Tico e a Fada da Ria

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TICO... E A FADA DA RIA

JOSÉ VIEIRA



TICO E A FADA DA RIA



JOSÉ VIEIRA

TICO E A FADA DA RIA

Depois do Tico ter ouvido o seu Avô a contar a história da Fada da Ria, entusiasmou-se de tal maneira que partiu à procura dela. Seria uma aventura que iria recordar toda a sua vida...

JORNAL DO CRÉDITO


Tico e a Fada da Ria Depois do Tico ter ouvido o seu Avô a contar a história da Fada da Ria, entusiasmou-se de tal maneira que partiu à procura dela. Seria uma aventura que iria recordar toda a sua vida...

Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser reproduzido, no seu todo ou em parte, por qualquer processo mecânico, fotográfico, eléctrónico ou por qualquer meio de gravação nem ser difundido ou de alguma forma copiado para uso público ou privado sem prévia autorização. Autor: José Vieira 2010 Jornal do Crédito Editor: Jornal do Crédito Impressão: Euedito Depósito Legal: 315841/10 Tiragem: 25 000 unidades Jornal do Crédito redaccao@jornaldocredito.pt www.jornaldocredito.pt Euedito geral@euedito.com www.euedito.com BLOG: http://ticoeafada.wordpress.com E-mail: tico@sapo.pt Ler grátis online em: http://www.issuu.com/josevi Capa: Nelson Pinho - Paginação: Humberto Silva - Correcção: Clara Sousa 1ª edição, Setembro de 2010


Para o Tico que h谩 em todos n贸s...



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NOTA DO AUTOR Na altura em que escrevi este livro, estávamos no início da década de 2000. Exactamente há 10 anos. Como meio de subsistência, tinha fundado o Jornal “O Notícias Ribeirinhas”. Numa das muitas investigações que fiz na Ria de Aveiro, uma delas deveu-se a um surto de poluição deliberada. Em várias ribeiras apareceram milhares de peixes mortos e ninguém sabia exactamente o motivo. Nos dias seguintes e como motivo de investigar a proveniência do surto, passeio-os nos imensos canais da Ria de Aveiro, embrenhando-me em zonas que não acreditava ser possível serem de Aveiro. Parecia-me um documentário do National Geographic, tal era a beleza com que os meus olhos se deparavam. Não conseguia acreditar na imensa fauna e flora que compunha a Ria. Fiquei deveras convencido de que os meus 27 anos (na altura) passados a conviver diariamente com a Ria de Aveiro eram apenas uma fracção do que estava a testemunhar naquele momento. Urgia fazer testemunho de algo que para mim era inédito. Como o faria ainda levou a alguns dias de meditação. Cheguei à conclusão que para a posteridade, a figura do livro seria um canal que teria o impacto que se coadunava à situação. Depois de dar início à ideia e porque a Ria de Aveiro é um lugar mágico e cheio de aventuras, porque a Ria de Aveiro tem uma Fada que zela por todos nós, porque todos sabemos o valor da extensa laguna e do seu poder mágico, este livro 09


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conta a história da Fada através do pequeno Tico que percorre a Ria em busca de algo em que acredita. No fim, encontra-se a si mesmo e entende o imenso poder de algo maravilhoso. É uma aventura para ser lida dos 7 aos 77 anos. De infantil nada tem, sendo apenas mais uma história acessível a todos e que visa apenas o reforço do aspecto humano para a Ria de Aveiro. Passados 10 anos após ter escrito este livro, reforça-se ainda mais a necessidade de nos virarmos para a Ria de Aveiro e também nós empreendermos uma viagem em busca da Fada da Ria. De certeza que nos encontraremos como o Tico se encontrou a ele próprio. Existe um Tico em todos nós. Embora para alguns esteja adormecido, um dia despertará. Que o meu sonho possa fazer sonhar todos aqueles que lerem este livro e espero ter contribuido para o despertar de muitos Ticos…

Setembro 2010 José Vieira

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O galo acabara de cantar quando o Joaquim Gaiato se preparava para mais um dia de ida ao moliço. Eram quinze para as sete já ele tinha tomado o pequeno almoço e juntamente com o Manel da Avó que o esperava no seu moliceiro à porta de casa se preparavam para mais um dia de trabalho árduo. Estamos na década de quarenta e a poluição ainda não fazia parte do vocabulário daqueles homens. Toda a vida se tinham dedicado à Ria e nada mais sabiam fazer. Tanto ele como o Manel tinham aprendido a arte da Ria, com o seu avô, o eterno João das Fisgas, chamado assim porque era conhecido o seu amor pela arte de fazer e utilizar as chamadas atiradeiras ou fisgas. Contam os antigos que por volta de 1870, numa altura em que as coisas estavam difíceis para quem trabalhava na Ria, o João, então com os seus 12 anos, levantou-se de mansinho, por volta das quatro horas da madrugada e sem fazer barulho, atreveu-se a enfrentar a escuridão e as histórias embruxadas que ouvia de quando em quando alguém a contar à lareira. Pé ante pé, lá foi o João, preparado com a sua fisga e mais algumas pedras, cuidadosamente preparadas e laminadas por ele, para trás de um arbusto à espera de conseguir apanhar o almoço para a família no dia seguinte. Ao fim de duas horas de espera o João adormeceu, só acordando no dia seguinte com o ruído dos gritos da sua mãe e dos seus irmãos que, preocupados, tinham sentido a sua falta. Muito aflito levantou-se rapidamente e ficou espantado com o que viu a seus pés. Jaziam sete pássaros mortos. Ficou admirado, perguntando-se como era possível. A partir desse dia o João passou a ser conhecido por João das Fisgas, pois havia enchido 13


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o prato de seus pais e de seus irmãos durante alguns tempo com a sua acção. O Joaquim saía muito ao avô. Era um homem destemido, de barba rija e quem não o conhecesse pensaria que era um homem rude. Muito pelo contrário. O Joaquim era um homem paciente, adorava a Ria e o seus segredos mas o que adorava mais que tudo era o seu neto, o Tico. O Tico era o seu tesouro mais valioso e como ele adorava estar com o Tico sempre que podia. Era uma segunda oportunidade de ser pai de novo, mas sem as responsabilidades de um pai. Podia mimar o pequeno Tico, ensinar-lhe uma arte e acima de tudo o amor à Ria. - Joaquim, embora que a maré está de feição. - Gritou o Manel ao Joaquim enquanto fazia os últimos preparativos na sua embarcação para mais um dia de intenso trabalho na Ria de Aveiro.

- Já vou. - Disse o Joaquim.

Com um adeus melancólico, lá se despediu da Júlia, sua

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eterna companheira e sem dúvida um suporte emocional durante toda a sua vida. Num abrir e fechar de olhos, lançaram-se à Ria, em direcção ao sítio do moliço, seu rendimento diário, que outrora também o havia sido de seus pais e de seus avôs. Era bonita a Ria. Joaquim curvava-se perante a beleza celestial que emanava da paisagem milenar, por onde passava todos os dias. Era a parte da viagem que mais adorava. Como ele gostava de ver a límpida água reluzir ao sol, encantando-o com a frescura da mais eterna pureza. Nada se lhe comparava. Tudo luzia e tudo era bonito. Nas habituais tarefas que tinha na condução do barco, conseguia que lhe sobrasse algum tempo para apreciar a beleza que se entrosava à sua volta . Uma das coisas que Joaquim mais gostava de fazer nas poucas horas vagas que tinha para si, era de vez em quando passear na sua bateira e apreciar o pôr do sol. Era realmente fantástico. Joaquim não era muito católico, mas costumava dizer à sua mulher, quando saía de bateira, que ia encontrar-se com Deus. Só podia ser Deus, dizia ele. Apontava a sua bateira ao poente e ficava abismado com o que via. De um lado os canais e as pequenas ilhotas que fervilhavam de pequenos coelhos, lebres e outros animais, numa euforia constante de vida. Por outro lado, como era bonito as flores que cresciam do campo, envoltas em perfumes estonteantes. E à sua frente, como que a rematar o horizonte, estava o que Joaquim considerava ser Deus. Uma enorme bola de fogo, umas vezes amarela, outras vezes vermelha de paixão. E, de espaço em espaço, conseguiase ver o azul e branco das nuvens, fugindo com as suas tranças de suavidade cristalina. Nada mais poderia pedir a Deus. Tinha a certeza de ser um homem muito abençoado pela vida que lhe estava a ser dada. 15


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Uma das coisas que ele gostava também de fazer, era contar aos seus netos as histórias dos seus pais e dos seus avôs e outras que ele durante tantos anos havia colecionado. Como ele se deliciava de ao Domingo depois da catequese, reunir em casa os amigos do seu neto, os quais baptizara de canalha brava, e ficava horas e horas a contar como o seu avô fez isto, como o seu pai fez aquilo. Sentia que os miúdos gostavam mesmo daquelas histórias. Na opinião do Joaquim era importante ocupar os putos nos tempos livres e se pudesse distraí-los enquanto lhes ensinava o amor e respeito à Ria, tanto melhor. O Tico, o seu neto mais novo, era o que mais se emocionava com as suas histórias. Como é que o miúdo conseguia estar horas seguidas com a maior da concentração a ouvir falar de pássaros, de moliços e de algumas histórias do arco da velha… A preferida do Tico era aquela em que o Joaquim contava da Fada da Ria.

