CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO BACHARELADO EM ARTES VISUAIS, PINTURA GRAVURA E ESCULTURA
JULIE DE SOUZA DIAS
JOSÉ: Antropomorfia do cacareco etnográfico
SÃO PAULO 2020
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JULIE DE SOUZA DIAS
JOSÉ: Antropomorfia do cacareco etnográfico
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Bacharelado em Artes Visuais, Pintura, Gravura e Escultura apresentado ao Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, como parte integrante dos requisitos para a obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Linguagem: instalação Orientadora: Profª Me. Luciano Zanette
SÃO PAULO 2020
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JULIE DE SOUZA DIAS
JOSÉ: Antropomorfia do cacareco etnográfico
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Bacharelado em Artes Visuais, Pintura, Gravura e Escultura apresentado ao Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, como parte integrante dos requisitos para a obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. São Paulo, ___ de __________ de 2020
BANCA EXAMINADORA
__________________________________ Profª. Me. Luciano Zanette
___________________________________ Profº. Me. Rosana Mariotto
___________________________________ Profª. Drª. Galciani Neves
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AGRADECIMENTOS Á minha avó Elza e minha Mãe Eronilde. Ao meu irmão Luciano e ao meu pai Julio. Ao meu par Wagner Tibúrcio. Aos meus queridíssimos amigos, Alan Ariê, Eugênio Chaves, Fabianne Gama, Pedro Carpinelli e Zizi Pedrosa. Aos meus vizinhos. Aos meus orientadores Luciano Zanette e a todos os professores e funcionários da Belas Artes exclusivamente á Kátia Salvany.
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RESUMO O presente artigo consiste em reflexões sobre a instalação José: Antropomorfia do cacareco etnográfico, e reuni pensamentos nos modos processuais de construção da obra bem como referenciais teóricos e poéticos. A obra consiste em três esculturas feitas com objetos empilhados, são compostas por caixas de papelão e isopor, baldes de plástico, tecidos, sacolas, pedaços de madeira, rolo de linha, tijolos, latas e roupas que são ordenados remetendo a aspectos antropomórficos. Além das esculturas existem imagens impressas em papel sulfite que são coladas diretamente na parede, compostas por três fotografias, um mapa e uma planta baixa que é impressa em papel vegetal e recebe intervenção de desenho em grafite. A obra é pensada junto ao lugar onde foi construída indiciando uma condição precária que reflete as arquiteturas periféricas e a figura humana marginal coletiva, que é representada pela fisionomia de José. Palavras-chave: Objeto, escultura, antropomorfia, precariedade, etnografia, deboche
ABSTRACT This article consists of reflections on the installation José: Antropomorfia of the ethnographic cacareco, and I gathered thoughts on the procedural ways of construction of the work as well as theoretical and poetic references. The work consists of three sculptures made from stacked objects, composed of cardboard and Styrofoam boxes, plastic buckets, fabrics, bags, pieces of wood, thread roll, bricks, cans and clothes that are ordered referring to anthropomorphic aspects. In addition to the sculptures, there are images printed on sulfite paper that are pasted directly on the wall, composed of three photographs, a map and a floor plan that is printed on parchment paper and receives graphite drawing intervention. The work is designed close to the place where it was built, indicating a precarious condition that reflects the peripheral architectures and the collective marginal human figure, which is represented by José's physiognomy. Keywords: Object, sculpture, anthropomorphism, precariousness, ethnography, debauchery
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LISTA DE FIGURAS - TEXTO Figura 1 – Objeto parábola...…………………............................................................….……10 Figura 2 – Objeto parábola……………………..........................................................…….….11 Figura 3 – Objetos de metal e vidro………...................................................................….…..12 Figura 4 – Mesa com objetos de metal e vidro.........................................................................13 Figura 5 – Mesa com objetos pessoais......................................................................................13 Figura 6 – Lista referente aos objetos da fig.4..........................................................................14 Figura 7 – Lista referente aos objetos da fig. 5.........................................................................14 Figura 8 – Experimentação com objeto maior..........................................................................15 Figura 9 – José Número Um.....................................................................................................16 Figura 10 – José Número Um...................................................................................................17 Figura 11 – José Número Dois..................................................................................................17 Figura 12 – Linha Vermelha, 2015............................................................................................19 Figura 13 – José Número Três..................................................................................................21 