O Progresso da Humanidade - Rui Cardoso Martins

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—•— Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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Contos Digitais DN A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN. Autor: Rui Cardoso Martins Título: O Progresso da Humanidade Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com © 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora ISBN: 978-989-8507-23-5 Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consentimento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor —•—

Rui Cardoso Martins Nasceu em Portalegre, em 1967. Licenciado em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa, é escritor, argumentista e jornalista. Publicou os romances E Se Eu Gostasse Muito de Morrer (2006), traduzido em várias línguas, e Deixem Passar o Homem Invisível (2009), que ganhou o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores/Direcção Geral do Livro e Bibliotecas (APE/DGLB). Tem contos publicados em revistas nacionais e internacionais. É cronista e repórter internacional do Público desde a fundação do jornal (dois prémios Gazeta). Fundou as Produções Fictícias onde cocriou e escreveu, por exemplo, os programas Contra-Informação e Herman Enciclopédia. É ainda coautor do programa de humor Estado de Graça, em exibição na RTP, e argumentista das longas metragens Zona J, Duas Mulheres e do último filme de Fernando Lopes, Em Câmara Lenta. O seu terceiro romance, Se Fosse Fácil Era Para os Outros, acaba de ser lançado (Setembro de 2012).

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O Progresso da Humanidade —•—

Rui Cardoso Martins

O jovem Oliveira andava há tempos perturbado com assuntos que não queria explicar mas, como disse à polícia um dos seus poucos amigos, não se esperava que acabasse de forma tão horrorosa e impossível de entender. Emagrecera muito, falava-se, mas isso não preocupa ninguém hoje em dia, pelo contrário. Oliveira estava a trocar gordura por massa muscular, notava-se na espessura dos braços e pescoço, e até se perdera a impressão, que dera logo na infância, talvez por causa das ancas largas, de que a vida dele seria uma luta contra os alimentos e cedo acabaria gordo e rendido à sua condição natural. A mudança de físico nas últimas semanas provava o total empenhamento no que estava a fazer, fosse o que fosse, correspondendo ao antigo Oliveira que chegou a ser admirado pelo seu espírito positivo mas que, naturalmente, acabou de vez quando morreu. De qualquer maneira, estava irreconhecível quando o encontraram naquele sítio esquisito. — Da última vez que soube dele, tinha voltado de Espanha onde foi fazer não sei o quê. Mas algo aconteceu, declarou o amigo. Na mesma linha abstracta, mas meditativo, o Inspector interrogou-se no inquérito: “Não é homicídio, não parece suicídio, nem é acidente, ou causa natural, talvez uma mistura disto tudo... Talvez tenhamos que inventar um conceito na criminologia. Uma categoria nova e, por assim dizer, selvagem, para classificar o óbito do indivíduo em causa”. O depoimento da família de Oliveira foi inconclusivo. Os pais disseram estar há dois anos sem contacto com o jovem. Depois duma zaragata, ele mudara-se para o outro lado da cidade sem dizer onde e levando, ao que parece — não houve queixa oficial — , 6

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a gaveta das jóias. Não sabiam mais nada e pareceram aliviados com o fim do pesadelo. No armazém, pedira dois meses de licença sem vencimento. Quando lhe responderam que não, despediu-se. O quarto de aluguer foi descoberto e inspeccionado. Não pagou o último mês. Deixou apenas roupa velha, pontas de cigarro no chão e um computador antigo (com o disco rígido queimado e irrecuperável), dando a impressão de que Oliveira saíra limpando os vestígios do passado ou, noutra leitura, levando consigo tudo aquilo que lhe dizia respeito. Mas existem dados objectivos sobre os últimos meses de Oliveira, desde anotações sobre a calibragem dos aparelhos com que treinava no ginásio, e quantas vezes os levantava, até factos ocorridos pouco antes de o encontrarem, meio comido, numa serra do Norte. Tais informações foram encontradas no caderno junto do corpo. Foi escrito à mão e, no entender das autoridades, parece uma mistura de bloco de notas prático com diário íntimo. Revelou-se muito útil. Está quase tudo legível, apesar das páginas coladas pelo sangue e pelas dentadas. O tom geral é calmo, estruturado e directo, por vezes parece escrito em tempo real. Mas, aqui e ali, revela “pulsões violentas e confusas, aparentemente favoráveis à instauração duma ‘nova ordem’ utópica, à mistura com saudosismo”, reveladoras, na opinião do Inspector, de que o indivíduo em causa não estava bem e que foi pena ninguém ter dado por isso a tempo de o salvar. Numas das primeiras páginas do caderno, Oliveira relata precisamente a viagem a Espanha, num fim-de-semana prolongado, registando-a como o “episódio espanhol”. O tom ingénuo surpreendeu alguns. “21 de Junho. Sierra de M. Almoço. Chego finalmente ao acampamento e sou muito bem recebido pelos camaradas daqui e de lá, depois de dizer a senha. Que união fantástica, que energia se respira neste local escondido! E depois de tantos dias de conversas e códigos na Net, e da longa viagem de comboio, o contacto directo com a natureza vai-me fazer bem. O cheiro dos pinheiros é brutal. À tarde, temos uma partida de futebol e um torneio de “tiro de soga” (duas equipas e uma corda grossa de 30 metros). À noite, há uma marcha na clareira da floresta. “22 de Junho. Manhã. Está tudo a dormir. Que fresco... Ontem, demos-lhe bem na cerveja! Queimei as palmas das mãos a puxar a corda... e perdemos. Houve um concerto rock na tenda central que deve ter acordado todos os bichos nocturnos. Quando escureceu a sério já era muito tarde. A cerimónia é no solstício de Verão: o sol está o mais longe possível da Terra, o dia é o mais longo do ano. Com Wagner no altifalante, deram-me um archote aceso e marchei no meu posto, o melhor que pude, numa das pontas da formação. Olhei para trás

