O REPUBLICANO
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O REPUBLICANO
REPÚBLICA NOSSA DE CADA DIA 2
Uma constituição verdadeiramente livre, em que todas as classes da sociedade gozem dos mesmos direitos, não pode subsistir à ignorância de uma parte dos cidadãos, que não lhes permite conhecer sua natureza e seus limites, obrigando-os a pronunciar sobre o que não conhecem, de escolher quando não podem julgar; tal constituição se destruiria por si mesma depois de algumas tempestades, e se degeneraria numa dessas formas de governo que não podem conservar a paz no meio de um povo ignorante e corrompido. Jean-Antoine-Nicolas de Caritat (Condorcet)
O REPUBLICANO
A FORMA DE GOVERNO REPUBLICANA E SEUS PRINCÍPIOS Tiago Anderson Brutti
A
palavra república, em latim res publica, indica o sentido de coisa pública, de
esfera de interesse do povo. A configuração republicana da forma de governo foi instituída originalmente em Roma, entre 509 e 27 a.C., antes, portanto, da expansão imperial romana. As fontes do direito na República romana foram,
sobretudo, o costume, as leis e os editos dos magistrados. A passagem da República ao Império fez-se progressivamente. Dentre os fatores dignos de destaque nas circunstâncias dessa mudança progressiva estão o progresso econômico, as dificuldades sociais e as vastas conquistas romanas. Mantiveram-se, contudo, muitas das instituições da República. A República, entendida como forma de governo constituída historicamente, caracteriza-se, grosso modo, pela abertura do poder de governo ao público e pelo autogoverno do Estado. O governo, por essa perspectiva, é orientado pelas leis, mais do que simplesmente por homens interessados no bem próprio, em detrimento do bem coletivo. A República, ao lado disso, em sua versão moderna, é marcada pela máxima segundo a qual tanto quem governa quanto quem é governado deve participar da elaboração e do cumprimento das leis. Uma das apostas da República, em sua configuração moderna, é que não se deve privar o mais modesto cidadão, seja ele do gênero, etnia ou religião a que pertença, dos direitos declarados inegociáveis e imprescritíveis. Crê-se na possibilidade de se estabelecerem acordos em torno do que vai ser entendido como bom ou justo. A opinião segundo a qual cabe ao poder público salvaguardar que os indivíduos possam ser tratados desigualmente na medida em que se desigualam não soa descabida, senão que antecipa um tempo imaginário no qual os indivíduos, ao se desigualarem menos, apesar de nunca se reduzirem ao absurdo de uma igualdade absoluta, possam conviver em condições que considerem reciprocamente dignas. A igualdade, uma das promessas republicanas, é entendida na modernidade como um sentimento cultivado e, também, como um critério racional, vinculando-se ao reconhecimento de que o mundo social é tensionado continuamente pela força de cidadãos que, ao sobreviver
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O REPUBLICANO em condições que não consideram reciprocamente dignas, almejam conquistar outros recursos e modos de vida mais ajustados aos seus desejos ou às suas necessidades, sejam elas fictícias ou não. Necessidades que não dizem respeito somente aos aspectos econômicos da vida de cada um. A igualdade relaciona-se, também, por essa perspectiva, com o reconhecimento de que a liberdade de opinião e de iniciativa amplia a efetividade dos direitos daqueles cidadãos que, por sua condição ou por livre escolha, fazem da igualdade um propósito e um critério de avaliação do mundo social. 