O Filho do Pai Manel - Pedro Santo

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—•— Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

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Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Pedro Santo Título: O Filho Do Pai Manel Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-31-0 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor —•—

Pedro Santo Cocriador de Bruno Aleixo, e de todo o universo que circunda a personagem, produziu conteúdos para televisão, rádio e Internet, tendo ainda coapresentado uns e vocalizado outros. Escreveu um par de contos para coletâneas, já depois de diplomado em Sociologia, pelo ISCTE, e de ter nascido em Leiria, em 1980.

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O Filho Do Pai Manel —•—

Pedro Santo

José Maria crescera a saber-se devedor a dois ilustres homónimos. Por um lado, o pai, se risonho, fosse pelo vinho, fosse pelo concúbito, desembuchara-lhe, em bastas ocasiões e circunstâncias, a inequívoca homenagem a Eça de Queirós, augurando ao pequenote um resplandecente futuro no ramo das artes. Se possível, nas letradas, depreendia-se. Nestas ocasiões, o pai, encaixando as mãos, que pareciam sempre punhos, nos sovacos do pequeno, engrandecia José Maria por uns momentos, para depois deixar cair os pés sobre o peito dos seus e, simulando uma valsa, cantar que o filho seria o mais aclamado descendente desse nome composto. Mas, por outro, quando o pai, fosse pelo vinho, fosse pelo concúbito, trazia a face retesada e a testa engelhada, a referência era José Maria, vulgo Calças, o, saberia mais adiante, último condenado à forca em Portugal. Nessas alturas, não havia cá baile nenhum para ninguém. O pai enterrava-se de tal maneira no velho sofá, que este parecia ter pernas, e, das primeiras vezes, não mais de vinte ou trinta, José Maria pensou mesmo estar a ser amaldiçoado pelo assento. E fugia, claro, que aquele sofá, que sempre lhe parecera sinistro, com dois grandes botões a fazer de olhos e um vinco que dava muito ares de boca, teria agora pernas e pragas para atirar. Enquanto atormentado pela mobília, José Maria não chegara nunca a reflectir sobre aqueloutras palavras, as que o deliberavam como um gandulo vindouro, com o cadafalso como última paragem. Lá chegaria. O pai Manel era abroncado nas maneiras, mas, de escassa sobrancelha e farta pestana, fluía nele um lado feminal. Era fogo-de-vista, não passava disso, só que do bom, do que parecia mesmo. As patilhas, sempre revoltas e atulhadas, deixavam-se estar em marcada oposição ao cabelo, que, embora aguado, em tempo algum se desarrumava, nem pelo 6