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e estávamos todos a fazer uma enorme cruz luminosa, talvez do tamanho duma arena, mas acho que ficou torta. Depois de almoço. Há pouco, distraído, não respondi a uma saudação duns camaradas, rasteiraram-me e caí. Disseram que eu nunca teria a honra de ser um “caído”, um mártir da causa, e achei que era brincadeira. Mas o maior deles (uns 130 quilos) puxou-me o nariz e chamou-me porco judeu, chui e jornalista infiltrado, sucessivamente. Disse que num mundo de cordeiros como eu, ele preferia ser lobo. Para cúmulo, sem mais nem menos acusou-me de ontem ter saltado de propósito do desenho dos archotes para estragar a fotografia aérea da suástica, tirada do cimo duma rocha! Vi a foto da cruz gamada e de facto alguém sai do caminho, mas não se vê a cara, sei lá se fui eu! Defendi-me, mas eram muitos. Agora não posso mesmo mostrar a cara. Acho que estes tipos são completamente nazis. Pelo menos, são um bocadinho mais nazis do que eu esperava. Fim da Tarde. Concluí que o acampamento onde vim parar é pagão, esotérico e sanguinário. Não vou ao debate de encerramento. O tema central é a ressurreição de Hitler, quando regressar no seu Ovni de Messias. Não conto repetir este episódio espanhol. Enfiei-me na tenda, espero que seja noite. Alguém roubou o anel da minha avó da mochila. Pensava vendê-lo, não sei como vou voltar sem dinheiro. Nunca vi tantas tatuagens. Ouço botas. Vou escapar pela zona mais densa das bétulas.” A certa altura da vida o jovem Oliveira começara a sofrer, aparentemente, na opinião do Inspector, de uma inadaptação “quase congénita” às coisas que o cativavam. Entusiasmava-se muito no início, mas depois começava a ver os defeitos, a somá-los rapidamente na cabeça, e terminava numa desilusão brutal que o obrigava a mudar de objecto. O carisma evaporava-se. É óbvio que desprezava a democracia partidária. Admirava a ordem, a autoridade, e até a força bruta das ditaduras, incluindo o genocídio controlado nas circunstâncias particulares dum processo revolucionário. Por vontade dele, o mundo inteiro podia muito bem ser governado por uma só pessoa e os opositores deviam estar calados, evitando guerras inúteis. E se toda a gente ficasse na sua terra, não havia estrangeiros, só os necessários para limpar fossas, fazer cablagens de cobre, reparar estradas, etc. Mas Oliveira, em momentos inesperados, também revelara um coração triste e vulnerável que o atacava por dentro e à traição. Se calhar sofrera um grande desgosto, a hipótese esteve sempre em aberto e há boas pistas nesse sentido. Esforçava-se muito durante meses, aprendia, imitava os líderes dum grupo mas, logo que se integrava, tendia a dispersar-se, acabando por perder sem glória o trabalho anterior. Com o tempo, ganhou má fama entre os que lidaram com ele e tiveram que aturar-lhe os estados de alma. 8

