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A ambiguidade do ser humano em Machado de Assis

“Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória, delirante. Adeus, escrúpulos!”

— Trecho do conto A Cartomante, de Várias Histórias

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Machado de Assis deixa nas mãos do leitor o tipo de narrativa que quer encontrar logo no prefácio dos seus contos; mais ainda: quais efeitos terão. Entre 1884 e 1886, 16 deles foram publicados no jornal Gazeta de Notícias — compilados em livro pela Editora Garnier, no Rio de Janeiro, em 1896. Várias Histórias é o quinto volume de contos do autor. A obra toma o lugar de Papéis Avulsos na lista de leituras obrigatórias do vestibular.

Em plena fase realista, trabalhando com os mesmos ingredientes de escritas anteriores, essas várias histórias retratam o desenvolvimento de uma sociedade do Segundo Império, fixando as nuances do cidadão brasileiro na virada de século em um Rio de Janeiro de modelo europeu, mas diverso, no contexto urbano de uma metrópole em formação. “O impacto da cidade sobre o indivíduo é uma das sutilezas do conto machadiano”, afirma Patrícia Lessa Flores da Cunha, professora no Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS.

Os contos, de acordo com Regina Zilberman, também docente no programa, podem ser classificados em alegóricos — como Um Apólogo e Viver! — e tradicionais — que apresentam início, meio e fim, como Mariana e A Cartomante. Este último, que abre a coletânea, é um dos clássicos machadianos e tem como personagem Rita, que é casada com Vilela e vive um adultério com Camilo, amigo do casal. Ela vai à cartomante para saber de seu futuro amoroso. No fim, há a descoberta da traição e a consequente morte dos amantes.

“A meu ver, é uma pequena obra-prima, síntese dos principais temas e recursos de linguagem próprios da contística machadiana. Temos a situação e os caracteres em confronto, uma estória de amor e traição que se revela na ambiguidade trágica de uma amizade corrompida”, comenta Patrícia. Para ela, há duas narrativas contadas como uma só. O que não é dito fica subentendido, e a resolução do texto é transferida à capacidade interpretativa do leitor. O conto é realista pelo adultério e traição, mas, para Regina, foge um pouco da tradição machadiana devido aos poderes mágicos que a cartomante teria ou não, e em que Machado, ateu e homem descrente, não acreditaria.

Retrato social – Apesar das diferentes temáticas, os contos carregam uma visão desencantada de Machado quanto às perspectivas sociais – evidentes em Viver! e D. Paula, por exemplo — e, ao mesmo tempo, se atentam à personalidade e à identidade particular de cada personagem. Viver! foi publicado originalmente na imprensa em 1886, em plena campanha abolicionista e republicana, mas mostra a evolução da sociedade brasileira que, por alguma razão, continua igual ou pior. Em Contos de Escola, o protagonista tem a sua primeira lição de corrupção, simbolizando a propina dentro da sociedade brasileira, comenta Regina. Algumas características machadianas não passam despercebidas na obra, como a ironia. O narrador, de acordo com Regina, “apresenta aquelas personagens com certa distância e sempre olha meio arrevesado, pois sabe que aquelas pessoas não são verdadeiras”. O conteúdo moral dos contos — mais presente nos contos alegóricos — permite tirar alguma lição dali, e a desconstrução de mitos também, como em Adão e Eva. Em Uns Braços, destaca-se o teor erótico, através de D. Severina, que deixa os membros superiores de fora — algo que chamava a atenção dos homens no século 19.

Outra marca desta e das demais obras é o adultério, já perpassado em Memórias Póstumas de Brás Cubas , Quincas Borba, Dom Casmurro e também em seus contos. As personagens femininas da época, dependendo do matrimônio para sobrevivência, tinham um espaço estreito de ação na família e na casa. Dessa forma, tentam manipular os homens, jogando com sua vaidade. “É uma marca bem machadiana, é isso que faz ele moderno”, diz Regina.

Para Patrícia, os contos machadianos remetem à questão da ambiguidade identificada no homem moderno, “seu contemporâneo, e que se revela através dos temas da traição, da insatisfação pessoal, da venalidade, da loucura, dos relacionamentos corrompidos, da passagem inexorável do tempo, da violência moral, de sonho e realidade, farsa e tragédia, realçados através do uso primoroso da ironia, figura de linguagem dúbia por excelência”.

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