4 O perfil da cidadania republicana, na opinião do filósofo Condorcet, é o de um homem ilustrado que, sem ser sábio em tudo, tem prazer em cultivar o próprio espírito. A República é frágil quando os cidadãos não compartilham dos princípios dessa forma de governo. A educação é uma tarefa da República. O que seria da República sem republicanos? A instituição do cidadão republicano implica, entre outros objetivos, informá-lo das vantagens dessa forma de governo na comparação com outras configurações já experimentadas no curso da história das civilizações. Para o filósofo Charles Coutel, comentarista contemporâneo da Revolução Francesa, a educação republicana das crianças e dos adultos implica uma mediação entre a instrução pública e a República, entre a teoria e a prática da cidadania republicana. O ensino repousa sobre a elucidação dos conceitos, mas também sobre a emulação entre os cidadãos e a estima de si. Para ensinar aquilo que é também uma prática, isto é, a virtude política dos cidadãos, são necessários conhecimentos menos imprecisos e uma maior coerência ética do mestre, que deve seguir seus próprios preceitos. Nesse espaço educacional, a tomada de consciência é suscitada e não ditada. Cinco grandes princípios, segundo Coutel, inspiram a cidadania republicana advogada por Condorcet. O princípio da perfectibilidade rompe com o providencialismo ou a predestinação. A história é o que o homem faz dela. A perfectibilidade faz dessa orientação responsabilidade dos homens. O segundo princípio é o do colegiado dos espíritos e dos juízos. Essa concepção está inspirada pelo trabalho científico e acadêmico de Condorcet: os júris acadêmicos se pronunciam colegiadamente em nome da verdade sobre os descobrimentos e as investigações. O ponto de vista majoritário é então para ele a expressão de um debate arrazoado e argumentado, e não uma opinião caprichosa. O princípio do colegiado enlaça a racionalidade
O REPUBLICANO e a perfectibilidade: os homens ganham se buscam a verdade juntos; esta é uma das lições da história, das ciências e das luzes. Estes dois princípios chamam a um terceiro: o princípio da racionalidade. Todo homem, comenta Coutel, possui uma razão capaz de perceber os elementos de um todo e de captar sua unidade: é a faculdade das análises e das combinações. A instituição do cidadão implica a dupla ambição de analisar as situações políticas e de minimizar os erros e as crises. A racionalidade, com a prova do colegiado, se abre ao sentimento de humanidade. O princípio da racionalidade requer o princípio da laicidade ou do espírito público. Condorcet opõe “o espírito de seita” ao “espírito público” enfatizando o desenvolvimento deste contra todas as formas de servidão, de arbitrariedade e de dependência. O espaço público e laico, condição dos intercâmbios e dos debates republicanos, pressupõe cidadãos prudentes e instruídos. Enfim, o princípio de humanidade. O amor à humanidade é, comenta Coutel, o horizonte ético da cidadania condorcetiana. Este amor abre os grandes princípios precedentes até a universalidade. É a preeminência do princípio da humanidade o que explica os combates de Condorcet em favor dos direitos dos oprimidos e suas lutas em prol da extensão da cidadania às mulheres, aos negros e aos protestantes. Seu esforço residirá em encontrar as mediações entre o amor de si ou estima de si, o amor familiar, o amor à pátria, o amor à República e o amor à humanidade. Os direitos do homem e o exercício dos direitos políticos terão a humanidade como horizonte e não somente a pátria. Ao aplicar o princípio da laicidade ao princípio da humanidade, não se encontra em Condorcet o culto à humanidade. A instituição do cidadão supõe uma continuidade entre essas esferas afetivas e os princípios teóricos gerais (perfectibilidade, colegiado, racionalidade, laicidade e humanidade).
