredo. A repressão não cedia e, em um piquete na metalúrgica Sylvania, em São Paulo, a Polícia Militar matou a tiros o líder operário católico Santo Dias da Silva, resultando em um protesto de mais de 10 mil no enterro. Ainda em setembro, a greve metalúrgica atinge nove cidades do Rio de Janeiro. Cada vez mais mobilizada, os metalúrgicos de várias partes do País continuarão fazendo greves, como em outubro, na greve metalúrgica da Belgo-Mineira e na greve de doze mil, na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, no Rio de Janeiro. No final de 1979, outra categoria que volta ativa às greves foi a dos bancários. Em 5 de setembro, os bancos de Porto Alegre são fechados pela greve que resulta na intervenção no Sindicato e em cinco prisões. Ali, nascia a liderança política de Olívio Dutra. A greve de Porto Alegre levou os bancários a pararem o trabalho no Rio de Janeiro e em São Paulo, também com novas intervenções nos sindicatos, prática recorrente desde o Golpe de 1964. Mas a Ditadura não tinha mais como evitar as manifestações cada vez mais massivas nas ruas do País: em 5 de dezembro, os quebra-quebras de trens no Rio de Janeiro e São Paulo, que seriam repetidos em 10 de abril de 1980, contra os trens na Zona Leste de São Paulo, demonstravam as péssimas condições da mobilidade urbana nos grandes centros populacionais brasileiros. 1979 também terá outra marca: em 29 de novembro, ocorreu a tomada simbólica da sede da UNE, no Rio de Janeiro. Um dia depois, os estudantes enfrentaram o ditador Figueiredo, em Florianópolis. Tudo isto no contexto da primeira eleição direta na UNE, ocorrida dias antes, em 3 de outubro. Dali em diante, a Ditadura não conseguirá mais tirar a maioria dos estudantes brasileiros das ruas, como no ano seguinte, em 21 de março, com o protesto contra a decisão da Ditadura em demolir a sede histórica da UNE, no prédio incendiado pelos golpistas, ainda em 1964. A mobilização estudantil somente se ampliará. No ano seguinte, em 13 de outubro, ocorrerá o 32º Congresso da UNE, em Piracicaba, em São Paulo. No encontro, será eleito como presidente Aldo Rebelo. Dois anos depois, em 30 de setembro, após a gestão de Javier Alfaya, o 34º Congresso da UNE, realizado em Piracicaba, São Paulo, elegeu uma mulher, Clara Araújo, como presidente da entidade máxima dos estudantes do Brasil. A conjuntura dês greves não mudará no início da década. Em 16 de março de 1980, iniciou a greve dos portuários de Santos, em São Paulo. Duas semanas depois, começou a grande greve de trezentos e trinta mil metalúrgicos no ABC paulista, além de outras quinze cidades de São Paulo. Em São Bernardo, durante quarenta e um dias. O movimento grevista conseguirá o feito político de pautar a política brasileira. No décimo sétimo dia da greve, o Ministério do Trabalho interviu nos sindicatos, mas não conseguiu terminar com a greve. Nessa conjuntura, se tornava cada vez mais nacional a liderança política de Luíz Inácio ”Lula” da Silva, operário que, ainda em 10 de fevereiro, junto com outros sindicalistas, intelectuais, líderes rurais e religiosos, havia criado, no colégio Sion, em São Paulo, o PT. 32 Em 19 de abril, treze líderes grevistas do ABC, entre eles Lula, foram presos e enquadrados na LSN . Como a greve não terminava, uma semana depois, novas prisões de líderes grevistas aconteceram no ABC. A repressão gera o seu contrário, o aumento da resistência. Em Primeiro de Maio, em São Bernardo, centro e vinte mil trabalhadores foram para a greve, no contexto de ocupação da Polícia Militar do centro da cidade. Após muita tensão e pressão, o governo foi derrotado e uma manifestação gigantesca ocorre, antecedendo a histórica concentração no estádio da Vila Euclides. Em 5 de maio, terminou, após trinta e cinco dias, a greve dos metalúrgicos em Santo André. Apenas seis dias depois, depois de diversos choques entre piqueteiros e a Polícia Militar, os metalúrgicos de São Bernardo voltaram ao trabalho, após a greve de um mês e onze dias, no movimento que desafiou a Ditadura de Segurança Nacional. Alguns meses depois, 24 de novembro, por sua vez, foi a vez dos de sete mil operários Greve pararem as obras da usina de Tubarão, no Espírito Santo. Em 1980, os trabalhadores rurais e os movimentos indígenas também ampliaram suas resistências, alguns deles sendo assassinados pela repressão. Em 29 de maio daquele ano, foi assassinado Raimundo Ferreira, o Gringo, líder dos posseiros de Conceição do Araguaia, no Sul do 33 Pará. A ação dos grileiros levou quatro mil pessoas a um ato de protesto no enterro . Em 6 de junho de 1980, foi morto José Ribeiro, líder dos indígenas Apuriña. Em 8 de novembro, posseiros da gleba Marabá, também no Pará, mataram nove jagunços que tentavam expulsá-los da terra. A ampliação da luta pela terra levou à celebração, no Recife, da Missa dos Quilombos, com versos de Dom Pedro Casaldáliga e a música de Milton Nascimento, em 22 de novembro. Seis dias depois, Mário Juruna, cacique Xavante, viajou à Holanda para presidir o juri do Tribunal Bertrand Russel, abordando o 32

Em 25 de fevereiro de 1981, a Justiça Militar condenou Lula e mais dez sindicalistas do ABC. Mais tarde, as penas serão revogadas. Em 7 de agosto, após quinze meses, terminou a intervenção no Sindicato, quando Jair Menegueli foi eleito presidente. 33 No ano seguinte, em 13 agosto, ocorrerá o choque de posseiros de São Geraldo do Araguaia, no Pará, com agentes da Polícia Federal. Já em 1982, em 16 de abril, posseiros ocuparam a fazenda Santa Cruz, em Conceição do Araguaia, resultando em um morto e vinte e quatro feridos. Em 3 de novembro, em outro choque, dessa vez entre posseiros e pistoleiros, novamente em Conceição do Araguaia, quatro trabalhadores rurais foram mortos e mais dez ficaram feridos, transformando a região em uma das principais áreas de conflitos agrários do País. A região do Araguaia retomava as lutas pela terra, uma das heranças políticas deixadas pela Guerrilha, uma década antes.

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genocídio indígena . Uma semana antes do natal de 1980, flagelados saquearam a Feira de Pedra Branca, no Ceará. A fome também se tornava, cada vez mais, motivo pra protestos contra a Ditadura, como quase dois anos depois, em 20 de agosto, quando dois mil flagelados saquearam Senador Pompeu, também no Ceará. No mesmo ano, em 20 de dezembro, será a vez de quatro mil flagelados da seca saquearem comida em Campo Alegre, na Bahia. No ano seguinte, em 4 de abril, no Largo 13 de Maio, na periferia de São Paulo, uma passeata de desempregados terminou em saque de supermercado. Foi o início de uma onda de centenas de ações similares que se estenderá até o Rio de Janeiro, como em 11 de abril, quando dezenas de desempregados saquearam caminhão de comida, no Centro do Rio. Em 1983, em 12 de agosto, foi a vez de cem famílias flageladas da seca invadirem o Palácio da Luz, sede do governo cearense. Dois dias depois, mil flagelados da seca saquearam comida de posto da COBAL, em Canindé, também no Ceará, seguida por outros saques em Quixeramobim, no mesmo estado e em Mossoró, no Rio Grande do Norte. No estado potiaguar, em 20 de setembro, duas 35 mil mulheres , impedidas de se alistar nas frentes de trabalho, levaram dez toneladas de alimentos, em São Miguel. Uma semana depois, flagelados da seca saquearam armazém em Jardim das Piranhas, no mesmo estado, prenúncio da grande greve de 45 mil canavieiros, iniciada 4 de outubro. Depois disso, já em 1984, em 11 de fevereiro, flagelados atacaram a Feira de Ibimirim, em Pernambuco, em 14 de fevereiro, dois mil flagelados atacaram armazém em Senador Pompeu, no Ceará, enquanto em Icó, no mesmo estado, ocorreu enfrentamento com a Polícia Militar. Poucos dias depois, ainda em fevereiro, em Pernambuco, uma passeata de cinco mil flagelados, em Afogados da Ingazeira, mobilizou trabalhadores e pequenos agricultores por recebimento de salários nas frentes de trabalho e, em Águas Claras, duzentos flagelados da seca levam vinte toneladas de comida, enquanto que, em 8 de março, três mil flagelados saquearam o comércio de Arapiraca, em Alagoas Nessa conjuntura de final da Ditadura, o movimento grevista não cederá, Ainda, em 28 de abril de 1981, ocorreu a greve de sessenta mil médicos, no Dia Nacional de Protesto da categoria. Dois meses depois, a greve dos médicos do Rio de Janeiro resultará na intervenção no Sindicato, com prisão de seu presidente. As mobilizações sociais serão de todas as ordens. Antes dos médicos, os conflitos urbanos já haviam marcado o novo ano, como no novo quebra-quebra dos trens suburbanos da Zona leste de São Paulo, em 6 de fevereiro. Em 9 de abril, os quebra-quebras se repetirão em São Paulo. Em 20 de agosto, foi a vez de quebra-quebras de setecentos e cinquenta ônibus, em Salvador, após ato 36 contra alta da tarifa . Ainda em fevereiro de 1981, em Campinas, São Paulo, no Congresso de professores do ensino superior, foi criada a Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior 37 (ANDES), depois da mobilização nacional da categoria . O operariado brasileiro também continuará mobilizado, sobretudo na conjuntura de ampliação da crise econômica. Em 4 de maio de 1981, a greve na Fiat do Rio barrou centenas de demissões anunciadas. Em 6 de julho será a vez da greve de nove mil trabalhadores contra quatrocentas demissões na fábrica na Ford do ABC paulista. Como resultado da greve, a categoria conquistou a comissão de fábrica. Em 10 de agosto, a Mercedes Benz demitiu cinco mil e duzentos trabalhadores em um dia. Indignados, os operários arrombaram o portão da fábrica. Em 4 de março de 1982, a greve de cinco mil trabalhadores contra demissões no estaleiro Mauá, em Niterói, no Rio de Janeiro, marcou o início do novo ano. No dia 10, inicia a Greve na COFERRAZ, fábrica de Santo André, em São Paulo, que fechou sem pagar os operários. O movimento resultará na ocupação da fábrica pelos trabalhadores, em 6 de abril. Ainda em abril, alguns dias depois, iniciou a greve em seis estaleiros navais de Niterói. Em 7 de junho, milhares de garimpeiros de Serra pelada, no Pará, rebelaram-se contra a interrupção da lavra manual de ouro, invadindo o garimpo, bloqueando estradas e tomando armas após invadirem delegacias. Cinco dias depois, reconquistaram o direito à lavra. A ampliação da reorganização da classe trabalhadora resultará, em 21 de agosto de 1982, em Praia Grande, São Paulo, com cinco mil delegados de 1.126 entidades, na realização da Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (CONCLAT), a qual elegeu a Comissão Pró- CUT. Um ano depois, também em agosto, no dia 26, ocorrerá o início do Congresso de fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em São Bernardo, o qual deliberará, no dia 31, na fundação da Central de 34

Em 7 de junho de 1982, ocorrerá a Primeira Assembléia Nacional das Nações Indígenas, em Brasília, com a participação de duzentos delegados. Outra mobilização indígena importante se dará em 27 de março de 1984, quando os Txukahamãe, liderados pelo cacique Raoni, bloquearam a BR-80 e fizeram m doze reféns, exigindo seu território ao norte do Parque do Xingu, no Mato Grosso. Em 2 de maio, este levante dos Txukahamãe derrubará o presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). 35 A luta das mulheres brasileiras no final da Ditadura, resultou, em 25 de novembro de 1983, no Primeiro Encontro Nacional da Mulher, em Belo Horizonte. Minas Gerais. 36 Depois disso, em 28 de outubro de 1983, outro quebra-quebra destruirá vários trens em São Paulo, bem como outro ocorrerá em 30 de janeiro de 1984. 37 Em 18 de novembro de 1982, iniciou a greve nacional de um mês de professores e funcionários das universidades federais, um marco da reorganização dos docentes e técnico-administrativos das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) contra a Ditadura.

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trabalhadores mais ativa e de oposição nos anos finais da Ditadura. Ainda em 1982, a luta pela moradia, que continuou durante toda a Ditadura, entrará em novo patamar para a organização dos movimentos sociais urbanos e populares. Em 17 de janeiro, em S. Paulo, ocorrerá o Congresso de fundação da Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM). 16 de julho, sem-tetos ocuparam quase seis casas no Centreville, em Santo André, em São Paulo, demonstrando o vigor da luta pela moradia no Brasil. Em paralelo, a luta pela terra não dava tréguas à Ditadura. Em 12 de março, os sem-terra de Encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul, deixaram seu acampamento no rumo da conquista de um assentamento. Dali em diante, a repressão não conseguirá mais impedir a mobilização dos sem-terra para sua organização política. Tanto que, em de 21 a 24 de janeiro de 1984, no Encontro Nacional de Cascavel, no Paraná, foi fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), acúmulo maior da luta pela reforma agrária contra a 38 Ditadura . Neste mesmo ano, em 13 de maio, ainda ocorrerá a greve de quatro mil canavieiros, na região de Rio Verde, sul de Goiás e, dois dias depois, na greve de dez mil bóias-frias, em Guariba, São Paulo, iniciando três meses de lutas nas áreas de plantação de cana e de laranja entre a região paulista e mineira, resultando em violentos choques com a repressão e diversos incêndios de canaviais. Em 18 de maio, a onda grevista chegou aos doze mil bóias-frias de Sertãozinho, também em são Paulo, a maior região produtora de açúcar do País. Muitos outros movimentos se seguiriam na luta de resistência dos camponeses brasileiros: em 30 de julho, os canavieiros de Campos, no Rio de Janeiro entraram em greve; em 10 de agosto mais uma vez os canavieiros de Sertãozinho paralisaram; em 16 de setembro, ocorrerá a primeira greve geral dos canavieiros de Pernambuco após 1964, reunindo duzentos e quarenta mil trabalhadores, seguidos por trinta mil do Rio Grande do Norte e centro e vinte mil da 39 Paraíba, no mesmo mês e em outubro . O renascimento sindical dos trabalhadores do campo, através da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) estava consolidado. A mobilização camponesa e dos sem-terras, por sua vez, terá marco simbólico com o “Grito do Campo”, realizado no Rio Grande do Sul em 2 de outubro, e que reunirá quarenta mil pessoas contra a política agrícola da Ditadura. Nas cidades, as lutas e as resistências dos trabalhadores urbanos também não arrefeceram nos anos finais da Ditadura. Ainda, em 1983, já no terceiro dia do ano, iniciou a greve dos quarenta e oito mil servidores federais do Rio Grande do Sul. Em 27 de abril será a vez da greve dos metalúrgicos da Grande Porto Alegre, sobretudo parando as fábricas de Canoas, cidade operária importante da região metropolitana. Em 31 de maio, a greve na saúde pública de São Paulo paralisará totalmente a área em vinte e nove cidades e parcialmente em mais cinquenta. Em 17 de junho, o protesto de funcionários de estatais no Rio, reunindo seis mil trabalhadores, se ampliará para o Rio Grande do Sul, para o Pará, para São Paulo e para o Distrito Federal. Todo esse acúmulo de mobilizações e greves de trabalhadores resultará, em 21 de julho, na primeira greve geral nacional após o Golpe de 1964, obtendo êxito parcial e contando com forte repressão da Ditadura, tendo como exemplos as intervenções nos sindicatos dos Metroviários e Bancários de São Paulo. No final do ano, em 6 de novembro, será a vez da greve de vinte mil mil sapateiros de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, bem como, dois dias depois, de nova greve 40 dos metalúrgicos do ABC paulista, paralisando sessenta mil operários da categoria . No ano seguinte, outras greves mobilização o movimento sindical brasileiro, como: em 15 de maio, com a greve de trinta e sete mil professores das universidades, com duração de oitenta e quatro dias; em 4 de junho, ocorreu a greve de trinta mil professores de Pernambuco; em 18 de junho, a greve dos trabalhadores na Previdência Social paralisou o atendimento em Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Goiás e Rio Grande do Sul; em 19 de junho, se realizou a segunda greve história da CSN contra a Ditadura, ocorrendo a ocupação simbólica da usina; em 29 de julho, iniciou a greve de sete mil na Siderúrgica ACESITA, em Timóteo, Minas Gerais; em 9 de agosto, sete mil grevistas ocuparam a EMBRAER, em São José dos Campos; em 22 de agosto, começou a greve dos motoristas e cobradores de ônibus que parou Porto Alegre, no Rio Grande do Sul; dois dias depois, a greve de petroquímicos paralisou Camaçari, na Bahia; em 17 de setembro, onze mil metalúrgicos da COSIPA ocuparam a usina, em Cubatão, São Paulo; em 7 de dezembro, a Greve Geral nacional de vinte e quatro horas parou o Banco do Brasil em todo o País. Por fim, já nos estertores da Ditadura, em 1º de fevereiro de 1985, se realizou a greve de vinte e dois mil nas indústrias de calçados de Franca, em São Paulo, com intervenção no sindicato, resultando em oitenta feridos pela ação repressiva da Polícia Militar, enquanto que, quatro dias depois, vinte e oito mil vigilantes de São Paulo paralisaram seus trabalhos. A luta operária e do movimento sindical, dos movimentos sociais e populares, não poderia deixar de resultar em nova retomada de luta política contra a Ditadura. Em 27 de novembro de 1983, ocorreu 38

De 29 a 31 de janeiro de1985, o MST realizou seu 1º Congresso Nacional, em Curitiba, Paraná Os canavieiros de Ribeirão Preto, ainda farão greve de vinte e oito mil na região, em mobilização iniciada em 4 de janeiro de 1985, a última da Ditadura. 40 Em 2 de abril de 1984, dez mil metalúrgicos de São José dos Campos, em São Paulo também entraram em greve, na principal paralisação do último ano da Ditadura. 39

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o primeiro comício pró-diretas, reunindo 10 mil pessoas no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Em 12 de janeiro do ano seguinte, em um comício que reuniu sessenta mil em Curitiba, oficialmente iniciou a Campanha das “Diretas-Já” e o uso do amarelo como sua cor-símbolo. A resposta da Ditadura foi o lançamento da candidatura a presidente de Paulo Maluf. A resposta da oposição foi o comício que reuniu 41 trezentas mil pessoas, na Praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro . São Paulo dará exemplo para o resto dom Brasil. Outro comício pró-Diretas, reuniu duzentas e cinquenta mil pessoas em Belo Horizonte, em 2 de fevereiro; em 21 de março, uma passeata de trezentos mil se realizará no Rio de Janeiro; uma prévia para o 10 de abril, quando o comício de um milhão e duzentas mil pessoas pelas defenderão as Diretas-Já, na Candelária; em 12 de abril, aconteceu o comício pró-Diretas, em Goiânia, reunindo duzentas e cinquenta mil pessoas; mas, o maior deles ainda viriam no mesmo mês: no dia 16, um milhão e milhão setecentas mil pessoas se reuniram no Anhangabaú, em São Paulo. Era o auge do Movimento pelas Diretas-Já. Tanto que, dois dias depois, o ditador Figueiredo decretou estado de emergência no Distrito Federal. A maior mobilização de rua desde o início da Ditadura, e que reuniu milhões de brasileiros (como no panelaço ocorrido em várias cidades na véspera da votação da emenda das Diretas, em 24 de abril), entretanto, não resultou em vitória da emenda das Diretas, que não passou na Câmara dos Deputados, pois, com 298 votos a favor, 65 contra e 112 ausências, obteve 22 votos a menos que os dois terços exigidos. Dialeticamente, a Ditadura saía vencedora, pois impedia as eleições 42 diretas para presidente, mas saía derrotada politicamente do episódio . Conclusão A Ditadura terminará em 15 de março de 1985, não sem antes ocorrer uma vitória parcial das classes dominantes. A derrota das “Diretas Já’, o maior movimento de massas desde o Golpe de 1964 no Brasil, foi um prenúncio que levou, em 15 de janeiro de 1985, a eleição indireta para a Presidência de Tancredo Neves e José Sarney (ex-líder do PDS, embrionário da ARENA, no Congresso e articulador do Golpe que depôs Jango) no Colégio Eleitoral, vencendo o candidato da Ditadura, Paulo Maluf. A partir de então, os partidos comunistas, a UNE e as centrais sindicais conquistariam a legalidade. Ao menos institucional e politicamente a Ditadura estava derrota. Apesar disso tudo e da resistência intensa, através da ação e mobilização dos movimentos sociais e populares de oposição à Ditadura, tal qual o protagonismo dos escravos cem anos antes, a correlação de forças impediu que tais movimentos se transformassem em pode político para chegar ao Executivo do País, em 1985. A “Nova República”, com Sarney a frente, neste aspecto, como dizia Florestan Fernandes na época, foi uma “transição pelo alto”. Assim, como fora a República de 1889, com Floriano Peixoto a frente. Marcas das nossas “metamorfoses” políticas ao longo da História da formação 43 sócio-econômica brasileira .

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Este comício ganhou notoriedade internacional, haja vista que aTV Globo ignorou o que se passava, situação que logo mudará. 42 Ainda em 27 de junho, um comício no Rio de Janeiro tentou relançar a luta pelas Diretas já, mas a Ditadura seria derrotada de forma indireta, com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985, por quatrocentos e oitenta votos, contra cento e oitenta votos para Paulo Maluf e dezessete abstenções. 43 A ideia de ‘metamorfoses” nas transformações históricas, na dialética de continuidades e rupturas, a partir do sociólogo francês Robert Castel, foi defendida pelo autor sobre 1930, em sua tese de doutorado. Cf. O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos sócio-políticos (1930-1937). Campinas: IFCHUnicamp, 2004.

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Mulheres vítimas da Ditadura Militar: luta e afirmação de gênero e os Direitos Humanos Giselda Siqueira da Silva Schneider

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Resumo: O presente artigo visa analisar a história das mulheres durante a Ditadura Militar no Brasil, através da consideração de como tais foram vítimas: mulheres desaparecidas e mulheres mães na busca pelos seus filhos, e se seria possível uma comparação com as Mães da Praça de Maio na Argentina. Verificar o que oficialmente construiu-se acerca dessa história, como tais mulheres manifestaram-se diante dessa situação. O que pretende-se é verificar como a história dessas mulheres foi retratada, e quais avanços houve em relação a consolidação dos direitos humanos. Palavras-chave: Gênero – História das Mulheres – Ditadura Militar – Direitos Humanos. Abstract: This article aims to analyze the history of women during the military dictatorship in Brazil, through the consideration of how these victims were: women missing women and mothers in the search for their children, and whether it would be possible to compare with the Mothers of the Plaza de Mayo in Argentina. Check what officially was constructed about this story, such as women expressed themselves in this situation. What is intended is to see how the story was portrayed these women, and what advances there have regarding the consolidation of human rights. Keywords: Gender - Women's History - Military Dictatorship - Human Rights.

O intento de trabalhar com a história das mulheres “pressupõe o domínio de categorias 2 analíticas para o entendimento das relações de gênero, perpassadas por relações de poder.” E ao analisar essa história das mulheres, sua participação nos grupos de oposição às ditaduras militares, essas categorias multiplicam-se em importância. Certamente as representações acerca da mulher atravessaram os tempos e estabeleceram o pensamento simbólico da diferença entre os sexos, hierarquizando a diferença, transformando-a em desigualdade. “Determinou-se aos homens o espaço público, político, onde se centraliza o poder”, de 3 outra forma, “à mulher o privado e seu coração, o santuário do lar”. Tais limites em relação à feminilidade, sem dúvida, foram determinados pelos homens. Essa distinção entre o público e o privado vem a estabelecer a separação do poder. Este silêncio sobre a história das mulheres advém de sua não participação na arena pública, espaço da política por excelência. E por isso que a história da repressão durante o período da ditadura militar é uma história de homens, tendo a mulher militante política sido excluída do jogo de poder, pois não foi encarada como sujeito histórico. Exatamente diante disso que pretende-se pautar a discussão acerca da história das mulheres vítimas da ditadura militar, as desaparecidas e às que viveram em busca de seus filhos desaparecidos. E finalmente, verificar como os direitos humanos veio a pautar tal situação. 1. A Ditadura Militar no Brasil: contexto histórico A Ditadura Militar foi o período da política brasileira em que os militares governaram o país, entre 1964 a 1985. Essa condução política teve como características: a falta de democracia, a supressão de direitos constitucionais, a censura, a perseguição política e a repressão àqueles que se colocavam numa posição contrária ao regime militar. Esse período ditatorial inicia-se com a tomada o poder pelos militares que depuseram o então presidente João Goulart. Em 9 de abril foi decretado o Ato Institucional Número 1 (AI-1), que cassa mandatos políticos de opositores ao regime militar e tira a estabilidade de funcionários públicos. Estiveram ainda no poder nesse período, Castelo Branco (1964 a 1967), Costa e Silva (1967 a 1969), Médici (1969 a 1974), Geisel (1974 a 1979) e Figueiredo (1979 a 1985). No poder os militares tomaram medidas autoritárias, ou seja, limitaram as várias formas de liberdade dos brasileiros e reprimiram as manifestações e lutas a favor da democracia. Iniciando então a 1

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Mestranda do PPGH/UPF, sob a linha de pesquisa Política e Cultura, bolsista Capes. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Uniritter. Bacharel em Direito pela PUCRS. COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. História em Revista, Pelotas, v. 10, p. 1-10, dez, 2004, p. 1. Ibidem.

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perseguição a qualquer pessoa que se opusesse as determinações do regime, por meio de diferentes 4 mecanismos: prisões, exílios, torturas e morte. Pode-se afirmar que como regra geral, as ditaduras buscaram estreitar, no plano econômico, a associação com seus aliados do capital externo, sob tutela militar nacional, e incorporaram plenamente a estratégia norte-americana de contenção do comunismo, sintetizada na Doutrina de Segurança Nacional. Essa doutrina, idealizada no Brasil especialmente pelo general Golbery do Couto e Silva, principal teórico do regime, assentava-se na tese de que o inimigo da pátria não era mais externo, e sim interno. Para enfrentar esse novo desafio, era urgente estruturar um novo aparato repressivo por meio da 5 integração completa dos organismos de segurança . Por isso foi montada em São Paulo em 1969, a Operação Bandeirante (Oban), composta por efetivos do Exército, Marinha, Aeronáutica, Delegacias Estaduais de Ordem Política e Social (Dops), Departamento de Polícia Federal, Força Pública, Guarda Civil e até por civis paramilitares. Tal experiência foi aprovada pelo regime, que resolveu estender seu formato a todo o país, nascendo então o Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna, o temível DOI-Codi. Este, com dotações orçamentárias próprias e chefiado por um alto oficial do Exército, o órgão assumiu o primeiro posto na repressão política no país. Porém, os Dops e as delegacias regionais da Polícia Federal, bem como o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) e o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) mantiveram ações repressivas independentes, prendendo, torturando e eliminando opositores. Com base nessa Doutrina de Segurança Nacional, a ditadura militar brasileira decretou sucessivas Leis de Segurança Nacional sob a forma de Decretos-Leis (DL, uma em 1967 (DL 314) e duas em 1969 (DL 510 e DL 898), de conteúdo draconiano, que funcionaram como pretenso marco legal para dar cobertura jurídica à escalada repressiva. De maneira geral dessas três versões da Lei de Segurança Nacional indicava que o país não podia tolerar antagonismos internos e identificava a vontade da nação e do 6 Estado com a vontade do regime. A ditadura militar no Brasil atravessou pelo menos três fases distintas: A primeira estendeu-se do golpe de Estado, em abril de 1964, à consolidação do novo regime. A segunda começou em dezembro de 1968, com a decretação do Ato Institucional no 5 (AI-5), e desdobrou-se nos chamados anos de chumbo, quando a repressão atingiu seu mais alto grau. A terceira e última fase abriu-se com a posse do general Ernesto Geisel, em 1974, que iniciou uma lenta abertura política, mantida 7 durante o governo Figueiredo até o fim do período de exceção, em 1985.

No entanto, ao longo dos 21 anos de regime, em nenhum momento a sociedade brasileira deixou de manifestar seu sentimento de oposição. Houve resistência, como a luta das organizações de esquerda que foi marcada pela clandestinidade e perseguição, ademais houveram várias organizações que aos poucos foram sendo desarticuladas pela ditadura. Vejamos como foi isso em relação às mulheres. 2. A ditadura militar e as Mulheres 8

“Falar sobre mulheres significa falar das relações de poder entre homens e mulheres” . E para identificá-las como sujeitos políticos é necessário analisar as intrincadas ralações de gênero, de classe, de raça e de geração, além de falar do desmerecimento feminino, pois se, historicamente, o feminino é entendido como subalterno e deixado de fora da história, pois que sua presença não fora registrada. Numa perspectiva lógica, libertar a história é então, falar de homens e mulheres numa relação igualitária. Importa considerarmos gênero na perspectiva de Joan Scott, Por gênero me refiro ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se relaciona simplesmente ás idéias, mas também às instituições, às estruturas, as práticas cotidianas, como os rituais, e tudo o que constitui as relações sociais. O discurso é o instrumento de entrada na ordem do mundo, mesmo não sendo anterior à organização social, é dela inseparável. Segue-se, então, que o gênero é a organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é causa originária da qual a organização 4

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WASSERMAN, Claudia e GUAZZELLI, César Augusto Barcelos (Org.). Ditaduras Militares na América Latina. Porto Alegre: Ed. Ufrgs, 2004, p. 34. MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (Org.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Caros, 2010, p. 20. Ibidem. Ibidem. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007, p. 137.

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social poderia derivar: ele é antes, uma estrutura social móvel que deve ser analisada 9 nos seus diferentes contextos históricos.

Dessa forma, falar de mulheres não é somente relatar os fatos em que elas estiveram presentes, mas reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos. Conforme Michel Foucault, “é fazer uma arqueologia do feminino; desconstruir a história da história feminina para reconstruí-la em bases mais 10 reais e igualitárias, analisar as práticas discursivas e não discursivas que representam o feminino”. Nessa análise assevera Ana Maria Colling, A história da repressão durante a ditadura militar e assim como a oposição a ela é uma história masculina, assim como toda a história política, basta que olhemos a literatura existente sobre o período. As relações de gênero estão aí excluídas, apesar de sabermos que tantas mulheres, juntamente com os homens, lutaram pela redemocratização do país.Ousar adentrar o espaço público, político, masculino, por excelência foi o que fizeram estas mulheres ao se engajarem nas diversas organizações 11 clandestinas existentes no país durante a ditadura militar.

