FOLHA 08-08-2013 ELIANE CANTANHÊDE Até o ET de Varginha BRASÍLIA - A presidente Dilma Rousseff deve mesmo engolir a sua ojeriza a negociações políticas e a conversas com líderes partidários e assim evitar projetos que desagradem ao governo e garantir os que lhe sejam favoráveis. Mas ela não precisa exagerar. Dilma tem se reunido com deputados e senadores do PMDB, do PR, do PP e de toda a extensa base aliada. Se tiver um tempinho, vai até chamar os do PT ao Planalto (a reunião de ontem dos senadores petistas com a presidente foi cancelada). Ela está, portanto, seguindo os conselhos e o exemplo do padrinho, o "Lulinha paz e amor", e fazendo um esforço danado para amenizar a própria personalidade e se aproximar o máximo possível da "Dilminha paz e amor". Quem sabe, com um pouquinho mais de esforço, consiga até deixar de chamar as pessoas de "querida" e "querido" quando, por exemplo, não gosta de alguma pergunta de jornalista. Bem, mas depois de virar muito amiga do vice Michel Temer, dois anos e meio após a posse, e de encarar Renan Calheiros e Henrique Alves, Dilma agora elogia qualquer um (desde que não seja o líder do PMDB, Eduardo Cunha). Ontem, em entrevista a uma rádio no interior de Minas, ela tascou que tem "muito respeito pelo ET de Varginha". O que vem a ser isso? Um suposto extraterrestre que teria sido visto por três meninas da cidade uns 15 anos atrás, para alegria dos ufólogos e descrença das autoridades locais e nacionais. Se tem sido tão simpática com gregos, troianos, peemedebistas e marcianos, Dilma continua dura com os críticos, esses "pessimistas", e contra as cobranças, puro "estardalhaço". E, agora, ela ganha novo ânimo com duas boas notícias para ela e a reeleição. A onda está mudando? A inflação finalmente dá sossego e os tucanos entram no alvo --com o que já surgiu e, principalmente, com o que pode surgir das investigações do chamado escândalo Siemens. PAULA CESARINO COSTA Educação pela pedra RIO DE JANEIRO - Sob os pés de muitos ou nas mãos de alguns, as pedras portuguesas são parte da história da cidade. Na gestão do prefeito que mudou o Rio, Pereira Passos (1902-1906), os mosaicos alvinegros tomaram o cenário urbano carioca. Admiradas pela beleza com que compõem obras de arte aos pés dos passantes, as pedras portuguesas são odiadas por quem tropeça em alguma delas mal colocada ou enfia o salto do sapato em um dos recorrentes buracos entre elas.
Agora, 1,2 km² de calçadas em pedra portuguesa voltaram a ser polêmica, com a divulgação da foto de Beatriz Segall, 87, com hematoma no olho após tropeçar numa calçada do Baixo Gávea. O prefeito ligou para a atriz, os proprietários foram notificados, a calçada arrumada. Os buracos estão, na verdade, em todo tipo de calçada malconservada por todos. Ou nas manifestações de junho, quando pedras soltas eram reunidas e guardadas para servir de munição. Além da beleza, esses mosaicos --se bem-feitos-- adequam-se ao terreno de forma firme, são permeáveis à água, podem ser retirados e recolocados e têm alta durabilidade. É preciso técnica para colocar e conservar, ensinadas por mestres calceteiros vindos de Lisboa. O desenho da calçada de Copacabana está pelo mundo como logotipo extraoficial do Rio. Apesar de não ser propriamente original. Foi inspirado no piso do largo do Rossio, em Lisboa, e foi instalado antes em uma praça em Manaus, como conta o arquiteto José W. Tabacow. Aqui, as ondas do chão, inicialmente perpendiculares à praia, passaram nos anos 1930 a se alinhar paralelas à areia, em continuidade às ondas do mar. Que os arqueólogos do futuro tenham como encontrar os belos mosaicos de pedra de Burle Marx. Pobres pedras portuguesas, tornadas vilãs de maneira tão injusta. Como no poema de João Cabral, "para aprender da pedra, frequentá-la". KENNETH MAXWELL Tiradentes Nascido em São João del-Rei, Minas Gerais, em 1746, Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido pelo apelido Tiradentes, era parte de uma família de seis crianças e foi criado pelo irmão Domingos, que era padre, depois que seus pais morreram prematuramente. No momento da conspiração mineira do final de 1788 e começo de 1789, ele era alferes nos Dragões de Minas, a força militar regular de Minas Gerais. Servia nos Dragões desde 1775. Mas, em 1788, ele ainda não havia obtido promoção e seu soldo não havia aumentado, e se vira preterido em quatro oportunidades de promoção em benefício de outros que ele definiu como "mais bonitos", ou que desfrutavam do apoio influente de parentes bem posicionados. Ainda assim, Silva Xavier havia comandado o importante destacamento dos Dragões que patrulhava a estrada pela serra da Mantiqueira, no governo de dom Rodrigo José de Menezes. Mas o governador que o sucedeu, Luís da Cunha Meneses, retirou Silva Xavier desse lucrativo posto. Cunha Meneses era o "Fanfarrão Minésio" das "Cartas Chilenas", os versos satíricos escritos por Tomás Antônio Gonzaga entre 1786 e 1787. Silva Xavier era conhecido por sua competência como dentista, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Era amigo dos grandes contratadores de Minas, José Rodrigues de Macedo e Domingos de Abreu Vieira. Hospedava-se com Abreu Vieira e jogava cartas com ele. Abreu Vieira era padrinho de sua filha. Os contratadores controlavam as
grandes fontes de receita de Minas Gerais, as "entradas" e os "dízimos", e pagavam (de maneira perfeitamente legal) uma proporção desse dinheiro como "propina" ao governador. Todos tinham pesadas dívidas para com o Tesouro Real, em 1788. Tiradentes conhecia bem o Rio de Janeiro, tendo servido como parte de uma força militar enviada à capital do Vice-Reino em 1778. Ele estava no Rio em 1788, onde tinha tentado promover, sem sucesso, um esquema para fornecer água potável à cidade. Foi lá que conheceu José Álvares Maciel, que voltava da Europa. Maciel havia estudado na Universidade de Coimbra, em Portugal, e depois visitado a Inglaterra. Era filho de um rico contratador de Minas e sua irmã era casada com o comandante dos Dragões de Minas. Maciel havia trazido uma cópia da "Recueil des Loix Constitutives des ÉtatsUnis de l'Amérique", comprada em Birmingham. Na volta para Minas, Tiradentes se hospedou com o coronel Aires Gomes na fazenda deste perto de Borda do Campo. Ele falou da república florescente que Minas se tornaria caso se libertasse de Portugal. Atacou os "governadores ladrões" e seus comparsas, que, segundo ele, "açambarcavam os cargos, riquezas e posições que deveriam por direito caber aos naturais da terra". ANA MARIA MACHADO Comida para o pensamento Em termos ideais, não é grave que a venda de livros didáticos caia. Grande parte deles é de literatura e já deveria compor o acervo das escolas A língua inglesa tem a expressão "food for thought", perfeita para definir fatos ou argumentos que, de repente, aparecem e passam a demandar uma análise racional que se alimente deles mesmos para tentar digeri-los. De certo modo, uma pesquisa recente desempenha agora esse papel no mercado editorial brasileiro. É de responsabilidade da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), do Sindicato Nacional de Editores de Livros e da Câmara Brasileira do Livro. Ela aponta queda de 7,36% na venda de livros no país, de 2011 para 2012. Esse foi o pior desempenho da década: o faturamento do setor cresceu abaixo da inflação, mesmo aumentando de R$ 4,8 bilhões para R$ 5 bilhões (dos quais, as publicações digitais representam 0,1%; são desprezíveis). Já que trouxeram esse prato à mesa, o pensamento quer prová-lo. Degustar seus ingredientes e temperos. Não tem de concordar com quem nele só percebe sabores ácidos ou amargos. Números exigem vagar e combinações para que possam ser apreciados. Há que ir além da primeira sensação. O número de exemplares vendidos caiu os já citados 7,36%. Mas a derrocada não foi geral. O segmento que engloba ficção e não ficção (ensaios, reportagens, biografia) subiu 7,65%. O de obras técnicas e científicas aumentou 1,16%. O que despencou mesmo foi a venda de livros religiosos e de autoajuda: 19,18%. É um dado interessante, que faz pensar. Será que indica algum refluxo do setor até aqui em