- Conta, vô , conta… a da fada… conta… pulava o pequeno Tico, irrequieto e só se calando quando o avô Joaquim, assumindo uma posição de seriedade, pedia a todos a maior concentração para a história seguinte. Então, quando chegava a vez da narração, todos os miúdos se juntavam à volta do Vô Joaquim, 16


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como lhe chamavam com o maior carinho e sem pestanejar, ouviam a história até ao fim. - Contam as escrituras que há muitos milhares de anos Deus resolveu criar o mundo à sua imagem. - Começou assim o avô Joaquim. E continuando por mais um par de horas narrou a história da criação com tais pormenores como se tivesse assistido a todo o acto da criação. “Estava escuro, nada se mexia naquele lugar, que mais parecia lembrar o infinito. A Ria perguntava-se constantemente quando é que iria chegar a sua vez, reconhecendo-se-lhe alguma ansiedade pelo momento que sabiam que iria acontecer. Em conversa animada os novos seres desconfiavam que algo estava para acontecer. O Mar tinha ouvido dizer que havia chegado a hora. Todos os elementos interrogavam-se realmente se Ele iria fazer a criação. Numa bruma de nevoeiro, era celestial o estado de espírito de todas as entidades. A Ria, encolhida a um canto, suspirava inquieta, conversando com a Terra, sobre a maneira como Ele iria criar a nova obra. Todos eram unânimes de que algo iria acontecer brevemente. Havia quem disse-se que a obra que estava para ser criada seria o reflexo espelhado Dele, iria sair um mundo onde a beleza e o inimaginável se iriam misturar, dando lugar ao éden há muito ansiado por todas aquelas entidades. No meio da conversa animada, onde se sentia os fluxos energéticos de quem possuía a verdade suprema, Ele aparece, dando lugar a um estado de paz e a uma sensação de conforto celestial. A Ria espectante e ansiosa foi apanhada num turbilhão de pensamentos sobre o que seria o seu destino. Sentia que iria 17


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fazer algo de importante. Sentia que ia fazer algo de belo. No meio daqueles pensamentos e ansiedades, apercebe-se da presença do omnipotente, pai de todas as criações e descontrai-se na sua habitual posição de veraneio. Não compreendia o que se estava a passar. O seu colega mais velho estava com uma expressão de satisfação. Nada compreendia daquilo. Afinal o que é que se iria passar ali? Porque é que Ele convocara todas as entidades? Numa co-existência sem problemas, não era lógico discutir-se algo, porque afinal, era Ele que decidia tudo. Tudo acontecia por sua inteira vontade. Decididamente não compreendia o que se estava a passar. Iria esperar pela explicação, embora estivesse desejosa de conhecer a tal famosa obra que tanto ouvira falar.

Então, Ele aproximou-se da Terra e disse:

- Tu vais ser a mãe de todas as minhas criações. Irás albergar os meus filhos ainda não criados. Irás ser o suporte físico da vida. Todas as entidades te irão respeitar. Serás magnificamente respeitado. Irás criar ramificações do teu corpo onde escorrerá um dia a límpida água do éden. Irás criar espaços multifacetados onde se albergarão todas as minhas criações. Serás omnipotente e puro na doação da tua vida e no teu corpo os meus filhos viverão.

Então Ele disse faça-se a terra, e a terra fez-se.

Depois virou-se para o Oceano e disse:

- Tu irás transbordar a tua seiva pela terra. Irás fundir-te e correrás como jamais correste. Também tu serás respeitado. Alimentarás os meus filhos e eles respeitar-te-ão. 18

Então ele disse, faça-se o oceano, e o oceano fez-se.


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A Ria, muito perturbada, interrogava-se pela razão de não ter sido chamada a intervir neste processo de criação. Será que Ele não se tinha lembrado dela? Não podia ser, Ele lembrava-se de tudo. Será que ela não era importante o suficiente para participar nesta criação? Tinha que lhe perguntar. Não podia nunca admitir ficar com a dúvida para podo o sempre. Com certeza haveria alguma coisa que podia fazer em prol de tão grande obra que, de em menos de uma eternidade, lhe levara todos os seus amigos, ficando sozinha. Não, de certeza que algo estaria reservado para ela. Talvez a criação após a criação. Iria ser um complemento a um estado de evolução que de certeza iria ser constante na obra perfeita Dele. Necessitava de tirar da sua mente as dúvidas que a assolavam. De uma coisa tinha certeza, para ela estava reservado algo de importante. Seria talvez a rainha das criações. Era isso que ela estava à espera.

Então, Ele chegou perto da Ria e disse:

- Tu vais ser a criadora de vida. Irás, juntamente com os teus irmãos, criar um espaço onde permita aos meus filhos viverem e crescerem em paz. Irás ser o elo entre o oceano e o homem. Serás omnipotente na criação de seres que habitarão em ti. Produzirás condições para os meus filhos sobreviverem. Serás um espaço de lazer onde todos te respeitarão e amarão. Serás a minha última criação antes de criar os meus filhos. Então Ele disse, faça-se a Ria, e a Ria fez-se. A criação durou vários dias e várias noites. Ele criou de tudo. Os animais, as flores, os rios, os riachos, os mares, os aceanos. Tudo o que Ele sabia que iria fazer falta aos seus filhos. Tudo aquilo que seria um mundo perfeito. Por fim, criou o homem. 19


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Sentia-se a paz no mundo. Depois de milhares de anos os elementos sentiam uma tranquilidade verdadeiramente similar ao éden outrora vivido. Todos os fluxos temporais funcionavam na perfeita sintonia. Passava-se o dia e a noite sem alterações significativas no seu modo de estar. A Ria como se despertara de um sonho eterno, preparava-se para se dotar dos meios de sobrevivência por ele pedidos. Como num estado de loucura momentânea, eis que ela de ergue no meio do seu corpo,crista-

lino e poderoso, invocando um cântico de sedução e de criação. Iria criar algo de belo que permitisse aos elementos viverem em harmonia e em perfeito equilíbrio ambiental. Sentia uma energia nunca outrora conseguida. Ela sabia que iria ser parte 20


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integrante da vivência de uma espécie de novos deuses. Estava empolgada e decidida. Através do poder Dele, a Ria espalhouse e começou a sua a árdua tarefa, a obra de criar em si própria a vida que lhe fora pedida. Com o olhar fixo nos céus, pedia força e coragem para que a criação seguinte fosse tão perfeira como ela. E durante 6 dias e sete noites, a Ria criou tudo o que existe de maravilhoso no seu leito. Cansada e sem forças, ela deleitouse preguiçosamente pelos imensos canais que a compunham e entregou o seu espírito à sua nova criação. O Tico, já emocionado com toda aquela história, que havia ouvido muitas vezes, interrogou o avô Joaquim. - Ó Vô, então a Ria está a ver-nos neste momento? - Ó Vô, então a Ria é boa? - Ó Vô, então… - e sem mais poder falar, o avô explicou que se tratava de uma história que o seu avô lhe tinha contado há muitos anos, quando ele tinha a idade dele. O Tico, muito emocionado com aquela história, afastou-se lentamente do resto do grupo e agradeceu a Deus a sua mais divina obra. - Já temos o barco cheio. - Disse o Manel ao Joaquim. - Está na hora de ir embora, se quisermos aproveitar a maré. - Reforçou o Joaquim. Estavam a preparar-se para partir quando viram ao longe uma pequena embarcação a dirigir-se para eles. Reconheceram de imediato de quem era a bateira. - Joaquim, não é a Júlia que ali vem? - Perguntou o Manel. -Parece que sim, mas o que é que ela vem cá fazer? - Indagou o Joaquim. 21


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- Manel, homem de Deus, o Tico… - e muito ofegante de ter vindo a dar à vara, teve que descansar uns segundos antes de conseguir falar. - Joaquim, o teu neto, fugiu. O Tico levou a velha embarcação e deixou este bilhete. - Informou a Júlia já quase sem voz devido ao cansaço e à aflição.

Queridos pais e avôs: Eu estou bem. Depois de ter ouvido o Vô Joaquim contar a história da Fada da Ria, tive que ir à procura dela. Não se preocupem que eu levei tudo o que necessitava. Em breve voltarei. Muitos beijinhos. Tico O avô Joaquim, fechando os alhos, como que numa espécie de premonição murmurou: - Foi um miúdo, voltará um homem. 22


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Lá ia o Tico, numa embarcação muito maior que ele, dando à vara, à espera de encontrar a Fada da Ria. Como seria bom ele encontrá-la. Como é que ela seria? - Interrogava-se o pequeno tico. Com um velho mapa, que tinha sido de seu avô, lá o ia consultando de vez em quando. Estava decidido a descer a ria. Aquela imensidão de paz e sossego cada vez encantava mais os olhos do Tico. Já o sol se começava a preparar para ir descansar, resolveu parar na primeira ilhota em que pudesse arranjar um sítio para montar acampamento e talvez explorar um pouco à procura do seu objectivo. Logo a seguir a Ilhavo o Tico reparou numa ilhota que lhe pareceu ser a ideal para montar acampamento. O seu avô tinha-lhe dito que facilmente encontraria muitos animais e muitas plantas fora do comum. O pequeno Tico só esperava não encontrar nenhum animal selvagem. Embora trouxesse consigo a fisga que outrora tinha pertencido ao seu avô, não gostaria nada de se encontrar com nenhuma visita inesperada. Depois de explorar a pequena ilhota, o Tico lá se resolveu por escolher um local, perto de um grande pinheiro, para estender o seu cobertor e comer um bocado de chouriço que tinha trazido de casa de seus pais. Vou pedir à Fada que dê um barco novo ao meu pai. – Pensava o Tico. Onde é que estariam os meus amigos neste momento? Será que já sabem que eu embarquei nesta aventura? Que bom que iria ser quando regressa-se. Ia ser considerado um herói. O puto que encontrou a fada da Ria. De certeza que ia ser falado por muitos e muitos anos. Mas tinha de ter cuidado pois a fada da Ria só podia falar com ele pois, afinal, tinha sido ele que a encontrara. – Sonhava o Tico. Com uma pequena fogueira acesa, com toda a segu23