2.1 Mulheres desaparecidas O golpe militar de 1° de abril de 1964, institucionalizou a detenção, a prisão e o sequestro, o banimento, a tortura, o assassinato e o desaparecimento, deixando um legado sinistro: entre mortos e desaparecidos políticos, uma legião incontável de militantes (homens, mulheres), presos e torturados e histórias de vida truncadas. A política de repressão é praticada quando o poder político, aliado ao poder policial e militar, outorga-se o direito sobre o corpo, a mente, a vida e a morte dos cidadãos. Exercer continuadamente atos que sustentam essa política é um gesto que, aos poucos, torna-se sobre-humanamente desumano, e apaga, devagar, a repugnância inata ao 12 crime.

Embora pouco evidenciado salientado, ao longo da história do Brasil, a luta de resistência das mulheres foi recorrente. E dessa maneira também durante a ditadura civil-militar, implantada com o golpe de 1964, as mulheres também foram protagonistas, como militantes da resistência e como organizadoras da sociedade civil para o retorno do país à democracia. A obra Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino, com a finalidade de homenagear mulheres brasileiras que resistiram à tirania do poder e o enfrentaram, resgata a memória 13 de mulheres vítimas da ditadura militar brasileira. A publicação conta com o registro da vida e morte de 45 mulheres brasileiras que lutaram contra a ditadura, este livro inclui o testemunho de 27 sobreviventes que narram com impressionante coragem as brutalidades das quais foram alvo, incluindo quase sempre torturas no âmbito sexual, alguns casos de partos na prisão e até episódios de aborto. A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) responsável por tal publicação, expressa que abrir os arquivos da ditadura que assolou o nosso país entre 1964 e 1985, e dando voz às suas vítimas e construindo um relato alternativo ao "oficial" sobre o período, concretiza uma atitude de justiça histórica. Fazer esse exercício de forma a garantir espaço às vozes femininas que lá estiveram é não apenas se comprometer com a construção de uma narrativa histórica mais completa e complexa possível, mas principalmente reconhecer o fundamental papel 14 feminino nas lutas de resistência à ditadura.

Infelizmente o corpo feminino, sempre objeto de curiosidade, tornou-se presa do desejo maligno do torturador e ficou à deriva em suas mãos. Com a autorização de seus superiores e mandantes a torturar, o servidor torturador incorporou ingredientes próprios e piores ao ato que, por delegação, lhe foi solicitado e previamente permitido, diante da desculpa do cumprir ordens. A mulher foi destituida de seu lugar feminino, de mulher, de mãe, não encontrando nos porões da ditadura qualquer trégua. O lugar de cuidadora e de mãe foi vulnerado com a ameaça permanente 9

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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação & Realidade. Porto Alegre: UFRGS, 1990, p. 15. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979. COLLING, Op. Cit., p. 6. Idem, p. 28-29 MERLINO;OJEDA, Op. Cit., 2010. MERLINO; OJEDA, Op. Cit., 2010.

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aos filhos também presos ou sob o risco de serem encontrados onde estivessem escondidos. Não bastasse, o aviltamento da mulher que acalentava sonhos futuros de maternidade foi usado pelos torturadores com implacável vingança, questionando-lhe a fertilidade após sevícias e estupros. Sem dúvida, a devastação da tortura não tem parâmetros materiais. E tais testemunhos tem o propósito permitir que se saiba o que ocorreu em nosso país, para que não volte a ocorrer. 2.2 Mulheres Mães de filhos desaparecidos E nesse contexto de resistências surge um importante movimento, denominado Guerrilha do Araguaia entre os anos 1972 a 1975, na região do Araguaia, no Bico-do-Papagaio, que situava-se entre os estados do Tocantins, Pará e Maranhão. A orientação e direção do movimento ficou por conta do PC do B, o Partido Comunista do Brasil. Importa que desse episódio, houveram muitos desaparecidos políticos brasileiros, entre eles José Huberto Bronca, militante guerrilheiro gaúcho, filho de Ermelinda Mazzeferro Bronca. Essa mulher e mãe lutou até seus últimos dias de vida a procura do corpo de seu filho desaparecido. O jornal Zero Hora do dia 14 de dezembro de 2003, na seção de Anúncios Fúnebres e Religiosos um obituário em especial chamava atenção, relatava a vida de uma mulher falecida no dia 10 de dezembro de 2003 aos 97 anos: Ermelinda Mazzaferro Bronca. O obituário de quase meia página descrevia uma mãe que dedicou mais de vinte anos de sua vida na busca do corpo do filho morto na Guerrilha do Araguaia, episódio sangrento da Ditadura Militar do Brasil. [...] Ermelinda Mazzaferro Bronca, uma mãe que se tornou símbolo da busca por desaparecidos do regime militar, morreu no dia 10, aos 97 anos, 20 dos quais dedicados a encontrar o corpo do seu filho [...] Ermelinda lutava pelo direito de sepultar seu filho 15 desde 1979 [...].

Ao fim do obituário a frase: “morreu sem realizar seu grande sonho”, ou seja, o sonho de dar uma sepultura digna a seu filho José Huberto Bronca, o “Zé”, que foi militante guerrilheiro no Araguaia, tendo sua provável morte ocorrido em 1974. Ermelinda viu seu filho pela última vez em abril de 1966, depois disso em 1970 por ocasião da morte de seu marido Huberto Átteo Bronca, Ermelinda recebe uma carta do filho lamentando a morte do pai, depois disso nunca mais Ermelinda obteve contato com o filho. 16 Dona Ermelinda só vai obter novas notícias do filho em 1979 pela Revista História Imediata , por onde toma conhecimento de que José Huberto Bronca esteve presente na Guerrilha do Araguaia. Ermelinda foi uma mulher que rompe paradigmas e adentra no espaço público por meio da luta e uso da palavra. A palavra pública, como fator de poder, que até aquele momento não fazia parte de seu cotidiano começa a ganhar forma através de depoimentos prestados a entidades e organismos internacionais em Defesa aos Direitos Humanos; em discussões realizadas nas viagens feitas a São Paulo e Rio de Janeiro juntamente com as outras mães e familiares de desaparecidos; e ao postular representada pelo advogado Luis Eduardo Greenhalgh, processo judicial contra o estado pela responsabilização dos desaparecimentos de seu filho na Guerrilha do Araguaia. Sua luta pode ser resumida: a pedidos de ajuda a políticos e entidades para que intercedessem a seu favor na busca pelo seu filho; tentativas judicialmente documentadas; correspondências enviadas e recebidas de Guerrilheiros que sobreviveram a Guerrilha do Araguaia; e as correspondências trocadas entre as mães do Araguaia. Através da documentação deixada por Ermelinda e em cartas com outras mães pode-se perceber que essas mulheres travaram uma longa e árdua luta na busca por qualquer que fosse o resquício de informações deixado por seus filhos, e na certeza da morte, exigiam os respectivos corpos, todas sem exceção suplicavam pelo corpo, pelo direito de enterrar os filhos. Em todas cartas, jornais, petições a justiça, cartões, declarações o pedido é o mesmo, “queremos dar uma sepultura digna a nossos filhos”. A preocupação com a questão do corpo perpassa qualquer discussão a respeito dos mortos e desaparecidos políticos na ditadura militar. O que contemporaneamente vem sendo discutido e analisado, além de temas como indenizações, abertura de arquivos, punição ou revanchismo todos interligados à questão do corpo. As ações empreendidas por tais mães começam a ter forma através de depoimentos prestados a diversas entidades e organismos internacionais em Defesa aos Direitos Humanos, ou ainda em discussões realizadas entre os familiares dos desaparecidos com mães de todo o território brasileiro. Como resultado disso tudo fora um processo judicial contra o estado pela responsabilização dos filhos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. As cartas solicitando ajuda aos políticos, entidades ou pessoas com alguma influência se tornou um hábito. E entre as mãe isso estabeleceu um circuito de informações a respeito do Araguaia e da 15 16

Trecho extraído da Zero-Hora de 14 de dezembro de 2003, da Seção Anúncios Fúnebres e Religiosos. DÓRIA, Palmério, et ali. História Imediata. A Guerrilha do Araguaia. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.

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busca pelos filhos: enviavam e recebiam entre si jornais, panfletos cartazes, notícias sobre o processo judicial. Pelas cartas fica evidente que agiam em grupo mesmo em estados diferentes, não tinham a Praça de Maio, para protestarem unidas, protestaram então documentamente (cartas). Essas mães demonstraram a luta por igualdade e exercício da cidadania, com um agir político, a partir de uma característica estritamente feminina, a maternidade, muito utilizada como argumento de dominação às mulheres. A história de Ermelinda e outras tantas mães como protagonistas no palco político da história da ditadura militar. 2.3 Um estudo comparado: Mães da Praça de Maio As Mães da Praça de Maio foram inseridas na luta quando seus filhos e netos, ativistas na luta contra a ditadura na Argentina, começaram a desaparecer. Eram donas de casa, se ocupavam dos afazeres do lar e, em sua grande maioria, não compreendiam em profundidade o motivo da luta de seus filhos. Elas iam à delegacia e não obtinham respostas e na igreja, ouviam dos padres que eram seus filhos e netos os próprios culpados pelos desaparecimentos. As ausências foram ficando cada vez mais constantes, mais filhos sumiam, mais mães choravam. No dia 26 de abril de 1976, sábado, as mães se uniram para chorarem juntas na “Plaza de Mayo”, centro de Buenos Aires. Os filhos deixaram de pertencer a apenas uma mãe, a maternidade foi socializada. Como a concentração de pessoas era proibida, passível de prisão, o país estava sob uma ditadura, então a polícia as dispersou. As mães se foram, mas retornaram numa quinta-feira. Já que não podiam ficar paradas, começaram a circular em torno da praça. Inacreditavelmente, essa manifestação circular perdura até os dias de hoje. Toda quinta-feira essas mães se reúnem e circulam. Não existe, por parte delas, a esperança de reencontrarem seus filhos e netos com vida. O que permanece é o espírito de luta por justiça. 3. Na perspectiva dos Direitos humanos Historicamente foi com o surgimento da Organização das Nações Unidas em 1945, e da consequente aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que o Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a aflorar e a solidificar-se de forma definitiva, gerando, por consequência, a adoção de inúmeros tratados internacionais destinados a proteger os direitos fundamentais dos indivíduos. Trata-se de uma época considerada como verdadeiro marco divisor do processo de internacionalização dos direitos humanos. Pois, antes disso a proteção aos direitos do homem estava mais ou menos restrita apenas a algumas legislações internas dos países, como a inglesa de 1684, a americana de 1778 e a francesa de 1789. Mais especificamente no caso brasileiro, o processo de incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos e de seus importantes instrumentos é conseqüência do processo de democratização. O marco inicial do processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo Direito brasileiro foi a ratificação, em 1º de fevereiro de 1984, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. A partir dessa ratificação, inúmeros outros relevantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos foram também incorporados pelo Direito Brasileiro, sob a égide da Constituição Federal de 1988. Assim, a partir da Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil, dentre eles: Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a 17 Mulher, em 27 de novembro de 1995.

Vemos assim que o processo de democratização possibilitou, a reinserção do Brasil na arena internacional de proteção dos direitos humanos, embora relevantes medidas ainda necessitem ser adotadas pelo Estado brasileiro para o completo alinhamento do país à causa da plena vigência dos direitos humanos. No tocante a questão de gênero, com o objetivo de dar voz às mulheres, abrir espaço na participação política direta ou por meio de representação real é que surgiram os movimentos feministas. 17

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos no ensino superior, 2001, p. 1.

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As ações desses movimentos são entendidas como lutas, por reconhecimento, pela reorganização da liberdade conscientizada e desconstrução das estereotipações de gênero. O papel ativo das mulheres se dá especialmente em relação à legitimidade e necessidade da luta feminista por direitos humanos. Tal luta não é pontual, se dá em várias esferas, seja dentro da família, nas relações econômicas e, especialmente, no aprimoramento da participação cidadã, tratando tanto do protagonismo das mulheres nas decisões coletivamente vinculantes quanto da democratização de todos os espaços sociais. Apesar dos avanços conquistados pelos movimentos feministas na luta pelo direito de serem diferentes quando a igualdade as descaracteriza, mas de serem iguais quando a diferença as inferioriza, percebemos que ainda há muito a se avançar. Dados mostram que a desigualdade entre homens e mulheres persiste nos mais diversos espaços, ainda tão resistentes à ocupação feminina. Portanto a luta por uma história das mulheres, na ótica de gênero, só terá significado a partir da constante participação democrática das mulheres em defesa dos seus próprios direitos. Considerações finais Na tentativa de dar visibilidade à história da mulher, constata-se que as relações entre feminino e masculino são socialmente construídas, portanto culturais e históricas. E, por consequência não se pode falar da mulher sem falar nas relações entre homens e mulheres. Na ditadura militar brasileira, a mulher militante não era apenas uma opositora ao regime, era também uma presença que subvertia os valores estabelecidos, que não atribuíam à mulher espaço para a participação política. Para uma história das mulheres é necessário que a história seja entendida como resultado de interpretações que têm como fundo relações de poder, pois esse caráter de construção da história nos permite desconstruir e reinventar a história, inclusive o papel dos homens e das mulheres na sociedade. Assim a história passa a ser vista como um campo de possibilidades para vários sujeitos historicamente constituídos, lugar de lutas e de resistências. Contar essas histórias favorece a ampliação da participação feminina em todas as dimensões da sociedade e, assim contribui para o fortalecimento da igualdade entre os sexos e da democracia em nosso país.

Fontes consultadas Acervo Pessoal de Ermelinda Mazzaferro Bronca, depositado no AHRS: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Doado em 2005 por Maria Helena Mazzaferro Bronca filha de Ermelinda. Consultado em 2012. Referências Bibliográficas: COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. História em Revista, Pelotas, v. 10, p. 110, dez, 2004. ______. A resistência da mulher à Ditadura Militar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. BOURDIEU, Pierre. Observações sobre a história das mulheres. In: DUBY, G. Mulheres e História. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

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Uma Visão sobre a Ação Popular (AP): do Socialismo Humanista ao Maoísmo. Cleverton Luis Freitas de Oliveira

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Resumo: Este trabalho tem o objetivo de compreender os aspectos internos e externos à Ação Popular (AP) que levaram às transformações pelas quais passou a organização durante sua trajetória. Buscamos entender o surgimento da AP em seu contexto (1962-1963), a partir da Juventude Universitária Católica (JUC), e as transformações sofridas durante a ditadura civil-militar, até sua identificação com o maoísmo e a incorporação da maioria de seus membros ao PCdoB (1973). Além disso, buscamos traçar, sempre que possível, um paralelo entre os níveis nacional e estadual da organização. Para isso, primeiramente analisaremos o contexto de surgimento da AP e sua ideologia, denominada socialismo humanista, formulada em seu Documento-Base (Lima, 1979). Em seguida, trataremos das modificações ocorridas no país em decorrência do Golpe Civil-Militar de 1964, e como a AP reagiu a tais modificações. Por fim, trataremos das últimas discussões internas da AP em torno da incorporação ao PC do B. Palavras-chave: Ação Popular – Ditadura Civil-Militar – Socialismo Humanista. Abstract: This study aims to understand the internal and external aspects of Popular Action (PA) that led to transformations which has the organization during his career. We seek to understand the emergence of the PA in its context (1962-1963), from the Catholic University Youth (CUY), and the transformations during the civil-military dictatorship until his identification with Maoism, and the incorporation of most of its members the PCdoB (1973). Furthermore, we seek to bring, where possible, a parallel between the National and State levels of the organization. For this, first we analyze the context of the emergence of the PA and its ideology, called humanistic socialism, formulated in its Document-Base (Lima, 1979). Then treat the changes occurring in the country due to the Civil-Military Coup of 1964, and as the PA reacted to such changes. Finally, we will discuss the latest internal discussions of the PA, about the merger of the PCdoB. Keywords: Popular Action, Civil-Military Dictatorship – Humanist Socialism.

Radicalização da JUC e formação da AP O surgimento da Ação Popular (AP), em 1962, está fortemente ligado ao processo de radicalização política e ideológica pelo qual passavam os militantes da Juventude Universitária Católica (JUC). Esta organização fazia parte da Ação Católica (AC), criada no Brasil em 1935. A AC, em sua fase inicial, defendia um nacionalismo de direita, tendo alguns líderes oriundos da Ação Integralista Brasileira. A JUC foi organizada nacionalmente por volta de 1950, tendo como ideal a criação de uma elite acadêmica católica que espalharia as doutrinas da Igreja. Percebe-se que, na sua formação, a JUC centrava-se em uma concepção bastante conservadora da Igreja Católica e da Sociedade, bem como do seu papel nestes espaços. Segundo Ridenti, “a predisposição seria valorizar a ordem e a harmonia social, acatar as estruturas e as instituições existentes, cujos eventuais problemas estariam nas falhas 2 das pessoas que as compõem” . A JUC, porém, passou por um processo de transformação. Influenciados por pensadores como Jacques Maritain e pelo pontificado do Papa João XXIII. Confrontando-se com as desigualdades sociais gritantes no Brasil e com o aumento na mobilização política dos trabalhadores, seus militantes passaram a questionar suas posições de passividade. Já no início da década de 1960, alguns militantes da JUC começaram a formular ideias que levavam à construção de uma terceira via, negando o capitalismo desigual e a inércia dos cristãos diante dele, mas também o comunismo, tido como anticristão e representado principalmente pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Neste sentido, vitórias como a Revolução Cubana em 1959 e, mais tarde, a independência da Argélia (1962), influenciaram também esta ala da JUC que se formava. Paulatinamente, setores da JUC se voltavam para os problemas temporais e “os destinatários da salvação passavam a ser as massas humanas, cuja plena realização estaria obstruída pelas estruturas 3 econômicas, sociais e políticas existentes, que urgia modificar” . Herbert José de Souza, conhecido 1 2 3

Graduando em História Bacharelado na Universidade Federal do Rio Grande – FURG. RIDENTI, 2002, p. 3. Ibid., p. 5.

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como Betinho, militante da JUC e fundador da Ação Popular, proferiu em 1962, portanto, pouco antes da fundação da AP, um documento intitulado Juventude cristã hoje: Há, no entanto uma outra atitude fundamental de nossa geração: a adesão ao drama do homem, de todos os homens, a luta pela universalização concreta da Redenção colocada, não no plano de uma visão dualista, mas de uma concepção do homem como um todo, indissociável, organicamente definido. Quebramos definitivamente a perspectiva aristocrática e classista da Salvação e nos voltamos à perspectiva universal do Cristianismo: todos os homens e o homem todo são objeto de amor e da Salvação. O Cristianismo é incompatível com qualquer perspectiva que de qualquer forma faça um 4 homem senhor e outro escravo [...].

Neste trecho, percebe-se claramente a visão humanista que predominava neste setor da JUC de concepção mais à esquerda frente a ala mais tradicional deste setor. Porém, como destaca Ridenti, este humanismo “já não era apenas cristão, vinha mesclado com um esboço de análise das classes de 5 inspiração marxista [...]” . Este pensamento constituía a gênese da ideologia da AP em sua fase inicial, que ficou conhecida como Socialismo Humanista da Ação Popular. Esta ideologia, formulada no Documento-Base da AP, será discutida adiante. Ao perceber o desenvolvimento desta radicalização de um determinado setor da JUC, o episcopado reagiu limitando as possibilidades de ação política dos militantes e, até mesmo, expulsando alguns membros mais radicais. Frente a essa situação, e impulsionados também pelos movimentos sociais – em especial o movimento estudantil, no qual a JUC tinha amplo engajamento – estes setores à esquerda da JUC formaram, juntamente com outras forças não católicas, a Ação Popular, com o objetivo de ampliar sua atuação política para além dos limites impostos pela hierarquia católica. Surgimento da Ação Popular e o Socialismo Humanista: A Ação Popular surge, então, a partir da confluência entre grupos à esquerda da JUC, militantes de igrejas protestantes e, ainda, os chamados “independentes”, que na sua maioria eram jovens não cristãos voltados ao pensamento socialista. Já no seu início a AP tinha como base principal o movimento estudantil. Esta característica a organização herdou principalmente da esquerda da JUC, que na década de 1960 já participava, segundo Arantes e Lima, das convenções das esquerdas para a indicação de 6 nomes para concorrer à presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE) . Porém, desde o início a organização já realizava contatos com os movimentos operário e camponês, revelando suas intenções revolucionárias e uma leitura socialista que fazia da Revolução Brasileira. No ano de 1963, em seu primeiro Congresso, foi aprovado o Documento-Base da AP, no qual os militantes expunham a ideologia que a organização adotava. Esta ideologia ficou conhecida como Socialismo Humanista da Ação Popular, muito claramente por apresentar uma junção entre aspectos do humanismo cristão, herdado da JUC, e de alguns conceitos oriundos do pensamento marxista. A análise deste Documento-Base traz informações importantes para a compreensão da AP nesta 7 fase. A AP assumia, com esse escrito, um “combate pelo homem” , e afirmava: Nesse sentido, quando falamos de capitalismo e socialismo, não nos interessa um sistema abstrato de relações econômicas, mas uma possibilidade concreta de realização do homem dentro do processo de socialização em cujo sentido a história 8 inelutavelmente se move.

Neste trecho é possível identificar a influência do pensamento humanista cristão, na ideia de realização do homem. Porém, também é possível perceber uma influência socialista, quando se fala do processo de socialização em que a história se move inelutavelmente. Mais adiante, o Documento afirma categoricamente esta influência socialista quando assume a perspectiva do socialismo como humanismo, enquanto crítica de uma alienação capitalista e do movimento real de sua superação. A AP, portanto, rejeitava a necessidade da ditadura do proletariado, alegando que, quando aplicada pela 9 Revolução de Outubro de 1917, ela teria mostrado “suas limitações e seus riscos” . Da mesma forma, 10 negava a chamada “concepção materialista da ‘consciência-reflexo’” e a “concepção idealista que

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In LIMA, 1979, p, 108, 109. RIDENTI, 2002, p. 10. LIMA e ARANTES, 1984, p. 34. In LIMA, 1979, p. 118. Ibid., p. 120. Ibid., p. 126. Ibid., p. 129.

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atraiçoa as responsabilidades históricas concretas pela fuga para o abstrato” . Assumia, assim, uma 12 terceira via denominada “concepção realista da consciência” . Com esse discurso, a AP fazia a crítica à política da URSS, representada no Brasil pelo revisionista Partido Comunista Brasileiro, e demonstrava solidariedade às tentativas autônomas de construção do socialismo, principalmente à Revolução Cubana de 1959. Por fim, a AP fez uma opção prática por uma política de preparação revolucionária que consistia, basicamente, em uma “mobilização do povo, na base de desenvolvimento de seus níveis de consciência 13 e organização [...]” , firmada na luta contra a dupla dominação: capitalista (nacional e internacional) e feudal. Além disso, assume a prioridade do trabalho com as organizações operárias e camponesas. Com base nesta política de preparação revolucionária, a AP atuou no Movimento de Educação de Base (MEB), projeto da Igreja Católica e do Ministério de Educação que visava principalmente a alfabetização de agricultores. Nesse setor, alguns membros da AP atuaram também no sistema de alfabetização desenvolvido no Recife pelo educador Paulo Freire. A organização atuou ainda na fundação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), em 1963, o que a aproximou ainda mais de setores camponeses. Embora a AP continuasse sendo predominantemente formada por estudantes, estas aproximações contribuíram para a diversificação de seus quadros, caso, por exemplo, de Manoel Conceição dos Santos, aluno do MEB, que se tornou líder camponês e, mais tarde, dirigente 14 da AP . As ligações da AP com o MEB, com a CONTAG e, ainda, com a Superintendência para a Reforma Agrária (SUPRA), revelam que, apesar do seu discurso revolucionário, a organização integrou os esforços reformistas do Governo João Goulart, acompanhando as tendências dos movimentos de massas da época. Na realidade, a AP via nos projetos reformistas do governo – representados principalmente pelas reformas de base – uma alternativa para desenvolver sua política de preparação revolucionária. No Rio Grande do Sul, nessa fase em questão, a AP atuava principalmente na defesa das Reformas de Base e no movimento estudantil, exercendo hegemonia na União Estadual dos Estudantes (UEE) e em parte dos centros acadêmicos da UFRGS. Ademais, a AP atuou na alfabetização de adultos 15 em Porto Alegre através do método Paulo Freire e do Movimento de Educação de Base . Com o Golpe Civil-Militar de 31 de Março de 1964 a situação da AP iria mudar drasticamente. Como organização de esquerda, automaticamente passaria à ilegalidade e, sistematicamente, a perseguição às suas lideranças aumentaria. O significado do Golpe Civil-Militar para a AP O Golpe Civil-Militar que ocorreu no Brasil em março de 1964 tem, entre vários aspectos, um sentido geopolítico e outro econômico. O primeiro, porque se insere em um contexto de Guerra Fria, e o segundo, porque é também um golpe de classe. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ganha força a polarização mundial, onde os Estados Unidos da América representam o mundo capitalista e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas representam o mundo “comunista”. Com o tempo, a Guerra Fria definia-se muito mais como uma guerra de influências, e os EUA tratavam de garantir sua dominação imperialista em todo o território latino-americano. Ficava claro, na ótica dos Estados Unidos, que “o 16 controle da segurança interna equivalia ao controle da ‘subversão comunista’” . Para efetivar este controle, desenvolveu-se nas escolas de guerra norte-americanas a Doutrina de Segurança Nacional, e logo esta foi incorporada e incrementada pela Escola Superior de Guerra do Brasil. Com isso, como destaca Wasserman, o exército “se colocava como protagonista de objetivos determinados (fins), 17 estratégias definidas (meios) e iluminado por uma ideologia, a Segurança Nacional” . Deste modo, o Golpe Civil-Militar, que implantou a Ditadura de Segurança Nacional, tinha um caráter de classe, antipopular. O Golpe, porém, não foi um feito exclusivo dos militares. Nele tiveram participação ativa variados setores civis, desde grandes empresas transnacionais até setores leigos da direita católica. O principal núcleo por meio do qual os empresários participaram da conspiração contra João Goulart foi o complexo constituído pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto de Ação Democrática (IBAD). Por meio dessas instituições, cujas direções participavam civis e militares, empresários nacionais e estrangeiros financiaram a propaganda política que vinculava João Goulart ao comunismo internacional e contribuía para difundir o medo do socialismo. Segundo Wasserman, empresas como a 11 12 13 14 15 16 17

Ibid., p. 132. Ibid., p. 132. Ibid., p. 142. RIDENTI, 2002, p. 21. Ver: DIAS, 2011. WASSEMAN, 2004, p. 29. Ibid., p. 30.

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Coca-Cola, IBM, Esso, General Motors, além de diversas empresas nacionais como a Varig e ainda setores da Igreja, contribuíram diretamente, por meio de financiamento, para as conspirações contra 18 Goulart e os movimentos sociais do Brasil . Deste modo, se reafirma o caráter classista e antipopular do Golpe. A Ação Popular, assim como qualquer organização política de esquerda do período, sofreu profundas crises e transformações com o Golpe Civil-Militar. Esta situação foi agravada ainda pelos fortes vínculos que a organização mantinha, em certas áreas, com o Governo de João Goulart. Mas a AP iniciou sua reorganização ainda em 1964, e no ano seguinte aprovou a Resolução Política de 1965, que enfatizava a necessidade da luta armada revolucionária, aproximando a AP da visão cubana. Na sua primeira fase de atuação, entre 1962 e 1964, a AP havia se organizado em um sistema de coordenações, demonstrando forte influencia cristã. Em 1965, a AP passa a organizar-se em comandos, 19 o que ressalta o fortalecimento da influencia da Revolução Cubana sobre a organização após o Golpe . Apesar de assumir a necessidade da luta armada, a AP não tomou iniciativas formais neste sentido, a não ser por um atentado contra a vida de Costa e Silva em 1966, na época Ministro da Guerra e indicado pelo regime como sucessor de Castelo Brando na Presidência da República. Este atentado, todavia, teria sido realizado sem o conhecimento da Direção Nacional, e acabou colaborando, conforme 20 cita Ridenti, para o questionamento da influência cubana sobre a organização . No Rio Grande do Sul, neste período, a AP passou também por cisões internas, acompanhando o processo que a organização vivia em nível nacional. Porém, permaneceu atuando, principalmente, na organização de passeatas e protestos contra o regime e os acordos entre o Ministério da Educação e a 21 Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, conhecidos como MEC-USAID . A Ação Popular, destarte, havia sobrevivido ao Golpe Civil-Militar, mas a nova condição de clandestinidade já causava profundas modificações na organização. Tais mudanças significaram a relativa perda da influência cristã sobre a AP, e a intensificação do debate acerca da adesão ao marxismo-leninismo. Além disso, com o atentado ocorrido em 1966, aprofundou-se a contraposição entre 22 setores foquistas , que influenciados pela Revolução Cubana acreditavam na possibilidade de iniciar a revolução a partir de grupos armados localizados em regiões rurais, com o apoio essencial dos camponeses, e setores que defendiam a guerra popular prolongada, influenciados pelo pensamento de Mao Tsé Tung e pela Revolução Cultural Chinesa. O Debate Teórico e Ideológico e a predominância do Maoísmo Sistematicamente foi ocorrendo, no seio da AP, um processo de polarização ideológica. Formaram-se então duas correntes: a Corrente 1, que defendia a guerra popular prolongada e influenciada pela Revolução Chinesa, e a Corrente 2, resistente ao maoísmo, e que era categorizada como foquista. A primeira corrente tinha como principal líder Jair Ferreira de Sá, e a segunda, Vinícius 23 Caldeira Brant e Altino Dantas . A Corrente 1 elaborou seus princípios em um documento denominado Esquema dos Seis Pontos. Em torno desta questão, foram elaborados textos para o debate dos militantes, que se aprofundavam no conhecimento do marxismo e de suas diversas correntes. Quando a Corrente 1 obteve maioria na organização, porém, o debate foi cortado pela expulsão das principais lideranças da Corrente 2. Lima e Arantes narram esta decisão, tomada pelo plenário da Reunião Ampliada, como prejudiciais ao amadurecimento da AP, pois com isso a organização não pôde beneficiar-se “do aprofundamento e do confronto das ideias, inclusive de algumas críticas corretas que 24 eram feitas ao “Esquema dos Seis Pontos” pela “Corrente 2” . Com a vitória teórica interna, a Corrente 1 reorganizou a AP em comitês, coerentemente com sua orientação maoísta, e colocou em prática a política de integração dos militantes. Tal política que tinha como objetivo o início de uma guerra popular prolongada a partir de militantes infiltrados nas fábricas e zonas rurais, de onde estes se encarregariam de organizar as lutas de operários e camponeses. Esta política ganhou ainda mais força e organização após a decretação do Ato Institucional número cinco, em Dezembro de 1968, que concluía o processo de institucionalização da Ditadura de Segurança Nacional e aumentava ainda mais a repressão a todo tipo de oposição. 18 19 20 21 22

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Ibid., p. 33,34. RIDENTI, 2002, p. 19. Ibid., p. 24. DIAS, 2011, p. 86. Foquismo é como ficou conhecida teorização a respeito da prática revolucionária cubana, e consiste na ideia de que é possível desencadear a revolução a partir de grupos armados localizados em regiões rurais, com o apoio indispensável dos camponeses. Também é caracterizada por defender a submissão do aspecto político ao militar dentro da organização revolucionária. (Ver: GUEVARA, Ernesto. A Guerra de Guerrilhas. São Paulo: Edições Populares, 1982). RIDENTI, 2002, p. 26. LIMA e ARANTES, 1984, p. 72.