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Por exemplo, numa semana acreditava na mensagem de Cristo e na piedade cristã, e na outra chamava fraco a Jesus e culpava-o de corromper a humanidade — a debilidade moral da misericórdia e da caridade, a praga de todos os homens serem iguais — , isto é, de ser o causador da decadência da civilização, e acabava furioso com esse homem. Mas, quando acalmava, admitia, por sua vez, que o seu maior resultado, o catolicismo antijudaico, se adaptara, ao longo da História, às virtudes de excelentes governos autoritários e era uma bela doutrina para esqueleto dum Estado. Oliveira era um espírito muito influenciável, mas ainda mais teimoso, terrível combinação para uma personalidade. Segundo o amigo, podia ser “quase esquizofrénico” encontrá-lo duas vezes na rua, com um intervalo grande pelo meio. — Na segunda vez que alguém o via, se calhar era já uma pessoa diferente... O amigo confirmou a mudança radical desencadeada pelo “episódio espanhol”: antes de Oliveira ir a Espanha, vira-o à noite, na rua, de cabeça rapada e blusão paramilitar. Ia beber nos bares com os companheiros, atacar um prédio de okupas e varrer em seguida os maricas, pretos e hippies do bairro, por esta ordem. Até assustava. Semanas depois, regressado de Espanha, deixara crescer o cabelo e um bigode de pontas finas e conversava de outra maneira, com inexplicável respeito pelos outros e quase a medo. Voltara a ser um solitário, a pensar nas coisas lá só dele. — Não percebi o que lhe aconteceu. Só notei que o nariz tinha levado uma porrada e parecia torto. Estava mais magro. Nunca mais o vi na vida, disse o amigo. Aliás, na verdade já não éramos amigos, dávamo-nos muito bem em putos, mas é preciso reconhecer que já não tínhamos nada a dizer um ao outro. Oliveira não gostava da confusão do mundo e tentava melhorá-lo periodicamente. Tinha febres de doutrinação (num leque de escolhas estreito). Foi assim que um dia partiu sozinho para aquilo em que acreditou pela última vez. A missão do jovem Oliveira. E foi também por isso que acabou degolado e sem tripas, estendido numa laje, no alto da serra. Convém lembrar dois períodos de Oliveira que se podem considerar intermédios ou, melhor, preparatórios da tragédia. Vêm descritos no caderno com frases e comentários mais curtos do que o traumático “episódio espanhol”. Talvez seja mudança de estilo, ou amadurecimento da linguagem, e não um sinal de que o seu espírito ardente arrefece. Repara-se nas maiúsculas, a reforçar a majestade que confere a certas pessoas e ideias. Os lugares-comuns são mais empolgados, ganhando certa originalidade. Durante o Verão, recolhera. Vigilante de armazém à noite, ginásio durante o dia. Preparava a primeira fase da viagem. A parte teórica, de exploração. Não estava a arrefecer. Pelo contrário. 9

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12 Outubro. Cheguei a Santa Comba à tarde. Deixei a mochila na pensão e passei pela casa, mas estava fechada. A duzentos metros já sentia o magnetismo do local. Do Homem que lá viveu. Fiz a pé os dois quilómetros até ao cemitério. As flores estavam frescas, em cima da campa. Os ciprestes gelados apontavam o céu. O Divino fica ali. Mas vergavam com o vento, dominados por um Poder maior. Nesse intervalo das árvores, os derradeiros raios de sol acariciavam o descanso eterno do melhor filho da Pátria.