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rança que o seu avô lhe havia ensinado, o Tico adormecera de exaustão. Aquele dia tinha sido muito comprido para uma criança de nove anos. Enroscado no cobertor preferido que a sua mãe lhe tinha feito, sonhava sonhos lindos, envoltos em pensamentos puros de inocentes vidas. Era noite escura e cerrada quando o pequeno Tico acordou sobressaltado com barulhos esquisitos e contínuos. Muito quieto e quase sem respirar, deixou-se manter imóvel durante alguns minutos com a esperança de o que quer que fosse passasse. Ao fim de alguns minutos o barulho começou a diminuir de intensidade, como que a desaparecer. Pé ante pé, o Tico, munido de um lampião a petróleo e a sua inseparável fisga, resolveu ir atrás do som, que agora lhe parecia estar mais longe. Sem fazer barulho, arrastou-se por entre os escombros e árvores que ia encontrando pelo caminho e à medida que sentia o som mais perto, o seu coração trabalhava mais desalmadamente. E de repente o som tornou-se demasiadamente forte e o Tico teve a certeza de estar muito próximo da misteriosa fonte sonora. Seria um animal? - Pensava o Tico. Não podia ser. Nunca tinha ouvido falar de um animal que produzisse um som tão forte e tão agradável, mas ao mesmo tempo tão assustador. - Afirmava o Tico para ele mesmo. Fosse o que fosse, o Tico estava disposto a ir até ao fim das suas dúvidas. Havia que avançar mais no terreno. Tico sabia que a qualquer momento poderia dar de caras com algo ou alguém. Tico tinha ouvido o seu pai dizer muitas vezes que a melhor maneira de lidar com o medo é enfrentá-lo. E o Tico estava disposto a correr esse risco. Avançou mais um pouco, agora com cuidados redobrados. De repente, para seu espanto, o barulho cessou por completo. Tico não podia acreditar no que se estava a passar. Não era lógico, pois acreditava que estava perto daquele som e 24


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não era possível de um momento para o outro ele desaparecer sem mais nem memos. Já começava o dia a clarear quando o Tico resolveu comer alguma coisa antes de abandonar aquela pequena ilhota. Estava disposto a explorar os arredores, à procura de algo estranho que pudesse explicar o estranho efeito sonoro. Depois de tomar o pequeno almoço, deixando cuidadosamente arrumado aquele sítio e com a dia já bem claro, resolveu embrenhar-se na mata circundante à procura de indícios estranhos. Ao fim de trinta minutos de caminhada, ouviu um piar, contínuo e belo. Lembrou-se que só podia ser um dos muitos pequenos habitantes da Ria que tinha estudado na escola. Rapidamente puxou da sua mochila e tirou um dos seus livros predilectos, intitulado “ A Flora e a Fauna na Laguna de Aveiro”. Muito devagarinho, avançou cuidadosamente, para não assustar o presumível pássaro e ficou maravilhado com a descoberta de um ninho de pica-paus. Como eles eram pequeninos. - Pensava o Tico. Ficou largos minutos a observar os três pequenos passáros que deviam estar com alguma fome, pois chilreavam num chinfrim constante. O Tico ainda se lembrou de lhes dar um pouco de comer, mas conteve-se, pois naquele exacto momento chegava a mãe deles com algumas minhocas que com certeza tinham andado a passear e descuidaram-se, indo agora servir de pequeno almoço àquela família de pica-paus. Era assim a lei da vida, os mais fortes sobrevivem à custa dos mais fracos. - Compreendia agora o Tico. Já o sol ia alto quando o Tico resolveu avançar em direcção ao centro da pequena ilhota. Ao fim de várias horas, nada havia encontrado e resolvera continuar o seu caminho esperan25


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do esquecer e apagar da sua memória aquela recente experiência que tinha tido de noite com o misterioso som. Regressado ao sítio onde tinha deixado a sua pequena embarcação, o Tico certificou-se que nada tinha esquecido e apontando a sua bateira ao poente, começou a dar à vara, com uma cadência certa e rápida. Um pouco cansado, o pequeno Tico, começava já a interrogar-se se tinha sido uma boa ideia esta de se aventurar por sítios e locais desconhecidos. Um pouco aos ziguezagues, lá ia embalando a sua pequena embarcação pelos canais da Ria. Pelo mapa que tinha trazido, o Tico depressa chegou à conclusão de que teria de remar mais depressa, pois pelas suas contas, a maré estaria a vazar e ele não gostaria de ficar encalhado em nenhum sítio travesso. Reparou ainda que, apenas a alguns minutos dali, iria encontrar uma espécie de lar-

go e que mais à frente teria algumas ilhas onde poderia montar 26


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o seu acampamento. Já passava das duas da tarde quando a fome apertou. Segundo as suas reservas alimentares e pelas contas que fez, teria obrigatoriamente de pescar algum peixe para lhe servir de jantar, pois se queria correr a Ria toda, o que tinha trazido não daria nem para metade. Chegado ao grande largo de água, a primeira reacção do Tico foi de admiração e respeito. Como era possível tamanha beleza. Água a perder-se de vista, pequenas ilhotas formando as mais diversas formas inimagináveis, pequenos animais pulando e correndo numa azáfama que mais lhe parecia lembrar a sua mãe, nos dias em que tinha escola. Decididamente não gostava de se levantar cedo. Adorava a escola mas as aulas deviam ser somente à tarde. Não compreendia como é que se tinha de levantar às seis da manhã, andar quinze quilómetros por caminhos cavernosos e sem o mínimo de segurança e o pior era no inverno quando chovia torrencialmente e ele com uma capa velha do seu avô, lá tinha que se sujeitar. E chegada a noite, teria que fazer novamente o mesmo caminho de regresso a casa. Quando crescesse iria lutar para que aquilo tudo pudesse mudar. Lançou a âncora bem no meio do lago e começou a preparar uma linha de nylon de mais ou menos cinco metros, atada na ponta com um pau, o bastante para ele a poder entrelaçar com os seus dedos e como isco iria utilizar um pouco de bacalhau que tinha trazido para esse efeito. Lembrou-se subtilmente que se preparasse várias linhas as suas hipóteses seriam maiores. Num abrir e piscar de olhos tinha lançado cinco linhas de nylon. Agora bastava-lhe apenas aguardar serenamente o pulsar delas. O que é que seria que iria apanhar? - Pensava o Tico. Se apanhasse dois ou três robalos, já era bom pois assim já não tinha de mexer nas suas reservas ao jantar. 27


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Deitado na sua bateira, o pequeno Tico sonhava acordado pela hora de encontrar a Fada da Ria. Passaram algum minutos quando um dos fios de nylon começou a mexer lentamente. Tico sabia que isso só podia representar um peixe a morder o anzol. Lentamente deu um esticão na linha e começou a sentir que o presumível peixe tentava agora escapar-se à armadilha em que tinha caído. O Tico, percebendo isso, puxou muito rapidamente a linha e ficou com um ar de muito satisfeito quando viu que tinha apanhado um belo robalo. Agora só faltava mais um para o jantar. - Espero que os apanhe depressa, com as águas revoltas, eles acabariam por fugir, e tanto me apetecia dar um mergulho de tanto calor que fazia. - Pensava o Tico. Ao fim de algum tempo já tinha conseguido apanhar quatro peixes. Satisfeito, pois apanhar quatro peixes no espaço de três horas era muito bom para quem acompanhando o seu pai e o seu avô, nunca tinha experimentado a sensação de contribuir, pelo menos com um peixe. Imagine-se quatro! Ao longe, Tico visionou três barcos moliceiros que com certeza andariam ao moliço ou ao junco. Tico reflectiu que não era nada bom que eles o vissem, pois os seus pais já deveriam andar à sua procura e aqueles homens saberiam de certeza disso. Depois de cuidadosamente ter manobrado a sua embarcação em direcção ao norte, ao fim de alguns minutos começou a perdê-los de vista. O dia estava sublime. Muito calor, apenas com uma leve brisa. Viam-se ao longe os pássaros formados em bando, como pequenos soldados perfilados num só pelotão, os pequenos coelhos e as lebres que fugiam mediante a aproximação da pequena embarcação. Tico tinha deparado com uma grande ilhota, onde 28


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abundava vida e beleza. Tinha a sensação de que seria o local ideial para montar o a tenda e assim pernoitar na segunda noite. Cansado mas feliz, o Tico pensava para com ele que nunca tinha sentido o que estava a sentir. Como era bonita e reconfortante aquela sensação de aventura mas estranhamente também uma sensação de paz.