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A Integração na Produção O movimento de Integração na Produção foi iniciado sistematicamente pela AP no ano de 1969. Além de organizar os operários e camponeses e iniciar a guerra popular prolongada, o movimento tinha o objetivo de proletarizar os militantes. Isso se daria a partir do convívio direto e diário destes com operários e camponeses. Ridenti ressalta que esta política condizia com os três preceitos de Ho Chi 25 Minh: viver junto, comer junto e trabalhar junto . Por meio desta política, a AP tentava extinguir suas heranças pequeno-burguesas, pois acreditava que seria necessário, para dirigir a guerra popular prolongada, tornar-se uma organização predominantemente operário-camponesa. Há muitas discordâncias em relação à política de integração na produção. Contudo, cabe afirmar que há aqueles que a consideram boa, ou necessária no momento, e há os que a consideram, como 26 Herbert José de Souza, um retrocesso . Após a decretação do AI-5, ocorreram diversas prisões de militantes da AP em todo o país, e em várias regiões a organização ficou bastante desarticulada em decorrência dessa prática. Foram enviados, então, militantes de outros Estados para as regiões desarticuladas, com a missão de integrarse à produção e rearticular o trabalho da AP. O Rio Grande do Sul foi uma das regiões que ficou desarticulada e, por isso, foram enviados para o Estado Antônio Ramos Gomes e Nilce Azevedo Cardoso, militantes da AP de São Paulo. Nilce descreve a integração na produção, que viveu no ABC paulista e em Porto Alegre, como uma fase de grandes aprendizados para sua vida. Relata, por exemplo, que no ABC era comum a morte de bebês, e que no RS os riscos de acidentes e mutilações eram 27 constantes . Em depoimento à Cristiane Dias, Nilce afirma que: A integração na produção foi uma excelente política adotada pela AP, pois [...] os militantes iam estar ao lado dos trabalhadores, porque os intelectuais dão a direção do 28 movimento, mas quem faz a revolução são os operários e camponeses! .

A partir deste depoimento, reafirma-se a duplicidade na qualificação da política de integração na produção. Apesar disto, a política de integração na produção foi mantida pela organização, que caminhava cada vez mais na direção do Maoísmo. Isto a aproximava também do Partido Comunista do Brasil, caracterizado por sua linha maoísta e suas aproximações com a China. Como forma de demonstrar o avanço de posições marxista-leninistas de linha maoísta na organização, a AP passa a se chamar, no ano de 1971, Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil (APML do B). A incorporação de fato da maioria dos militantes da AP ao PCdoB aconteceria em 1973. Porém, antes disso, a AP no Rio Grande do Sul foi praticamente dissolvida, dada a intensidade da repressão que se abateu sobre seus militantes. A atuação repressiva à AP no RS O ano de 1972 marca, no Rio Grande do Sul, a desarticulação quase completa da Ação Popular. Já reorganizada em 1969 com a ajuda de militantes de outras regiões, a AP no RS não resistiu à sucessão de prisões feitas pela polícia política da ditadura, o DOPS. No dia 11 de Abril de 1972 foi presa, em um ponto secreto delatado por outro preso, Nilce Azevedo Cardoso, militante transferida de São Paulo para o RS após o AI-5, e que se encarregava dos contatos com os operários pertencentes à organização. Nilce foi fortemente torturada por agentes do 29 DOPS em Porto Alegre e da Operação Bandeirantes em São Paulo , e suas memórias encontram-se no Relatório Azul de 2011 da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, assim como em diversos outros materiais. Neste depoimento publicado pelo Relatório Azul de 2011, Nilce relata que, apesar de serem presos quase todos os integrantes da AP no Rio Grande do Sul em 1972, nenhum operário da organização foi preso: Tinha muita gente da Ação Popular sendo presa no sul. A maior queda no sul ocorreu em 1972. Bom, aí foram caindo um por um. E aí caiu todo mundo, menos os operários, nenhum deles foi preso, pois só eu sabia como encontrá-los.

No ano de 1972, o Departamento Central de Informações da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul elaborou um documento intitulado “Atividades da APML do B no Rio 25 26 27 28 29

RIDENTI, 2002, p. 30. Ibid., p. 32. In VIOLA e PIRES, 2011, p. 154-156. In DIAS, 2011, p. 166. In VIOLA e PIRES, 2011, p. 11-22 (complemento que acompanha a edição de 2011 do Relatório Azul, onde houve erros na impressão do depoimento de Nilce).

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Grande do Sul”, como forma de fazer uma “relação dos elementos que, de uma maneira ou de outra, 30 estabeleceram sua participação na organização subversiva APML do B [...] em nosso Estado” . No total, o documento apresenta 77 nomes de envolvidos nas ações da AP no Estado, desde dirigentes regionais e nacionais, até profissionais liberais que contribuíram financeira e logisticamente para a organização. Como se vê, o esforço dispendido na repressão aos militantes da AP no RS foi grandioso, o que revela por si só a importância que adquiriam os trabalhos da organização diante das instituições repressivas, e o grande poder repressivo do qual dispunha o Estado de Segurança Nacional. A Incorporação da APML do B ao PCdoB No início da década de 1970, as discussões em torno da incorporação ou não da AP ao PC do B se intensificaram e, pela última vez, a organização passou por um processo de debate teórico e cisão. Desta vez a luta interna se organizou em torno de uma maioria, identificada ideologicamente com o PC do B, e uma minoria, resistente à tal fusão. A maioria, porém, decidiu em Congresso pela incorporação ao PC do B. Segundo Ridenti, a luta em torno da questão prosseguiu e, no início de 1973, havia duas organizações que reivindicavam a sigla APML. A primeira era a antiga minoria, expulsa da organização. A segunda era constituída pela antiga maioria, que caminhava para a incorporação completa ao PC do B. Em maio de 1973, foi divulgada uma circular denominada “incorporemo-nos ao PCdoB”, e a APML finalmente se uniu ao Partido Comunista do Brasil. Mesmo assim, a antiga minoria seguiu os esforços 31 para reorganizar a APML, que resistiu até 1981 como entidade nacional, embora muito enfraquecida . Considerações finais Neste trabalho, foi possível analisar as transformações pelas quais passou a Ação Popular, desde sua fundação em 1962 até seu completo desaparecimento em 1981, sempre que possível estabelecendo paralelos entre a organização nacional e a AP do Rio Grande do Sul. Também foi possível compreender a abrangência da ação repressiva do Estado de Segurança Nacional sobre as organizações de oposição, por meio da análise desta repressão sobre a AP. Obviamente, este trabalho não abrange, nem tem esta intenção, toda a história da AP no Brasil ou mesmo no Rio Grande do Sul. Processos importantes, como o Esquema de Fronteira no RS, não foram abordados pelo fato de que o objetivo central do trabalho era observar as transformações pelas quais a AP passou durante sua trajetória, e os aspectos internos e externos à organização que influenciaram estas transformações, bem como traçar um paralelo entre os níveis nacional e estadual da organização. Fontes pesquisadas: Acervo documental da Secretaria de Segurança Pública, disponível no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Em especial, o documento “atividades da APML do B no Rio Grande do Sul”, localizado no Fundo Secretaria de Segurança Pública, Subfundo Departamento Central de Informações. Documento-Base da Ação Popular, publicado em anexo ao livro de LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 118-144. Documento produzido por Herbert José de Souza em 1962, publicado em anexo ao livro de LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979, p.108-117. Depoimento de Nilce Azevedo Cardoso, publicado na edição da COMISSÃO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Relatório Azul 2011. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2011, p. 147-158 (acompanha complemento com o depoimento completo contido entre as páginas 3 e 27). Referências Bibliográficas: DIAS, Cristiane Medianeira Ávila. Ação Popular (AP) no Rio Grande do Sul: 1962-1972. 2011, Dissertação de Mestrado, PPGH, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo. GUEVARA, Ernesto. A Guerra de Guerrilhas. São Paulo: Edições Populares, 1982. LIMA, Haroldo; ARANTES, Aldo. História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. São Paulo: Alfa-Omega, 1984. 30

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Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Departamento Central de Informações / Atividades da APML do B no Rio Grande do Sul. RIDENTI, 2002, p. 39-42.

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LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil: Hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979. RIDENTI, Marcelo. Ação Popular: cristianismo e marxismo. In REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo (orgs.) História do marxismo no Brasil, 5. Partidos e organizações dos anos 20 aos 60. Campinas: ed. Da UNICAMP, 2002, p. 213-282. WASSERMAN, Claudia. O império da Segurança Nacional: O golpe militar de 1964 no Brasil. In WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (orgs.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. VIOLA, Ion Eduardo Annes; PIRES, Thiago Vieira. Nilce Azevedo Cardoso: relembrar é preciso. In COMISSÃO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL. Relatório Azul 2011. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2011, p. 147-158 (3-27 do complemento anexo ao relatório).

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A mudança de posicionamento da Igreja na Ditadura e a Repressão a Padres em São Luís- MA. Marcos Paulo Teixeira

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Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar os principais fatos que desencadearam a Ditadura Civil Militar no Brasil, bem como a mudança de posicionamento e o aumento da repressão contra a Igreja Católica. Por fim analisar o enquadramento de alguns padres nas leis de segurança nacional. Palavras-chave: Ditadura Civil Militar – Igreja Católica – Leis de Segurança Nacional. Abstract: This article aims to analyze the main events that triggered the Civil-Military Dictatorship in Brazil, as well as the change of positioning and increased repression against the Catholic Church. Finally analyze the framework of some priests in national security laws. Keywords: Civil-Military Dictatorship – Catholic Church – National Security Laws.

Introdução Em 1964, o Brasil assistiu a uma das mais dramáticas crises em sua história republicana quando, em março do mesmo ano, os militares, com apoio de civis, depuseram o então presidente João Goulart. O país entraria num dos períodos mais conturbados de sua história política. O papel principal dos militares é sempre colocado em pauta. Nas discussões historiográficas recentes, podemos perceber uma mudança no que confere a participação dos civis na composição do Golpe. O certo é que mesmo num primeiro momento, com o apoio da classe média, Igreja Católica e setores conservadores, observamos num momento posterior que esses mesmos grupos começam a fazer uma oposição ao Regime. Ao analisarmos a dinâmica repressiva dos militares, é possível identificar que mesmo setores que apoiaram a “Revolução”, num segundo momento chegam a sofrer repressões do mesmo regime que ajudaram a legitimar. Prelúdios do Golpe Várias correntes analisam o Golpe por diferentes óticas. Algumas levantam questões principais dos acontecimentos Pré-Golpe, alicerçando as pesquisas nas frustradas tentativas de tomada de poder pelos militares e pela direta. Jorge Ferreira (2001) pontua três momentos específicos dessas crises. Começando pelo ano de 1954, quando por uma forte pressão da direita encabeçada pela UDN e por setores militares , levou o então presidente, Getúlio Vargas a cometer suicídio. Com esse ato há um 2 recuo das forças que defendiam o golpe, tendo em vista a comoção nacional diante do acontecido. Em 1955, a candidatura de Juscelino Kubitschek a presidência recebeu varias criticas, a principal era a respeito da aliança de seu partido com o PTB partido de seu futuro vice João Goulart, ex-ministro do trabalho de Vargas. Mais uma vez os protestos eram encabeçados pela UDN, apoiando até mesmo um boicote às eleições de 1955. As eleições acabaram acontecendo e foram vencidas por Juscelino, sendo eleito também João Goulart para a vice-presidência. Mesmo com a vitória, criara-se um impasse e a possibilidade real de Juscelino não assumir o cargo. Vários setores queriam que a constituição fosse seguida, respeitando o resultado das eleições. Porém, a direita juntamente com alguns setores do exército tramavam um golpe. Diante de uma crise militar e um possível golpe, um grupo ligado ao general Henrique Teixeira Lott, Ministro de guerra, juntamente com outros generais, que defendiam a 3 posse de Juscelino, interviram no processo politico garantindo através do contragolpe a defesa da 1

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Graduando do 7° período do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão. Membro do NUPEHIC (Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea). Bolsista FAPEMA pelo Projeto de Organização, Indexação, Informatização e Publicização do acervo documental sobre História Contemporânea presente no Maranhão, sob coordenação da prof. Drª Monica Piccolo. Para uma análise mais aprofundada sobre o momento das crises de 1954, 1955, 1961, consultar, FERREIRA, Jorge. Crises da Republica: 1954, 1955, 1961. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Jorge Ferreira aponta que neste momento houve uma preocupação em promover uma saída legal ao golpe; o General Henrique Teixeira Lott chama então, o vice-presidente do senado e o presidente da câmara, indicando assim outro civil para ocupar a presidência.

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legalidade e a posse do então presidente eleito. Outro momento analisado pelo autor foi à crise gerada pelo renúncia de Jânio Quadros. As eleições para a presidência e a vice, não ocorriam de maneira casada; candidatos de ambos os cargos concorriam separadamente. Jânio foi eleito presidente e João Goulart vice. O problema é que o país se encontrava numa situação financeira complicada. De fato Jânio tentou lidar com as pressões do cargo, porém como pontua André Villela (2005), sua renúncia estaria ligada a falta de base parlamentar no seu governo e a coloca como um dos “gestos mais dramáticos da história do país, pelos efeitos políticos 4 imediatos e de longo prazo”. No contexto da renúncia de Jânio Quadros surge novo impasse pelos setores conservadores, juntamente com o exército, por não aprovarem a posse do vice, João Goulart, gerando assim uma nova crise, que acabou desembocando na “campanha da legalidade”. Para a resolução do problema foi encontrada uma solução de compromisso, uma emenda na constituição; colocando o sistema parlamentarista em vigência no país, garantindo assim a posse de Jango, atuando com poderes reduzidos, tendo como primeiro-ministro Tancredo Neves. Esse enfraquecimento gerado pelo parlamentarismo permaneceria em seu governo. Até mesmo quando Jango consegue a antecipação do plebiscito para restaurar o sistema presidencialista, acabaria por não deixa-lo realizar seus principais planos. Para alguns autores as reformas sociais propostas por Jango poderiam de certa forma reformular o desenvolvimento brasileiro no sentido de construir uma sociedade menos desigual. Segundo André Villela (2005), Jango quis implementar uma politica que tinha como ponto central três 5 objetivos principais: conciliar crescimento econômico aliado a reformas sociais e o combate a inflação. Durante todo seu governo um ponto importante que chama a atenção foi à participação doa movimentos populares, todos eles segundo Daniel A. Reis (2001), dotaram-se de um programa em comum, a luta pelas Reformas de Base. O problema colocado pelo mesmo autor foi que todas essas reformas acabaram por ir de encontro a outros interesses que não eram os dos trabalhadores e sim de uma elite conservadora que já havia dado vários sinais de que não apoiaria certas reformas. Assim quando Jango anuncia que pretende realizar suas reformas de base, tendo como principal levante a reforma agrária, dentro dos quartéis já se ensaiava o golpe que se anunciava. Toda a estruturação é percebida em torno do governo de João Goulart, tanto da direita e às vezes da própria esquerda, as pressões foram enormes, a sua posição ideológica e os rumos que ele está disposto a tomar fizeram com que as forças armadas assumissem uma postura diferente das outras ocasiões. A última cartada contra a Democracia foi dada em março de 1964. Com elementos diferentes de outras oportunidades, as forças conservadores alinhavam-se ao exército e creditando a esses agora o papel de defensores da legalidade, da constituição e da ordem. Inicio da Repressão No Brasil, desde os primeiros dias após o golpe, a repressão foi incessante por parte dos militares, principalmente por quem representasse uma “ameaça”, por menor que fosse ou de fato nem existisse para a “segurança da nação”, eram tidos como subversivos, criminosos. Alguns setores da sociedade brasileira apoiaram o regime; classe média, empresários, técnicos, Igreja Católica, alguns trabalhos, como o de Dreifuss, mostram o quão foram importantes às participações dos civis para o “sucesso” da imposição do regime. O medo por parte de alguns setores nacionais e até mesmo internacionais de uma ameaça comunista representou um papel importante na composição do golpe, tendo em vista que muitas vezes utilizou-se desse “medo” para desestabilizar o governo de João Goulart. Vários foram os interesses de determinados setores por essa “repulsa” a ameaça vermelha e uma possível revolução no país. O Exército, principal elemento no golpe, detinha um interesse principalmente no que confere a sua essência; a direita, na figura da UDN, demonstrava a muito o desejo pelo fim do mandato de Jango. Uma importante discussão sobre a participação dos civis no golpe está presente na obra de René Dreifuss (1987). O historiador uruguaio destaca a presença notável de civis, reunidos e atuando 6 nos complexos (IPES/IBAD) , que foram responsáveis pela desestabilização do governo Joao Goulart. Eram os chamados técnicos; mostra ainda o papel dos empresários e tecno-empresários que após o golpe ocuparam posições chaves nas administrações e ministérios, concluindo assim uma participação 7 bastante efetiva de setores civis. 4

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VILLELA, André. Dos anos Dourados de JK à Crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fábio. Economia Brasileira Contemporânea (1954-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. VILLELA, André. Dos anos Dourados de JK à Crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fábio. Economia Brasileira Contemporânea (1954-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. O IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e o IBAD, Instituto Brasileiro da Ação Democrática; constituem um complexo responsável pela campanha de desestabilização do governo de João Goulart. Com a imposição do Regime vária de seus principais empresários ocuparam cargos chaves no governo. Em sua obra, “1964: a conquista do Estado. Ação politica, poder e golpe de classe”. René Dreifuss analisa a

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Logo nos primeiros dias do golpe ficou demonstrada uma divisão dentro do próprio Exército. Existiam dois pontos de vista a respeito da “Revolução”, como aponta Thomas Skidmore (1988). Duas frações com projetos distintos dentro do exército: a chamada linha de “Sorbonne”, uma linha mais "moderada”, encabeçado pelo primeiro presidente do golpe Castelo Branco: Oficiais estreitamente ligados à Escola Superior de Guerra (ESG), instituição patrocinada pelos militares, cujos cursos de um ano atraíam igual número da elite militar e civil. Outros conhecidos oficiais da Sorbonne eram os generais Golbery do Couto e Silva, Cordeiro de Farias, Ernesto Geisel e Jurandir de Bizarria Mamede. Este grupo, mais moderado do que a linha dura, defendia a livre iniciativa (embora considerando também necessária a existência de um governo forte), uma política externa anticomunista, a adoção preferencialmente de soluções técnicas e fidelidade à democracia, achando, no entanto, que a curto prazo o governo arbitrário se impunha como uma necessidade. A coesão desses oficiais da Sorbonne resultou das experiências comuns que viveram na FEB, durante a Segunda Guerra Mundial; na ESG (não só como estagiários, mas, sobretudo como professores); e em cursos em instituições militares do exterior, especialmente nos Estados Unidos. Esses oficiais ficaram mais tarde conhecidos como castelistas e desempenhariam importante papel em 8 subseqüentes governos militares.

Em defesa de ideais contrários à linha de Sorbonne, a chamada “Linha Dura” era encabeçada pelo militar que chefiou as primeiras semanas do golpe, Costa e Silva, que viria a ser o segundo presidente do regime, como pontua Ronaldo Costa Colto (1999): Eles não querem apenas o papel de mero moderador do passado recente, o ciclo intervenção militar-substituição de governantes-volta aos quarteis. Como na crise da renuncia de Jânio Quadros, por exemplo, que resultou em parlamentarismo e Goulart presidente. Agora querem o poder político e a permanência do movimento. Querem governar. Governo forte autoritário. É a “Linha Dura”, direita da direita militar, cuja 9 disputa com os moderados vai permear todo o longo ciclo autoritário.

O Brasil atravessava um momento de intensa atividade politica. Setores de esquerda demonstravam descontentamento e anseio de mudanças na conjuntura do país. Como essas mudanças se processariam era a duvida que pairava sobre a população. Todas essas melhorias e transformações 10 estavam contidas nas Reformas de Base , que tomaram conta do momento politico anteriores ao golpe. Grande era a pressão pelas reformas, uma principal chamava bastante atenção, tanto de setores conservadores quanto os da esquerda, a Reforma Agraria que tinha como fundamento básico distribuir a terra de maneira menos injusta, fazendo com que fosse utilizada por uma parcela maior da população. O problema residia na questão da terra pertencer a grandes latifundiários que acabavam influenciando diretamente na politica nacional; não somente Reforma Agraria entrou em pauta, varias outras reformas foram exigidas por setores sociais almejando um país menos injusto. Exemplo disso era a Reforma Universitária numa espécie de democratização desse direito e colocando a mesma a favor de interesses nacionais. Neste contexto das reformas a participação efetiva dos trabalhadores assustou muito as parcelas conservadoras e a classe média, como aponta Daniel Aarão Reis (2001): As camadas médias percebiam que um processo radical de distribuição de renda e poder por certo afetariam suas tradicionais posições e seus relativos privilégios naquela sociedade brutalmente desigual. Disseminava-se assim uma sensação de que o mundo poderia virar de ponta a cabeça: um campo fecundo para todo tipo de agitação 11 conservadora.

Podemos verificar o forte peso que as campanhas de desestabilização causaram no governo de João Goulart, um papel especial é dedicado ao complexo IPES/IBAD, duas instituições que segundo René Dreifuss (1987), deteve um papel importante na deposição de Jango. Estes dois complexos eram responsáveis pela campanha anticomunista e por fortes denúncias direcionadas ao governo de Jango, como pontua Jorge Ferreira (2003):

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participação dos civis tanto na conjuntura da deposição do presidente João Goulart, como também na ocupação de cargos chaves no governo Militar. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: De Castelo A Tancredo 1964 – 1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. COUTO, Ronaldo Costa. Historia indiscreta da ditadura e da abertura. Rio de Janeiro: Record, 1999. Um conjunto de medidas que visavam a alteração em diversas estruturas no país, afim de garantir um maior desenvolvimento, juntamente com justiça social. REIS, Daniel Aarão. O Colapso do colapso do populismo ou a proposito de uma herança maldita. In: FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2001.

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Ao mesmo tempo, grupos políticos, empresariais e militares articulavam-se em instituições para conspirarem contra o governo de maneira mais organizada. A primeira dela foi o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPES. Fundado no inicio de 1962, inicialmente, publicava livretos, patrocinava palestras, financiava viagens de estudantes aos Estados unidos e ajudava a sustentar organizações estudantis, femininas e operárias conservadoras. Em finais do mesmo ano, grupos mais conservadores reorientaram o órgão no sentido de derrubar o governo... Outra organização era o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, o IBAD. Igualmente sob orientação da CIA, subvencionou diretamente candidaturas conservadoras nas eleições de 1962, todas comprometidas em defender o capital estrangeiro, condenar a reforma agrária e recusar 12 a politica externa independente.

Segundo o autor Daniel Aarão Reis (2001), no governo de Joao Goulart, pode-se observar que a estrutura montada pela direita foi precisa no sentido de desestabilizar seu governo, pois ao observarmos as propostas tanto no Plano Trienal quanto nas Reformas de Base, observa-se uma tentativa de garantir um desenvolvimento de maneira mais justa, o que o Jango não contava era com o aparato que já estava sendo gestado para que seu mandato fosse interrompido. Interessante é mostrar o papel desempenhado pelos trabalhadores nas reinvindicações por melhorias na condição de vida. Esse processo acabou fazendo com que a burguesia, ligada ao capital internacional, Direita, Militares, Igreja Católica e classe média ficassem receosas das mudanças oriundas dessas possíveis Reformas. Tanto o exercito como as forças conservadoras estavam agora com a legitimidade, eram agora defensores da legalidade, levando assim ao Golpe Civil-Militar; pautado no autoritarismo, repressão, cassações de direitos políticos, desaparecimento de presos, torturas e até mesmo mortes dentro das instituições criadas pelo próprio regime. “Sorbornne” e “Linha Dura”: disputas pelo controle do Regime e da Repressão. Ao analisarmos a linha sucessória dentro do regime militar é possível identificar as mudanças ocorridas na “Revolução” em virtude dos dois principais grupos do exército. Como já foi citada, a repressão começou desde os primeiros dias depois de instaurado o golpe, num primeiro momento tentou-se impedir uma resistência maior por parte tanto dos sindicatos como por pessoas que exercessem cargos políticos ou influencia nesse campo. Começava assim um dos períodos mais duros de repressão no Brasil. Os órgãos foram sendo criados sistematicamente para garantir que a lei e a ordem, segundo os preceitos da Exercito, fossem respeitadas a qualquer custo e preço. Toda a ossatura da repressão foi sendo montada no sentido de garantir que alguns órgãos fossem responsáveis pelo controle das atividades contra o regime. Na obra de Carlos fico (2003) fica evidente que a repressão não começou somente depois do AI5. O que os militares, principalmente aos ligados a linha Dura, almejavam já algum tempo eram maiores poderes para fazê-la de modo mais sistematizado. Demonstra também a dificuldade na desmontagem de todo esse aparato na “abertura” politica. O ponto central de sua obra insere-se no contexto da organização dos aparelhos repressores, numa conjuntura bem complexa: O SNI, as DSIs e todos os demais órgãos de informação compunham a comunidade de informações, isto é, dados sobre quaisquer questões ou pessoas de interesse do regime. A produção de tais informações supunha uma rotina bastante regulamentada, que impunha classificações quanto a fidedignidade e veracidade das fontes normas rígidas de sigilo. Quase todo documento produzido pela comunidade recebia uma 13 classificação de sigilo: “reservado”, “confidencial” ou “secreto”.

A crítica maior do autor acima citado é com relação à maneira com que esses documentos eram preparados, tendo em vista que a maioria desses aparelhos foi criada para vigiar e fazer fichas apontando a posição ideológica, quando na verdade muitas vezes não passava de suposição. O simples fato de certa pessoa participar de uma reunião, já a colocava como suspeita. O que o autor pontua como técnicas de suspeição, levantando ainda que dentro desse contexto é fácil imaginar que todas essas fichas com falsas informações poderiam ser utilizados para impugnar candidaturas de desafetos do Regime. A Doutrina de Segurança Nacional balizou toda a estruturação do golpe, como aponta Nilson 12

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FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003. FICO, Carlos. Espionagem, polícia politica, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

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Borges (2009), “a Doutrina de Segurança Nacional serviu como base ideológica do sistema implantado 14 em 1964 e contribuiu para a formação do aparato de informações da nova ordem institucional” . Na transição do governo Castelo branco para o do segundo general do Regime, Costa e Silva, há uma mudança significativa na efetivação da Doutrina de Segurança Nacional, como aponta Nilson Borges (2009): Em 13 de dezembro de 1968, o general-presidente Costa e Silva baixa o ato institucional nº 5, resultado de uma crise entre câmara dos deputados e o próprio governo, cujas medidas consolidam a Doutrina de Segurança Nacional e transformam o Brasil num Estado de segurança interna absoluta. No período subsequente, soba égide do AI-5 e como o General Médici na presidência da republica, a dinâmica do regime será violenta mediante a articulação dos diversos aparatos repressivos disponíveis e a serviço do 15 terrorismo estatal.

A conjuntura de transição na presidência de Castelo à Costa e silva e, em virtude da doença do último, para Médici, colocou a frente do país forças que creditavam num maior aumento da repressão contra a subversão uma saída para continuidade do Regime. Neste sentido o aumento da repressão fazse nos anos subsequentes. AI-5 representou o ápice da repressão por parte do Regime Militar, as denúncias se multiplicavam, porém, nenhuma resposta era dada a sociedade sobre esses acontecimentos; o que o autor Padrós classifica ao falar das Doutrinas de Segurança Nacional, quanto do Terror de Estado: Em nome da defesa da civilização ocidental e do sistema democrático, a DSN procurou desviar atenções sobre o crescente mal- estar de uma população cada vez mais atingida pelo crescente desequilíbrio da distribuição de renda. Diante dos primeiros sinais de resistência contra esse quadro, a DSN legitimou, em nome do capital internacional e dos seus aliados locais, o uso do Terror de Estado. Tudo justificado com o discurso da defesa da ordem, da estabilidade político-social, da nação ameaçada pelo 16 “comunismo”, das liberdades e da civilização ocidental.

O medo imposto tanto pela DSN quanto o TED balizaram toda a conjuntura do golpe. Impondo medo e receio na sociedade com o objetivo de desestabilizar qualquer reação por parte da mesma. Igreja Católica: do apoio ao Golpe a critica ao Regime Militar A relação da Igreja com o Regime foi significativa. O principal elemento de seu posicionamento 17 observou-se nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” , ainda na campanha de desestabilização do presidente João Goulart. Dois autores num ensaio conjunto analisam as mudanças pelas quais a Igreja passou durante o Regime. Lucilia de Almeida Neves Delgado e Mauro Passos (2009) abordam a colocação das lutas pelos direitos humanos e sociais como fatores principais dessas mudanças ocorridas na igreja. A igreja não constitui um bloco hegemônico nele existentes diversos movimentos que se divergem e praticas que são influenciadas pelas ligações de seus membros com diferentes classes sociais. No contexto do golpe a Igreja esta inserida principalmente na luta contra o comunismo, pela ordem e pelas autoridades constituídas, isso explica o fato de seu apoio ao golpe. Dois eventos principais mudaram o posicionamento da Igreja com relação às questões sócias e principalmente os direitos humanos. No Brasil, o ano de 1968 é apontado como a virada da relação da Igreja Católica com o regime como aponta a obra “Brasil: Nunca mais” (1985): O ano de 1968 pode ser apontado como marco dessa virada por inúmeras razões: foi um momento de manifestações de protestos e repressão policial condenada pelos cristãos; foi o ano da decretação do AI-5; foi o período em que se iniciaram as primeiras experiências de constituição das comunidades eclesiais de base; e também foi o ano de Medellín. Naquela conferencia do episcopado latino-americano (CELAM), as injustiças 14

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BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.p.31. BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003.p.39,40. PADRÓS, Enrique Serra. (2007). América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. Revista Historia e Lutas de Classe, ano 3- edição nº 4. Pag.49. Mobilização organizada pela Igreja Católica com a participação da classe média a fim de criticar a “radicalização” e uma possível Revolução Comunista no Brasil, rezavam em nome lei ordem, família.