No passado, fui distraído por aparências. Por folclores. Isso acabou. Sinto que é a Nação Eterna que me vai habitar. A Ela pertence o meu Ser. Voltei com a lua, ao quarto da pensão. Com a lua escrevo estas palavras. 13 de Novembro. Regressei à casa. Está quase em ruínas. Revoltante. Espreitei o grande jardim (vinha?) das traseiras, feito um silvado coberto de folhas mortas. Também a latada de uvas doces foi invadida por ervas trepadoras, hera daninha. Esta mantém-se verde todo o ano.... As flores são roxas. Assinei a petição para o museu. Uma vergonha se não deixarem fazer o museu. E dizem-se democratas. Bom, são realmente democratas... Eu rachava-lhes democraticamente as cabeças de melancia. E atirava o recheio aos cães. Falei com um responsável do movimento pelo museu. Amanhã posso ver o espólio! Prevejo um dia extraordinário. Vou esperar com calma. 14 de Novembro. Mal dormi. Tentarei sintetizar o Tesouro que vi. A Glória de nove séculos de Império interrompida pelos traidores da Pátria. Perdeu-se tudo em tão pouco tempo... Toquei no pincel da barba, a navalha, um conjunto de lâminas, um restaurador Olex a meio, a escova do fato. Está tudo catalogado em dezenas de caixotes de Sonasol e batata frita Pála-Pála. Dizem “FRÁGIL”. Também me senti frágil. Entre os objectos mais pessoais, só não pensam exibir as botas ortopédicas. E a maldita cadeira que fez cair o Presidente do Conselho. Que o matou no forte da Barra, ao bater com a nuca no chão. Essa cadeira preferida não está, para evitar mais sarcasmos. Aliás, penso que a cadeira foi para abate logo na altura. E bem. Mas estava a cama de ferro de solteiro, as malas de cartão no meio do pó. O Professor dedicou a vida a todos nós, humildemente. Suportou um peso enorme, só com a sua Fé nos destinos da Nação. Não pediu nada em troca. Peguei na caneta com que assinou leis do Império. Imagino que aquela caneta também mandou alguns comunas para as “frigideiras” de África. Uma assinatura a tinta permanente para o campo de férias do Tarrafal, a derreter a moleirinha debaixo do zinco... Espero que sim. À tarde, fiz a descoberta dos jornais da época. Interessante. Muito interessante, mesmo. É algures neste dia, depois do almoço, que se encontra, segundo o Inspector, a “chave”, ou “eixo”, do destino de Oliveira. O momento em que descobriu a vocação final. Cansado, sentou-se e abriu ao acaso uma caixa de pastas com recortes de jornais dos anos 10

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30 e 40 (séc. XX). “O período de maior esplendor do Regime”, como Oliveira escreve, com cerimónia. No meio dos recortes estavam várias notícias de primeira página sobre a Feira Mundial de Nova Iorque, em 1939, dedicada ao “Mundo do Amanhã”. A feira que anunciou um mundo de paz e prosperidade para todos os países do mundo, com cidades utópicas e verdes, a primeira transmissão em directo de televisão a cores e a primeira camisola de nylon, por exemplo. Oliveira ficou toda a tarde a ler. Nada estava catalogado e foi possível descobrir os artigos que manuseou, pois deixou-os colados uns aos outros, num canto da caixa. Numa página, dava-se conta dos avanços da construção do Pavilhão Português, e do êxito que o comissário português, António Ferro, esperava da participação: o triunfo do modernismo português. Oficialmente, no entanto, o regime descrevia o local como “o nosso modesto pavilhão, cantinho de terra portuguesa na grande América”. Em passeio nos jardins de Belém, Ferro entrevistava o ditador sobre os limites da Estética. Este respondia: “Ainda hoje é aos Estados autoritários que a arte mais deve, porque são mais construtivos, porque procuram febrilmente deixar na nossa época alguma coisa de durável, de eterno.” “Ditador” deve ser lido no seu lado positivo. Numa entrada do diário, por sinal, o jovem Oliveira aprecia os termos: “Ditador, ditadura, palavras bonitas que tentaram banir do lado bom do dicionário. O fascismo traz-se no coração.” Uma testemunha, presente no “museu” ao mesmo tempo que Oliveira (pediu para não ser identificada), contou também ao Inspector as exclamações de alegria do jovem no momento em que descobriu o retrato autografado de Mussolini. Era a moldura que o ditador português tinha na secretária, e só escondeu na gaveta quando a II Guerra Mundial começou. Isto é, acrescentou em nota lateral o Inspector, que se interessou a sério pelo assunto (dado o valor de prova na investigação da morte de Oliveira), “quando de repente o Lago da Paz da Feira de Nova Iorque se transformou numa paródia: os pavilhões ao seu redor entraram em guerra uns com os outros e ninguém se falava. O de Itália parece que foi reempacotado. A Alemanha não, nem sequer foi convidada.” — Eu também tenho o meu retrato do Duce!, foi o que o rapaz gritou — disse a testemunha. Em dois recortes mais antigos, de 1938, agrafados um ao outro, o Inspector encontrou o “triunvirato sentimental perfeito, o caldo verde político no qual o indivíduo em causa nadava.” Três fotorreportagens: na primeira, imagens de Hitler em Nuremberga, perante 150 mil oficiais nazis, anunciando que a Alemanha atingira a auto-suficiência alimentar e militar. “Uma suástica de archotes perfeita, melhor do que nos ‘episódios espanhóis’...”, escreveu o Inspector, com ironia, na única vez em que se refere a Oliveira com menor respeito. Agrafada à de Nuremberga, uma reportagem sobre Mussolini intitulada “Como se 11