Depressa montou o acampamento e acendeu uma fogueira para cozinhar os peixes que tinha apanhado. Amanhou-os como tinha visto a sua mãe fazer e espetou-os nos paus que tinha cuidadosamente afiado. Enquanto esperava que os peixes tivessem prontos a ser comidos, Tico lembrou-se de um livro que lhe deram em pequeno, sobre uma tribo de índios Brasileira que antes de digerirem os alimentos dançavam em volta de uma fogueira em gesto de agradecimento ao seu Deus. Tico olhou em redor e confirmando que estava sozinho naquela ilhota, começou a dançar em volta da fogueira. De uma maneira atabalhoada mas contínua, o pequeno Tico tentava imitar as imagens que tinha visto outrora no livro que lera. Já o dia estava a desaparecer quando o pequeno Tico 29


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tinha acabado de jantar. Pelas contas deveriam ser mais de oito horas da noite. Deitou-se no seu cobertor e pensativo perguntou-se o que é que os seus amigos e os seus pais estariam a fazer àquela hora. Como era terça-feira, Tico lembrou-se que era dia de solhas com batatinhas e rodelas de cebolas. Como ele gostava daquela comida. Bem, ele gostava, porque era a sua mãe a cozinhar. Uma vez tinha comido em casa do seu amigo Pedro e não era nem parecido com o sabor da sua mãe. Com certeza eram técnicas de culinária diferentes e esse era um assunto em que não desejava especializar-se. - O que é que estaria a fazer o seu amigo Pedro? - Interrogava-se o Tico em voz alta. Pedro tinha ganho o estatuto de melhor amigo. Era como uma espécie de confidente para o Tico. Quando um deles tinha problemas, desabafavam um com o outro. Tico ainda se lembrava daquela vez em que o Pedro ficou doente e ele tinha ficado a dormir durante alguns dias ao seu lado. Era o Tico que lhe dava o remédio, que o ajudava a ir à casa de banho, que lhe lia histórias de cowboys e índios. De nada valeu a insistência da sua mãe quando ela dizia que era bem melhor para o Pedro ficar sozinho a descansar, que isso, que aquilo. Ele não queria saber pois os amigos verdadeiros não se encontram todos os dias. Se o seu melhor amigo estava doente ele tudo faria para o curar nem que isso significasse ficar o tempo todo do mundo ao seu lado. O que mais custava para o Tico eram os ataques de tosse que o Pedro tinha de vez em quando. Ele tinha ouvido falar que o Pedro sofria de uma doença respiratória. Não sabia o que era aquilo mas estava decidido a que o seu melhor amigo ficasse bom o quanto antes. Já o escuro da noite se tinha sobreposto ao claro do dia quando o Tico resolveu enrolar-se no seu cobertor e partir para a terra do João Pestana. Uma coruja, ao longe, preparava-se 30


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para o seu conserto nocturno. Os grilos gritavam constantemente num chinfrim melodioso. O lago estava calmo apenas se ouvindo uns chuaps de vez em quando, que com certeza seriam sapos e demais animais anfíbios a treinarem os seus saltos para a água. Além do som característico da Ria, nada mais se ouvia. A noite já ia longe quando se ouviu novamente aquele som parecido com uma espécie de música. O pequeno Tico deu um salto como que assustado pelo reconhecimento daquele som e ficou imobilizado durante largos minutos à espera que não passasse de um horrível pesadelo esperando acordar brevemente. Não fazia lógica para o pequeno Tico aquele som estar na mesma ilha que ele. Ele tinha-o associado ao que ouviu na noite passada a um fenómeno que tivesse a ver com o vento a passar por determinados galhos de árvores ou pequenas formações rochosas em que a junção destas forças fariam soar aquela música bonita e misteriosa. Era inconcebível para ele encontrar outra vez aquela música. O que o mais o assustava era que naquela noite o som parecia estar a apenas a alguns metros dele. Muito silencioso ele agarrou na fisga e ficou à espera ou que o som terminasse ou que algo se lhe revelasse. O Tico não se julgava medricas mas aquela situação não era propriamente normal. Talvez estivesse um pouco com medo… talvez. - Pensava o Tico. E ao fim de alguns minutos o som parou como que por magia. E o Tico exausto adormeceu. O dia começara a despertar. O sol levantara-se cedíssimo e tudo antevia um dia maravilhoso. Ao longe podia ver-se as velas dos barcos moliceiros e se escutássemos bem, poderíamos ouvir o calão dos homens do moliço que constantemente o empregavam, fruto de uma educação simples e modesta. Os peixes saltavam no lago, como que desafiando os pescadores para os irem buscar. Os sapos continuavam o seu cântico celestial. Era maravilhoso 31


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ouvir aquela miscelânea de sons que compunham, no seu conjunto a mais bela balada musical. O Tico acordou e para seu espanto reparou num pequeno coelho branco que estava junto de si, a olhar muito atentamente, como que também admirado pela presença daquele ser. Muito devagarinho afagou-lhe o pelo luzídio. Num grito selvagem, Tico dera os bons dias à Ria. Uma coisa era certa, estava com uma fome de lobo. Remexeu na sua sacola e tirou um pouco de pão, enrijecido pelo tempo, e um pouco de queijo. Depois de tomar o pequeno almoço, arrumou o sítio onde tinha pernoitado e preparava-se para zarpar rumo a outro lugar desconhecido.

Estava com sorte – Pensava o Tico. A maré estava de feição o suficiente para ele andar mais alguns quilómetros. Olhou mais uma vez ao seu redor, para ver se não tinha esquecido nada e com um salto entrou na pequena embarcação. Remou 32


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durante aproximadamente uma hora e resolveu ir explorar uma pequena ilhota que lhe parecia ter algo de místico e estranho. Não compreendia como é que ao longo daqueles dias em que tinha estado na Ria o barulho da sinfonia dos pequenos animais nunca o tinha abandonado. Aquela pequena ilhota parecia ser terra de ninguém. Nenhum som emanava dela. Era estranho e perturbador. Seria ali que se escondia a Fada da Ria? Não, não podia ser. O sítio onde a fada se encontrava estaria de certeza rodeada de toda a espécie de beleza animal e muitas flores. Seria um local de verdadeira paz e beleza inimaginável. - Pensava o Tico. Era assim que Tico sonhava com o sítio onde pensava ir encontrar a Fada da Ria. Aproximou-se lentamente com a sua embarcação de um sítio onde pudesse aportar e cuidadosamente saltou para a pequena ilha. Estava decidido a explorar aquela que mais parecia um ilhota que se desenquadrava do resto das suas irmãs. Debaixo de um sol abrasador, o pequeno Tico começara a embrenhar-se no interior da ilha, tentando a todo o momento ouvir algum pequeno animal ou sinal de alguma vegetação. Mas nada de nada. Não compreendia como é que podia estar tudo seco. Se aquela ilhota era banhada pelas mesmas águas que as outras, se a poucos metros havia outras que continham as cores do arco-íris na sua composição florestal, como é que aquela ilhota parecia desprovida de qualquer tipo de vida? Não fazia sentido. - Pensava o Tico. De repente ouviu um grande estrondo. O dia começava a ficar escuro e ameaçava chover. Ao longe as nuvens começavam a desaparecer e aquele lugar tornava-se agora um lugar ainda menos convidativo a permanecer. Tico compreendeu rapidamente que a aventura que queria empreender naquela ilhota havia terminado antes mesmo de começar. Havia forças que ele não compreendia nem ia com33


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preender tão depressa. Com o passo acelerado, dirigiu-se ao local onde tinha deixado a sua bateira e num ápice já estava a navegar outra vez nas águas seguras e límpidas da Laguna. Ao fim de alguns minutos reparou que as nuvens tinham voltado e que o sol começava a aquecer. Tico compreendeu naquele momento que não se deve enfrentar o desconhecido sem se ir devidamente preparado para ir até ao fim. Estava disposto a esquecer aquela pequena aventura. Não iria deixar que aquilo lhe estragasse um dia tão bonito que tinha pela frente. As flores a pouco e pouco iam ganhando cor e desabrochavam à sua passagem. Tudo naquela parte da Ria era lindo. Os pequenos animais preparavam-se para mais um dia de sobrevivência. Quem sabe não seria o último. Ao longe conseguia-se ver um par de coelhos que fugiam talvez de um raposa matreira. Mais à frente, um peixe saltitava nas águas. Tico estava maravilhado com tudo aquilo. Nunca imaginara que a Ria que ele conhecia poderia ser tão diferente daquela que ele estava agora a descobrir. Realmente a Fada da Ria deveria ser um Ser maravilhoso – Continuava a pensar o pequeno Tico. Andou durante um bom bocado e para sua surpresa foi encontrar um aglomerado de barcos moliceiros. Como eram bonitos as dezenas de barcos alinhados com as suas velas que quase tocavam nas nuvens, confundindo-se com o branco celestial de umas com o terreno de outras. Tico nutria uma grande paixão pelas embarcações da Ria, principalmente o barco moliceiro, que era o seu predilecto. Contava o seu avô Joaquim que não havia mais nenhum barco que se lhe comparava em velocidade. Tico aproximava-se daqueles barcos moliceiros assumindo um olhar de espanto e respeito, 34


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pois nunca na vida ele tinha visto tantos barcos juntos. Tico não parava de tirar os olhos dos barcos quando de repente ouve uma voz ao longe dizer: - Ei miúdo, cuidado que vais bater. - Disse um dos marinheiros.

