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editorial
Editorial A
23 de Março de 1996 ocorreu um “motim” no Forte de Caxias, provocado por interesses de Estado, com o objectivo de acabar com as várias lutas em que os presos estavam empenhados. A revolta transpôs muros e instalou-se no debate público, onde algumas opiniões chegaram a questionar a existência da própria prisão e o seu papel na sociedade. Dos 180 detidos armazenados aos montes e indefesos,-entre o 3º esquerdo e o 3º direito- quase todos sofreram selváticos espancamentos durante vários dias. Dessa prática de terror resultaram múltiplas fracturas e comoções cerebrais, tendo ainda um preso ficado cego de um olho devido a um tiro de bala de borracha dos muitos que foram disparados pelos mercenários do Estado. O Estado não cumpre a sua própria lei. É sabido que este sempre foi mestre na violação das regras que criou não hesitando em praticar qualquer crime, em interesse próprio, por mais horrendo que seja. No caso dos “presos entre muros”, basta uma simples olhadela pela imprensa de 94 a 96 para verificarmos a escandalosa violação sistemática dos “direitos dos presos”. Greves de fome, greves de trabalho, cartas e comunicados contestando e resistindo a tão cruel realidade, fizeram parte do quotidiano dos detidos a essa época. É neste ambiente que, por ordens superiores Estatais, foi provocada uma reacção espontânea dos presos. Distribuiram-se psicotrópicos fora da “refeição” e o director interino da Direcção Geral dos Servicos Prisionais, em “diálogo” com os presos legítimamente indignados demonstrou o seu total desprezo por eles, seria esta a faísca que iria acender a mecha. Como é possível que, com total descaramento, treze anos depois, venha o Estado pretender culpar 25 detidos à época, acusando-os em processo judicial de motim, incêndio e danos qualificados?! Alega o Ministerio Público que os presos começaram a organizar-se com lutas de greve de fome e de trabalho duas semanas antes de 23 de Março. Pretendem assim silenciar o contexto de corrupção, de impunidade, e de graves violações à dignidade humana, assim como as lutas de resistência ocorridas nos dois anos anteriores!... Contra tal “branqueamento” individualidades e diversos colectivos resolveram criar esta publicação, no sentido de relembrar os acontecimentos ocorridos entre 94 e 96 em quase todas as prisões nacionais, manifestar repúdio perante tão absurdo processo judicial, desmontando a farsa da acusação
e denunciar a actuação repressiva dos organismos Estatais, que tiveram um papel activo no aumento do terror vivido nas prisões portuguesas nos anos 90- e que ainda hoje tristemente continua- com o assustador e esclarecedor número de mortes, doentes sem o devido tratamento, presos a cumprirem “condenações” perpétuas encapotadas, mantendo esta escandalosa situação num limbo camuflado e invisível. Governo, Procuradoria Geral da República e DGSP foram e são os responsáveis pelo que ocorreu e continua a ocorrer com total hipocrisia e silêncio no interior das prisões. O que saíu nos media é apenas a ponta do iceberg. A haver um julgamento com as regras do Estado de Direito, deveria ser o Estado a sentar-se no banco dos réus e nunca quem sofreu essa estruturada, premeditada e incomensurável violência. Se as pessoas pudessem integralmente conhecer a realidade do interior das prisões, ainda que por uma hora apenas, certamente se levantariam em peso para repudiar veementemente este “novo holocausto”, como diz o dissidente criminólogo Nils Christie. Recentemente, na Europa, várias lutas ocorreram e algumas continuam: em Agosto de 2008 cerca de 550 presos estiveram em greve de fome nas prisões alemãs, reivindicando “melhorias” no sistema prisional; em Novembro a quase totalidade da população prisional da Grécia esteve também em greve de fome -acções de informação e solidariedade em relação a esta greve repercutiramse por toda a Europa-; em Itália, onde existe prisão perpétua, quase todos os presos afectados por essas condenações levam a cabo desde 1 de Dezembro uma jornada de luta; vários presos de Córdoba e de outras partes de Espanha encetaram uma greve de fome em solidariedade com os prisioneiros de Itália reivindicando ao mesmo tempo uma série de reivindicações ao sistema penal e judicial do Estado espanhol; no verão, Amadeu Casellas, prisioneiro na Catalunha (Espanha) esteve 78 dias em greve de fome. Por cá, em Monsanto -um dos Guantanamos do país- vários detidos estiveram, no mês de Outubro, em greve de fome protestando contra as torturas de que são alvo e contra a total impunidade com que actuam os carcereiros desta cadeia. A luta pela dignidade e pela liberdade jamais poderá ser contida seja em que prisão fôr! Solidariedade e absolvição para os 25 de Caxias!
Público, 13 de novembro de 1994
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1994 - agitações
1994 - Agitações M
il novecentos e noventa e quatro começou nas cadeias portuguesas sob o signo de luta e protesto. À simples observação dos primeiros episódios, ninguèm diria que as agitações iam atingir níveis até então desconhecidos no universo prisional português. Em Janeiro, 18 presos da Penitenciaria de Coimbra entram em greve de fome reivindicando a sua transferencia para prisões mais próximas das terras de origem e denunciam o tratamento administrado pelos responsáveis da cadeia, sem resultados práticos, uma vez que a 1 de Março, 7 deles vêem-se na contingência de retomar a greve de fome lutando pelos mesmos objectivos. Paralelamente, implicados no “caso FUP-FP25” mantêm até Fevereiro outra greve de fome iniciada no Natal anterior, reivindicando o cúmulo jurídico das suas penas. Nos vinte anos decorridos após o fim da ditadura - 25 de Abril de 1974 - houveram muitas lutas nas cadeias portuguesas motivadas pelas condições prisionais. As que atingiram maior impacto público tiveram como protagonistas os envolvidos nos processos judiciais de cariz político - presos dos casos PRP e FUP/FP-25 - confinados a espaços isolados da restante população prisional, que viram substancialmente melhoradas as condições de reclusão no rescaldo de várias greves de fome. No entanto durante estes anos, foram inúmeras as lutas levadas a cabo por reclusos designados de “delito comum”. Ainda que menos divulgadas - quase sempre silenciadas - algumas tinham por motivo interesses da população prisional em geral, outras, razões pessoais: transferências para prisões mais próximas da família, problemas de saúde, protesto contra o mau tratamento por parte dos responsáveis das cadeias e mobilizações para pressionar aprovação de amnistias. De todas essas lutas é oportuno destacar o motim de 1985 em Vale de Judeus, com origem nos sitemáticos espancamentos infligidos pelos guardas aos presos; o motim do Estabelecimento Prisional de Lisboa em 1987, provocado pela reacção espontânea dos presos perante o espancamento de um preso levado a cabo por guardas no “Redondo” (ponto central observável de todos as alas desta Penitenciária), 15 minutos depois de ter sido exibido o filme Exterminator através do circuito interno de televisão, numa época em que os presos estavam proibidos de possuir aparelhos de TV nas celas; e o conflito que levaria ao afastamento do director, sub-director, médico, todos os chefes e vários guardas prisionais do Estabelecimento Prisional do Linhó, na sequência da morte em 1989 de um preso em regime 111; para além de muitos outros motins. O somatório destas duas experiências de luta -numa altura em que a sobrelotação prisional atingia o ponto de rupturamanifestou-se de forma inovadora a 15 de
Março de 1994 com uma “greve de fome de protesto contra as condições prisionais e de luta por vários direitos consignados na Constituição da República portuguesa não respeitados nas prisões do país.” O Reduto Norte do Forte de Caxias era um dos Estabelecimentos Prisionais onde a sobrelotação atingia proporções mais elevadas. Celas individuais albergavam 3 presos, camaratas vocacionadas para 6 amontoavam 14 -dois dos quais dormiam em colchões no chão- . Este excesso de presos acabava por ter consequências em todos os restantes âmbitos da cadeia; dos serviços administrativos à assistência médica, passando pelas visitas, até aos recreios. Aquela que ficou conhecida como a prisão dos presos políticos da ditadura e foi cenário da libertação de centenas deles nos dias que se seguiram ao 25 de Abril, encontrava-se à beira do colapso. Neste ambiente a revolta foi ganhando expressão. Enquanto elaboravam a “declaração inicial”, que serviria para divulgar fora dos muros a luta, e discutiam os “princípios-base” pelos quais todos os grevistas se deviam guiar durante a greve de fome, os presos integrantes do grupo impulsor iam apurando disponibilidades para a participação dos restantes. Na semana anterior à eclosão da greve, um abaixo-assinado promovido pelos portadores de doenças infecto-contagiosas, contestando a falta de tratamento, foi subscrito pela quase totalidade dos presos desta cadeia. Foi definido como táctica não envolver de início todos os disponíveis para participar na greve, no sentido de contrariar o efeito que este tipo de lutas tinha tido até então: um grupo numeroso no primeiro dia, metade no dia seguinte e, ao fim de uma semana, reduzido a dois ou três dos que a tinham iniciado. As entradas em greve de fome seriam progressivas: 30 presos no início da luta, 30 dois dias depois, e assim sucessivamente. Aproveitando para a divulgação do protesto a nova dinâmica informativa, surgida com o aparecimento recente dos canais de televisão privados, o grupo de 30 presos do Forte de Caxias que iniciou a greve de fome, rapidamente deu a conhecer a todos, sobretudo à população prisional - que não estava a par da luta, mas consumia televisão 24 horas por dia - as grandes linhas do processo que se iniciava. De salientar que os Telejornais desse dia, sem excepção, abriram com a gravação da voz de um preso lendo extractos da declaração que expunha os motivos da luta (as cassetes tinham sido entregues horas antes nas redacções dos vários canais de TV e das principais estações de Rádio). Dois dias depois a Direcção Geral dos Serviços Prisionais reconhece que passam da centena os presos em luta nos vários Estabelecimentos Prisionais do país, quando na realidade seriam muitos mais. No entanto, após a entrada do segundo grupo de 30 pre-
sos de Caxias, o movimento atinge proporções expressivas, dando novo impulso aos hesitantes e alastra-se às prisões regionais. Não se sabe ao certo quantos presos estiveram envolvidos, no entanto confirmou-se que no E.P. de Vale dos Judeus, por exemplo, uma escala permitia manter permanentemente na centena o número de grevistas da fome. É neste Estabelecimento Prisional que se verifica o único incidente relevante: a 17 de Março, os grevistas impedem a entrada num dos pavilhões de um carro de transporte de refeições. Refeitos da surpresa, os responsáveis dos Serviços Prisionais ordenam tranferências, isolam os grevistas dos restantes reclusos nos vários estabelecimentos, dificultam as visitas e tentam desviar a atenção dos motivos do protesto através de falsas declarações públicas. Mas foram mais longe; Carlos Pereira - ou Carlos da Malveira, como era mais conhecido - foi transferido em greve de fome de Vale de Judeus para a Penitenciaria de Coimbra a 18 de Março e aparece morto no dia seguinte numa cela dos subterrâneos desta cadeia. (Até hoje não são conhecidas as conclusões do inquérito judicial às circunstâncias desta morte). Nos princípios-base da luta iniciada no Forte de Caxias era sublinhada a tónica de “respeitar a ordem e a disciplina da cadeia”, e não parar a greve até ao internamento no Hospital-Prisão; “quanto mais depressa nos transferirem para o hospital, mais depressa se encontrarão as soluções para a greve”, estava escrito. Apostava-se no colapso do Hospital prisional de modo a obrigar os inevitáveis internamentos posteriores a socorrer-se dos Hospitais Civis, pressionando a abertura de negociações. Onze dias depois é derivado para o Hospital de Santa Maria o primeiro preso em greve de fome, por falta de camas no Hospital-Prisão. Após algumas horas, evadiu-se. No dia seguinte o Director-Geral dos Serviços Prisionais, Fernando Duarte -que tinha ascendido ao cargo após a morte a tiro do seu antecessor oito anos antes- certamente pressionado pelos responsáveis políticos, reune no Forte de Caxias com os grevistas daquela prisão. Promete-lhes não só a satisfação de todas as reivindicações do movimento e o regresso dos transferidos durante a luta, como a garantia de aprovação no Parlamento de uma amnistia comemorativa do vigésimo aniversário do 25 de Abril, que, pelo efeito de redução das penas, reduziria a lotação das prisões para os níveis normais. Os presos que com ele reuniram, tomaram a decisão não de acabar, mas de suspender até à data de 25 de Abril a greve de fome. Não desconfiaram que estavam a ser ludibriados, uma vez que o dito director não tinha poder para cumprir as promessas feitas, e ignoraram alguns dos princípiosbase da luta - provavelmente aqueles que davam mais garantias de êxito- : “Nas ne-
gociações todos têm de ser ouvidos, se não nos deixarem reunir não paramos nem negociamos” e/ou “os representantes não têm funções deliberativas. Nas decisões têm de participar e ser ouvidos todos”. Os que se mantinham em greve de fome nas restantes prisões acabaram por conhecer via rádio e televisão a decisão tomada de suspender a greve e os termos acordados.. Com esta suspensão os presos iniciam a preparação de uma segunda fase dos protestos. Para recentrar a discussão pública nos temas da declaração inicial da luta, entretanto perdida em favor da amnistia, elaboram “avisos” que tratam separadamente os pontos designados e constituem um gritante levantamento das péssimas condições de reclusão em Portugal. Nunca a população prisional procedera a um tão minucioso e perturbador estudo, na forma de avisos, sobre as condições de reclusão no país: nele são abordados separadamente, sobrelotação, inconstitucionalidades, saúde, trabalho prisional e ocupação do tempo, justiça e direito ao amor. Os vários avisos são enviados um a um a partir de 6 de Abril para os orgãos de soberania do Estado, grupos parlamentares, partidos políticos, responsáveis religiosos, centrais sindicais e à generalidade dos orgãos de comunicação social: diários, semanários, rádios e televisões. Apenas um diário e uma estação de rádio noticiam o primeiro “aviso”. Os outros foram completamente silenciados. Já no fim da luta, em meados de Maio, uma edição fac-simile dos avisos foi editada por grupos de solidariedade com os presos. O último dos avisos, datado de 13 de Abril, intitulado “síntese”, analisava esta etapa da luta e destacava “antes de mais o silêncio sepulcral que os envolveu”. Anunciava uma paralização do trabalho, com recusa da alimentação no dia 18 de Abril e recusa de visitas com greve de silêncio para o exterior no dia 25 de Abril, “para que a necessidade deste debate se instale de novo na sociedade portuguesa”. Apesar da aderência massiva à recusa ao trabalho nas prisões e das rejeições à alimentação, o debate seria virtualmente sepultado. Dias depois é aprovada uma aministia que liberta mais de mil e quinhentos presos das cadeias, enfraquecendo a posição dos poucos que a 26 de Abril retomaram a greve de fome, uma vez que a maioria das condições que motivaram a luta não tinham sido alteradas. A 13 de Maio quatro grevistas internados no Hospital de Caxias enviam uma mensagem para o Forte onde dão por encerrada a acção de protesto e luta: “O silêncio na imprensa é geral e nestas condições não era justo estar a prolongar a luta. Conseguiu-se o que se conseguiu e não se pode dizer que foi pouco”. O Director-Geral dos Serviços Prisionais é substituído no cargo, dias depois, por um juiz, Marques Ferreira.