franca expansão? E por quê? Saturação? Migração desse tipo de conteúdo para outros canais? Só o tempo e a continuidade na análise indicarão a tendência, embora a recente viagem do papa ao Brasil deva influir no surgimento de uma nova onda de publicações e consumo nessa área, o que repercutirá na série. Outro número que chama a atenção é o que constata a queda de 11,09% na venda de didáticos. É mais fácil de entender esse caso se os dados forem contextualizados. Essas pesquisas costumam misturar dois canais e com isso mascaram a realidade, ao somar livros de literatura infantojuvenil com didáticos. Faz parte do paternalismo vigente, num quadro mais amplo que se repete nos catálogos de editoras, de olho nos termos de editais para compra governamental. Assim, qualquer obra literária para crianças e jovens, passível de ser adotada por meio de aquisição oficial, vira didática --coisa que não acontece quando se trata da literatura para adultos, mesmo que comprada e distribuída pelo governo. É uma distorção a se levar em conta. As compras governamentais contemplam alternadamente diferentes séries e segmentos escolares. Quando se destinam a faixas com mais alunos, as quantidades aumentam. Diminuem se o público-alvo é menor. É uma oscilação cíclica, a ser esperada. Além disso, em termos ideais, seria até desejável que esse número pudesse diminuir, na medida em que grande parte desses livros são de literatura e se destinam a formar e abastecer bibliotecas escolares. Ao fim de alguns anos de aquisições, as bibliotecas tenderiam a já ter um acervo básico. As compras, então, se destinariam a atualização e reposição, necessariamente menores. Afinal, esses programas existem desde o governo de Fernando Henrique Cardoso. Cobrar números crescentes equivale a querer que o programa Bolsa Família só aumente, sem porta de saída. Seja como for, é bom ter essas pesquisas. Mastigadas e transformadas em palavras, podem garantir pensamentos bem nutridos sobre o livro no Brasil. ANA MARIA MACHADO, 71, escritora, é presidente da Academia Brasileira de Letras Executivo afirma que Serra sugeriu acordo em licitação E-mail de diretor da Siemens relata suposta conversa com tucano em 2008 Ex-governador nega ter mantido contato com empresas e afirma que concorrência da CPTM em sua gestão foi limpa FLÁVIO FERREIRA DE SÃO PAULO CATIA SEABRA JULIANNA SOFIA DE BRASÍLIA
O ex-governador de São Paulo José Serra (PSDB) sugeriu à multinacional alemã Siemens um acordo em 2008 para evitar que uma disputa empresarial travasse uma licitação da CPTM, de acordo com um e-mail enviado por um executivo da Siemens a seus superiores na época. A mensagem relata uma conversa que um diretor da Siemens, Nelson Branco Marchetti, diz ter mantido com Serra e seu secretário de Transportes Metropolitanos, José Luiz Portella, durante congresso do setor ferroviário em Amsterdã, na Holanda. Na época, a Siemens disputava com a espanhola CAF uma licitação milionária aberta pela CPTM para aquisição de 40 novos trens, e ameaçava questionar na Justiça o resultado da concorrência se não saísse vitoriosa. A Siemens apresentou a segunda melhor proposta da licitação, mas esperava ficar com o contrato se conseguisse desqualificar a rival espanhola, que apresentara a proposta com preço mais baixo. De acordo com a mensagem do executivo da Siemens, Serra avisou que a licitação seria cancelada se a CAF fosse desqualificada, mas disse que ele e Portella "considerariam" outras soluções para evitar que a disputa empresarial provocasse atraso na entrega dos trens. Segundo o e-mail, uma das saídas discutidas seria a CAF dividir a encomenda com a Siemens, subcontratando a empresa alemã para a execução de 30% do contrato, o equivalente a 12 dos 40 trens previstos. Outra possibilidade seria encomendar à Siemens componentes dos trens. Serra disse à Folha que não se encontrou com executivos das empresas interessadas no contrato da CPTM e afirmou que a licitação foi limpa, com vitória da empresa que ofereceu menor preço. O ex-secretário Portella disse que as acusações são absurdas e que não houve irregularidades na licitação. O e-mail examinado pela Folha faz parte da vasta documentação recolhida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), do Ministério da Justiça, na investigação aberta para examinar a prática de cartel em licitações da CPTM e do Metrô de São Paulo de 1998 a 2008. Os documentos examinados pela Folha não contêm indícios de que Serra tenha cometido irregularidades, mas sugerem que o governo estadual acompanhou de perto as negociações entre a Siemens e suas concorrentes. Em outra mensagem de Marchetti, de setembro de 2007, o executivo diz que o governo paulista "gostaria de ver a Siemens contemplada com pelo menos 1/3 do pacote" da CPTM, em "parceria" com as outras empresas. Os documentos foram entregues ao Cade pela própria Siemens, que fez um acordo com as autoridades brasileiras para colaborar com as investigações e assim evitar as punições previstas pela legislação para a prática de cartel.
Procurado pela Folha, o Cade informou que o caso está sob sigilo e nenhuma informação sobre o assunto poderia ser repassada à imprensa. Na licitação dos trens, as negociações da Siemens com a CAF não deram resultado. A Siemens apresentou recursos administrativos e foi à Justiça contra a rival, mas seus pedidos foram rejeitados. A CAF venceu a licitação e assinou em 2009 o contrato com a CPTM. A empresa espanhola executou o contrato sozinha, sem subcontratar a Siemens ou outras empresas. A francesa Alstom também participou dessa concorrência. De acordo com os documentos entregues pela Siemens, a empresa tinha um acordo com a rival francesa para dividir o contrato se uma das duas vencesse a disputa. Os documentos obtidos pelas autoridades brasileiras mostram também que, mais tarde, ao mesmo tempo em que negociava com a CAF, a Siemens discutiu a possibilidade de uma aliança com outra rival, a coreana Hyundai, contra os espanhóis da CAF. Protestos irão influenciar 2ª fase do mensalão, dizem professores Debate na Folha sobre julgamento no STF teve lançamento de livro DE SÃO PAULO Um debate realizado ontem no auditório da Folha, em São Paulo, discutiu a segunda fase do processo do mensalão, que deve começar no STF (Supremo Tribunal Federal) na quarta-feira. Participaram Joaquim Falcão, professor de direito constitucional da FGV Direito Rio, Pierpaolo Bottini, docente de direito penal da USP, e Pablo Cerdeira e Thiago Bottino, também professores da FGV. O debate foi mediado pelo colunista Fernando Rodrigues. "O grande choque do mensalão é a defesa da moralidade dentro do processo legal", disse Joaquim Falcão. Ele e os demais concordaram que a segunda fase "se insere em novos tempos", num momento de crescente desconforto da população com a corrupção e cobranças por punições. Sobre o debate em torno dos embargos infringentes, recursos que poderão obrigar o STF a julgar novamente questões controversas, que dividiram o plenário no julgamento, Thiago Bottino afirmou que, "na dúvida, sempre se deve decidir a favor do réu" --ou seja, que a corte deve analisar todos os recursos. Mesma opinião de Pierpaolo Bottini: "O acórdão do processo tem mais de 8.000 páginas, certamente há divergências e contradições num documento tão grande". Para Falcão, o "fator tempo será determinante" para a análise dos recursos, a partir da próxima semana. Na primeira parte do julgamento, concluída no ano passado, 25 réus foram condenados no maior e mais longo processo da história do STF.