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sociais cada vez mais graves, que se faziam presentes em todos os países representados, levaram os bispos a afirmar, na resolução final: “não basta refletir, obter maior clareza e falar. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da palavra, mas 18 tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação.”

O projeto “Brasil: nunca mais” é alicerçado principalmente em processos do Superior Tribunal Militar e caracteriza-se como uma obra de denúncia aos direitos humanos e contra a tortura empregada fortemente nos anos do regime. Com a escalada da repressão nos anos de 1968, a decretação do AI-5, a Igreja passa também a ser perseguida, principalmente pelas criticas feitas pelos clérigos contra o Regime. No mesmo livro é possível identificar vários processos pelos quais clérigos foram acusados de crimes contra a Segurança Nacional. As fichas do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), um dos aparelhos repressores na ditadura, constituem um elemento de grande relevância na pesquisa sobre esse tema, tendo em vista que as mesmas eram utilizadas para obter e registrar informações a respeito de pessoas “suspeitas”. No APEM (Arquivo Público do Estado do Maranhão) encontram-se boa parte dessas documentações. A respeito da Igreja, foram encontrados documentos que destacam a participação de alguns padres envolvidos, aos olhos dos militares, em questões da Segurança Nacional. Em virtude de suas atividades, alguns tiveram seus nomes relacionados a fichas no Dops e também chegaram a enfrentar processos na justiça. Como ainda não foram catalogados, muitos ainda estão em caixas “avulsas”, como foi o caso das fichas do Dops em que se encontram os nomes de cinco padres e oito civis. Entre a relação das fichas que envolvem os padres, existe uma que trata do fato de que Ladislau Papp, de nacionalidade húngara, estaria utilizando-se de um jornal da cidade para tecer criticas contra o Regime, bem como de praticar atos subversivos, como consta na ficha do mesmo: “ANOTAÇÕES: 19 escreveu vários artigos no Jornal Pequeno , procurando fazer agitação, no que muitas vezes conseguiu 20 seu intento.” Os outros documentos, tanto os relacionados aos clérigos quanto aos civis, aponta o nome de outro padre, infelizmente não há indícios de sua ficha; Daniel Constant Jouffe foi o responsável pela investigação a todos os outros, tudo está relacionado a ele. Em primeiro porque os nomes foram citados por conta de uma lista de endereços encontrados em sua residência e ainda é acusado de subversão. Ainda na documentação a respeito dos padres, duas fichas chamam atenção, pois as mesmas contem os respectivos crimes aos quais eles foram submetidos a julgamento. Foram os casos de Xavier Gilles de Maupou, de nacionalidade francesa, este chega a ter duas fichas, uma com informações bem detalhadas, a outra, porém está incompleta e Antônio Monteiro Xavier, que tem somente uma ficha, possuindo as duas uma ligação. Os dois padres em questão são acusados de cometer os mesmos crimes, vejamos a “OCORRÊNCIA” descrita na ficha de Antônio Monteiro Xavier: Incursos nos artigos 23, 25, 39, incisos I, V e 45, incisos I, II decreto lei de Nº 898 de 29/09/79. Pela subdelegacia da policia federal do estado. Inquérito iniciado em 04.08.70 terminado em 18/08/70 quando foi encaminhada a auditoria militar. O sacerdote em tela foi julgado e absolvido, juntamente com o Pe. X.G. M, sendo que ambos eram vigários de São Benedito do Rio Preto local onde foram acusados de praticar os crimes já 21 citados.

Ao analisarmos o decreto-lei Nº 898, os artigos e os incisos que os clérigos foram acusados, pode-se observar que são todos crimes contra a Lei de Segurança Nacional, como o artigo 23: “Art. 23. Tentar subverter a ordem ou estrutura político-social vigente no Brasil, com o fim de estabelecer ditadura 22 de classe, de partido político, de grupo ou indivíduo. Pena: reclusão, de 8 a 20 anos.” ; como também o “Art. 25. Praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva. Pena: reclusão, de 5 a 15 anos. Parágrafo único. Se, em virtude deles, a guerra sobrevém. Pena: prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em 23 grau máximo. ” O último padre, Rogério Dubois, tem em sua ocorrência apenas a questão de seu endereço ter sido encontrado com o Pe. D.C.J., igualmente a ficha de cinco dois oito civis. Sobre estes, todos são 18 19 20

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ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.p.148. Jornal da Ilha de São Luís- MA. Não há mais nenhuma referência? Caixa avulsos DOPS (APEM), SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais de fichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03. Caixa avulsos DOPS (APEM), SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais de fichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03. Decreto-lei Nº 898, De 29 De Setembro De 1969. Define os Crimes Contra a Segurança Nacional, a Ordem Politica e Social Estabelecem Seu Processo e Julgamento e da Outras Providencias. Decreto-lei Nº 898, De 29 De Setembro De 1969. Define os Crimes Contra a Segurança Nacional, a Ordem Política e Social Estabelecem Seu Processo e Julgamento e da Outras Providencias.

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professores e alguns chegam a ter como complemento na ficha o status universitário. Nas fichas dos cinco consta o seguinte texto, como também na do padre Rogério Dubois; “ANOTAÇÕES: este nome 24 consta na relação de endereções do Pe D.C.J, suspeito de exercer atividades subversivas.” Todos datam de 1971, e alguns apresentam um complemento, tratando de alguns terem seguido para a (EDAL) Equipe de Docentes para a América Latina. Através da documentação é possível observar de que maneira alguns clérigos demonstram seu descontentamento com o Regime. Do outro lado percebe-se uma única resposta, a repressão. Sempre categorizada pelos aparelhos criados para este fim demonstra a organização que os militares tiveram para criar e pôr em prática a Doutrina de Segurança Nacional. Conclusão É necessário observar como o golpe de 1964 foi sendo projetado. Quais atores políticos detinham o poder no país? Pela primeira vez poderíamos sonhar com um país menos injusto, em alguns aspectos, ou pelo menos que caminhasse a passos largos neste sentido. Em março de 1964, o Exército, juntamente com foras conservadoras e apoio de alguns setores civis, em nome de uma radicalização fantasiosa, mergulharia o país em dias de plena escuridão. Deixando a democracia de lado, vários setores da sociedade sofreram com as prisões, torturas e desmandos de um Regime que se baseava na Lei de Segurança Nacional, a guerra agora era contra um inimigo que poderia ser qualquer pessoa que tentasse contra os militares. A igreja que apoiara o golpe, em nome principalmente da ordem e da moral, num segundo momento vê a real situação critica do país, mergulhado em um caos social imenso. Ao passar a criticar as condições sociais e politicas, passa a criticar o próprio regime e passa a sofrer com a perseguição, seus clérigos também são atingidos por prisões, perseguições e ate mesmo torturas. O regime mostrava sua verdadeira face, deixando o país marcado por elevados índices de concentração de renda e uma sociedade marcada pelo desrespeito com os direitos comuns ao cidadão num Estado democrático.

Referências Documentais: Documentação Arquivos DOPS/MA. Documento localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM); SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais de fichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03. Referências Bibliográficas: ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. (orgs) O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003. COUTO, Ronaldo Costa. Historia indiscreta da ditadura e da abertura. Rio de Janeiro: Record, 1999. DELGADO, Lucilia Neves. PASSOS, Mauro. Catolicismo: direitos sociais e direitos humanos (19601970) In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. O Brasil Republicano. O tempo da ditaduraRegime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2003. DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação politica, poder, e golpe de classe. Rio de janeiro: vozes, 1987. FERREIRA, Jorge. O Governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003. FERREIRA, Jorge. Crises da Republica: 1954, 1955, 1961. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves. O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003. FICO, Carlos. Espionagem, polícia politica, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003. FICO, Carlos. Além do golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: 24

Caixa avulsos DOPS (APEM). SÉRIE- DOCUMENTOS AVULSOS. Nº do dossiê nº6, Relações nominais de fichário do DOPS. Cx. 148-Est. 07-Prat. 03.

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Record, 2004. PADRÓS, Enrique Serra. (2007). América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. Revista Historia e Lutas de Classe, ano 3- edição nº 4. pag.49. REIS, Daniel Aarão. O Colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita. In: FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2001. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: De Castelo A Tancredo 1964 – 1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. VILLELA, André. Dos anos Dourados de JK à Crise não resolvida (1956-1963). In: GIAMBIAGI, Fábio. Economia Brasileira Contemporânea (1954-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

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De Ditadura em Ditadura: o jogo duro das elites dominantes sobre o cidadão comum (1930-1964) Adriana Picheco Rolim

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Resumo: As similaridades e continuidades das ditaduras Vargas e civil-militar de 1964, cuja perseguição, prisão e tortura pelos órgãos de repressão de ambos os governos, ao militante Carlos Marighella, deputado eleito pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) em 1945 e cassado em 1947 expõe algumas das similaridades do interstício ditatorial do Estado brasileiro; fato analisado nas próximas linhas juntamente com o esforço de construir a “imagem marginal” de um dos mais importantes representantes dos movimentos populares ao longo do século. Palavras-chave: Carlos Marighella, Revolução de 30, Ditaduras Vargas e civil-militar de 1964. Abstract: The similarities and continuities of dictatorships Vargas and civil-military of 1964, whose persecution, imprisonment and torture by law enforcement agencies of both Governments, the militant Carlos Marighella, Member elected by the PCB (Brazilian Communist Party) in 1945 and impeached in 1947 some of the exposed by similarities of dictatorial Brazilian State interstice; actually parsed in next lines together with the effort to build the "marginal image" of one of the most important representatives of popular movements throughout the century. Keywords: Carlos Marighella, Revolution 30, dictatorships Vargas and civil-military of 1964.

Introdução O cenário político, por vezes, apresenta-se como um teatro de marionetes, manipulando por fios, ao gosto do manipulador, toda uma sociedade, seja por um interesse claro em defesa própria ou por objetivos protecionistas e inerentes ao bem comum, “uma pessoa que se entregou à política, já não se pertence a si própria e tem de obedecer a outras que não as santas leis de sua natureza” (ZWEIG, 1946, 2 pag.27) . O jogo de informações referentes aos diversos movimentos revolucionários sejam os de lutas de classes, de diferenças ideológicas ou da luta armada, movimento contra a ditadura civil-militar de 1964, etc., são tão complexos quanto às informações conhecidas sobre seus protagonistas, sempre envoltos em discussões diversas, oscilando entre o banditismo e o heroísmo. A memória da luta e da dedicação idealista em que muitos sujeitos viveram em determinados períodos de nossa história, devotando suas vidas, seja ao partido comunista ou a causa operária, por acreditar em uma mudança efetiva no cenário político, pautada por ideais, é que torna justificável a busca do entendimento acerca de tais movimentos e seus personagens. Sufocados e/ou impedidos, sejam por interesse estrangeiros, 3 no caso estadunidense como a “caça as bruxas”, o Marcathismo , em relação com o comunismo soviético, ou por maquinações nacionais ligadas a interesses de poder, é que retardou a possibilidade de popularização de ideias socialistas em determinadas épocas e porque não, o seu próprio entendimento como ideal. A apresentação deste artigo como tentativa de análise sobre as permanências e rupturas dos ideais revolucionárias e seu tratamento por parte das autoridades governantes, nas ditaduras de Getúlio Vargas, a partir do golpe de 1930 e na ditadura civil-militar instaurada a partir de 1964, enquanto força legitimada no combate aos inimigos do regime, ocultando a luta pelos direitos do homem e de sua cidadania. Um olhar sobre estes estados ditatoriais e suas faces pode vislumbrar a trajetória do militante Carlos Marighella, o dito "inimigo n° 1 da ditadura militar” e “velho conhecido da ditadura Vargas” que lutou e resistiu às prisões e perseguições a que foi submetido e a construção do mito de "marginal" construído pela propaganda de direita para ser combatido. Militante dedicado ao Partido Comunista 4 esteve praticamente toda a sua vida política (1935-1969) na clandestinidade. Sua participação desde a intentona comunista de 1935 até a ruptura com o PCB e a fundação da ALN (Aliança Libertadora 1 2 3

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Graduanda em História – 6° semestre. Universidade Norte do Paraná- UNOPAR. Modalidade EAD. Maria Stuart, Stefan Zweig, 1946, pág.27 Política iniciada em 1951, em decorrência da Guerra Fria, entre EUA e URSS, pelo senador norte-americano Joseph McCarthy, cujo intuíto era perseguir pessoas favoráveis ao comunismo. Com a ANL de Luis Carlos Prestes, mesmo que não explicitamente, com o PCB em 1936 e a ALN em 1968(Edson Teixeira da Silva Júnior em “Carlos, a Face Oculta de Marighella”).

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Nacional) demonstra a sua persistência para lutar contra às injustiças sociais e às políticas com influência autoritária e imperialista. Sobre as lutas de classes desde 1930 Mesmo as épocas de opressão são dignas de respeito, pois são a obra, não dos homens, mas da humanidade, e portanto da natureza criadora, que pode ser dura, mas nunca é absurda. Se a época que vivemos é dura, temos o dever de amá-la ainda mais, de penetrá-la com nosso amor, até que tenhamos afastado as enormes montanhas que 5 dissimulam a luz que há para além delas. (PAUWELS E BERGIER, 1946 pag.8).

O golpe de 1930, ou “Revolução de 1930”, atribuído em parte pela historiografia, apoiou-se nas agitações do tumultuado final dos anos 20, com greves em muitos setores da indústria e serviços, fruto 6 do descontentamento dos trabalhadores e da agitação de velhos anarquistas , de novos comunistas e das condições sócio-históricas, impulsionando a busca por seus direitos embasados nas massas 7 populares. A Lei Celerada , lei dos “combates ideológicos”, que proibiu reuniões, censurou a imprensa e calou a voz da oposição, além de colocar o PCB (Partido Comunista Brasileiro) na ilegalidade. Longa e controversa é a trajetória da luta de classes no Brasil, questões sociais são complexas e tendem a não serem levadas a sério por diversos governos. Delimitar os anseios das classes trabalhadoras diante do patronato, que ora reivindica melhorias, ora os apoia é um tanto curiosa. Interessante esta dualidade dentro do movimento operário que por diversas vezes esteve perto de articular-se como classe e não o fez, entre outros, pela aparente falta de compreensão intelectual e/ou a ausência de próprias lideranças e ainda pela inabilidade às massas e seus interesses. A velha questão de patrões em busca de mão de obra barata, tendo em vista o lucro e dos trabalhadores em busca de melhores condições de vida e trabalho, atravessou gerações desde o advento do capitalismo nascido sob a bandeira da revolução industrial. Vozes não foram ouvidas além dos muros das fábricas, nem como uma forma de sobrevivência social e intelectual, nem onde a cidadania se efetiva através da reivindicação da condição humana, da condição como trabalhador, que participa do contexto de produção, apoderando-se assim do seu próprio trabalho e vivenciando sua própria estrutura. Sem a articulação das massas e suas lideranças, o movimento operário não poderia transcender às suas ideias nem ganhar as ruas com a força necessária. Sua existência sempre foi de luta e enfrentamento às várias políticas e policias que não compreendiam a complexidade do movimento, como sendo de cunho não apenas político, mas também social. Confundido muitas vezes como desordem, foi tratado como tal, como caso de polícia, que culminou em repressões e uso de forças abusivas, por parte de governos apavorados com o “terror vermelho”. 8 “Terra, pão e liberdade”..., com este lema a Aliança Nacional Libertadora lançou sua política proletária para dominar a cena política do país. Apoiada por militares, uma classe burguesa com ideias de esquerda, porém sem o total apoio e organização do campesinato e do operariado, lançaram-se no 9 que culminou na Intentona Comunista de 1935, contra o Partido Integralista , de aspirações fascistas e lema moralista, “Deus, pátria e família”. Carlos Marighella assistiu a este episódio e a outros que viriam depois. Comunista convicto passou por duas ditaduras, com prisões, que o perseguiram furiosamente, até acabar assassinado pelo 10 delegado do DEOPS, Sérgio Fernando Paranhos Fleury, após as prisões dos freis dominicanos , numa emboscada covarde, cujo intuito não era fazer de Marighella prisioneiro. “Na noite de terça-feira da semana passada, surpreendido numa armadilha, cercado por quase quarenta policiais, Marighella não 11 se rendeu. E foi aniquilado...” (VEJA, 1969, pg.22) . Pode-se notar claramente, que a intenção não era de capturar Marighella, e sim matar o mito da guerrilha urbana, cujo objetivo era produzir o enfraquecimento dos grupos de esquerda, no intuito de desarticular os mesmos. O perseguido da Era Vargas (1930-1945) e “inimigo n° 1” da ditadura civil-militar (1964-1985) parece ser uma imagem construída no interesse em combater os inimigos do regime e os grupos de esquerda, por parte da elite militar no poder, que transformaram a vida e a militância de Carlos 5 6

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“O Despertar dos Mágicos: Introdução ao realismo Fantástico”, Louis Pauwels e Jacques Bergier,1947, pag.8. As ideias anarquistas vieram na bagagem de muitos imigrantes europeus no início do século XX, mormente os italianos. Lei criada em 1927, no governo de Washington Luís, a fim de reprimir movimentos do bloco operário, suprimindo os direitos de organização de classe ou representação social, tornado possível à repressão aos movimentos sociais e reivindicatórios, como exemplo o movimento da baixa oficialidade conhecido por “tenentismo”. ANL, partido criado no Rio de Janeiro em 1935, tendo Luís Carlos Prestes como presidente honorário. Ação Integralista Brasileira, partido de tendência fascista fundado em abril de 1933. Para as prisões dos freis Fernando de Brito, Yves do Amaral Lebauspin, entre outros, ver Jacob Gorender em “Combate nas trevas”, pag. 172 e 174. Revista Veja, Acervo Digital, reportagem de capa, 12 de novembro de 1969, pag. 22 a 31. Disponível em: http.://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx

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Marighella em uma “vida bandida”. Um olhar mais atento sobre a vida do personagem, despido das possíveis bases de preconceito, intolerância e rancor, possibilitam vislumbrar um líder, que poderia ter seguido uma militância pacífica. Fez a opção pela luta armada, diante das condições históricas impostas pelo Estado e pela sociedade; refletindo, também, ao que parece ser mais uma particularidade de sua personalidade ou a falta de uma perspectiva conciliatória, que a clandestinidade lhe deu de presente. Para o povo, trabalhador descontente ou para aqueles que vislumbravam uma sociedade mais igualitária, a imagem de Marighella poderia transformá-lo em um mito popular e consequentemente, despertar interesses maiores sobre suas reivindicações e, talvez, popularizá-lo. O resgate dos depoimentos de pessoas próximas a Marighella, companheiros de militância e familiares, pode-se compreender o homem comum com suas atitudes e convicções. De sua infância e adolescência, na Bahia, ao seu despertar para os problemas sociais, vivenciados no bairro em que cresceu, seja auxiliando vizinhos com problemas do dia a dia ou crianças com problemas de aprendizado até a sua 12 popularidade entre os presos na organização do dia a dia do “Coletivo” nas prisões de Fernando de Noronha e da Ilha Grande. Disciplinado e extremamente engajado em seus ideais na luta por um Brasil 13 melhor, era visto por seus companheiros como o "melhor comunista" . A trajetória deste homem que se fizera militante comunista em 1934, simpático a ANL de Luís Carlos Prestes, no levante de 1935, a ruptura com o PCB em 1968, a fundação da ALN até a sua morte em 1969, abre a possibilidade de se vislumbrar um Mariguella forjado pela convicção de lutar. O PCB No decorrer da história do homem, desde a servidão passando pela escravidão até a Revolução Industrial, pouca coisa mudou para o trabalhador, acrescentaram-se alguns trocados a menos aqui e algumas horas a mais acolá, porém as mentalidades acerca das relações trabalhistas permanecem. Restou revolta e protestos, mal traduzidos, nas lutas que se seguiram durante anos, ou através deles, perdidos ou mal representados., 14 15 O PCB foi fundado no Brasil no ano de 1922, após o triunfo da revolução proletária na URSS , e como partido novo, com intenções voltadas às classes trabalhadoras e camponesas, aspirando formar uma organização operária politicamente unida, objetivando ter a adesão total das massas para chegar ao poder, desestruturando o velho sistema, para horror da sociedade burguesa, efetivando assim, a revolução do proletariado. O fantasma do comunismo não tinha o aspecto sinistro e capiroto que a grande imprensa e o governo pintavam. O PCB era uma organização incipiente, que tentava assumir o controle do movimento operário, ainda sob a combalida liderança dos 16 anarcossindicalistas. (MEIRELLES, 2005 pag. 75) .

Não constitui tarefa demasiadamente pesada compreender o assombro causado a uma sociedade, pautada por modelos moralistas, católicos, em regra baseada em uma cultura europeia, ligada ao capital estrangeiro, diante das ideias “novas” que propuseram divisão de bens e dos lucros de forma igualitária; capaz de garantir diferentes empoderamentos, mormente com o ganho de espaço social e adeptos. O Partido Comunista Brasileiro, de legalidade curta, formou-se na ilegalidade, com suas ações sendo vigiadas e reprimidas pelos órgãos de segurança. O movimento não efetivou lutas operárias com apoio total das massas, devido a vários fatores, um deles, de grande relevância, foi o fato da classe operária não ter plena consciência e instrução suficiente para marcar a sua própria identidade, muitas vezes não compreendendo o que significava ser “comunista” ou o que o movimento significava e até sua própria inserção nele. Em meados da década de 1930 esta causa foi encabeçada por lideranças operárias, trazendo em suas vozes, os clamores da insatisfação dos trabalhadores. Formaram-se lideranças dentro do meio operário, que logo foram absorvidas por intelectuais simpáticos ao movimento. No Rio, os sindicatos mais bem estruturados continuavam sob controle anarquista, mas era visível o crescimento e a popularidade dos comunistas. Além de se espelharem numa experiência bem-sucedida, a Revolução Russa de 1917, ainda contavam com o apoio psicológico e material de uma nação empenhada em exportar para outros países 17 seu vitorioso modelo político. (MEIRELLES, 2005 pg. 75) . 12

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Organização implantada nas prisões de Fernando de Noronha e Ilha Grande, de um conjunto de regras e tarefas para a convivência e militância dos presos políticos. Como disse Noé Gertel em depoimento a Edson Teixeira da Silva no livro “Carlos, a face oculta de Marighella”, 2009, pag. 384. Partido Comunista Brasileiro. Bloco de países comunistas da antiga União Soviética. “1930: Os Órfãos da Revolução”, Domingos Meirelles, 29005, pag. 75. “1930: Os Órfãos da Revolução”, Domingos Meirelles, 2005, pag.75

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O quadro da vitória proletária na Revolução Russa trouxe a visão de que a revolução socialista poderia trazer novos ventos ao cenário político-social, muitos estrangeiros, imigrantes europeus, trabalhadores com mais qualificação e engajamento político que os trabalhadores brasileiros, desembarcaram no Brasil, como mão de obra para as fábricas, e trouxeram na bagagem ideários revolucionários. Estes voltados para reformas de base, agrária e social. Há revoluções em nome do povo, para o povo e pelo povo, quando deveria ser com o povo ou de total apoio do povo, isto pode confundir a identidade dos movimentos sociais. O partido comunista recebia recursos externos, a nível monetário e intelectual; em teoria o PCB seria o braço do partido soviético no Brasil, com um modelo de liderança proletária, que inspirava ser capaz de efetivar a causa operária brasileira. Foram precisos alguns anos entre legalidades breves e clandestinidade longeva, em desafio às coragens, valores e conceitos das principais lideranças, para que se questionassem o real valor deste modelo soviético para o Brasil. Superar estes interesses para passar a outras mãos significaria não efetivar assim, uma adaptação do pensamento marxista, para transformá-lo em poder político, voltado aos problemas e interesses da sociedade brasileira? Será que seríamos subjugados a outro país cuja situação estaria distante do contexto da sociedade do período supracitado? Sem uma adaptação clara, por parte do PCB, da doutrina marxista, para uma solução brasileira em termos de conscientização operária, instrução e organização social e política, o PCB continuaria um partido distante, sem a adesão das massas, possivelmente atendendo a ideais soviéticos, sem uma nacionalidade brasileira, ou legitimação nacional. Com a chamada “Guerra Fria” (1946/1989), a causa proletária soviética e o imperialismo estadunidense entraram em conflito, na tentativa de se firmarem como potências, hostilidade esta que se inicia com o fim da 2° Grande Guerra, em busca de favorecimento dos interesses de cada um. Do PCB e a sua estruturação e sustentação, podemos dizer que seus membros contribuíam monetariamente com 19 o partido, em complementação ao que era enviado pela URSS . Os membros do partido viajavam para China, Cuba ou URSS, entre outros lugares, para treinamento, aperfeiçoamento e para partilharem suas experiências de militância, em intercâmbio cultural-ideológico. Sobre 1964 Há muitos debates envolvendo este período controverso, debates estes que são parte pertinente para a tentativa de reconstrução dos fatos e acontecimentos. Após o golpe civil-militar de 1964, com a perseguição aos inimigos do regime, estudantes politicamente engajados, lideranças operárias e partidárias, simpatizantes da causa, que militavam contra o regime, entendiam que mudanças eram necessárias dentro do seio da sociedade. Imbuído de práticas, engajamento e idealismo, muito em voga à época, e de certa impetuosidade, própria àqueles tempos, panfletaram e picharam. Foram presos, foram expulsos de universidades e diretórios acadêmicos, foram despedidos, cassados e empurrados para a clandestinidade; acabaram “tragados”, “consumidos”, até desaparecerem da cena social. No grande turbilhão das ebulições culturais à época, com mudanças de caráter cultural e de costumes no mundo a fora, a procura por quebrar ou subverter regras vigentes era de todo sedutora. Na luta por mudanças sociais e melhor distribuição da riqueza e em nome da construção de um país melhor, acabaram por aderirem ao socialismo, pelo operariado e sob lideranças mais experientes nos movimentos de esquerda, aderiram à luta armada pela revolução, após o golpe de 1964. Operariado e campesinato não eram, em sua totalidade, efetivamente de esquerda ou comunista, clamavam por melhores condições de vida, trabalho e renda, o que vinha de encontro com a doutrina comunista e de seus disseminadores, com melhor distribuição da riqueza produzida e, quiçá, com base na doutrina marxista, o povo no poder. Revoluções para tomada de poder há muito são conhecidas, as de 1930 com a tomada de poder por Getúlio Vargas e sua política populista, e a de 1964 com uma junta militar, amparada por parte da sociedade brasileira ante ao pavor do comunismo, uma epidemia, propaganda desencadeada pela política estadunidense, são exemplos. Com o apoio de governos e capital estrangeiros, que brigavam por território longe de suas fronteiras, o governo brasileiro esqueceu-se das liberdades e, aparentemente de seus próprios direitos, de soberania e autonomia, lançando mão da força em demasia, lutando contra uma condição que na verdade deveriam defender, em nome da cidadania. 20 Sendo 1935, uma revolta de cunho comunista e contingente militar tenentista , para a implantação de ideias socialistas em solo brasileiro, os golpes de 1930 e de 1964 tem em comum o fato de serem revoluções em nome dos rumos políticos do país, envolvendo militares e a ameaça do 18

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Revolução socialista em 1917, com a participação das massas operárias, camponesas e lideranças que implantou o sistema comunista na Rússia do czar. Para o envio de dinheiro soviético, “Marighella: O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, Mário Magalhães, pag. 270 e 271. Sobre o Brasil ser o país latino-americano de maior contingente comunista nos quartéis, “Marighella: O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, Mário Magalhães, pag. 81.

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comunismo. Desde antes de 1930 tanto socialistas, anarquistas e comunistas, não se apaziguaram em 21 uma união, ou criaram uma frente forte, nem mesmo com o BOC , em que o operariado e o campesinato, fossem a voz como movimento, totalizando seus ideais numa melhor estruturação da sociedade como um todo. A esquerda e seus componentes foram presos, nestes contextos, empurrados para a ilegalidade, para a marginalidade, ludibriando o direito de existir. As elites sempre viram o tempo como antídoto para certos males. Com o passar dos anos, riquezas de má origem eram contempladas com a graça da purificação. Todos sabiam que a impunidade e o esquecimento transformava dinheiro sujo em dinheiro 22 bom" ( MEIRELLES,2005, pag. 139) .