Figura 14 – José Número Seis...................................................................................................22 Figura 15 – Esquema com disposição de mapas, fotografias e um desenho colados sobre a parede que fica próxima as esculturas.......................................................................................23 Figura 16 – Print de vista superior com intervenções para detalhar a localização da casa e das esculturas...................................................................................................................................24 Figura 17 – Modelo expositivo com vista frontal.....................................................................24 Figura 18 – Modelo expositivo com vista superior e medidas de espaçamento entre as esculturas...................................................................................................................................25 Figura 19 – José Número Quatro..............................................................................................26
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LISTA DE ANEXOS Anexo A – Ficha técnica da obra.…………….…………………………………….…….......30 Anexo B – Detalhe do Penetrável PN2 do Hélio Oiticica (A pureza é um mito),1997............30 Anexo C – José Número Quatro com referência da estatura Humana...…….……………......30 Anexo D – José Número Três…………………………..............................................….……31 Anexo E – José Número Quatro……………………….......................…………………….…31 Anexo F – José Número Cinco……...………………….……………………………….……32 Anexo G – José Número Seis………………………...................………………………….…32 Anexo H – Links com experimentos de áudios........................................................................33
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................9 2. OBJETO CATALOGADO ........................................................................................10 3. JOSÉ ............................................................................................................................16 4. CACARECO, ETNOGRAFIA, ARQUITETURA E PRECARIEDADE E DEBOCHE ..................................................................................................................21 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................28 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................29 7. ANEXOS .....................................................................................................................30
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INTRODUÇÃO
A pesquisa da obra José: Antropomorfia do cacareco etnográfico parte do desejo de se pensar os objetos do mundo e se desdobra pra aspectos sociais e políticos entre a construção arquitetônica da periferia e o corpo. Consistindo em investigações escultóricas com objetos utilizados nas construções das casas de favela com a finalidade de criar um corpo antropomórfico. Está presente nesse artigo também manifestações processuais do pensamento e do fazer artístico, críticas e indagações sobre a precariedade, o capitalismo e a humanidade. Além da pesquisa bibliográfica foi imprescindível registros em fotos, vídeos e áudios que acabaram compondo o eixo do eixo do trabalho.
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OBJETO CATALOGADO
Começa com uma análise sobre o quanto alguns objetos podem suscitar memórias, e como atribuímos a eles nossas lembranças, e isso tem uma relação com as memórias e histórias pessoais ou alheias que existiram em um tempo-espaço paralelo, assim como o percurso ou a história sofrida pelo objeto em si, que foi largado na rua a própria sorte ou guardado em casa para recordação de algo pelo simples prazer de uma memória afetiva. Essa é a ideia que em 2018 durante uma ocupação1 refleti ao coletar pequenos objetos da minha casa ou coisas que encontrava pela rua, mas alguns objetos que me vieram do acaso eram cortantes ou estavam cercados de auras hospitalares, químicas ou biológicas, que contrapõem uma relação de ternura inicial ou óbvia, esse aspecto reflete para qual natureza criamos esses objetos, e além da memória cruel ou afetiva que estão inerentes a nós; acabei por perceber que as coisas que inventamos e criamos para as mais infinitas utilidades dizem mais sobre a humanidade do que a humanidade em si.
Fig. 1 - Objeto parábola, 2018 Fonte: Autoria Própria
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Ocupação artística realizada em novembro de 2018 no atual prédio do Red Bull Station localizado na Praça da Bandeira, em São Paulo.
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A tarefa de catar pequenas quinquilharias durante aquele período me levou a pensar que provavelmente estava escolhendo tais objetos por critérios que eu ainda não sabia, mas agora percebo que preferia os pequenos pois já ia até o prédio da ocupação carregando outras diversas coisas e me facilitava colocá-los no bolso. Então o simples critério do tamanho fez com que eu tivesse um grupo de objetos bem específico: algumas chaves, preservativos, bituca de cigarro, um relógio de pulso quebrado, estilhaço de vidro, pinos de cocaína, uma bola de gude, um pedaço de vela de parafina, cartelas vazias de remédio, um pedaço de sabonete seco, um anel vaginal, uma moeda de cinco centavos, um prego enferrujado, uma nota fiscal amassada, uma seringa com agulha, entre outros.