Após o debate, foi lançado o livro "Mensalão - Diário de um Julgamento", organizado por Falcão. Dividida em 16 capítulos, a obra reúne artigos da equipe montada pela FGV Direito Rio para acompanhar o julgamento --entre professores, pesquisadores e alunos. As análises, em sua maioria, saíram antes na imprensa, inclusive na Folha. Gurgel envia ao TSE parecer favorável à cassação de Roseana Procurador-geral da República diz que governadora do Maranhão usou convênios para vencer eleição de 2010 Processo foi movido por adversário da família Sarney no Estado; parecer sobre o caso será submetido à corte DE BRASÍLIA O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, enviou parecer ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) favorável à cassação da governadora Roseana Sarney (PMDB-MA), e de seu vice, Washington Luiz Oliveira (PT). Eles respondem a processo movido pelo ex-governador José Reinaldo Tavares, que os acusa de abuso de poder político e econômico nas eleições de 2010. No parecer, Gurgel diz que Roseana intensificou a assinatura de convênios e a transferência de recursos a municípios no primeiro semestre daquele ano. Disse ainda que somente nos três dias que antecederam a convenção partidária que a escolheu como candidata ao governo foram firmados 670 convênios que prevendo a liberação de R$ 165 milhões. "Quase todos os convênios e transferências aos municípios, no ano de 2010, foram realizados no mês de junho. Essa ação tinha objetivo claro e imediato: interferir no processo eleitoral em curso e beneficiar as candidaturas dos recorridos, dando a eles condições diversas dos demais candidatos", disse Gurgel. Devido ao grande número de transferências em junho, Gurgel disse que "pode-se afirmar com segurança" que as eleições foram comprometidas por abuso de poder político e econômico de Roseana. "Pelo elevado número de convênios assinados pelo agente público e o montante dos recursos financeiros transferidos a dezenas de municípios, em período tão curto do processo eleitoral, pode-se afirmar com segurança que houve abuso do poder econômico e político apto a comprometer a legitimidade da eleição e o equilíbrio da disputa. OUTRO LADO Em nota, o governo do Maranhão disse que a governadora ainda não conhece o teor do parecer pois está em São Paulo acompanhando seu pai, José Sarney, internado no Hospital Sírio-Libanês. Com o envio do parecer de Gurgel ao TSE, o processo volta a tramitar na Corte e a ministra Luciana Lóssio, relatora do caso, pode redigir seu voto.
Não há, porém, prazo para que ela conclua sua manifestação e peça a inclusão da ação na pauta do plenário. JANIO DE FREITAS Provas de faltas Explicação mais difundida para a corrupção graúda, impunidade também tem a ver com inquéritos Em uma de suas primeiras providências, a força-tarefa de promotores de São Paulo, criada para investigar ilegalidades em obras e compras do metrô paulistano, deixa à mostra uma das causas mais graves da corrupção nas concorrências e contratos públicos municipais, estaduais e federais. Os dez promotores da força-tarefa vão ocupar-se de 45 inquéritos, número por si mesmo indicativo de um estado pantanoso na área de licitações, preços, reajustes e compras. A gravidade é ainda maior, porém. Dos 45 inquéritos, 15, ou um terço, são inquéritos que se desarquivam para submetê-los a exame rigoroso --"uma devassa", foi dito. Se houve tais inquéritos, não se suporia, agora, que se instaurassem sem estar justificados por indícios, denúncias ou suspeitas, cada qual com o seu motivo. Mas só com a formação da força-tarefa se pensa em investigá-los a fundo. A "falta de provas" que, em geral, foi invocada para arquivá-los está sujeita, portanto, a dúvidas, ou descrenças mesmo, no próprio Ministério Público. Em lugar das conclusões, as interrogações ou as reticências. Esse é o final dado à grande maioria, pode-se dizer à quase totalidade dos inquéritos instaurados nos Ministérios Públicos sobre corrupção e ilegalidades várias nas obras públicas. Escandalosos ou poupados do escândalo por algum tipo de gentil complacência, podemos lembrar-nos de fatos escabrosos da corrupção ainda que distantes no tempo e no espaço. Mas será inutilmente exaustiva a tentativa de lembrar algum efeito negativo para os agentes de tal corrupção. A menos que sejam negócio e réu chinfrins, como a punida construtora Sidarta. Ainda há pouco, com a Delta e seus controladores, protagonistas no caso Carlinhos Cachoeira, mais uma vez ficou evidente que nem precisa ser grande coisa para atravessar incólume os escândalos. Há mais do que as conclusões que não concluem. Há também as inconclusões dos inquéritos. Se o Conselho Nacional do Ministério Público se interessasse por saber onde estão e quantos são os inquéritos paralisados ou arrastando-se, sobre casos de corrupção em obras públicas pelo país afora, poderia começar por São Paulo mesmo. Sem precisar sair do assunto de obras e compras do metrô e da CPTM que voltam a ser escândalo. A impunidade é a explicação mais difundida no Brasil para a corrupção graúda. Impunidade tem a ver com inquéritos, não só julgamentos. PS: Para confirmar a regra, a exceção: o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto está preso e seu parceiro, o empresário Luiz Estevão, solto, briga com cobranças judiciais
multimilionárias. Mas o superfaturamento e os desvios na obra do Tribunal de Justiça Trabalhista de São Paulo caíram, excepcionalmente, em mãos de três mosqueteiras da Procuradoria da República: Maria Luísa Carvalho, Isabel Groba e Janice Ascari. Após asilo, Obama cancela visita a Putin Americano desiste de encontro após Rússia autorizar que delator de programas de espionagem fique no país Reunião ocorreria em setembro, antes da cúpula do G20; Obama, porém, mantém sua agenda na conferência RAUL JUSTE LORES DE WASHINGTON Uma semana após a Rússia conceder asilo a Edward Snowden, a Casa Branca anunciou ontem que o presidente Obama não vai mais se encontrar com o colega Vladimir Putin em Moscou, às vésperas da próxima cúpula do G20 em São Petersburgo, em setembro. É a primeira reação institucional à decisão russa de dar asilo a Snowden, que revelou a existência de programas de espionagem da americana NSA (Agência de Segurança Nacional) para o monitoramento de dados telefônicos e de internet mundo afora. No comunicado, a decisão é atribuída à falta de "progresso suficiente na agenda bilateral" para que uma reunião entre os líderes ocorra. A ida de Obama à cúpula do G20, onde temas econômicos devem predominar, foi mantida. Em 17 de junho, dias antes de Snowden chegar a Moscou, Obama e Putin se encontraram na Irlanda do Norte, durante a conferência do G8. A foto dos dois, aparentemente emburrados e olhando em direções opostas, virou símbolo do mal-estar que já existia entre os países. As principais desavenças então eram sobre o conflito na Síria, as sanções ao Irã e a não proliferação de armamentos. "Acreditamos que seria mais construtivo adiar o encontro até que tenhamos mais resultados na agenda compartilhada", escreveu o porta-voz da Casa Branca, Jay Carney. Um assessor do presidente Putin, Yuri Ushakov, disse que Obama ainda é bem-vindo à Rússia, mas que "os Estados Unidos ainda não estão preparados para construir relações em pé de igualdade". Ele criticou o governo americano por cobrar a extradição sem ter um acordo bilateral. "Por anos, os americanos evitaram assinar esse acordo e nós tivemos diversas negativas em nossas solicitações de extraditar pessoas que cometeram crimes em território russo por não existir esse tipo de pacto", disse. Em uma conversa no programa de entrevistas de Jay Leno, na rede NBC, Obama falou que se sentia frustrado com os "desafios" que tinha em sua relação com a Rússia. "Tem havido momentos em que escorregamos de volta na mentalidade da Guerra Fria", disse Obama. "O que eu digo consistentemente a eles e a Putin é que isso é passado e