ALGUNS CONCEITOS REPLUBLICANOS IGUALDADE SOCIAL A expressão igualdade social vincula-se à noção de felicidade pública, a qual depende do gozo de direitos. Ao povo o que mais interessa é que seus direitos se efetivem. É a prática da cidadania que sugere pensar o bem-estar comum no horizonte de uma distribuição mais igual do gozo de direitos. É defensável, dessa maneira, que a instância da economia seja
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O REPUBLICANO entendida como artifício do homem, relacionada com a satisfação de suas necessidades, sejam elas fictícias ou não. A economia é útil às associações políticas dos indivíduos e aos negócios entre as nações na medida em que, regulada e vigiada, se ajusta à exigência de que a igualdade social se efetive, o que implica reconhecer que o critério racional da igualdade constitui um propósito político para os membros de uma nação. Condorcet argumenta que o princípio da igualdade corresponde a um pressuposto moral, essencial para se estabelecer vínculos razoáveis entre moral e política. O sentido da igualdade social não se fecha numa abstração. Ele vincula-se ao reconhecimento de que o mundo social é tensionado continuamente pela força de cidadãos que, ao sobreviver em condições que não consideram reciprocamente dignas, almejam conquistar outros meios e modos de vida mais ajustados aos seus desejos ou às suas necessidades, sejam elas fictícias ou não. Necessidades que não dizem respeito somente aos aspectos econômicos da vida de cada um. A igualdade social vincula-se, também, por essa perspectiva, com o reconhecimento de que a liberdade de opinião e de iniciativa amplia a efetividade de direitos daqueles cidadãos que, por sua condição ou por livre escolha, fazem da igualdade um critério e um propósito de avaliação do mundo social. O gozo da igualdade impede que a extrema miséria de uma parte do povo seja definida como socialmente aceitável ou justa. Mas a igualdade é criação dos homens, porque na natureza tudo parece distinto. Ela não decorre, simplesmente, de nossos códigos genéticos, senão que representa um construto das faculdades que dispomos de produzir sentimentos e de raciocinar. Ao cobrir os diferentes indivíduos dos direitos naturais constituintes da humanidade e da cidadania, Condorcet denunciou, no texto “Reflexões sobre a escravidão dos negros” (1781), que o sequestro de indivíduos nas fronteiras do continente africano; a submissão deles, assim como de sua descendência, a um regime de trabalho escravo; e a indiferença social frente aos maus tratos a que eles eram submetidos, constituíam uma flagrante injustiça e perversidade (oriunda de hábitos repulsivos herdados do passado); envergonhavam profundamente o ideário social iluminista; e representavam um ultraje frente aos direitos declarados naturais e aos princípios racionais que os informavam. Para o filósofo, mais importante que proclamar publicamente direitos e princípios seria efetivá-los de tal modo que as realidades narradas não mais apresentassem como característica comum uma inconciliável dissensão entre o mundo em que se vivia e o imaginário republicano da igualdade e da liberdade.
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O REPUBLICANO A personagem principal do conto “Cartas de um burguês de Novo Hampshire a um cidadão da Virgínia sobre a inutilidade de dividir o poder legislativo em vários corpos” (1787) expõe através de correspondências o que julga favorecer uma justa instituição social, assentada sobre uma Constituição cujos princípios se fundam em direitos naturais dos homens. Tais direitos, anteriores, por assim dizer, às instituições sociais, recebem o nome de naturais porque, desde o momento em que um ser sensível é reconhecido, por ser capaz de raciocinar e adquirir ideias morais, resulta necessariamente que deve gozar desses direitos, não podendo ser privado deles sem injustiça. Condorcet (1945) dá voz ao burguês de sua ficção para argumentar que um desses direitos é o de votar acerca de interesses comuns, seja por si, seja por representantes livremente eleitos. Um Estado em que parte dos homens são privados desse direito deixa de ser um Estado livre, transformando-se em uma aristocracia de maior ou menor amplitude. O remetente das cartas sentencia que em nenhuma parte seria livre o cidadão, obreiro, doméstico, granjeiro, se