MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / DEZEMBRO 2020-FEVEREIRO 2021
28 FRONTEIRAS
«Este Pacto não fará nada para aliviar o sofrimento de milhares de pessoas presas em campos nas ilhas gregas ou em centros de detenção líbios.» Partilha de responsabilidade O Pacto também tenta resolver o problema da partilha de responsabilidades, propondo um sistema de solidariedade obrigatória que é, no mínimo, controverso. As tentativas anteriores baseavam-se na criação duma quota de requerentes de asilo que os vários Estados-membros seriam forçados a receber, para retirar pressão dos Estados que se situem nas fronteiras externas da UE mais procuradas pelas rotas de migração. Agora, a nova proposta estipula que os Estados-membros podem escolher uma de duas formas de solidariedade: aceitar alojar pessoas que se considere que têm possibilidades de receber asilo; ou «patrocinar» o envio de pessoas a quem tenha sido negado o pedido de asilo de volta para os seus países de origem. A Alarm Phone, que opera uma linha telefónica de emergência para gente em perigo no Mediterrâneo ou no Mar Egeu, reagiu dizendo que «a Europa define solidariedade como “patrocínio das repatriações”, que irá fortalecer as colaborações europeias para deportar pessoas que procuram viver em paz na Europa. Nós definimos solidariedade como estar ao lado daqueles que a Europa quer deter, deportar ou abafar». Não se sabe bem como é que a CE pretende impor este mecanismo de solidariedade
«Este pacto está, na verdade, desenhado para elevar os muros e fortalecer as vedações.»
flexível, nem como funcionará na prática. Também não é claro o que acontece se todos os Estados-membros da UE decidirem «patrocinar» repatriações em detrimento de alojamento, uma questão que não obteve resposta durante a cerimónia de apresentação do Pacto, apesar da insistência dos jornalistas. De novo, as palavras de Eve Geddie: «este A Comissária Europeia dos Assuntos Pacto não fará nada para aliviar o sofriInternos, Ylva Johansson, afirmou que não mento de milhares de pessoas presas em haverá «novos Morias», numa referência campos nas ilhas gregas ou em centros de ao sobrelotado campo de refugiados da detenção líbios. Nem fornecerá o apoio ilha grega de Lesbos que ardeu por com- necessário aos países onde chegam em pripleto em Setembro passado. Podemos ficar meiro lugar as pessoas que procuram seguassim tão seguros? O Pacto alude à possi- rança.» (…) «Ainda que o compromisso de bilidade de haver Estados-membros que vigiar os abusos nas fronteiras seja bemalojem pessoas longe das fronteiras exter- -vindo, isto não compensa o facto de que nas da UE, mantendo o recurso a centros o Pacto faz da detenção a norma e que se de detenção e privação de liberdade. Muita baseia na dissuasão, no confinamento em gente ficará presa durante meses (ou anos) campos e na cooperação com governos num qualquer tipo de instalações. Não se abusivos». Tudo isto se torna mais notório percebe bem em é que isto difere da actual quando, no Pacto, como bem nota a The abordagem dos hotspots. Haverá novas Civil Fleet, «não há nenhuma menção sobre o estabelecimento de uma missão áreas de detenção completamente lotadas e muitos novos Morias com pessoas deslo- de busca e salvamento no Mediterrâneo». cadas em condições miseráveis. Há, de facto, essa proposta dum mecanismo que controle os abusos nas fronteiMais do mesmo ras. No entanto, a tarefa de os implementar Apesar da retórica, cada novo passo da e de garantir uma investigação satisfatória UE na questão das migrações e asilo nos é colocada nos ombros dos próprios Estaafasta mais de qualquer sinal de esperança dos-membros, o que é, no mínimo, paraquanto a uma abordagem humana. Na sua doxal, uma vez que esta ideia surge como forma actual, este Pacto tem o potencial de tentativa de rectificar as sistemáticas violareplicar e exacerbar o sofrimento de pes- ções levadas a cabo por esses mesmos Estasoas deslocadas. Uma abordagem desfo- dos ao longo dos anos. As exigências para cada pela miopia do olhar: a CE não com- que este controlo seja feito em coordenapreende que as mulheres, os homens e as ção com a sociedade civil, ONG e organizacrianças que fogem dos seus lares e procu- ções de defesa dos direitos humanos caiu, ram a Europa não se deterão pela perspec- de novo, em saco roto. tiva de se afogarem, de serem detidas à chegada ou de serem deportadas rapidamente. Migrantes descartáveis Estas pessoas migram porque tudo parece O discurso oficial há muito que se deiser mais seguro do que ficar onde estão. xou de figuras de estilo e tem defendido,
abertamente, uma política para requerentes de asilo e uma outra para os restantes migrantes. Os primeiros seriam aceites, ou não, em função da sua situação enquanto foragidos dum Estado onde são perseguidos; os segundos seriam aceites, ou não, em função da sua utilidade económica. Esta base mantém-se no actual Pacto e é mesmo aprofundada. As palavras «migrantes» e «refugiados» começam a desaparecer do léxico. E é preocupante apercebermo-nos de que grande parte dos próprios críticos deste tipo de abordagem e desta proposta de legislação em concreto centram as suas objecções nas questões dos «requerentes de asilo». Toda a gente deixou de falar de «migrantes». Trata-se, claro, de reagir a uma proposta que limita a questão das migrações ao asilo. Nesse sentido, o aparente abandono, por parte das ONG, do quadro geral pode ser apenas conjuntural. Se não o for, ou seja, se toda a discussão se situar nos termos definidos pela UE, então ela e o seu arame farpado conseguiram, de facto, limitar a discussão ao que é mais gritante, desvalorizando o resto dos migrantes até à descartibilidade. O que é especialmente grave no caso das migrações que têm a Europa como destino, onde os requerentes de asilo serão uma minoria quando comparados com o número de pessoas que, pura e simplesmente, tenta chegar a um local onde a vida pareça mais viável do que nas suas terras natais. Gente que foge de fomes e guerras, de secas e pragas, e que procura na Europa, mais do que um refúgio político, um abrigo contra contrariedades insuperáveis. NOTAS
1 https://tinyurl.com/y4gy6r4e