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vinho, nem pelo concúbito. A cabeça do pai de José Maria era um conflito constante, nada parecia conjugado, ali. Ele gostava daquele pai, só daquele. Tinha medo que, um dia, viesse outro pai. Parecido. E que ninguém notasse. Por isso, sempre que o pai chegava do trabalho, José corria para ele e verificava-lhe as orelhas. Tinha os lóbulos coladinhos à lateral da cara. Era o pai dele. Mais ninguém tinha, pelo menos que José tivesse visto. E, se lhe escambassem o pai, estariam tão preocupados em emular aquelas patilhas, aquelas pestanas, aquelas sobrancelhas e aquele cabelo, tudo tão singular na sua desafinação de grupo, que não sobraria tempo para orelhas. José gostava de tudo naquela cabeça. Porque tudo naquela cabeça recreava, deixando os lóbulos bem longe dos palcos do escrutínio. Aos seis anos e picos, José Maria descobriu, finalmente, que daquele sofá não chegavam pernas nenhumas, tampouco palavras. Vinham do pai. As duas coisas. Foi, a par da revelação de que o tio Cláudio tinha comprado um capacete com viseira, a descoberta mais entusiasmante do ano. E o garoto lá adolesceu, dividido entre os agouros de novo Eça, que, durante muito tempo, pensava ter sido um famoso dançarino, e de segundo Calças, sujeito que, pelo paleio do pai Manel, ter-se-ia destacado exemplarmente em práticas ratoneiras (no mínimo) e nada mais. Num dos Verões, a profecia na sua versão positiva não veio acompanhada de valsa, que o pai tinha pisado um prego e esburacado o pé direito. De resto, tudo na mesma, anos a fio, sem frequência decifrável, até à morte do pai Manel, que partiria em pacatez, durante o sono naquele sofá mau. Roçando os dezasseis de idade, José Maria era agora Fialho. O Fialho, para ser mais exacto. Com artigo definido, nunca sem; ou, se para ele falavam, era “ó Fialho”, sempre com interjeição, nunca sem. Deixara de ser José Maria, para ser Fialho, aquando da morte do pai, o Fialho original. Era tradição, ali, e, pelo menos, nos arrabaldes até onde toda aquela gente já tinha ido. Entretanto ciente da base biográfica de Eça e Calças, Fialho correra todos os ofícios da zona, especialmente biscateiro geral e guarda-cancela, destacando-se sempre pela inaptidão e indiferença, que, invariavelmente, lá iam dar a um “Ó Fialho, não vai dar mais, gostava muito do teu pai e de te ajudar, mas a cancela tem de ser levantada e baixada com apuro, senão ainda acontece alguma desgraça” ou equivalente. Ao Fialho que lhe importava isso, na verdade. Sabia que seria Eça ou Calças, por muito que a mãe, Maria Júlia, sempre ciciosa, lhe pedisse para tirar daí a ideia, tanto num caso, como no outro. Sem grande êxito, lá o conseguiu convencer a tentar o Eça primeiro. Foi o máximo. Coimbra era longe, por isso amancebou-se com uma viúva com casa perto, bem mais feia do que uma outra, que tinha casa longe, mas com menos catraios para filhar, o que, tudo somado, acabaria por compensar. O objectivo era inscrever-se na faculdade e cursar Direito, como Eça muito antes, mas Fialho amantizara-se logo em Julho, não fosse a vaga da viúva ir ao ar, como era costume nestas coisas. Tivera, por isso, de esperar, já amancebado e em Coimbra, pelo reinício dos serviços académicos. Aproveitou esse dois 7

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mesitos para deixar crescer um bigode. Chegada a hora, lá foi, na alvorada do primeiro de Setembro, com um projecto de bigode, o possível nuns cinquenta e tal dias de investimento. Herdara do pai a revolta dos pêlos, que também lhe cresciam todos à batatada, cada um por si. Tentou penteá-los, mas, tamanha a insurreição, tinha de fazê-lo com vigor e acabou por deixar estar, que já lhe doía o filtro do lábio e, sem notar, até tinha feito um pequeno rasgão logo abaixo. Na secretaria, o óbvio doeu, mesmo para um tipo que tentava ainda estancar uma pequena hemorragia com cirúrgicas passagens salivantes. “Não tinha sequer o liceu feito, como é que esperava entrar em direito”, ouviu ele, em tom de ralhete, da boca duma mulher estrábica. Nunca tinha visto nenhuma, o que explica o facto de, pasmado, só à terceira Fialho ter escutado realmente o que lhe dizia aquela mulher, lá com o timbre de ralhete dela, que, às tantas, até tinha para tudo, podia não haver nada de pessoal naquilo. Veio embora, muito danado. Nunca tivera nada contra estrábicos, e conhecia bem uma boa meia-dúzia, mais uns quantos de vista, mas agora não gostava nada deles. Nesse dia, desalentado, nem almoçou. Quando, mais tarde, o estômago reclamou entretém, atirou-se a um lanche ajantarado, com sandes em que a proporção de fatias de fiambre para fatias de queijo rondava as seis para uma. Tinha de ser, o homem do talho mais próximo cortava-as muito finas. A meio do segundo pão, e seriam três, já Fialho decidira o passo seguinte. Não dá para ser artista, pois que seja bandido, concluía, teatralizando tudo aquilo com uma afirmativa punhada na mesa. E começaria logo ali. A viúva saíra para comprar fiambre, que se acabara. Fialho contemplou tudo o que estivesse engavetado. Havia jóias, ou, no mínimo, coisas que reluziam, mas, como ia fugir de vez, deixando viúva e respectiva prole, o remorso não tardou. Levaria apenas um guarda-pó encardido, pronto. Era do defunto e a viúva, embora odiasse a peça, que só lhe lembrava como o marido trabalhava demais, não conseguira deitá-la fora. Uma tia muito beata tinha-lhe dito que, ai, era um grande pecado, não podia ser, Deus nos livre. Assim, e sem deixar de dar o seu primeiro passo enquanto Calças, lá lhe parecia estar a compensar de algum modo a senhora. Já estava, agora que se lixasse. Antes de deixar a cidade, ainda foi aos correios, mandar uma carta a Manuel Joaquim, rapaz dos seus contactos que abarregara a outra viúva, a tal bem talhada, sem dúvida, mas de morada longe e mais canalha. Sabia que Manuel Joaquim considerava, acima de tudo, a beleza feminina, mas os doze quilómetros a pé que fazia diariamente há uns meses, e dos quentes, alteraram-lhe as prioridades. O próprio lhe confessara. Alegrá-lo-ia, certamente, essa novidade de que a viúva raçoada na graça, mas com casa a um quarto de hora da Praça da República, estaria disponível e, em princípio, vulnerável. Procurava estabelecer-se longe, daí que tenha apanhado a carreira que o levasse mais além pelo dinheiro que tinha em moedas (guardou duas notas). De caminho, tomou 8

