A estética do tamborzão - A trajetória do Funk Carioca

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A estética do Tamborzão. A trajetória do Funk Carioca. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Departamento de Artes

Jorley Andrade do Rosário (Jota Rosário)

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO…………………………………………………...02 2. ORIGEM DA ELETRÔNICA MUSICAL …….....…………….03 3. A RAIZ JAMAICANA DA MÚSICA ELETRÔNICA................07 3.1 A cultura Sound system..............................................................................07 3.2 O dub é a fonte.............................................................................................11 4. TECNOLOGIA E APROPRIAÇÃO CULTURAL, A ECLOSÃO DE NOVOS GÊNEROS MUSICAIS.....................................................................14 4.1 Caracterização de gêneros musicais..........................................................14 4.2Contracultura popular, a face do Guettotech.............................................16 5. FUNK CARIOCA, A ESTÉTICA DO TAMBORZÃO.................................20 5.1 Hip-hop rulezzz, a influência do bass........................................................20 5.2 O movimento Black Rio..............................................................................22 5.3 A fundação de uma instituição: o Baile Funk...........................................26 5.4 O Funk dá as caras, uma apresentação conturbada................................30 5.5 A Proibição e o exílio...................................................................................34 5.6 A era de Ouro do funk................................................................................38 5.7 Novos desdobramentos do movimento......................................................44

6. CONCLUSÃO…………………………………………………….50 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………..52

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RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar a estética de formação da linguagem sonora do gênero Funk carioca, no seu contexto de movimento popular de massa, as diversas influências sonoras resultantes na criação de sua identidade, seu diálogo dentro e com a sociedade, e com novas tendências abertas a partir deste contexto estético estabelecido.

Palavras-chave: estética do Funk, Tamborzão e movimento Funk carioca.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como finalidade caracterizar a estética musical do gênero funk carioca, traçando os processos musicais que nele culminaram. Sonoridade fundamentada na música eletrônica, calcada nas manifestações populares que beberam na fonte do dub, este gênero musical surge a partir de elementos do Miami Bass, que se reconfiguram e se transformam na cidade do Rio de Janeiro, resultando numa nova linguagem musical, com estilo próprio. Através de um panorama histórico, o trabalho pretende traçar os fatores preponderantes durante e para o surgimento do funk carioca, elencando também os aspectos sociais que contribuíram para a construção deste gênero. Por isso, o trabalho evidencia também os preconceitos e as tentativas de criminalização dessa cultura, bem como a iniciativa legislativa que lhe conferiu o caráter de movimento artístico.

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O trabalho inicia com o surgimento da música eletrônica e a evolução dos formatos de reprodução de mídia, fator preponderante para surgimento da “indústria musical”, e aborda a sua ressignificação na Jamaica, com o dub, e o envolvimento da camada popular com o movimento sound system. Parcela da sociedade que no futuro viria a se tornar protagonista desta cena, como produtora e distribuidora de conteúdo musical, incorporando a vertente eletrônica à sua tradição sonora. Daí, surgem o hip-hop, o electro e o miami bass, que, inserido no circuito de bailes do perímetro urbano do Rio de Janeiro propicia, o nascimento do gênero Funk carioca. Com o passar do tempo, este funk é recriado, tendo sua linguagem redesenhada e definida na fundação de uma estética própria: a estética do “Tamborzão”. Nesse processo, novas histórias musicais vão surgindo sob a sua influência, com novas roupagens e características. Na atualidade, o funk se configura não somente como um estilo, mas como todo um movimento social e cultural, que nasceu da população periférica carioca, de suas expressões artísticas e identitárias, e que hoje ganha o Brasil, sob outros formatos e sotaques. Como veremos no decorrer deste panorama, ele é, na atualidade, um movimento cultural popular nacional, que se cria e recria de forma contínua e que ainda terá muito a contar.

2. Origem da eletrônica musical1

A música chamada eletrônica2 tem suas origens nos séculos XIX e XX, e seu surgimento está relacionado a experiências científicas no campo da engenharia eletrônica, que se desenvolveram mais fortemente no período da 2ª Guerra Mundial, em que a demanda pela troca de informações entre os lugares mais remotos impulsionou o surgimento das mais variadas ferramentas tecnológicas de comunicação. Neste contexto, surgem protótipos de computadores, dispositivos de captação, edição, 1 Para elaboração deste panorama foi usado como base o livro: All Music Guide to Electronica: The Definitive Guide to Electronic Music. Backbeat Books, 2001

2 Música eletrônica é toda música que é criada ou modificada através do uso de equipamentos e instrumentos eletrônicos. SADIE, Stanley. Dicionário grove de música: edição concisa. Jorge Zahar Ed: Rio de Janeiro: 1994, p.634-5.

