Rebentar

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O Rebentar das Ă guas


Título: O rebentar das águas Autor: José António Rocha Ideografia Editorial: Aristides Dourado Edição: Associação Cultural e Recreativa de Mansores © José António Rocha Associação Cultural e Recreativa de Mansores ISBN: 972-99981-0-8 Depósito Legal: 245484/06




O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso. Fernando Pessoa



POÉTICA



Não escrevo poemas. Nunca o fiz e duvido vir a fazê-lo algum dia. Os poemas, aliás, não se escrevem. Perguntarás, se menos convencido, o que chamo àquilo que escrevo. Responderei que certos ajuntamentos de palavras, os quais num primeiro instante desejaria que fossem poemas, seres vivos, respirantes e respiráveis. Porém, não o são. Quanto muito, deixarei pegadas sobre a areia da praia do poema, pegadas que as ondas e o vento, com a mesma inocência com que beijam e abraçam, apagam. Ao escrever limito-me a imitar a sua persistência, a refazer nas câmaras da memória quanto os dias – escrevendo-se uns sobre os outros – indistinguem. E faço-o teimando, com esforço, em juntar palavras quase tanto como meu pai em juntar a família no Natal e na Páscoa e minha mãe em juntar o dia e a refeição à oração. É do senso comum que quotidianamente juntamos palavras. Não é todo o ajuntamento de palavras um instrumento da linguagem com vista à transmissão de determinada mensagem? E, de certo modo, não dispensam as palavras qualquer ajuntamento para constituírem, só por si, uma mensagem? Quando digo «amo-te» sem juntar a esta qualquer outra palavra, tu compreendes‑me. Porquê, então, falar com tamanho respeito do acto ordinário e mesmo dispensável de juntar palavras?

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Porque é de um outro modo de juntar palavras que aqui se trata, aquele em que, subvertendo-se, as palavras se despedem da função de estafetas ao serviço da linguagem e formam comunidades de libertos às quais os homens são convidados a aderir. Estas comunidades regem-se por leis próprias, diferentes das leis que presidem à linguagem. Sempre que alguém se torna parte de uma delas, assumindo estas suas leis, forma-se um poema. E entre aquele esforço em juntar palavras e estas comunidades de homens e palavras estende-se um arco a que chamo poesia. No céu, pela perfeição que lhe é própria, não necessitaremos dos comuns instrumentos da linguagem para nos darmos em comunhão. Mas tenho a certeza de que as palavras, pela dignidade que lhes dá a poesia, hão-de habitar aí connosco, tal como habitam aqui, neste mundo e nesta vida. Não pode ser de outro modo. E estou profundamente convencido de que pela poesia sou inscrito no livro da vida, isto é, em Deus. Possui-me ainda uma secreta esperança, a de que pela poesia seja inscrito também no livro de tua vida. Mas não é a mim que cabe fazê-lo.

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NUS



1 Canto. Bajulo o silêncio que não alcanço nem me coloca a mão na boca.

2 Amamo-nos a ponto de fazermos permuta de livros como se de membros.

3 Eis o silêncio tão intenso que o tic tac dos relógios quebra os vidros e os ouvidos.

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4 Tanto as horas nos adoram. De que outro modo se lançariam kamikases sobre o sol?

5 No preciso lugar do coração resplandecente sobre a sombra clareira a perfumar o próprio chão.

6 Veio ao mundo sozinho aquele que ao partir não levou alguém consigo.

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7 Senhor lança as raízes do meu canto tão subterrâneas quanto o centro da terra.

8 De tanto amar ama de cor enquanto o coração pensa noutras coisas.

9 Cego pela luz que na sombra busca assim o enamorado.

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10 Seja por falta de fôlego ou atenção mística reparo no ar que inspiro.

11 Uma flor não é uma flor a mão de Deus abrindo-se.

12 As vezes que esqueço de comer como se de um poema me houvera alimentado.

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13 A tua sombra clara tarde de primavera.

14 O sol despenhou-se pelo meu corpo adentro o sol a m煤sica o perfume o vento.

15 Estranha maneira de andar este cair a cada passo por s贸 nas palavras me firmar.

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16 Há um universo escrito no verso de cada verso.

17 É kronos um deus de misericórdia: com um braço fere com um braço cura.

18 Nem só foneticamente o amor rima com a dor.

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19 Beijo flores com ânsia de teu sexo.

20 Eis-me desperto a teu lado enquanto meu corpo dorme um sono feliz.

21 Mulher: dá-te-me um poço. Romã sem fundo.

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22 Um só é o corpo onde se morre. O amor único – dizem – é íntimo do salmão e do cereal.