A perda de memória de uma sociedade é tão antiga quanto sua história. Ela absolve governos, apaga testemunhos e enaltece interesses no instante vivido. Quanto mais passa o tempo, menos se guardam na memória os vícios de maus governos que representaram interesses de uma minoria e nada ofereceram para a maioria. Oposição de outrora, situação de hoje e vice-versa. Muda-se de ideal tão rápido, que os fatos ocorridos e os males produzidos à sociedade, tornam-se controversos. Nos idos de 1964, a luta da esquerda parecia algo muito isolado, tão isolado quanto suas vidas nos aparelhos. Foi tão combatida e perseguida como "luta bandida" que não obteve tempo de crescer, amadurecer e efetivar-se na luta pelo socialismo, naquele momento. Parece difícil divulgar ideias às escondidas, a propaganda acaba por circular em seu próprio meio, criar seus críticos entre vizinhos, não expandindo ideais além das fronteiras dos aparelhos. As propagandas governamentais entravam nos lares da classe média pelos televisores e periódicos, alcançando uns cem números de pessoas, estavam diretamente em seus lares. Ninguém queria ser sequestrado, nem morto, nem roubado por um grupo de jovens liderados por “comunistas 23 fanáticos”, neste domínio de propaganda, também experimentado por Vargas com o DIP , podia-se determinar o que divulgar, alterar datas e lugares, nomes e profissões, e pior, pensamentos e opiniões, afim de doutrinar. A “propaganda militar” de 64, que talvez prevaleça ainda nos dias atuais, propõe que a luta armada era composta de jovens estudantes de classe média-alta, “mimados”, que não tinham o que fazer somente abalar a ordem e estabelecer a anarquia no país. Esta propaganda omitiu o fato de estes jovens assumiram uma luta política em nome do povo, seguindo lideranças que há muito faziam parte deste contexto, e que em decorrência de uma vida quase sempre ilegal, pressupunham uma situação que lhes dava a condição de se mobilizar em tempos difíceis. Carlos Marighella, comunista As elites, que governaram o nosso país nos golpes 1930 e 1964, voltaram-se sempre para o tão perseguido Partido Comunista e seus quadros, que mesmo acostumados na ilegalidade e confinados em velhos jargões encabeçados por propagandas por parte de governos, lutavam com unhas e dentes para implantar sua política e inserir-se no contexto político vigente. A sociedade civil, que agregou o pavor ao comunismo, ao medo de perder suas posições, apoiou regimes de exceções ou ditadores, que defendiam a moral e os bons costumes, disfarçando interesse caudilhos, evitando por muitos meios ludibriar a articulação política de vários segmentos desta mesma sociedade. Carlos Marighella, líder revolucionário, comunista e controverso, não era um operário, seu pai sim, mais tarde montou uma oficina mecânica, “dono de seu ofício”, trabalhava em casa, sua mãe era dona de casa, “trabalhadora do lar”, e dos filhos, Carlos foi o que mergulhou nos livros do conhecimento, transcendeu a visão da classe operária e tornou-se um intelectual comunista. Se buscarmos entender a complexa trajetória do homem “comum” em seu tempo e no espaço, senhor de sua época, não podemos, neste caso, dispensar a participação efetiva dos militantes do PCB, a articulação e dedicação por parte de seus integrantes, filiados ou simpatizantes, que na sua maioria “vestiram a camisa” da doutrina comunista, incorporando às suas vidas a disciplina dos conceitos, engajados e organizados até no seio familiar, sendo que havia famílias inteiras, comunistas. O fato de lançar-se em lideranças políticas, para a propagação de sua diretriz, não deixa de significar que almejavam transpor os muros da doutrina, e fazer parte da vida pública. Em seu tempo, Marighella dedicou sua vida ao PCB, na convicção de, e tinha muita, construir um país mais justo, acreditou firme neste propósito. Queria justiça e divisão de riquezas, queria estudo e dignidade ao povo. Como deputado estadual em 1946 propôs mudanças que para a época eram revolucionárias. Propôs “livre exercício dos cultos religiosos”, criticou o artigo da constituição onde o 21 22 23

Bloco Operário camponês. “1930: Os Órfãos da Revolução”, Domingos Meirelles, pag.39. Departamento de Imprensa e Propaganda, criado em 1939, órgão público servia para a fabricação da imagem de Getúlio Vargas e de órgão censurador de manifestações contrárias a ele.

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matrimônio contava “vínculo indissolúvel”, lamentou a falta de mulheres na constituinte , entre outros, e claro, não foi ouvido. Anseios tão recorrentes naqueles períodos, de 1930 e 1964, onde o socialismo era evidente, como triunfo sobre as mazelas do povo, ou do trabalhador. Passou pelas prisões do Estado Novo, sofreu torturas, que provavelmente o moldaram em suas convicções, foi perseguido pela ditadura civil-militar de 1964, sem nunca perder a força de lutar, levou isto ao pé da letra, optou pela luta armada e morreu com este ideário. A trajetória deste personagem, que começou sua vida partidária cedo, foi preso, resistiu aos seus inquisidores, viveu, quase sempre, uma rotina clandestina, rompeu com o partido comunista por divergir com o engessamento do mesmo, é que nos dá compreensão dos fatos históricos, tão obscuro para a maioria ainda perambulando por estereótipos projetados, no intuito de resguardar interesses pessoais e frear a evolução natural de acontecimentos, para a construção e vivência da democracia pelo povo brasileiro. A ruptura com o PCB deu-se no entendimento de Marighella, quando o partido assumiu uma posição conservadora, de não aderir à luta armada, ao qual Mariguella acreditava ser o caminho. Figura respeitada, por sua dedicação ao partido, é que neste “racha”, agruparam-se junto a ele, velhos comunistas, na procura de uma forma efetiva e real de inverter o quadro político. Seu engajamento na militância política anterior a sua entrada no partido, fruto da vontade de mudar o contexto social e inerente ao ser humano é que coloca sua fé em um ideal. Na prisão, Carlos Marighella já mostrara sua liderança, organizou o Coletivo, um conjunto de regras com o intuito de organizar o dia a dia dos presos, sem perder suas convicções ou se distanciar do ideai revolucionário. A militância não o tornou um cego, ele vislumbrou, antes, a necessidade do PCB se preocupar mais com a conjuntura política e problemas de ordem social brasileiros, quando sugeriu que o partido mudasse o 25 nome de Partido Comunista Brasileiro para Partido Comunista do Brasil , distanciando-se do modelo soviético, em uma aproximação maior com a realidade do povo brasileiro. Previu também o golpe de 1964, e temia que o partido não estivesse preparado, estava certo (SILVA JÚNIOR, 2009, pag. 114). Antevera o suicídio de Vargas, onde novamente, o PCB não percebeu a realidade da situação (SILVA JÚNIOR, 2009, pag.95), acreditando que seu sucessor pudesse dar carta branca a existência e militância do Partido Comunista. A partir da morte de Stálin e da divulgação de seus crimes, que abalaram profundamente Marighella e os membros do PCB, ocorreu uma busca de identidades, como o “partidão” não acreditava em pegar nas armas para derrubar o governo militar, Marighella, defendia ser esta a única saída, foi expulso do partido por suas divergências, criando uma dissidência, o Agrupamento Comunista, mostrando que seus ideais não mudaram e sim suas ações, levando junto outros simpatizantes, e posteriormente este agrupamento tornou-se a ALN (Aliança Libertadora Nacional), em alusão com a ANL de 1935, que definitivamente fizeram a opção pelas armas e por “ações terroristas”. Marighella foi um herói para a esquerda e o inimigo forte para a ditadura civil-militar de 1964. Sua morte em 1969, com algumas versões que ainda se discute quando surgem novos debates, é unânime, foi covarde e mostra o quanto os órgãos de repressão temiam o homem, o possível mito que poderia vir a se tornar. Não teve tempo de se defender, foi assassinado pela polícia, numa emboscada atrapalhada, que deveria proteger seus direitos como preso, quebrando o frágil o elo que separa o ato legal do ilegal. Considerações Finais Nos dois processos históricos, de 1930 e 1964, pode-se notar a continuidade de manter um regime pela força, ao qual a democracia não se faz plena. Ignorando-se o clamor popular e vestindo velhos costumes com a roupagem necessária a se manter a ordem vigente, ao qual somente poucos se privilegiam das leis em vigor. O passar dos anos, que produzem distanciamento dos episódios, não garantem a possibilidade de compreensão dos fatos e da herança legada por estas duas ditaduras- a varguista e a civil-militar de 1964- que se instauraram como ordem suprema, consumindo ou “desaparecendo” com os direitos do cidadão. Getúlio Vargas, no intuito de quebrar a política do “café com leite”, cuja base assentava-se nas alianças capitaneadas por Minas Gerais e São Paulo, privou diversos grupos de suas manifestações de cidadania, utilizou-se da supressão de direitos, da tortura, impondo uma ditadura disfarçada. Em 1964, após o golpe militar, na equivocada tentativa de se manter a ordem na sociedade, repete-se o episódio de abuso de autoridade sobre o cidadão comum e seu direito de ser contra a imposição de outra ditadura, com perseguições e assassinatos legalizados pelo Estado. Foi o que ocorreu em 1930 e em 1964: legaram à morte de diversos cidadãos, graças a uma propaganda governamental, que buscou marginalizar parte da sociedade. Atualmente ainda se colhem os frutos; com uma cultura coxa, humilhada em termos de nacionalidade e que cultiva o péssimo hábito de esquecer seus algozes. 24 25

“Marighella: O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, Mário Magalhães, pag.173 e 174. O PCB adotava uma linha mais vinculada a doutrina soviética. Somente após a morte de Stálin é que alguns movimentos de esquerda adotaram a linha maoista e cubana.

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Buscamos consolidar nossa democracia, sendo preciso, ainda, muita coragem para encarar nosso passado e nos reconciliarmos com ele. Para tal devemos ressuscitar os mortos, sem que estes ofendam os vivos. Sendo um dever encararmos nossa história para a construção do futuro. O esclarecimento de fatos e a desmistificação de mocinhos e bandidos como necessidade de consolidação expositiva daqueles tempos tão obscuros darão- assim acreditamos- a luz ao palco dos verdadeiros heróis; que florescem através dos debates, sobre “mitos e homens comuns”. Por ser através do diálogo fundamentado, despido de “pré-conceitos”, a construção possível de determinadas trajetórias, ou de toda uma geração que de alguma forma, seja na derrota ou na forma vitoriosa de resistência, interferiu nos 26 fatos e concretizou suas lutas e reivindicações, que aos quartéis, delegacias e ramificações , representavam a fuga à ordem e justiça, capitaneadas pelos representantes do Estado de plantão.

Fontes Pesquisadas: ESTRATÉGIA PARA O TERROR, Revista Veja/Acervo Digital, São Paulo, 12 de novembro de 1969, vol. Semanal, n°62, pag.22 a 31. Disponível em: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Revisão bibliográfica: acesso em 07/08/2012. MORTO O CHEFE DA GUERRILHA MARIGUELA, Folha de São Paulo/ Acervo Folha, São Paulo, 05 de novembro de 1969, Primeiro Caderno, pag1. Disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/1969/11/05/2/ EXPOSIÇÃO DE ACERVO DO GUERILHEIRO REVOLUCIONÁRIO CARLOS MARIGHELLA, Memorial da Resistência, São Paulo, visita em 08/03/2010. Referencias Bibliográficas: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. 12° reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Graal, 2012. ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges. História da Vida Privada: Vol. 5.2° edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, o, 1987. ARNS, Dom Paulo Evaristo. Prefácio Projeto Brasil Nunca Mais- Um relato para a História. 11° edição. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1985. BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História, Cinco séculos de um país em construção. São Paulo: editora Leya, 2010. DOSSIÊ DITADURA, Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. 2°. edição São Paulo, IEVE- imprensa oficial, 2009. GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. MAGALHÃES, Mário. Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo. 1° edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012. MEIRELLES, Domingos. 1930- Os órfãos da revolução. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005. MIRANDA, Nilmário e Tibúrcio, Carlos. Dos Filhos Deste Solo: Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. 2° edição. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2008. SILVA Junior, Edson Teixeira da. Carlos, A Face Oculta de Marighella.1° edição.São Paulo: Editora Expressão Popular, 2009. PAUWELS, Louis e BERGIER, Jacques. O Despertar dos Mágicos- Introdução ao realismo fantástico. São Paulo: Editora Difusão Européia do Livro, 1969. ZWEIG, Stefan. Maria Stuart. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1946.

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Dos órgãos de segurança nacionais, casa de detenção, quartéis, delegacias, sítios usados pela repressão. “Brasil Nunca Mais”, Don Paulo Evaristo Arns,1985.

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XI – Políticas de memória e Justiça de Transição

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Direito de memória e perpetração da violência: o papel da identificação e ressignificação dos espaços de tortura e resistência na justiça de transição Christine Rondon Teixeira

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Resumo: As identificações públicas das estruturas da repressão onde houve violação de Direitos Humanos são estratégicas para a realização do direito à memória, que integra um dos quatro eixos centrais da Justiça de Transição. A investigação dos limites e perspectivas de tais identificações mostra que a ressignificação destes espaços – que são de memória por excelência – pode criar condições para o desenvolvimento de uma consciência coletiva que auxilie nos avanços necessários em prol da democracia. No bojo desta transformação, situa-se a ciência de que as violências e os autoritarismos institucionais estão fortemente vinculados ao restolho ditatorial que a desmemória e a impunidade ajudam a perpetrar. Palavras-chave: ditadura – democracia – memória – violência – espaço público.

Introdução A falta ou a perda da memória coletiva nos povos e nações pode gerar perturbações graves da 2 identidade coletiva e determinar os rumos de toda uma sociedade. Por isso a memória passou a ser um interesse de classe e um objeto de disputa. Com as memórias da ditadura civil-militar brasileira ocorre o mesmo: de um lado, existem ainda hoje forças interessadas na manutenção da impunidade e na administração vantajosa do entulho ditatorial; de outro, forças comprometidas com a realização da democracia e com a Justiça de Transição. Quanto mais nos afastamos temporalmente dos fatos históricos que compuseram o quadro brasileiro de 64 a 85, mais turva fica a memória coletiva da repressão e mais difícil parece ser correlacionar os problemas de nossa democracia incompleta com a ausência de uma efetiva justiça transicional. A questão da violência institucional, por exemplo, jamais é abordada de forma relacionada com as heranças ditatoriais, com nossa cultura política militarizada e com as posturas autoritárias de desrespeito aos Direitos Humanos. A referida Justiça de Transição é compreendida pela ONU como o conjunto de abordagens, mecanismos e estratégias, jurídicas e não jurídicas, destinadas a enfrentar o legado de violência dos 3 regimes autoritários . Para tanto, centrada principalmente nos elementos da memória e da verdade, ela se alicerça em quatro pilares: a reparação das vítimas; a responsabilização dos agentes públicos que cometeram crimes de lesa-humanidade; a reforma das instituições que colaboraram com as violações de 4 direitos no regime e a garantia do direito à memória e à verdade . As identificações e publicizações dos espaços onde houve tortura e resistência são estratégicos para a realização do direito à memória e, portanto, para a efetivação da justiça transicional. As experiências levadas a cabo especialmente por setores da sociedade organizados na pauta da memória, 5 verdade e justiça dão conta de que o georreferenciamento possui o condão de despertar a curiosidade e a consciência das pessoas para a concretude do nosso passado autoritário e de seus efeitos presentes. A possibilidade de ressignificação destes espaços, que outrora representavam estruturas da repressão, criam ambientes propícios à apropriação crítica do lugar e da história. O exercício da memória auxilia na luta pela superação das violências que atravessaram o marco democrático e reforça o compromisso do Estado e da sociedade com os valores da democracia. A construção de memoriais em locais que serviram à repressão para violação de Direitos Humanos ultrapassa a conhecida dimensão museológica comumente centrada na ideia de simples coleções. Estes 1

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Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS – Coordenadora do Comitê Carlos de Ré – da Verdade e da Justiça / RS - Assessora Jurídica Popular na ONG Acesso- Cidadania e Direitos Humanos. E-mail: chrisrondon@yahoo.com.br GOFF, Jacques Le. História e Memória. 5ed. São Paulo: Unicamp, 2003. p. 421. Conforme documento “UN Security Council- The rule of law and transitional justice in conflict and postconflict societies. Report Secretary-General”, produzido pelo Conselho de Segurança da ONU - S/2004/616. ANNAN, Kofi. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. O Comite Carlos de Ré, a exemplo de outros comitês distribuídos por todo o país, que se organizam em rede nacional, promove a identificação pública sistemática de aparelhos utilizados pela repressão na época da ditadura civil-militar brasileira na cidade de Porto Alegre.

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espaços, que já são de memória por excelência, cumprem importante papel na revelação de processos sociais e, por consequência, na construção da nossa memória coletiva e de nossa cultura política. Não é por acaso que o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3) definiu a identificação e a publicização das estruturas utilizadas para a prática de violações de Direitos Humanos como objetivo estratégico para a realização do direito à memória. Se de um lado é sabido que não apenas o presente resulta do passado, mas também o passado depende parcialmente do presente, na 6 medida em que é apreendido no presente e responde a seus interesses ; de outro, há que se concluir pela indispensabilidade de uma disputa pela narrativa histórica para que possamos, de forma consciente, superar o restolho ditatorial incrustado em nossa cultura política e instituições frouxamente democráticas. As identificações públicas e os processos de ressignificação, longe de esgotarem estes objetivos próprios de qualquer transição democrática, constituem uma política de memória importante para a construção de uma memória e de uma identidade coletivas. A ausência de uma transição efetiva, alicerçada na memória e na verdade, traz prejuízos que extrapolam o recorte temporal do regime civilmilitar brasileiro e geram novas formas de opressão, que são percebidas com maiores contrastes nos centros urbanos Direito à memória e crimes do estado Muitos dos esforços engendrados no sentido de efetivar a Justiça de Transição vêm sendo tachados de revanchistas. Inobstante às graves violações de direitos humanos cometidas na época – e seus efeitos ainda presentes na memória das vítimas e no cotidiano do povo brasileiro – o que mais chama a atenção é a repercussão negativa que o levantamento destes fatos vem tendo junto à opinião pública, o que já demonstra a necessidade de ampliação dos debates referentes à justiça transicional e ao direito à memória e à verdade. Não foram poucos os que acusaram estudiosos e militantes que atuam em defesa da consolidação de nossa democracia de passadistas. Neste ponto, é mais do que oportuna a resposta oferecida por Maria Rita Kehel, que atualmente integra a Comissão Nacional da Verdade: O Brasil é passadista sim. Não por culpa dos poucos que ainda lutam para terminar de vez com as mazelas herdadas de 21 anos de ditadura militar. É passadista porque teme romper com o passado. A complacência e o descaso com a política nos impedem de seguir em frente. Em frente. Livres das irregularidades, dos abusos e da conivência silenciosa com a parcela ilegal e criminosa que ainda toleramos, dentro de nosso Estado 7 frouxamente democratizado .

Para além da passividade do povo, chama a atenção a quantidade de pessoas que vêm se dedicando a combater o chamado discurso “revanchista”. Esta é mais uma forma de expressão da nossa democratização incompleta. Tal postura pode ser atribuída à baixa, ou quase nula, quantidade de informações concretas da época ditatorial disponível à população. Além disso, a criação de esteriótipos do novo inimigo social, as constantes tentativas de vincular nossos medos e insatisfações a causas rasas e imediatistas, aliada à banalização da violência, sempre apresentada de forma desvinculada das instituições oficiais do Estado, aumentam a imagem de um completo isolamento histórico do passado autoritário do nosso país com os problemas do nosso cotidiano. Esta anestesia, reforçada por uma Lei de Anistia pactuada entre as elites vinculadas ao regime, mas que imprime uma falsa aparência de acordo bilateral e de superação, amortece todas as criticas sobre o restolho ditatorial ainda presente em nossa realidade. Os valores e práticas que alicerçaram a ditadura civil-militar brasileira estão assustadoramente presentes nas estruturas oficiais do Estado, incluindo o Poder Judiciário, que mantém muitos dos privilégios impostos naquele tempo, e na ação policial, truculenta e impregnada de práticas antidemocráticas. Isso sem mencionar a perseguição de movimentos sociais erigida na lógica da extermínio dos pensamentos, ideologias e projetos que destoam da lógica dominante. Da mesma forma estudantes que protestaram na USP em 2010 foram expulsos da universidade com base em um decreto da época da 8 Ditadura , dirigentes do MST são comumente acusados (e condenados) por supostas operações que

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GOFF, Jacques Le. História e Memória. 5ed. São paulo: Unicamp, 2003. p. 51 KEHL, Maria Rita. Tortura, por que não? O Estado de São Paulo. Em 31 de maio de 2010. Em 2010, seis estudantes da USP que protestaram contra a falta de vagas na moradia estudantil e, conforme deliberação em assembleia, revezaram a ocupação de uma sala usada para fins administrativos, foram expulsos da Universidade com base em um decreto de 1972, criada, portando, à época da ditadura civil-militar brasileira, mas ainda vigente no Regimento Geral da USP. O despacho administrativo publicado no Diário Oficial da União pode ser conferido no seguinte link: http://uspemgreve.blogspot.com.br/2011/12/rodas-expulsa-6-estudantes-dausp.html

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integram um plano maior de dominação . São criados os novos perigos a combater. A ação policial violenta também costuma escolher seus alvos, vitimando especialmente os grupos sociais que carregam o esteriótipo do “inimigo social” reforçado pela grande mídia e pelos grupos que lhe dão sustenção. Conforme o professor José Carlos Moreira da Silva Filho, a atuação violenta das forças de segurança pública hoje está relacionada à ausência de políticas de memória e de responsabilização dos agentes públicos que cometeram crimes de violação de Direitos Humanos durante a ditadura civil-militar. A inexistência de julgamentos ajuda a fortalecer a imutabilidade da cultura organizacional que alimenta a pactuação silenciosa com a perpetração destas violações dentro do marco democrático. In verbis: A possibilidade de julgamento de agentes públicos por violações de direitos humanos, inclusive por violações praticadas em regimes democráticos, é fundamental para a mudança da cultura organizacional do Estado. Os julgamentos contribuem para reforçar os valores que não compactuam com as práticas criminosas do estado e para inibir as tradicionais neutralizações. O papel preventivo do julgamento e da responsabilização desses crimes vai muito além da prevenção nos crimes comuns, pois no crimes do estado as motivações e as ações dos agentes individuais não se separam das motivações e neutralizações presentes na instituição estatal. Outro ponto importante de conexão entre o tema da justiça de transição e dos crimes do Estado está na relação existente entre a atuação violenta e letal das forças de segurança pública e a ausência de políticas de memória, de publicização de documentos públicos, de transparência das instituições públicas e de responsabilização 10 dos agentes que cometeram crimes do Estado .

A prevalência de uma história oficial que ignora as graves violações de direitos cometidas durante o regime civil-militar – violações que ainda lançam seus efeitos em nossa sociedade e instituições – nos anestesia e nos impede de compreender a importância das medidas de transição. Neste contexto, o resgate da memória se mostra indispensável para superação da cultura política autoritária que está no cerne dos crimes do Estado. O crescente apoio popular às posturas truculentas da polícia dá o alerta: O apoio popular aos abusos da polícia sugere a existência não de uma simples disfunção institucional, mas de um padrão cultural muito difundido e incontestado que 11 identifica a ordem e a autoridade ao uso da violência.

Este padrão cultural, que se alimenta da desmemória, culminou na alarmante situação com a qual nos deparamos hoje no Brasil: “estamos imersos em uma cultura política caracterizada pela pouca 12 adesão da população aos valores democráticos e às instituições políticas” . A forte resistência à democratização e à expansão da cidadania se manifesta pela inércia social, pela falta de participação na vida pública e pela complacência com métodos violentos que deveriam ser estranhos a um regime democrático. Em estudo comparado, Antony Pereira destacou que no Brasil, no Chile e na Argentina os 13 diferentes processos de transição para a democracia produziram diferentes legados autoritários . Portanto, as práticas autoritárias que sobreviveram em nossa democracia devem ser estudadas e 9

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Em agosto de 2011, o júri popular condenou os dirigentes do MST Valdecir de Oliveira, José Cenci e Antônio Cosserin de Oliveira a 15 anos de prisão por conta do assassinato de Pedro Milton da Luz Pedroso, morto por um tiro de espingarda disparado na presença de sua mulher e do filho que, à época (em 2001), contava com 12 anos de idade. O tiro, contudo, foi disparado por um quarto integrante do movimento, na ausência dos condenados acima arrolados, já falecido, e, conforme relatos das próprias testemunhas, foi precedido de uma discussão de cunho pessoal, configurando motivação que sequer se relaciona com o MST. Todavia, a promotoria sustentou que, por se tratar de um dia de ação engendrada pelo conjunto do movimento para retomada de lotes do assentamento de Jóia que foram indevidamente comprados por pessoas que jamais pertenceram ao movimento, cabia aos dirigentes a responsabilidade por qualquer acontecimento ocorrido naquele lapso temporal, ainda que tal fato fosse complemente desvinculado dos objetivos centrais da ação. A promotoria insinuou, ainda, que enquanto dirigentes do MST os três réus são perigosos. Incitou o júri a temê-los, uma vez que estão fortemente articulados em um plano maior de tomada de poder que desrespeita os valores da propriedade e da família. FILHO, José Carlos Moreira da Silva. Crimes do Estado e Justiça de Transição. Criminologia e Sistemas Jurídico-penais Contemporâneos. P 61e 62. porto alegre: Edipucrs, 2012. CALDEIRA. Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania e São Paulo. P 133. ARTURI, Carlos Schmidt. A Cultura Política da Linha-Dura Militar: Os “Ideiais Traídos” do general Sylvio Frota in BAQUERO, Marcello (org). Cultura(s) Política(s) e Democracia no Século XXI na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011. p. 245. PEREIRA, Antony P. Ditadura e Pressão. O Autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e terra, 2010. p. 239

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enfrentadas à luz das análises históricas pertinentes e em atenção a esta cultura política de repressão que vem sendo reforçada desde o regime civil-militar brasileiro. A forte ligação entre os crimes do Estado cometidos hoje e falta de informações – reforçada pela impunidade – referente às violações de direitos humanos do nosso passado ditatorial remetem à importância da Justiça de Transição para a consolidação da democracia. Resta, então, saber em que medida das identificações públicas das estruturas da repressão, enquanto política estratégica de memória, podem auxiliar nesta tarefa. Espaço e Memória O papel que as imagens espaciais desempenham na memória coletiva é explicado por Maurice Halbwachs através da relação existente entre os espaços e a (re)construção dos pensamentos. Os espaços físicos desafiam a temporalidade na medida em que guardam impressões, apreendem e criam memória. A representação do lugar se alicerça no fato de que não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial. Nas exatas palavras de Halbwachs: [...] o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às outras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos circunda. É ao espaço, ao nosso espaço – espaço que ocupamos, por onde passamos muitas vezes, a que sempre temos acesso e que, de qualquer maneira, nossa imaginação ou nosso pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamente tem de se fixar para que 14 essa ou aquela categoria de lembranças reapareça.

Estando o espaço impregnado de memória e de dispositivos para reativação de determinadas categorias de lembranças, os signos do lugar assumem importante papel na manutenção ou alteração do estado de coisas existente, influenciando no comportamento dos grupos sociais que experimentam o contato com suas representações materiais. As homenagens espaciais a personalidades responsáveis por crimes de Estado são formas de perpetrar a cultura autoritária, impedindo sua completa superação. Como bem refere Halbwachs, em seguimento ao raciocínio supra esposado, “a memória que garante a 15 permanência desta situação se baseia na permanência do espaço [...]” . A intensa relação existente entre a memória coletiva e as representações espaciais do passado é inegável. Com relação à época da ditadura, que é o foco de nossa análise, muitas são as referências simbólicas espalhadas pelas cidades no sentido de exaltar nossos ditadores, divorciando suas imagens da repressão que protagonizaram no passado recente do país. Gerações que não viveram diretamente as atrocidades do período tiveram – e continuam tendo – suas rotinas marcadas pelas inúmeras vezes que cruzaram maquinalmente por estas ruas, escolas e praças, privados de análises mais acuradas sobre a história de seu país. A significação negativa de espaços é uma tentativa bem-sucedida de heroificar os agentes repressores e passar uma borracha nas violações de direitos humanos que, em sua maioria, ainda não foram apuradas e levadas a conhecimento público. A completa inversão de valores está representada nas placas que nomeiam ruas, praças e escolas. Está impressa nos convites anuais para a comemoração da “revolução de 64”. Não são raras as avenidas “Castelo Branco”, as praças “Geisel” e os monumentos públicos erguidos para homenagear, quase que saudosamente, os ditadores de ontem, que parecem estar vivos no cimento destas construções, como se a qualquer momento pudessem voltar e subverter nossa ordem para tornar-nos subversivos. Os veículos de comunicação e os espaços públicos têm o poder fomentar o processo de alienação, pacificação e neutralização da sociedade diante das violações de direitos humanos que atravessaram o marco democrático. São estes, aliás, efeitos comuns da desmemória e da deturpação do passado resultante de uma disputa de narrativa que ainda privilegia a chamada versão dos vencedores. Por outro lado, estes mesmos instrumentos podem auxiliar no processo de democratização da memória, ampliando o espectro de contato social com as ressignificações necessárias à compreensão do período da repressão, identificação do restolho ditatorial e enfrentamento das violências de hoje. As mesmas pessoas diariamente bombardeadas por notícias que conduzem à banalização da violência e ao rechaçamento de medidas transicionais, apresentadas como revanchitas e atentatórias à Lei de Anistia, não possuem acesso a informações efetivas do período da ditadura. Não raro duvidam da veracidade de fatos. A falta de informação traz confusões comuns que impossibilitam a qualificação dos debates referentes ao tema. A exemplo, inobstante às inúmeras críticas repetidas pelos opositores com relação à instauração 14 15

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 170. Ibidem. p. 172.

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de uma Comissão Nacional da Verdade, parece estar pouco claro à população qual é o verdadeiro objetivo desta Comissão. Também não se trata de revanchismo. Não se trata de uma comissão de Justiça para julgamento daqueles que cometeram crimes em nome do Estado na época da ditadura. Cuida-se, isso sim, de um instrumento que possibilitará a efetivação do direito à verdade. Nas palavras de Paulo Abrão e Marcelo Torelly: Talvez, através da Comissão da Verdade seja possível a efetivação do direito pleno à verdade histórica, com a apuração, localização e abertura dos arquivos específicos dos centros de investigação e repressão ligados diretamente aos centros de comandos militares: o CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica); e CIE (Centro de Informações do Exército) e o CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). Para que, assim, sejam identificadas e tornadas públicas as estruturas utilizadas para a prática de violações aos direitos humanos, suas ramificações nos diversos aparelhos de Estados e outras instâncias da sociedade, e sejam discriminadas as práticas de tortura, morte e desaparecimento, para encaminhamento das informações aos órgãos 16 competentes .

Nós, brasileiros, não temos ideia do exato funcionamento ou mesmo das simples localização dos aparelhos repressores do Estado. A identificação do espaço físico tem importante papel no resgate da história real do período – que vem sendo reiteradamente negada ao nosso povo brasileiro. Nas palavras do professor José Carlos Moreira da Silva Filhos, “a justiça só pode ser feita através de uma política de memória, de um projeto que reconheça nas injustiças do passado, quando 17 confrontadas, a base segura de uma cultura democrática” . Portanto, não há exagero na afirmação de que a Justiça de Transição, através, principalmente, do exercício da memória, é um caminho essencial para a realização de nosso Estado Democrático de Direito. Ao fazer esta relação, Gabriel Merheb Petrus destacou que: [...] o direito à memória e à verdade apresenta-se como uma chave dialética que abre, ao mesmo tempo, duas portas aparentemente opostas. Conecta com o passado, na medida em que constitui, como preceitua a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um “direito de caráter coletivo que permite à sociedade ter acesso à informação essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos”. Mas também rompe com o passado, medida que possibilitaria às instituições do estado que se 18 envolveram na repressão converterem-se de fato à democracia [...].