que precisamos pensar sobre o futuro. Não há razão para que não cooperemos mais efetivamente". O mal-estar entre os países já havia enterrado outras reuniões antes. No ano passado, Putin cancelou uma cúpula sobre temas econômicos com Obama em Camp David. Já o americano não foi a Vladivostok, no ano passado, para o encontro dos países da Ásia-Pacífico, alegando problemas de agenda em sua campanha para a reeleição. ANÁLISE Alerta promove reavaliação de influência de líder da Al Qaeda MARK MAZZETTI ERIC SCHMITT DO "NEW YORK TIMES" O mundo ouviu muito, nos últimos dias, sobre um severo médico egípcio que se acredita estar escondido em algum lugar do Paquistão. Ayman al-Zawahri, 62, o médico vertido em líder terrorista que assumiu o comando da Al Qaeda depois que Osama bin Laden foi morto em 2011, protestou, em vídeo, contra o tratamento dos prisioneiros de Guantánamo. Dias mais tarde, criticou a derrubada do presidente egípcio Mohammed Mursi como ato de "cruzados". Mas foi outra comunicação de Zawahri --as instruções ao líder da afiliada da Al Qaeda no Iêmen para um atentado-- que levaram analistas, no governo e fora dele, a reavaliar a possibilidade de que ele talvez tenha mais controle do que imaginavam sobre a rede que ajudou a fundar. Nas mensagens, Zawahri teria também promovido o aliado iemenita na organização. Alguns analistas veem aí os últimos e desesperados atos de um líder que já não exerce a mesma influência do passado. Para outros, Zawahri está sabiamente fazendo planos para o futuro caso morra (por causas naturais ou outros motivos). Uma visão é a de que Zawahri, homem que não conta nem com o carisma nem com a capacidade administrativa e a influência mundial de Bin Laden, agiu com inteligência ao ampliar a autoridade do comando iemenita, a mais forte da rede. Desde que assumiu o comando, Zawahri vem encontrando dificuldades para administrar os grupos díspares. Seu mais recente fracasso, dizem especialistas, foi não ter conseguido evitar o rompimento entre jihadistas sírios e divisão da Al Qaeda no Iraque, o que gerou batalha opondo os mais efetivos combatentes na guerra contra o regime do presidente sírio Bashar Assad. FOCO Com impressora 3D, canadense fabrica rifle capaz de dar 14 tiros ALEXANDRE ORRICO DE SÃO PAULO
Um canadense que se identifica na internet apenas como Matthew apresentou, em um canal no YouTube, um rifle produzido por uma impressora 3D. Feita com pecinhas de ABS, material termoplástico rígido, leve e resistente a impactos, a arma é capaz de fazer até 14 disparos antes de rachar. As balas usadas são normais, do rifle Winchester. Matthew disse à Folha que o desenho da arma foi inspirado na Liberator, uma pistola feita por ele também na impressora 3D. "Modifiquei algumas partes para que o Grizzly [nome dado ao rifle] ficasse mais parecido com uma arma convencional." Ele não quis revelar o sobrenome ou a idade. Disse apenas que faz ferramentas para a construção civil --no trabalho, tem acesso à impressora 3D. Armas como o Grizzly causam polêmica pelo fato de não serem flagradas por detectores de metal. Há também questionamentos sobre o que significa dar potencialmente acesso a armas de fogo para qualquer pessoa --especialmente nos EUA, onde vários massacres a tiros foram registrados nos últimos anos. Matthew disse que deixará disponível na web os arquivos necessários para quem quiser imprimir o Grizzly. O arquivo da Liberator, construída em maio, foi baixado mais de 100 mil vezes em três dias, até sair do ar por ordem do Departamento de Estado dos EUA. Segundo o órgão, a distribuição violava a lei de importação e exportação de armas. No Brasil, quem decidir fazer pistolas 3D descumprirá o Estatuto do Desarmamento, que proíbe a fabricação de armas no país. A pena é de quatro a oito anos de prisão. CLÓVIS ROSSI Obrigado a torcer por Bezos Que ele seja capaz de inventar como vender notícias on-line sem sacrificar princípios Não conheço um só jornalista que não gostaria de trabalhar em um jornal capaz de derrubar o homem mais poderoso do mundo, o presidente dos Estados Unidos, no caso, Richard Nixon. É fácil imaginar, por isso, o tremendo impacto da notícia de que o jornal que perpetrou tal façanha, o "Washington Post", fora vendido. Minha primeira reação foi a de supor que se tratava de mais um grande passo no rumo tão alardeado do fim do jornal em papel. Afinal, só se vende uma marca tão importante se ela está à beira da falência. E, se até o "WP" pode falir, todas as demais publicações em papel também podem. O "WP" podia não estar à beira da falência, mas vinha dando prejuízo há sete anos consecutivos. A família proprietária disse que o jornal poderia sobreviver mesmo que não fosse vendido, mas seria uma sobrevivência penosa.
A segunda reação foi tentar ligar o nome do comprador à sua atividade, para saber se não era um desses homens de negócio para quem notícias são meras commodities ou salsichas, sem alma ou história. No Brasil, os jornalistas temos amargas experiências com empresários assim, que levaram ao fechamento de publicações com alma e história. Saber que o comprador se chama Jeff Bezos e é o dono da Amazon trouxe um segundo choque: como lembrou anteontem Carlos Eduardo Lins da Silva, ele é o homem que levou ao fechamento de incontáveis livrarias, incapazes de competir com o modelo da Amazon. Fechou o círculo: a venda do "WP" mexe com duas paixões antigas, jornais em papel e frequentar as velhas e boas livrarias, elas também templos do papel. Por isso mesmo, sou obrigado a torcer por Bezos, por mais má vontade que ele tenha despertado inicialmente em mim. Explico: ninguém ainda inventou uma maneira de ganhar dinheiro com jornalismo online. Há vários ensaios, mais ou menos bem-sucedidos, mas nada que se equipare às fontes de ingresso com jornal-papel, por sua vez minguantes. Essa é a crise existencial do jornalismo. Ou, como prefere Emily Bell, em artigo no "Guardian", "as notícias não são mais a indústria que um dia foram e já nem sequer são uma indústria. São um bem cultural cujo formato e forma de entrega têm que ser reinventados para um conjunto diferentes de necessidades e capacidades do consumidor". Muito bem. Bezos reinventou a venda de livros. Tem, então, credenciais para reinventar a venda de notícia. A julgar pelo pouco que disse sobre o tema, não será no papel, que ele crê que morrerá em duas décadas, mas em tablets e smartphones. Por mais que tenha uma vida no papel (50 anos neste ano), estou preparado para o jornalismo em novos modos de entrega. O importante é preservar a qualidade, em qualquer meio. Ou, voltando a Bell, a Bezos, vindo de um universo diferente, "lhe agradará estar em um mundo no qual o maior indicador de êxito é irritar, prejudicar ou, no melhor dos casos, derrubar um presidente e outros funcionários públicos?". Essa é a pergunta-chave. Assalto a trem pagador ainda gera lucros para a quadrilha Após 50 anos e com apenas quatro autores vivos, 'crime do século' mantém fascínio Ação, que contou com 16 participantes, é tema de novos livros, documentários e filmes de ficção no Reino Unido BERNARDO MELLO FRANCO DE LONDRES
Depois de 50 anos, o Reino Unido continua fascinado por uma ação de bandidos que desafiou a polícia e o governo britânico: o assalto ao trem pagador, também conhecido como "crime do século". A ação durou pouco mais de uma hora, mas até hoje é alvo de debates acalorados e virou tema de uma nova fornada de livros, documentários e filmes de ficção. Dos 17 participantes do roubo, só quatro sobrevivem. Ao menos dois deles, Ronald Biggs e Douglas Gordon Goody, ainda faturam com as memórias do crime lendário. Pesquisadores e integrantes da quadrilha ainda divergem sobre detalhes da ação. Mas quase todos concordam que os tabloides britânicos turbinaram o mito e valorizaram o papel de bandidos e mocinhos para vender mais. Na madrugada de 8 de agosto de 1963, uma gangue liderada por Bruce Reynolds parou o trem que viajava de Glasgow para Londres carregado de dinheiro vivo após um feriado bancário. Os ladrões adulteraram um sinal para fazer o trem parar, golpearam o piloto Jack Mills com uma barra de ferro e tomaram o segundo vagão, que transportava os valores. Depois de amarrar os funcionários dos correios a bordo, eles arrastaram parte da composição por mais 1,6 km até o local da fuga. De mão em mão, os assaltantes levaram £ 2,6 milhões em dinheiro vivo ""hoje equivalentes a £46 milhões ou R$ 158 milhões, a serem repartidos igualmente. A lenda só começava ali. Um julgamento draconiano, que condenou os integrantes da quadrilha a 30 anos de prisão, e uma série de fugas espetaculares aumentaram o interesse popular na história. Aos poucos, os bandidos foram se transformando em heróis aos olhos do público britânico, que vibravam a cada aparição na mídia de figuras como Ronald Biggs, que fugiu para o Brasil. "O assalto aconteceu num ano em que o mundo estava de olho no Reino Unido. Em 1963, os Beatles estouraram, os Rolling Stones lançaram o primeiro disco e a revolução sexual ganhou as ruas", disse à Folha Christopher Pickard, autor do novo livro "The Great Train Robbery". A BBC prepara um filme com atores, em duas partes, a ser lançado até o fim do ano. Em outra produção, um documentário, o ex-ladrão Gordon Goody promete revelar um dos mistérios que sobrevivem até hoje: a identidade do informante "The Ulsterman", que possibilitou a ação. Segundo os pesquisadores Nick Russell-Pavier e Stewart Richards, o assalto já deu origem a 27 livros, 17 documentários de TV e quatro longas-metragens. Em março deste ano, o funeral de Reynolds virou uma espécie de celebração do crime quase perfeito.