23 Com que subtileza os reis mudaram suas liteiras por carrinhos de bebé.

24 Sensatos ou imprudentes os insectos quando bebem no mosto a cicuta?

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25 No teu torso tronco de รกlamo enxertei uma roseira.

26 As palavras que sรณ diz quem se dรก.

27 A voz do vento tange as รกrvores e as bailarinas.

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28 Bem poderia pintar duas gaivotas no céu. Mas fazê-las voar?

29 O último ponto final precursor da manhã onde o silêncio principia.

30 Nevou sobre a terra. Oh belo alvo manto de mulher grávida.

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31 O poeta enterrou seus problemas no descampado dos poemas.

32 Cidadão anacoreta na solidão da discoteca.

33 Solidão das solidões a de estar só entre milhões.

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34 Até a crítica da crítica o poeta usa como musa.

35 Entre o leitor de CD’s e o melro quando tão poucos são os metros tão distantes embora perto.

36 Como se fossem folhas no Outono caíram-me os sonhos.

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37 Deu-me o sol no chão de um laranjal. Fruta de inverno.

38 É estar morto fingir viver sem amar-te ó morte.

39 No estrume começa o aroma da maçã.

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40 A areia escorre na ampulheta feita de areia.

41 E quando todos formos burgueses aonde iremos nós fazer os pés?

42 E quando todos formos mestres quem nos virá fazer os pés?

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43 Nos dias em que me amavas reparei que reparavas mais nas flores.

44 Quem me poder谩 convencer de que vivi um s贸 instante que passei longe de ti?

45 A flor da alegria sorriu e o jardineiro abriu-se floriu.

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46 Repara como em campos áridos crescem sons com duas faces ruído e silêncio.

47 Ainda o rugido do incêndio se ouve ao perto já a vida o desafia no silêncio de um feto.

48 A lua deusa de face noctilúcia sentada a pentear as estrelas.

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poemas



CERTO SILÊNCIO

De quanto canto e digo nada mais que ruído virá alguém escutar nele certo silêncio apenas pressentido?

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O amor que com disfarce floresce e se acende entre as fendas do direito na aridez dos nĂşmeros sob a hipotermia de humano peito.

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RETRATO DE BEATRIZ

Repito o teu nome mas o teu nome não és tu digo alva pele de princesa mas nem por isso te sinto a cor o cheiro e o calor nem te beijo naquilo que digo ó menina de alma nos olhos de boca de boneca jamais poderei entrar pelo teu retrato como te entrei pelo corpo cada vez que o fiz estremeci não sei se de amor se de terror se da pura alegria de ver-me em ti a morrer quando não me é dado mais beijar-te sequer a face elevo a minha ao retrato que de ti faço bem sei são pobres e párvulas as palavras mas se já com palavras a alma interrogara bosques e prados em busca de seu amado.

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O AMOR

Animal ferido moribundo e lucidamente louco por s贸 do mundo buscar no teu corpo onde morrer pouco a pouco.

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Em cada palavra dita te nego e me afasto 贸 poesia que persigo tecida de palavras somente ditas de olhos nos olhos de boca fechada.

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AUTO-RETRATO

É um jardim interior onde o rumor devaneia entre poetas e princesas sob as luas acesas são duas borboletas bêbadas uma da outra trôpegas aos tombos numa mouta de alfazema sou eu muito quietinho a beber-lhes o poema.

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«Estoy soñando, echado, a tu sombra, en tu tronco suave…» Juan Ramón Jiménez

Pareço sonhar contigo arborescente sobre o meu corpo que feliz estou à tua sombra no teu tronco suave entretido a beijar-te os pés é como se fossemos tu e eu num descampado e trouxesses nos olhos todo o céu e o sol escorrendo de teus cabelos loiros me estivesse a fundir na tua pele.

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HUMANIDADE

Vista ao longe ĂŠs um mar de gente. Olho-te nos olhos e vejo Deus banhando-se longamente.

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SIMPLESMENTE

Conhecemos os sons da fala desde antes de nascermos e conquistamos com avidez as palavras copiosas as regras da gramรกtica, a arte de bem falar a correcta expressรฃo dos afectos. Hรก palavras que simplesmente quem ama logra pronunciar.