Nada a fazer, pois quando o pequeno Tico olha para a frente já a pequena embarcação estava a um metro de um dos barcos moliceiros. Com um salto, Tico mergulha nas águas da Ria. A bateira acaba por mandar um valente soco no barco moliceiro indo embater em mais dois ou três, acabando por se imobilizar. Vários marinheiros precipitaram-se para o sítio onde o Tico tinha mergulhado e viram que ele estava muito perplexo, sentado num dos barcos, a olhar para a bateira. - Estás bem? – Perguntou um dos marinheiros. - O miúdo está em estado de choque. – Afirmou o outro. - É melhor levá-lo para dentro e preparar-lhe um pouco de caldo quente. - Disse um terceiro marinheiro. 35


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- Arranjem um cobertor para ele se embrulhar. – Nesta altura já todos opinavam, pois a preocupação era geral. Só ao fim de algum tempo o pequeno Tico começara a recuperar os a noção da realidade. - Então, estás melhor? – Perguntou um dos marinheiros. - Tou. - Respondeu o Tico, com uma voz meio rouca e sem muita energia. - O que é que um menino da tua idade anda a fazer na Ria? - Perguntou outro dos marinheiros. - Eu ando à procura da Fada da Ria. O meu avô contoume que existia uma Fada da Ria e eu ando a ver se a consigo encontrar. - Respondeu o Tico meio sem jeito. - Bem, se andas à procura da Fada, talvez te possamos ajudar. - Respondeu o marinheiro. O Tico abriu os olhos de espanto como que a perguntar como é que era possível aqueles homens conhecerem a Fada da Ria. Sim, é claro, eles passam toda a vida na Ria que com certeza devem conhecer todos os recantos da casa. – Pensava agora o Tico. - Olha, se quiseres ficar connosco hoje, eu peço ao mestre Barnabé que te diga onde é que poderás encontrar a Fada da Ria. O mestre Barnabé é o único que te poderá ajudar, pois se existe uma Fada da Ria, ele com certeza a conhece. Tens é que esperar pois ele anda longe ao moliço e só mais à noitinha é que virá. - Informou o marinheiro. O Tico resolvera esperar. Se havia alguém que conhecia a Fada da Ria, não podia perder aquela oportunidade. Entretanto ia-se distraíndo, ajudando aqueles homens na apanha do moliço. Talvez aprendesse alguma coisa. - Pensava o pequeno 36


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Tico, já com as suas esperanças redobradas pela emoção de alguém conhecer de facto a Fada da Ria. A apanha do moliço é a actividade mais característica de toda a Ria. De Mira a Ovar pratica-se este trabalho em toda a zona lagunar, incluindo os diferentes esteiros e caneiros. Existem centenas de embarcações em toda a Ria dedicando-se quase em exclusivo à apanha do moliço. Geralmente, cada barco moliceiro dispõe de uma tripulação de dois homens, chamados de camaradas, exercendo funções de arrais e de moço. Estes dois homens servem-se de dois ou de quatro ancinho, concebidos para arrastar e recolher o moliço do fundo da Ria. Um ancinho é um utensílio preparado para esta tarefa e compreende uma vara que, em média, chegava a atingir uns seis metros, possuindo um pente extenso de 1,5 metros, com uma enfiada de sessenta dentes de madeira, distribuídos a intervalos rectangulares uns dos outros. O trabalho da apanha começa com a colaboração assimétrica, nos dois bordos da embarcação, dos ancinhos com uma ligeira inclinação. Os ancinhos ficam presos às forcadas e às tamancas, que não são mais do que peças de madeira encaixadas na parte superior dos bordos. Os homens, de vez em quando, vão puxar os ancinhos e despejar para o fundo do barco o moliço. A apanha do moliço faz-se geralmente com o barco a navegar a favor da ondulação do vento e com a vela recolhida, quase na totalidade, ou com o moliceiro a ser impelido à vara, tendo que estar sempre presente que a deslocação do barco se faça lentamente. Uma da coisas engraçadas do moliço é o seu nome, pois ao longo das várias povoações circundantes à Ria, o moliço pode assumir vários nomes, tais como, corga , limo, erva de arganel, carqueija, mormo, musgo, fita, folha, etc. O moliço é empregado na agricultura, como adubo natural e é muito procurado, sendo a subsistência de muitas famílias. 37


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O pequeno Tico nunca tinha visto como é que na prática se processava a apanha do moliço. Encostado a um canto, para não atrapalhar, lá ia vendo os dois homens manobrando o barco e os ancinhos com uma precisão regular e de tempos em tempos um deles levantava o ancinho e depositava no fundo do barco o tão característico moliço. Dava gosto ver trabalhar. A apenas alguns metros deles, outras dezenas de barcos faziam o mesmo. A barriga começava a dar horas. Já deviam ser horas de comer alguma coisa, mas iria esperar, pois se tinha fome, os homens que estavam a trabalhar muito mais teriam que ter e tinha a certeza absoluta que o almoço não tardava. Até que enfim, iria ter uma refeição decente. - Pensava o Tico.

Ao sinal de um dos moliceiros, o barco onde o Tico se encontrava deu meia volta e dirigiu-se para um local previamente marcado. Já o cheiro à sardinha se fazia sentir no ar. Chegados ao local do almoço, o pequeno Tico reparou que a mesa já estava composta. Sardinhas, chouriço, boroa, vinho e água faziam parte do repasto daqueles camaradas. Em conversa muito animada, lá ficou o Tico a um canto, esperançado que nenhum deles o in38


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terrogasse acerca das suas origens. Não sabia muito bem como é que podia explicar a sua presença na Ria. Depois de comer três sardinhas e um pouco de boroa, foise sentar num dos moliceiros. Por esta altura já o pequeno Tico estava com muitas saudades da sua mãe, do seu pai, dos seus avós e dos seus amigos e até mesmo dos seus irmãos. Já tinham passado três dias desde que ele se tinha aventurado na Ria sozinho. Com toda a certeza eles estariam preocupados, especialmente a sua mãe. Como ele gostava que a mãe à noite fosse aconchegar os seus cobertores. Ele agarrava-se a ela pedindo que lhe contasse uma história. Só conseguia adormecer agarrado à sua mãe. Ao Domingo, como não havia muito trabalho, ela vinha de manhã e enfiava-se dentro da cama dele e contavam um ou outro como é que tinha corrido a semana, os seus projectos, os seus sonhos. A sua mãe costumava contar-lhe que quando tinha conhecido o seu pai, namorava com um rapaz, chamado Henrique, e ele tinha-a levado a um baile, onde lhe tinha apresentado a pessoa que neste momento era o seu marido. Ela contava que chegados ao baile a primeira coisa que tinha visto tinha sido aquele rapaz, de cabelo encaracolado encostado a um canto e a mirar todas as raparigas que por ali estavam. Foi amor à primeira vista. Aquela covinha no queixo, aqueles olhos negros, o nariz bem delineado, tinham-na marcado. Nunca sentira nada por nenhum rapaz que se parecesse com o que estava a sentir. O seu coração parecia que a todo o instante ia explodir. O seu corpo arfava ao som da sua respiração ofegante e descomedida. Ou tinha-se apaixonado por aquele rapaz, ou sofria de alguma doença estranha e os sintomas só agora estavam a começar a aparecer. Num gesto de coragem perguntou ou seu acompanhante quem era o rapaz de cabelo encaracolado que estava encostado a uma 39


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coluna ao fundo do salão. Soube que se chamava Francisco e era filho do António Feio, aquele que tinha imigrado para os Estados Unidos em novo e voltara, tendo construído um dos melhores estaleiros de barcos moliceiros de Aveiro. O engraçado para o Tico era o facto de todas as vezes que a sua mãe lhe contava esta história ele só se recordava até ao momento em que ela perguntava ao Henrique quem é que aquele rapaz era. Por ironia do destino ele adormecia sempre enroscado nos cobertores com a cabeça na barriga da sua mãe e sonhava com o resto da história. De certeza que o seu pai ao conhecer a sua mãe tinha-lhe pegado na mão e jurado amor eterno, no mais belo jardim das flores encantado. Era esse final que Tico queria para essa história. De novo os marinheiros preparavam-se para iniciar a sua azáfama normal em busca do moliço. Tico assumia a sua posição de convidado dentro do moliceiro que acabava de zarpar rumo à enorme bacia de água da laguna de Aveiro. Numa cadência certa e regular o moliço começara a entrar no barco moliceiro antevendo-se o seu enchimento rapidamente, continuando dessa maneira a apanha pela tarde fora. Quando os barcos enchiam, rumavam à margem e descarregavam o moliço, empreendendo de novo nova viagem de trabalho. Tico ainda se lembrava da história que o seu avô Joaquim lhe tinha contado sobre o barco moliceiro. - O barco moliceiro nasceu essencialmente para a faina da moliço. – Começou assim o avô Joaquim a história. - Há muitos anos, houve alguém, que os tempos já esqueceram, que se lembrou de construir um barco que fosse robusto, visto a necessidade de transportar o moliço e outro tipo de materiais. Reza a história que trabalhou durante dois meses 40


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sozinho, até construir o que hoje conhecemos como o barco moliceiro. Construído inteiramente em madeira de pinho, tem um fundo plano, chato, de modo a movimentar-se em águas pouco profundas, como é o caso de alguns canais que encontramos na nossa Ria. Com um comprimento mais ou menos de 15 metros, medido em linha recta, desde a bica à ré, assenta numa ossatura de 21 cavernas que aguentam toda a tabuaria da embarcação.

É solidificado com pregos de ferro zincado ou de madeira a fim de evitar a ferrugem do tampo. A caverna mais avantajada encontra-se junto à proa. Depois, à que dar o pez e a estopa final para a impermeabilização do moliceiro e no final uma ou duas passagens de tinta amarela acastanhada nos bordos, logo acima da borda de água. Actualmente a obra de construção, arrasta-se por uns 25 a 30 dias e é levada a cabo por o clássico machado, ferramenta constantemente afiada, na pedra de amolar, fixa a um canto do esteiro e humedecida com a água. Com o machado, os dois carpinteiros cortam, desbastam e alisam a madeira. Já no respeitante ao cavername da embarcação, alguns construtores usavam por vezes a serra, pois o material é mais difícil de trabalhar, principalmente nas grossas cavernas. No estaleiro o moliceiro começa por ser debuxado no chão da terra, seguindo41