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1994 - agitações
18 reclusos entram em greve
Caxias em Greve
Os protestos começam logo em Janeiro com a greve de fome de 18 reclusos em Coimbra contestando o tratamento e exigindo a transferência para estabelecimentos mais próximos do domicilio e repetindo-se a 1 de Março com a greve de 7 presos, além de outra greve de fome dos presos das FP-25 que reivindicavam o cúmulo jurídico das suas penas.
Março de 1994 marca o início de 2 meses de protestos. Em menos de dois dias os números oficiais indicam uma centena de reclusos em greve de fome em várias prisões. De Caxias surge o anuncio por parte dos reclusos: «Trinta cidadãos de várias nações (...) iniciam a partir das 12 horas de terça-feira, 15 de Março, uma greve de fome de protesto contra as actuais condições prisionais e de luta por vários direitos consignados na Constituição da República Portuguesa...». Entram em greve 30 presos de Caxias.
Diário de Notícias, 16 de março de 1994
Não há lideranças Fernando Duarte, Director Geral dos Serviços Prisionais, atribui a liderança do movimento a Fernando R. da Silva, a população prisional responde-lhe em comunicado desde Caxias que “não há lideranças neste processo, não se podem atribuir responsabilidades a ninguém em concreto”.
30 em greve em Vale de Judeus Ao mesmo tempo é divulgado em praça pública números e situações «explosivas» da instituição prisional cuja reforma, aprovada há dez anos, continuava por aplicar como denunciavam estudos independentes. A greve de fome iniciada em Caxias faz-se acompanhada de um coerente e determinado processo de luta. As declarações e reivindicações vindas daí despoletam nos outros Estabelecimentos Prisionais do País mais greves e registamse a 18 de Março em Vale de Judeus mais 30 presos em greve e no dia seguinte estavam, segundo dados oficiais, 103 presos em greve de fome pelo país.
O sistema prisional
241 em greve de fome Desta vez o movimento alastra-se a todo o país. pelo menos 241 reclusos em greve de fome pelas prisões do país e até 3 técnicos do Instituto de Reinserção Social entram em greve ao trabalho em «solidariedade com os reclusos». Frente a um movimento de protesto que abala as primeiras páginas dos jornais durante semanas a fio, o Director dos Serviços Prisionais assina com duas ou três frases a sua posterior demissão.“Os presos estão apenas a fazer dieta”, diz aos microfones da TSF, e acusa os tribunais de não utilizarem nas suas decisões medidas alternativas à prisão preventiva”. A 22 de Março acrescenta em conferência de imprensa ”se há tanta gente que quer comida e não a têm, porquê tanta preocupação com quem não come porque não quer?”.
Em 1994, o sistema prisional encontrava-se numa situação calamitosa, tendo uma lotação, segundo o próprio Ministro da justiça Laborinho Lucio, de 11298 reclusos quando somente existia capacidade para 7300 isto num total de 14 prisões centrais, 28 regionais e 6 de apoio. Do número total de reclusos 4004 estavam em prisão preventiva, 1061 eram estrangeiros que dos quais metade são africanos. Estes eram pelo menos os números oficiais publicados em Março de 1994.
Público, 20 de Março de 1994
>> barra cronológica janeiro
fevereiro 18 presos de Coimbra entram em greve de fome reivindicando transferência para EP mais perto de casa
Presos das FP-25 terminam greve de fome iniciada em Dezembro reivindicando o cumulo juridico das suas penas
março 1 de março 7 presos retomam a greve de fome em Coimbra em luta pela transferência para EPs mais perto de casa
15 de março 30 reclusos em Caxias em greve de fome reivindicando os direitos consagrados na constituição. Menos de 48 horas depois surgem 241 em greve de fome nas prisões do país
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1994 - agitações
Repressão
Declaração inicial da luta.
Os Serviços Prisionais, frente a um movimento alastrado, levam a cabo ordens de transferências em Caxias dificultando os pedidos de ingresso de médicos do exterior e reprimindo os grevistas. Mas não só em Caxias. A 17 de Março, os grevistas no EP de Vale de Judeus impedem a entrada num dos pavilhões de um carro de transporte de refeições e no seguimento deste incidente vários reclusos são transferidos para outros estabelecimentos. Isto foi o que aconteceu a Carlos Pereira, ou Carlos da Malveira, como era mais conhecido, que foi transferido em greve de fome de Vale de Judeus para a Penitenciaria de Coimbra a 18 de Março e apareceu morto no dia seguinte numa cela dos subterrâneos desta cadeia. Familiares e amigos dos presos mobilizam-se para fazer eco das reinvindicações desde o exterior e difundir pelos meios ao seu alcance a luta que decorria entre muros, chegando a ameaçar recorrer à mesma forma de luta, a greve de fome.
1- Trinta cidadãos de várias nações, recluídos no Estabelecimento Prisional de Caxias, antigo Reduto Norte do Forte de Caxias, decidem iniciar, a partir das 12 horas de terça-feira, dia 15 de março, uma greve de fome de protesto contra as actuais condições prisionais e de luta por vários direitos consignados na constituição da republica portuguesa, não respeitados nas prisões do país desnecessariamente, (...). 2- Protestamos contra a superlotação ilegal da cadeia, que aloja mais do dobro dos presos para que foi destinada; -Protestamos contra o encerramento de 3 presos em cada cela individual; -Protestamos contra o encerramento de 14 presos em camaratas vocacionadas para alojar 7 presos, e onde, pelo menos dois, dormem em colchões no chão; -Protestamos contra a restrição crescente às visitas, o que contraria o espírito de reinserção social dos presos; -Protestamos contra a censura da correspondência; -Protestamos por não nos ser reconhecido o direito à identidade pessoal; -Protestamos contra o desleixo nos cuidades de saúde e o desrespeito por elementares preocupações médicas, designadamente, no que concerne aos detidos portadores de doenças infecto-contagiosas, aqui detidos; -protestamos contra as remunerações escondalosas de 180$00 por dia aos presos que trabalham; -Protestamos contra o ócio total nos corredores apertados e nas celas superlotadas do E.P., designadamente protestamos contra a impossibilidade de ocupação dotempo na participação activa dos presos na iniciativa, organização e desenvolvimento de actividades culturais, recreativas e desportivas. 3- Lutamos pelo cumprimento da lei da reforma prisional Dec. Lei Nº 265/79 nos capítulos do alojamento e da lotação, respectivamento: artº 18 nº 1 –“Os reclusos são alojados em quartos de internamento individual” e artigos nº 179 e 180 –“Poibição da superlotação”, como condição determinante ao cumprimento de todos os outros artigos e capítulos da lei da reforma prisional e ao cumprimento da legalidade nas prisões; (A superlotação foi sancionada por toda a hierarquia dos serviços prisionais, e continua a ser política do governo para todo o ano corrente, conforme anúncio do secre-
mensagem entre grevistas
Auto-organização dos presos em greve Com base em experiências anteriores, os presos em luta acordam uma série de princípios a seguir no decurso da greve de fome, estes são um verdadeiro manual para futuro grevistas. Estavam redigidos numa pequena folha de caderno, formato A5, manuscrita dos dois lados, cada preso manuscrevia para si uma cópia, ao mesmo tempo que passava ao seguinte o original anteriormente recebido.
“- Se fores chamado ao Director, diz que a nossa luta não tem a ver com esta cadeia em particular, tem a ver com as condições prisionais gerais. - Que a luta vai decorrer dentro da ordem e da disciplina da cadeia. Mas vai mesmo!!! Mesmo que os funcionários não tenham razão, enquanto durar a luta respeitar-se-ão todas as orientações vindas dos guardas. Se não forem legais nem justas, fazer participação deles. A greve de fome é um direito que nos assiste e a lei, neste caso, é defendida por nós. - Quanto mais depressa nos tranferirem para o hospital mais depressa se encontrarão as soluções para a greve. - Se houver castigos (fecho na cela, cortes de visita ou outros quaisqueres) respeitar os funcionários que executam o castigo e participar deles e de quem deu a ordem. Pedir o livro do juíz de penas para inscrição e queixa. - Se houver transferências, não parar a greve até ao hospital. Exigir pesagem diária e médico na cadeia para onde fores. - Exigir pesagem, medição de pulsação e tensão, todos os dias. Apontar os valores do peso, pulsação e tensão diariamente numa folha desde o primeiro dia. - Qualquer decisão para parar é voluntária, mas quem parar deixa de representar os princípios da declaração de greve de fome. - Nas negociações todos têm de ser ouvidos. Se não nos deixarem reunir, não paramos nem negociamos até nos encontrarmos todos no hospital. - A imprensa poderá publicar ou veicular notícias falsas sobre a luta, não acreditar antes de confirmar entre nós. - Apelar aos familiares e amigos para que se encontrem. - Não há protagonistas nesta luta, nenhum de nós que assuma publicamente uma posição de todos os grevistas previamente acordada entre todos o fará segunda vez. O princípio é o da rotatividade. - O mínimo de representantes em encontros com a hierarquia prisional ou política é de três, mas não têm funções deliberativas. Nas decisões têm de participar e ser ouvidos todos. - Todos estes pontos podem ser alterados ou aumentados se fôr esse o consenso a que se chegar, em qualquer momento. - Vamos à luta para ganhar! Aguentar firme!”
tário de estado da justiça, na assembleia da república, que promete mais 1000 lugares até ao fim do ano nas prisões portuguesas, 600 dos quais acrescento de camas nos espaços prisionais já superlotados). -Lutamos pela revisão da actual lei da reforma prisional na perspectiva da humanização das condições prisionais, designadamente, nos aspectos em que limita e anula os esforços de reinserção social dos presos, afastando-os dos seus familiares e amigos; -Lutamos pelo direito a visitas privadas periódicas dos presos com os seus cônjuges, companheiras ou companheiros, pelo que deverão ser encontrados espaços adaptados para o efeito em todos os E.P.s (direito acolhido nos artigos nº 36, 67 e 68 da C.R.P.); -Lutamos pelo fim da censura à correspondência (artº 34 C.R.P.); -Lutamos para que os presos condenados tenham de facto a possibilidade de beneficiar das saídas precárias e da liberdade condicional previstas na lei, permitindo, de forma geral e progressiva, o restabelecimento de relações com a sociedade; -Lutamos por todos os outros direitos fundamentais consagrados na Constituição, e que não podem ser completamente postergados pelas exigências próprias da execução das medidas de segurança ou privativas da liberdade, sob pena de transformar a excepção em principio da lei fundamental, como vem acontecendo relativamente à lei da reforma prisional, onde a excepção faz a regra. 4- Esta nossa atitude pretende ser um primeiro passo na criação de um movimento na sociedade portuguesa, quer no interior quer no exterior das prisões, que permita que o cidadão preso goze do mais elementar ptincipio fundamental da constituição da república portuguesa: a dignidade da pessoa humana. -Apelamos aos mais de 11000 presos, para que se juntem a nós neste protesto e luta (...). -Apelamos à sociedade civil, para que nos apoie e leve aos orgãos de soberania a discussão de tão graves irregularidades e ilegalidades e de tão flagrante desrespeito de vários direitos fundamentais nas prisões do país. Estabelecimento Prisional de Caxias, 15 Março 1994. Assinado por 30 presos.
Suspensão da greve de fome Na sequência de uma reunião com o Director Geral dos Serviços Prisionais, Fernando Duarte, os presos em greve de fome no Forte de Caxias decidem suspendê-la até ao dia 25 de Abril, decisão esta que não foi consultada com o resto dos presos em greve nos outro estabelecimentos prisionais. Fernando Duarte ter-se-á comprometido a satisfazer todas as reivindicações dos presos em luta.
correio da manhã, 28 de março de 1994
>> barra cronológica março 17 Março três técnicos do instituto de reinserção social fazem greve ao trabalho em solidariedade com os reclusos. Reclusos de Vale de judeus impedem a entrada no pavilhão de um carro de transporte de refeições. Carlos Pereira recebe ordem de transferência imediata para o E. P. de Coimbra.
18 Março Fernando Rodrigues da Silva é transferido para o Linhó e na sequência desta transferência entram, no EP do linhó, 30 reclusos em greve de fome; Carlos Pereira é encontrado morto na cela no E. P de Coimbra.
19 Março Segundo dados oFIciais, registam-se 103 presos em greve de fome nas cadeias portuguesas. .
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1994 - agitações
Muros de silêncio Suspendida a greve de fome no final de Março os presos em luta decidem aprofundar os pontos evocados na declaração inicial da luta , através do envio de um conjunto de “avisos” para as principais instituições do Estado Português ( Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro Ministro, etc...), grupos parlamentares dos partidos políticos, Provedor de Justiça, Procurador Geral da República, Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, centrais sindicais, Amnistia Internacional, e para a totalidade dos jornais diários, agências noticiosas, canais de televisão e emissoras de rádio com cobertura em todo o território nacional. O silêncio imposto sobre estes “avisos” foi geral, entre a saída do primeiro, a 6 de Abril, e o fim das iniciativas de protesto nas prisões, apenas uma notícia no jornal Público (recorte da direita), e outra na Rádio Comercial, se referem a esta iniciativa dos presos.
Avisos Estes “avisos” escritos à mão em letra miudinha, caligrafias diversas entre 6 e 14 de Abril de 1994, em Caxias, são um gritante levantamento das condições de reclusão em Portugal. Os presos fecham o rol de assinaturas com um simbólico “e Manuelinho Menino, em nome de todos os restantes presos das cadeias portuguesas”, em referência à célebre revolta de Évora, onde a propaganda anti-filipina pela libertação do reino de Portugal, também sob a forma de “avisos”, era assinada com o mesmo pseudónimo, por este apodo era conhecido um personagem picaresco da cidade ao qual não se poderiam imputar responsabilidades. Cada “aviso” centrava-se num tema diferente que afectava o universo prisional. O primeiro tratava a superlotação; o segundo, inconstitucionalidades; o terceiro, a saúde; o quarto, o trabalho; o quinto, a justiça; e o sexto, o amor. Este conjunto de “avisos” eram encerrados com uma síntese onde, entre outros assuntos, se denunciava o silêncio sepulcral que os envolveu, exigia-se o apuramento de responsabilidades sobre o amortalhamento em vida de um preso no Hospital-Prisão de Caxias (ver extracto reproduzido abaixo), e anunciavam-se algumas iniciativas com o objectivo de instalar novamente o debate sobre as condições prisionais no país.
Público, 7 de abril de 1994
extracto do aviso nº 4
extracto da síntese dos avisos
>> barra cronológica março 21 de Março Registam-se, segundo a DGSP, 138 em greve de fome pelo país.
abril 23 de Março 23 Março: registam-se 488 presos em greve de fome, segundo o Forum Prisões, e 129, segundo a DGSP
25 de março Registam-se, segundo Fernando Duarte, 60 reclusos em greve de fome .