A citação atribuída à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) diz respeito ao “caso Ignacio Ellacuría y Otros”, no qual foi destacado que o direito à memória e à verdade possui caráter 19 coletivo e é essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos . Não há dúvidas de que o direito à memória e à verdade é internacionalmente reconhecido, sendo invocado, inclusive, nas razões de julgamento da CIDH. Os espaços públicos não podem ser construídos ou signifcados a partir da violação do direito à memória e à verdade. Se as figuras que se tornaram públicas em razão das atrocidades que cometeram devem ser lembradas, isso deve ser feito em atenção ao verdadeiro histórico que construíram. A homenagem aos ditadores, na contramão do que se proclama através de medidas transicionais, tende a apagar o desconforto que seus nomes deveriam evocar à população, que continua sofrendo cegamente os efeitos da repressão e do autoritarismo ainda não superado. Ao tratar das simbologias urbanas através das modulações espaciais, Manuel Castells afirmou

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ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília Macdwell; TORELLY, Marcelo (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos Sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. p. 39. FILHO, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. SANTOS, Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília MacDowell; TORELLY, Marcelo D. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. p. 212. PETRUS, Gabriel Merheb. A Justiça de Transição como Realização do Estado Democrático de Direito: Caminhos para a Desconstrução Político-Jurídica do Legado Autoritário no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. jan./jul. 2010. TORELLY, Marcelo D. (Coord.). Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia, 2010. p. 282. Comissão Interamericana de Direitos humanos. Caso Ignacio Ellacuría y otros. Informe 126/99 de 22 de dezembro de 1999. p. 224.

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que “o espaço está carregado de sentido” . Conclui, a partir desta constatação, que as estruturas 21 simbólicas exercem influência sobre as práticas sociais . De forma mais relacionada aos objetivos do presente estudo, o professor José Carlos Moreira da Silva Filho ressalta que “a memória não diz respeito 22 apenas ao tempo, mas também ao espaço” , constatação que nos remete, mais uma vez, aos ensinamento de Maurice Halbswachs: Não é somente a relação entre o homem e a coisa, é o próprio homem que supomos ser imóvel e não mudar, quando pensamos nos direitos dos homens 23 sobre as coisas. 24

As estruturas espaciais, enquanto receptoras e transmissoras de práticas ideológicas , devem ser utilizadas a favor da realização do direito à memória e à verdade. Por isso, a identificação de estruturas relacionadas ao nosso passado autoritário e a ressigificação dos espaços utilizados para exaltar as práticas repressivas que buscamos superar deve ser conscientemente pensada no sentido dar forças à consolidação da democracia. É precisamente nisso que reside a importância de destacar que o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3) definiu a identificação e a publicização das estruturas utilizadas para a prática de violações de Direitos Humanos como objetivo estratégico para a realização do direito à memória. O valor das identificações públicas foi amplamente reconhecido neste documento enquanto política estratégica de proteção aos Direitos Humanos. Partindo da premissa de que não há memória coletiva que não aconteça em um contexto 25 espacial e considerando a estreita relação entre a falta de uma efetiva transição democrática e a perpetração da violência institucional – bem como da conivência da sociedade com tal realidade –, passa a ser possível desenhar uma forte conurbação entre esta violência e a necessidade de identificação pública dos espaços que foram palco de violações de direitos humanos durante a repressão. Isso porque o objetivo da justiça transicional de secar as raízes da violência institucional e incentivar a construção de uma memória histórica que auxilie na efetiva superação das mazelas herdadas de nossa ditadura civilmilitar passa pela realização de políticas de memória. As identificações públicas e os processos de ressignificação, longe de esgotarem estes objetivos próprios de qualquer transição democrática, constituem uma política de memória importante para a construção de uma memória e de uma identidade coletivas. O reconhecimento do potencial benefício da utilização destes espaços para a conscientização da sociedade e consolidação da democracia auxilia no argumento de que é necessário aumentar este tipo de ação em todo o país. A identificação pública dos espaços de tortura e resistência como política de memória: as experiências do comitê Carlos de Ré e do memorial de resistência de São Paulo Visto que é preciso consolidar políticas de memória para romper com o forte movimento massivo de pactuação com as violências institucionais de hoje e para superar o abismo que a falta de informações cria entre os problemas de nossa democracia inconclusa e a falta de uma efetiva justiça transicional, passamos a defender algumas estratégias práticas para auxiliar neste processo. A partir da já esposada importância dos espaços e representações espaciais no processo de formação da identidade e da memória coletiva, deve-se pensar nos lugares de memória por excelência como pontos radiadores de valores e ideologias, capazes de fornecer elementos indispensáveis para a apreensão crítica da história. Apesar de a responsabilidade pela realização destas identificações ter sido declinada no PNDH3 à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, à Casa Civil da Presidência da República, ao Ministério da Justiça e à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, o que vemos, na prática, é que tais iniciativas vêm sendo protagonizadas por setores organizados da sociedade civil. Dois grandes exemplos de identificações que criaram possibilidades educativas e culturais a partir da publicização e da ressignificação de estruturas são os atos públicos 20 21 22

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CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 304. CASTELLS, loc. cit. FILHO, José Carlos Moreira da Silva. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In: Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. SANTOS, Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília MacDowell; TORELLY, Marcelo D. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. p. 201. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 173. CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p.307. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Editora Centauro, 2006. p. 170

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sistemáticos realizados pelo Comitê Carlos de Ré- da Verdade e da Justiça e a construção do Memorial da Resistência de São Paulo. Em 2007, a partir da mobilização em torno da renovada defesa de uma justiça de transição efetiva e verdadeira, grupos militantes de São Paulo, especialmente o Forum Permanente de ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, se voltaram para a ressignificação do prédio onde antigamente funcionava o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – 27 DEOPS/SP . Ampliando a função preservacionista anteriormente destinada ao espaço, o projeto incluiu a ocupação da estrutura com atividades de referência em memória, como coleta permanente de testemunhos, exposições e visitações guiadas para estudantes. A inciativa, apoiada pelo Governo do Estado de São Paulo, criou um verdadeiro centro de memória viva que é referência para todo o país. Além de georreferenciar uma estrutura da repressão, que permite dizer que o memorial é, por sua própria identificação, um lugar de memória por excelência, o projeto ultrapassou a perspectiva tradicional de museologia se transformou em um centro de memória viva em constante diálogo com a população: O novo projeto museológico do Memorial da Resistência de São Paulo foi inaugurado em 24 de janeiro de 2009, e sua principal característica está na articulação entre a utilização de um lugar de memória por excelência (o edifício que pertenceu ao DEOPS/SP), o potencial educativo com a musealização desse lugar (a exposição de longa duração e demais programas) e as memórias de cidadãos que foram perseguidos,presos e torturados nesse lugar por sua militância política (a resistência). […] O fato de o Memorial ocupar parte do espaço prisional – a carceragem,quatro celas, o corredor principal e o corredor para banho de sol – permite ao visitante o contato direto com um local extremamente simbólico e carregado de signiicados. Para Pierre Nora (1984),os lugares de memória são lugares materiais (e imateriais) onde a memória social se apoia e pode ser captada pelos sentidos; são lugares uncionais onde se apoia essa memória coletiva, e são simbólicos, onde a memória coletiva se revela. Esses lugares – documentos/monumentos – são construções históricas e coletivas que têm a potencialidade de revelar processos sociais. Porém,entendemos que para que os lugares de memória – como o DEOPS/SP – exerçam uma função social contemporânea, precisam ser trabalhados sob uma perspectiva museológica processual.

Os efeitos positivos do projeto bem sucedido são destacados por alguns de seus coordenadores: A importância dessas atividades está em sua capacidade de possibilitar o tratamento de temas muito diversos, envolvendo desdobramentos da exposição de longa duração para outras propostas relacionadas ao controle, repressão e resistência nos mais diferentes suportes; têm atraído públicos bastante diversificados e ainda vêm transformando o público em visitante assíduo, que participa das inúmeras atividades educativas e culturais realizadas pelo Memorial da Resistência com regularidade. Contribuir para a formação de cidadãos conhecedores e críticos em relação à história do Brasil republicano, promovendo a sensibilização e a conscientização sobre a importância do exercício da cidadania, da democracia e dos direitos humanos, é o 28 desafio cotidiano do Programa de Ação Educativa do Memorial da Resistência .

Na mesma linha, confrontado com a premente necessidade de ampliar, democratizar e instrumentalizar os debates sobre as violações de Direitos Humanos cometidas em nome do regime civilmilitar brasileiro, bem como de despertar a consciência das pessoas no sentido da não repetição destes crimes, empoderando-as de seu passado e reforçando nosso compromisso com a democracia, o Comitê Carlos de Ré realizou a identificação de diferentes locais de tortura utilizados pela repressão na cidade de Porto Alegre. O primeiro local a ser identificado foi a antiga sede da Dopinha, sito na Rua Santo Antônio, nº 600, onde funcionava uma estrutura clandestina do DOPS. A Dopinha, que outrora foi um aparelho clandestino da ditadura civil-militar, onde houve, comprovadamente, tortura e morte, assim como a antiga sede do DEOPS em São Paulo, é um local de memória por excelência. O conhecido “Casarão da Santo Antônio” ganhou notoriedade em razão da tortura e do assassinato do Sargento Manoel Raimundo Soares, que mais tarde ficou conhecido como 26

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O Comitê Carlos de Ré é o comitê gaúcho da memória, verdade e justiça. Fundado em junho de 2011, congrega pessoas e organizações, partidários e não-partidárias, no objetivo de unir esforços para disputar a consciência da sociedade atentando para a importância da justiça de transição no processo de construção da democracia e de superação dos valores autoritários perpetrados por instituições oficiais do Estado. ARAÚJO, Marcelo Mattos; NEVES, Kátia Regina Felipini; MENEZES, Caroline Grassi Franco. O Memorial da Resistência de São Paulo e os desafios Comunicacionais in Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça. – N. 3(jan. / jun. 2010). – Brasília : Ministério da Justiça , 2010. p. 234. Ibidem. P. 239.

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“caso das mãos amarradas” . Após a identificação pública, com adesivagem que denunciava as antigas funções do local, o Comitê Carlos de Ré apresentou publicamente o projeto de construção do “Memorial Ico Lisboa”, um centro de memória viva que em seu nome resgata a história e presta homenagem ao lutador Luiz Eurico Tejera Lisboa, que foi o primeiro desaparecido político que teve seu corpo encontrado 30 no país . A identificação da Penitenciária Feminina Madre Pelletier, por sua vez, além de promover este importante georreferenciamento, criou diversos espaços de conscientização do papel das mulheres na resistência, especialmente por ter sido construído coletivamente com as mulheres em situação de prisão hoje e com a Coordenadoria Penitenciária de Mulheres da Susep. O processo de oficinas preparatórias para o ato promoveu uma interlocução entre diferentes grupos de mulheres que, em diferentes momentos históricos, foram desafiadas a superar o machismo para exercer protagonismo. O reconhecimento mútuo não apenas aproximou, mas auxiliou no processo de conscientização de um grupo para a crueldade da realidade do outro. Muitas apenadas atuais, em conversas com ex-presas políticas que estiveram no Madre Pelletier durante a ditadura civil-militar, tiveram seu primeiro contato com a temática da repressão graças à iniciativa de identificação do lugar. Narraram experiências próprias e situações atuais de tortura que remontam a práticas incompatíveis com os valores democráticos. Tomando consciência da importância de resgatar esta história, escreveram de próprio punho, após algumas assembleias internas, um projeto de ressignificação das celas antigamente utilizadas para as presas políticas, onde atualmente funciona um canil da Brigada Militar. A partir destes exemplos percebe-se que, enquanto política de memória, as identificações públicas e os processos de ressignificação têm valor ainda não mensurado, ou mesmo imensurável na concretização da Justiça de Transição. Da mesma forma que são reconhecidos os efeitos nefastos da exaltação de agentes da repressão através de homenagens em nomes de ruas e monumentos públicos, está cada vez mais forte a demonstração do potencial benefício da utilização destes espaços para a conscientização da sociedade. Conclusão O exercício da memória, através do conhecimento dos fatos históricos que marcaram o período da repressão, auxilia na luta pela superação das violências institucionais perpetradas ao longo destes anos e reforça o compromisso do Estado e da sociedade com os valores democráticos. O incentivo a políticas de memória que permitam a referenciação geográfica da história e sua captura cinestésica potencializa as possibilidades transformadoras da ocupação educativa e criativa dos lugares. O espaço “é sempre uma conjuntura histórica e uma forma social que recebe seu sentido dos 31 processos sociais que se exprimem através dele” e, mesmo por isso, ele não apenas reflete certa conjuntura histórica, mas também produz efeitos específicos sobre as demais estruturas da organização social. Não é por acaso qu a produção dos espaços geralmente é pensada a partir de determinados interesses hegemônicos. A disputa pela história é uma das facetas deste jogo, não restando a menor dúvida de que há muitos interesses ocultos sob o véu do esquecimento e das “verdades oficiais” cunhadas sobre ele. A superação de todas as heranças da ditadura civil-militar que são incompatíveis com os valores democráticos, especialmente da violência do Estado, depende de ações comprometidas com a efetivação da Justiça de Transição. Dentro disso, a identificação pública e a ressignificação das estruturas onde houve violação de Direitos Humanos por parte da repressão contribui para a realização do direito à verdade e à memória. Definitivamente, os efeitos dos lugares podem tanto influenciar positivamente na consolidação das estruturas democráticas quanto negativamente no processo de 29

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ROSA, Susel Oliveira. A Biopolítica e a Vida “Que se Pode Deixar Morrer”. Jundiaí: Paco Editorial, 2012. p. 88117. O projeto, que propõe uma gestão compartilhada entre comitês da sociedade civil, universidades gaúchas e Secretarias de Direitos Humanos do Município, Estado e Federação, já conta com importantes apoios. Em diferentes reuniões realizadas com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul e com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República surgiu a proposta de formalização de um convênio para desapropriação do Casarão da Rua Santo Antônio nos seguintes moldes: fica o jurídico de desapropriação por conta da Prefeitura, que também arcará com 50% dos custos provenientes, cabendo os 50% restantes ao Governo do Estado do RS e reforma e manutenção do prédio por conta da Secretaria de Direitos Humanos da Presidênca da República. O compromisso da prefeitura já foi publicamente assumido pelo então prefeito, Sr. José Fortunati, diante da imprensa, em reunião com o Comitê Carlos de Ré. Os compromissos do Governo do Rio Grande do Sul e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República foi manifestado em reuniões reservadas com o Comitê Carlos de Ré, que tratou diretamente com o Governador Tarso Genro e com a Ministra Maria do Rosário. CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 539.

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deturpação e de esquecimento do passado.

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Inicio de la Política Reparatoria como Política Pública María Teresa Piñero

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Resumen: Las principales leyes reparatorias argentinas se gestaron a principios de la década del 90, durante el gobierno de Carlos Menem. Un gobierno que llevó adelante políticas neoliberales y otorgó indultos a los jefes militares presos por crímenes de lesa humanidad. Sin embargo, esta política ha sido exitosa y se ha caracterizado por su generosidad y amplitud. El objetivo de esta ponencia es explicar en qué consiste dicha política. Primero se pasa revista a las leyes 24.043, 24.411 y 25.914 que otorgaron una indemnización económica a las víctimas de las violaciones a los derechos humanos cometidas por las fuerzas armadas y de seguridad.Luego se define a la política reparatoria como política pública y se analiza cómo logró tener éxito pese a un contexto incierto y complicado. Se examinan sus diferentes etapas en tanto política pública no tradicional. Para ello, se utilizaron fuentes primarias, entrevistas a protagonistas y beneficiarios. Se consultó también a autores que han analizado las políticas públicas. Palabras-clave: Reparación – Indemnización - violaciones a los derechos humanos – Desaparecidos Presos políticos Abstract: The main Argentine reparatory laws started at the beginning of the 90’, during Carlos Menem’s government. This government implemented neoliberal policies and indulted the military junta leaders convicted for crimes against humanity. Nevertheless, this policy has been successful and is known by its extent and generosity. The purpose of this paper is to explain what the reparatory policy is. First, 24.043, 24.411 and 25.914 laws granting monetary compensation to victims of human rights violations committed by armed and security forces are described. Then, the reparatory policy is defined as a public policy. It is analyzed how it has been a successful policy although a complicated and uncertain context. Its different stages are examined as a non-traditional public policy. For this paper, primary sources, as interviews to actors and beneficiaries, are employed. Also authors studying public policies have been consulted. Keywords: Reparation - monetary compensation - human rights violations - disappeared-political prisoners

I. Introducción Este trabajo se propone examinar cómo se inició en Argentina la política reparatoria en tanto política pública. Las principales leyes reparatorias se gestaron a principios de la década del 90, durante el gobierno de Carlos Menem. Fue este gobierno el que llevó adelante políticas neoliberales que completaron las políticas iniciadas durante el gobierno militar. Fue ese mismo gobierno el que otorgó indultos a los jefes militares presos por crímenes de lesa humanidad. Pese a ello, esa política ha sido exitosa y se caracteriza por su generosidad y amplitud. La política reparatoria abarca una serie de medidas, no sólo económicas, que procuran desagraviar, reparar los daños perpetrados por las graves violaciones a los derechos humanos cometidas por el gobierno militar (1976-1983) y los grupos paramilitares, y atender las necesidades que ellas originaron. En este trabajo nos referiremos sólo a las leyes que han otorgado indemnizaciones. La política reparatoria, es decir, las leyes 24.043, 24.411, 25.914 y su aplicación, otorgaron una indemnización económica a las víctimas de las violaciones a los derechos humanos cometidas entre 1974 y 1983. Se considera que una política pública es el conjunto de objetivos, decisiones y acciones que lleva a cabo un gobierno para solucionar los problemas que en un momento determinado los ciudadanos 2 y el propio gobierno considera prioritarios . En este sentido, la política reparatoria del Gobierno Nacional puede considerarse una política 1

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Como viuda de Angel Georgiadis, asesinado en 1977 por la dictadura en la cárcel de La Plata, me correspondió el beneficio de la ley 24.043. Cuando se sancionó la ley 24.411, destinada a familiares de desaparecidos y asesinados por el gobierno militar, la Dirección de DDHH me notificó que mi expediente había pasado para el beneficio de ley 24.411 (no se suma). Previamente, en el gobierno de Alfonsín recibí el benefició de la ley 23.466. Por lo tanto, hablo desde el conocimiento de los beneficiarios. Tamayo Sáez, Manuel. “El análisis de las políticas públicas”, en Bañón, Rafael y Carrillo, Ernesto (comps.) La nueva Administración Pública, Alianza Universidad, Madrid, 1997.

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pública, cuyos resultados han ido retroalimentado el proceso reparatorio. Cada paso permitió el paso subsiguiente: Causa Birt, Decreto 70, Ley 24.043, Ley 24.411. En la primera parte de este trabajo se pasa revista a las leyes que instituyeron indemnizaciones a las víctimas o a sus familiares y en la segunda, se analiza la implementación de esas leyes como política pública. Para este trabajo, se ha recurrido a fuentes primarias, tanto a entrevistas a integrantes de la Secretaría de Derechos Humanos de esos años, como a beneficiarios de las leyes. Se ha consultado también bibliografía de autores que han reflexionado sobre el tema y sobre las políticas públicas. II. Política Reparatoria 1. Antecedentes La Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (CONADEP) creada en diciembre de 1983 con la finalidad de realizar “investigaciones sobre desaparecidos y violaciones a los derechos humanos” recomendó en su informe final: …que se dicten las normas necesarias para que los hijos y/o familiares de personas desaparecidas durante la represión reciban asistencia económica: becas para estudio; asistencia social; puestos de trabajo. Asimismo que se sancionen las medidas que se estimen convenientes y que concurran a paliar los diversos problemas familiares y 3 sociales emergentes de la desaparición forzada de personas .

El gobierno de Alfonsín dictó una serie de normas de carácter reparatorio vinculadas al ámbito laboral a fin de reintegrar a trabajadores despedidos por causas políticas o gremiales. Algunas de estas leyes fueron: la ley 23.053 (reincorporación al servicio exterior de la Nación), la 23.117 (reincorporación a empresas del Estado), la 23.238 (reincorporación de docentes), la 23.523 (reincorporación de bancarios) y la 23.278 (para efectos previsionales). Todas esas leyes no fueron fruto de la planificación del gobierno nacional, sino producto de la presión que ejercieron los afectados. La Ley 23.466 instituyó una pensión no contributiva para los familiares de personas desaparecidas en situación forzada entre el 24 de marzo de 1976 y el 10 de diciembre de 1983. 4 Asimismo, la ley No 23.852 del 27 de septiembre de 1990 eximió de del servicio militar obligatorio a quienes hubieran experimentado la desaparición de padres o hermanos, con anterioridad al 10 de diciembre de 1983. 2. Decreto 70/91 El Código Civil argentino establece la obligación de reparar económicamente y mide en dinero no la vida o la libertad, sino las consecuencias o el valor del perjuicio sufrido. Por ello, muchas personas que estuvieron detenidas a disposición del PEN iniciaron demandas. Algunas fueron resueltas satisfactoriamente en tribunales de primera instancia, como fue el caso del expresidente Carlos Menem, preso durante el gobierno militar, y otras fueron rechazadas. Estos afectados recurrieron a la Suprema Corte, que automáticamente las denegó por aplicarles el instituto de la prescripción. En 1989, un grupo de personas que no tuvieron satisfacción a sus demandas de reparación elevaron su reclamo ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (caso Birt), invocando el derecho de acceso a la Justicia. En ese contexto, se logró una solución amistosa que reconoció el derecho a una reparación por parte del Estado Argentino y el 10 de enero de 1991 el Poder Ejecutivo dictó el Decreto 70 por el que adoptó la decisión de reparar a aquellas personas detenidas a disposición del P.E.N. hasta el 10 de diciembre de 1983, hubieran iniciado juicio para indemnización daños y perjuicios antes del 10 de diciembre de 1985 y hubiera sido declarada prescripta la acción por sentencia firme. El Gobierno advertía que, de no adoptarse esta medida, el país podría ser sancionado internacionalmente, lo que autorizaba al PEN a dictar normas de sustancia legislativa. Establecía que la autoridad de aplicación era el Ministerio del Interior, que debía comprobar en forma sumarísima el cumplimiento de los recaudos legales exigidos. El beneficio se debía abonar en efectivo. 3. Ley 24.043 Pocos meses después, el 27 de noviembre de 1991 se sancionó la ley 24.043 (véase Anexo) que otorgaba un beneficio a las personas que hubieran estado a disposición del Poder Ejecutivo Nacional durante la vigencia del estado de sitio, o siendo civiles hubiesen sufrido detención en virtud de actos 3

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Informe Nunca Más. Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas, Editorial Eudeba, 2ªedición, Buenos Aires, 1984. En la actualidad, esta medida ha perdido vigencia por la abolición del servicio militar obligatorio.

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emanados de tribunales militares. Esta Ley había estado gestándose a lo largo de más de un año. Elaboró el proyecto de la Ley 24.043 el Dr. Rodolfo Ojea Quintana, ex abogado del MEDH y asesor del Diputado López Arias, de Salta, quien presentó el proyecto de Ley. El debate parlamentario fue evitado intencionalmente para evitar que la discusión entre las distintas fuerzas políticas trabara su aprobación. 4. Ley 24.321 La Ley de Ausencia por Desaparición Forzada (véase Anexo), sancionada el 11 de mayo de 1994, faculta la declaración de ausencia por desaparición forzada de toda aquella persona que hasta el 10 de diciembre de 1983 hubiera desaparecido involuntariamente del lugar de su domicilio o residencia sin que se tenga noticia de su paradero. La Secretaría de Derechos Humanos emite el certificado que deja constancia de la existencia de la presentación de la denuncia sobre la desaparición forzada de una determinada persona. Esta Ley creó la figura de “ausente por desaparición forzada” y fue consensuada con los organismos de derechos humanos, a fin de para poder sancionar la Ley 24.411, ya que los organismos se oponían a declarar la presunción de fallecimiento. Alicia Pierini describe: “No había antecedentes en la legislación nacional ni en el derecho 5 comparado, entonces había que crear la figura desde cero” . Esta Ley es innovadora, pues es la primera de este tipo en el mundo, y abrió el camino para la Convención Internacional contra la Desaparición Forzada de Personas, aprobada en diciembre de 2006. 5. Ley 24.411 Promulgada a fines de 1994, la Ley 24.411 (véase Anexo) establece un beneficio a los causahabientes de las personas desaparecidas o fallecidas como consecuencia del accionar represivo con anterioridad al 10 de diciembre de 1983. También el Dr. Ojea Quintana redactó el proyecto de esta Ley. Prácticamente no tuvo debate parlamentario, ni divulgación. Esta Ley provocó un gran debate. Los organismos de derechos humanos y algunos familiares de los detenidos-desaparecidos se resistieron a cobrar una indemnización en el marco de la ausencia de verdad y justicia, pues parecía que se estuviese comprando su silencio y resignación. De hecho, la Asociación Madres de Plaza de Mayo, conducida por Hebe de Bonafini, equiparó el cobro de la indemnización a prostituirse. Actualmente, el debate ha desaparecido y casi todos los familiares han cobrado la indemnización. Años después, la Ley 24.823 (véase Anexo) modificó y complementó las lagunas de la Ley 24.411. 6. Ley 25.914 La ley 25.914, llamada “ley de hijos”, fue sancionada en 2004, impulsada por el Presidente Kirchner. Está destinada a las personas nacidas durante la privación de la libertad de sus madres, o hubiesen permanecido detenidas en relación a sus padres, siempre que cualquiera de éstos hubiese estado detenido y/o desaparecido por razones políticas. El beneficio consiste en el pago de una suma equivalente a veinte veces la remuneración mensual de los agentes Nivel A, Grado 8. Prevé también a los hijos que fueron apropiados. III. La política reparatoria como política pública 1. Actores Intervinientes 1.1. Secretaría de Derechos Humanos La Ley establecía que la autoridad de aplicación era la Dirección de Derechos Humanos dependiente del Ministerio del Interior, continuación de la Subsecretaría de Derechos Humanos creada inmediatamente después de la presentación del Informe “Nunca Más” y de la disolución de la CONADEP. Con la Reforma del Estado de 1990, la Subsecretaría había bajado de rango, a Dirección de Derechos Humanos, razón por la cual había renunciado el Dr. Frugoni Rey. Luego, la Dirección quedó a cargo de un director que no tenía ni antecedentes, ni interés en derechos humanos. 6 En febrero de 1991 asumió la Dirección la Dra. Alicia Pierini , quien había sido defensora de presos políticos durante los años 70, y tuvo a su cargo la implementación del decreto 70/91.

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Guembe, María José. La experiencia argentina de reparación económica de graves violaciones a los derechos humanos. Buenos Aires, 2004 (mimeo) (Publicado actualmente por Oxford University Press. Alicia Pierini se desempeñaba, al momento de su designación, como abogada en el Ministerio de Justicia, a cargo de un programa de Atención Jurídica Gratuita. Previamente, había sido responsable de Programa del Movimiento Ecuménico por los Derechos Humanos.

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1.2. Otros actores El Presidente de la Nación tomó la decisión de llegar a una solución amistosa y abonar las indemnizaciones. La Dirección de Derechos Humanos del Ministerio de Relaciones Exteriores, llevaba adelante la relación con la CIDH. En ese momento estaba a cargo de Zelmira Regazzoli. Se debe destacar el papel desempeñado por Regazzoli, que también había sido presa política y tenía una mirada desde los derechos humanos. Facilitó la decisión por su empuje y su relación personal y partidaria con el Presidente. El Ministerio del Interior, a través de la Dirección de Derechos Humanos, era la autoridad de aplicación y debía aprobar los expedientes. El Ministerio de Economía, por otra parte, debía autorizar los pagos. Los proyectos de leyes y su posterior sanción fue obra del Poder Legislativo: la Cámara de Diputados y la de Senadores. Otros actores que intervinieron fueron los organismos de derechos humanos, algunos aprobaron la política, otros la cuestionaron y todos reclamaron que los detenidos-desaparecidos tuvieran un tratamiento jurídico diferente al establecido. 2. La toma de decisión Durante 1990 el Gobierno no había formulado ninguna política de derechos humanos. En enero de 1991 esa situación cambió ante el reclamo de la CIDH. Si bien había varias opciones: demorar, aducir prescripción, etc., el Gobierno adoptó la decisión de reconocer la demanda. Menem apoyó la decisión de llevar adelante un programa amplio de reparación a presos políticos. Esta decisión fue una decisión de raíz en dos aspectos. En primer lugar, fue una decisión política que no tuvo en cuenta ningún estudio de factibilidad y se basó principalmente en el registro de la experiencia personal del Presidente ya que, como preso político, había logrado beneficiarse con la reparación a la que consideraba justa y legítima. No se puede dejar de señalar también que en 1989 habían tenido lugar los polémicos indultos que otorgó el Presidente Menem a los jefes de las Juntas Militares condenados por la Cámara Federal. Esos indultos suscitaron la reprobación de buena parte de la población y, sobre todo, de las víctimas de las violaciones a los derechos humanos, algunas de las cuales resultaban beneficiados con estas leyes. De alguna manera, se compensaban así perjuicios y beneficios. Asimismo puede decirse que la decisión de acceder a la reparación fue una decisión de raíz, sobre la cual se fue construyendo toda la Política Reparatoria posterior. El Presidente tomó una decisión y estableció un objetivo. 3. Análisis de Factibilidad Para analizar la factibilidad de una política se han de identificar todas las restricciones reales o potenciales, separarlas de los obstáculos ficticios, evaluar su importancia para diferentes estrategias de ejecución y estimar los costos y beneficios del relajamiento de las restricciones que no sean 7 absolutamente fijas. Sin embargo, para decidir el Decreto 70 no se llevó a cabo ningún estudio de factibilidad, ni tampoco para las Leyes 24.043 y 24.411. Por lo que se refiere a la factibilidad económica, no se consultó al Ministerio de Economía. Nadie había analizado tampoco qué cantidad de recursos financieros eran necesarios para solventar los pagos del Decreto 70 y la Ley 24.043, porque no se sabía cuántos eran los posibles beneficiarios. El Gobierno iba a enfrentar un problema desconocido por la cantidad de potenciales beneficiarios, nuevo, con un alto grado de incertidumbre sobre su desarrollo posterior, los costos de las acciones para afrontarlo, el compromiso de recursos futuros y los resultados de la intervención. 4. Implementación de la política reparatoria Cuando ingresó la Dra. Pierini en la Dirección, encontró una Dirección degradada, con 22 personas, muchas de ellas castigadas y con sumarios internos y otro grupo pequeño que provenía del trabajo de la CONADEP. La Dirección no tenía ninguna política y estaba en proceso de desguase. Funcionaba en el exNuevo Banco Italiano, un local con principio de desalojo. En 1991 la Dirección de DDHH no tenía estructura, ni edificio, ni personal capacitado, ni el mínimo equipamiento. No contaba con caja chica. Empezó sin nada, para la Ley 24.043 no había decreto reglamentario, ni circuito administrativo. 7

Majone, Giandomenico Evidencia, argumentación y persuasión en la formulación de políticas, Fondo de Cultura Económica, México, 1997.

