MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / DEZEMBRO 2020-FEVEREIRO 2021
ECONOMIA FEMINISTA 13
O discurso e a linguagem da soberania alimentar MAYTÉ GUZMÁN MARISCAL
«O dicionário também foi assassinado pela organização criminal do mundo. As palavras já não sabem o que dizem» Eduardo Galeano (do documentário El Orden Criminal del Mundo)
A
s palavras constroem o meio em que vivemos. Os intercâmbios da linguagem, como explica Pierre Bourdieu, não são meros atos comunicativos, já que encobrem e refletem relações de poder. Do mesmo modo, Foucault afirma que não só existe uma dicotomia entre o discurso aceite e o discurso excluído ou entre o discurso dominante e o discurso dominado, como também uma multiplicidade de elementos discursivos que podem atuar em estratégias diferentes. O capitalismo conseguiu açambarcar o discurso quando, de forma sistemática, «monopoliza» os conceitos e os «(dis)simula», impondo uma visão retórica e normalizada: por exemplo, fala-nos de crise alimentar para não evidenciar responsabilidades no sofrimento da fome, na perda de soberania alimentar, na especulação com os alimentos, nas deslocações humanas e no açambarcamento de terras ou na desigualdade de oportunidades no acesso a necessidades básicas. O olhar ecofeminista também submete a revisão crítica os conceitos que servem de base à cosmovisão ocidental: ciência, economia, trabalho, produção ou exploração; em contraposição com ideias fundamentais como vida, reprodução, diversidade, soberania alimentar, agricultura, resistência coletiva, bens comuns, justiça ambiental ou direitos da natureza. Em termos gerais, o carácter transformador que emana das propostas discursivas das economias feminista, social e solidária e, em particular, a proposta discursiva do movimento da soberania alimentar, faz-nos pensar também na necessidade de uma revisão contínua da linguagem que utilizamos, já que a linguagem é a condição para a constituição de pessoas políticas e é o que nos permite mudar as práticas do SABER e o FAZER.
Economia feminista, soberania alimentar e defesa do território Retomando a interdependência e a ecodependência perguntamo-nos: o que têm em comum a economia feminista e a soberania alimentar? Esta pergunta pode ser respondida de uma maneira muito simples. Para a economia feminista há uma tensão permanente que tem origem no conflito capital-vida. Amaia Pérez Orozco explica-o com algumas ideias-chave da economia marxista: para o capitalismo, a máxima é a acumulação de benefícios, utilizando a vida como um meio para alcançar o seu objetivo. Ou seja, uma lógica que apoia modelos de produção (também modelos de produção agrícola) que atacam sistematicamente a vida porque o seu fim último é a acumulação. E esta, em último caso, sustenta-se a partir da espoliação dos territórios e do trabalho invisibilizado de sujeitos
historicamente femininos. Tanto a soberania alimentar como a economia feminista tornam evidente a relação impossível entre a sustentabilidade da vida e a lógica produtivista atual. Para desentranhar ainda mais esta relação, vamos situar-nos no epicentro da Alboraia de 2015 para compreender uma Amparo que cresceu e que nos iluminará num relato imaginário, mas, como dizem nalguns filmes, baseado em fatos reais. A aprovação de um Plan General de Ordenación Urbana (PGOU)4 está a pôr em causa a sobrevivência das famílias rurais da horta valenciana. A Amparo, que teve uma vida dedicada a sustentar uma casa digna − com tudo o que isso implica −, não suporta ver como os interesses de uns poucos vão deitar toda uma vida por água abaixo. A sua casa e a sua horta, da qual durante tantos anos comeram, podem agora desmoronar-se. O seu relato imaginário faz-nos passear
pelo pátio interior, onde um armário cansado de aguentar intempéries se abre para nos mostrar uns 40 frascos de vidro que contêm sementes. Sem nome. Diz ela que seria capaz de reconhecer as sementes dos diferentes tomates só pelo toque. Entre lágrimas, pergunta-nos onde vai plantar agora estas sementes que durante tantos anos selecionou. Foi ela que as escolheu cuidadosamente e conservou as variedades do seu trisavô para que os seus netos continuem a plantá-las. Fala baixinho e volta a perguntar: «achas que isto não tem o seu trabalho?» Um trabalho invisível, não remunerado, feminizado, que sustenta a dignidade, que alimenta uma família e que resiste à lógica produtivista da agricultura como um negócio, localizando-a, com o delicado trabalho vital da Amparo, no centro de uma ecoeconomia (ou economia da vida) em vez da economia da morte do PGOU ou - como diz o meu companheiro Horacio Machado - em vez de uma «necroeconomia». Mas Alboraia em 2015 é neste mesmo ano irmã gémea de Cajamarca. E o PGOU, o irmão gémeo da empresa mineira Yanacocha. Como dizíamos no início, um cenário comum. Nesta região do norte do Peru, as transnacionais mineiras atacam sistematicamente a vida, pondo em perigo as nascentes dos rios e contaminando os aquíferos que garantem a sobrevivência das famílias camponesas, em nome da lógica de produção. A Amparo poderia ser neste caso a D. Blanca e encontraríamos uma camponesa peruana que põe em prática as receitas da economia feminista para defender a soberania alimentar. Uma camponesa que se questiona em voz alta porque é que o trabalho das mulheres − que consistiu, desde que ela tem razão de ser, em proteger a família e a comunidade com o seu trabalho na chacra (horta familiar) − nunca foi reconhecido, nem com dinheiro nem com agradecimento. E ao mesmo tempo levanta o olhar e, com uma voz dorida, volta a perguntar: «E porque é que o trabalho que historicamente fizeram os homens (e olha em direção à mina) foi sempre bem pago e, no entanto, destruiu a nossa mãe terra e tirou-nos os alimentos saudáveis para viver bem?» Blanca e Amparo dão-nos assim a chave para compreender a soberania alimentar, a defesa do território e a economia feminista da rutura como três elementos intimamente unidos para a derrota do capitalismo patriarcal. NOTAS
1 Artigo originalmente publicado na revista Soberania Alimentaria (Espanha). A autora Sarai Fariñas Ausina, socióloga, pertence à Plataforma per la Sobirania Alimentària del País Valencià. 2 No Alentejo, a isto chama-se «carne de conserva» (quando se temperava a carne para as linguiças, por exemplo, juntava-se a essa carne uns pedaços inteiros de febra, toucinho e costelas de porco. No dia que se enchiam as linguiças, essa carne era frita em banha de porco e ficava dentro do tacho de barro, completamente tapada com a banha da fritura. Deste modo a carne ficava conservada em banha, e podia ser consumida ao longo de um período de tempo mais alargado. (N.T.) 3 Economista feminista (N.T.) 4 Equivalente a um Plano Diretor Municipal em Portugal (N.T.)