27 de março 27 Março: Suspensão da greve, mas mantêm-se ainda 7 no Hospital-prisão de Caxias e 2 no E. P. de Vale de Judeus
6 de abril Iniciam-se as entregas dos “Avisos” vindos de Caxias
11 de abril Ultimo preso de Caxias ainda em greve de fome termina greve
14 de abril Terminam as entregas dos “Avisos”
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1994 - agitações
Retomar da greve Para que o debate público sobre as condições prisionais “se instale de novo na sociedade portuguesa” os presos do Reduto Norte do Forte de Caxias anunciavam na síntese dos “Avisos” a recusa à alimentação fornecida pelos Estabelecimentos Prisionais e a paralização do trabalho no dia 18 de Abril. Os únicos dados conhecidos são os deste estabelecimento prisional, onde 81,25% dos trabalhadores-presos fizeram greve e 250 recusaram a comida. No mesmo comunicado em que foram revelados estes dados, subscrito por 150 assinaturas, pode ler-se: “(...) Numa demonstração de que, 20 anos depois do 25 de Abril, os cidadãos recluídos nas cadeias portuguesas não têm motivos para comemorar, já que a degradação das condições prisionais e da vida dentro destes muros atingiram o insuportável, depois de ultrapassada há muito a sua estrutura legal, recusaremos as visitas e faremos
greve de silêncio para o exterior das prisões, na próxima segunda-feira, 25 de Abril, Feriado. Apelamos aos presos das restantes prisões portuguesas para que se juntem a nós neste gesto”. Na véspera sai de Caxias o último comunicado público deste movimento, subscrito por 113 presos. Tal como tinha acontecido com os anteriores, nenhum orgão de comunicação lhe deu eco: “Amanhã é o ’25 de Abril’. Faz vinte anos que os portugueses saíram à rua exprimindo com alegria o seu desejo de liberdade, festejando o gesto corajoso que pôs fim à ditadura. (...) Nos anos que se seguiram, várias leis se foram adaptando à realidade portuguesa (...) Reforma Prisional em 1979, novo Código Penal em 1982, legislação complementar (...) os Serviços Prisionais nunca se sujeitaram às leis reformadoras do Sistema Prisional, pela simples razão de que os seus responsáveis nunca as aceitaram, pois o 25 de Abril
nunca passou por aqui”. Num momento em que o tema da amnistia ocupava o espaço mediático, no que a prisões se refere, e o pensamento de milhares de presos estava pendente de uma decisão política que os pusesse em liberdade ou lhes atenuasse as penas, escreviam: “A lei está do nosso lado. Com ordem e disciplina multiplicaremos a nossa luta até que a discussão na Assembleia da República se alargue aos problemas que afectam as prisões do país, designadamente à falência do actual sistema prisional que se traduz na violação absoluta da letra da lei. Por momentos vemos os nossos papéis invertidos. É que nós estamos aqui porque somos acusados de não cumprir a lei em vigor. O Estado não tem a obrigação de dar-nos o exemplo?”. Terminavam o comunicado anunciando: “dia 26 de Abril retomaremos a greve de fome suspensa em 27 de Março e voltaremos a paralizar o trabalho”.
Uma pequena amnistia de ocasião A amnistia não consta como reivindicação em nenhum dos documentos produzidos pelos presos no decorrer desta luta, embora seja referida como paliativo e medida propiciadora de alívio da sobrelotação nas prisões. Contudo, o tema da amnistia tinha assumido o protagonismo mediático desde a suspensão da greve de fome em finais de Março, desviando o debate público das questões de fundo suscitadas no início da luta. Apresentada como destinada a celebrar o 20º aniversário do 25 de Abril, a aministia não reuniria a tempo os consensos políticos necessários para a sua aprovação nesta data, sendo aprovada na Assembleia da República apenas a 5 de Maio. À medida que os vários tribunais a vão aplicando, mais de 1500 presos saiem em liberdade, dos quais dezenas tinham retomado a greve de fome a 26 de Abril.
semanário, 26 de março de 1994
Fim das greves A aplicação da amnistia tem um efeito desmobilizador nos presos que continuavam a greve de fome. À sensação de silenciamento da luta, juntava-se a libertação de grande parte dos grevistas. Os que continuavam em greve, internados no Hospital, decidem, a 16 de Maio, “parar a greve de fome pelas razões globais, continuando em greve quem tiver razões particulares para ver satisfeitas pelos Serviços Prisionais”. Em carta enviada para o Forte de Caxias justificam: “O silêncio na imprensa é geral e nestas condições não era justo estar a prolongar a luta por
mais tempo pelas razões iniciais. Conseguiu-se o que se conseguiu com a primeira fase e poderemos sempre dizer que não foi pouco (...) de qualquer maneira, as prisões não voltarão a ser as mesmas”. Duas semanas depois o Director Geral dos Serviços Prisionais, Fernando Duarte, foi substituído no cargo pelo juiz Marques Ferreira. Logo que toma posse dá sinal de que haverá mudanças na politica prisional, negociando casos de conflicto particular que subsistiam. Em Outubro, no Forte de Caxias, a quase totalidade dos presos do 3º direito recusam-se a
entrar nas celas. Após negociações com a direcção do EP, desistem desta recusa e 17 iniciam uma greve de fome, elaborando um caderno reivindicativo que recolhia muitos dos pontos da declaração inicial de Março. Marques Ferreira vai falar pessoalmente com os presos pedindo-lhes tempo para poder satisfazer as reivindicações e promete a continuação do diálogo, conseguindo assim a suspensão da greve de fome
público, 3 de dezembro de 1994 excerto da mensagem de fim da greve de fome, enviada a 16 de Maio para o Reduto Norte pelos presos que acabavam de suspender a greve no Hospital de Caxias
>> barra cronológica maio 18 de abril 18 Abril: 81% de greve ao trabalho e 280 rejeições de alimentação no Forte de Caxias.
26 de abril 14 presos no Forte de Caxias retomam a greve de fome suspensa em Março
5 de maio Aprovada amnistia para pequenos delitos em celebração dos 25 anos do 25 Abril que retira cerca de um milhar de reclusos das prisões.
junho 12 de maio Presos em greve de fome internados no Hospital de Caxias suspendem a luta iniciada a 15 de Março, alguns continuam a greve de fome por razões particulares.
1 de junho Tomada de posse do novo Director Geral dos Serviços Prisionais, Juiz Manuel Marques Ferreira.
...
outubro 3 de outubro 17 presos em greve de fome em Caxias
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1995 - sistema prisional chega ao fundo
1995 - Sistema prisional chega ao fundo M
ais que pelas lutas dos presos, o universo prisional português, no ano de 1995, ficou marcado por conflitos intestinos na instituição e pela exposição pública de inúmeras irregularidades praticadas nas prisões, reflectidas nos relatórios de várias instituições internacionais. A irrupção de um novo director-geral, sem ligações anteriores conhecidas ao mundo escondido das prisões, que apela aos reclusos para lhe denunciarem directamente as situações “ilícitas, corruptas e injustas” no interior dos estabelecimentos prisionais, promovendo simultaneamente substituições nos cargos e alterações no funcionamento sob o lema de “cruzada de moralização”, veio provocar uma onda de choque na rede de interesses instalados nos Serviços Prisionais, que se propagou pelas suas relações no aparelho de Estado. A reacção dos interesses afectados não se fez esperar e Marques Ferreira não sobreviveria no cargo aos ”movimentos conspiratórios” que provocou. Contrariamente ao seu antecessor -Fernando Duarte levava 19 anos de carreira
como inspector dos Serviços Prisionais quando acedeu ao cargo em 1986- Marques Ferreira toma posse liberto do emaranhado de dependências próprias de um sistema prisional que só tinha conhecido um breve e tímido interregno na gestão dos interesses instalados nos anos 70, quando Carlos Meira foi director-geral iniciando um processo de modernização das prisões anquilosadas por 48 anos de ditadura. Essa rede rapidamente lhe “faria a cama”, incomodada pela política de abertura das prisões à sociedade e outras mudanças por ele então iniciadas. A fuga de Vale de Judeus em 1978 foi o pretexto para o seu afastamento. Uma rápida leitura do gráfico evolutivo da população prisional entre Maio de 1994 –aquando da aprovação da amnistia no rescaldo da luta levada a cabo, que tinha aliviado em cerca de 2.000 presos as prisões sobrelotadas, reduzindo o seu total para 9.750- e Dezembro de 1995, demonstra que a população prisional aumentou para 12.250 presos. De referir que Marques Ferreira tomara posse em Junho de 94 como director-geral abandonando o cargo em Ja-
neiro de 96. Nestes 19 meses a população aumentou em 2.500 o número de presos, 500 mais do que os 11.750 existentes em Maio de 1994, antes da amnistia, quando a sobrelotação tinha sido o principal motivo para o eclodir da maior luta de presos nas cadeias portuguesas até então. Este aumento exponencial não tem nenhuma relação com o aumento da criminalidade neste período (como se pode ver no gráfico da página seguinte), mas antes com o excesso de zelo de polícias, magistrados do Ministério Público e juízes, numa demonstração inequívoca da teia de relações instalada no aparelho de Estado, que não estava para facilitar a vida ao impetuoso director geral. Além do mais a eleição de um novo Presidente, Jorge Sampaio, não foi comemorada com o tradicional perdão presidencial de um ano em todas as penas, pela primeira vez na história da República Portuguesa. Marques Ferreira aguentaria pouco tempo a forte resistência dos interesses afectados, abandonando inesperadamente o cargo, não sem antes deixar publicamente um diagnóstico: “o sistema prisional chegou ao
fundo e precisa de uma renovação total”. Nas vésperas de sair, Marques Ferreira põe literalmente “a boca no trombone” em declarações à imprensa e televisão onde esclarece ter sido ameaçado de morte por, na qualidade de director geral dos serviços prisionais, ter denunciado publicamente a existência de uma ou mais organizações criminosas capazes de fazerem respeitar a sua própria lei no interior dos estabelecimentos prisionais, à margem e sobrepondose ao comando da própria direcção geral. Na última conferência de imprensa, dias antes da sua saída, 19 meses após a tomada de posse, resumia com impotência: “chegou a um momento em que notámos estar num atoleiro”. Substituí-lo-ia Celso Manata, seu subdirector-geral, procurador da República antes de ser colocado em comissão de serviço neste cargo. O novo director geral nunca se referiu aos temas denunciados por Marques Ferreira e passou a assumir em pleno a defesa dos interesses e políticas instaladas desde sempre nas prisões portuguesas.
1995 - sistema prisional chega ao fundo
Os problemas aumentam cada vez mais Um ano decorrido após a amnistia por ocasião do 25 de Abril em 1994 ficou claramente comprovado que esta não passou de uma panaceia momentânea para a avalanche de problemas continuamente denunciados pelos presos. A sobrelotação e a degradação das questões de saúde entre a população reclusa atingem ao longo de 1995 e até ao final desse ano dimensões alarmantes e impossíveis de conter. Veja-se a evolução da população prisional nessa primeira metade da década de 90, para perceber que a amnistia de 1994 não passou do esvaziar da pressão de um balão prestes a rebentar. Um breve instante para logo de imediato a situação piorar, insuflando a sobrelotação prisional convertendo-a num balão prestes a explodir, sem relação directa com a evolução da criminalidade no mesmo período.
. Evolução da população prisional entre 1992 e 1996
. Crime por 100 mil habitantes (admitindo 10 milhões de habitantes)
o independente, 13 de abril de 1995
>> barra cronológica maio 14 de maio Apresentação no Parlamento Europeu de um relatório sobre os direitos do Homem na UE que denuncia casos de tortura e maus tratos nas esquadras portuguesas
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Prisões sob o olhar do mundo Após os protestos de 1994 tornou-se difícil ao Estado Português salvar a cara e esconder debaixo do tapete à comunidade internacional as atrocidades acometidas no sistema prisional nacional. Em Maio de 1995 o Comité para a Prevenção da Tortura e dos Tratamentos Inumanos e Degradantes do Conselho da Europa desloca-se a 16 esquadras, dois centros de detenção de menores e várias prisões no Porto, Lisboa e Sintra. De imediato, a visita sigilosa e de surpresa, como relata a imprensa “ficou marcada por um acontecimento desagradável. Numa das visitas a uma das prisões os peritos europeus encontraram um preso enforcado numa cela”…
diário de notícias, 24 de maio de 1995
diário de notícias, 24 de maio de 1995
diário de notícias,16 de junho de 1995
diário de notícias,6 de julho de 1995
Portugal visto pelo Observatório Internacional das Prisões As denúncias de torturas e mal tratos são secundados por diversas organizações nacionais e internacionais, como nos relatórios anuais da Amnistia Internacional ou mesmo do Departamento de Estado dos EUA, mas é especialmente eloquente e directo o retrato nu e cru das prisões portuguesas pela ONG Observatório Internacional das Prisões para 1995: sobrelotação, precariedade, cumplicidades, insalubridades manifestas, completa falta de higiene, etc.. um cenário digno do século XIX.
expresso, 22 de julho de 1995
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julho 22 de julho Publicação do relatório anual do OIP (L’Observatoire International des Prisons) que denuncia a sobrelotação “extremamente elevada” e condições de higiene “precárias”
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Marques Ferreira põe “a boca no trombone!” “Quando cá cheguei já tinha a noção de que o sistema prisional não estava bem. Actualmente posso dizer que está péssimo. Apesar do esforço de renovação e alteração que estamos a fazer, a luta é titânica porque o sistema chegou ao fundo”. Esta é uma das surpreendentes afirmações e tomadas de posição do Juiz Marques Ferreira na Direcção Geral dos Serviços Prisionais. Menos surpreendente é o facto de nesse cargo não ter sequer durado pouco mais que um ano, ou o facto de ter saído sob as ameaças de morte das máfias prisionais, e sob grande desconforto institucional, embora sem não antes de bater com a porta
ter posto muita coisa cá para fora. O suficiente pelo menos para que em 1996 o país acordasse para os problemas das prisões portuguesas e se desse conta do que os homens e mulheres reclusos tinham para contestar. Marques Ferreira, surgira em Junho de 1994 à frente dos Serviços Prisionais pela mão do Ministro da Justiça Laborinho Lúcio, antecessor de Vera Jardim, acudindo ao Ministério após a demissão de Fernando Duarte na sequência dos protestos dos presos de 1994, e claramente comprometido a “moralizar” o sistema prisional. A sua “cruzada pela moralização” do sistema prisional e o apelo
aos presos para que denunciassem as situações corruptas e podres em seu torno, depressa levou ao agitar das águas do pântano, numa sucessão de casos e casos e demissões forçadas de diversas chefias. “Pessoalmente, não tinha conhecimento que pudesse existir tantas ilegalidades no mundo das cadeias. A Direcção-Geral, antes de Marques Ferreira, era um reino fechado, onde nada transpirava” referiu Eduardo Vicente, guarda prisional e então presidente do Sindicato do Corpo da Guarda Prisional (O Crime, 22.02.96).