Fig. 2 - Objeto parábola, 2018 Fonte: Autoria Própria
Em “O sistema dos objetos” Baudrillard discorre sobre uma espécie de fenômeno do objeto técnico e como a metamorfose dos sistemas sociais desenvolvem as técnicas, pouco se referindo a necessidades fora de funções objetivas para qual o objeto foi inventado, e como essas técnicas não levam muito em conta comportamentos culturais por exemplo. “Não se trata, pois, dos objetos definidos segundo sua função, ou segundo as classes em que se poderia subdividi-los para comodidade da análise, mas dos processos pelos quais as pessoas entram em relação com eles e da sistemática das condutas e das relações humanas que isso resulta.” (BAUDRILLARD, 2006, p. 11)
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Durante os dias da ocupação que ficava com o espaço aberto recebi algumas visitas que viam os objetos e espontaneamente me contavam lembranças. Uma mulher apontou o dedo para uma argola transparente que estava entre o conjunto e me disse que usou anel vaginal por muito tempo, e que aquilo a fez muito mal, outra me contou que a lança de metal recordava a casa dos avós. Foi interessante também quando algumas pessoas perguntavam o que eram ou para que serviam alguns objetos específicos que estavam na mesa.
Seres e objetos estão aliás ligados, extraindo os objetos de tal conluio uma densidade, um valor afetivo que se convencionou chamar sua ‘presença’. Aquilo que faz a profundidade das casas de infância, sua pregnância na lembrança, é evidente esta estrutura complexa de interioridade onde os desejos despenteiam diante de nossos olhos os limites de uma configuração simbólica chamada residência. (BAUDRILLARD, 1968, p.22)
Acrescento a fala do autor que essa “presença” permanece também não apenas na dimensão afetiva, mas de alguma forma na hermética da memória do indivíduo que diz respeito a transgressão e a termos socioeconômicos e de classe social que existem nessa ligação de uso, de valor ou de invenção entre o sujeito e os objetos. Entrando na relação dos objetos domésticos ou que fazem parte do universo cotidiano e residencial, como o autor coloca, e pensando na questão sobre os objetos revelarem aspectos sociais de quem os tem, iniciei uma pesquisa onde me propus a coletar, catalogar e dispor em conjunto coisas que tinha na casa em que estava2. Reuni dois conjuntos, o primeiro (Fig.3, 4 e 5) em sua maioria era composto por objetos com metal, nele havia facas, ferramentas de construção, utensílios domésticos como talheres e panelas, adereços como brincos e pulseiras entre outros.
Fig.3 – Objetos de metal e vidro Fonte: Autoria própria
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Nesse momento estava na casa em que minha mãe mora, não sendo a casa em que fui criada.
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No segundo grupo (Fig. 5) estavam presentes utensílios de beleza, como pentes e pregadores de cabelo, artigos de costura como botões e agulhas, peças de decoração como bibelôs e um porta-retrato de madeira, produtos de higiene como escova de dentes e cotonete, algumas embalagens, vestimentas entre outras coisas.
Fig. 4 – Mesa com objetos de metal e vidro Fonte: Autoria Própria
Fig. 5 – Mesa com objetos pessoais Fonte: Autoria Própria
Nestes grupos de itens que pode ser visto nas figuras 3, 4 e 5 acabei percebendo que apesar de usar critérios particulares, havia dentro de cada coleção outras possíveis subcategorias e que a escolha da catalogação (também a partir de listas desses objetos Fig. 6 e 7) era um caminho que traria questões que privilegiaria o objeto em detrimento de uma relação objetiva não apenas com o sujeito, mas com o corpo no qual existe um interesse maior. As listas foram feitas em folhas de caderno sem pauta, onde escrevi de vez em quando o nome do objeto junto a uma característica observada, como cor, formato, tipo de material e cheiro por exemplo. Essas qualidades me moveram a razoar sobre descrições diretas como se fossem caricaturas dos objetos, essa perspectiva volta a retratar nossa relação com as coisas do mundo, mas ainda de uma forma bastante simples e subjetiva.
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Fig. 6 - Lista referente aos objetos da fig.4 Fonte: Autoria própria
Fig.7 - Lista referente aos objetos da fig. 5 Fonte: Autoria própria
Posteriormente passei a investigar os móveis que haviam na casa e o vínculo deles com objetos que se ligam a uma relação corporal e de identidade individual, utilizei uma lata de lixo, minhas roupas e um sofá posicionado na vertical no canto de uma sala (Fig.8). Ao deslocar esses elementos nessa situação comecei a perceber que a pesquisa chegava a um lugar onde os objetos ficavam entre a subversão e o óbvio em um estado de isolamento pouco interativo. Então baseado nesse contexto resolvi inverter a condição dos objetos, e ao invés de utilizar coisas que se liguem ao corpo no cotidiano de forma personificada utilizar objetos ou cacarecos para criar um novo corpo.
