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Brasil, Rio de Janeiro, 2015.
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café derramou sobre a mão de Aurora, que estava distraída olhando para a TV na parede do restaurante. O líquido quente escorreu por entre as bordas da xícara sujando parte do piso vermelho, mas limpo, do Ben Restaurante e Bar. Aurora se amaldiçoou e começou a limpar o estrago, enquanto pedia desculpas para o primeiro cliente da manhã: − Mil desculpas! Entrego o seu café num minuto... Onde eu estava com a cabeça? − Não se preocupe. Não estou nem um pouco apressado – garantiu o cliente sem se importar com pequena confusão. Aurora pensou como teve sorte de o desastre acontecer com um freguês tão compreensivo, pois seria ainda mais embaraçoso ter que lidar com essa situação tendo uma pessoa chata, insistindo o seu pedido.
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Nunca mais esse tipo de coisa havia acontecido com Aurora, a não ser nas primeiras semanas trabalhando no restaurante, quando a falta de experiência era óbvia, uma vez que ela nunca havia trabalhado. Ela agradecia infinitamente ao Benjamin, ou Ben, por ter lhe dado esse emprego no momento em que a sua vida estava um verdadeiro caus. Menor de idade, sem dinheiro, sem casa e família, o Ben Restaurante e Bar foi a melhor coisa que lhe aconteceu. – Eu não sabia que o Ben tinha rebaixado você a faxineira. Aurora levantou o seu olhar do chão sorrindo para sua amiga Suzana, que também sorria para ela sobre o balcão. – Não fui rebaixada a nada Suzi, apenas me distraí tempo suficiente para derramar o café. Ela voltou a sorri para o freguês, que a observava tranquilo, e se virou para encher novamente uma xícara com café fresquinho. Entregando, finalmente, o pedido do cliente, Aurora começou a limpar o bar. – Distraída? Não sabia que você era fácil de ser distraída. – Suzana sentou em frente ao balcão, depositando uma mochila rosa sobre ele. – Nem o homem mais gato do mundo seria capaz de distraí-la... O que foi? – Nada demais. Algo que vi na TV me chamou a atenção. – Na TV? Suzana olhou para o pequeno aparelho de quatorze polegadas preso no canto superior do restaurante, mas não viu nada de interessante que despertasse o interesse de Aurora. O telejornal da manhã exibia uma matéria, exclusiva, com o novo Governador do Estado, destacando suas ideias a respeito de pesquisas espaciais.
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– Nada demais. Esquece. – Aurora continuava a passar um pano úmido sobre o balcão vermelho da recepção do bar, mas era notável que ela continuava atenta ao que o telejornal exibia. – Okay. Então, cadê o Ben? Vim especialmente para comer uma de suas tortas de frango. BENNN...! Aurora era contra algumas atitudes de Suzana, principalmente no que dizia a respeito em gritar dentro do seu local de trabalho. Mas Suzana era a sua melhor amiga, discutir com ela estava sempre fora de cogitação. Da cozinha veio um grito de resposta e em instantes as suas portas foram abertas, revelando um homem de cabelo grisalho e uma barriga nada discreta. O seu sorriso bondoso realçava os seus olhos acinzentados, já há muito cansados de uma vida longa de trabalho. – Isso é hora de você gritar no meu restaurante, Suzana? As festas são aos sábados à noite. – Ah Ben, você sabe que eu adoro suas festas, mas gosto muito mais de suas tortas de frango no café da manhã. – Você sabe como deixar esse pobre velho envergonhado. – Ben bateu de leve nas mãos de Suzana, as quais estavam postas sobre a madeira vermelha. – Trago já a sua torta. E fico feliz em dizer como é bom ter mulheres como você no meu restaurante, comendo tudo que há de melhor sem ligar para o número na balança. Suzana gargalhou espontaneamente, e Aurora achava que o Ben tinha razão. Sua amiga era uma linda mulher, e a surpreendia por ainda estar solteira, principalmente por saber que homens faziam fila para namorar uma ruiva atraente como ela, de rosto angelical e corpo de modelo. Além de linda, Suzana era muito inteligente e amiga para todas as horas.