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reprodução e propagação de áudio das mais variadas espécies, sobretudo na Alemanha, um país de vasto território. Com o fim da 2ª Guerra Mundial, inicia-se um período de reconstrução em toda Europa, principalmente na Alemanha, a potência derrotada pelos exércitos Aliados e, por consequência, a mais devastada pelos estragos da guerra. Assim, com o início do cessar fogo e do período de reconstrução infraestrutural e econômica, o campo científico começa a se apropriar da tecnologia gerada até então, impulsionada por incentivos governamentais. Com a exploração de aparatos tecnológicos relacionados ao áudio e às ondas de rádio, abre-se o caminho para os estudos da chamada música eletroacústica3, que tem como principais correntes a música concreta na França e a Elektronische Musik na Alemanha, ambas de caráter experimental pautadas no estudo de manipulações sonoras, unindo fonogramas4 de música erudita a experimentações com sonoridades das mais diversas. Apesar desse início relacionado a ramificações da música clássica, a música eletrônica, com o passar dos anos, vai sendo absorvida pela cultura popular. Em meados da década de 1960, a utilização de seus subprodutos de criação e manipulação de sons, como sintetizadores5, efeitos e distorções, são comuns por artistas de massa, como The Beach Boys, Emerson Lake and Palmer, The Beatles e principalmente o Kraftwerk, banda alemã conceitual, precursora da estética eletrônica na música pop. Munida somente de computadores e sintetizadores, é considerada a primeira banda de música eletrônica do mundo, de acordo com Fonseca e Rodrigues (2005). 6 O campo da gravação musical encontra terreno fértil neste mesmo período, em que se inicia a expansão da indústria das grandes gravadoras, companhias compostas 3 Música de instrumentos acústicos gravados, cujas gravações podem ser manipuladas, combinadas, montadas e superpostas. MASSIN, Jean; MASSIN, Brigitte. História da Música Ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1997, p. 1166. 4 Inscrição do som, obtida por meio de aparelhos registradores, em fonética experimental.

5 Aparelho eletrônico acionado por um teclado ou por potenciômetros capaz de produzir sons a partir de sinais elétricos digitais. 6

FONSECA E RODRIGUES, Rodrigo. Música eletrônica: a textura da máquina.

[S.l.]: Annablume, 2005. 4


por estúdios para gravações de discos com propósitos comerciais, e uma ampliação do mercado da música propriamente dito. Os Estados Unidos se estabelecem no pós-guerra como principal potência econômica mundial, e incorporam as técnicas europeias, desenvolvendo-as através de seu poderio monetário e sua lógica capitalista. Dá-se, assim, a expansão do mercado da música como conhecemos hoje. Assim, a música eletrônica se caracteriza não como um estilo, nos moldes em que é propagado pelo senso comum, nos dias atuais, mas como toda uma esfera de conhecimentos e técnicas responsáveis pelo repertório dos fonogramas existentes no mundo. A gravação, edição e inserção de qualquer “artifício” eletrônico caracteriza esta música como um resultado da “eletrônica” – desde um CD com mídia gravada em MP37 a uma banda de rock que faz uso de instrumentos amplificados8. Portanto, para a real compreensão do que é dito como música eletrônica, é necessário o entendimento de cada movimento e gênero em si e suas particularidades e idiossincrasias.

7 MP3 vem de MPEG Audio Layer-3, um formato de arquivo que permite ouvir músicas no computador com ótima qualidade. Assim, o MP3 é como os antigos LP, K7 e o CD. http://www.tecmundo.com.br/musica/214-o-que-e-mp3-.htm#ixzz2jywn0I1B 8 Aparelho que aumenta a potência de uma oscilação elétrica. Amplificador de audiofrequência, aparelho destinado a ampliar os sinais de uma fonte sonora, aumentando-lhes a audibilidade. http://www.dicio.com.br/amplificador/ 5


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9 Imagens: esquerda, primeiro sintetizador de Oskari Tammelin; direita superior, Beatles testando sintetizador em ensaio; direita inferior, a banda Kraftwerk em apresentação no ano de 2004. 6