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La situación objetiva mostraba que había una omnipresencia de restricciones: económicas, políticas, institucionales, administrativas, tecnológicas. Existían limitaciones de espacio, de recursos humanos, de información. Era necesaria una sucesión de actividades para ensamblar los distintos elementos: recursos financieros, recursos humanos, normas, decisiones y capacidades administrativas. Todos estos elementos estaban en manos de diferentes actores relativamente independientes entre sí. Había que poner en marcha una decisión, es decir, se debía realizar un proceso donde se debía tomar multitud de decisiones. Si bien se había adoptado un objetivo claro –la reparación–, no se había tenido en cuenta la complejidad del problema que se debía encarar. La decisión inicial no fue más que el pistoletazo que marcó el inicio del juego. Debido a esa complejidad la implementación fue avanzando de manera incrementalista, gradualmente, con gran esfuerzo y voluntad política de ir sorteando los obstáculos. El primer obstáculo sorteado fue obtener un espacio en el edificio de la calle Moreno 711, en el quinto piso y un sector del sexto. Para conseguir personal idóneo que estuviera en condiciones de atender a los posibles beneficiarios, se recurrió a los organismos de derechos humanos, como el MEDH y Familiares. Asimismo, Emilio Mignone, del CELS, envió a una abogada, con alta motivación pues su hermano estaba desaparecido. Muchos inconvenientes se resolvieron en forma pragmática. Uno de ellos fue la carencia de caja chica para gastos menores, absolutamente necesarios para el desenvolvimiento de la actividad cotidiana. Con alguien de suma confianza, se fingió un contrato laboral y el monto mensual se derivaba a los pagos menudos. No era la solución óptima, pero era la viable, que exigió creatividad y una fuerte decisión de alcanzar la meta. No se aceptó la restricción y se buscó la forma de sortearla. La falta de información, es decir, el desconocimiento del listado de los presos a disposición del PEN, se obtuvo por el interés y compromiso de empleados del Ministerio del Interior que habían compartido la militancia política con la Dra Pierini. En ese momento se supo cabalmente que los presos a disposición del PEN habían sido 10000. Por lo que se refiere a la Ley 24.411, fue de fundamental importancia la colaboración también de funcionarios del Ministerio del Interior que encontraron los biblioratos de 18000 hábeas corpus. Esto facilitó la prueba. Se necesitaba gestionar intergubernamentalmente, es decir, conseguir el apoyo de algunos actores políticos y burocráticos para resolver los problemas que se iban presentando. La gestión tuvo éxito gracias a la capacidad de la Directora de llegar a acuerdos con determinados actores para que los llevasen a efecto. Así la Directora convenció y motivó a diferentes actores a que participaran en el proceso. Por ejemplo, consiguió que prestaran computadoras otras dependencias del gobierno, ya que a cargo de ellos estaban funcionarios con quienes había relación personal, o bien habían estado presos, o bien habían luchado contra el gobierno militar. Para obtener recursos para pagar al personal, Claudia Bello, que había pasado a ser Secretaria de la Función Pública, colaboró pagando al personal de la Dirección con horas cátedra del Instituto Nacional de Administración Pública. La estructura de funcionamiento la armaron los administradores gubernamentales, quienes ayudaron también a conseguir algunos contratos. El decreto reglamentario fue redactado en la Dirección y se tardó un año para que lo firmase el 8 Ministro del Interior y la Dirección de Asuntos Jurídicos. El 24 de junio de 1992 se reglamentó mediante el decreto 1023/92, que establecía que la solicitud del beneficio se debía presentar en la Dirección Nacional de Derechos Humanos del Ministerio del Interior y debía contener una declaración jurada firmada por el beneficiario o sus derecho–habientes en la que se manifestase que había sido privado de su libertad por disposición del PEN, o en razón de actos emanados de tribunales militares durante el período comprendido entre el 6 de noviembre de 1974 y el 10 de diciembre de 1983. Se creó un formulario para los peticionantes. Para la Dirección representó un salto de calidad institucional el encuentro de la Asociación Abuelas de Plaza de Mayo con el Presidente, gestionado por la misma Dirección con la colaboración de Claudia Bello. En ese encuentro las Abuelas pidieron al Presidente que otorgara mayor jerarquía a la Dirección, lo que permitió contar con una estructura diferente. Así, en agosto de 1992 Pierini asumió como Subsecretaria y en noviembre se creó la Comisión Nacional por el Derecho a la Identidad (CONADI). Con esa nueva estructura, se organizó la Unidad Ejecutora de la 24.043 y se pudo incorporar a otro administrador gubernamental para que se hiciera cargo de dicha Unidad. Un punto de veto tiene lugar cuando se necesita que un actor individual dé su consentimiento a una acción. Ello ocurrió cuando Gustavo Béliz fue Ministro del Interior (de diciembre de 1992 a agosto de 1993), ya que el Ministro del Interior debía firmar el trámite administrativo para habilitar el pago y Béliz se 8

En ese momento, José Luis Manzano.

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negó a firmar. Ese año significó un año de parálisis, de retraso, no se avanzó y nadie logró cobrar la indemnización. No se obtuvo el consenso de uno de los actores principales y el proceso de implementación no pudo seguir adelante. Se interrumpió. La intervención del Ministro Béliz era indispensable para que avanzara la política. El resultado de su falta de colaboración podría haber equivalido al fracaso, pero sólo significó un retraso considerable. 9 En 1994 asumió Carlos Ruckauf como Ministro del Interior, pero Ruckauf tampoco quería firmar salvo que hubiera una resolución conjunta con el Ministerio de Economía acordando un circuito mixto. Armar el circuito administrativo fue sumamente dificultoso. Por pedido de Claudia Bello también, a fines de 1993, el Dr. Horacio Liendo, del Ministerio de Economía, se ocupó del tema y resolvió que el pago de la Ley 24.043 se podía efectuar en bonos. Asimismo Liendo creó el circuito administrativo, que terminaba en la Caja de Valores. Explicó que no había que preocuparse por el presupuesto nacional porque los bonos no formaban parte de él. Para Alicia Pierini, en ese momento el retraso representaba el fracaso del programa. Tomó la decisión de que, si para fines de 1994 ningún beneficiario llegaba a completar el trámite y cobrar, renunciaría, por lo cual encaró las dificultades con decisión e inventiva. Ruckauf fue entonces el primer ministro que firmó los pagos. Cabe mencionar que el mismo Ministro, que también había estado preso, había cobrado su indemnización. El primer pago de la Ley 24.043 se pudo realizar entre junio y diciembre de 1994, después de que se hubiese establecido la resolución conjunta. Para analizar las restricciones que tuvo que hacer frente la Política Reparatoria, se debe incluir la dimensión del tiempo. Transcurrió suficiente tiempo, desde 1991 hasta diciembre de 1994, para lograr eliminar los obstáculos y restricciones. Para que todos los beneficiarios aprovechasen las infaltables recomendaciones, se inventaron los “paquetes” llamados globales. Para pasar al Ministerio de Economía se hacía en grupos de 25 casos, así si existía un recomendado, arrastraba a 24 casos más. Este procedimiento fue idea de un administrador gubernamental. Por otra parte, las diferentes situaciones llevaron a ampliar por vía de interpretación el campo de cuestiones que se fueron reparando. Una de esas situaciones fue la de quienes habían estado detenidos-desaparecidos en campos clandestinos de detención. Su tratamiento significó un enorme esfuerzo para hallar la prueba pertinente. Por razones de equidad y recomendaciones de foros internacionales, debían equipararse por vía analógica esas situaciones a las contempladas en la Ley 24.043. Sin embargo, se encontraron resistencias en la Unidad de Auditoría Interna y en Asuntos Jurídicos porque consideraban que no estaban suficientemente probados los delitos. Pero había cambiado la situación de la Dirección, contaba con reconocimiento y contratos para el personal. Las leyes reparatorias tuvieron varias prórrogas: la Ley 24.436, la 24.906 y la 24.499. Por otra parte, la Ley 23.823 es aclaratoria de la 24.411. Los problemas más complejos, las políticas más ambiciosas están en manos de personal de ventanilla, que debe resolver, en cada caso concreto, los defectos de la formulación de la Ley, la vaguedad y la imprecisión de la información. Pero el personal de la Subsecretaría son, en su mayor parte, militantes de derechos humanos, por lo que suelen atender a los solicitantes de manera personalizada y cuidadosa y de igual forma buscan resolver cada trámite y búsqueda de pruebas. Las medidas de desempeño señalan cómo se está actuando, es decir, cuáles son las destrezas y dónde se necesita mejorar. Si bien en septiembre de 2002 se presentó la Carta Compromiso con el Ciudadano, donde se explican las características de las diferentes políticas de la Secretaría, los servicios que prestan, los atributos medidos y los estándares, dentro de la Secretaría hay resistencia a dichas mediciones. En una entrevista con personal de la Secretaría, manifestaron que no hay ninguna evaluación de desempeño, ya que se prioriza el aspecto cualitativo y no el desempeño. Tampoco encontramos medidas de carga de trabajo. Pero, sí habría una medida tácita de eficacia, relacionada con la calidad del desempeño, con el efecto deseado, desde el punto de vista de los beneficiarios. La medición de desempeño es parte de un proceso más amplio de evaluación. 10 Alicia Pierini dio algunas cifras. Explicó que para la Ley 24.043 se habían presentado a la fecha del Informe 9840 personas, de los cuales ya se habían abonado 7423 casos y 830 se habían denegado. Los restantes 1587 solicitudes estaban en espera de documentación o en trámite de pago. A partir de la prórroga se presentaron 2792 casos más. El Estado había pagado más de 700 millones de dólares. Más de mil millones de dólares han sido invertidos por el Estado Nacional para indemnizar a los ex presos políticos y perseguidos por la dictadura, si se suman los montos que recibieron los beneficiarios del decreto 70/91, de la ley 24.043, sus prórrogas, equiparaciones, y los pagos que por cumplimiento de sentencias judiciales se hicieron en otros casos. 9 10

Ruckauf fue ministro del Interior desde agosto de 1993 a enero de 1995. Pierini, Alicia. 1989-1999 Diez Años de Derechos Humanos. Ministerio del Interior, Buenos Aires.

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5. Evaluación de la política reparatoria La evaluación forma parte de la vida de cualquier organización, aunque suceda de manera tácita, y consiste en que sus integrantes y los sectores sociales afectados por esa política, identifiquen y midan los efectos de las acciones individuales y del conjunto. En lo que se refiere a la política reparatoria, se puede observar una resistencia a efectuar evaluaciones en forma expresa. Es posible que esa resistencia esté relacionada con las dificultades que tiene la sociedad argentina de analizar el pasado reciente y, en particular, la clase política para afrontar ese debate, seguramente como consecuencia de la actuación de cada fuerza política durante la dictadura y el gobierno de Isabel Perón, y de la rendición de cuentas no realizada. Últimamente se observa que esta situación empieza a mostrar signos de cambio. Sin embargo, la retroalimentación de la política reparatoria y las sucesivas prórrogas a las leyes se pueden considerar una evaluación implícita. La política pública reparatoria no sólo ha continuado, sino se ha incrementado. Se extendió a los sucesos de José León Suárez, los fusilamientos de 1956, a los asesinatos de Trelew, las víctimas del Plan Cóndor, los menores víctimas del terrorismo de Estado, los presos del CONINTES, etc. Además, varias provincias han instituido pensiones para los ex detenidos políticos. Otra evaluación implícita es también el fortalecimiento institucional que ha registrado la actual Secretaría de Derechos Humanos. Posee un edificio nuevo, un presupuesto propio y un organismo desconcentrado, el Archivo Nacional de la Memoria, que depende de la Secretaría. Tiene más personal con mayor especialización y capacitación. Se han creado tres direcciones nacionales y dos subsecretarías de Estado. Por lo que se refiere a los sectores sociales afectados, hay una demanda importante por parte de las personas que debieron exiliarse durante el gobierno militar de que se sancione la ley del exilio. Tamayo Saez nos habla de un proceso cíclico donde la evaluación es la última fase del proceso de la política pública y también la primera, ya que el análisis de los resultados puede iniciar una nueva política. Los tipos de evaluación, anticipativa, de la evaluabilidad de la política, de necesidades, de contexto, de implantación de procesos, de la eficacia/impacto, de la calidad, que propone son difíciles de aplicar al contexto de la política reparatoria, porque es evidente el vacío de información. Ante esta ausencia de material, hemos tratado de medir el grado de eficacia de la política reparatoria, es decir, si produjo el efecto deseado en los beneficiarios. La eficacia es la capacidad de hacer concretas o reales las metas programadas. Para lo cual, hemos recogido los juicios de algunos de ellos. Una ex-presa manifestó que la indemnización significó una verdadera reparación y también un reconocimiento del Estado, por la privación de su libertad y por su militancia. Una hija de una persona asesinada por el gobierno militar explicó que de ningún modo era una reparación, porque nada podía reparar la muerte de su padre. Pero consideraba que esa indemnización era una presencia de su padre, porque si él hubiera estado vivo, seguramente su presencia la hubiera ayudado de varias maneras. Una hija de una detenida-desaparecida contó que su familia no conocía ningún referente que estuviera interiorizado de las alternativas de las reparaciones, ni tampoco tenían contacto con ninguna organización de derechos humanos para pedir apoyo. Sin embargo, logró beneficiarse con la reparación después de 10 años de trámites, a través de profesionales que ya estaban a cargo de otros casos más difíciles de probar. Gracias a la compensación que recibió pudo estabilizar un poco su vida, pese a que recibió bonos post default que se cobran mensualmente y no como los demás beneficiarios que pudieron cobrar el total en un solo pago si así lo deseaban. Todos los entrevistados, tanto beneficiarios como Alicia Pierini y el personal de la Secretaría, estuvieron de acuerdo en que la reparación no puede reparar la pérdida, pero es un reconocimiento del Estado a las víctimas y al dolor y sufrimiento de sus familias. Por otra parte, se ha de señalar que la política reparatoria argentina ha marcado un hito por la envergadura y la extensión de la cobertura. La experiencia argentina constituye un referente a nivel mundial en esta materia. IV. Conclusiones Los cuatro pilares con que el gobierno define a su política de derechos humanos son: memoria, verdad, justicia y reparación. Los tres primeros fueron la demanda de la sociedad civil, de los afectados y de sus familiares desde que comenzaron las violaciones a los derechos humanos. El cuarto, la reparación, es producto, sobre todo, de la respuesta que dio el Estado. En la Política Reparatoria se combinaron lo mejor de la decisión inicial y lo mejor de la iniciativa de ventanilla. El éxito del inicio de la Política Reparatoria se debió, en gran medida, a la adaptación

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mutua entre el plan de acción generado por la conducción –la Directora y los administradores gubernamentales– y las condiciones y capacidades del personal. Existió una “implementación adaptativa”. El diseño de la Política Reparatoria se fue haciendo sobre la marcha, en el transcurso de la implementación, ya que no se había previsto la secuencia de acciones necesarias. Pese a ello, se puede decir que fue y sigue siendo una política exitosa. Como termina Marjone, podemos citar a Max Weber que recuerda que, a lo largo de la historia, “el hombre no habría alcanzado lo posible, si una y otra vez 11 no hubiese buscado lo imposible” . Como finaliza, para el éxito de esta política fue necesario el análisis frío y la persuasión, tanto la pasión, como la perspectiva. Ambas estuvieron presentes.

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“Politics as a Vocation”, en H.H. Gerth y C. Wright Mills (comps), From Max Weber, Oxford University Press, Nueva York, 1946, p.128.

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Memória política ou políticas da memória? Memória, verdade e justiça a trinta anos do fim da ditadura na Argentina (1983-2013) Nicholas Rauschenberg

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Resumo: O presente trabalho busca discutir, a partir de uma breve reconstrução histórica dos dois ciclos de justiça transicional na Argentina, alguns posicionamentos sobre a atualidade do debate sobre memória política. O primeiro ciclo, logo depois do término da ditadura (1976-1983), se refere à elaboração do informe Nunca Más (1984) e ao julgamento público à junta militar (1985). O segundo ciclo tem início em 1997 com os “juízos pela verdade”, com a anulação das leis de indulto em 2003 e com a retomada dos julgamentos que se estendem até a atualidade com as chamadas “megacausas”. Porém, não faltaram opiniões contrárias à retomada da justiça penal: entre elas, Beatriz Sarlo acusa o governo de forjar um metarrelato histórico-político, e Claudia Hilb acusa que o excesso de justiça inibe a verdade e a reconciliação. Procuramos defender que a justiça não só contribui para a verdade, senão também à exemplaridade (Todorov). Introdução Como explica Iván Orozco (2005, p. 19), “a justiça transicional vem a ser um campo de batalha e negociação entre razões memoriosas e razões esquecidiças (olvidadizas)”. Sempre com o foco do conflito em como olhar o passado a partir do presente, a justiça transicional envolve inúmeros atores sociais com demandas e perspectivas diferentes: de vítimas, criminosos, advogados e juízes até jornalistas e políticos. A justiça transicional é o lugar onde se confrontam o universalismo dos direitos humanos e o relativismo das éticas contextuais sempre “oportunamente” resgatadas por atiçadas defesas prontas para justificar atos boçais. Também é o lugar das normas abstratas e das medidas concretas das políticas para a paz e reconciliação, por um lado, e a justiça penal, por outro. A pesar de haver muitas definições de justiça transicional, é inegável que seu objetivo é a passagem de um estado de exceção a um estado democrático, onde este deve exigir a melhor aplicação de verdade e justiça possível. Para González, existem dois caminhos que aparentemente são excludentes: por um lado, o caminho do direito penal com julgamentos e devidas punições, por outro, o caminho do que ele chama de “justiça transicional” que parece restrita às estratégias públicas de reconciliação, mas que excluem o caminho pelo direito penal (González 2012, p. 131). No entanto, no caso argentino, ambas formas se combinaram gerando inúmeros debates e desentendimentos. É possível dividir o caso argentino de justiça transicional em dois ciclos. O primeiro se refere ao esforço do governo de Alfonsin que, uma vez terminada a ditadura (1976-1983), articulou uma comissão da verdade, a Conadep, com claros fins de levar os chefes do fracassado regime militar à justiça penal comum. O relatório final da Conadep, conhecido como Informe Nunca Más (CONADEP 2012), foi publicado massivamente já em 1984 e distribuído em todas as escolas e centros comunitários. Até em bancas de jornal era possível comprá-lo. Esse informe foi utilizado como prova nos julgamentos à junta militar no ano seguinte. A principal polêmica em relação ao uso do informe Nunca Más como prova, foi o silenciamento do pertencimento político dos sobreviventes e testemunhas, mostrando um claro direcionamento do testemunho a uma finalidade: refutar a “teoria dos dois demônios” que defendia que houve uma guerra onde os fins justificavam os meios, quer dizer, os militares defendiam sua “guerra suja” através de uma suposta e improvável equiparação de forças com o “inimigo”. Uma vez refutada essa teoria, cinco dos nove acusados, entre eles Videla, foram severamente condenados à prisão (ver Vezzetti 2002 e Crenzel 2008). O segundo siclo não teve um início notoriamente marcado por uma iniciativa política. Foram setores da sociedade civil que exigiram do poder público o conhecimento do paradeiro dos desaparecidos e o esclarecimento sobre os crimes do terrorismo de estado. Os assim chamados “juízos pela verdade” iniciados em 1997 foram fruto do trabalho coletivo de diversas pessoas, familiares de desaparecidos políticos e organizações de direitos humanos que usaram a justiça para investigar o paradeiro das vítimas, mesmo sem a possibilidade de julgar os culpáveis. A partir de 1998 descobriu-se uma verdadeira brecha nas leis de impunidade: o sequestro dos bebes nascidos em cativeiro não estava contemplado nas disposições da anistia” (Filippini 2011, p. 25), o que permitiu aos ativistas de direitos humanos desenvolver novas estratégias que pudessem passar da mera averiguação da verdade a uma instância penal. Em 2001 foram declaradas por um juiz 1

UNLP/UBA – nicholasrauschenberg@yahoo.com.br

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improcedentes as leis de impunidade sancionadas entre 1987 e 1990, mas ainda houve rearranjos judiciais que impediam o acesso à justiça penal para julgar e condenar repressores. Foi só em 21 de agosto 2003, dois meses depois da assunção do Presidente Nestor Kirchner, que foi promulgada a lei 25.779 que declara nulas as leis de Obediência Devida e Ponto Final. Depois de 2006, impulsado pelo poder executivo, os juízos se intensificaram, abarcando cada vez mais repressores. Diferentemente do Julgamento à Junta Militar nos anos 1980, o foco dos julgamentos atuais, embora abranja centralmente militares e agentes de segurança, progressivamente tem sido a investigação também de “muitos civis que participaram de modos diversos, como sacerdotes, juízes e ex-ministros” (Filippini 2011, p. 26). Ou seja, a cumplicidade civil passou a ser sistematicamente alvo de investigações da justiça neste segundo ciclo de justiça transicional. Neste sentido, um caso paradigmático foi a condenação do ex-ministro de economia do regime militar, José Alfredo Martínez de Hoz. Empresário de uma tradicional família oligárquica, Martínez de Hoz foi um dos grandes responsáveis pela destruição do patrimônio público, debilitamento do setor trabalhista com forte concentração de poucas empresas privilegiadas ligadas a grupos próximos ao governo ditatorial, estatização de dívidas privadas e transferência de grandes margens de lucro a favor de certos bancos e grupos financeiros nacionais e extrangeiros (ver Castellani 2009, p. 111 e Yanzón 2011, p. 148). A acusação penal que recai sobre ele e seu ex-vice-ministro Albano Harguindeguy, contudo, remete pontualmente ao sequestro extorsivo que durou mais de cinco meses dos empresários algodoeiros Federico Gutheim e seu filho Miguel que foram obrigados a assinar contratos de exportação com comerciantes ingleses e chineses residentes em Hong Kong que beneficiavam negócios privados vinculados a agentes da ditadura. Essa condenação abriu caminho para processar os civis cúmplices do 2 regime cívico-militar. Além dessa domesticação da política e economia pelo terror, a aliança entre militares e grupos econômicos se fez ainda mais nítida quando se descobriu que “eram os próprios empresários das grandes companhias que solicitavam o ‘serviço’ da ditadura para erradicar dirigentes ou delegados gremiais de seus estabelecimentos” (Shapiro 2002, p. 366). Outra diferença entre o processo dos anos 1980 e o atual é a ampliação dos conceitos jurídicos de tormento e tortura, ambos considerados crimes de lesa humanidade. No primeiro período, o tormento era o “submarino” (afogamento) ou a aplicação de picana elétrica (normalmente no sexo do prisioneiro), ou golpes (com paus etc.), violência sexual etc. Hoje em dia, contudo, é possível falar de um conceito amplo de tortura, que inclui também as condições de detenção (ver Rafecas 2010 e Versky 2012). Outra mudança considerada um avanço da nova fase processual a partir de 2003 foi a ênfase colocada na violência sexual que, acredita-se, foi aplicada contra todos os prisioneiros, especialmente sobre as mulheres, muitas das quais foram tidas como escravas sexuais. Nos novos julgamentos, muitas mulheres se animaram a contar em audiências públicas os abusos sexuais e as diversas violências perpetradas pela condição de gênero (Yanzon 2011, p. 151). A violência de gênero e os delitos contra a integridade sexual relatados por diversas testemunhas, ao serem considerados como crimes de lesa humanidade devido à sistematicidade de seu uso como modo de tortura, abrem diversas possibilidades de processamentos e condenações a perpetradores que ficariam impunes (Varsky 2012, p. 83). No entanto, a mudança primordial do primeiro ao segundo ciclo foi a centralidade da testemunha para provar os atos criminosos. Sem dúvida havia outras provas sempre que possível, mas os relatos eram praticamente a condição de existência de um processo. Por isso, passou-se a destacar os relatos em primeira pessoa e não mais aqueles relatos que comprovavam os fatos da sistematicidade do terrorismo de Estado, predominantemente em terceira pessoa (ver Varsky 2011). A partir de 2003, as causas judiciais abertas foram atomizadas em razão das atividades de um determinado centro clandestino de detenção, a partir do qual operavam diversos atores, de diferentes forças de segurança e hierarquias. Deste modo, os acusados são submetidos a juízo oral e público, coletivamente, ou seja: um juízo oral pode envolver várias causas judiciais contra vários imputados. A junção de várias causas num único julgamento público centralizado chama-se “megacausa”. O total de acusados em todas as causas gira em torno de mil e trezentos. Durante o processo da “megacausa” conhecida como “Primeiro Corpo do Exército”, por exemplo, foram reconhecidas judicialmente aproximadamente mil vítimas e foram condenados quase cem dos acusados, entre eles, “militares do Exército e da Força Aérea, integrantes de forças de segurança, inteligência e serviços penitenciários, desde o chefe máximo, o ex-ditador Rafael Videla, até os torturadores” (Rafecas 2011. p. 165). Outras causas conhecidas como “Club Atlético”, “El Banco” y “El Olimpo” abarcam em torno de trezentas vítimas e vinte acusados. O juízo oral mais abarcativo é a “megacausa” ESMA, com cinquenta acusados e seiscentas e cinquenta vítimas (idem). Outra megacausa, mas na província de Córdoba, conhecida como 3 “La Perla”, ainda em julgamento público, tem quarenta e quatro acusados . Esta megacausa está composta por outras dezoito causas judiciais, conta com novecentas e oitenta e três testemunhas, e investiga-se o ocorrido a quatrocentas e quinze vítimas. 2 3

Jornal Página 12, 28 de abril de 2010, link: http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-144762-2010-04-28.html Ver Jornal Página 12 de 24/12/2012, link: http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-210521-2012-12-24.html

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Essas “megacausas” só puderam e podem ser preparadas com a providencial preparação das testemunhas. Como o processo abrange, como já foi mencionado, além de civis que colaboraram com a repressão, também militares e agentes de segurança de hierarquia inferior, com raras exceções, a única prova que resta são os depoimentos de diversas testemunhas que sobreviveram ou que vêm lutando por justiça de parentes desaparecidos. Infelizmente, os agentes de menor hierarquia no aparato repressor, muitas vezes, tinham documentação falsa ou simplesmente usavam apelidos em suas tarefas ilegais, o que dificulta sua identificação por parte da justiça penal (Yasón, 2011, p. 152). A preparação das testemunhas implica orientá-las e fornecer-lhe previamente elementos diante do momento inusual de ter de declarar num julgamento público. Além de eventual ajuda psicológica e de proteção policial, a testemunha recebe quase sempre suas próprias declarações anteriores, por exemplo, aquelas declaradas na Conadep ou em causas anteriores em que também testemunhou. Com o avanço sem precedentes das causas julgadas atualmente, é comum surgirem novas testemunhas durante os debates públicos ou em declarações diante da promotoria. Um exemplo se deu no julgamento da causa conhecida como “Massacre de Fátima”, que constitui a megacausa “Primeiro Corpo do Exército” da Capital Federal, onde se analisa o fuzilamento de um grupo de prisioneiros políticos. Nesta causa foi preciso recorrer ao testemunho de um sobrevivente que havia sido citado em muitos relatos, mas cuja confirmação era imprescindível (ver Varsky 2011). Negacionismo subterrâneo. Verdade versus justiça? No caso argentino, parece que a década menemista (1989-1999) com a impunidade a repressores e continuísmos em política econômica com a ditadura militar potencializou o que Michael Pollak (1989) chamou “memória coletiva subterrânea” que se opõe a uma memória organizada que, mesmo sendo coletiva, é “enquadrada”, isto é, direcionada para um determinado fim num certo contexto, prevalecendo nela um recorte arbitrário devidamente justificado. Essas memórias subterrâneas tendem a ser “guardadas em estruturas de comunicação informais e passam desapercebidas pela sociedade englobante” (Pollak 1989, p. 8). Se, por um lado, com os “juízos pela verdade” iniciados em meados dos anos 1990, pôde-se ver um modo de “enquadramento” e elaboração da memória (Adorno 1962) que visavam mesmo num longo prazo objetivamente a justiça, outro setor da sociedade parece surpreso com os desdobramentos dos julgamentos atuais. Se analisarmos os discursos que se contrapõe à política da memória na Argentina atual, desconfiaremos da intencionalidade política que eles possam esconder. Antes que memória subterrânea, poderíamos chamar esses fenômenos de “esquecimento subterrâneo”: é a repulsa a lembrar e, quando não resta outra alternativa, lembrar sem lembrar dos avanços em matéria de justiça transicional. O que quero chamar aqui de “esquecimento subterrâneo” é uma forma de negacionismo de certa forma “ilustrado”, já que provém inclusive de celebridades intelectuais como Beatriz Sarlo e inúmeros jornalistas dos grandes grupos midiáticos. Esse negacionismo subterrâneo sempre acusa a memória oponente de estar impregnada de “esquecimento” (intencional), de ser “ideológica” e parcial. Esse negacionismo parece no fundo querer ignorar que houve um genocídio e insiste em comparar e equiparar a ação militar à ação armada insurgente. Em Os abusos da memória, Todorov (2000) explica que a memória é necessariamente uma seleção. Contudo, o que implicaria um abuso da memória ou do esquecimento senão uma justificação ou a acusação de uma justificação indevida? Como veremos, comparar para justificar e exemplificar pode trazer armadilhas. No dia oito de novembro de 2012, Alejandro Katz, dono da prestigiosa editora Katz, publicou um 4 artigo no jornal La Nación, terceiro principal em circulação na Argentina, intitulado Políticas de la memória que más bien buscan el olvido. No artigo, Katz questiona a política em torno da memória do terrorismo de Estado nos anos 1970 levada adiante pelo atual governo desde 2003. No mesmíssimo 8 de novembro (o famoso 8N), organizações de direita convocaram seus simpatizantes (ao todo 5 compareceram no Obelisco da capital portenha cerca de 20.000 pessoas brancas e bem vestidas ) para um panelaço ou “cacerolazo” contra o governo de Cristina Kirchner, reivindicando a não reforma da constituição (re-reeleição, “liberdade” para comprar dólares e “não” à Lei de Meios Audiovisuais que regula o setor limitando monopólios), o que contou com inúmeras agressões a jornalistas que não representavam os interesses dos organizadores dessa marcha. O único grupo de imprensa não agredido se limitou aos jornalistas do assim chamado – e poderoso – Grupo Clarín, que vive uma batalha judicial, como vimos, e uma disputa midiática contra o atual governo que desembocou na elaboração e promulgação da “Lei de Meios”, ou Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual em 2009. A lei, que é referência para a multiplicidade de vozes e um estímulo sem precedentes para produções audiovisuais 4

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Para ler o artigo, acessar: http://www.lanacion.com.ar/1524456-politicas-de-la-memoria-que-mas-bien-buscan-elolvido (Todas as traduções do espanhol ao português são minhas). Como antropólogo fui à marcha e o cântico que mais se ouvia dessas pessoas enfurecidas era: “el que no salta es negro K!”, ou seja, “aquele que não pula é um negro kirchnerista”. Sobre o racismo argentino ver Ratier (1972), Margulis e Urreti (1998), Solomianski (2003) e Belvedere (2007).