"Se me perguntarem se lamento ter participado do roubo, minha resposta é não", disse Biggs semana passada. "Eu diria mais: estou orgulhoso de ter feito parte do grupo. Eu estava lá naquela noite de agosto, e isso é tudo que conta. Sou uma das poucas testemunhas, vivas ou mortas, do crime do século." Delegado afirma que só menino é suspeito; coronel da PM questiona Chefe do setor de homicídios diz não haver outro investigado pelas mortes além de garoto de 13 anos Segundo comandante de batalhão, vítima denunciou PMs por roubos; polícia acha 3 armas na casa e luva DE SÃO PAULO O delegado do DHPP (departamento de homicídios) Itagiba Franco disse ontem que estão praticamente descartados outros suspeitos para a morte de cinco pessoas da mesma família, na zona norte de São Paulo. Para ele, informações colhidas ontem reforçam a hipótese de Marcelo Eduardo Bovo Pesseghini, 13, ter matado sozinho seu pai e sua mãe, que eram PMs, a avó e uma tiaavó dentro de casa --e se suicidado depois. Luis Marcelo Pesseghini, 40, era sargento da Rota. A mulher dele, Andreia Pesseghini, 36, era cabo do 18º Batalhão. As outras vítimas moravam na casa nos fundos: a mãe e uma tia de Andreia, de 65 e 55 anos. A certeza do delegado foi confrontada ontem por uma declaração de um coronel da PM que era chefe de Andreia. Comandante do 18º Batalhão, Wagner Dimas afirmou em entrevista à rádio Bandeirantes que a cabo havia denunciado colegas policiais por envolvimento com roubo a caixas eletrônicos. Ele disse que não estava "confiante" que o menino de 13 anos tivesse cometido o crime. O coronel declarou não descartar a possibilidade de as mortes terem relação com denúncias, embora Andreia não tenha relatado ameaças. "Respeitamos a família [que duvida da tese da Polícia Civil], mas vamos trabalhar e, se comprovarmos que foi o menino, paciência", disse o delegado Itagiba Franco. Ontem, policiais acharam três armas que estavam guardadas na sala da casa e que pertenceriam aos PMs. "Se alguém de fora da família tivesse entrado, teria levado as armas", disse o delegado. Uma luva cirúrgica foi achada no carro da família. Para a polícia, o garoto utilizou o veículo para ir à escola após matar todos. "Ele [Marcelo] usou o carro, dormiu nele e pode ter usado a luva."
O delegado confirmou que havia sangue na camiseta do menino, "mas não havia nada no chão, nem pegadas". O delegado disse que a família já estava morta quando Marcelo dormia no carro. "Você acha que os pais deixariam a criança passar a noite fora? Ele (Marcelo) sabia que eles estavam mortos. Evidente." Franco afirmou desconhecer as informações do coronel da PM. O comando da corporação afirmou que "não houve denúncia na Corregedoria ou no Batalhão". As declarações de Wagner Dimas serão apuradas. Filho de PM, garoto de 10 anos se mata com a arma do pai DE SÃO PAULO Filho de um policial militar, um menino de 10 anos se matou com um tiro na cabeça às 21h de anteontem, na Freguesia do Ó (zona norte de SP), após discutir com as irmãs. Ele usou a arma que estava no bolso da jaqueta do pai, que trabalha no setor administrativo da PM. O policial de 41 anos disse que sempre guardou a arma dentro do armário do quarto. Como a família iria se mudar em breve, ele estava desmontado, e a pistola ficou em uma jaqueta. O menino foi morar com o pai e a madrasta depois que a mãe dele morreu, há cinco meses. O boletim de ocorrência afirma que, desde então, a criança "tinha comportamento rebelde e passava por atendimento psiquiátrico". Segundo a polícia, o menino brigou com as irmãs --filhas da madrasta-- e telefonou para o pai, que chegou em casa e repreendeu as crianças. O policial disse que o menino subiu para tomar banho e disparou o tiro sozinho, dentro do quarto. Arma em casa amplia chance de jovem se matar, diz psiquiatra Estudos mostram que risco cresce 30 vezes e é maior do que com brigas familiares, diz Daniel de Barros, do HC Para ele, caso do garoto Marcelo, 13, suspeito de matar a família, 'é muito raro e merece muita cautela' CLÁUDIA COLLUCCI DE SÃO PAULO A presença de armas em casa aumenta em 30 vezes as chances de um adolescente se matar. É um fator de risco muito maior do que brigas familiares ou outros transtornos psiquiátricos, apontam estudos internacionais. Para o psiquiatra Daniel de Barros, 36, chefe do núcleo forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, esse é o principal gatilho que pode estar por trás dos casos de dois garotos, filhos de policiais militares.