correio da manhã, 29 de dezembro de 1995
correio da manhã, 8 de outubro de 1995
correio da manhã, 9 de setembro de 1995
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setembro 9 de setembro marques ferreira denuncia ameaças à integridade física daqueles que trabalham contra os interesses anteriormente instalados nos serviços prisionais
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Final de 1995, o rastilho está aceso. Cerca de 19 meses após a sua nomeação, Marques Ferreira está de saída da Direcção Geral dos Serviços Prisionais (para o Tribunal de contas para onde antes das Prisões, havia concorrido). Sai sob o grito e clamor de “Caos nas Prisões” e para fechar o ano é especialmente contundente em conferência de imprensa a 28 de Dezembro de 1995. Desta feita a chamada de atenção nos meios de comunicação não é exclusiva dos presos, e Marques Ferreira, lança a público denúncias de tráfico de droga por guardas prisionais; a violação dos direitos dos reclusos; ao desaparecimento de processos de averiguações e disciplinares, ao desvio de dinheiro e a utilização de verbas destinadas à formação profissional e das contas dos reclusos; paga-
mentos ilegais de abonos e subsídios, concursos irregulares e outras tantas irregularidades financeiras. Era o caso de 15 mil contos das contas individuais dos reclusos do EP de Santa Cruz do Bispo desde 1984 depositados a prazo no Fundo de Fomento e Assistência Prisional (departamento da DGSP) e o do desaparecimento do tesoureiro do EP junto com 2 mil contos. Era o caso da apropriação indevida de cerca de 16 mil contos dos lucros dos bares e cantinas; de mais de 5700 contos utilizados para diversos fins em vez de serem devolvidos à DGSP pelo EP de Braga; do depósito de 3000 mil contos na DGSP de fundos atribuídos para formação profissional, etc… Feitas as (suas) contas, mais de 40 mil contos desviados
correio da manhã, 29 de dezembro de 1995
A capital,28 de dezembro de 1995
expresso, 30 de dezembro de 1995
a capital, 30 de dezembro de 1995
>> barra cronológica outubro 8 de outubro abaixo-assinado de três dezenas de presos do linhó no qual se solidarizam com as acções de “limpeza” levadas a cabo por marques ferreira, e denunciam falta de condições na prisão como a degradação dos balneários, a sobrelotação, ou a não separação de presos contaminados com Sida ou Hepatite.
aos detidos (A CAPITAL, de 30-12-95). Nesses inícios de 1996 essas denúncias polémicas abalaram a “opinião publica”, sobretudo à medida que se viam acompanhadas por protestos nas prisões, e de Fernando Duarte, que esteve à frente da Direcção Geral cerca de 10 anos em 29 nos Serviços Prisionais (antes dos 19 meses de Marques Ferreira) apenas uma “honra ofendida” e uma ladainha de desculpas e de pequenas historietas (A CAPITAL e o TAL&QUAL de 9.02.96) e umas explicações dadas ao Ministro da Justiça Vera Jardim, as quais “por uma questão de delicadeza” não quis dizer qual o seu teor (O INDEPENDENTE, 26.01.96).
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Marques Ferreira, em discurso directo “Quando cá cheguei já tinha a noção de que o sistema prisional não estava bem. Actualmente posso dizer que está péssimo. Apesar do esforço
de renovação e alteração que estamos a fazer, a luta é titânica porque o
sistema chegou ao fundo: debatemo-nos com problemas de sobrelotação, de mentalidade cultural, de conflitualidade entre os
reclusos e os agentes envolvidos, falta de guardas prisionais e de técnicos de educação, para já não falar nas dificuldades orçamentais. O sistema prisional precisa de uma renovação total...” “A sobrelotação impede que o recluso tenha o acompanhamento necessário e adequado dos técnicos de educação e que faça na prisão, uma adequada formação profissional” “ A grande hipocrisia da sociedade em relação aos reclusos. As
prisões e os reclusos são um problema
da sociedade mas que esta prefere ver escondido. Prova disso é que quan
do se fala em abrir uma prisão num lugar qualquer, ninguém a quer por perto. E uma prisão recebe pessoas que, antes, são da sociedade e que, depois, voltam a ser novamente. Enquanto o delinquente não é descoberto pela Polícia, chamam-lhe malandro e criminoso e querem que seja preso rapidamente porque constituiu um perigo para a sociedade; quando está preso acaba-se o perigo e o recluso passa a ser visto como uma vítima que, coitado, está entregue aos malandros dos carcereiros. Mas quando sai, chamam-lhe cadastrado, discriminam-no e colocam-lhe grandes entraves na busca de emprego” Notícias Magazine, 2 de abril de 1995
“Há uma promiscuidade grande quando se mistura dinheiro de presos e de funcionários” Correio da Manhã, 29 de Dezembro de 1995
“Chegou a um momento em que notámos estar num atoleiro” Conferência de imprensa, 28 de Dezembro de 1995
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Aumentam as mortes na prisão Toxicodependência, Sida, Hepatite B, Tuberculose… nomes habituais e costumeiros que só em Outubro de 1995 haviam já levado a um aumento de 74% de mortes relacionadas em comparação com o ano anterior. Uma situação à margem da estrutura hospitalar prisional, mas bem no fundo e no seio de muitas famílias e amigos dos presos, que nem na morte são acompanhados como pessoas iguais às outras.
jornal de notícias, 8 de outubro de 1995
expresso, 21 de outubro de 1995
Notícias magazine, 2 de abril de 1995
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dezembro 28 de dezembro marques ferreira torna públicas em conferência de imprensa todas as irregularidades do sistema prisional, as quais já tinham sido apresentadas anteriormente ao então ministro da justiça, laborinho lúcio. Nestas declarações afirma que “chegou a um momento em que notámos estar num atoleiro”
30 de dezembro Noticiados os processos de afastamento dos directores das cadeias de braga e de coimbra, e também a demissão de um sub-chefe da guarda prisional
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1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
1996 - Dos Protestos à verdade sobre o “Motim de Caxias” O
acumular dos sucessivos protestos que relatamos desde 1994 e 1995 vão eclodir em 1996 toda a revolta contida das prisões portuguesas. Os votos de ano novo expunham velhas revelações de um sistema prisional que sem qualquer pudor atestava o atentado dos direitos humanos em Portugal. Desta feita, a gota de água que fez transbordar esse efervescente caldo prisional foi a não consagração da restante população prisional na amnistia ao processo FUP/ FP25, a par da primeira e histórica negação de uma amnistia presidencial desde o 25 de Abril de 1974. O ano de 1996 ficou para sempre marcado pelo grande movimento de protesto pacifico, espontâneo e colectivo, dos presos portugueses visando a amnistia/perdão parcial e reivindicando melhores e dignas condições prisionais, o que passou inclusive e somente pela reivindicação do que era consagrado na Reforma Prisional. Um protesto imparável, num alastrar de greves ao trabalho prisional até greves de fome, acompanhadas por milhares de assinaturas de protesto reunidas por todo o país. Os protestos têm essencialmente dois momentos. De Janeiro a Fevereiro, assiste-se a uma escalada de inquietação, ao inicio propulsionada pelas declarações de Marques Ferreira que abriram brechas nas Direcções Prisionais, ao mesmo tempo que se multiplicavam as petições dirigidas a vários
órgãos do estado com vista à amnistia ou a um perdão parcial. Esse movimento mais do que pretender colar-se ao processo FUP/ FP25, resulta numa critica ao sistema jurídico, penal e à realidade portuguesa prisional, a começar desde logo pela pura retórica que são os Direitos dos Presos. A partir desse ponto, tal como em 1994, é exposta a situação de sobrelotação, da insalubridade da habitabilidade e alimentação, da exploração do trabalho prisional, das questões de saúde e tratamento de um universo prisional sobrelotado onde a toxicodependência impera, e de agressões várias e violência dos guardas e das direcções prisionais, sobre o preso e sobre as suas famílias... Celso Manata, interinamente à frente da DGSP, reage com normalidade. A título de exemplo, que este douto responsável considera então “pura perda de dinheiro” um rastreio nacional à saúde nas prisões, pois se eles já “lá entram doentes” porquê tratá-los como seres humanos?!!... O segundo momento dos protestos representa o mês de Março. Como adiante veremos são inúmeras as greves ao trabalho em todo o país. Todas as prisões estão em greve, muitas delas com crescentes greves de fome e outras recusas várias, e todos estes milhares de homens e mulheres não hesitando em assinar diversas petições, dando rosto a um protesto que rapidamente é assumido como um problema nacional.
E é então, numa altura em que os protestos alcançavam uma dimensão indesejada, mesmo para aqueles que usavam os presos como armas de arremesso político (oposição de direita, sindicatos de guardas prisionais), que o altivo Estado Português decide não perder mais tempo para inverter as coisas. A ocasião, a 23 de Março, sobra para cima do legítimo protesto de 180 reclusos do Reduto Norte de Caxias quando reivindicavam o cumprimento do Decreto-Lei 265/79, proibindo a sobrelotação e procurando expôr pacificamente as reivindicações junto dos meios de comunicação. A resposta: carregar sobre os presos à bastonada, a tiros de bala de borracha e gás lacrimogéneo. O mandante no terreno: o Director Geral da Direcção Geral dos Serviços Prisionais Celso Manata. Uma sádica madrugada em que não lhes saciou apenas uma carga repressiva, mas outras tantas individualizadas em sucessivas represálias nos dias seguintes. E claro, bradando em eco policial com os ávidos jornalistas de ocasião o grito de “Motim!!!”, cedo as forças de segurança se aclamaram como defensoras da “ordem democrática”. A tal ordem que com toda a “proporcionalidade de uso da força” fora reposta, à conta de traumatismos, fracturas e luxações dos presos gratuitamente agredidos. Presos e protestos logo colocados em regime de segurança, longe da vista, para longe da reposição da verdade.
O processo dos “25 de Caxias” começa aqui. De imediato o então Ministro da Justiça Vera Jardim, vem falar de “cabecilhas”, um discurso atemorizado perante protestos e movimentos colectivos, que exige uns tantos bodes expiatórios. O processo levado mais de uma década após, à barra do tribunal, procura desvirtuar a luta dos muitos que na pele sentiram e sentem o abuso diário sobre si mesmos e que lutam pelos seus direitos. Ontem, como hoje, a justiça reflecte uma vez mais aqueles que no sistema prisional (guardas de todas as patentes, provocadores e bufos, e pretensos representantes de presos) correm a acertar o seu discurso com a ordem repressiva democrática. Recorde-se que este processo inquisitório, aberto em Novembro de 1997, surge depois de discretamente terem sido arquivadas as queixas dos reclusos, e deixa de lado as suas versões, para fazendo fé na “proporcionalidade” da DGSP, transformar as vítimas em acusados. 25 arguidos, presumíveis amotinados e acusados de alterações da ordem e segurança, a que caberá agora dar a nossa solidariedade para em nome do protesto, desmontar a farsa da acusação pendente, mas mais importante ainda desmontar essa maior farsa que é o próprio sistema prisional: as prisões, ponto final.
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1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
Mortes no Natal do Linhó As denúncias de Marques Ferreira na passagem de ano não excluem o caso do suicídio nas vésperas de natal no E.P. Linhó de um recluso enquanto um companheiro desesperadamente aos murros na porta, pedia ajuda em vão. Os guardas “só apareceram 40 minutos depois”. Oficialmente a inexistência de campainhas é tida como o único ponto negativo do incidente. Dois dias depois outro
preso morre. Jazia na unidade médica da Prisão: “queixava-se de dores no peito. Foi à consulta. Foi-lhe dito que tinha reumático. Recebeu medicamento para esse fim. No dia seguinte morreu de ataque cardíaco”. À acusação de incúria um acentuado “não é verdade” pela Direcção do EP, tal como para as acusações de tratamentos privilegiados, ou à demora na prescrição de medicamentos e aos
perigos de contágios. Como explicação para as condições sanitárias um cínico “não têm mal porque eles têm baldes nas celas” (Correio da Manhã, 11.02.96). A mesma prisão na qual corresponderam em 1995, 18 dos 20 casos de processos de averiguação “arquivados sem despacho do dirigente do serviço” (Expresso, 30.12.95).
correio da manhã, 11 de fevereiro de 1996
>> barra cronológica janeiro
fevereiro marques ferreira deixa a DGSP sendo substítuido interinamente por celso manata
9 de fevereiro 200 presos de caxias enviam uma carta-protesto ao director geral dos serviços prisionais. Numa conferência de imprensa, fernando duarte defende-se das críticas feitas à sua gestão à frente dos serviços prisionais pelo seu sucessor, marques ferreira, alegando ter sido ofendido na sua honra.
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
presos em luta · 17
o crime, 22 de fevereiro de 1996
o crime, 22 de fevereiro de 1996
>> barra cronológica fevereiro 22 de fevereiro entrevista ao crime de eduardo vicente, presidente do sindicato do corpo de guarda prisional na qual afirma que “... a maioria dessas cartas são pura ficção (...). O indíviduo que está preso queixa-se de tudo!” em relação às cartas enviadas por presos à comunicação social denunciando espancamentos.
18 · presos em luta
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
Janeiro e Fevereiro de 1996, a tensão aumenta… Enquanto nos corredores da Direcção Geral dos Serviços Prisionais, o eco das denúncias de Marques Ferreira leva a um autêntico digladiar de acusações, as reivindicações que às dezenas aí chegavam anonimamente por medo de represálias, ganha uma nova dimensão e os presos dão a cara. “Nem os mais antigos funcionários da DirecçãoGeral dos Serviços Prisionais se lembram de um protesto como este: 185 presos de Caxias, arredores de Lisboa, assinaram um documento com graves acusações à gestão da cadeia”. Uma carta de protesto onde os reclusos anunciam estar dispostos
a “reivindicar os mais elementares direitos humanos” e apontam várias anomalias na alimentação, serviços clínicos, sistema de visitas, assistência e reinserção social (Tal & Qual e CM de 9.02.96). De Norte a Sul, Portugal recorda e acorda para os inúmeros abusos e situações mais escandalosas escondidas por detrás das grades. Quando em fins de Fevereiro em Paços de Ferreira é anunciado mais um protesto dos reclusos, estamos já numa altura em que “a quantidade de reclamações e denúncias que os reclusos fazem chegar ao exterior começa a ser preocupante”.
tal & qual,9 de fevereiro de 1996
correio da manhã, 9 de fevereiro de 1996
>> barra cronológica fevereiro
março 24 de fevereiro noticiada a circulação entre os reclusos de todo o país de uma petição dirigida aos deputados com assento na AR, reclamando uma amnistia alargada aos presos de delito comum pela ocasião da tomada de posse do novo presidente da república, jorge sampaio.
4 de março greve ao trabalho no EP de sintra em protesto pela discriminação aos presos de delito comum a propósito da amnistia ao caso FP-25.