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conhecimento de que teriam sido afinal crimes de sangue a enrolar a corda à volta do pescoço do Calças. Foi um homem de Chaves que lhe contou, que o Fialho, assim que soube de flaviense em assento próximo, logo o inquiriu sobre o malnascido conterrâneo. E agora, como era? Nunca matara nada. Envergonhado, e depois abúlico, vestiu o guarda-pó e sentou-se noutro lugar. Saiu dezasseis paragens mais adiante, já recomposto, e a apenas nove da que teria direito pela mancheia de moedas. Alugou um espaço numa mansarda duma velha, que, em vez de renda, pedia apenas que lhe lesse as bulas dos medicamentos. Parecia bom negócio, pois parecia, mas o raio da velha tinha centenas de medicamentos e alguns tinham duas bulas, uma em castelhano ou (mais raro) francês. Queria sempre que lhe lesse as duas, não fosse haver coisas que não eram contadas aos espanhóis, apenas aos franceses, e vice-versa. Ao segundo dia, à tarde, já se tinha arrependido. Imaginava-se capaz de matar, agora sim. Se tivesse de ser, bem entendido. Nem um mês passado, já o condicional tinha ido para o maneta. Fialho estava pronto, era o que era. Como, nesse meio-tempo, até ficara curto de dinheiros, decidiu publicitar, nos dois cafés e sempre sotto voce, os seus serviços de assassino a soldo. Era aproximar o útil do agradável, na medida do possível. Nos primeiros tempos, não houve encomendas e Fialho viu-se obrigado a juntar uns trocos lendo bulas para outras velhas, amigas da velha que lhe alugava o quarto. A palavra espalhara-se. Era um clube de leitura de bulas, até ver, oficioso: quartas e sextas, sempre depois de almoço. Certa vez, uma das velhas levou a filha, também ela velha. Estavam naquelas idades em que já parecem irmãs, lá pelos noventas e poucos e setentas e tais, respectivamente. No fim, pediu para conversar em privado. Devia querer leituras particulares, pensou Fialho, já lhe tinham pedido antes. Não era. A velha, filha da outra velha, queria que Fialho mandasse alguém fazer tijolo, lhe vestisse um sobretudo de madeira, lhe limpasse o sebo. Só ao terceiro disfemismo percebeu que carago queria a velha, palavra de honra. O primeiro, porque não conhecia a expressão. O segundo, porque, entre tanta bula lida, já lhe passara um tudo-nada a perspectiva de ser um Calças assalariado e de encomenda. Além do mais, o pedido estaria sempre descontextualizado, entre velhas e bulas desenroladas. O terceiro, esse do sebo, usava-se muito. Também havia com sarampo. Esperaram que todas saíssem, entre passos arrastados e bulas enrodilhadas para caberem nas bolsas. Tratava-se de empreitada que, nem de propósito, preenchia por completo as duas regras que Fialho se lembrara de impor enquanto a velha ainda falava: ser longe e gente de má rês. Claro que, para o segundo critério, Fialho teria de confiar nos antecedentes que lhe eram relatados pelo contratante. Neste caso, a velha, filha da outra velha. Parecia-lhe confiável, sinceramente, e Fialho ia lá com fezadas. O alvo seria um homem que, disse-lhe, teria difamado o pai dela, que morrera de desgosto, nem três 9