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Fig. 8 – Experimentação com objeto maior Na imagem: Sofá, calça, camisa branca e lata de lixo com sacola Sofá, calça, camisa, recipiente e sacola Fonte: Autoria própria
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JOSÉ
Partindo do sentido de criar uma nova fisionomia ou corpo encontrei um mancebo que tinha minha altura, coloquei uma sacola em cima dele (Fig.9) e arrastei até a cabeceira da cama sem saber muito bem o que queria. Fiquei pensando alguns nomes e lembrei de um poema do Carlos Drummond Andrade chamado José3. Também segundo a bíblia, José (originalmente Joseph ou Yosef) é o nome do esposo de Maria, mãe de Jesus, daí vem a popularidade do nome no mundo inteiro. Existe uma importância gigantesca na escolha desse nome tão popular, pois ele representa um sujeito coletivo e acredito que a concepção dessa investigação tenha se destrinchado também a partir dos tensionamentos do nome, como metonímia para povo. Ainda me referindo a nomenclatura das esculturas decidi optar pela numeração por extenso com a primeira letra das palavras em caixa alta, fazendo um paralelo entre a produção em série e o sobrenome próprio. Nesse momento da pesquisa fiquei fabulando histórias para ele. Mas uma vontade de que a obra ficasse entre uma política social muito séria e uma piada um pouco tosca, se sobrepôs a qualquer ideia de identidade ou história individual que pudesse inventar para ele mesmo se fosse como um heterônimo. José Número um tem 1,70 m de altura e é composto por objetos pendurados e apoiados sobre um mancebo, os objetos são: uma sacola de papel preta com borda verde, alças de sacolas de papel, fita adesiva, uma camisa de manga longa branca, uma jaqueta jeans clara, um cinto marrom e um cinto preto, uma viseira amarela e preta uma mochila com tons de Fig.9 - José Número Um
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O poema José de Carlos Drummond de Andrade foi publicado em 1942, na coletânea Poesias, e pode ser acessado através do link: https://wp.ufpel.edu.br/aulusmm/files/2016/09/JOS%C3%89.pdf
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verde um pouco suja com uma sacola vermelha dentro, uma bolsa azul pequena e velha e uma bolsa preta com dois zíperes dourados. Permaneci um bom tempo apenas tendo presente esse primeiro José, estava em uma casa que não era a minha e apesar de reconhecer alguns objetos que estavam nela como meus, acabei compreendendo depois de fotografa-los o quanto o lugar era importante, e como ficavam ali como se já estivessem habituados. Nos dois primeiros Josés (Fig.10 e Fig.11) pensei mais sobre a escolha dos objetos, sendo que a constatação consciente do pertencimento desses objetos ao lugar viria apenas depois com a análise das imagens. As fotos acabaram se fazendo muito importantes, não apenas como registro, mas também como material de estudo.
Fig.10 - José Número Um
Fig.11 - José Número Dois
Fonte: Autoria Própria
Fonte: Autoria própria
Desloquei uma cadeira da mesa de jantar para fazer a base do José Número Dois (Fig.11), começando a empilhar as coisas sobre essa cadeira: um saco de lixo preto, um saco de lixo azul, caixas de sapato, lixeira, viga de ferro, sacola de papel, uma bolsa de couro falso marrom e um casaco jeans.
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Foi presado nesse segundo momento alguns objetos mais banais feitos de plástico e papelão, itens da casa como a cadeira e a lata de lixo e objetos pessoais como a bolsa e o casaco. Foi despertado nessa segunda etapa com o uso de materiais como o plástico e o papelão uma relevância para coisas sem muito valor atribuído, e essa condição acaba por designar um coeficiente social para as esculturas que antes permanecia apenas na intenção. A escolha de usar objetos da casa para essa situação escultórica é que além da abrangência deles indicarem o que viria a ser a humanidade, também entram para a esfera individual evidenciando nossos traços em termos socioeconômicos por exemplo, e mesmo dentro dessa conotação pessoal que nossos objetos podem ter o reconhecimento, assimilação ou a própria emoção de posse alheia remete a um estado que toca um atributo que no fim das contas é coletivo. O corpo no trabalho vem sido apresentado não apenas através das figuras antropomórficas, mas também pelo nome, pela matéria que constituem os objetos e também pelas roupas e tecidos. Onde a humanidade do vestir-se se apresenta fora de um corpo humano. E pensar nessa relação humana me levou a coletar áudios dos meus vizinhos que responderam ao meu pedido com a apresentação que viria a ser a voz das esculturas: “oi meu nome é José”4. Os áudios foram distorcidos procurando modificar as vozes, sendo que a ideia era realizar uma programação que captasse uma presença alheia as esculturas para que elas disparassem esse áudio no espaço expositivo, chamando atenção novamente para uma interação que é estabelecida entre José e o visitante. Apesar desse tensionamento trazer complexidade a ideia escultórica, resgatando perspectivas da instalação, entendi que as indagações que dizem respeito a desigualdade social e a precariedade que viriam a envolver José já eram por si só muito importantes e relevantes no entendimento da pesquisa. E em vista das condições atuais não seria possível seguir a diante com a experimentação por conta dos equipamentos que se fariam necessários como o arduíno os sensores e toda aparelhagem, sem contar o tempo que levaria para concretizar a programação em si e os implantes dos dispositivos nas esculturas. Fora as questões práticas de execução e mesmo pretendendo desenvolver a ideia em algum momento, a abordagem de dar voz as esculturas dirigem um pouco o argumento da individualidade, de um sujeito único que talvez pudesse combater a intenção coletiva. Em uma carta de Hélio Oiticica para Lygia Clark escrita em 1974, onde o artista fala sobre a capa parangolé, acabou também colocando em cheque a ideia de individualidade que
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Áudios podem ser encontrados através de links disponíveis na seção anexos no final do documento.