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se o assentamento da tabuaria que vai construir o fundo e depois a distribuição espaçada do cavername. Depois de colocado na água, sobressaem os bordos de amarelo torrado, desde a linha de flutuação à cinta, ficando o restante corpo do barco enegrecido pelo pez, com excepção do chão interior, da proa e da ré que são alinhados com painéis de cores muito vivas, representando as cenas da vida de todos os dias, consoante a habilidade e o engenho do artista popular. Os bordos e a parte superior do castelo da proa levam ainda uma demão de serradura em cima do negrume a fim de proporcionar uma aderência aos pés descalços da tripulação, na faina do moliço, sem receio de escorregamento. As tostes do barco, destinados a servir de quilha, evitam o seu descaimento quando a embarcação anda a bolinar. Levam também uma camada de pez e de serradura, mas só nas faces. A vela, forma trapezoidal, tem uma superfície de 24 metros quadrados e é constituída por pano forte ou lona. A embarcação neste ponto fica toda bonita e a sua duração, se bem estimada, poderá chegar aos trinta ou mesmo quarenta anos. O sol estava neste momento na sua maior força e brilhava com uma intensidade que juntamente com a água, as flores e os animais, compunham uma verdadeira sinfonia à vida. Tudo era bonito e harmonioso naquele lugar. Envolvo nos seus pensamentos, Tico sabia que tinha aprendido mais em três dias do que na sua vida inteira. Afinal, tratava-se da herança dos seus antepassados e mesmo que não fosse o sonho dele dedicar a vida à Ria, queria conhecer muito bem toda a sua tradição e os seus costumes. Fosse qual fosse a profissão que escolheria, haveria sempre de dignificar o seu grande legado, que era a Ria de Aveiro, lugar de grande magia. - Pensava o Tico. Findo o dia, o seu barco regressou ao sítio onde os restantes iriam pernoitar. Tico estava ansioso por conhecer o tal 42


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Barnabé, de que ouvira falar. Será que ele sabia mesmo onde estava a Fada da Ria? – Interrogava-se o Tico. Com o sol a desaparecer, o horizonte estava desenhado com uma mistura de cores que fazia sonhar o comum dos mortais. O azul que se via de dia dera lugar ao vermelho e amarelo. Parecia que o sol se tinha estendido e espalhado a sua essência pelo grande leito. Como era bonito aquele pôr do sol. Diante de tal força, nenhum Ser seria capaz de resistir ao encantamento hipnótico que se sentia. De súbito, uma voz ecoou, informando que a hora do jantar tinha chegado. Robalos frescos, algumas solhas e boroa. Assim se compunha a janta para todos naquele dia. De volta da fogueira os camaradas estavam todos animados, talvez devido ao vinho que com certeza alguns deles tinham abusado e falavam alegremente sobre as suas experiências e conquistas. De repente, Tico sentiu uma mão tocar-lhe nas costas e voltou-se, dando de caras com um velho, de barbas, já com uns 70 anos, pelas contas de Tico. Com uma expressão mista de medo e ansiedade o Tico compreendeu imediatamente que aquela figura só se podia tratar do velho Barnabé, o tal que lhe iria contar onde a Fada da Ria estaria. A pouco e pouco e à medida que ia fixando aquela figura que ele ainda não conseguia classificar, ia perdendo o medo. Não sabia o que era mas aquela figura, apesar de à primeira impressão transmitir medo, sentia agora que aquele homem não podia fazer mal a ninguém. Se olhássemos bem lá para dentro dos seus olhos negros, conseguíamos ver uma tocha de calor e de bondade única. - És tu o miúdo que anda à procura da Fada da Ria? – Perguntou o velho Barnabé. O Tico sem pronunciar uma palavra anuiu com a cabeça positivamente e esperou pela próxima 43


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pergunta do velho.

O velho sentou-se ao pé da fogueira e pediu a todos que se calassem, pois iria contar a mais bela história da Ria. - Conta a lenda que Deus há muitos milhares de anos resolveu criar um mundo à sua imagem. – Começou o velho Barnabé a história. Tico já conhecia aquela história, mas deixou-se estar, na esperança de que a narração do velho fosse mais completa da que conhecia. O velho, ao fim de meia hora de estar a narrar, com todos os pormenores, a parte da criação, acabou dizendo que a Fada da Ria se tinha dividido pelos imensos canais que a compunham. Tico estava espantado e desiludido. Tinha espe44


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rado um dia inteiro para ouvir uma história que já conhecia. O velho Barnabé, depois de acabar a narração, serviu-se de um golo de café bem quente, virou-se para o Tico e perguntou-lhe se ele estaria preparado para ouvir a segunda parte da história. O Tico naquele momento entusiasmou-se, os seus olhos brilhavam de ansiedade pois a versão que tinha ouvido já a conhecia e não sabia que havia uma segunda parte. Depois de anuir com a cabeça em concordância, o velho começou a narração da segunda parte da lenda da Fada da Ria. - Diz a lenda que a Ria acordou do seu estado de repouso e elevando-se acima de si, visionou aquela que seria a sua maior obra, sendo ao mesmo tempo albergue das suas energias. Admirou-se de como é que se tinha expandido em milhares de canais irrigados com a sua semente de força. Olhou as flores, os pássaros, os pequenos animais e chorou de alegria, reflectindo que tinha ultrapassado todas as suas expectativas criadas. - Então a Fada da Ria conheceu o homem. - Continuava o velho Barnabé. - Depois de estudar muito bem aquele Ser, mais ou menos frágil, dotado de inteligência acima das outras espécies, compreendeu a razão do seu acordar. A Fada, erguendo os seus olhos para o céu pediu a seu pai que a visão que tinha tido não se concretizasse. -Após aquele despertar, a Fada jurou não descansar um só minuto em prol da protecção do seu próprio corpo. Conta a lenda que sempre que atentam contra a Ria, a Fada consegue reúnir os elementos da terra, do ar e do fogo, para, conjuntamente com eles, preservarem a sua mais divina criação. - Acabando assim o velho barnabé a segunda parte da história. - Certo dia andava eu à pesca lá para os lados de S. Jacinto, juntamente com o meu avô, quando de repente, o céu 45


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começou a ficar escuro, ameaçando chover. – Narrava o velho Barnabé. - Não compreendi aquilo à primeira. Perguntei ao meu avô o que se tinha passado, pois estava um tempo tão lindo e de repente, naquele local , tudo parecia desenquadrar-se da reali-

dade envolvente. O meu avô olhou para os céus e murmurou algumas palavras que não consegui ouvir e não sei como, o tempo bom voltou. Fiquei com a certeza, a partir daquele dia, que o meu avô conseguia falar com a Fada da Ria. Durante anos tentei convencer o meu avô a revelar-me o segredo. Ele simplesmente olhava para mim e dizia que se o meu coração fosse puro e as minhas intenções fossem mais claras que as mais puras águas da Ria, no momento em que estivesse frente a frente com uma situação de perigo, a Fada viria em meu auxílio. Nunca compreendi o meu avô, até ao dia em que no canal da Ria na Torreira, na parte sul da Ria, andava às enguias. Sem saber como, a bateira embateu numas rochas, acabando por se afundar com a água que a inundou a uma velocidade descomunal. Eu tentava a todo o custo escoar a água, pois encontrava-me numa zona 46


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profunda da Ria e sabia que se não conseguisse pelo menos ficar a boiar, correria sérios riscos de vida. Vendo que não havia mais nada a fazer, lancei-me à água, indo embater com a cabeça numa rocha. Somente me lembro de acordar, na borda de água, seco e com a bateira a meu lado, sem um único arranhão. A partir daquele dia compreendi que alguém superior me tinha dado uma segunda oportunidade e que eu não a poderia rejeitar. Até ao dia de hoje não soube o porquê de alguém ter querido dar-me uma segunda oportunidade. - Contou o velho. Virando-se para o pequeno, que estava com os olhos muito abertos e atento à história que se estava a desenrolar, disse-lhe que também para ele estaria reservado algo de muito transcendente e belo, mas que ele teria que ser sempre puro de alma e de acções. E, continuando, o velho Barnabé explicava a todos os que queriam ouvir que quem quisesse encontrar a Fada da Ria, deveria encontrá-la bem no fundo do coração e se realmente fosse merecedor da revelação, iria encontrar a resposta a todas as dúvidas. Tico tinha compreendido. O grande puzzle começava a encaixar na mente irrequieta dele. O sono já tinha chegado e o Tico preparava-se para ir dormir, debaixo de uns plásticos que os marinheiros habitualmente traziam para se proteger do frio, quando viu o velho Barnabé erguer as suas mãos em direcção aos céus e murmurar algo que não compreendia. O segredo do avô do velho Barnabé tinha sido descoberto. Tico resolvera não perguntar nada, pois sabia qual a resposta que iria receber. Olhou longamente para o velho e adormeceu exausto de cansaço. Pela primeira vez em muitos dias, dormia feliz e seguro de que a sua jornada estava no bom caminho e de certeza que iria alcançar os seus objectivos. Tinha valido a pena. - Pensava o Tico. 47


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O dia amanhecera rapidamente. Ao som do calão dos marinheiros o Tico também acordava, com um sorriso nos lábios. Estava um dia bonito. Não sabia explicar, mas tinha a sensação que iria encontrar a Fada da Ria. - Pensava o Tico. Depois de cumprimentar todos os seus novos amigos tomou o pequeno almoço e foi à procura do velho Barnabé, para lhe agradecer a história que este lhe havia contado. Pela primeira vez o Tico reparou no suave aroma que provinha da azáfama desenfreada que compunha aquele estado de ser dos marinheiros. Sentia-se no ar um perfume de tradição, respeito e admiração, misturados com os cheiros da Ria. Os pequenos animais e as flores, à sua passagem, criavam uma espécie de simbíose inimaginável. Tico sentia o pulsar da vida, que fazia parte integrante daquela enorme laguna. A maneira de ver as coisas tinha-se alterado de forma natural, estava mais maduro. Depois de saltitar entre alguns barcos moliceiros, foi encontrar o velho Barnabé sentado na borda de água, com o olhar desfalecido e sonhador. Tico aproximou-se dele silenciosamente e sem dizer uma palavra, compreendeu que o ciclo da sua vida se tinha fechado para o velho e que naquele dia se lhe começara um novo para ele. Tudo era mais claro para o Tico agora. Sem saber como nem porquê, parecia que podia entender as plantas, os animais, a água e o som característico da ria. Pela primeira vez na vida, sentia-se responsável por alguma coisa. Não era uma questão simples, não. O Tico sabia que algo estaria reservado para ele e que iria descobrir brevemente. O velho de alguma forma, tinhalhe transmitido algo que fizera o Tico um ser diferente do que ele era. Agora ele tinha a certeza de ser e de pretender atingir 48


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um estado superior. Sentia-se eufórico e com vontade de mudar o mundo. Iria partir o quanto antes, em direcção ao sítio onde a Fada se encontrava. Não sabia muito bem onde encontrá-la, mas sentia que brevemente teria a sua resposta. Depois de se despedir dos seus novos amigos, zarpou na sua pequena embarcação, deixando-a correr ao sabor dos ventos. Se ele estaria certo a corrente iria levá-lo ao seu destino.