ele fosse dependente de outro cidadão mais rico. Em nenhuma parte o homem degradado, embrutecido pela miséria, seria igual ao que recebesse uma educação esmerada. Haveria necessariamente duas classes de cidadãos em todo lugar onde existissem pessoas muito pobres e muito ricas. A igualdade republicana não poderia subsistir num país no qual as leis civis, financeiras e de comércio fizessem possível a existência prolongada de grandes fortunas. Coutel questiona o sentido da palavra igualdade na obra de Condorcet: “Como conciliar a afirmação: todos os homens são iguais, sobre o plano político e dos direitos do homem, com a ideia de que os espíritos e talentos não são semelhantes? Como fazer para que essa diversidade não seja interpretada de tal modo que hierarquize as pessoas?” (2006, p. 02). Diante dessas questões, argumenta que a igualdade de instrução previne tanto o retorno da desigualdade de acesso aos saberes como a tentação do “igualitarismo” que, a partir da igualdade moral e política dos homens, despreza os talentos e as luzes: “a instrução pública condorcetiana não cede a um entusiasmo simplificador nem a um obscurantismo igualitarista, pois coloca os saberes à disposição de todos sem sacrificar a excelência e a diversidade dos espíritos e dos talentos” (p. 11). A hipótese de que os negros teriam sido comprados por um ato de humanidade foi radicalmente deplorada por Condorcet, para quem o tráfico, a venda e a compra de homens com a finalidade de escravizá-los constituía um abominável crime. Ademais, os senhores de escravos não poderiam, sem para isso incorrer em contradição, tornar seus o sentimento de
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O REPUBLICANO humanidade frente aos casos de maus tratos que alcançavam notabilidade pública. Condorcet interroga se por acaso é justificável que os senhores de escravos ainda cobrassem em energia de trabalho uma escravidão alegada como decorrente de atos de humanidade. Mais que isso, interroga se seria justificável uma propriedade perpétua sobre os negros, inclusive sobre sua descendência, incluindo o direito de obrigar a trabalhar indefinidamente. Condorcet considera que as sociedades políticas, por dever de justiça, não devem ter outro objetivo maior que o de preservar indistintamente os direitos daqueles que a integram. Nesse sentido, qualquer lei que viole os direitos humanos ou os princípios racionais deve ser considerada uma lei injusta ou tirânica. O filósofo denuncia, no texto “Sobre a admissão do direito de cidadania às mulheres” (1790), o fato de que direitos e princípios que justificam a igualdade política e de fato entre mulheres e homens estivessem sendo solenemente violados na medida em que as mulheres, a metade do gênero humano, eram privadas do direito inegociável de contribuir com a formulação das leis que elas próprias eram estimuladas pelos homens a cumprir. A opinião segundo a qual era inconveniente, ou mesmo perigoso, reconhecer os direitos de cidadania às mulheres, porque dessa forma os homens se tornariam amplamente sujeitos à influência delas, é menosprezada pelo filósofo, para quem a influência que a mulher venha a exercer sobre os homens na vida pública provavelmente ainda seja menor que a influência que elas já exerceram sobre eles na vida privada, desde sua mais tenra infância, seja como mães ou esposas. Na dissertação “É conveniente enganar ao povo?” (1778), Condorcet refere que à sua época habitualmente se escolhiam mulheres e crianças como seres humanos que deveriam ser entregues ao erro. No que respeita às mulheres, o filósofo reitera que, no seu entendimento, não há mais diferença entre elas e o gênero masculino que as que correspondam ao físico próprio de seu sexo. Desse modo, a ideia de que fosse preciso submetê-las a erros dos quais os homens estariam isentos não poderia suster-se senão por quem ainda quisesse ser seu tirano (2010, p. 113). Como se vê, um sagaz estilo de argumentação e de narração é cultivado por Condorcet para discutir a desigualdade de riquezas e de gênero, bem como as diferenças étnicas e religiosas, intencionando convencer seus leitores da importância de se efetivarem princípios e direitos declarados razoáveis, inegociáveis e imprescritíveis. Com efeito, as narrações e argumentos do filósofo reconhecem que a humanidade fez longas jornadas antes que direitos