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CANDEEIROS

Há uma serra e na serra uma casa isolada em volta da casa entre muitos pinheiros um pinheiro de onde se toca o céu pelas colinas arbustos tojo florido e alecrim muito alecrim perfumado onde quem se deita é da mão de Deus que se levanta o sol cai lento e alaranjado e de mãos dadas com o frio a todos envolve e devolve à nudez sem máscaras das mães há música dentro e fora da casa dentro uma guitarra chora e fora dois passarinhos – incessantes sinfonias – cantam e seu canto são ondas o amor em danças pagãs nas asas do vento banham-me a face e apetece a este sabor a terra chamar paraíso.

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MÚSICA

Ao canto das sereias te comparo pela tua singular substância de mulher intangível que nos toca e libera quando enleia.

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DIZER-TE QUE ESTIVE AQUI

Os dedos do sol avançam sobre a sombra no dorso da montanha e a montanha move-se como a reclamar mais tempo à linha entre a sombra e o sol são os três cúmplices do nascimento dos dias todavia jamais darão nomes uns aos outros e eu secreta testemunha deste crime só tenho nos pássaros por quem dizer-te que estive aqui.

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MAIS QUE UM NOME

Falas-me de sonhos admiráveis dessa criança que vive dentro de ti de impulsos indomáveis e verdadeiros demónios de que te envergonhas de que há dias em que parece que acordas em mão tão tua e tão de Deus e queres rasgar o peito depois o mundo falas-me e vejo-te crescer quando falas diminuir a pouca distância entre nós perdoa-me porque perguntei apenas por estes tempos com quem falas quando pensas e tudo o mais que um nome soa a mentira.

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Não há criação que iluda a grande solidão do artista sem útero umbigo ou sombra que o ligue a cada criatura uma vez esta parida.

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A UM IRMÃO POETA

De onde venho é quando os deuses se adoravam nos lugares altos neles não são necessariamente de onde os rios foram escritos em linguagem pura e antiga a ti estou em crê-lo ser-te-á fácil entendê-la eu sou seu leitor tardio levei meia vida para achar o mar tenho a consolação de saber que morri no ano em que nasceste hão-de chamar-nos contemporâneos.

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VARIAÇÃO SOBRE UM POEMA DE SAFO

Quem é belo é belo olhado oh, mas quem é bom um cego sabe como é belo.

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TWENTY FIVE DOLLARS I’LL BUY IT!

A relativa pobreza do poeta quando as palavras por caras se não podem dizer ei-lo sentado de ouvido estendido à porta de uma loja sita na Avenida da Liberdade mendiga uma palavrinha que lhe possa matar a fome mas há sempre alguém mais pobre do que nós passou uma sua irmã americana tão tísica de léxico que ao poeta só de ouvi-la se lhe foi toda a fome.

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MÃES

Com as mãos retiram o pão da boca depositam-no na terra recém-lavrada despedem-se dos animais e das casas depois do sol deitam-se entre os sulcos e cobrem-se com essa terra que seus corpos tão bem conhecem mas poucos dias bastam para que irrompam do próprio ventre.

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CAVADOR DE ENXADA

Conheci a enxada antes da caneta antes da palavra pão conheci o pão e a terra donde o pão nos vem depois de cavada e muito amada um dia fui à escola puseram-me uma caneta na mão e não rompi mais uma enxada na vida e devorei searas não me furtei ao destino apenas o adio meu pai disse meu filho seja advogado ou cavador de enxada seja um homem na vida.

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NÓS CEGOS

O cego nem sempre sabe se tem alguém pela frente mas não é gente que pede por isso pede sempre haja gente não haja gente lembra-se muito bem de quando via parecer haver gente onde nada havia e tantos tanta coisa lhe têm dado sem que antes de pedi-lo o tivesse esperado.

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ALIANÇA

O meu nome é poeta e prometo amar-te até à morte o meu nome é poesia e prometo possuir-te ser a tua alegria e a tua tristeza o meu nome é teu sim, poeta, todo tu és meu.

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REGRESSO A CASA

A vida de um homem cabe num passo do regresso a casa a casa de um homem toma a forma das estações embora esteja situada na palma da mão da primavera donde se inclina feliz para o sol a vida de um homem começa no dia em que sai de casa e habita a primeira tenda as tendas são breves e não são suas a vida de um homem resume-se aos dois dias em que o sol desuma a erva e a seca e a palha se emoreia e o campo nu se cadabulha e cobre de estrume tanto quisera que estivesses ali comigo entenderias a comoção que me tomou quando do cimo daquela estrada reconheci meu pai que arava sim, a vida de um homem cabe toda num só passo do seu regresso a casa.