Embora sejam casos bem distintos, ele está convencido de que o acesso fácil às armas causou as duas tragédias. Folha - Em 24 horas, vimos um menino de 13 anos suspeito de matar a família e se suicidar e a criança que brigou com as irmãs e se matou. O que há em comum nesses casos? Daniel Barros - Para mim, o fator central é a existência de armas em casa. Os estudos mostram que isso aumenta em 30 vezes as chances de um adolescente se matar. É mais do que o jovem ter depressão. Se não houvesse essa facilidade a meios letais, o desfecho poderia ser diferente. O que fazer quando a arma faz parte do trabalho dos pais? Criança, adolescente não pode ter acesso nenhum, tem que esconder, trancar a arma. É comum passar pela cabeça das pessoas algo do tipo: E o que acontece se eu morrer?' O adolescente é impulsivo. Se não tem acesso fácil, isso passa pela cabeça e ele esquece. Se tem fácil, isso potencializa as chances de fazer besteira. O que deixa as pessoas perplexas é a falta de sinais. No caso do Marcelo, era um garoto sem histórico de violência. Esse caso é bastante atípico, muito raro e merece muita cautela. Parricídios [morte dos pais] normalmente envolvem conflitos, violência ou interesse financeiro. É muito raro a pessoa se matar depois. Os casos de familicídio são mais raros ainda, e o mais comum não é o filho ser o autor, mas o homem da casa. Isso e o fato de não haver sinais anteriores que justificassem a tragédia recomendam muita cautela. Mesmo havendo todos os indícios, é preciso ter certeza de que foi ele. E se houver essa certeza? O que mais poderia explicar? É pura especulação, mas ele tinha uma doença crônica, progressiva e fatal. Isso é fator de risco para o suicídio, muito aumentado pelo fato de ter acesso a várias armas. Pode ser que ele tenha pensado em acabar com o sofrimento dele e matar a família para poupá-la de um sofrimento maior. Essa hipótese, por mais absurda que seja, tem uma certa coerência. Há estudos que mostram alto índice de estresse e de depressão entre os PMs. Isso não pode estar afetando os filhos? Não conheço estudos sobre isso, mas sabemos que as emoções são contagiosas. Em ambientes deprimidos, estressados, todo mundo fica mais deprimido, estressado. Policiais vivem uma situação muito difícil, não só com os bandidos, mas com a sociedade. A população quer que eles intervenham, mas não podem agir com violência. Eles vivem no fio da navalha. Sim, esse clima tenso, estressado, pode contaminar o ambiente onde vivem. Mas pensar que foi isso ou que foi o game violento que levou o menino a uma coisa dessas é um salto quântico, é muito reducionismo. Garoto manteve jeito 'carinhoso', afirma escola DE SÃO PAULO DO ENVIADO A RIO CLARO (SP)
A diretora do colégio Stella Rodrigues, onde estudava Marcelo Pesseghini, 13, disse que ele se comportou "normalmente" na segunda, em seu último dia de aula, participando das atividades "com o mesmo jeitinho carinhoso". "Não deu nenhuma mostra de estar em choque", afirmou Maristela Rodrigues, por meio de um comunicado oficial. Para a polícia, o menino já havia matado a família quando foi à escola --tendo se suicidado depois. Segundo o colégio, a mãe do garoto, Andreia Pesseghini, 36, disse, ao matriculá-lo em 2006, que o filho "talvez não tivesse expectativa de vida além dos 18 anos" por sofrer de uma doença degenerativa (fibrose cística). Depois do crime, a escola decidiu suspender as aulas nesta semana e retornará as atividades na próxima segunda-feira, quando alunos, professores e funcionários também passarão a ter uma orientação psicológica. A diretora do Stella Rodrigues disse ainda que o menino de 13 anos tinha "bom rendimento", era "dócil, alegre e com boas relações" no colégio --e que seus pais eram "participativos". FAMÍLIA A família da cabo Andreia Pesseghini, mãe do menino, tem forte ligação com a PM e já havia passado por uma tragédia pessoal: o pai dela, um bombeiro aposentado, foi morto em São Paulo durante um assalto enquanto dirigia seu táxi. O episódio foi relatado por policiais de Rio Claro (a 190 km de SP), onde mora o tenente da PM César Bovo, irmão de Andreia. PASQUALE CIPRO NETO 'Engate' é 'o ato ou efeito de...' No Brasil, o engate não engata; é a síntese perfeita da estupidez e do egoísmo que reinam no nosso país Há algum tempo, o ministro da Justiça da vez disse algo como "a assunção do comando". O que vem a ser "assunção"? Nada mais do que "o ato ou o efeito de assumir", como se vê em qualquer dicionário. O ato de "transmitir" é "transmissão", e o de "suspender" é "suspensão". Como o leitor certamente deve ter notado, os três substantivos citados indicam "o ato ou efeito de" e terminam em "ão", mas o que vem antes desse "ão" pode ser "s", "ss" ou "ç". O conhecimento da origem desse tipo de palavra poderia facilitar a vida do usuário da língua na hora de optar entre "ção", "são" e "ssão", mas a leitura constante e o consequente convívio com esses vocábulos já bastam para que a grafia de boa parte deles seja internalizada.
Há outras terminações de substantivos que indicam "o ato ("transferir/transferência"; "escalonar/escalonamento"; "prensar/prensagem").
de"
Nos casos vistos até aqui impera a sufixação, ou seja, o acréscimo (a um verbo) de um sufixo para a formação do substantivo que designa "o ato ou efeito de". Agora eu lhe pergunto, caro leitor: qual é o substantivo que designa "o ato ou efeito de trocar"? E o de "combater"? E o de "avisar"? Vamos lá: "troca", "combate" e "aviso", respectivamente. Nos três casos, não houve sufixação, isto é, não houve o acréscimo de um sufixo ao verbo, o que se nota facilmente pelo fato de o substantivo não "espichar". Na verdade, o substantivo "encolhe". O que temos agora é a "derivação regressiva", processo pelo qual se elimina o sufixo da palavra originária (o verbo) e se acrescenta uma vogal (temática). No caso de "aviso", que é "o ato ou efeito de avisar", elimina-se a terminação "-ar" do verbo "avisar" e se acrescenta a vogal "o" para que se chegue ao substantivo "aviso". Há casos em que se formam dois ou mais substantivos e pelos dois processos -sufixação e derivação regressiva. Um bom exemplo vem de "enlevo", "enlevamento" e "enlevação", que indicam "o ato ou efeito de enlevar" ("provocar arrebatamento, deleite"). Aliás, "deleite", que é "o ato ou efeito de deleitar", equivale a "deleitamento" e "deleitação". Mas voltemos à derivação regressiva, processo pelo qual se formam inúmeros substantivos que designam "o ato ou efeito de". Quer uma listinha? Vamos lá: "abalo", "venda", "ataque", "saque", "beijo", "amparo", "caça" etc. Esses substantivos designam, respectivamente, "o ato ou efeito de abalar, vender, atacar, sacar, beijar, amparar e caçar". Na gíria do português do Brasil, há casos interessantes e criativos de derivação regressiva. Um deles é "amasso", que designa "o ato ou efeito de amassar", cujo significado... É claro que não preciso terminar, certo? Ainda no território das coisas "interessantes" do português do Brasil, pode-se citar o substantivo "engate", que, fruto da genialidade brasileira, designa "o ato ou efeito de NÃO engatar". Sim, de "não engatar", caro leitor. Não me enganei, não. No Brasil, o engate não engata. Síntese perfeita da estupidez e do egoísmo reinantes no país, o engate é usado, com a anuência das nossas LAMENTÁVEIS autoridades (in)competentes, para estragar, causar prejuízos de diversas ordens (inclui-se aí o ambiental) e, sobretudo, para machucar, ferir gravemente e até matar. No Brasil, "engate" é "o ato ou efeito de viver num país pouco inteligente...". Qualquer pessoa que já tenha lido meia linha de um texto sobre resistência dos materiais, sobre física ou sobre ética (nesse caso, refiro-me a algo chamado "egoísmo") sabe do que estou falando. Não preciso explicar. Para bom entendedor, meia palavra basta. Só os gênios de Brasília não sabem disso. O Brasil é mesmo muito criativo. É isso. Apatia corintiana alivia crise do Santos SÉRIE A
Alvo de protesto, time da Vila Belmiro sai em desvantagem, mas joga melhor e empata em 1 a 1 com rival DIEGO IWATA LIMA MARCEL RIZZO ENVIADOS ESPECIAIS A SANTOS O desinteresse corintiano em buscar a vitória somado à instabilidade emocional e técnica do Santos resultou em um empate justo por 1 a 1 ontem à noite na Vila Belmiro. Anestesiado pelos recentes acontecimentos no campo (derrota de 8 a 0 para o Barcelona) e fora dele (demissão de dirigente), o santista estava apático antes do jogo. Os mais de 8.000 torcedores, público inferior às últimas partidas na Vila, nem xingaram os corintianos quando estes subiram ao gramado para o aquecimento. O comportamento mudou ao longo do jogo, quando o Santos mostrou-se melhor. "Hoje, jogamos pelo associado, pelo torcedor, pelos conselheiros e pela honra do Santos", disse o lateral esquerdo Léo, que, de xingado antes do jogo, foi até aplaudido quando substituído. O Corinthians chegou a 18 pontos, interrompeu o embalo e perdeu a chance de se aproximar da ponta. O líder, Cruzeiro, tem 24 pontos. O Santos, com 13, não se distancia das últimas posições. "Tínhamos de ter matado o jogo no primeiro tempo", lamentou o corintiano Ralf. A apatia do torcida santista foi quebrada pelo próprio Corinthians. Ao abrir o placar, aos três minutos de jogo, os visitantes despertaram os brios dos donos da casa. Romarinho bateu escanteio, Danilo desviou e Paulo André, sozinho, fez 1 a 0. Ao seu estilo, o Corinthians recuou após o gol e tentava controlar o jogo com passes curtos e subidas ao ataque apenas em bolas esporádicas. Machucado pelo instável momento político e técnico, ao Santos só restava mesmo tentar reverter o placar. Sem muita organização e com vontade de sobra, a equipe buscava as ações ofensivas, tendo Montillo como principal organizador, mas parava no nervosismo. O time santista passou muito mais tempo que o Corinthians com a bola. Tite voltou para o segundo tempo com Pato no lugar de Guerrero, que pouco pegou na bola. Mas o Santos seguiu melhor. O empate saiu aos dez minutos, em boa bola enfiada por Montillo para a conclusão de Willian José, um dos mais criticados pela torcida. Àquela altura, uma virada santista parecia questão de tempo. Contudo, a euforia logo deu lugar a um conformismo por parte dos dois times, ampliado pelas expulsões de Willian José e Paulo André, após discussão generalizada.