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
o independente, 26 de janeiro de 1996
Acerca da Cadeia de Chaves, excertos de Jornal de Notícias, 8 de Fevereiro de 1996
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Fórum Prisões à Capital de 6 de Março de 1996
A capital, 9 de fevereiro de 1996
Março, mês de Protestos. As petições. Já no final de Fevereiro 113 reclusos do Hospital Prisão de Caxias subscrevem um abaixo-assinado ao Presidente da Republica, à Assembleia da Republica e ao PrimeiroMinistro solicitando uma “efectiva e ampla” amnistia. Está lançado aí, como noutros EP, a contestação à amnistia consagrada ao processo FUP/FP 25 aprovada pelo Parlamento (por iniciativa do Presidente cessante Mário Soares) e a ter início a 1 de Março, marcando-o como o mês dos protestos. E são claros ao afirmar que a aprovação desta mera amnistia poderá gerar um “legítimo sentimento de revolta” e ter “consequências imprevisíveis”. Os presos em luta “repudiam o aproveitamento político que, de forma desonesta, se vem fazendo da lei da Amnistia, tentando falseá-la e aplicá-la apenas a um determinado indivíduo (…) não só isso desvirtua por completo o significado da amnistia mas também porque as leis devem ter
carácter geral e abstracto” (A Capital, 27.02. 96). De igual modo são diversos abaixo-assinados que circulam pelas Prisões de todo o país, reclamando uma amnistia ou perdão parcial das penas a propósito do empossar de Jorge Sampaio (à semelhança de todas as outras anteriores tomadas de posse) e como reacção à exclusão da população reclusa geral da amnistia aprovada. A “Petição/Amnistia Presidencial 1996”, encabeçada por Reclusos do Reduto Sul do EP Caxias, apela a uma ampla amnistia dentro de “uma democracia que teve a sua génese em 25 de Abril de 1974” assinalando que a amnistia aprovada pela Assembleia viola o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei consagrado no artigo 13º da Constituição, facto insistente em todas as petições que apelam outras vezes que seja “aplicada a lei jurídico-penal e respeitada a Constituição da Republica” (Reclusos do EP
A capital, 29 de fevereiro de 1996
>> barra cronológica março 6 de março confirmadas greves em linhó, caxias, vale de judeus e sintra pela amnistia alargada.
de Coimbra, citados em A Capital, 8.03. 96). As primeiras reacções dos Serviços Prisionais serão de querer individualizar a iniciativa a alguns elementos e focos, apressando-se por outro lado os meios de comunicação, numa polémica incentivado à direita (PSD e PP), a anunciar “poder a Amnistia aos presos FUP/FP 25 Abril descambar em violência” (A Capital, 29.02.96). É oportuno recordar que os implicados neste processo se encontravam todos em liberdade e que não foram amnistiados os “crimes de sangue”, cujo julgamento decorreu no ano 2000. Toda uma estratégia conjunta do poder que pretende, governo incluído, centrar as reivindicações dos presos como uma mera reacção ao particularismo da amnistia. Em vão. Rapidamente os presos em luta tornam-se num movimento de crítica ao sistema prisional.
20 · presos em luta
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
diário de notícias, 1 de abril de 1996
A capital, 29 de fevereiro de 1996
correio da manhã, 27 de fevereiro de 1996
JORNAl de notícias, 13 de março de 1996 diário de notícias, 1 de abril de 1996
A capital,7 de março de 1996
>> barra cronológica março 8 de março debate no parlamento sobre a situação nas prisões, na sequência das petições subscritas por presos de vários estabelecimentos prisionais e enviadas à AR
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1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
Greves ao Trabalho, greves à Marmita – 1ª semana – Os protestos nas cadeias nacionais, denunciando as condições prisionais existentes e reclamando uma amnistia alargada, são notícia central no país desde finais de Fevereiro e na primeira semana de Março. Já com 3 petições de reclusos (Paços de Ferreira, Lisboa e Hospital Prisão de Caxias) entregues nessa altura na Assembleia da Republica, regista-se um movimento crescente de greves ao trabalho e serviços, assim como algumas greves de fome. As petições e greves reflectem uma situação resoluta e já imparável nas reivindicações, embora se torne cada vez mais difícil e imparcial a auscultação das acções de protesto e dos números para fora dos Estabelecimentos
Prisionais (EP) no continente e nas ilhas. Nessa primeira semana de Março assistimos a constantes greves ao trabalho e protestos nas cadeias do país. Em Paços de Ferreira, passadas duas semanas, e segundo a direcção, dos 450 presos-trabalhadores, 300 continuam em greve (DN, 14.03.96). Em Sintra, os reclusos estimam que entre os 650 presos, há uma adesão de cerca 90% ao protesto iniciado no dia 4, e dois dias depois o próprio EP afirma serem cerca de 80%. Ao lado em Tires, a adesão das companheiras reclusas é quase 100%, apenas sendo assegurado praticamente a creche. De 4 a 10 de Março, o protesto está por todo o lado: Custóias, Braga, Viana do
Castelo, Guarda, Coimbra, Alcoentre, Caldas da Rainha, Vale de Judeus, Leiria, Torres Novas, Linhó, os Redutos Norte e Sul de Caxias, o Hospital Prisão de Caxias, o EP de Lisboa, Setúbal, Montijo, Évora, Beja, Faro, Funchal, etc… (A Capital, 4 e 9.03.96; CM, 7.03.96). Ao mesmo tempo iniciam-se as greves de fome como, por exemplo, no EP de Beja, onde 11 detidos iniciam no dia 2 uma greve de fome, havendo outros 40 dispostos a solidarizar-se com eles, ainda que a Directora do EP afirme não ter disso “conhecimento oficial” (DN, 3.03. 96). São já frequentes em vários EP as recusas de ida aos refeitórios, as chamadas “greves às marmitas”.
A capital,6 de fevereiro de 1996
A capital, 4 de março de 1996
>> barra cronológica março 12 de març0 64 presos em greve de fome nas caldas da rainha, 20 fazem greve ao refeitório. Quarto dia de greve de fome de 12 presos em caxias, adesão total à greve ao trabalho no reduto norte da mesma prisão. greves ao trabalho em alcoentre, vale de judeus, leiria, custóias e tires
22 · presos em luta
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
Aumentam os protestos – 2ª semana – Na segunda semana de Março os protestos persistem, em forma de várias greves ao trabalho e com cada vez mais reclusos em greve de fome. A semana apresenta-se crucial e de grande expectativa ao desenvolvimento dos protestos: há sinais por todos os EP de um clima de cada vez maior agitação e revolta, empolgado nos meios de comunicação social, já traçado no estado de prevenção dos guardas prisionais e nas proibições contra a livre circulação das petições por parte de alguns Directores de EP. Cedo se verifica que o desenrolar dos acontecimentos irá contrariar as expectativas oficiais de Celso Manata que “a situação iria começar a descomprimir” (Público, 10.03. 96).
45 reclusos das Cadeias de Guimarães e Caxias encontravam-se no primeiro fim-de-semana de Março em greve de fome, e nesta última os familiares apontam para várias dezenas os que prosseguem a greve de fome, paralela à greve ao trabalho de 100% no Reduto Norte de Caxias. A meio da semana mais presos iniciam greves de fome em Caxias (Reduto Norte e Sul), e surgem notícias de outras greves de fome. Nas Caldas da Rainha, no dia 11, são 64 e a meio da semana permanecem oficialmente pelo menos 56, enquanto outros 20 realizam uma greve ao refeitório; outras greves de fome são referidas ocorrerem no EP de Lisboa, Montijo, Vale de Judeus, Linhó, Sintra, Vila Real,
a capital, 12 de março de 1996
>> barra cronológica março 13 de março vera jardim afirma no parlamento que o sistema prisional está numa “situação de emergência”, e constitui um mini-gabinete de crise para acompanhar o crescendo da tensão nas prisões
Braga e Guimarães (DN, 9 e 13.03.96; A Capital, 12 e 13.03.96).. Nos Açores, em Ponta Delgada, 3 reclusos estão em greve de fome na sequência de sanções disciplinares, num caso que viria a constituir uma maior atenção dado um deles ser sobrinho de Mota Amaral, ex-Presidente do Governo Regional, e que aí se deslocou “como deputado e membro da comissão Parlamentar de assuntos Constitucionais”, apelando em seguida à abrangência alargada da amnistia: “É preciso olhar para todos com os mesmos critérios para não haver filhos nem enteados” (A Capital, 13.03.96 e CM 12.03.96).
o crime, 14 de março de 1996
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
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Luta em todas as prisões – 3ª semana – Apesar de noticiada a diminuição das greves de fome, é acentuado o aumento das greves ao trabalho, e a difusão das petições e “greves às marmitas”, reconhecendo a própria Direcção Geral dos Serviços Prisionais que o movimento dos reclusos atingira um elevado grau de adesão, como mostram os números à data: 221 reclusos em greve nos 225 que trabalham no EP de Coimbra; 330 em 450 em Paços de Ferreira; em Tires 360 mulheres das 469; em Leiria 199 nos 256, ou por exemplo 210 nos 215 trabalhadores de Vale de Judeus, entre outras cadeias como Custóias, Caldas da Rainha, Alcoentre, EP Lisboa, Guarda e as restantes outras atrás mencionadas em greve desde os inícios do mês. Os protestos difundidos pelos meios de comunicação internacionais, chegam à cadeia de Coloane em Macau, onde cerca de 500 presos protestam a sua exclusão pelo não alargamento da amnistia (Público, 15 e 20.03.96; A Capital, 13.03.96) Na terceira semana, os reclusos do EP de Sintra anunciam reiniciar a greve de fome: “No primeiro dia, seremos três a iniciar a greve de fome, a que se juntarão outros, num total de 120 nomes constantes de uma lista de voluntários”. No Reduto Norte de Caxias contabilizamse 90 presos em greve de fome no início desta semana, somados a outros 90 no Reduto Sul. Sempre a par das greves ao trabalho que aí continuam, assim como persistem em Coimbra, Leiria, Tires, S. Pedro do Sul (Viseu), ou em Alcoentre e Funchal, onde se assinalam igualmente greves de fome, e que na cadeia insular abrange pelo menos perto da meia centena de reclusos. Chega-se ao fim da terceira semana sem cessarem os protestos: greves de fome e trabalho, ou noutros casos como no EP de Setúbal, jejuns de 209 reclusos (DN, 17.03.96, Público 19, 21 e 22.03.96).
público, 13 de março de 1996
público, 19 de março de 1996
expresso, 23 de março de 1996 público, 25 de março de 1996
>> barra cronológica março 14 de março 82 novas greves de fome em caxias
24 · presos em luta
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
Desvirtuar e manipular dos protestos Os protestos dos presos de 1996 foram de imediato aproveitados e arremessados pelos interesses dos serviços prisionais visados pelas denúncias de Marques Ferreira, pelas corporações de guardas prisionais e pela oposição de direita portuguesa que não engolia o processo de amnistia da FP25 de Abril. A (re)acção destes três actores, movendo-se por via dos media, não tardam porém a unir esforços com os antes visados Governo e os Serviços Prisionais de Celso Manata, quando se apercebem que as faíscas que chispavam os queimavam a todos. De seguida ecoam de novo as tramas de “cabecilhas” e procuram travar os protestos sob o espectro alarmista dos criminosos insurrectos, exactamente no momento em que a sociedade espectadora portuguesa se apercebia desse verdadeiro mundo por detrás das grades. No dia 12 de Março, o Ministro da Justiça Vera Jardim e Celso Manata dirigem-se à Assembleia da Republica reconhecendo a actual situação como “previsível”, mas agravada com a amnistia FUP/FP 25 de Abril e responde à enumeração dos problemas, com construção de mais prisões e guardas prisionais, e a revisão do estatuto remuneratório dos funcionários prisionais…Estes últimos, por via sindical haviam estendido já o seu rol de queixas, reclamando melhores habitações, subsídios de risco e transportes, medidas de prevenção contra as doenças infecto-contagiosas e a tal necessidade de criar novos postos de trabalho (prisões). Nesse útil momento de pressão,
anunciam greves, mais ainda sob o queixume crescente dos guardas que, por causa das greves de trabalho, se viam pressionados para realizar a faxina. (Anuncio que mantêm até alcançarem em Abril um “acordo possível, mas um bom acordo” segundo o Sindicato). Mas a apresentação do Ministro aos deputados serve sobretudo para suscitar um clima de apreensão, pedido a ausência dos jornalistas após esses anúncios “por haver matéria relativa a segurança”, visto “desde há algum tempo que circula um comunicado-tipo pelas cadeias” e que indiciaria uma organização centralizada, anunciando a lógica repressiva do discurso de “cabecilhas” (“bodes expiatórios” noutra perspectiva). Vera Jardim anuncia um “gabinete de crise”, mas desvalorizando o evoluir dos acontecimentos, e os deputados mostram-se distantes das verdadeiras questões. Ao ponto de afirmar que “aos presos de delito comum não subjaz uma ideologia que sustente uma greve de fome”, sem escapar um latino pedido de “mais virilidade, por favor”, feito por José Magalhães do PS aos deputados do PSD. No fundo todos recusam uma nova amnistia (apenas Mota Amaral admitiu “medidas de clemência” personalizadas claro está), uma vez estando “em causa a autoridade do Estado” (Público, CM e DN de 13.03.96). Paralelamente os presos provavam uma vez mais o amargo sabor da “representatividade” de associações como o Fórum Prisões e do agora dado a conhecer Projecto de
Apoio ao Recluso. A primeira cedo se mostrou estar não só distante dos protestos, como ao querer assumir falsos protagonismos provocou a repudia pela população prisional especialmente após os artigos publicados no semanário Independente, procurando dar aos protestos a marca da violência e a teoria dos “cabecilhas”. Sob o título “Às armas” é lançado a 8 de Março o alarmismo na previsão de revoltas armadas num mais que dúbio “furo jornalístico”, de fonte do Fórum Prisões, que revelava os “planos” exactos da “insurreição armada”. Mas as afirmações “falsas, alarmistas e irresponsáveis”e as ”pseudo-organizações anónimas, que ninguém conhece, e cujos planos, de tão irrealistas, mais parecem guiões cinematográficos” são de imediato repudiadas. Fazem-no reclusos do EP de Lisboa que se organizam numa Comissão (CR.EPL)(DN de 17.03.96), que desempenhará algum destaque na mediatização dos protestos, mas que não parece escusar algum apoio velado da Direcção do EPL. Tal não invalida que no resto do EPL os protestos não se venham a inserir no movimento alargado das prisões portuguesas, o qual encontra no Projecto de Apoio ao Recluso, dada a conhecer nestes protestos, uma outra ajuda (o PAR irá posteriormente aos “protestos de 1996” ser desfeito pelas acusações de aproveitamento e endividamentos feitos ao seu secretário geral Vítor Ilharco, sucedendo-se pela iniciativa de exdelegados do PAR e outros a Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento - ACED).