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queria abandonar, me fazendo tomar decisões como a exclusão da sacola de papel, já que ela carrega uma figuração mais objetiva consigo na ideia de cabeça, rosto ou máscara que dialoga com a noção de personagem inicial e que se mostrou frívola nesse instante, trazendo um olhar para os objetos de forma mais genuína5. “CAPA e CORPO são um, mas o adorno da cabeça elimina o conceito de nudez mesmo que a pessoa esteja nua, porque o adorno da cabeça revela a INDNIDUALIDADE; a cabeça é Um e o corpo, UM ENTRE OUTROS; a descoberta do CORPO tribaliza ao mesmo tempo que se reconhece; a cabeça não, ela é UM” (OITICICA, 1947, p.232)
Para além de situações que foram rejeitadas nesse período houve uma condição objetual que se manteve até o fim dos processos, pois a ideia de fazer esculturas por meio do empilhamento não anula a função de tais objetos no cotidiano da casa. José então se desfaz, é como uma escultura-fotográfica onde se monta para uma cena e depois todos os objetos voltam ao seu lugar de costume e tornam a cumprir funcionamentos de usos costumeiros. Essa efemeridade da escultura no contexto da casa também aparece no trabalho da artista Geórgia Kyriakakis intitulado Linha vermelha (2015) realizado com uma faixa vermelha que atravessa o espaço de seu ateliê e prende os objetos no lugar onde estão: “Curiosamente depois que eu fiz essa linha no ateliê eu percebi que estava inutilizando as coisas, porque eu não podia tirar as coisas do lugar, porque se não eu desmontava o trabalho. Era essa experiencia do aqui agora, dessa presentividade, acabou se tornando uma outra experiencia de tempo porque eu fui me impossibilitando de trabalhar, eu não podia mais mover as coisas do lugar nem se fosse uma vassoura”6
Fig.12 – Linha Vermelha, 2015 Fonte: https://www.georgiakyriakakis.com.br/LINHA-VERMELHA
Apesar de se tratar de modos de operação diferentes existentes entre o deslocamento e a estabilidade as circunstancias passageiras e a pregnância do objeto cotidiano colocado fora de uma escravidão funcional, mesmo que por um curto período de tempo, são perspectivas que
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Entende-se como genuíno aquilo que permanece sem minhas intervenções. 6 Trecho retirado do vídeo Ateliê do Artista: Geórgia Kyriakakis realizado pela Revista Bravo
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rodeiam ambos trabalhos. José quando desmembrado volta a ser o que era, ocupando o espaço que sempre ocupou servindo para o que sempre serviu. Para tudo a escultura que virá a ser desenvolvida acaba não acontecendo em uma camada imutável em vista da escultura tradicional, precisando ser desmontada para que os objetos voltem ao uso da casa. Nesse sentido o registro dá a elas um lugar atemporal de permanência referenciando mais pra frente a condição social do lugar desses objetos.
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CACARECO, ETNOGRAFIA, ARQUITETURA, PRECARIEDADE E DEBOCHE
A noção de que existem objetos criados para necessidades humanas vitais e outros para suprir necessidades inventadas por nós giram em torno de um sistema capitalista de produção, como um ciclo de consumo e descarte. E pensar na história que atribuímos a esses objetos, o lugar de onde vieram ou onde estão, se faz uma situação não apenas poética, mas política. O incontestável sentido de que todas as coisas físicas existem em uma localização específica me levam a olhar os objetos compreendendo o próprio lugar, isso acabou entrando de um jeito mais lúcido depois que passei a observar as fotografias que havia tirado com a finalidade inicial apenas de registrar. Ao me deslocar daquela casa7 passei a questionar aspectos etnográficos dos objetos, afim de entender o lugar como parte importante na elaboração e reflexão do trabalho.