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locais (ver Baranchuk 2011), tem um artigo, o 161, que prevê o fim dos monopólios. Isso irrita, claro, o Grupo Clarín, que também possui o jornal La Nación onde Alejandro Katz publicou seu artigo, já que esse grupo de multimeios detém mais de 300 meios, sendo destes mais de 240 canais de televisão através do absoluto monopólio da TV a cabo (empresa Cablevisión). Por tanto, o clima do 8N, era alimentado por uma consigna de “liberdade” de mercado alentada por um monopólio comunicativo que vê na Lei de Meios, juntamente com uma série de políticas do atual governo, entre elas, as políticas da memória por meio da justiça penal e de redistribuição através de políticas sociais, seus interesses mais consolidados desmoronarem. Não surpreende que, nesse clima aguerrido, os jornalistas desse grupo, juntos com seus sócios da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), se digam perseguidos pelo governo, afirmando que sua liberdade de imprensa (ou de empresa) está ameaçada. Em seu provocador artigo, ao denunciar o governo atual de fazer uma política da memória que, por um lado, glorifica a militância do passado e, por outro, julga e condena os repressores (militares, civis, eclesiásticos, etc.), além de espalhar monumentos à memória e ao terrorismo de estado pelo país, Katz quer fazer crer que, com isso, a intenção do governo é produzir um “relato” (ou “metarelato”), quer dizer, uma versão única da história que, orientada por um imperativo moral vitimizante, estabeleça o bem e o mal numa perspectiva histórica, vista do presente, e sirva de referência para um juízo políticoideológico da cidadania comum. Assim, para Katz, relembrar ou rememorar significa selecionar eventos cuja carga semântica só é possível de entender se nos detivermos em sua intenção meramente política e ideológica. Aquilo que ficou excluído da “seleção” de fatos memoráveis se deve a uma manipulação política maniqueísta estimulada exclusivamente pelo governo, que cria seu “relato”, ou seja, sua história oficial com apelo moral para se legitimar no poder. O alvo de suas críticas é o fato de o governo não ter processado também, além dos militares, os assim chamados terroristas, tanto os Montoneros quanto os do ERP. É como se o governo ocultasse intencionalmente as ações ilegais de violência que os grupos guerrilheiros tinham perpetrado. Contudo, como cimos acima, ambas guerrilhas já haviam sido massacradas e desmanteladas antes do início da ditadura de 1976 (ver Anguita e Caparrós 2006, e Novaro e Palermo 2010), a pesar da famosa contra-ofensiva montonera de 1978 que foi duramente reprimida (ver Gillespie 2008). Para Alejandro Katz, a política da memória “oficial” se converteu “no lugar do gozo que proporciona a cólera de quem não esquece”, atribuindo ao governo uma intenção de revanchismo e vingança, dada sua suposta continuidade com o projeto político peronista. O rancor provocaria, assim, um desapego em relação à justiça, que se transforma, longe da verdade, em continuadora do conflito que se arrasta pela história. Deste modo, conclui Katz, essa política facciosa do rememorar é, antes, uma política do esquecimento a partir da qual o governo quer consolidar a sua hegemonia retórica. Portanto, de acordo com Katz, há esquecimento onde o relato da memória aspira à exaltação do próprio sofrimento e do sofrimento daqueles que são semelhantes, à celebração do irrecuperável, à glorificação de um passado de suposto sacrifício compartilhado: “a memória da desgraça é a memória do ódio”. O lugar do discurso de Katz pressupõe um governo autoritário, ao qual sem dúvida ele fervorosamente se opõe. No entanto, como é possível constatar em vários âmbitos de produção de conhecimento, é o próprio governo que conforma e estimula a maior diversidade de discursos, seja com espaços de discussão, bolsas de pesquisa, congresos acadêmicos, filmes, TV digital aberta etc. Basta ir numa livraria, das muitas que há na cidade de Buenos Aires, por exemplo, e comparar a grande diversidade de posicionamentos teóricos e políticos em relação à história recente. O negacionismo subterrâneo de Katz carrega exemplarmente o ódio da direita atual que segue presa à velha argumentação militar sustentada pela teoria dos dois demônios e que ignora as vantagens e normativas da justiça penal transicional. Seguindo o mesmo tom “opositor” de Alejandro Katz, o politólogo e colunista ultraconservador do 6 jornal La Nación, Emilio Cárdenas , publicou um artigo que ilustra bem como um “abuso da memória” pode servir de justificativa. Tal como Katz, Cárdenas é contra a retomada dos julgamentos aos repressores da última ditadura. O argumento de Cárdenas retoma o caso do pós-guerra alemão, onde os julgamentos dos crimes do nazismo geraram um desentendimento entre soviéticos, por um lado, e franceses, ingleses e norte-americanos, por outro. Para estes deveria haver, apesar de tudo, um “devido processo penal”, com a presunção de inocência garantida caso não fosse possível provar crimes para um determinado imputado. No entanto, para os soviéticos, os julgamentos seriam uma mera formalidade para constatar o que “todos” já deveriam saber: os líderes alemães são culpados. Se os primeiros demandavam uma corte imparcial e separada da política, os soviéticos viram no julgamento uma possibilidade de legitimar sua propaganda política, usando as atrocidades nazistas para ocultar seus próprios campos de concentração e execuções de inimigos políticos. O que quer advertir Cárdenas é que a retomada da justiça transitória na Argentina desde 2003, além de revanchista, não cumpre regras básicas do assim chamado “devido processo” pela via penal ao não considerar a presunção de inocência dos acusados, insinuando que os novos processos são persecutórios e têm uma intenção política e 6

Para ver o artigo de Cárdenas de 24/01/2013: http://www.lanacion.com.ar/1548408-los-delitos-de-lesahumanidad-deben-ser-probados

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ideológica definida de antemão. Como vimos, muitos réus que são processados são absolvidos que não se prova o envolvimento, além do fato que as condenações ponderam as penas quando se prova a participação secundária. Mas a argumentação de cárdenas por meio da comparação tendenciosa é típica da oposição argentina atual que ora chama o governo de ditadura, ora de nazista ou ora de stalinista. Longe de impressionar, elas só mostram como opera o negacionismo já mencionado: só um governo autoritário pode fazer um julgamento sumário para legitimar uma ideologia, e esse governo foi a ditadura de Videla que entregou a empresa Papel Prensa ao Grupo Clarín. Um terceiro caso de colunista desse jornal que assume uma postura opositora ao governo atual é Beatriz Sarlo. Em 2005 publicou Tiempo pasado. Cultura de la memória y giro subjetivo, onde se constrói, talvez pela primeira vez, a questão do “relato kirchnerista” da história com base na política da memória. Como vimos acima, se no primeiro ciclo de justiça transicional deu-se ênfase nos discursos testemunhais em terceira pessoa para constatar os fatos da repressão e provar a sistematicidade de excessos permanentes de violência estatal, no segundo ciclo, depois de mais de vinte anos de terminada a ditadura, a repetição e reelaboração do discurso de vítimas e testemunhas deslocou a ênfase da terceira para a primeira pessoa. Esta “primeira pessoa” já não precisa esconder ou omitir seu pertencimento político, já que a “teoria dos dois demônios” ficou claramente refutada, pelo menos por parte da justiça e boa pate da opinião pública. A esse giro “testemunhal” deve somar-se a ampliação do conceito de tortura, como exposto acima, e a responsabilidade dos relatos que passaram a ser a prova primordial, juntamente com uma série de documentos e investigações. Dito isto, o que Sarlo pretende é uma “desmitificação” do discurso testemunhal. Essa preminência da primeira pessoa é chamada por Sarlo de “retórica testemunhal”, e se baseia em sua interpretação particular de Walter Benjamin que diz que “o presente da enunciação é o tempo base do discurso”, o que “implica ao narrador em sua história e a inscreve em uma retórica da persuasão” (Sarlo 2005, p. 64). Para Sarlo, isso rompe a cristalização inabordável (encantada moralmente) dos discursos testemunhais: são discursos. Essas narrações testemunhais (militantes, intelectuais, políticas etc.) não seriam, segundo Sarlo, a única fonte de conhecimento: “só uma fetichização da verdade testemunhal poderia outorgar-lhes um peso superior ao de outros documentos. [...] Só uma confiança ingênua na primeira pessoa e na lembrança do vivido pretenderia estabelecer uma ordem presidida pelo testemunhal” (ibid, p. 62). Essa ingenuidade consiste em como essa ordem discursiva, especificamente testemunhal e, claro, em primeira pessoa, se move “pelo impulso de fechar os sentidos que se escapam; não só se articulam contra o esquecimento, mas também lutam por um significado que unifique a interpretação” (ibid, p. 67). Essa acumulação de detalhes dada através da multiplicidade de “eus testemunhas” tende a unificar o sentido da história em questão. Essa unificação, que de certa forma não deixa de ser uma consciência histórica ao estilo de um Sartre, é denominada por Sarlo “modo realista-romântico”. Este “modo” encontra sua veracidade no sentido colectivo de sua enunciação. Nessa retórica da memória, o que mostra Sarlo é que o detalhe individual tende a reforçar o “relato teleológico”: “se a história tem um objetivo estabelecido de antemão, os detalhes se acomodam a essa direção” (ibid, p. 74). Sarlo não está disposta a concordar com Benjamin em relação a seu messianismo. Benjamin, ao negar certa vertente positivista e relativa da ciência histórica, se inclinaria por uma história que liberasse “o passado de sua reificação, redimindo-o em um ato presente de memória”, que primaria por certo tipo de continuidade (ibid, p. 78). Para Sarlo, esse errôneo messianismo é apenas um duplo anacronismo: por um lado, haveria uma dimensão ética e, por outro, haveria uma clara contraposição ao fetichismo documental do positivismo histórico: “olhar o passado com os olhos daqueles que o viveram, para poder captar ali o sofrimento e as ruínas” (ibid, p. 78). Quer dizer: em vez de “fortalecer o anacronismo”, o argumento de Benjamin, antes, buscaria dissolvê-lo (ibid, p. 79). Assim, para Sarlo, “a história não pode simplesmente cultivar o anacronismo por livre opção, porque se trata de uma contingência que a golpeia sem interrupções e está mantida por um processo de enunciação que, como se viu, é sempre presente” (ibid, p. 79). É neste sentido que Sarlo se questiona a respeito de como pensavam os militantes em 1970. Seria necessário evitar se limitar somente à lembrança “que eles têm agora de como eram e como atuavam”, já que se abandonaria a “pretensão reificante da subjetividade” que quer “expulsar a subjetividade da história” (ibid, p. 83). Isso quer dizer, para Sarlo, que a “verdade” não é o resultado de se submeter “a uma perspectiva memorialística que tem limites e nem, muito menos, a suas operações táticas” (idem). Quem recorda hoje em dia de modo algum está retirado “da luta política contemporânea. [...] As memórias se colocam deliberadamente no cenário dos conflitos atuais e pretendem atuar nele” (idem). Através de uma crítica ao continuísmo messiânico Benjamin, portanto, Sarlo quer limitar o tipo de continuidade que está em jogo no que ela chama de “retórica memorialística”: é uma construção teleológica da história que só pode ser entendida analisando o presente dada sua natureza exclusivamente discursiva. Ao rechaçar o messianismo benjaminiano que busca uma empatia com os oprimidos, Sarlo adverte sobre os perigos da vitimização de certo uso intencionado presente no discurso histórico. O exemplo que culmina esse raciocínio seria: “a ideia de direitos humanos não existia nas décadas de 1960 e 1970 dentro dos movimentos revolucionários. E se é impossível (e indesejável)

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extirpá-la do presente, tampouco é possível projetá-la ao passado” (ibid, p. 82). Este argumento era muito usado na defesa militar em 1985 quando afirmava que os “subversivos” trocaram a luta armada pelos direitos humanos para se vingar dos militares. Vezzetti (2002) e Crenzel (2008) observaram bem esse giro na opinião pública: de uma ênfase na confrontação durante os anos de chumbo a uma formação do discurso humanitário já a partir dos últimos anos do regime. Sem dúvida os processos devem ser vistos pela justiça atual e devem desidealizar o passado para investigar crimes; contudo, defender que a “retórica testemunhal” quer reviver ou “continuar” o passado é idealizar o presente. A argumentação de Sarlo, sem dúvida muito mais elaborada que a de seus colegas de jornal Alejandro Katz e Emilio Cárdenas, não seria tão insuficiente se ignorássemos o fato de que o debate sobre a memória não é só histórico-filosófico, senão também jurídico e político. Sarlo parece desconhecer as vantagens e contribuições da justiça transicional no marco do direito internacional à própria história sobre o tempo sombrio da ditadura. E para isso ela desenvolve uma crítica da ideologia do testemunho, elemento central dos julgamentos atuais. No entanto, ao tentar revelar o “caráter político” das políticas da memória atual como contingência a ser superada, Sarlo parece querer hipostasiar certo caráter literal da memória, só que restringindo esta, por um lado, a um plano exclusivamente discursivo cujo pressuposto é uma idealização por parte de Sarlo em relação à realidade política da Argentina onde a reconciliação pareceria ser total, mas onde o governo parece querer fazer um uso forçado dessa memória para obter benefícios políticos e, por outro, esse mesmo governo encarnaria uma clara continuação com o projeto político do passado. Referindo-se à geração política dos anos 1970, Sarlo sugere que uma pós-memória, ou seja, uma memória da memória (ou vicaria) seria uma “correção decidida da memória” (ibid, p. 145) para evitar que o mal nunca se repita, e não a tentativa de uma “trabalhosa reconstrução” através da política. Portanto, Sarlo sugere uma continuidade clara entre a política memorial atual, que inclui a justiça transicional, e a geração vítima do terrorismo estatal. Mas, se a memória é dependente do presente, como ela pode constituir um projeto do passado? Para Sarlo, o governo atual usa o passado em favor de fundamentar um discurso político para o qual a retórica testemunhal dos direitos humanos é essencial, o que a meu ver remete a um maniqueísmo rudimentar. É evidente que Sarlo se opõe ao governo e busca modos sofisticados de exercer sua posição e opinião políticas, o que é legítimo. Mas considerar que há um duplo “uso da memória” (uma dupla literalidade), principalmente considerando as posições da oposição em relação à justiça transicional que pregam a total cancelação desse processo, desalenta o leitor que busca na memória política um modo de exemplaridade, como Todorov. Em vez de procurar na construção de um suposto “metarrelato” da história por parte do governo atual uma “metaintencionalidade política”, como quer problematizar Sarlo, a meu ver a pergunta deveria ser: “existe um modo para distinguir de antemão os bons e os maus usos do passado” (Todorov 2000, p. 29), tendo em vista a inevitável contingência da seleção de fatos da memória? Como sugere Todorov (ibid, p. 31), o acontecimento recuperado pela memória pode ser lido de duas formas: a literal ou a exemplar. Como modo de continuidade, a memória literal é limitada já que situa os fatos relembrados como contíguos ao presente, onde é essencial conhecer as causas e as consequências desse acontecimento. A literalidade não significa necessariamente a verdadeira revelação dos fatos, já que estes podem permanecer intransitivos, não conduzindo para além de si mesmos (Todorov 2002, p. 30). Por sua vez, a memória exemplar não dispensa a singularidade de determinado fato recuperado, já que, como uma manifestação entre outras de uma categoria mais geral, serve de modelo para compreender situações novas, permitindo ressalvas críticas situadas. Para Todorov, a memória literal, se levada adiante de modo extremo, pode ser perigosa, devido a que os fatos rememorados são incomparáveis entre si, enquanto que a memória exemplar é potencialmente liberadora (ibid, p. 31). O uso literal que torna um velho acontecimento insuperável deriva numa submissão do presente ao passado, enquanto que “o uso exemplar, ao contrário, permite utilizar o passado com vistas ao presente, aproveitando as lições das injustiças para lutar contra as que se produzem hoje em dia” (Todorov 2002, p. 32). Todorov considera que a justiça nasce da generalização de uma acusação particular, mas que é amplificada pela exemplaridade do fato e suas consequências: “é a des-individualização o que permite o advento da lei” (ibid. p. 33). Pensando em comparações que servem de apoio a justificações em contextos de contingência da memória política, Huyssen retoma de Paul Ricoeur (2004) as categorias de memória manipulada e esquecimento comandado. Huyssen (2004) sugere uma comparação pontual entre a Argentina pósditadura e a Alemanha do pós-guerra. Tendo como referência do caso argentino somente o primeiro ciclo de justiça transicional (principalmente Vezzetti 2002), Huyssen destaca o papel do Estado argentino na formação da memória pública (memória manipulada, na interpretação de Huyssen), mesmo que tenha sido às custas de uma memória mais elaborada e com consequências judiciais em relação ao terrorismo insurgente (esquecimento comandado, ou seja, referindo-se a omissão de pertencimento político das vítimas e testemunhas no julgamento à junta militar). Sem dúvida, é possível discutir à exaustão com Huyssen esta simplificação esquemática que, como mostramos acima, é mais complexa. Contudo,

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embora considerando que o Holocausto se mantenha por si só como “marco zero em muitos estudos sobre os traumas contemporâneos”, objetivo de Huyssen é discutir um episódio da história alemã que parecia ter ficado na mais escura penumbra do esquecimento: os bombardeios aliados sobre 131 cidades alemãs no final da Segunda Guerra, com um saldo de 600.000 civis mortos e 3,5 milhões de moradias destruídas. Durante muito tempo, falar da guerra aérea parecia querer relativizar os crimes do Holocausto. Se nos anos 1950 a direita alemã falava sobre o bombardeio de Dresden e da expulsão e deportação do leste de volta à Alemanha, onde morreram milhares de alemães refugiados depois da guerra, a esquerda falava de Auschwitz e do genocídio administrado. Como lembra Huyssen, os argumentos da esquerda eram politicamente legítimos. A vitimização da Alemanha, vinculada a um discurso nacionalista duradouro, era fundamentalmente reacionária e devia ser combatida para que o país chegasse a um novo consenso em relação ao passado alemão. Desta vez, o preço político a pagar por essa vitória discursiva foi o esquecimento da guerra aérea, o esquecimento de uma experiência traumática nacional (ver Huyssen 2004, p. 12). No entanto, na última década, no contexto do repúdio da comunidade internacional ao bombardeio norte-americano sobre o Iraque, o assunto da Luftkrieg (guerra aérea) ganhou uma notoriedade pública, tanto através da literatura quanto dos meios de comunicação. Assim, em termos de memória política, se no primeiro ciclo de justiça transicional argentino preferiu-se silenciar o pertencimento político das vítimas da ditadura, na Alemanha do pós-guerra, os crimes contra a população civil pareciam “justificados” pela política genocida nazista. Mas hoje, diante de uma inquestionável sedimentação desde diversas áreas do conhecimento e tendências políticas sobre o Holocausto, deixou de ser um incômodo tabu resgatar e elaborar a experiência de horror dos bombardeios. O amadurecimento geral tanto da sociedade civil quanto do poder judiciário também puderam revelar, no segundo ciclo argentino, que as “justificações” que articulavam o primeiro ciclo poderiam ser deixadas de lado, já que já não há uma ameaça latente de retorno da ditadura, como em 1985, e a verdade mais abrangente e detalhada passa a ser de interesse geral e da justiça, dado que esta se baseia em critérios universais e internacionais amplamente reconhecidos. A própria violência insurgente dos anos 1970, que nunca deixou de ser considerada como tendo um caráter criminal, embora não sejam crimes de lesa humanidade, vem sendo abordada em diversos estudos e filmes. Alguns exemplos são o filme documentário de David Blaustein, Caçadores de utopias (2004), sobre os Montoneros, e os livros Soldados de Perón. Uma história crítica sobre os Montoneros, de Richasd Gillespie (2008), Sobre a violência revolucionária, de Hugo Vezzetti (2009), e Um inimigo para a nação, de Marina Franco (2012), entre outros. Estes trabalhos revelam uma outra dimensão do imaginário daqueles anos que nada têm a ver com a pretendida continuidade sugerida por Sarlo e Katz. A partir do exemplo de Huyssen é possível afirmar que a comparação ilumina o entendimento do caso alemão e de certa forma também o caso argentino, especialmente se observamos as transformações do primeiro ciclo em relação ao segundo. No entanto, comparar pode revelar aspectos de um negacionismo, especialmente aquele indicado acima: o negacionismo subterrâneo. É o caso da politóloga argentina Claudia Hilb (2010). Autodenominada como pertencente à “geração dos 70”, mas com todos seus estudos feitos na França, Hilb sugere, a partir de uma comparação com o processo de transição da África do Sul, uma nova forma de política da memória que não seja “tão” voltada para a justiça, embora ela reconheça claramente as vantagens de que haja devido julgamento, especialmente em relação a crimes contra a humanidade. Sua tese se apoia numa articulação entre as noções de perdão e reconciliação de Hannah Arendt. Segundo sua leitura, se o banal funcionário do mal, pensando em Eichmann, não é passível de ser perdoado, é porque não pode propriamente ser considerado um ator, já que demonstrou ser incapaz de se insertar no mundo comum através da ação livre. Somente aqueles que “não sabem o que fazem” devido a que as consequências de seus atos excedem sua capacidade de controlá-los e, assim, poderíamos acreditar que diante das consequências de seus atos, queiram poder desfazê-las, só esses é que são suscetíveis de ser perdoados (Hilb 2010, p. 9). A reconciliação tende a ser indissociável da compreensão. Somos capazes de nos reconciliar com o mundo desde que o compreendamos. “Compreender é se reconciliar em ato”, diz Arendt (1953, Diário Filosófico, apud Hilb 2010, p. 4). No entanto, compreender não é necessariamente perdoar, e perdoar não tem porquê ser o oposto à reconciliação. Assim, explica Hilb, o perdão “é essa capacidade humana, essa ação aparentemente impossível, ao alcance daqueles que compreendem e, compreendendo, podem se reconciliar com o mundo e, então, eventualmente perdoar” (ibid, p. 4). Como já mencionado, a intenção de Hilb é esboçar uma comparação entre o já conhecido caso argentino e o caso sul-africano, a saber, os crimes atrozes do apartheid que tiveram ampla impunidade e a formação de uma Comissão da Verdade e Reconciliação, em 1995. Se pensarmos nos três conceitos fundamentais – memória, verdade e justiça – que perpassam a problemática da memória das justiças transicionais, em ambos casos, segundo Hilb, verdade e justiça se excluem mutuamente. Na África do Sul, a Comissão da Verdade e Reconciliação ficou responsável por recolher os relatos tanto de vítimas

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quanto de vitimários. As vítimas de abusos, conta Hilb, que assim o demandassem, seriam ouvidas e poderiam obter reparação. Aqueles perpetradores que voluntariamente solicitassem dentro de um prazo estabelecido expor seus crimes à Comissão “seriam anistiados em caso de proceder à ‘plena exposição’ de seus crimes, desde que pudessem demonstrar que estes crimes estavam vinculados a algum objetivo político” (Hilb 2010, p. 12). O que surpreendeu Hilb foi que “os principais interessados em falar a verdade eram os próprios criminais” (idem). A anistia contemplava todas as graves violações de direitos humanos desde 1960 até maio de 1994. “Durante 1888 dias e em 267 lugares diferentes, com cobertura mediática permanente, a população sul-africana pôde conhecer, na voz e nas múltiplas línguas de vítimas e vitimários, as histórias mais terríveis sob seus olhos” (idem). Seguindo sua leitura de Arendt, a interpretação desse caso proposta por Hilb é que se instala com isso “uma economia do perdão”: os vitimários tiveram de se expor em detalhes para ser anistiados. “Nem o mero arrependimento nem o perdão [privado] foram condição para a anistia” (idem), senão o ato de reconhecer publicamente os crimes. Voltando à Argentina, Hilb cita o famoso caso do capitão Adolfo Scilingo que, depois de declara na justiça, havia sido entrevistado por sua própria vontade pelo jornalista do diário Página 12, Horacio Verbinsky, onde revelou que muitos dos presos políticos desapareciam jogados sedados ao mar durante os famosos “voos da morte” (ver Verbinsky 1995). Uma vez na Espanha para declarar voluntariamente diante do juiz Baltazar Garzón, foi detido e condenado a 640 anos de prisão por crimes de lesa humanidade. Segundo Hilb, isso teria inibido por razões óbvias outros perpetradores a falar. Assim, na Argentina, a ação da justiça teria provocado uma inibição na revelação da verdade já que os vitimários se sentiram intimidados e não se apresentaram voluntariamente, deixando, claro, de contar detalhes sobre as crianças nascidas nas prisões clandestinas que foram roubadas ou sobre o paradeiro dos desaparecidos. Contudo, como vimos acima, Scilingo foi muito mais perseguido pelos militares que se sentiam ameaçados chegando a ser preso através de uma causa inventada restando-lhe como último recurso, depois de ter sua pensão cancelada e de ser ameaçado permanentemente, migrar à Espanha, onde foi julgado e condenado pelos crimes vinculados ao terrorismo de estado. O governo do expresidente Menem não o protegeu como testemunha e nem estimulou outros arrependidos a falar. A justiça nesse momento lhes garantia plena impunidade se outros quisessem ter falado ou inclusive publicado o que sabiam. Não é possível encontrar semelhanças válidas com o caso sul-africano: tanto o trabalho da Conadep quanto dos “juízos pela verdade” podem ser considerados como “comissões da verdade”, mas sem a versão dos perpetradores que preferiram omitir seu relato. Em ambas havia de fato a intensão de encontrar a verdade dos fatos com clara esperança, contudo, de que houvesse justiça. No caso sul-africano a justiça estava praticamente descartada de antemão, e o objetivo da comissão era ritualizar publicamente o ato do perdão diante do relato do crime. Na África do Sul, graças à ação da Comissão, explica Hilb, foi possível o começo da “nova comunidade multiracial”, reconciliada. Infelizmente Hilb parece ter ignorado livros, relatos e artigos como o de Fiona Ross (2006) sobre o silêncio irremediável das inúmeras vítimas de estupro e HIV-positivo, mulheres que além de submetidas a violências físicas brutais e morais, se viam obrigadas corajosamente a manter o silêncio “pelo bem e interesse da comunidade”. Para Ross, a Comissão de Verdade e Reconciliação estava muito mais preocupada em individualizar seus 22.000 casos em vez de rever, processar e julgar os crimes do Apartheid. O que Hilb chama “economia do perdão”, para Ross seria uma “economia do negacionismo”. É muito ingênuo pensar que “a verdade” dos fatos, como quer Hilb, seria contada sem esbarrar no negacionismo possibilitado tanto pela garantia de impunidade, por um lado, quanto pelo terror das vítimas. Se considerarmos, seguindo Todorov, que o próprio ato de rememorar é seletivo, quê economia linguística estaria em jogo nesses relatos que não poderiam questionar a lógica profunda das atrocidades, dados os evidentes continuísmos presentes e persistentes no estado racista? As “verdades” a que se refere Hilb só podem servir num processo de reconciliação onde a opção pela justiça penal é impossível. A literalidade dos relatos acabam gerando uma “exemplaridade” parcial e inclusive negativa, dado que a ordem social ainda privilegia a injustiça, seja socioeconômica ou jurídica. O uso da verdade sem justiça pode inclusive ser considerado pior que o público conhecimento dos fatos porque não só garante a impunidade, mas também transforma a situação numa “nova ofensa para a vítima” (Varsky 2011, p. 74). Para Carolina Varsky, o procedimento africano é totalmente imoral, já que consiste numa troca da verdade pela impunidade (idem). Outro texto que mostra a quase ineficiência das comissões de verdade e reconciliação é o artigo de Bosire (2006). A autora discute, em perspectiva comparada com os países da África Subsaariana, tanto o fraco efeito reconciliador das comissões da verdade quanto o fracasso da intervenção de qualquer tentativa de implementar uma política de direitos humanos, o que garante uma total predominância de impunidade. Um dos motivos desse fracasso, além da grande desigualdade socioeconômica, se deve à continuidade dos perpetradores, na maioria dos casos, em posições de poder, seja em estados com democracias frágeis quanto em grandes empresas com vínculos estruturais com o estado.

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Nesse sentido, o filósofo argentino Diego Tatián, em resposta à Claudia Hilb, procura refazer a pergunta que orienta a argumentação da politóloga: “como fundar uma comunidade depois do crime?”. Para Tatián (2012, p. 3), essa pergunta, considerando as evidentes diferenças entre os casos argentino e sul-africano, deveria ser: Quais ações jurídicas, políticas e narrativas é necessário que a sociedade argentina leve adiante para compensar os efeitos do Terror que danificam – de modo irreversivelmente profundo – os corpos, os vínculos e a própria vida de muitos de seus membros, tendo em conta uma história específica de impunidades, de modo a criar as condições de possibilidade de uma democracia mais extensa e mais intensa, ininterrompida no futuro, ou seja, para impedir tanto como for possível o ressurgimento do Terror exercido desde o Estado?

Para Tatián o processo judicial de modo algum obstrui a verdade, nem a compreensão e nem o arrependimento. Tampouco o caminho da justiça impede que tanto repressores quanto guerrilheiros possam rever sua própria ação; muito menos pode responsabilizar-se a justiça pelo fato de não se conhecer o destino das vítimas desaparecidas. Se conhecer a verdade sem a devida ação da justiça fosse uma solução realmente eficiente para criar uma comunidade, então, por que não adotar essa estratégia política (a “economia do perdão”) para lidar com crimes comuns? E como teria reagido Hannah Arendt ou a corte israelense que o condenou a morrer enforcado se Eichmann tivesse mostrado arrependimento verdadeiro pelos crimes que cometeu no nazismo? Se existissem atos imperdoáveis, seus perpetradores só poderiam obter perdão numa dimensão ética ou religiosa, mas não jurídica. Para Tatián, o que diferencia a impunidade da anistia é a externalidade do perdão jurídico: se for uma vontade daquele que porta o prejuízo será anistia, se for somente uma imposição do estado, será impunidade.

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