público, 19 de março de 1996
a capital, 12 de março de 1996
jornal de notícias, 13 de março de 1996
diário de notícias, 8 de março de 1996
diário de notícias, 4 de abril de 1996
correio da manhã, 13 de março de 1996
>> barra cronológica março 22 de março vera jardim recebe os directores prisionais no mesmo dia em que o governo lhe dá carta branca para gerir a reforma do sistema prisional
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
23 de Março: O Motim de Caxias E é então, numa altura em que os protestos alcançavam uma dimensão indesejada, que o Estado decide não perder mais tempo para inverter as coisas. A ocasião, a 23 de Março, sobra para cima do legítimo protesto de 180 reclusos do Reduto Norte de Caxias quando reivindicavam o cumprimento do Decreto-Lei 265/79, proibindo a sobrelotação e procurando expor pacificamente as reivindicações junto dos meios de comunicação. A resposta: carregar sobre os presos à bastonada, a tiros de bala de borracha e gás lacrimogéneo. Uma madrugada de repressão, que se individualizou em sucessivas represálias nos dias seguintes. Sob espectro já antes anunciado, ecoou policialmente nas notícias o grito de “Motim!!!”, proclamando as forças de segurança como defensoras da “ordem democrática”. Ordem reposta, com toda a “proporcionalidade de uso da força” que coube à violência desmedida que teve lugar, para nos dias seguintes o Ministro da Justiça, justificar que “no interior das cadeias (…) essa ordem não pode ser beliscada” e retomar o discurso dos “cabecilhas”, procurando enterrar de uma vez por todas o protesto e movimento colectivo que marcara a agenda nacional nas semanas anteriores. Outra conclusão não pode haver: os acontecimentos de 23 de Março foram pretendidos para o abortar das reivindicações e desvirtuar, não só a legalidade dos protestos, como o carácter colectivo e empenhado da população encarcerada. Nesse dia depois da visita de Sábado os presos anunciaram a exigência de celas individuais (o EP com uma lotação de 420 contava com 560), como informam os familiares. Após o jantar cerca de 180 reclusos da Prisão de Caxias, Reduto Norte, “recusaram a recolher às celas e a deixar que os guardas as trancassem”. Oficialmente Celso Manata relata que depois de chegar a Caxias pelas 22.00, chamado pelo Director do EP, e depois de “chamá-los à razão como é meu dever”, “dei um prazo para que regressassem às celas. Como isso não aconteceu, como eles continua na página 27 >>
a capital, 25 de março de 1996
>> barra cronológica março 23 de março guardas prisionais marcam greve de 1 a 4 de maio. “motim” em caxias
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1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
público, 25 de março de 1996
>> barra cronológica março 24 de março alguns presos de caxias são transferidos para o linhó. em caxias as visitas continuam proibidas
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
não acataram o que estava determinado, obviamente nós tivemos que intervir”. Em força com os guardas de Caxias, reforços do Linhó e o Esquadrão Especial Anti-Motim, pouco mais de meia hora da sua chegada. Uma intervenção a que os jornalistas assistem de fora com os presos “a queimar roupas e papéis às janelas” saindo as primeiras ambulâncias com feridos já depois da meia-noite. Já a debandada das forças policiais, bombeiros de duas corporações (automacas e autotanques), os carros do Instituto Nacional de Emergência Médica, do Serviço de Protecção Civil e da Cruz Vermelha Portuguesa, para além do Corpo Especial da GNR, só se verificou pela 01.25 horas, segundo o Público num “movimento incessante de viaturas de emergência coincidiu igualmente com o vaivém constante de carros celulares em marcha apressada que transportavam feridos ligeiros, desde pouco depois da meia-noite, para a prisão hospital do mesmo estabelecimento”. Um relato oficial em que os cerca de 180 reclusos “utilizaram a violência como forma de protesto” quando depois de um diálogo que “não teve correspondência” se barricaram, pelo que “jactos de água e balas de borracha foram utilizados nos confrontos, que terminou pela uma hora da madrugada de Domingo” explica Celso Manata, cabendo já ao Ministro da Justiça Vera jardim, depois da visita ao local, pelas 02.00 horas comunicar que daí resultaram 12 feridos (um deles guarda prisional), dos quais 4 (reclusos) ficaram internados. “Nenhum em estado de inspirar cuidados” segundo o director do Hospital-Prisão. Horas depois da repressão as transferências de presos continua na página seguinte >>
diário de notícias, 25 de março de 1996
diário de notícias, 25 de março de 1996
>> barra cronológica março 25 de março novos incidentes no reduto sul de caxias. protestos mantém-se em coimbra, sintra, vale de judeus e prisão escola de leiria
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1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
iniciam-se para Alcoentre, Vale de Judeus e Linhó, que por seu turno transfere outros para o EP de Lisboa. E não faltaram as felicitações “pela proporcionalidade com que usaram a força”, sem deixar de apontar que a Ala Norte tinha ficado praticamente destruída depois dos incidentes. Elogios extensíveis do Primeiro Ministro António Guterres, que colmata reafirmando mais uma vez que a amnistia reivindicada representaria “um aumento de insegurança e criminalidade nas ruas” pelo que mostra “total solidariedade e apoio” com a actuação policial, pelo que “a ordem democrática será mantida a todo o custo” e que a resposta “será dada com toda a firmeza” (Público, 23, 25 e 28-0306;A Capital, 27.03.96; DN e CM de 25.03.96). O que este discurso escondia, cedo foi sendo perceptível. Logo durante a madrugada a GNR montara uma barreira a centenas de metros do EP, impedindo o avanço dos jornalistas, permitindo apenas aos familiares aproximarem-se dos portões do EP onde muitos confirmariam a determinação de Celso Manata que “os presos envolvidos
no motim estão proibidos de receber visitas, dado estarem em regime de segurança”. As notícias começam a dar conta que “dentro das celas, mais reclusos poderiam necessitar de tratamento” e os familiares ao longo do dia seguinte, confirmam os acontecimentos com um “já se esperava” contra um “nada fazia prever” do Ministro da Justiça. E são várias as descrições das agressões aos presos: “há pouco estenderam um pano com sangue à janela”, “estava a falar comigo através das grades, a contar-me que estava todo pisado e cheio de nódoas negras, e de repente calou-se. Depois gritou: ‘não posso dizer mais nada que está um filho da puta atrás de mim, a ameaçar-me!’. A seguir ouviu-o gritar, ‘ai que estão a bater-me!’ e ele desapareceu da janela”(Público, CM, A Capital 25.03.96) Os jornais no final dessa semana contrapõe por sua vez o “nada fazia prever” de Vera Jardim a uma situação em que “afinal, os presos de Caxias já estavam sob ferozes ‘medidas de segurança’ quando se amotinaram no fim de
diário de notícias, 27 de março de 1996 tal & qual, 29 de março de 1996
correio da manhã, 25 de março de 1996
expresso, 30 de março de 1996 >> barra cronológica março 27 de março greves ao trabalho no EP de lisboa, prisão escola de leiria, coimbra e vale de judeus. confirmam-se as transferências de presos de caxias para o linhó, ep de lisboa, alcoentre e vale de judeus
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semana: limitaram-se a reagir”. Os presos em greve estavam em “rigoroso regime de segurança”, sem receber os sacos de comida enviados pelas famílias e com apenas uma hora diária para irem ao pátio e receberem visitas; medidas de segurança retaliatórias que Celso Manata confirmou ter ordenado embora “não para retaliar, mas para obrigar os presos a uma seriedade de conduta e não permitir abandalhamentos”. As versões contraditórias dos poucos presos que conseguem comunicar, às versões oficiais, são veementes: “Não houve qualquer motim (…) o que se passou foi que a guarda prisional carregou sobre as pessoas já dentro das celas, tendo usado gás lacrimogéneo, ao contrário do que foi dito pelo senhor ministro” e que entre os feridos “um deles tinha marcas de cinco projécteis de borracha na cara, ou seja, continuaram a disparar contra ele, mesmo depois do homem estar neutralizado” e que os vidros das celas terão começado a ser quebrados por causa dos gases: “quem viu as imagens na televisão pode apercerber-se perfeitamente de que os presos já estavam no interior das celas enquanto decorriam os espancamentos. Várias pessoas tinham também o rosto tapado com lenços molhados. Quem sabe o que são gases lacrimogéneos vê bem o que se estava ali a passar”. Outros presos relatam a intervenção do Esquadrão Especial Anti-Motim, na qual dez guardas tiravam um preso de cada cela, o espancavam no chão e depois voltavam a prendê-lo dentro da cela (Tal & Qual, Expresso e O Independente 29/30.03.96).
vera jardim e celso manata (em segundo plano com a cara cortada), ministro da justiça e director geral dos servços prisionais nos dias do conflito de caxias
diário de notícias, 25 de março de 1996
correio da manhã, 30 de novembro de 1996
>> barra cronológica março 29 de março o tal&qual destaca que os presos de caxias já estavam sob fortes medidas de segurança antes do dia 23 e que se limitaram a reagir
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As lutas Continuam – 4ª Semana – Na Segunda-feira os protestos continuam em Caxias com os presos manifestando-se aos gritos e como podiam para o exterior pelas janelas. “Dois reclusos do Reduto Sul decidiram incendiar os colchões de uma das camaratas. Sem objectivo aparente a não ser o exprimir o protesto pela situação vivida nas prisões, os dois reclusos conseguiram provocar uma densa coluna de fumo, sem que, contudo, o fogo se viesse a propagar (…) Estes dois presos não pertenciam ao grupo de 180 reclusos”. Também aí pelo menos dois detidos, nesse dia “deram entrada no Hospital-Prisão depois de terem cortado as veias dos braços em protesto contra as actuações das forças de segurança durante os incidentes de Sábado num protesto que preconizaria o “corte das veias a uma cadência de dois
a cada duas horas”. E no dia seguinte as quase 900 mulheres de Tires (numa lotação de 300), à semelhança dos protestos de Sábado em Caxias, pretenderam recusar-se a entrar nas celas, pelo que segundo o PAR “houve ontem negociações até às tantas”. A 4ª semana de greves ao trabalho em Coimbra, Sintra, Prisão-Escola de Leiria, Vale de Judeus, E.P de Lisboa etc. prossegue. Ao mesmo tempo torna-se cada vez mais difícil acompanhar o evoluir da situação, com os números e factos subtraídos de forma a ocultar em grande medida a dimensão dos protestos. Celso Manata pouco adianta, aliás, aos custos de cada dia de greves: “é difícil contabilizar. Foi nas greves ao trabalho que tivemos a principal dificuldade. Houve sítios em que gastámos muito dinheiro – mil contos por dia para a
público, 26 de março de 1996
alimentação em Vale de Judeus, mas apenas em dois dias. Foi o custo mais elevado”. Um documento das reivindicações dos presos propõe “dar continuidade ao processo iniciado a 3 de Março pela ‘reposição da legalidade democrática’ (…) dando cumprimento efectivo ao que estipula a lei da Reforma Prisional”, abordando novas recusas ao encerramento colectivo em celas individuais, como a permanência das greves de trabalho e da recolha de assinaturas às petições, embora contrário “às auto-mutilações, greves de fome e cortes de veias” que ao longo desta semana ocorrem em diversos EP. O documento prevê a agudização das formas de luta se até o 1º de Maio não for dada resposta às pretensões dos reclusos (A Capital 26 e 27.03.96 e Expresso 20 e 30.03.96).
expresso, 30 de março de 1996
a capital, 27 de março de 1996
público, 26 de março de 1996
público, 25 de março de 1996
diário de notícias, 27 de março de 1996
>> barra cronológica março 30 de março começam a circular as primeiras declarações de presos que afirmam não ter havido qualquer “motim”, e que “a guarda prisional cargou quando os presos já estavam dentro das celas”
presos em luta · 31
1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
De petição em petição à capitulação Ao longo de Março circulam e são entregues diversas petições, como a título de exemplo a de 500 reclusos (em 670) de Pinheiro da Cruz (Grândola). Mas desde o início os deputados manifestam-se contra uma nova amnistia ou perdão: no PS e no Governo apesar de algumas vozes favoráveis à aprovação de um perdão genérico por causa da “situação insustentável” como Alberto Martins, um dos autores do texto de amnistia para Otelo (A Capital 12.03.96), a recusa firma-se por “não estar no Programa do Governo”; e na oposição o tom incide nos fantasmas securitas, a direita afirmando que não é “com amnistias que se resolve o problema da criminalidade” e que tal favoreceria “sobretudo a população prisional com maiores penas” e os comunistas considerando “negativa” a multiplicação de amnistias, e mostrando “muitas reservas mesmo a um perdão para crimes menores”. Os presos insistem. E aí fazem-no acentuando a tónica legal do protesto. Numa dessas muitas petições os signatários do EP de Sintra lembram que “Se a lei escrita fosse aplicada de facto, se os processos fossem julgados atempadamente, se os respectivos cúmulos jurídicos fossem feitos e se fossem esclarecidos os critérios das saídas precárias e liberdades condicionais, não haveria necessidade de se recorrer a apressadas e esporádicas amnistias, negociadas ao sabor da conjuntura política do momento para criar algumas vagas nas prisões sempre sobrelotadas (…) A questão será, talvez, política mas não é, com certeza, de direita ou de esquerda: é uma questão de Povo e de Justiça”. O mesmo sentido reformista, surge num anunciado “Boletim de Reclusos Pela Democracia nas Prisões” que esclarece: “a génese de toda a contestação entronca no défice democrático de que enferma toda a instituição” e que se pretende “ampliar o carácter das reivindicações, ‘deslocando-o’ da simples defesa da
‘Amnistia, já!’ para o âmbito mais geral do combate pela democratização do sistema prisional”. A ideia chave neste discurso, formulado por aqueles de quem na Assembleia da Republica se dissera (após a primeira semana desse mês de Março) que “aos presos de delito comum não subjaz uma ideologia”, aponta à reposição da legalidade democrática dentro das prisões apelando a mudanças nesse incólume sentido. Mas tão pouco semelhante discurso irá merecer qualquer eco. Vimo-lo por parte do Governo na reacção a Caxias, como antes na atitude do Provedor de Justiça e do Presidente Jorge Sampaio, remetendo a iniciativa da concessão de uma amnistia para a Assembleia da Republica (pela primeira vez na história negada uma amnistia por ocasião de eleição presidencial). As esperanças postas na Assembleia da Republica são veiculadas pelo PAR e a CR.EPL, apresentados na comunicação social como “representantes dos presos”, anunciando de novo a entrega de petições, a primeira petição com “mais de seis mil assinaturas” a segunda com “cinco mil assinaturas” com vista a uma tomada de decisão de um perdão de pena para os presos de delito comum, numa altura em que as anteriores e várias petições mereciam do grupo de trabalho parlamentar que as apreciou a conclusão da “inadmissibilidade da sua subida a plenário” pelo facto “dos objectivos enunciados em cada um destes textos ‘não serem coincidentes’”. Por seu lado a entrega no dia 10 de Abril, em clima já de acalmia nas prisões, por dois reclusos da CR.EPL, com o aval da direcção da EPL, de uma petição com 8516 assinaturas (4000 de reclusos e as restantes da sociedade civil) apelando ao “perdão parcial de penas, cuja extensão dependerá do critério” parlamentar, surge já entre acusações e intrigas, dessa dita Comissão de Reclusos à
petição distinta do Projecto de Apoio ao Recluso, entregue a 17 desse mês. A “disputa” em torno das duas petições espelha já a perda de força dos protestos. Nesse ambiente as Direcções Prisionais continuam ainda a responder à crise instalada como “exageros da comunicação social” e com a “valorização intensa de certos aspectos menos relevantes”. Numa sondagem entretanto encomendada pelo Governo, 60 % dos cidadãos inquiridos estão contra o perdão às FP, e no que respeita a reivindicação dos Presos a opinião é dividida entre 45,5 % que sim e 45,3 % que não. Guterres não demora em exercer o “voto de qualidade” a favor do não, acentuando uma nova amnistia como “contraproducente na prevenção da criminalidade”. Para os socialistas decretar uma amnistia seria “contrariar todo os discurso de maior segurança que foi efusivamente difundido durante a campanha eleitoral”, apesar das pressões iniciais que viam na amnistia a solução para a crise instalada na sobrelotação e na “onda de revolta” A esta tese a CR.EPL com perspicácia escreve ao Primeiro Ministro em inícios de Abril, dando conta da sua inquietação em atribuir ao ex-recluso a causa da insegurança e da violência: «Será que o desemprego, o emprego precário, a situação de pré-falência de toda a estrutura de Segurança Social, o desrespeito pelos direitos das minorias, a criação de guetos suburbanos onde a qualidade de vida é infra-humana, a inadaptação juvenil reflectida no aumento da toxicodependência, entre muitos outros factores de disfunção social, não contribuem de forma muito mais importante para que, cada vez mais, a vida em sociedade seja conflituosa?» (Público 10 e 22.03.96 e 16.04.06; A Capital 10 a12.04.96; Expresso 23 e 30.03.96; Semanário, 09.03.96).