Tico estava deitado na proa da sua pequena da barcação quando de repente ouve na água um barulho esquisito que mais parecia um bater de asas ofegante. Olhou para o lado direito e vê uma pequena gaivota que por qualquer razão, tinha batido na água e se tinha magoado. O pequeno Tico apanha-a e cuidadosamente seca-a com o seu cobertor passando mais de uma hora a alisar-lhe as penas, com esperança de que a pequena gaivota ficasse curada. Sem pensar e num instinto eleva a gaivota aos céus e larga-a. Ela simplesmente voou. Ele compreendeu. Compreendia agora , o porquê de em pequeno, quando caiu à Ria, não se ter afogado. A sua mãe passava a vida a dizer 49


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que tinha sido um milagre. Quando tinha os seus 6 anos, junto à borda de água, e sem saber como, escorregou, indo mergulhar numa zona onde a profundidade ultrapassava largamente os 2 metros. Ao debater-se entre a vida e a morte, pareceu-lhe ver ao fundo uma luz muito brilhante que dizia que não tinha chegado a sua hora. Dizia-lhe que ele iria ser muito importante para o equilíbrio da Ria e que teria de lutar com todas as forças que possuía para vencer a aflição e o pânico que estava visivelmente instalado em todo ele. O Tico só se lembrava de a seguir ter acordado na sua cama, com a sua mãe e o seu melhor amigo a seu lado.

- Então puto, estás melhor? Perguntou o Pedro.

O silêncio fez-se sentir. Nem uma palavra da boca do Tico saiu. Ainda estava um pouco tonto com tudo aquilo que lhe tinha acontecido e precisava de reflectir muito bem sobre o que se tinha passado. A sua mãe, com os olhos molhados de emoção, apertava-o contra o seu peito, repetindo vezes sem conta “ meu amor” “meu amor”. Mais tarde, contou aos seus amigos o que tinha acontecido, mas só conseguiu arrancar gozações e troças desmesuradas. Não importa, ele sabia que aquilo tinha acontecido e que mais tarde ou mais cedo algo havia de se revelar e então os seus amigos ficariam a saber que aquilo tudo era verdade. Enquanto navegava pela Ria, Tico reparava que cada vez se embrenhava mais no leito e a paisagem ficava também cada vez mais bonita. Ele sentia que os pequenos coelhos que estavam a brincar nas pequenas ilhotas olhavam com admiração e muito carinho. Será que se eu encostar à margem e tentar brincar com eles, não fogem? – Pensava o pequeno Tico. Não, é melhor ficar a pensar que eles me dariam o mão, do que arriscar a provar esta teoria. - Continuava o Tico envolto nos seus 50


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pensamentos. As flores começavam a ser mais bonitas e mais raras. Tico visionava agora espécies que nunca vira na vida e de que nunca ouvira falar. Aquele canal por onde ele se tinha embrenhado, realmente tinha ido dar a uma parte da Ria espectacular e que ele agora desejava explorar ao máximo. Com o calor a apertar, o pequeno Tico resolve dar um mergulho. Procurou um sítio para lançar a âncora e olhando em redor, vendo que não havia ninguém, despiu-se e mergulhou na água quente e reconfortante.

Era perfeita a simbiose daquele corpo singelo e frágil, com o toque profundo da água. O sol brilhava agora no seu máximo expoente, revelando a cada segundo o calor que tão generosamente proporcionava. Tudo na Ria brilhava. A intensidade que se fazia sentir era sublime. Tudo estava em perfeita harmonia. A Ria, os peixes, as flores e o homem - criança no seu mais puro estado. Pela primeira vez o Tico tinha encontrado o equilibrio entre os elementos que o rodeavam. 51


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Tico nadara até à margem. Sentando-se na borda de uma das ilhotas, admirando aquela paisagem, sentia que fazia parte de tudo aquilo. Olhava os peixes, as flores e os pequenos animais que olhavam para ele totalmente nu vendo-se agora de igual para igual com todas as forças que o rodeavam. Sentiu-se grato por estar vivo. Vivo e feliz. Foi nesse momento que um coelho branco aproximou-se dele e sem qualquer espécie de receio transmitiu-lhe a confiança e o sentimento suficiente para ele se sentir omnipotente e humilde na sua mais simples forma de estar e de sentir. O Tico, deixouse estar muito quieto a contemplar aquele estado de beleza e de paz, agora encontrado, fruto dos seus sonhos. Ao fim de algum tempo o Tico regressou à sua embarcação, disposto a prosseguir caminho. Sentia que estava pertíssimo do seu objectivo. Algo lhe dizia, na maneira como olhava a Ria, na maneira como era olhado, que os seus habitantes estavam a abrir caminho, para o encontro que ele considerava ser a primeira ou a última lição da sua vida. Lentamente começou-se a aperceber-se de um estranho ruído, que chegava até ele, vindo de todas as partes. O Tico reconheceu de imediato o som que estava a ouvir. Aquele ruído, que agora se transformava numa linda melodia, anunciava a sua entrada no mais maravilhoso lugar da Ria. Começou a remar, agora mais depressa. Ofegante mas sentindo uma força nunca sentida, dirigiu a sua bateira em busca da melodia que cada vez o chamava mais. - Seria o som de uma sereia? – Pensava o Tico. Fosse o que fosse, deveria ser lindo. Tinha a certeza de nunca ter escutado algo tão misterioso mas tão belo ao mesmo tempo. 52

A sensação que estava a sentir só se comparava com o


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nascimento do seu irmão mais novo a que ele assistiria. Ao príncipio ficara assustado e irrequieto, com a sua mãe a dar à luz o seu irmão. Não havia médico e fora uma amiga da família que servira de parteira a muitos bebés e que ajudou a sua mãe a ter o irmão. Com grandes dores a mãe ia-se contorcendo e gritando. Tico ficara apavorado. Não compreendia como é que um pequeno Ser, que ainda não tinha nascido, começava já a fazer sofrer a sua própria mãe. De repente começou a jorrar sangue pela parte de baixo da mãe e a parteira muito aflita tentava tirar de dentro o seu irmão. Foram trinta minutos que pareceram que duraram um dia. Tico estava à espera que o nascimento do seu irmão acabasse, para a sua mãe poder descansar. Se fosse preciso, ele tomaria conta do seu irmão, até a mãe se sentir melhor. Então, num último esforço da sua mãe, ouviu-se um choro de bebé e a mãe deixara de sofrer, espelhando-se no rosto dos presentes um sorriso de felicidade. Como era pequenino o seu irmão. A sua mãe estava radiante e quando pegou no pequeno Ser, que saira de dentro dela, o Tico percebeu que algo tinha acontecido. Houvera algo que nascera, além do amor da mãe pelo pequeno Rafael. Tico compreendera agora o porquê. No meio do turbilhão de emoções e pensamentos o Tico continuava a remar, indiferente neste momento à paisagem, aos animais, às plantas e à Ria. Como que um zombie, era agora guiado pelos caminhos claros e celestiais do corpo da sua Fada. Depois de alguns minutos, o Tico chegou a uma enseada. Os peixes saltavam à sua volta e os animais nas margens davam as boas vindas. As plantas desabrochavam à sua passagem, como que por magia. O barco, sem qualquer ordem, parou e fez-se o maior silêncio. Aquele som, que ouvira e que tanto o havia assustado, tinha cessado. O que era mais estranho para ele é que o próprio som da Ria tinha-se extinguido. Nada se mexia, nada se ouvia, tudo era muito e nada. 53


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No momento seguinte, o pequeno Tico ouviu outra vez a melodiosa música, agora mais alto e compreendeu tudo o que tinha a compreender. Abriu-se-lhe a mente e assimilou o conhecimento que há tanto tempo procurava. Para ele agora era tudo claro. A partir daquele momento olhava para a Ria com outros olhos. Os pássaros já não lhe pareciam pássaros, as flores já não lhe pareciam simples flores, os animais já não pareciam simples animais, mas sim amigos, que outrora teria conhecido numa outra forma de existência. Tinha criado a perfeita relação com todos os Seres da Ria. Afinal, ele também era a Ria naquele exacto momento. Olhou em direcção aos céus e murmurou algo, que só ele sabe e mergulhando num vazio que só ele compreendia, rumou em direcção a sua casa. Tico tinha-se tornado mais maduro. Os seus olhos revelavam uma expressão de experiências vividas que dificilmente mortal algum teria atingido. Só ele sabia o que é que lhe tinha sido revelado. Naquele momento ele era uno com todas as forças à sua volta. Ao logo do caminho de regresso, ouvia-se uma mistura entre o vento e os sons originais, a estranha melodia que para o Tico já não era assim tão estranha. Pareceu-lhe ver ao longe, espelhado no céu, a imagem do Barnabé, mas só poderia ser uma ilusão, devido ao cansaço. Os pequenos animais aproximavam-se da margem, construindo um autêntico exército que o escoltavam até ao seu destino. As flores e a seiva selvagem despertavam para os olhos do Tico, que parecia agora comunicar e entender toda aquela 54


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miscelânea de sons, ruídos e sentimentos. O Tico relembrava agora a imagem da sua mãe. Como tinha saudades dela. Como ele amava aqueles lindos cabelos, aquela expressão que fazia quando estava contente com o Tico. De vez em quando ralhava com ele, mas isso era natural. O Tico nem sempre se portava muito bem. O que é que ela estaria a fazer? – Interrogava-se o pequeno Tico. Estava mesmo com pressa para chegar a casa, talvez ansioso demais como se estivesse com algum pressentimento. Começava a descer a Ria, envolto nos mais silenciosos pensamentos, indo reparando nos sítios por onde tinha passado, mas que agora lhe pareciam diferentes. Reparava com atenção em tudo à sua volta e parecia-lhe que o verde da flora se tinha tornado mais verde, que os animais que passavam à beira das margens se tinham tornado mais vivos e mais amistosos, que a água da Ria se tinha tornado mais límpida e mais pura. A partir daquele dia tudo se havia transformado para o pequeno Tico. Passou pelo grupo de moliceiros que lhe tinham dado guarida e ouvi-os a gritarem de euforia e felicidade por verem que tinha regressado a salvo da sua viagem. Tico acenou-lhes e agradeceu-lhes o que eles tinham feito por ele.