3. A raiz jamaicana da música eletrônica10

3.1. A cultura Sound system Para compreender a música eletrônica, fundamentalmente, tem que se entender a cultura sound system (sistema de som). No final dos anos 1940, os Sound systems já eram difundidos na Jamaica. Renegados pelos bailes de produção mais pomposa para turistas e pela elite da Ilha, a grande população encontrava nos Sound systems um lazer à sua moda, onde o baile vinha ao seu encontro, o chamado Dancehall. Nesta mesma época, em todo o mundo, eram comuns os grandes bailes embalados por orquestras e conjuntos. Na Jamaica, como em qualquer outra zona periférica das principais cidades do mundo, a população menos abastada raramente usufruía dessa possibilidade, devido o alto custo do aparato e da infraestrutura para a apresentação de uma banda tradicional. Diante dessa realidade, técnicos, engenheiros de som e curiosos traziam às ruas a opção do baile, da festa, que levava a música ao encontro da massa. Levantando uma cena composta de dezenas de caixas de som e uma imensidão de improvisos e gambiarras faziam-se surgir os grupos de som, os Sound sytems. No começo da década de 50, a principal música sendo tocada nos bailes jamaicanos era o R&B [rhythm and blues] norteamericano; contudo, como o mercado jamaicano era extremamente pequeno, estas gravações tinham que ser trazidas dos Estados Unidos. Com o surgimento do rock´n´roll a produção de R&B norte-americano diminui se tornando cada vez mais difícil manter a fonte de novidades para o público. Assim, Coxsone Dodd começou a produzir canções jamaicanas de rhythm and blues com o objetivo de tocá-las em seu sistema de som. (MUNIZ, 2010, p.57)

Em pouco tempo os Sound systems alcançaram enorme popularidade, tornandose um negócio extremamente rentável, pelo comércio de ingressos e bebidas, chegando ao ponto de serem utilizados para manobras políticas em busca de aceitação em determinada localidade ou de certos grupos. (STOLZOFF, 2000).

10 Para construção deste panorama foi usado como referência o Documentário: Dub Echos. 2009. 7


Na seleção das músicas, surgia uma figura que futuramente seria preponderante na história da música moderna, o avô do que posteriormente viria a ser batizado de Disc Jóquei, o popular DJ. “Os sistemas de som foram nossas estações de rádio!”, afirma Bunny Lee, renomado engenheiro de som Jamaicano que acompanhou todo o processo da cultura musical da ilha.11 Nesse contexto de aumento da concorrência entre Sound Systems, inicia-se uma busca por exclusividade no repertório de cada equipe, que faria com que cada uma se destacasse e crescesse mais. Porém, o acesso aos discos vai se tornando a cada dia mais difícil e caro, o som do Rhythm and blues americano começava a soar repetitivo e assim se iniciava a fase dos Dub plates, gravações próprias feitas em acetato, um produto em qualidade inferior, porém muito mais barato que o vinil, que rapidamente começa a fazer sucesso e a ser comercializado entre o público e os próprios Sound system. Uma nova tecnologia disponível, a gravação em dois canais, permitiu aos produtores a criação das versions, ao possibilitar que um cantor ou DJ interviesse em uma base gravada anteriormente. Essa possibilidade permitiu o surgimento de duas inovações estilísticas. A primeira, a gravação da voz dos DJ em cima dos riddims, inicialmente eram comentários elogiosos ao Sound system responsável pela gravação. Estes comentários começaram a ganhar cada vez mais espaço na música como forma de reproduzir a realidade dos Dancehalls, onde os DJs costumavam realizar o Toast - uma performance vocal que se aproxima mais da fala do que da expressão melódica tradicional do canto – enquanto as faixas são tocadas. Um dos mestres do gênero, U-Roy, tem grande mérito na popularização do Toasting, que é considerado uma forma precursora rap, desenvolvido em Nova Iorque por jovens caribenhos, negros, entre outros grupos marginalizados. (STOLZOFF, 2000)