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MISSÃO

Vai e escreve no coração os gritos mais brancos e os mais doces cantos que te olharem das páginas vivas de um livro secretamente incandescido vai e escreve o coração no fundo do olhar na sua flor para que te possam todos ler e colher e levar como a um tesouro de cujo dono não haja memória alguns chegada a noite perderão subitamente a vontade de adormecer.

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Chama-se a esse ponto ponto de orvalho. Nem os fungos, que tambĂŠm sĂŁo plantas, conseguem viver sĂłs. Urge construirmos uma ponte sobre o rio onde ambos nos banhamos.

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DOURO 2005

O canto das cigarras molda as margens do rio rente a outro rio alguĂŠm viaja num madrigal.

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Lembras-te de quando tĂ­nhamos a vinha e tirĂĄvamos uma semana pelos teus anos para a irmos podar? Lembro-me de te comparar Ă s varas das videiras quando as cortava e se demoravam horas e dias a chorar ficava a olhar-te nos olhos ali comigo tambĂŠm deitada igualmente nua igualmente feliz.

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Quando te pedi o nome e mo deste deste-me a tua boca num beijo disseste que o nome que trazia dentro era muito mais que o teu nome uma palavra encantada e grávida que quando beijada poderia precipitar no meu corpo a madrugada devolver-me o entendimento da fala das aves quando te pedi os dedos e mos deste deste-me duas lagoas onde afluíam rios de luz demorei-me a bebê-los um a um pelos meus usei-os para pegar-te pela mão pelas ruas para descobrir estrelas dos teus cabelos e afastar nuvens brancas que havia sobre o sol do teu olhar quando te pedi os olhos e mos deste deste-me um par de pérolas com lápis-lazúli dentro por eles te despi e tu me despiste pelos meus e de olhos dados fomos ao fundo do mar onde juntos colhemos a rara flor da santidade quando te pedi o coração negaste-o disseste que há já muito te não pertencia quando me deste o coração ainda não me tinhas dado nada.

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LIVRO DE VISITAS

Desde a página de rosto ao colofón cada corpo é um livro há nele um homem a ser escrito há um lago com sua sede sua tinta com seus rios e regos o que somos cada um de nós singularmente manuscrevendo-o exemplar único sucessão de autógrafos sinal desta nossa breve passagem por aqui.

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Mem贸ria descritiva do amor



Minha querida, Envio-te este poema e uma memória descritiva. O poema, já tu o conheces, é o mesmo que te dei, ainda manuscrito. Escrevi-o em Julho. Só, sempre me pareceu demasiado débil e desamparado. Um amigo disse-me que era “muito idealista”, o poema. Ora, há cerca de um mês lembrei-me de um poema com memória descritiva, «mon coeur mis a nu», que lera num livro de Ruy Cinatti. E resolvi fazer eu o mesmo. Desde então remoí dentro de mim as palavras para a memória descritiva. E ontem aconteceu. Agora que a leio, parece-me mais poética que o próprio poema. Pretende ser uma memória descritiva do amor. Um atrevimento de alguém recém-nascido para o amor e que ainda o crê descritível. Insensato. Notarás que, sem a referência à palavra, é o sexo que está aqui em questão e o valor, relativo e sacramental, que lhe dou: como sendo só uma maneira de amar e só parte do amor. Tal como parte da mulher, se mo permites. Seja como for, ontem deu-me um grande gozo escrever este texto. E quero oferecer-to. Antes, porém, deixo‑te um aviso que reclamo ser muito sério: «não acredites nunca no que dizem os poetas!» É que eu amo-te mesmo muito e não me perdoaria ver-te desgraçada pela poesia. Mas, se ainda assim o quiseres, aceita-o, pois é para ti. José

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Se de amor ou de morte a morte me ferisse e com laรงos de aรงo um dia me perseguisse ainda assim ficaria aqui nos teus braรงos neste laรงo de amor mais forte que o aรงo mais forte que a dor mais forte que a morte.

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Memória descritiva:

1ª estrofe - O poeta acaba de ter a sua primeira noite de amor. Acaba de morrer numa mulher pela primeira vez. Seu corpo, seu coração, sua memória, quase os não distingue da luz, tão puro se sente. Acaba de morrer de amor e o amor e a morte não são mais que dois nomes a significar o mesmo. O desejo é cantar. A tortura é doce e não há dor que o atormente. Pede à morte, encarnada no corpo da amante, que o continue a lancetar, a feri-lo de amor, isto é, de morte. Que não pare nunca. O poeta sente-se trespassado pelo terror de não ter já medo de nada. E cantar apetece loucamente.