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– O Ben tem razão. Como é que você não engorda? – Acho que é genética, ou o fato de eu não ligar muito para isso. – Ela joga seu cabelo ruivo de lado e por pouco não acerta o cara sentado ao seu lado: – Desculpe. A campainha da porta, um antigo sino que Aurora sabia ser muito antigo, tocou e algumas pessoas entraram no restaurante. Aurora pegou o bloco de anotações sob o balcão e caminhou para as mesas para anotar os pedidos. Fora do Ben Restaurante e Bar, uma BMW 6-series Gran Coupe 2014 prateada estacionou à meio-fio. O vidro do carro baixou até a altura do nariz de seu motorista, que com óculos escuros observava a garçonete atender os fregueses em suas mesas. O sorriso de dentes brancos que ela dava para seus clientes era acolhedor. Seu cabelo preso em um rabo-de-cavalo era um verdadeiro córrego de fios castanhos. Já seus olhos estavam, literalmente, distantes e o motorista misterioso não conseguia distinguir sua cor de onde estava. Ele precisava entrar e encarar a bela mulher, mas algo o impedia desde que a viu uma semana antes, quando, por acaso, teve que estacionar o seu carro em frente ao restaurante para atender seu iPhone. Antes achava que seus princípios o prendia, mas naquele momento ele não sabia mais no que pensar, a não ser olhar nos olhos da garçonete. Quando Aurora voltou ao balcão para fixar os pedidos dos fregueses, ela notou que Suzana já estava em posse de sua deliciosa torta de frango. No entanto, Suzi parecia estar mais interessada em algo além da porta do restaurante. – Algum carinha bonito avista? – perguntou Aurora, surrupiando um pedaço da torta de sua amiga.
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– Eu não tenho certeza, mas acho que aquele carro tem estacionado aqui em frente durante toda a semana. – Deve ser de algum freguês e você não reparou antes – sugeriu Aurora, também olhando para a BMW prateada. – Desde quando o Ben Restaurante e Bar serve fregueses com BMW? – Suzana voltou sua atenção para a torta, mas ainda parecia estar preocupada. – E a propósito, eu notei que quem a dirige nunca sai de dentro, pelo menos não quando está estacionado aqui em frente. – Você acha que é algum bandido? – Aurora querida, você pode ser a primeira na turma de Astronomia, mas quando se trata de ter uma mente mais... criativa, você me espanta. Quem já se viu um bandido com BMW? Por favor. – Desculpe-me, mas a probabilidade de um bandido hoje em dia ter um carro desse é bem maior do que o Ben Restaurante se tornar um restaurante de luxo. Aurora era aluna de Astronomia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e ela era acostumada a lidar com fatos, números, possibilidades e probabilidades. O caso de ter uma pessoa estacionando uma BMW todos os dias em frente ao seu ambiente de trabalho com certeza não se dava pela ideia de ser um local de luxo. – Eu só quero dizer que é estranho. – E mais estranho ficará, pois a porta do carro está sendo aberta. Suzana virou o rosto a tempo de ver um homem alto, loiro e de óculos preto sair do carro. Seu cabelo de ouro era curto, com pequenas ondas que descia abaixo das orelhas. Os seus ombros
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eram largos sob a camisa social branca, e a calça em jeans preto estava justa nas suas longas pernas, que caminhavam para a porta do restaurante. – Ele está vindo para cá! Aurora não sabia o que fazer a respeito do estranho cara, bonito e sexy, que estacionava, segundo Suzana, todos os dias em frente ao Ben Restaurante. Ele não tem cara de bandido, foi a primeira coisa que ela pensou, mas se ele quisesse sequestrar alguém, que esse alguém fosse ela. – E agora? – perguntou uma Aurora desesperada para uma Suzana chocada. – Agora? Você vai atendê-lo! Ele está sentando em uma das mesas e você é a garçonete. Vá anotar o pedido dele! – Eu?! – Não! A Madre Tereza de Calcutá. É claro que é você! Suzana apanhou o bloco de notas sobre o balcão e jogou nas mãos de Aurora, empurrando-a para as mesas. Trêmula, ela caminhou devagarzinho para a mesa próxima da janela, onde estava sentado o estranho e atraente freguês. – Em que posso ajudá-lo? – perguntou Aurora. Ela estava nervosa e mal conseguia sorrir. Diferente dos outros homens, esse loiro de óculos escuro estava a deixando perturbada. – Um café sem açúcar, por favor. O pedido foi simples e direto. Ele nem se deu ao trabalho de tirar os olhos do cardápio. Com certeza não gostou do lugar, pensou Aurora anotando o pedido. – Mais alguma coisa? – Não. Obrigado.