diário de notícias, 8 de março de 1996
já, 28 de março de 1996 diário de notícias, 4 de abril de 1996
correio da manhã, 25 de março de 1996
diário de notícias, 1 de abril de 1996
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junho 12 de junho o provedor de justiça, menéres pimentel apresenta um relatório onde critica duramente as condições prisionais e defende o fecho das prisões de coimbra, montijo, monção e alas sul e norte de alcoentre
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1996 - Dos protestos à verdade sobre o “motim de caxias”
diário de notícias, 12 de abril de 1996
diário de notícias, 2 de abril de 1996
Tudo na mesma? Resultados: a “gestão” dos protestos confirmam Celso Manata no cargo que desempenhava interinamente, e Vera Jardim elogiado pelo facto como soube “dar a volta por cima” aos acontecimentos. Porém ficou claro que, sobretudo a partir de Caxias “no que até há pouco era uma luta por uma amnistia abrangente passou a ser também a contestação ao sistema”, e os acontecimentos e reacção do “Motim de Caxias” deixaram em claro algumas evidências muito nítidas. Não é preciso ir mais longe, vejam-se
as declarações do Provedor da Justiça e leia-se o editorial do Público de 25 de Março: “Desde os acontecimentos da Ponte sobre o Tejo que não ouvíamos um ministro falar de ‘cabecilhas’ quando está em causa uma revolta. Um ministro que, curiosamente, é vizinho e amigo de um ‘cabecilha’ estudantil de outros tempos, actual Presidente da Republica. Mudam-se os tempos, mudam-se os cargos, muda-se a terminologia. E nós sempre a aprender.” (DN e Público 25 e 28.03.96; Expresso 20.04.96)
diário de notícias, 22 de junho de 1996
diário de notícias, 12 de junho de 1996
correio da manhã, 10 de junho de 1996
>> barra cronológica julho
... 22 de julho o observatório internacional das prisões (OIP) acusa os responsáveis das prisões portuguesas da “prática de brutalidades”, “tratamentos racistas” e de “torturas”
1997 - julho julho o ministério público avança com o processo contra os “25” presumíveis amotinados de caxias
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comunicado emitido pelo CAP( colectivo de apoio a presos) relativo às lutas anteriores ao “motim” de caxias
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O quadro político e institucional do alegado motim de Caxias
N
um mundo onde, segundo um recente director-geral dos serviços prisionais, a investigação de crimes é virtualmente impossível por causa da lei do silêncio, que significado terá o arrolamento de prisioneiros na lista de acusadores dos alegados cabecilhas de um motim? Treze anos após os acontecimentos, a justiça portuguesa prepara-se para, em Março de 2009, começar um julgamento de pouco mais de duas dezenas de arguidos. Meses volvidos sobre os acontecimentos conhecidos como o motim de Caxias, a Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento (ACED), então recémconstituída, manifestou publicamente, a pedido de alguns dos arguidos que nos contactaram, a convicção de haver interesse em “abafar” o caso por parte dos acusadores [isto é, do Estado], já que não se conheciam diligências para avançar com o processo, cujos contornos políticos eram evidentes através do envolvimento directo do governo, através do seu ministro da justiça, colocado em defeso no Hospital Prisional, perto dos acontecimentos. Manifestou também a vontade desses arguidos em que a verdade pudesse vir ao de cima. A verdade era, para eles, a provocação do motim como forma de aniquilar a luta dos presos que vinha em crescendo desde 1994, e que iria continuar, de facto, até 2001.(...) (...)Dadas as características institucionais das prisões, nomeadamente a sua estreita ligação com o exercício do poder de Estado, numa aliança entre o poder jurídico do lado do decreto de culpabilidade, e o poder executivo do lado da investigação dos factos, é natural que as tensões políticas se reflictam nas prisões e os conflitos prisionais, em particular os motins, se reflictam na vida política. Sobre isso, a propósito do que possa ter acontecido no alegado motim de Caxias, daremos a nossa contribuição. Mobilizaremos, para tal, factos publicamente conhecidos, desde logo o episódio da demissão forçada do Director Geral dos Serviços Prisionais, juiz Marques Ferreira, em 1995, depois de ter denunciado publicamente, através da televisão, estarem as prisões portuguesas reféns de “máfias” que as controlavam. Ameaçado de morte, segundo alegou também na televisão, ao contrário de resistir em nome da autoridade do Estado, como começou por anunciar, demitiu-se (ou foi demitido), passando o lugar a ser
ocupado pelo seu vice, Dr. Celso Manata, que jamais se voltou a referir ao assunto. Pelo contrário, inaugurou uma campanha de boa imagem das prisões portuguesas, através da publicação de “Prisões em Revista” completamente irrealista e que, se não esteve na base, ajudou ao confronto entre o Ministro da Justiça, Dr. Vera Jardim, e o Provedor de Justiça, Dr. Meneres Pimentel, aquando da publicação do primeiro relatório de 1996 da Provedoria de Justiça sobre o estado calamitoso das prisões em Portugal. (...) Primeira característica a registar da política nacional a respeito das prisões: abandono das mesmas à sua sorte, sem nenhum orçamento de investimentos, desde, pelo menos, a revolução democrática, em 1974, mas agora, desde os anos 80, no quadro de fortes crescimentos da população prisional, com sobrelotação do sistema, tornando inexequível – por exemplo – a determinação legal do cumprimento de pena em cela individual. Para fazer face a esta situação, vários governos decidiram medidas especiais de amnistia com o objectivo de aliviar as cadeias. Tal política tinha um sucesso relativo, visto que em poucos meses os níveis de ocupação anteriores eram atingidos e até ultrapassados, aumentando os níveis de reincidência criminal e pressionando a nova acção de amnistia, e assim sucessivamente. Porém, os factos políticos mais relevantes deverão ter sido os relacionados com a luta dos presos no processo das FP-25A, que mereceram a certa altura uma amnistia especial, por razões políticas. Isso causou alguma divisão no Partido Socialista e na sociedade portuguesa, e também nas prisões, onde alguns discordaram dessa concessão. Eleito Presidente da República, Jorge Sampaio decidiu terminar com a política prisional de amnistias sucessivas e, para dar o exemplo, não concedeu a tradicional amnistia sempre que um Presidente da República era eleito. Na Assembleia da República, o grupo de peticionários, a que me juntei na ocasião acima referida, era recebido por vários deputados, tendo um deles explicado que o ambiente político não era favorável à aprovação de uma tal petição. A Assembleia não desejou fazer oposição ao recém eleito Presidente. Naturalmente, entrou-se numa fase de adaptação do sistema prisional à nova situação, tendo 1997 sido o pico mais alto não
apenas no números de presos mas também no número de mortes de prisioneiros em Portugal. Como se percebe, a política tem um impacto directo nas vidas prisionais. Mas as vidas prisionais ameaçam irromper na vida política a qualquer momento. Face à fragilidade da situação prisional, em que: a) desde 1994, por iniciativa dos activistas e militantes políticos presos, se verificaram tentativas de organização de lutas de prisioneiros em diversas cadeias, principalmente naquelas onde estavam presos com penas mais longas; b) à gestão local e sem regulação de cada estabelecimento prisional onde os poderes fácticos eram então, como provavelmente ainda hoje, mais importantes do que a cadeia de comando; c) ao fim das amnistias e à sobrelotação, a ser gerida pelo governo, alguma coisa tinha que mudar. Disso mesmo se aperceberam os media e os jornalistas. Cumprindo a sua função em democracia, procuraram informar-se sobre o que se estava a passar nas prisões e sobre como o governo entendia dever transformar as cadeias, face às circunstâncias. O que os media iriam encontrar, caso se interessassem pelo assunto, seria o mesmo ou pior do que aquilo que o Provedor encontrou. E, seja por necessidade de exercer os seus direitos de livre expressão, muito limitados para quem esteja preso, seja por discordarem das políticas seguidas (a amnistia às FP-25A e/ou a abolição das amnistias regulares), seja como forma de pressão na expectativa de aliviar a violência institucional endémica, muitos presos estavam interessados em fazer chegar mensagens às comunicação social. Sei disso porque ainda hoje esse é o principal objectivo da ACED. Se os magistrados judiciais temem o contacto e a intromissão dos media nas suas actividades, imagine-se o que acontece com as prisões. Não havendo condições de mudar, a curto prazo, a forma de administrar as prisões, acossada a sua direcção pessoalmente por “máfias que dominavam o sistema prisional”, tendo de acatar a decisão presidencial que deixaria sem alívio a pressão demográfica dentro das prisões, estando a aumentar o número de reclusos doentes, nomeadamente com doenças infecto-contagiosas, sem recursos técnicos, seja a nível administrativo, de saúde ou sequer dietéticos, que fazer? Sem dúvida, afastar os media do caso
e restringir ao máximo a liberdade de expressão e de comunicação dos reclusos. O contrário disso, procurar exprimir publicamente sentimentos ou opiniões sobre o que se passava nas prisões adquiriu, naquela circunstância em particular, um cariz político difícil de aceitar para os que entendem que a ralé da sociedade pode ser simplesmente ignorada. De facto não pode (e não deve!). Estando alguns presos no EP de Caxias empenhados em contactar com jornalistas para fazer declarações políticas sobre a situação e reclamar melhores condições de vida – o que era essencial, especialmente na altura, quando a degradação das vidas prisionais se aprofundou em todos os indicadores conhecidos – essa terá sido, também, a oportunidade dos serviços prisionais matarem dois coelhos de uma cajadada: acabar com aquela tentativa concreta de exercício da liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, culpabilizar os jornalistas e respectivos órgãos de comunicação social por estarem a colaborar com inimigos do regime democrático – os presos, calcule-se. Se o alegado motim de Caxias não tiver sido um motim, poderia ter sido inventado, bastando para tal a entrada dos polícias anti-motim. A violência instalada, pelas represálias impostas a muitos presos e pelas notícias que sobre o motim se divulgaram, desta vez apenas do lado das autoridades, foram uma ajuda preciosa para distrair e afastar os jornalistas da sua missão, através da produção de um monopólio de facto de fonte de informação. Este efeito de monopólio pode passar desapercebido ao público em geral. Mas é um efeito muito conhecido das forças da ordem. Por experiência milenar sabem que o uso da violência estigmatiza o lado perdedor e descredibiliza toda a informação que aí possa ter origem. Ao invés, do lado dos vencedores esperam-se explicações susceptíveis de legitimar o que se passou.
(...) Em Março de 1996, no reduto Norte do Estabelecimento Prisional de Caxias, a contestação contra a incapacidade do estado cumprir as suas próprias leis, neste caso a lei prisional de 1979, na sequência da sua denúncia num programa televisivo, tem um desfecho inesperado, até hoje não esclarecido. A situação de sobrelotação das cadeias levou ao incumprimento generalizado da obrigato-
riedade legalmente estabelecida, e ainda hoje não alterada, de cada cela ser ocupada por um único recluso. O movimento de protesto lançado por detidos em torno disso é reprimido violentamente. Formalmente acusados de instigação a motim ficam 25 dos presos. Em sua defesa, alguns deles, argumentam não serem eles os instigadores do motim mas sim as autoridades prisionais. Até hoje, o processo
judicial então originado não teve quaisquer consequências práticas conhecidas. Na altura e posteriormente vários dos acusados desafiaram o estado português a realizar o processo. Sem resposta. Este episódio resume algumas tendências da década: a) incapacidade da tutela política e judicial do sistema prisional de respeitar e fazer respeitar a lei prisional; b) uso ineficaz
e desproporcionado dos poderes de uso legítimo da violência; c) inconsequência dos sistemas de inspecção internos e externos do sistema prisional; d) mobilização dos estigmas sociais, relacionados com sentimentos de insegurança das populações, para obter a cobertura mediática e popular às práticas prisionais de difícil justificação racional e legal. (...)
Escrito por António Pedro Dores 1 de Setembro de 2008 António Pedro Dores é docente universitário no departamento de Sociologia do ISCTE, membro da Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento (ACED), investigador no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/ ISCTE) a trabalhar actualmente numa pesquisa europeia sobre registo de custos do uso das prisões na Europa.
extracto do texto “O sistema de execução de penas em Portugal é o sistema prisional”, publicado na revista do ministério público “prisões: a lei escrita e a lei na práctica em portugal”, escrito pelo director da mesma, eduardo maia costa, procurador-geral adjunto no supremo tribunal de justiça.