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O REPUBLICANO declarados naturais pudessem ser proclamados publicamente. Para o autor, ou nenhum indivíduo da espécie humana tem direitos ou todos os possuem igualmente. A miséria deve ser apenas um acidente para algumas famílias e não a condição habitual de uma classe numerosa. Condorcet propõe que, ao se eliminarem as desigualdades escandalosas de riquezas, também se elimina um dos principais fatores da corrupção moral de um povo: o uso de meios ilegítimos para promover os próprios interesses. Não cabe à lei educar o povo. Cabe a ela determinar as normas comuns que devem proteger os indivíduos. Não são os legisladores que devem formar a moral de um povo, mas a instrução pública. Não se forma a moral de um povo sem formar a sua razão. A formação da moral dos indivíduos não ocorre sem passar pela questão da justiça social, não só na perspectiva formal do direito, mas também no que diz respeito às desigualdades de fato e às injustiças econômicas. Condorcet correlaciona a questão da instrução com valores políticos, tais como a igualdade e a liberdade. Silva (2004) assinala que, no tocante à correlação entre igualdade e liberdade, não há, no pensamento de Condorcet, uma solução definitiva. Para o comentador, ela é um paradoxo e, como tal, deve persistir. Esse paradoxo torna a própria sociedade imperfeita ou perfectível, sujeita a melhorias constantes, mas sem ter um desfecho. O ideal é, também, ajustável. Esse paradoxo torna a sociedade democrática aberta. Qualquer solução definitiva seria tirânica. O desrespeito à propriedade do rico nasce do fato de que os pobres veem a riqueza como uma espécie de usurpação. O fato de isso ser quase sempre correto produz consequências morais indesejáveis. Condorcet (2013) sugere que a usurpação reside na concentração da riqueza nas mãos de poucos e nas leis que permitem isso. Em si, a desigualdade não seria um mal, mas sim a dependência, que pode gerar a escravidão, ou lançar indivíduos à miséria e ao desalento. A injustiça na distribuição das riquezas correlaciona-se com uma desigualdade mais originária do que a desigualdade de propriedade. O autor considera que a razão da injustiça está na divisão dos homens entre os que estão supostamente destinados a ensinar e os que teriam sido produzidos para crer: uma classe querendo se elevar acima da razão, e a outra renunciando humildemente a sua, e se apequenando abaixo da humanidade.
Referências CONDORCET. Cartas de un burgués de Nuevo Hampshire a un ciudadano de Virginia sobre la inutilidade de dividir el Poder Legislativo entre vários cuerpos (1787). Tradução de Tomás Ruiz Ibarlucea. Buenos Aires: Editorial Elevación, 1945.
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O REPUBLICANO _______. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. _______. Es conveniente engañar al pueblo? Tradução de Javier de Lucas. Madrid: Diario Público, 2010a. _______. Réflexions sur l’esclavage des nègres. Paris: Bibliothèque nationale de France, 1781. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr>. Acessível em: 10 mai. 2014. _______. Sur l’admission des femmes au droit de cité. Paris: Bibliothèque nationale de France, 1790. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr>. Acessível em: 10 mai. 2014. COUTEL, Charles. La question de l’égalité. Artois (França): s.n., 2006. SILVA, Sidney Reinaldo da. Instrução pública e formação moral: a gênese do sujeito liberal segundo Condorcet. Campinas, SP: Autores Associados, 2004. Indicações de leitura PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas Martins de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Brasília: SEPPIR, 2006. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1993. RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Brasília: Revista de Informação Legislativa, Ano 33, n. 131, jul./set. 1996.
LAICIDADE OU LAICISMO
Q
uestiona-se se a república e o exercício da cidadania não exigem, caso se queira enfraquecer fanatismos e despotismos, uma opinião pública ilustrada e tolerante. A instituição do cidadão republicano, na opinião de Condorcet (1945a; 1945c), deveria torná-lo menos intolerante para com a opinião dos
outros, ao contrário do que poderia ocorrer nas circunstâncias de um despotismo político.