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– Okay. Trago o seu café em um minuto. Enquanto Aurora se afastava de sua mesa, ele se martirizava mentalmente por ter sido tão frio com a bela garçonete. Mas ele também se sentia infeliz, pois ela não sorriu carinhosamente para ele assim como sorria para os outros fregueses. Ele tinha sido um burro ao sair do carro e ter entrado no restaurante. A sua real tarefa não envolvia esse tipo de atitude precipitada, exigia inteligência e controle. Assim ele foi criado, para ser inteligente e agir certo na hora certa. Infelizmente, a garçonete mexeu com os seus princípios e agora ele se encontrava perdido. Se ele não tivesse parado para atender o telefone há uma semana, não estaria nessa situação. Estava chovendo muito e ele não queria arriscar dirigir e falar ao celular em meio a chuva. Então, ele estacionou o veículo prateado à meio-fio de um restaurante e atendeu a chamada: – Lyon, ele entrou em contato – disse a outra voz na linha. – O que ele queria? – O de sempre. Resultados. – Explicou para ele a nossa situação? Disse a ele o quanto está sendo difícil entender toda a situação que aqui existe? – Sim. Dei detalhes de nossas pesquisas, mas ele não ficou satisfeito. Devo confessar que me sinto até à vontade de estar distante dele, pois não sobreviveria com as suas... advertências. – Esse é o nosso trabalho, Sayron. E o Aaron, onde ele está? – Ele está aqui. – No outro lado da linha, escutou-se a confirmação de outra voz. – Ele não sai da rede social. Diz que está conversando com uma tal de Daiana. Espero que isso nos ajude em alguma coisa. – Também espero...
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Vagando o olhar pela chuva, Lyon olhou diretamente para o restaurante ao seu lado. Tinha uma aparência simples, uma mistura de bar e lanchonete para trabalhadores da região. Apesar de parecer bem limpo e arrumado para um bar, não era um bom lugar para se levar uma companhia elegante. Por entre os vidros de seu carro e da janela do estabelecimento, Lyon notou a presença de uma pessoa, que com certeza não coincidia com aquele ambiente, muito menos com o bairro. A garçonete de cabelo castanho, amarrado em um rabo-de-cavalo, era o prato mais saboroso ou a bebida mais cara do restaurante. – Lyon, ainda está aí? A voz do outro lado da linha trouxe Lyon de volta ao seu estado normal. – Desculpe, tenho que desligar. Está chovendo muito. Antes que Sayron falasse, Lyon já desligara a chamada, ao mesmo tempo que a garçonete lhe servia o café sem açúcar, interrompendo seus pensamentos: – Tem certeza que não deseja mais alguma coisa? – Aurora perguntou automaticamente, desta vez sem dar ao trabalho de tentar sorrir. – Não. É só isso. Obrigado. Sem mais demora, Aurora voltou ao balcão para receber o pagamento do seu primeiro freguês do dia, desculpando-se mais uma vez por ter derramado o café. Antes que ela fechasse a caixa registradora, Suzana a abordou com perguntas: – E aí, qual o nome dele? Ele gostou de você? E o que você achou dele?