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Declaração de sobre aviso para o Conselho da Europa
C
elso Manata, ex-director-geral dos Serviços Prisionais portugueses, segundo noticia a comunicação social, foi eleito pelo Conselho da Europa para membro do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura. Numa altura em que é preciso deter a deriva securitária que praticamente todas as semanas nos traz novas surpresas desagradáveis, desde as torturas nas prisões até à circulação de prisioneiros clandestinos por prisões secretas, esta é mais uma notícia preocupante. O perfil do Sr. Celso Manata, de conciliador do inconciliável e de mandante de tratamentos ilegais e degradantes quando em funções oficiais, é um sinal de degradação da credibilidade das estratégias de prevenção da tortura na Europa, numa altura em que elas são cada vez mais precisas. O Sr. Celso Manata assumiu o cargo mais elevado do sistema prisional português na sequência da demissão do seu superior hierárquico (Marques Ferreira) ameaçado de morte depois de ter denunciado publicamente estarem as prisões portuguesas fora do controlo da legalidade e da cadeia de comando do sistema prisional. Jamais os autores das ameaças de morte ou os que controlariam as prisões portuguesas foram encontrados ou denunciados pelo Sr. Manata, que entretanto procurou pacificar o ambiente de forma especial. Por um lado chamou para o seu lado um reformado dos serviços prisionais, Damasceno Campos, conhecido por exploração de cargos públicos em proveito próprio. Por outro lado organizou a reacção antecipada a iniciativas de denúncia pública das condições infrahumanas que caracterizavam (e ainda caracterizam) muitas prisões em Portugal, cf. relatórios do Provedor de Justiça. Em particular, e caso paradigmático, para evitar a curiosidade dos jornalistas sobre aquilo que alguns presos na prisão de Caxias tinham para lhes dizer, em 1996 o Sr. Manata fez avançar a guarda prisional, simulando estar a acontecer um motim dentro da prisão como forma de legitimar a repressão que se prolongou por horas no caso de alguns dos detidos, tendo vários deles sido barbaramente espancados. Foram acusados de organizarem o motim cerca de duas dezenas de presos. Alguns deles, já depois de terem terminado as respectivas penas, pediram publicamente para que o respectivo processo judicial contra eles fosse organizado. O que não veio a acontecer, até hoje. No quadro desta política prisional de manutenção das condições degradantes de vida nas prisões portuguesas e de contenção das actividades de denúncia que se seguiram à publicação do primeiro relatório sobre as prisões do Provedor de Justiça, podemos documentar e testemunhar através de ofícios assinados pelo próprio, em 1996 práticas de perseguição e tratamentos degradantes contra António Manuel Alte Pinho, isolado e impedido de ter acesso a tabaco a que estava viciado, lâminas de barbear e banho
(apenas um semanalmente) ao ponto dos próprios guardas terem desobedecido às ordens superiores. O mesmo detido foi também, por exemplo, transformado num perigoso criminoso, com direito a grande aparato da escolta prisional que se recolheu quando chegaram as televisões para assistir ao espectáculo quando, em Junho de 1999, foi prestar provas de admissão ao ensino superior, na Faculdade de Direito em Lisboa. Podemos também documentar e testemunhar o recrutamento que enquanto director geral fazia de pessoas e organizações solidárias com os presos para que o servissem com informações sobre o que se passava nas prisões, para seu uso pessoal. Quem não aceitasse tal trato seria tratado e foi-o como inimigo. No caso da Associação Ressurgir, dedicada a organizar visitas a prisioneiros pobres, foi organizada a sua destruição, com sucesso, através de processos que foram na altura tornados públicos e que integravam a promoção de pessoas dispostas a colaborar no fornecimento de informações a troco
de acesso ao interior dos estabelecimentos prisionais em condições especiais. No caso da Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento a sua destruição pelo mesmo processo foi tentada mas sem sucesso. E por outros processos também, em particular quando alguns dos seus membros foram acusados de traficantes de droga, sem qualquer fundamento a não ser o aliciamento de um preso para que servisse de testemunha. Entretanto a notícia chegou à comunicação social como forma de encobrir o impacto mediático da entrada de cento e noventa e uma queixas, em 12 Março de 1999, de reclusos na ProcuradoriaGeral da República contra a insegurança numa das prisões portuguesas. O Sr. Celso Manata abandonou o seu cargo acossado pelo fracasso da sua política de conciliação entre o status quo definido pelo seu antecessor como mafioso e as aparências de respeito pela legalidade democrática e pelos processos humanitários de reabilitação social dos condenados e também pela acusação do Tribunal de Contas, acolhida
pelo Ministério Público, de crime contra o Estado na gestão dos dinheiros do orçamento do seu departamento. O facto de ter contado de imediato antes de qualquer julgamento com a intervenção do ministro da tutela, que anunciou protegêlo, fragilizou a eficácia e credibilidade da decisão do tribunal que não deu seguimento à acusação. Mas não é por razões de sucesso ou convicções políticas que de resto não se conhecem publicamente, visto que serviu vários governos de várias cores partidárias que o tornam inelegível para um cargo com a responsabilidade moral como o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa. É pelo facto de ter pactuado com práticas ilegais e ilegítimas de manipulação de presos para finalidades políticas próprias, chegando a tomar decisões directas sobre a aplicação de tratamentos degradantes a seus perseguidos predilectos. 2005-12-07 António Pedro Dores António Alte Pinho
CELSO MANATA (fotografia publicada no jornal público de 28 de abril de 2001, quando foi processado pelo ministério público por infracções financeiras, durante o seu período como director geral dos serviços prisionais.
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A verdade sobre o motim de Caxias
P
ouco mais de um ano depois do chamado Motim de Caxias, o Ministério Público deduziu acusação contra 25 presumíveis amotinados. Não é de estranhar esta pressa em mostrar serviço. É uniformemente acelerada com essa outra (mas de sentido oposto) de ilibar responsáveis prisionais pelos seus crimes. Todas as queixas apresentadas por reclusos nos serviços do Ministério Público de Oeiras, têm vindo a ser arquivadas, precisamente por os arguidos serem proeminentes dirigentes prisionais. Obviamente que quando os arguidos são reclusos, o caso muda de figura: há que pôr na ordem a ralé. Para isso aí está o Ministério Público, o Santo Ofício do Estado de Direito! O Douto Pimentel – o inquisidor de serviço – lá do alto da sua sapiência meretíssima, para poupar trabalho, começa logo a sua peça hilariante acusando por atado os 25 subversivos: que tinham feito greve ao trabalho e, grandes malandros, também haviam feito greve de fome. Ora, uma observação atenta permitirá concluir serem vários os reclusos acusados que nem trabalho tinham. Em que ficamos? Não seria melhor dizer que haviam feito greve à vontade de trabalhar? O sapiente Pimentel, zeloso e venerando defensor da ordem e da democracia insurgese contra o facto de os reclusos protestarem. Ou seja, a democracia do Dr. Pimentel parece decalcada dos elevados pensamentos filosóficos do Coronel Tapioca (lembram-se das aventuras do Tim Tim?). Protestos esses
que se arrastavam desde 1994 e que, parece esquecer-se, levaram à demissão de um Director-Geral (lembram-se do democrata Fernando Duarte?). Em linhas gerais, os reclusos são acusados de se terem recusado a entrar nas celas. Esquece-se o digno magistrado que o Decreto-Lei 265/79 proíbe a sobrelotação, sendo legítima a recusa dos reclusos a entrar nas celas. O Ministério Público circunscreve toda a matéria acusatória na presunção da verdade absoluta vociferada pela Direcção Geral dos Serviços Prisionais, não ligando absolutamente nenhum às declarações que, para o efeito, foram efectuadas pelos acusados. Que foi tacticamente incorrecta (embora legítima) a recusa de entrar nas celas, parece, a mais de um ano de distância, perfeitamente pacífico no entendimento dos vários sectores e tendências no movimento dos reclusos. Não era aquele o momento certo, mas, de forma clara e inequívoca, devemos prestar a nossa inteira solidariedade aos 25 de Caxias. A ACED, aliás, decidiu patrocinar gratuitamente a de defesa de um dos arguidos. Mas, curiosidade das curiosidades, as acusações mais terríficas são dirigidas a reclusos que nada fizeram naquilo a que chamam pomposamente alterações da ordem e da segurança. Não é ingénua esta estratégia persecutória, muitos desses companheiros são defensores assumidos dos Direitos Humanos e de uma Reclusão com Direitos. Curiosidade ainda
para o facto de algumas das testemunhas arroladas pela acusação serem conhecidos provocadores que, sempre que os reclusos lutam, se colocam em bicos de pés no mata e esfola, para lançarem a confusão. Parte substancial dos companheiros agora acusados, foram simplesmente intermediários entre a vontade dos reclusos e os responsáveis (aliás, cobardemente atacados à bastonada, por ordem do Director Geral, quando saíam de mais uma reunião com o então director de Caxias...). Os acontecimentos de Caxias – não temos dúvidas – foram agitados e montados no exterior, tendo em vista desacreditar a luta dos reclusos, isolá-los da opinião pública e justificar a repressão. Ao não querer dialogar com os amotinados e, mais grave que isso, ao comandar pessoalmente (e no terreno) a carga repressiva, o actual Director Geral dos Serviços Prisionais embarcou (consciente ou inconscientemente) numa das maiores aberrações cometidas contra os direitos de cidadania dos detidos. Criou, com esse acto, uma situação irreversível materializada no virar das costas permanente entre o movimento de cidadania dos reclusos e os responsáveis prisionais. Esse precedente em nada favorece o necessário entendimento que poderia levar a um Acordo para a Mudança, tão necessário à descomplexização da visa prisional. Mais grave ainda é um anónimo delegado do Ministério Público dos arrebaldes da Capital, venha dar cobertura (corporativa?) a uma diatribe, a um insulto
Acesso ao estabelecimento prisional de caxias nos dias posteriores ao “motim”, durante os quais estiveram proibidas as visitas aos detidos.
contra a inteligência das pessoas, a uma aberração à verdade histórica. De fora do processo ficam os pistoleiros que andaram a fazer o trabalho de sapa, incitando à recusa à entrada nas celas, verberando hipotéticos motins armados em preparação, ocultando-se nas siglas sem rosto (ou de rosto obscuro) de um Movimento Alfa ou de um Fórum Prisões, ou, ainda, no ingénuo (e fútil) verbalismo do PAR na sua fase mais infantil e inicial. Em todo este processo (Kafkiano, quanto baste) – com leitura atenta e objectiva – poder-se-ia inverter a ordem natural das coisas (segundo a versão de quem manda). No banco dos réus deveriam estar os verdadeiros responsáveis. Os dirigentes prisionais e o detentor da pastada justiça que, corajosamente, viveu o motim na comodidade do bar dos guardas do Hospital Prisional, a uns bons seguros metros do epicentro dos acontecimentos. São eles os responsáveis pela degradação e desumanidade em que vivem (e morrem) os cidadãos em cumprimento de medidas privativas de liberdade. Transformar os acusados em acusadores é uma tarefa fundamental que exige o empenhamento de todos. Desmontar o circo inquisitório, ser solidário com os 25 de Caxias, é um acto absolutamente consciente de indignação democrática e espírito cívico. A Redacção do SOS PRISÕES SOS Prisões Novembro 97
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comunicado emitido pelo CAP (colectivo de apoio a presos) nos dias posteriores ao “motim” de caxias
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comunicado emitido por diversos colectivos em solidariedade com os 25 acusados pelo “motim� de caxias
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A modos de epílogo
A
lei é a ferramenta do Estado/Capital para defender a ordem existente a fim de que uns domínem e explorem outros neste miserável e podre mundo organizado pelas idéias do domínio. Pretender que as normas daqueles que nos prendem nos sejam alguma vez benéficas, é digno de suicídio... Quem aprisiona pessoas, ainda por cima em condições extremamente cruéis e sujeitas a engrossar as estatísticas da mortandade, não pode esperar menos do que revoltas sistemáticas, sejam elas quais forem. Esses momentos de protesto, com as suas reivindicações, esses momentos de resistência à subvida, essa desobediência à gestão da administração da morte que é a prisão -centro de extermínio- ,são momentos que consideramos de grande valor humano!... A revolta é sempre nobre, bela e fascinante quando o sentimento de dignidade e o desejo de viver é superior ao medo à repressão. Por isto, nós, que estamos na ”prisão sem muros” e almejamos um mundo sem grilhetas visíveis e invisíveis, não podemos deixar de ser solidários com todas as revoltas ocorridas nas prisões: locais de uma bestialidade extrema onde as pessoas são expostas à arbitrariedadade dos esbirros; onde reina o nepotismo, o favoritismo pessoal, as escandalosas discriminações; onde a solidariedade está criminalizada; onde se pratica a técnica inquisitorial, jaula cruel e sábia na arte de punir e de castigar, de infligir suplícios, de fazer sofrer (para além do arsenal horroroso de castigos “normais” em húmidas e gélidas celas disciplinares, regime 111º e outros); onde se vê o sofrimento sistemático e o intento premeditado de aniquilamento do fisíco, da psique, da personalidade e da identidade do indivíduo sob o falso discurso reabilitador e ressocial-
izador; onde se “vive” no aborrecimento, no isolamento, na solidão, na incerteza, em ansiedade, na atroz agonia, em total estado de indefenso, no medo, no desespero, em stress permanente, em taquicardia; onde se é submetido à incubação de germes num viveiro de doenças infecto-contagiosas que levam ao extermínio, onde a vida está sujeita, com cálculo de probabilidades, ao risco elevadíssimo de contágio mortal; onde se vê, sente e pressente o horror da morte a aproximarse; onde se assiste à morte lenta e dolorosa de seres condenados à absoluta ferocidade da indiferença e do ostracismo; onde se adquirem fobias, psicoses, neuroses, esquizofrenia; onde se fica apático,depressivo; onde o indivíduo constantemente é induzido ao suicídio!... e um longo etc.. A prisão, como mega-desumana instituição -elemento repressivo de controle social- representa o último reduto do mecanismo domesticador do poder, destinado aos excluídos, aos subversivos, a todos os que de alguma forma incomodam o domínio e aos que molestam socialmente. A prisão é o indicador dos erros do sistema, e humanizá-la é impossível devido à sua própria natureza. Apenas poderemos dizer que algumas reformas poderão torná-la eventualmente menos cruel. A prisão é intrínsecamente inimiga da vida e a sua existência põe à vista o sistema que a construiu, e elucida-nos sobre a sua “humanidade”. Não pretendemos mitificar os presos mas sim manifestar o nosso profundo repúdio a tão terrível instituição bem como criticar as teorias -defendidas por esta hipócrita e civilizada sociedade-prisão- que afirmam ser impossível a vida social sem a existência desta execrável instituição. Queremos um mundo sem prisões e tal é exequível, mas, para tal, obviamente, é
necessário romper com a domesticação, pensar pela própria cabeça, subverter as mentes anquilosadas pelos germes do domínio e lutar contra o existente para que ocorra uma mudança radical que vá à raiz dos problemas sociais. O que não é admissível é este sistema com todas as suas guerras, ecocídio, exploração do homem pelo homem, o roubo das nossas vidas, desigualdades sociais criadoras de fome e miséria, e outras imensas barbaridades incluída a prisão. Lutar pelo fim das prisões implica lutar pelo fim deste putrefacto sistema em geral, que constrói as prisões. Que esta publicação sirva pois para a contribuição da reflexão e o respectivo combate pela reapropiação das nossas vidas e consequentemente por um mundo sem prisões. Pelo fim de todas as prisões! Terminamos com um elucidativo excerto de um diário de um sequestrado pelo Estado, uma reflexão que é um profundo grito de revolta contra a prisão. “Os carcereiros querem subsídios de risco. E nós, presos e familiares, não deveríamos receber um subsidio de risco? Quem é que aparece enforcado nas prisões? São os presos. Quem é que constantemente morre nas prisões com sida, tuberculose, hepatite, leucemia, etc.? São os presos. Quem é que apanha graves doenças nas prisões? São os presos. Quem é que é espancado e torturado nas prisões? São os presos. Quem é que constantemente é induzido ao suicidio? São os presos. Quem é que aparece enforcado suspeitosamente? São os presos. Quem é que é submetido à alimentação insuficiente e miserável, e a maioria das vezes intragável,
originando doenças? São os presos. Quem é que sofre negligência médica? São os presos. Quem é que ininterruptamente é humilhado e sofre inenarráveis atentados à dignidade humana? São os presos. “Não quero subsídio nenhum! Exijo tão só o que o poder me roubou: a minha liberdade, inalienável, porque não passei procuração a ninguém, não deleguei em ninguém para que decidam por mim! Reclamo o que me pertence: a minha liberdade!” “(...)” “A luta pela amnistia ou o perdão alargado que está a ser reivindicado formalmente é muito pobre comparado com o conteúdo da generalidade da revolta. Na constante revolta aberta estampada na cara -apesar das técnicas das coacções, da droga fornecida pelo Estado aos presos, sofisticados condicionalismos pavlovianos e draconianas represálias-, com as contundentes invectivas contra a instituição prisional em si, é que está a bela poesia e riqueza desta revolta. A exigência não formalizada, mas profundamente sentida, é a recusa da prisão em si. Pena, esse tão natural sentimento de recusa da prisão em si, esse profundo ódio contra a prisão, constantemente manifestado com fortes invectivas contra a prisão e por gestos de acção directa -como fogo às celas e constante automutilações, greves de fome, dolorosos gritos e outros actos-, ainda não ter sido suficientemente debatido para ser exigido com a expressão: “abolição da prisão” ou “prisão, abolição!”(como acontece, já há bastante tempo, nas prisões de outros países da Europa )! “26 de Abril de 1996, um sequestrado pelo Estado”