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repousa e tonifica um dos homens que mais trabalham no mundo” (Mussolini nada no lago de Como, de careca reluzente, Mussolini discursa em tronco nu em cima duma ceifeira mecânica, Mussolini dança com camponesa num bailarico popular). Finalmente, na coluna do lado, anunciava-se a abertura oficial do concurso da “Aldeia mais Portuguesa de Portugal”. Não a mais bonita, mas a mais portuguesa. “Portugal, de há um século para cá, tem vindo a desaportuguesar-se, a trocar a sua vida antiga, simples, ingénua, graciosa, muito sua e distinta da dos outros povos, pelo modo de ser, pensar e agir do estrangeiro, nomeadamente do francês.” A tarefa, agora, era “reaportuguesar Portugal. Restituí-lo ao seu torrão nativo, à pureza dos seus costumes primitivos, posto de parte o receio de certos assustadiços e derrotistas, tementes de que tal renacionalização empecilhe o Progresso.” O Inspector sublinhou a expressão “pureza dos seus costumes primitivos”. Mais um termo que surge ligado à desgraça de Oliveira, tudo indica que sim. Mas a pista mais forte é a do próprio dia da abertura de Nova Iorque, 1939. O Inspector fotocopiou o recorte e distribuiu-o pelos colegas. Quando se inaugurava a feira mundial que mostrava “o Mundo do Amanhã”, as viagens interplanetárias e os robôs cozinheiros, o “Diário de Notícias” publicava, em caixa destacada na primeira página, a rubrica: COISAS QUE NÃO ESTÃO CERTAS À primeira vista o caso parece não ter importância de maior. Mas tem. E muita. Haver lobos em terras do Continente português é uma vergonha. É um sinal de primitivismo, de barbárie, de atraso, que não se compadece com as expressões do nosso progresso, com a situação de um país como Portugal, país civilizado, país europeu. Esta notícia teve grande impacto no jovem. O Inspector acha que sem ela, lida no local e no ambiente em que estava, “o indivíduo em causa ainda hoje estaria vivo”. Os colegas e superiores não acreditaram que um parágrafo de jornal, com quase setenta anos, pudesse causar aquilo, mas o Inspector fez uma pesquisa paralela nos jornais e Internet. Depressa descobriu a extraordinária coincidência: a visita de Oliveira a Santa Comba deu-se na altura em que surgiram notícias novas sobre “o regresso dos lobos a Portugal”. Setenta anos depois. Os pastores da Serra do Gerês queixavam-se de graves prejuízos provocados por lobos. “Os lobos já me comeram este ano mais de 20 cabras, e uma das vezes foi a 300 metros da minha casa. Tem sido uma coisa horrível”, dizia um. Os incêndios destruíram 300 hectares de mato no cimo dos montes. Os rebanhos desciam a serra e os lobos esfomeados vinham atrás. Outro pastor, dono de 60 vacas, explicava que o Estado nunca paga a tempo as in-

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demnizações previstas pela lei: “O lobo está a ser alimentado pelos nossos animais. É uma espécie protegida, mas quem lhe dá de comer somos nós”. Segundo o Inspector, a página do diário de Oliveira nesse dia explicava tudo. Escreveu: AINDA HÁ LOBOS Entramos, por assim dizer, na fase prática. Regressou à capital. Ginásio de dia (ritmo mais intenso), vigilante à noite. Aos fins-de-semana, inscreveu-se num grupo de caça no Alentejo, que nunca identificou. Seguia sexta-feira à noite, numa carreira de autocarro. Algumas pessoas interrogam-se agora como foi possível o jovem ter praticado caça sem licença e com armas de fogo não registadas. O Inspector não aprofundou o assunto, considerando-o secundário. Mas concluiu que ou ele manteve laços com alguém nos grupos extremistas, ou aprendeu o suficiente, enquanto por lá andou, e também no submundo dos ginásios e seguranças, para comprar o material sem problemas. De repente, Oliveira surgiu com uma caçadeira e, em breve, com uma carabina de caça grossa. Se calhar apresentou papéis falsos no grupo de caça em que se inscreveu. Deixavam-no guardar as armas na pequena sede na província, debaixo da vitrina dos troféus. Presas com cadeado e corrente, enroladas no camuflado. Oliveira gostava dos companheiros de caça, quase todos bastante mais velhos. Depois dum almoço-convívio, mostrou respeito pelo passado deles. 24 Fevereiro, Charneca do O. Almoço.