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O REPUBLICANO Ainda que o autor não tenha usado em seus textos a palavra laicidade, termo que data da terceira República Francesa, ele se dedica a tratar do tema em seus vínculos com a república e a educação. É com o cultivo da tolerância e do laicismo que a cidadania favoreceria a independência do indivíduo, a igualdade, a liberdade e o bem-estar comum. Condorcet postula que a instrução, ou, como é convencional em nosso tempo, a educação pública, uma das tarefas da república, é de responsabilidade da sociedade e do poder público e não deve associar o cultivo da moral, das artes e das ciências ao ensino catequético de uma doutrina religiosa ou ideológica. Pensado desse modo, o laicismo, estimulado entre os cidadãos nas instituições republicanas, garante na esfera pública o predomínio de um espírito público, ao invés de consagrar um espírito de facção, partido ou seita. A educação advogada pelo autor é destinada ao povo em suas diferenças e prescinde de doutrinas indiscutíveis. As instituições da república, bem como o movimento do laicismo, não resultam de uma predisposição natural do homem. Isso ocorre, igualmente, com a democracia e a tolerância. Esses institutos correspondem a invenções sociais conquistadas ao longo da história humana. Garcia e Fensterseifer (2011) sugerem, igualmente, que sociedades democráticas e republicanas não brotam de uma suposta natureza humana; que elas não se imunizam, de modo absoluto, contra as insanidades, nem garantem o bom senso no presente e no futuro. Acerca da origem etimológica do termo “laico”, Maamari (2005) explica que ele procede do grego “laos”, que significa povo, e que diz respeito a um regime político no qual nenhum indivíduo é discriminado em razão de suas orientações de vida, pois lhe está assegurada a liberdade de consciência diante de um Estado que pertença a todos (povo) e não somente a uma parte da população. A autora destaca outro sentido para a laicidade, de caráter mais estreito, implicando um combate contra todo clericalismo religioso. Esse enfrentamento afirma a liberdade religiosa de cada cidadão, separando-se o Estado de qualquer religião estabelecida que pudesse ser politicamente privilegiada. Se as revoluções Americana e Francesa instituíram novas configurações republicanas, democráticas e laicas, organizadas à luz do interesse geral e da justiça social, seu principal desafio foi conciliar simultaneamente a igualdade dos cidadãos e a máxima liberdade individual. Convicções religiosas ou ideológicas individuais não poderiam ser impostas a toda a população, ainda que socialmente majoritárias e com livre expressão no espaço público. Condorcet defendeu que as confissões religiosas não constituíssem motivos de grave
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O REPUBLICANO discórdia entre os homens, ou motivo de privilégio e discriminação dos cidadãos, ou fundamento dogmático para qualquer norma de conduta de suposta aplicação universal. O laicismo, percebido como incompatível com fanatismos, não é adversário de devotos por religiões ou ideologias enquanto estes não reivindicarem o domínio do espaço público. O laicismo reconhece, antes de tudo, que a república e a educação devem ser protegidas contra a intromissão de interesses sectários nas matérias em que relevam crenças e convicções individuais. Essas instituições devem ser mantidas em condições de independência quanto a qualquer comunidade confessional. A educação, por essa via, é um dos últimos lugares a pôr em evidência tudo aquilo que une os seres humanos, em lugar de dividi-los; ela não prescinde das diferenças, mas preocupase, isso sim, em afirmar essas diferenças de modo compatível com a liberdade reconhecida de deliberar por si mesmo sem estar sujeito a qualquer fidelidade de grupo. Condorcet (1945b) assinala que a palavra despotismo deriva do grego e significa amo (mestre). Existe despotismo sempre que os homens tem um senhor, um amo, quer dizer, quando estão submetidos à vontade arbitrária de outros homens. O despotismo da minoria sobre o maior número é muito comum e teria como