Fig.13 - José Número Três Fonte: Autoria própria
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Da casa da minha mãe para a minha casa.
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Pensar os Josés no modo de construção através do empilhamento nesse contexto acaba refletindo a própria construção das casas que o cercam, como a estrutura dos puxadinhos ou das lajes que serão futuros pisos; ou ainda a variedade de matérias presentes na edificação como o plástico, a madeira, o ferro ou o tijolo. Além dos objetos que ajudam a carregar materiais como o balde, a bacia, o carrinho ou a lata. Esse conjunto de tralhas e coisas sem muito valor se aglomeram não apenas com o intuito de provocar um olhar sensível para objetos que muitos veriam como descartáveis, mas também para revelar uma condição precária. A precariedade se manifesta por meio do lugar onde as esculturas foram construídas e se espelham como parte desse lugar quando se fazem formadas, sendo uma relação de pertencimento etnográfico inerentes a elas. A artista e teórica Eleonora Fabião (1968) cita Deleuze quando ele especula sobre o “horizonte móvel” como sendo algo fora de um centro que habita em uma periferia que transita. A autora acrescenta a fala do filosofo que “pensar e conceituar são igualmente atos precários, modos de se mover permanentemente no movimento permanente”8
Fig.14 - José Número Seis Fonte: Autoria própria
Nesse sentido existe um entendimento de que essa precariedade além de existir nas casas ou nos Josés também está em nós, nas paredes de um pensamento urgente, de fazer acontecer 8
Texto Performance e precariedade publicado em 2015
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com o que se tem, onde a dinâmica ou o movimento das coisas na qual Fabião se refere, se relacionam com estruturas provisórias, rápidas, que se amontoam em um constante trânsito. Hélio Oiticica escreveu “A pureza é um mito” em um de seus penetráveis e esse é um pensamento contrário a uma relação de pureza ou limpeza, que não é ligado a uma noção de beleza tradicional ou sensualidade vindas de uma cultura colonial e europeia. José é um corpo que evidencia a precariedade, buscando refletir o lugar e a própria humanidade, como um pensamento inconscientemente latente. Na transposição dos Josés para o espaço expositivo se fez necessário um mapeamento da localização deles na casa de modo que as distancias entre eles nesse espaço equivalem as distancias reais e seus respectivos posicionamentos dentro do terreno como mostra as imagens (Figs. 14, 15, 16 e 17).
Fig.15 – Esquema com disposição de mapas, fotografias e um desenho colados sobre a parede que fica próxima as esculturas Fonte: Autoria própria
Outra tentativa de fazer refrência ao lugar onde as esculturas foram elaboradas é o acompanhamento das fotografias tirados na zona de origem para o espaço de exibição essas imagens rodeiam desenhos, mapas e uma planta baixa do lote que são coladas sobre uma parede próxima as esculturas (Figs. 14 e 16).