Metade destes homens estiveram em África. Lutaram pelo Portugal Africano, há mais de trinta anos. A caça traz-lhes boas memórias e temos tido conversas interessantes. Aqui não há problemas em falar e acho que confiam em mim, o “da cidade”, desde que finalmente matei duas perdizes no ar com dois tiros, no sábado passado... Um deles, a quem chamam o Gaio, mostrou-me cicatrizes das quatro balas dum “turra”, três delas no peito. Mas disse que ao preto não sobrou carne nem para uma única cicatriz. Que pegou na G3 e o desfez em cubinhos, em caldos knorr, em fondue. Por falar nisso, aqui comem muito. Estão um bocado gordos. Também bebem vinho e aguardente. Um careca anda revoltado porque há dias lhe tiraram a licença de caça, ele conduzia com os copos. “Como se isso tivesse alguma coisa a ver, esta lei nova é estúpida”, diz o homem a toda a hora. Durante um ano, vem só para ajudar na cozinha. Sei que não posso contar com eles directamente para a missão. Têm as suas vidas e não vão arriscá-las. Mas estão-me a ensinar tudo o que preciso: escolher o sítio, camuflar-me, esperar 13

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o alvo, apontar, acertar. Estou ansioso pela montaria ao javali, para a semana, que é o mais parecido, pelo menos usa-se bala de carabina (calibre 300 ou 330) e cães. A minha maneira, claro, terá que ser muito diferente, ainda para mais sozinho e sem cães. 3 de Março, manhã

Afinal houve uma troca a meio da semana e o javali foi trocado por uma batida à raposa, hoje e amanhã. Em certa medida, imagino que tenha algo de parecido com os meus objectivos, como canídeo que é. Tarde Saiu-me uma “porta” debaixo dum sobreiro. À minha frente, um terreno livre com ervas encharcadas, depois arbustos e, no cimo, um pequeno bosque, com algumas rochas de granito redondo. Com a ajuda do Gaio, aprendi a distinguir vários pássaros e tentei vê-los e escutá-los antes de começar a barulheira dos batedores. À minha frente estava uma milheirinha, atrás um chapim real, acho. Do lado esquerdo, na árvore, um cartaxo. Cantavam todos ao sol, sem ligarem à águia, por cima de nós todos, a chamar o companheiro. Mas lá chegou a berraria e as cornetas e as bombinhas de carnaval dos batedores, à minha frente, atrás do bosque. As raposas são muito manhosas, se ouvem um tiro deitam-se no chão a fazerem-se de mortas. Vêem muito mal: se o vento estiver a favor, são capazes de passar pelas nossas pernas sem darem por isso, se não nos mexermos, nem fizermos barulho e não derem pelo cheiro. Ouvi vários disparos à distância, mas não me calhou nenhuma. No turno seguinte, fiz eu de batedor, com uma corneta de spray. Parecia que estava no futebol outra vez... Andámos quilómetros, até fiquei com picos nas cuecas. No final, caçámos ao todo cinco raposas. Só não foram mais porque um caçador falhou dois tiros seguidos. Foi gozado e disse que as deixou escapar de propósito porque é ecologista. Observei as raposas penduradas na pickup, de cabeça para baixo, antes de serem esfoladas. Pingavam sangue, com a língua de fora. Uma delas era mesmo bonita... o pêlo dourado, o focinho curto e arrebitado. Pode-se dizer que era bela como uma mulher. O Inspector destacou logo este parágrafo estranho, com um sinal a lápis. Pressentiu que era relevante. Mais tarde, confirmou as suspeitas. 4 de Março:

Aconteceu uma coisa um bocado chata. Hoje, na primeira batida, no meio da gritaria dos batedores, vi uma bola de pêlo ruivo a correr na minha direcção. Fiquei muito quieto e apontei 14

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devagar. Eram duas raposas coladas uma à outra. Estavam a fazer “aquilo” e acabaram pegadas pelos “coisos” como cães. O macho puxava para o outro lado e com isto tropeçaram, enroladas à minha frente. Não tiveram hipótese. Nem me viram. Mas tive que dar mais dois tiros e ela, principalmente ela, fartou-se de gritar. Usei cartucho de chumbo 5. Toda a gente se riu muito. Que ideia estúpida, senhor raposo e senhora raposa, fazer poucas-vergonhas logo de manhã, à hora da caçada! O mais curioso desta história, disse o “ex-amigo” à polícia, foi o tom em que Oliveira a descreveu. — Parece mau gosto, brutalidade, mas para mim não é. Era a reacção típica dele quando estava a sofrer a sério. Olhe, lembrou-se!... Dois ou três anos antes, Oliveira tinha apanhado a namorada na cama com outro, um colega de escola dela. “Foi uma cena muito parecida com essa das raposas, na minha opinião...” e “a sorte dos dois foi ele não estar armado”. Era ruiva, linda, e estava farta dele. O jovem abandonou a casa dos pais e mudou para o outro lado da cidade. Nunca mais o viram com mulheres. Na noite da caçada, Oliveira despediu-se dos companheiros e não voltou. Noite:

Garantem-me que os lobos do Sul acabaram há uns 40 anos. Parece que há menos tempo um miúdo viu um lobo nestas terras, debaixo dum castanheiro, a vigiar um rebanho de borregos. Mas esse ou veio de Espanha, ou foi engano, talvez um cão grande. Aqui já não há lobos. Vou tatuar um no braço. Despediu-se do emprego nessa semana. Não se sabe o dia em que chegou ao Gerês. Terá acampado primeiro junto da barragem de Vilarinho das Furnas. No diário, refere “as paredes mais altas da aldeia-fantasma, afogada pela barragem, erguendo-se da água.” Depois partiu para a zona do pastoreio, entre a Peneda e o Gerês. Averiguações junto dos pastores confirmaram que, ao chegar à zona, Oliveira não foi bem acolhido, porque ninguém o conhecia e por outras razões: um pensou que era mais um ecologista fanático, à procura de venenos e armadilhas de ferro, os horríveis ganchos que partem as patas dos bichos, algo que negaram utilizar; outro julgou que fosse um representante do Governo. “Fiz-lhe a minha queixa dos pagamentos atrasados e dos animais que me comeram na serra, ainda na semana passada me foi mais uma cabra, mas ele logo me disse que estava ali para outra coisa.” — Vou aos lobos, mas à antiga, foi o que ele me disse. Tinha o focinho dum lobo 15

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desenhado no braço. Na altura não percebi nada. Ou fez que não percebia, acrescentou o Inspector. A polícia acredita que Oliveira fez um acordo com um dos pastores, usando o sentido prático já revelado na história da carabina (nova, mas sem números de série visíveis ou outras formas de localização. Nem a fábrica em Itália descobriu o lote exacto). Oliveira omite pormenores, mas teve orientação no terreno. 1 de Abril, Gerês.

Andei uns quarenta quilómetros a pé, por azinhagas. Montei a minitenda perto dum riacho e o posto de vigia num ponto alto. Pus um cobertor numa placa lisa de basalto, o que me permite disparar deitado. Cortei vários ramos de giestas para me esconder. Ainda não vi nada, só dois ou três cavalos selvagens no caminho, nas pastagens mais frescas, aves de rapina no céu e coelhos no chão. Não os posso caçar, chamaria demasiado a atenção. E afugentava-me a presa. Não farei fogo à noite, nem comerei nada quente, para não cheirar à distância. Enterro as latas. Creio que vou ter mais hipóteses ao cair da noite. Trouxe óculos de visão nocturna. Vejo tanto como eles, agora, mesmo com a lua nova. Não contavam com isso... Do meu posto de vigia controlo um rebanho de cabras. Se aqui não funcionar, coloco a hipótese de usar um “fojo” que ainda existe, segundo me disseram, aqui perto, a norte. É uma espécie de curral grande num buraco, uma arena fechada de rochas altas, granitos e xistos, que os pastores construíram no passado. Só há uma entrada, com uma laje colocada num ângulo de maneira que um lobo que entra já não consegue saltar para fora. O isco do lobo era, antigamente, uma cabra ou borrego doente ou ferido. 3 de Abril.

Hoje ouvi uivos. Corri para a rocha mas tive uma surpresa. Eram cães. Tinham-me dito que há aqui matilhas de cães abandonados há tanto tempo que ficaram selvagens. Chamam-lhes cães assilvestrados. Parecem perigosos. Mas não passam de cães. 4 de Abril

Vi o primeiro lobo! Era enorme, cinzento, com a língua esticada e vermelha como um lenço molhado. As cabras desataram numa berraria e a fugir monte abaixo e eu fiquei paralisado, a ver, deixando-o desaparecer, com a carabina ali tão perto! Tenho de me concentrar. Que estúpido desperdício! Nunca percebi tipos que vão só observar os bichos, sem levarem nada para casa.