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– Respondendo as suas perguntas... – Ela fechou o caixa. – Eu não sei o nome dele. Ele com certeza não gostou do meu atendimento e, por último, eu o achei grosseiro. – Ele pode ser grosseiro, mas tenho certeza que ele tem pegada. Suzana mordeu os lábios de forma sexy, provocando a sua amiga no outro lado do balcão. – Se você diz, por que não dá em cima dele? – desafiou Aurora, recebendo do Ben a primeira rodada de pedidos. – Ele não faz o meu tipo, sabe. – Não. Eu não sei. Com licença. Aurora não entendia a sua amiga. Suzana era rápida em muitas coisas, mas quando o assunto era homem, ela sempre vinha com o papo que não era seu tipo. E qual era o tipo dela? Como a única garçonete do Ben Restaurante e Bar, Aurora tinha que atender todas a mesas sozinha. Ela não se incomodava, mas nesse momento ela queria muito ter uma parceira para jogar nos braços do loiro de óculos preto e não ter ela que atendê-lo. Enquanto atendia as outras mesas, observava que ele já havia há muito bebido o café, e era o trabalho dela oferecer mais. Terminando de servir os outros clientes, Aurora caminhou para a mesa próxima da janela, mas antes que ela chegasse a ele, ele já se levantava e jogava o dinheiro ao lado do cardápio, atravessando rapidamente a porta para entrar no carro e sair em um borrão prateado. Na mesa, Aurora recolheu a xícara e apanhou o dinheiro, surpreendendo-se com a quantidade deixada de gorjeta; três vezes o valor do café. – Perdeu sua chance.
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Foi a primeira coisa que Suzana disse quando Aurora voltou com a xícara suja e o pagamento. – Chance? – Ah, deixa para lá. Amanhã ele estará aqui novamente e você vai estar preparada. Suzana mexia dentro de sua bolsa, provavelmente procurando o dinheiro da torta. – Amanhã ele não estará aqui. Foi coincidência. Nada de mais. Aurora não tinha certeza do que dizia e nem do que fazia, pois quando recebeu o pagamento de Suzana, quase colocou o prato na registradora em vez do dinheiro. – Eu gostaria muito de ficar e questionar a sua atitude. Infelizmente, temos prova de Astrofísica e não quero dar ao Ronie o gostinho de me reprovar. Logo Aurora só enxergava o borrão ruivo que era o cabelo de Suzana escapando pela porta de entrada. Mesmo em sua forma mais simples, Suzana conseguia despertar o interesse dos poucos homens presentes no restaurante. Aurora se perguntava se alguma vez um homem olhou para ela daquele jeito. É claro que seu exnamorado não contava, pois ele era um idiota. Com os seus pensamentos no lugar, Aurora refletiu a respeito do homem estranho que tomara café e deixara para ela uma gorjeta generosa, apesar de ter sido tão frio com ele e vice-versa. Mas se Suzana tinha razão, qual o objetivo do loiro misterioso em estacionar todas as manhãs em frente ao Ben Restaurante e Bar? Era óbvio que ele não era nenhum tipo de bandido e muito menos o tipo de cara que frequentava restaurantes que não fosse Cinco Estrelas.
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Antes que Aurora pudesse aprofundar seus pensamentos, uma nova voz lhe chamou a atenção. Mas essa voz não vinha de nenhum freguês pedindo a conta, ela advinha da pequena TV na parede, ainda ligada no telejornal da manhã. O homem na tela sorria satisfatoriamente para a repórter do programa, mas no fundo de seus olhos se enxergava a infelicidade de sua vida. Aurora pegou rapidamente o controle, mudando o canal da TV para o que parecia ser um programa infantil. Seu próximo passo foi correr para uma das mesas, onde dois adolescentes acenavam para fazer o pedido.
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