Eis que chega o ponto da segunda revolução musical trazida pelos engenheiros de som na Jamaica. Ruddy Redwood, operador do Sound system Supreme Ruler of Sound, vai ao estúdio para executar um material exclusivo, uma Dub plate; porém, o engenheiro do estúdio se esquece de incluir os vocais na gravação do lado B do disco, 11 Em entrevista ao documentário “Dub Echoes”, 2009 8


resultando numa versão instrumental da faixa, que Ruddy com pressa compila mesmo assim. Nesta mesma semana, a faixa é executada no dancehall, primeiro sua versão original e posteriormente a versão sem vocais. Seu sucesso é estrondoso na pista e a faixa tem de ser repetida por vezes e mais vezes. Membros de outros Sound systems presentes atentam para o fato; neste mesmo momento havia diversos músicos talentosos na Jamaica, que começavam a desenvolver ritmos a partir da produção do seu próprio R&B, criando novas sonoridades que mesclavam o som americano do Jazz e R&b com ritmos locais como o Mento e o Caribenho Calypso. Nascia nesta época o SKA e com ele o Rocksteady e o Reggae. Os estúdios eram responsáveis pelas compilações das bandas. Alguns deles ficaram famosos como uma espécie de selo de garantia de qualidade musical da banda apresentada, que tornava os Sound systems ávidos para adaptarem esses Riddims12 em novos sons e criarem também seus sucessos. Inicia-se a fase da manipulação da canção dentro do estúdio, onde o engenheiro altera toda a estrutura musical, insere efeitos, recorta sonoridades, modifica timbres, enxugando a música e deixando apenas sua sonoridade mais básica, a sua DUB Version, nascendo neste ponto da história a base da música eletrônica de gueto contemporânea.

12 Base melódica da música, composta pela linha de contra baixo e bateria. 9


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13 Esquerda, apresentação de toast no dancehall; Direita, Sound System de King Tubby. 10


3.2. O dub é a fonte One good thing about music. When it hits you, you feel no pain. (Bob Marley)

O Dub não se configura como um estilo propriamente dito e sim como manipulação de uma sonoridade pré-concebida em estúdio. Dub é música eletrônica desenvolvida por engenheiros de áudio, é o nascimento do Remix. Produtores como Coxsone, King Tubby e Scratch Lee Perry e estúdios como o Studion One se destacam como a maior expressão da nova sonoridade e tornam-se principal referência e espinha dorsal da música Jamaicana. A ilha se torna uma referência na manipulação de fonogramas nesse momento, os Sound system, em especial King Tubby, com sua competição interna, quebram as barreiras da precariedade e começam a desenvolver seus próprios equipamentos de mixagem, efeitos, equalização, separação de frequências, tudo que viesse a tornar a apresentação e as faixas cada vez mais únicas e especiais. Com poucos equipamentos eram capazes de fazer um som extremamente potente. O fim da década de 1970 traz a eclosão da guerra civil na Jamaica e, com ela, a instabilidade de tempos de conflito aliada a uma grande miséria e problemas na distribuição de bens. Inicia-se um grande fluxo migratório, grande parte da população a procura de melhores condições de vida ruma para os Estados Unidos da América, carregando a saudade da terra natal e as lembranças da cultura Sound system. Não por coincidência este período é conhecido pelo início da cultura Hip-Hop nos Estados Unidos. Kool Herc, DJ que passou sua juventude na Ilha Caribenha, introduz o Toast na performance de DJ. Se a música jamaicana era referência para o produtor de Dub, nos EUA o Jazz era a referência para o Bebop, Hip-Hop, para o Funk e o R&B, uma forma de abrir espaço para a improvisação. (MUNIZ, 2010) Sendo a cultura Hip-Hop baseada em Samplers, trechos "roubados" de outras músicas e usados como base para outras produções, vê-se que ela sofreu total influência