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6 de Abril

O lobo de ontem devia ser um solitário. Gosto desses. Só não há espaço nesta serra para os dois. Os solitários são lobos jovens expulsos pelo macho dominante da alcateia. Só o chefe tem direito a procriar com a sua companheira, também a única que tem lobitos (ou lobachos). Até serem proscritos, e tentarem fundar ou entrar noutra alcateia, os solitários são humilhados, mordidos, todos os companheiros os tratam mal. E todos os falhanços na caça são atribuídos ao desgraçado, mesmo quando outro lobo é que não cumpriu a função no cerco à presa. Como em tudo, neste mundo desatinado, também existe um “lobo expiatório”. 15 de Abril

Continuo vigilante, mas cansado. De manhã, acordo molhado da geada. Os dias passam. Estes animais comem ou não?! Onde andam eles? Começo a perder a esperança de encontrar uma alcateia em movimento. Vi três javalis, mas eles já não caçam javali. Para apanhar um animal tão grande, e deitá-lo ao chão, são precisos pelo menos sete lobos. As alcateias aqui têm no máximo quatro. Tarde Descobri o fojo. É grande e parece em bom estado, só que está cheio de mato. 16 de Abril

Saí a meio da noite, depois de escutar uivos ao luar. Aventurei-me num pequeno vale de castanheiros, numa direcção que ainda não tinha experimentado. Tenho esperança de que seja um ninho, um covil, mas pouco vi. Só o brilho de quatro olhos à distância. Estou na tenda. Volto amanhã. Sou um soldado na trincheira da civilização. 17 de Abril

Encontrei o covil! Afugentei, com um tiro falhado, dois lobos que o guardavam. Mas depois encontrei a fêmea. Estava prenha e mostrou-me os dentes. A bala era mais explosiva do que eu pensava. Uma patinha de lobito saiu para fora da barriga, ainda a mexer. Havia outros cachorros lá dentro. Vim-me embora o mais depressa que pude e cortei-me na mão, deitou sangue. Agora tenho que apanhar o lobo chefe... ele já deve ter o meu cheiro. Não saio daqui sem tratar do assunto. 18 de Abril.

Apanhei um cabrito coxo. Amanhã vou pô-lo dentro do fojo, e espero. Dizem que às vezes 17

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basta um tiro. Não vou dar hipóteses. Se o lobo ficar ferido, pode mesmo assim saltar para fora, acossado e cheio de ódio. O caçador passa a caçado... Aqui termina o diário de Oliveira, cujo corpo foi encontrado uma semana depois, já descarnado em grande parte. No braço direito, sobrava metade da tatuagem do lobo. Aparentemente, disparou mais um tiro de carabina, que se encontrava a alguns metros do cadáver. O fémur direito de Oliveira estava rachado, com formigas. É possível que tenha escorregado, o ferimento parece resultado duma queda. A questão seria aprofundada no relatório final do Inspector. A descoberta da carcaça da loba grávida, com quatro fetos no ventre, foi muito lamentada pelos serviços florestais. A bala era da carabina de Oliveira, assim como a cápsula de uma segunda caída no chão, segundo a balística. Fez-se o inquérito aos pastores da serra. Julgavam que o rapaz tinha voltado a casa. Afirmaram não ter nada contra os lobos, mas que não podem ser eles a pagar-lhes a comida e os estragos. “Nisso parecem ter razão, porque as indemnizações demoram meses a chegar. Ainda para mais, muitas vezes conclui-se que a morte do animal foi provocada não por lobos, mas por cães assilvestrados, caso em que não há lugar à indemnização”. Para a autópsia de Oliveira chamou-se, além de um perito forense, um técnico veterinário. Levou tempo. O relatório do Inspector começa num tom formal, mas termina numa espécie de desabafo. Depois de uma investigação inédita, a surpresa: “A análise dos ferimentos mostra que o indivíduo em causa não foi atingido por arma de fogo nem sofreu, provavelmente, golpe de arma branca. A hipótese de homicídio ou suicídio violento foi descartada, em princípio. Mas tudo indica estar errada a primeira hipótese de ter sido um lobo, ou lobos. O lobo tem uma morfologia de crânio e mandíbulas única, cujo poder de dentada é de 60 quilos por centímetro quadrado. Consegue triturar ossos com uma só dentada, incluindo pescoço, para aceder ao tutano e medula. A forma como morreu a vítima, com a jugular rasgada e toda a zona cervical mastigada, em golpes menos violentos mas persistentes, e muito numerosos, aponta para dentes de um animal, ou animais, com um poder de dentada de 20 quilos por centímetro quadrado, no máximo.” Tal deixava em aberto a hipótese javali. Mas o ADN esclareceu. “Os pêlos e saliva encontrados nas comissuras das feridas, incluindo na cavidade ventral (vulgo barriga), de onde haviam sido extraídos e devorados os intestinos, confirmaram, sem dúvida, que a morte de Oliveira foi, tristemente, consequência dum ataque de vulgares cães domésticos, abandonados pelo homem.”

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(Publicado originalmente na revista Ficçþes, em 2007)

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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