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Fig.16 – Print de vista superior com intervenções para detalhar a localização da casa e das esculturas Fonte: Google Maps
Fig.17 – Modelo expositivo com vista frontal Fonte: Autoria conjunta com Pedro Carpinelli
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Fig.18 – Modelo expositivo com vista superior e medidas de espaçamento entre as esculturas Fonte: Autoria conjunta com Pedro Carpinelli
É possível também discutir, a partir dos procedimentos aqui mostrados, uma relação com o non-site, mesmo não sendo o caso, existe uma semelhança quanto ao deslocamento de elementos próprios de um lugar, na presença de estratégias como a utilização de mapas e registros fotográficos. Smithson trabalhava com o conceito de non-site, em oposição a site, onde este segundo diz respeito ao lugar em si, e o primeiro ao lugar/obra, o lugar potencializado pela prática artística, descontextualizado, enfatizando ainda mais o site mesmo sem lembra-lo, necessariamente, pela aparência. Ainda que seja feita aqui uma intervenção física em determinado lugar, como o artista americano fazia, o mesmo processo de potencializar a percepção ocorre através das intervenções nas fotografias. Estas passam a retratar um lugar/obra, um nonsite, e não mais um lugar qualquer. (LAMPERT, 2012, p.58) Nesse trecho Letícia Lampert, artista e mestra em poéticas visuais, fala sobre o trabalho de Robert Smithson, e apesar da discussão girar em torno de termos que dizem respeito ao site, mesmo não havendo um interesse a esse mérito, a ideia de transportar ou deslocar as coisas de um lugar para outro, no caso para o espaço expositivo, são conceitos que se correspondem quanto a “retratar um lugar/obra, e não mais um lugar qualquer”. No caso de José a importância de olhar os objetos no contexto da casa e principalmente das estruturas de moradia dos arredores. No entanto é um engano na fala da artista se referir ao non-site como conceito oposto a site já que na verdade um se deriva do outro, sendo conceitos que se complementam, no caso
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do non-site o caráter indicial/documental de um lugar fora do espaço do museu, que seria o próprio site. “O Non-Site contém uma componente dimensional abstrata, ou seja, uma metáfora dimensional em que um local pode representar, indicar ou mapear outro local que não se lhe assemelhe.” (PALMA, 2003, p.2) A artista Fernanda Junqueira (1957) escreve no texto sobre o conceito de instalação a concepção do termo e acrescenta: “O sentido do ser da Escultura, da Pintura ou até mesmo da Instalação, estaria a todo momento sendo feito e refeito em cada pintura, cada escultura, em cada instalação.”(JUNQUEIRA, 1996, p.554) Essa ideia reflete o contexto em que a obra contemporânea se insere, indicando a defasagem da presença de uma única linguagem pura, quando na verdade a existência de meios e processos que se somam e se atravessam tomam uma órbita constante, onde as definições e conceitos se transformam e se agregam na medida em que vão sendo concebidos.
Fig.19 - José Número Quatro Fonte: Autoria própria
Para além desses conceitos me propus a registrar as esculturas no lugar por meio do vídeo9, a princípio foram gravadas de modo que revelasse um percurso entre elas como a visão de um visitante que chega na casa. Mas em seguida com o produto final acabei privilegiando cenas mais estáticas, também onde o som ao redor pudesse ter algum significado como a presença das conversas entre os moradores, o barulho das motos e a música dos carros que passavam por exemplo.
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Pode ser acessado através do link: https://www.youtube.com/watch?v=SLWaWP_cCk8
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Seguindo essa perspectiva os cortes no vídeo foram em sua maioria determinados pela esfera sonora, mesmo que as cenas estivessem fora de um enquadramento ajustado, o que importava era o som ambiente das vozes, músicas e ruídos ou barulhos. Esse acaso sonoro que ocorreu durante a gravação das cenas também revogou um pouco a vontade inicial dos áudios que queria para as esculturas acontecendo de forma mais natural no decorrer da investigação. O registro em vídeo diferente do registro fotográfico revela uma verdade sonora que mistura a carga visual das construções e dos espaços fechados precários com um humor sonoro e debochado que rodeia José. Essa visão debochada em meio a cena atual caótica existe como via de resistência segundo a mestra em História e culturas políticas Natali Gisele de Oliveira que fala sobre o Jornal Pasquim, criado como jornal de humor no período da ditadura militar no Brasil.
A linguagem e algumas de suas representações veiculadas através dos recursos à irreverência e ao deboche que burlando o autoritarismo cotidiano são utilizados como alternativa de resistência às formas tradicionais de se fazer política e, produzindo, sobretudo, uma ácida crítica aos costumes instituídos. (OLIVEIRA, 2005, p. 1) O humor ou o deboche também se encontra na linguagem ou nas manifestações da favela é da mesma forma um enfrentamento as adversidades da violência e da miséria, as conversas presentes no vídeo sobre “ser mais velho que a Hebe Camargo” ou o som da batida de funk com um “muleque ruim” em seguida de um “Brasil sil sil” são culturas que integram esse arcabouço da piada diante de uma realidade precária e as vezes assustadora. Pode parecer uma analogia um pouco distante já que se tratava de um jornal e os tempos eram outros, mas esse humor diante da tragédia vem fazendo cada vez mais parte do cotidiano como válvula de escape natural para se viver no terror e na pobreza. Sendo revelado através das músicas, das linguagens e das formas de se relacionar. É adequado dizer que escultura e instalação em José, na forma que se apresenta, são compreensões que se cruzam, onde o espaço entre os corpos, os suportes gráficos, o vídeo ou o som são importantes no entendimento da obra como provocação de experiências espaciais e políticas. Para finalizar devo enunciar que a aura banal dos objetos e toda situação deles memorarem um corpo humano aponta para uma crise preservada a séculos, na qual a miséria sustenta o luxo e vice-versa.