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semanas depois. Era homem honrado e sensível a esse ponto, mártir indefeso do conluio de três patifes da pior espécie, acrescentou. De dois, não sabia nada, do outro, sim. Fialho chamou para a conversa umas quantas dúvidas de pacotilha, para dar ar de já ter feito aquilo antes, e, sem especial demora, aceitou. Recebeu direcções e tudo o mais, fez a mala e pôs-se a andar, que era Sexta e só teria de voltar na Quarta que vinha, para as leituras. Mal comprou bilhete, arrependeu-se de não ter pensado em incluir as despesas de viagem na factura total. Quinze por cento, como tinha visto num filme, o mesmo de onde tirara a regra dos cinquenta adiantados. Tirou um papel amarrotado que morava no bolso há pelo menos duas semanas. A algibeira era apertada, mas, sempre que procurava moedas, o fura-bolo e o pai-de-todos da mão direita de Fialho lá se cruzavam com aquele papel. Não o tirara ainda porque ia sempre ao bolso à procura de outras coisas. Desembrulhou-o e escreveu nas costas. Uns bons quilómetros depois, e mais ou menos o mesmo número de rabiscos, decide cobrar apenas dez por cento extra para despesas de deslocação. A conta era bem mais fácil de fazer. Era tirar o último zero, e o preço dele terminava sempre com um, e aí estava o valor para as despesas. Depois, juntava-se esse valor ao total e, pronto, já estava. Não haveria cá fiação. Amarrotou novamente o papel, guardando-o no bolso do guarda-pó, que entretanto vestira. O ar condicionado estava ligado. Na paragem maior, a da merenda, veio à rua. Não o tinha feito nas mais curtas, as que não deram tempo para merendas, e arrependera-se em quase todas. Deixou estar o guarda-pó, malgrado, e cito, o calor de assar rolas que ali estava. Não ouvia a expressão desde pequeno, sempre pela boca do pai Manel, referindo-se à terra duns tios que acabou por nunca conhecer. Não percebia, então, se isso significaria muito calor, pouco calor ou um calor qualquer específico, não na sua intensidade, mas tipologia. Lá sabia ele, uma criança, que raio de calor assa ou deixa de assar rolas. Esquecera a expressão, redundante na memória, mas, assim que a ouviu, sentiu finalmente a que calor se referia o pai. Sorriu, porque estaria a fazer as coisas bem. Era um sinal. Só que um demasiado abafante e lá voltou para a carreira, esperando abraçar o ar condicionado que tanto maldissera. À chegada, num misto de dormências, cãibras, pingo e afrontamentos, esse revigorante sinal, do calor e das rolas, parecia já um fruto da sua imaginação. A exigência de que os trabalhos fossem em zonas afastadas logo lhe parecera lógica, essencialmente pela questão prática de não se querer cruzar com os anúncios da morte ou do funeral. Ou até familiares pequenos do falecido. Ia fazer-lhe confusão, isso, sem dúvida. Mas não contava que as viagens de autocarro tendessem tanto para a contemplação. Raios as quilhassem, pensou, se algum dia, em algum lugar, alguém conseguiu matar depois dumas horas de reflexão diante de uma paisagem, a setenta e cinco quilómetros horários. Ainda tentou engonhar, distrair-se da introspecção, e definiu a persona a adoptar (nada de mais, coxearia e mudaria um pouco o cabelo, ainda não decidira como), mas acabava por empanar constantemente no método. Pensara em corda, que tinha, mas não consigo, 10