causa a facilidade que possui um pequeno número de indivíduos de reunir-se e empregar o montante de suas riquezas na compra de outras forças. Segundo o autor, se examinarmos a história dos países onde se há imaginado que existia o despotismo de um só homem, é altamente provável que se verá uma classe de homens ou vários corpos que compartem o poder com aquele que se acreditava único. Existem duas classes de despotismo: de “fato” e “de direito”, ou, como prefere Condorcet (1945b): despotismo indireto e direto. O despotismo direto tem lugar nos países em que os representantes dos cidadãos não exercem um direito de veto o suficientemente extenso, carecendo por outra parte de meios para fazer reformar as leis que encontrem contrárias à razão e à justiça. O despotismo indireto, por sua vez, existe desde que, em virtude da vontade da lei, a representação não é igual nem real, ou desde que se está sujeito a uma autoridade não estabelecida pela lei. Condorcet (1945b) reparou que alguns escritores, de boa fé ou desejosos de pertencer ao grupo dominante, honraram com o título de liberdade uma anarquia produzida por discórdias entre os diversos poderes. Eles nomeavam, do mesmo modo, equilíbrio à espécie de inércia a que cada um desses poderes se encontrava submetido pela mútua resistência que se opunham. Esse esforço entre potências opostas transformaram em ponto de apoio a nação.
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O REPUBLICANO O autor considerava ser mais fácil livrar uma nação do despotismo direto que do indireto, uma vez que o primeiro seria evidente a toda a nação, enquanto que o segundo poderia esconder da nação os motivos de seu próprio sofrimento, chegando-se com frequência a considerar como protetores os opressores da nação. Quanto à denúncia de que a primeira República Francesa teria destruído a religião, Condorcet (1945c) afirmou que, pelo contrário, o que ocorreu foi favorável à religião na medida em que reformou seus abusos temporais, que transformavam seus ministros em objeto de escândalos e desprezo, e porque a religião deveria servir à consolação dos povos e não constituir um instrumento de tirania entre as mãos de hipócritas. Em resumo: o espírito público (laicismo) não equivale a uma opinião entre tantas outras. Ele constitui a própria garantia de que todas as opiniões possam ser manifestadas e discutidas na esfera pública, exceto se buscarem (re)estabelecer despotismos ou cultivar fanatismos políticos e religiosos.
Referências CONDORCET. Cartas de un burgués de Nuevo Hampshire a un ciudadano de Virginia sobre la inutilidade de dividir el Poder Legislativo entre vários cuerpos (1787). Tradução de Tomás Ruiz Ibarlucea. Buenos Aires: Elevación, 1945a. ______. Ideas sobre el despotismo (1789). Tradução de Tomás Ruiz Ibarlucea. Buenos Aires: Elevación, 1945b. ______. Influencia de la revolución de América sobre Europa. Tradução de Tomás Ruiz Ibarlucea. Buenos Aires: Elevación, 1945c. GARCIA, Claudio Boeira; FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. Diálogo na política e na educação republicana. In: Revista Diálogo, n. 19. Canoas: Unilasalle, 2011. MAAMARI, Adriana Mattar. A filosofia e o seu ensino na perspectiva da modernidade e da laicidade. In: Filosofia e ensino: a filosofia na escola. Ijuí: Unijuí, 2005.
Indicações de leitura GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 71-72.
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O REPUBLICANO PINHEIRO, Douglas Antônio Rocha. Direito, Estado e religião: a Constituinte de 1987/1988 e a (re)construção da identidade religiosa do sujeito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Argumentum, 2008. SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos Tribunais e a laicidade do Estado. In: LOREA, Roberto Arruda (org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008; WEINGARTNER, Jayme. Liberdade religiosa na Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ZYLBERSZTAJN, Joana. O princípio da laicidade na Constituição Federal de 1988. Tese (Doutorado em Direito do Estado). São Paulo: USP, 2012.
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