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Considerações Finais
O objetivo inicial desse trabalho consistia em uma análise dos objetos de minha casa, utilizando metodologias como a catalogação e a disposição além de pesquisa bibliográfica. Entretanto, a investigação prática e conceitual acabou se desenvolvendo potencialmente, levando consigo uma reflexão social e uma crítica que teceu ao processo um sentido tanto poético quanto político. Me fazendo compreender minha própria condição como artista no mundo, no sentido de olhar cruamente para a realidade do meu entorno. A miséria na qual José se refere está além do que posso ter aprendido na academia e vejo isso como ponto importante na concepção da hierarquia existente entre todos os saberes humanos, visto que viver as situações e pensar sobre o que acontece na vida e nas relações mundanas se faz muito mais indispensável que qualquer erudição. Pode parecer óbvio, mas devo dizer que o conhecimento até aqui adquiridos fazem parte de um comboio de experiencias dentro e fora do estudo acadêmico. O interesse de elaborar as esculturas (ou a instalação que seja) ou esse artigo\texto vieram de urgências da marginalidade que ainda busco explorar, me abrindo para perspectivas futuras que dizem respeito a uma conjectura material sobre a humanidade. É difícil dizer com o rumo dos acontecimentos desse ano se teria feito algo diferente, mas os princípios de se entender a arte e os suportes dela no agora permanecem com o dever de pelo menos transgredir as convenções, e almejar essa ideia vem fazendo parte do que eu possa construir, mesmo sendo uma tarefa árdua.
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Bibliografia
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1997. 234 p., 21 cm.
FABIÃO, Eleonora. Performance e precariedade. In: Ações. Rio de Janeiro: Itaú Cultural, 2015.Ed. 1. pg. 63-84
José, Carlos Drummond Andrade. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/aulusmm/files/2016/09/JOS%C3%89.pdf
JUNQUEIRA, Fernanda. Sobre o conceito de instalação. Disponível em: https://www.academia.edu/10606785/SOBRE_O_CONCEITO_DE_INSTALA%C3%87%C3 %83O LAMPERT, Letícia. Non-site-specific: o artista como etnógrafo de um não-lugar. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/RevistaValise/article/viewFile/26304/23565
Noção do Non Site Francisco Palma. Disponível em: https://franciscpalma.files.wordpress.com/2011/06/nocao-do-non-site-rsmithson-20031.pdf O que significa o nome “José” disponível em: https://pt.aleteia.org/2019/03/19/o-quesignifica-o-nome-jose/
OITICICA H.; CLARK L. Cartas, 1964-74 organizado por Luciano Figueiredo; prefácio de Silviano Santiago. 2. ed. I Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. OLIVEIRA, Natali Gisele. A resistência pelo deboche na linguagem pasquiana. Londrina,2005disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/201901/1548206368_38924e30b3a7758e60accf6cfd496600.pdf Revista Bravo Ateliê do artista: Geórgia Kyriakakis. YouTube, 6 de dez. de 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4sGSveJKRns. Acesso em: 09 de nov. de 2020
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ANEXO A – Ficha técnica da obra Julie Dias José: Antropomorfia do cacareco etnográfico, 2020 Instalação Caixa de isopor, caixa de papelão, tubo de linha, mão francesa e casaco\ Tronco de madeira, tábua de madeira, balde, piso de cerâmica, tijolo, ripa de madeira e jaqueta\ Ripas de madeira, carrinho de feira, latas, caixote, bacia, balde e lençol\ impressões em papel sulfite e grafite sobre papel vegetal 8 m²
ANEXO B – Detalhe do Penetrável PN2 do Hélio Oiticica (A pureza é um mito), 1997
Fonte: JACQUES, 2001, p.87.
ANEXO C – José Número Quatro com referência da estatura Humana
Fonte: Autoria própria
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ANEXO D – José Número Três
Fonte: Autoria própria
ANEXO E – José Número Quatro
Fonte: Autoria própria
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ANEXO F – José Número Cinco
Fonte: Autoria própria
ANEXO G – José Número Seis
Fonte: Autoria própria
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ANEXO H – Links com experimentos de áudios VÍDEO AUDIO JOSÉ NUMERO UM - https://youtu.be/DrAa_PwO3o0 VÍDEO AUDIO JOSÉ NUMERO QUATRO - https://youtu.be/kG6eMYVbz3g VÍDEO AUDIO JOSÉ NUMERO CINCO - https://youtu.be/d6xfe_wcZTk VÍDEO AUDIO JOSÉ NUMERO SEIS - https://youtu.be/pStmrUVaWCY