Se com 11 em campo o Corinthians já parecia satisfeito, após as expulsões, o time abdicou de ganhar o jogo. E do lado santista, apesar de haver mais vontade, após tanta turbulência nas últimas semanas, um empate com seu algoz mais recorrente, atual campeão mundial, também não foi mau negócio. PROTESTO Antes do jogo, fora do estádio, o torcedor santista protestou com veemência. Na chegada do ônibus o time, houve xingamentos --latas de cerveja foram arremessadas, sem danos ao veículo. Panfletos distribuídos por torcidas organizadas pediam a saída do presidente Luís Alvaro de Oliveira Ribeiro, de membros do conselho e perguntavam: "Onde está o dinheiro da venda de Neymar?". FOCO Flamengo leva o mesmo gol, do mesmo goleiro, 10 anos depois DE SÃO PAULO Dez anos depois, ele fez de novo. Contra o mesmo rival, nas mesmas circunstâncias, pelo mesmo torneio, de um cruzamento originado do mesmo lado do campo. O goleiro Lauro, da Portuguesa, anotou de cabeça, nos acréscimos, o gol de seu time no empate por 1 a 1 ante o Flamengo ontem, em Brasília. Exatamente dez anos antes, Lauro havia anotado, de cabeça, nos acréscimos, o gol de seu time num empate por 1 a 1 ante o Flamengo. Na ocasião, Lauro defendia a Ponte Preta, que então lutava contra o rebaixamento, como a Portuguesa hoje. "Passou o filme daquele gol na minha cabeça", disse o arqueiro, emocionado, ainda no gramado do estádio Mané Garrincha. "Em 2003, a gente conseguiu escapar do rebaixamento por um ponto. Quem sabe agora consiga de novo", emendou. Depois de salvar a Ponte Preta em 2003, Lauro defendeu o Internacional (com quem tem contrato até hoje), o Cruzeiro e voltou para a Ponte. Está emprestado à Lusa até o final da temporada. O gol de Lauro impediu a sexta derrota da Portuguesa em 12 jogos no Campeonato Brasileiro. O time chegou a 9 pontos, continua em penúltimo lugar na classificação, só à frente do Náutico, que tem uma partida a menos. O Flamengo havia saído em vantagem com um gol de João Paulo, que converteu pênalti sofrido por Hernane.
O empate atrapalhou os planos do Flamengo de se afastar da zona de rebaixamento. O time de Mano Menezes estacionou em 14 pontos e continua incapaz de vencer duas partidas seguidas na competição. JUCA KFOURI Um estádio espetacular O palco corintiano em Itaquera impressiona por fora e faz cair o queixo ao ser visitado por dentro A CASA do Corinthians choca. Comparada aos estádios que foram usados na Copa das Confederações é a de maior personalidade, inconfundível. Se por fora se impõe imponente como, de resto, é comum a quaisquer obras de grande porte, por dentro se distingue pelo primoroso acabamento, com requintes à altura dos melhores centros comerciais de São Paulo. O piso é todo de mármore em preto e branco. Os banheiros, totalmente automatizados, lembram os dos melhores hotéis pelo mundo afora. Os vestiários são um show à parte. O que será usado pelo Corinthians, então, dá vontade de ficar morando nele. O torcedor terá visibilidade 100%, sem nenhum ponto cego para um gramado com grama inglesa inteiramente plantado oito meses antes da inauguração, bem diferente do que se fez pelo país afora, e com a promessa de jamais servir de palco para qualquer outra atividade que não seja jogar futebol. O projeto do arquiteto carioca, e torcedor do Fluminense, Anibal Coutinho, é tão original e funcional que além de redundar num custo final de R$ 855 milhões, bem abaixo, por exemplo, do Mané Garrincha e do Maracanã, com acabamento incomparavelmente superior, permite o acesso dos torcedores com facilidade desconhecida em São Paulo. O vão livre de 170 metros da cobertura, que abrangerá 95% do estádio, será o maior da América Latina, numa impressionante obra de engenharia --e a fachada principal, praticamente concluída, é composta, de fora a fora, pelo maior telão do mundo, de 3.400 metros quadrados. Uma outra fachada, envidraçada, terá o distintivo centralizado, de fazer chorar corintianos de todas as idades. O Corinthians mantém a garantia de que 40% do estádio será popular, com ingressos por volta de R$ 20 aos sócios-torcedores, fala com orgulho do fato de não ter enfrentado greve dos trabalhadores e da segurança dos operários, sem nenhum acidente grave. A manutenção de tudo isso, incluídos, entre outras coisas, um auditório para entrevistas com 400 lugares, além do museu e da sala dos troféus, que sairão do Parque São Jorge, e estacionamentos para mais de 2.500 automóveis, deverá custar, segundo calcula o comandante da obra, Andres Sanchez, mais de R$ 3 milhões por mês.
Mais ou menos o que deverá render cada um dos 35 jogos por ano no estádio, além da renda dos restaurantes, da loja, dos shows e outros eventos que, estima, deverá chegar aos R$ 200 milhões anuais. O maior desafio está na distância de cerca de 20 quilômetros entre a velha casa, o Pacaembu, e Itaquera. Corintiano rico, que pagará pelo pobre, irá? Com o Morumbi, São Paulo não precisava de estádio para a Copa do Mundo. A Fiel não tem nada com isso e agradece o fabuloso presente dado pela covardia dos tucanos. FOCO Time do Amazonas atinge feito que poucos irão ver LUCAS REIS DE MANAUS A maior façanha de um time do Amazonas na Copa do Brasil deverá ser vista por poucos. O centenário Nacional, clube mais popular e o primeiro do Estado a avançar às oitavas de final do torneio, vai enfrentar o Vasco diante de apenas 5.000 torcedores. Reflexo da Copa do Mundo: as obras em andamento para o Mundial de 2014 tiraram de circulação os principais estádios da cidade. O Vivaldão foi abaixo para virar a suntuosa Arena Amazônia, para 44 mil pessoas, com 70% das obras concluídas. O estádio da Colina passa por reforma e servirá de centro de treinamento para as seleções visitantes. Por isso, o Nacional vai receber o Vasco, no dia 20, no jogo de ida das oitavas, no acanhado estádio Roberto Simonsen, cuja capacidade é de pouco mais de 5.000 pessoas, e que pertence ao Sesi. "Recebemos proposta de uma empresa para levar o jogo para fora. Mas achamos justo que a partida fosse em Manaus, mesmo que para poucos", afirma o presidente do clube, Mário Cortez. Para alcançar o feito inédito, o Nacional orgulha-se de ter eliminado dois times da Série A do Brasileiro, Coritiba e Ponte Preta, com jogos disputados no estádio do Sesi. Na Série D, porém, faz campanha ruim --é o penúltimo colocado do seu grupo. "Se vencemos Coritiba e Ponte, podemos também derrotar o Vasco", diz o cartola, que estuda a instalação de arquibancada móvel para 1.500 pessoas. "A torcida do Vasco aqui é grande e terá sua cota de bilhetes. Mas temos que aumentar os preços ou não conseguimos fazer renda." A CBF não vê problemas no estádio do Sesi, mas lamenta o público pequeno. "O regulamento prevê capacidade mínima exigida [15 mil] apenas para semifinal e final. Mas eles vão ver que vale a pena jogar em outro lugar pela questão financeira", disse Virgílio Elísio, diretor de competições da entidade. Que sentimento explica o 'salto' de Machado?