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lâmina, que tinha, mas quase cega, marreta, que não tinha, mas sabia onde arranjar, e pistola, que não tinha, nem sabia onde arranjar, e, de todos, inclinou-se para o veneno. Era o melhor, era. Não obrigava a estar lá, seria um alívio. O problema é que, num ápice, lá vinha a janela do autocarro, o raio da paisagem e aquele compasso, de braço dado com a contemplação. Não demorou a ver-se novamente diante da mulher estrábica da Universidade, que agora o questionava, inda em ralhete, como raio estaria à espera de fazer vida disto, se nunca antes tirara a vida a nada, nem um peixe, quanto mais um mamífero. Fialho bem lutou, chegou até a mudar para a coxia, mas nada feito. Não seria capaz. Fosse como fosse, não queria velhaquear ninguém, nem voltar as tripas do avesso. No mínimo, teria de dar um aperto no velho. Revolveu o cabelo e, não fosse o diabo tecê-las, coxeou até uma taberna que, próxima duma praça, lhe parecera central. Lá dentro, mais do que a poalha e os vultos pendidos sobre mesas em ângulos de trinta e quarenta e cinco graus, destacava-se a fresquidão do sítio. Aproveitando aquele arejo abençoado, descolou freneticamente a camisa que o suor colara ao tronco, e, quiçá encandeado por toda aquela inesperada frescura, testou novamente o seu destino. Pediu um copo de vinho de enforcado. Sem esboçar qualquer reacção, o taberneiro virou costas e arrastou os pés até uma pipa perdida na penumbra. Fialho estava agora tolhido pela tensão. Depois do calor das rolas, havia vinho do enforcado? Nunca tal imaginou, não devia ter brincado com o fogo. Eram já dois sinais demasiado fortes, o seu destino estava traçado na pedra, não havia como ladear o maldito. Em desespero, passou as mãos pelo cabelo, para logo o voltar a desarrumar. Afinal, faria parte do seu disfarce e, por muito que Fialho tivesse visto a coragem minada pela contemplação, a profecia do pai Manel vociferava novamente por concretização. Baixou a cabeça e, à torrente de vinho no copo, seguiu-se a harmonia tosca dos pés rojados do taberneiro. Este, em coincidência com o copo batido no balcão, deu-lhe a conhecer uma aparente política da casa: “só há tinto”. Completou a intervenção com um “nada de clarete” e uma ofensa imediata, e nada velada, a apreciadores do dito, “esses rabolhos”. Na estação dos autocarros, Fialho era das poucas figuras que, ao suor, juntava serenidade, exsudando-os em doses idênticas. Fora agraciado com duas boas-novas. O imprudente desafio ao fado acabara por correr bem, ao passo que o beberique custoso do tinto (preferia clarete, olha que coisa) dera-lhe tempo para descobrir, em conversa de balcão, que o velho, o objectivo da sua viagem, esse mesmo, morrera há mais de vinte anos. Assim, nem seria preciso mentir à velha que o quis como homem de mão. Bastava um seco “está morto”, nada mais. Até lhe agradava a ideia de ser profissional de poucas palavras, como o John Wayne. Não era, contudo, nenhum parasita, estando então fora de questão ficar com a metade que já recebera. Abdicaria facilmente da outra, aludindo a uma qualquer facilidade inesperada, mas uma devolução acarreta sempre desconfiança. A melhor solução talvez passasse por devolver o dinheiro à velha sem ela dar conta. 11