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Tico relembrava agora todas as suas aventuras que tinha tido naqueles dias em que se tinha estado na Ria. Lembrava-se da primeira noite em que tinha pernoitado naquela ilhota, onde apanhou um grande susto, devido à estranha música. Os picapaus também lhe vieram ao pensamento. Como ele tinha passado uns dias espectaculares na Ria de Aveiro. Relembrava com muito carinho o dia passado na companhia dos moliceiros e como tinha aprendido tanto. Como ele iria ter prazer em contar as histórias, aos seus amigos e em particular ao seu Avô. Seria o aluno a ensinar ao mestre. Tico sabia que nada podia contar acerca da Fada da Ria, mas podia de certeza dar algumas pistas acerca do que tinha vivido. O sol brilhava intensamente e segundo as suas contas, em breve estaria em casa. Bastava subir apenas mais alguns canais e já a veria. Ao longe já conseguia avistar a chaminé. Haviam dois barcos moliceiros acostados que deviam ser com certeza dos amigos e do seu pai. Não sabia explicar o porquê, mas sentia a cada momento que passava, um desejo ímpar de abraçar a sua mãe, o seu irmão, os seus amigos. Todas as emoções se começavam agora a apoderar dele. Combalido e com as forças a faltaram-lhe , pediu aos céus que não o deixassem esmorecer, pois estava tão perto de sua casa. Se tivesse de morrer, que morresse nos braços de sua mãe. O sol começava a pôr-se do seu árduo dia de trabalho. O horizonte emanava o mais lindo pôr-do-sol algum dia visto. Tudo era perfeito para o Tico. Agora mais perto de sua casa já podia sentir o sabor dos cozinhados da sua mãe, que com certeza, neste momento, estaria ao lume à espera da família. Tico 56


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compreendeu agora que não deveria ter vindo nesta aventura, sem ter conversado com a criatura que lhe tinha dado o Ser. Tico compreendia agora o quanto deveria estar preocupada a sua mãe. Numa redobra de esforços, lutou com todas as suas energias, contra as águas da Ria, tentando chegar o mais depressa possível. Já era visível a sua casa. Tico sentiu que estava apenas a poucos minutos dos braços da sua mãe. As águas pareciam agora ajudar o pequeno Tico a empolar o barco para a frente. A favor da maré, a pequena embarcação deslizava suavemente. Tico já conseguia ver perfeitamente a sua casa. Notava que estavam algumas pessoas na entrada que ao longe conseguiu identificar pela roupa preta, que um deles seria o padre. Estranhou a quantidade de vizinhos que se juntavam na porta da entrada e as lágrimas começaram a sair-lhe dos olhos, como um riacho que corre em todas as direcções. Aportou a pequena embarcação e com um salto galgou as margens, estando neste momento a poucos metros de sua casa. - Ó Tico! – Disse uma das senhoras muito perplexa. - O Tico! – Gritou outra das senhoras que estava à porta de sua casa. O Tico depressa compreendeu que estariam certos os seus pensamentos. Algo estava mal e começava já a tremer de medo. Nesta altura já não conseguia pensar e apenas desejava que alguém lhe explicasse a situação. Seria algo com o seu irmão? Ou com o avô, avó, pai? Pensou em todos os elementos da sua família menos na sua mãe. A sua mãe seria eterna, nunca jamais algo de mal lhe podia acontecer. - Ansiava o pequeno Tico já com o seu coração muito apertado. O padre veio ao encontro do Tico e abraçou-o como que a tentar transmitir alguma energia e consolo. 57


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- Meu filho, Deus ama todos os seus seres de igual modo e sabe sempre o que faz. Todos os eleitos entrarão no reino dos céus. Tens de ser forte, meu filho. – Disse o padre. O Tico, com as lágrimas nos olhos, compreendeu que o seu maior receio acontecera. Com um redobrar de forças gritou bem alto a palavra mãe. De repente precipitou-se como um furacão enraivecido para dentro da casa em direcção ao quarto de sua mãe e viu-a deitada, com os olhos abertos, estando à sua 58


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volta o seu pai e o seu irmão mais novo. Com as lágrimas nos olhos, o Tico aproximou-se da sua mãe. Sentou-se ao pé dela, pegou-lhe na mão e jorrou líquido das suas lágrimas. A mãe olhou para ele, muito emocionada e deixando também cair um fio de lágrimas, disse-lhe: - Agora estou feliz e pronta para partir. Já sei que o meu pequeno Tico está bem. - NÃO. NÃO. Mãe, não partas. A Fada da Ria vai-te salvar. - Gritou o Tico. Então naquela casa, durante largos minutos, ouviu-se os gritos de desespero do Tico que suplicava e lutava com todas as suas forças para curar a sua mãe. De repente, ele precipita-se para fora, ajoelha-se perante a Ria e pede à Fada que o levasse a ele em troca da vida da sua mãe. Foi então que uma enorme tempestade de vento, trovoada, água rugindo de pavor, emergiu naquele canto da Ria. De mãos erguidas o Tico clamava com todas as forças que tinha à divina Fada, que salva-se a sua mãe. As lágrimas caiam-lhe tal riacho a desaguar, nada à sua volta era mais igual, tudo se transformava. Quanto mais chamava mais revoltas as águas, mais intensa a chuva, mais negro o céu, mais sibilante o vento, mais forte o ribombar das muitas trovoadas. De repente tudo se acalmou. O vento virou suão. O sol brilhou no espaço. E a Ria voltou à imensidão das águas calmas num espelho reluzente de azul. 59


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No ar era intenso o cheiro das flores, misturado com os cheiros da Ria. Uma música suave emanava, provinda das entranhas da terra, e naquele êxtase o Tico foi atravessado por milhões de sensações. Aquele pequeno Ser estava uno com os elementos como que a pedir-lhes ajuda. Após alguns minutos num estado de meditação, o Tico vira-se e vê a sua mãe, de cabelos caídos, tão bela, talvez tanto como a Fada da Ria, que aguardava, atrás de si, o simples e terno doce abraço do seu filho.

Naquele momento tudo ficara em paz, em silêncio. O pequeno Tico já não era pequeno, já não era mais aquelas criança que tinha partido uns dias antes numa aventura pela Ria 60


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de Aveiro. O Tico jรก sentia agora a responsabilidade que tinha ganho e nรฃo se esquecera da promessa que tinha feito em tornarse mais um protector da Ria de Aveiro e de toda a sua vida. Ele sabia agora qual o caminho a seguir, qual o seu propรณsito de vida e qual a recompensa que lhe tinha sido dada muito antes de ele a merecer.

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AGRADECIMENTOS Para além das habituais pessoas que fazem parte desta minha caminhada e que estão presentes da minha vida, não posso deixar de agradecer a duas que contribuíram de forma decisiva para incrementar a qualidade deste livro e quiçá serão os responsáveis por esta publicação tomar a forma que tomou. Em primeiro lugar, agradeço ao meu amigo Artur Marques. O Artur foi das pessoas que mais me ensinou sobre humildade sem nunca pronunciar uma palavra sobre o assunto. Recordo, com alguma saudade, as inúmeras horas que passámos discutindo a Ria de Aveiro, depois do seu expediente que não era já de si nada fácil. Foi a primeira pessoa a fazer a primeira correcção ortográfica ao livro e a dar algumas ideias para a história do Tico.

Obrigado Artur…sei agora que encontraste o teu Tico.

A segunda pessoa é o meu querido amigo Nelson Pinho que o conheço talvez há uns 25 anos. Teria ele uns 8 ou 9. Desde a primeira hora que conheceu o Tico, não descansou enquanto não premiou este livro com inúmeros desenhos seus, feitos à custa de muitas horas e aturando os meus devaneios, com total paciência para corresponder ao que eu ansiava ver desenhado. Conseguiste meu amigo, a ilustração está fantástica. Obrigado Nelson…estás no meu coração para todo o sempre. 63




...porque a Ria de Aveiro é um lugar mágico e cheio de aventuras, porque a Ria de Aveiro tem uma Fada que zela por todos nós, porque todos sabemos o valor da extensa laguna e do seu poder mágico, este livro conta a história da Fada através do pequeno Tico que percorre a Ria em busca de algo em que acredita. No fim, encontra-se a si mesmo e entende o imenso poder de algo maravilhoso.

in nota do autor


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