Inveja do sucesso de Eça de Queiroz teria estimulado a criação de 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', segundo professor Grande fase do escritor brasileiro começa com a trama do 'defunto autor', após críticas duras ao 'Primo Basílio' MARCO RODRIGO ALMEIDA DE SÃO PAULO Uma certa mulher de olhos oblíquos e dissimulados não é o único mistério da obra de Machado de Assis (1839-1908). Muita página já foi gasta com a dúvida torturante: Capitu traiu ou não Bentinho, o ciumento narrador de "Dom Casmurro" (1899)? Mas um outro dilema, ainda mais antigo e, aparentemente, tão insolúvel quanto, atormenta alguns professores e pesquisadores: o que explica o salto abissal de qualidade de Machado a partir de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", em 1880? João Cezar de Castro Rocha, crítico e professor de literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, dedicou-se a essa questão, com lupas de detetive, na última década. O resultado está no livro "Machado de Assis: Por Uma Poética da Emulação". O professor argumenta que o pulo do gato que propiciou a passagem do "Machadinho" do início da carreira ao "Machadão", nome maior da literatura brasileira, teve origem na rivalidade com o português Eça de Queiroz (1845-1900). Tudo teria começado em fevereiro de 1878, quando "O Primo Basílio", de Eça, foi publicado no Brasil. A relação adúltera de Luísa com o primo e as críticas demolidoras aos costumes da burguesia de Lisboa escandalizaram leitores dos dois continentes. Machado, em dois artigos publicados em abril do mesmo ano, fez severas restrições à trama. Apontou falhas estruturais, condenou a inconsistência psicológica de Luísa e descreveu a relação entre os primos como "um incidente erótico, sem relevo, repugnante, vulgar". "A análise de Machado foi considerada um dos pontos altos de seu exercício crítico, mas é esteticamente tradicional e moralmente conservadora", diz Castro Rocha. Quando publicou os dois ensaios sobre Eça, Machado era autor de quatro romances ("Ressurreição", "A Mão e a Luva", "Helena" e "Iaiá Garcia"), "corretos, regulares e medíocres", na visão do professor. "São histórias de corte tradicional, em que todos os elementos são esclarecidos pelo narrador." Mas o furação Eça apareceu no meio do caminho do comedido escritor brasileiro. Para Castro Rocha, a consagração de um escritor mais moço e que também escrevia em português agudizou a insatisfação de Machado com seus próprios romances e o levou a uma reformulação radical.
Em dezembro de 1878, seriamente enfermo, o "bruxo do Cosme Velho" partiu para uma temporada em Nova Friburgo. Voltou de lá, três meses depois, com o primeiro esboço de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", furacão ainda mais avassalador que o de Eça. A narrativa do "defunto autor", irônica, fragmentária, inventiva, foi um divisor de águas na literatura nacional e inaugurou a grande fase do autor nos contos e romances ("Quincas Borba", "Dom Casmurro"). A chave para essa reinvenção, defende Castro Rocha, está na "poética da emulação" do título de seu estudo. Machado abasteceu-se do cânone literário (em "Brás Cubas", o caldeirão inclui a Bíblia, Xavier de Maistre, Sterne, Shakespeare e muito mais) de forma despudorada, criando a partir disso uma obra inovadora. Teria Machado, então, escrito sua primeira obra-prima com a pena da galhofa, a tinta da melancolia e os papiros da inveja? "Inveja no sentido de produzir algo tão bom quanto. Trata-se de uma rivalidade estética com Eça que o levou a se arriscar. A tese é controversa, e não tenho a pretensão de que seja a única explicação. Machado é complexo demais para ser resumido", diz. CONTARDO CALLIGARIS Palavras de amor A declaração de amor não serve para seduzir o objeto de amor, mas para apaixonar-se cada vez mais Os sentimentos funcionam como picadas de mosquito, que coçamos e recoçamos até que se tornem feridas infectadas e, às vezes, septicemias generalizadas (quem sabe fatais). Salvo um exercício difícil de autocontrole, qualquer picada pode adquirir uma relevância desmedida: a gente tende a se coçar muito além da conta porque descobre que se coçar não é um alívio, mas um prazer autônomo em si. Por isso mesmo, em geral, não confio nos sentimentos --nem nos meus, nem nos dos outros. Não é que eu supunha que os humanos mintam quando amam, odeiam ou se desesperam no luto. Nada disso. Apenas verifico que os sentimentos, em geral, são condições autoinduzidas: transtornos ou desvios produzidos pelos próprios indivíduos, que, se não procuram sarnas para se coçar (como diz o ditado), no mínimo adoram coçar as sarnas que eles têm. Detalhe: coçando, aumenta o prurido, assim como aumentam a vontade e o prazer de se coçar. Tomemos o exemplo do amor. Eu encontro, conheço ou vislumbro de longe alguém que preenche algumas condições básicas para que eu goste dela. Sussurrando entre quatro paredes ou gritando em praça pública, anotando no meu diário ou escrevendo para grandes editoras, passo a encher o ar ou as páginas com as descrições da beleza inigualável de minha amada e com as declarações hiperbólicas de meu sentimento. Claro, minha prosa ou poesia poderão, quem sabe, conquistar meu objeto de amor, mas esse é um efeito colateral. O efeito mais importante (e esperado) de minhas palavras de amor não é tanto o de seduzir o objeto de meus sonhos, mas o de eu me apaixonar cada
vez mais. Pois a intensidade do meu amor será diretamente proporcional à insistência e virulência de minhas declarações. Em linguística, chamamos performativas aquelas expressões que, ao serem proferidas, constituem o fato do qual elas falam. Exemplo clássico: um chefe de Estado dizendo "Declaro a guerra" --essa frase é a própria declaração de guerra. Dizer que sou apaixonado, que odeio ou que me desespero no luto talvez não sejam propriamente performativos. Mas se trata, no mínimo, de semiperformativos, ou seja, talvez os sentimentos existam antes de serem declarados, mas eles só crescem e tomam conta da gente na hora de serem ditos, descritos e contados --na hora de sua declaração, pública ou privada. Há três razões pelas quais o amor é absolutamente indissociável da literatura amorosa. A primeira é que a gente aprende a amar e a declarar o amor pela literatura. A segunda é que o amor se tornou relevante em nossa vida à força de ser descrito e idealizado pela literatura. A terceira é que o amor, como sentimento, é um efeito das palavras que o expressam: a literatura nos instiga a amar tanto quanto nossas próprias declarações amorosas. Acabo de terminar a prazerosa leitura de "Como os Franceses Inventaram o Amor" (editora Prumo). Nele, Marilyn Yalom percorre a literatura francesa e revela que ela é um repertório completo do amor. A coisa começa com o triângulo amoroso, que não é um acidente ou um imprevisto do amor; ao contrário, o amor começa, mil anos atrás, com o triângulo amoroso. Tristão escolta Isolda, a futura esposa de seu tio, e se apaixona por ela. Lancelote venera seu rei Artur, mas se apaixona pela rainha. E, em geral, os poetas do amor cortês amam damas casadas (e frequentemente fiéis a seus senhores, aliás). A França é, para Yalom, a pátria do amor. Não só pela riqueza de sua literatura, mas justamente porque, na cultura francesa, do amor cortês do século 12 até as conversas das preciosas nos salões parisienses do século 17 (que Molière ridicularizava, mas também admirava), amar é, antes de mais nada, uma arte de dizer, de ser efeito das próprias palavras que usamos ao declarar e descrever nosso sentimento. Alguns acham que falta amor em sua vida. Como Emma Bovary ou Anna Kariênina (extraordinária a tradução de Rubens Figueiredo, pela Cosac Naify), temem que, sem amor, sua vida nunca chegue a ter a dignidade de um romance. A eles, recomendo paciência: os tempos mudam, e talvez se afirme hoje, aos poucos, uma retórica nova, menos sentimental, capaz de dar valor literário a uma vida sem amores e paixões. Outros se queixam dos estragos que o excesso de amor faz em sua vida. Aqui a cura é simples: eles não vão acreditar, mas basta se calar um pouco, assim como é suficiente não se coçar para que as picadas de mosquito parem de incomodar.