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Também não era nada de mais, valha a verdade. Se Fialho não tinha grande perfil para ser Calças, é justo lembrar que, por aqueles dinheiros, dificilmente o arranjaria. Sem ser específico ao ponto de lhe dizer que o autor material respondia pelo nome de Pneumonia, e não Fialho, o facto foi comunicado à velha, que mui agradeceu, benzeu-se quatro vezes e prometeu trazer em breve o envelope com os outros cinquenta. Puxou da sua desculpa, tinha sido mais fácil do que estava à espera, e, nesse caso, ficava assim, a sério. Hesitante a princípio, a velha anuiu, benzeu-se novamente, agora apenas duas vezes, e saiu. Fialho respirou fundo. Durou pouco, porém, esse ânimo. Era-lhe complicado renegar as profecias do pai Manel, desapontá-lo, e à sua memória, de todo em todo. Voltou à leitura de bulas. Tinha sido ali, a lê-las, que vira crescer em si algo que, se fosse muito, talvez desse para ser um sega-vidas sem hesitações de maior. Podia ser que isso voltasse ou crescesse nele, forte quanto bastasse para resistir a janelas de autocarros, paisagens e afins. Na pior das hipóteses, enfim, juntaria algum dinheiro e talvez pudesse matricular-se no Liceu. Deixaria assim em aberto ambas as alternativas. Só que passaram dois anos, depois três e, eventualmente, até quatro, sem que no instinto assassino de Fialho se registassem grandes alterações. Estaria, inclusive, ainda menos activo. Naquela abrasadora semana de Verão de São Martinho, era já a quinta vez que expulsara aranhiços do seu quarto, recorrendo ao pacífico procedimento de os deixar subir para um jornal dobrado e, transportando-os até à janela, soprá-los de volta para o relento. Por vezes, chegava a murmurar um pedido de desculpas. Amolecera, estava bom de ver. Se fosse ao início, mesmo ao início, quando o fastio de ler bulas a velhas atacava forte, usaria o mesmíssimo jornal, só que enrolado, e como bastão, ao invés de transporte. As velhotas, por sua vez, não deixavam de ir morrendo. Os clubes de leitura de Fialho estavam cada vez menos concorridos. Às sextas, só muito raramente aparecia alguém. A própria senhoria já tinha ido de vez e os filhos queriam-no de lá para fora, que aquilo era tudo para vender. Preparava-se Fialho para voltar à terra, para casa da mãe Maria Júlia, fracassado, quer na missão Eça, quer na Calças, quando, pela janela, topou a velha que lhe encomendara célebre serviço. Vinha, curiosamente, à sua procura, contar a novidade. Abrira uma farmácia em cidade vizinha e, como o negócio das bulas até estava frouxo por ali, pensou que talvez interessasse essa imigração. Claro, que remédio, nem precisou de ouvir que haveria com certeza muita gente carente de quem lhe lesse aqueles folhetos. Saiu às primeiras horas da madrugada, agora a pé, que gastara praticamente tudo num casacão para si, há dois meses, e num frigorífico para a mãe, há ano e meio. A geada, ameaçando deixar marca na roupa nova, obrigou Fialho a socorrer-se do fiel guarda-pó, vestindo-o por cima. Uma vez lá, logo se abeirou da farmácia, para publicitar, junto de quem lá estivesse, os serviços que pretendia disponibilizar por ali. Podia parecer estranho, mas havia mesmo um pequeno mercado por explorar, esse que aproveitava 12

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a específica conjugação de hipocondria com cataratas. E a melhor forma de o publicitar ainda era, como em tudo, de boca em boca. A claridade já estava bem longe de ser de alvor e a farmácia parecia completamente por abrir. Fialho inspeccionou as brechas e, quando preparava um tosco binóculo com as mãos ao qual encostaria em breve a cara, a porta abriu. Um homem, com ar burguês, recebeu-o com um “Aleluia, porra!”, saudando-o bruscamente, antes de rematar com um “bem, ao menos veio logo vestido”. Tirada que, por alguma razão, remataria com uma gargalhada. Puxou-o para dentro, não tanto pelas acções, mas com aquele temperamento despachado, passou-lhe uma chave para a mão e saiu apressadamente, retrincando qualquer coisa sobre comboios, Lisboa e chegar a tempo de almoçar. Nas primeiras horas, ali ficou, à espera que o verdadeiro dono daquele posto entrasse por aí, desmanchando-se em justificações para o atraso, e se esclarecesse o equívoco. Não mais chegou. Podia ter acontecido alguma coisa grave. Podia ter-se arrependido, simplesmente. Com o tempo, Fialho deixou de se questionar sobre isso. Sem dar por ela, já lá iam quinze dias e, por essa altura, seria estranho assumir o engano a quem quer que fosse. Além do mais, ambientara-se na perfeição, que tanta bula lida, e muitas delas por baixo, sedimentaram nele conhecimento e confiança capazes de enfrentar olhos nos olhos qualquer comprimido, ampola, pomada ou xarope. O proprietário do negócio regressava a cada trinta dias, para despejar a registadora numa maleta e deixar o ordenado de Fialho, que fazia questão de colocar sempre num envelope onde, tudo em maiúsculas, se lia um garrafal “Dr. Carlos”. Mandou vir a mãe, como soía fazer-se assim que salário e casa o consentissem, e, c’um raio, era, finalmente, um José Maria com epíteto assinalável. Excepto uma vez por mês, em que, durante uns minutos, dava pelo nome Carlos, era então o Dr. Zé Maria Fialho, o farmacêutico que tentava escrever romances nos tempos mortos do serviço e a quem, muito de quando em quando, ainda encomendavam uma ou outra matança, que, sempre amavelmente, rejeitava.

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

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