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2ª estrofe - Nada o abala. Por isso, persiste. Dentro de si há um cavalo selvagem galopando rumoroso por searas de trigo sem que alguém o persiga. Vem-lhe à memória Enkidu, o homem selvagem que libertava os animais das armadilhas. Também este amou uma mulher. Durante seis dias e sete noites fizeram amor. O poeta bem sabe que tanto o nobre Enkidu como ele próprio amam para sempre. Não há laço que o rapte ao amor. A morte há-de persegui-lo, sim, mas ele não se esquivará. Correrá ao seu encontro, pois sabe – tem-na ali, deitada a seu lado – que a morte é um outro nome para o amor. Porquê então o uso do conjuntivo? Galileu dos sonhos, o poeta fala como poeta, pois falasse ele como homem que, antes de tudo, é, escarneceriam dele. Como fizeram a Cristo, a quem perseguiram e ataram sobre uma cruz, e de quem se sente agora tão próximo. Como Cristo não abjura, de viva voz o diz, desta sua profunda convicção: que o amor converteu o sorvedouro da morte em fonte de vida. Assim se sente, imerso no interior da amante. Assim enfrenta a censura, a dos próprios amigos.

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3ª estrofe - A obstinação do poeta intensifica-se. Canta ter na amante um touro e lança-se de peito aberto e braços abertos sobre seus cornos. E morre. E com tanta ânsia e fúria investem um sobre o outro que seus corpos se intersectam até à alma. E morrem um no outro a cada instante sem regresso possível, muito menos desejado. Mais o extasia saber que aqueles braços da amada são os braços de Cristo, e aquele corpo o seu próprio: de Cristo, da amada e do poeta. Um só. Sentese indigno de tão divino corpo que se lhe oferece, assim, despido e habitável. A Graça, nunca a conseguira explicar em poema algum, e agora tem-se a si mesmo implicado nela. Diante daqueles braços que se lhe dão, chorar apetece loucamente e balbuciar entre lágrimas as primeiras palavras. E o poeta lança-se naqueles braços, menino outra vez.

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4ª estrofe - O amor é um paradoxo visível destes dois versos, muito para além da metáfora. Enlaçado na amada – não menos amante que amada – sente-se… absolutamente livre. Poderá ser? Blasfemará? Sobre si nada teme. Protegem-no esses dois braços, um escudo assaz mais forte que qualquer lança ou espada. E mesmo a morte física se retira de sua presença. Se um malfeitor o viesse ameaçar de morte, faria como quando se ofereceu para pagar cervejas a três jovens que o queriam assaltar. Se o amor converte a morte, como não um pobre mortal? E deste modo o amor derrete o aço.

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5ª estrofe - O poeta vislumbra o futuro, e nele continua a sofrer e a morrer da morte de todos os seres vivos. É o mesmo. De agora, porém, tudo tem um outro sentido. Podem feri-lo, não desfalece. Podem despi-lo, não se envergonha. Podem ameaçá-lo, sorri. Podem trai-lo, abraça quem o trai. Com um abraço só formalmente distinto deste que o enlaça. Volve-se ainda mais sobre aquela que ama. De novo o terror: experimenta a inanidade das palavras. São como palha! Segreda-lhe ao ouvido uma passagem do Cântico dos Cânticos: «… e forte como a morte é o amor». E de mãos dadas saem do mundo, entrando um pelo outro adentro.

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Índice

9

POÉTICA

15 NUS 35

POEMAS

37

Certo silêncio

38

O amor que com disfarce

39

Retrato de Beatriz

40

O amor

41

Em cada palavra dita

42

Auto-retrato

43

Pareço sonhar contigo

44

Humanidade

45

Simplemente

46

Candeeiros

47

Música

48

Dizer-te que estive aqui

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49

Mais que um nome

50

Não há criação que iluda

51

A um irmão poeta

52

Variação sobre um poema de Safo

53

Twenty five dollars I’ll buy it!

54

Mães

55

Cavador de enxada

56

Nós cegos

57

Aliança

58

Regresso a casa

59

Missão

60

Chama-se a esse ponto

61

Douro 2005

62

Lembras-te de quando tínhamos a vinha

63

Quando te pedi o nome e mo deste

64

Livro de visitas

65

MEMÓRIA DESCRITIVA DO AMOR

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Exemplar nº.

Este livro acabou de imprimir-se a 29 de Junho de 2006 na SerSilito - Empresa Gráfica, Lda. - Maia. Desta edição fizeram-se 800 exemplares numerados de 1 a 800 e rubricados pelo autor.



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