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Jamaicana. E a influência vem desde a estrutura vocal, que viria a criar o Rap14, à base harmônica do hip-hop estruturada em Samples e Scratches, que são os movimentos que o DJ faz com a mão sobre o disco de vinil andando de modo acelerado para frente ou para trás no andamento da reprodução da faixa musical. Outro ponto de refúgio para os imigrantes Jamaicanos foi Europa, em especial a Inglaterra, país de mesma língua, onde na verdade a música foi o principal idioma a ser falado. Numa época de insatisfação, revoltas operárias e revolução punk nos subúrbios ingleses, a cultura musical Jamaicana foi logo assimilada, tanto pelas letras ora de manifesto, ora de esperança e paz do reggae, quanto pelos ritmos dançantes como o ska e o rocksteady, onde o Dub teria papel mais influente. Inicialmente tocado em porões e ambientes mais underground, o Dub encontrou sua morada na Inglaterra, epicentro da House music e cultura Rave mundial. Após um êxodo migratório constante, foi incorporado pela cultura britânica. A Inglaterra se tornou a capital mundial do Dub e é epicentro de toda a cultura musical na atualidade, superando inclusive a Jamaica e reunindo os principais festivais. Os principais Sound systems, se não residem lá, têm que ir à Inglaterra algumas vezes ao ano.15 Não somente em sua sonoridade, mas o Dub traz os conceitos e pilares do Sampler, Remix e mixagem, que são a fonte de toda música eletrônica moderna, e influenciaram indiretamente toda a produção musical contemporânea e diretamente toda uma gama de gêneros musicais, indo do trip-hop, música ambiente, punk, post-punk e hip-hop, chegando à gêneros nascidos no Reino Unido, como Uk garage, jungle, drums and bass, e o dubstep

14 Rhythm and poetry – Ritmo e poesia. 15 Fragmento retirado do Documentário Dub Echoes. 2009. 12


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16 Esquerda, King Tubby em estúdio; Direita, Lee Scratch Perry em estúdio; abaixo, fotografia tirada em Studio One. 13


4. Tecnologia e apropriação cultural, a eclosão de novos gêneros musicais

4.1. Caracterização de gêneros musicais Com o constante avanço da tecnologia no campo da difusão e produção de áudio (processo que, como vimos, ganha força a partir do pós-guerra) e com a disseminação da cultura do Sampler e Remix introduzida na Europa e Estados Unidos nos primórdios da música eletrônica sob a forma do Dub, um novo cenário se configura nos 1980 e 1990: o fenômeno da globalização, que é impulsionada pela internet, marca um tempo de muitas mudanças no campo da música. Para se entender música em um contexto amplo, de movimento cultural, é necessário compreender as noções de um estilo ou classificação musical, por isso devemos percorrer o que permeia uma caracterização de gênero musical. Para Frith, citado por Miranda: (...) a indústria fonográfica se firmou como principal mediadora entre artistas e público, e uma das principais estratégias para expandir e diversificar a oferta de produtos e o mercado de consumidores foi através da criação de catálogos de artistas, organizados em diferentes categorias de estilos, que já há muito tempo conhecemos pela noção de gênero musical. Podemos dizer que, a princípio, gênero musical é (...) um modo de definição da música em relação ao mercado, do potencial mercadológico presente na música. (MIRANDA, 2011 p. 2).

Já para Brackett, citado por Janotti: (...) Traçar a genealogia de uma faixa ou de um CD envolve localizar estratégias de convenções sonoras (o que se ouve), convenções de performance (o que se vê, que corpo é configurado no processo auditivo), convenções de mercado (como a música popular massiva é embalada) e convenções de sociabilidade (quais valores, gostos e afetos são “incorporados” e “excorporados” em determinadas expressões musicais). Assim, crítico e/ou analista, pode partir das relações que vão do texto ao contexto, dos músicos à audiência, do gênero aos relatos críticos, dos intérpretes ao mercado para dar conta das questões que envolvem a formação dos gêneros musicais. (JANOTTI, 2003 p.192) 14


Deste modo, a classificação musical é fruto de uma disputa de interesses, do artista no ato de se auto intitular ou se inserir numa categorização musical ou negação desta, da gravadora ou selo responsável pelo artista, delimitando-o para uma determinada faixa de mercado, da crítica especializada na função de abalizadora e formadora de opinião e, por fim, também do público na figura do consumidor final, avaliando e definindo as informações por ele absorvidas, apropriando-se delas como manifestação cultural e musical, se ele a julga de seu interesse. Neste sinuoso campo da classificação, floresce o chamado Global guettotech, uma nomenclatura maior dada a algumas novas sonoridades e ritmos criadas em guetos17 e periferias nas últimas décadas, nascidos da fusão entre a musicalidade eletrônica e a capacidade mais democrática de produção musical trazida pela atual tecnologia, empregada a ritmos locais que são influenciados por essa tecnologia das mais variadas formas ao redor do mundo. (...) o rótulo Global guettotech surgiu para facilitar a absorção de ritmos musicais pertencentes a países desconhecidos culturalmente por boa parte do mundo. As facilidades de acesso à tecnologia e o advento da Internet, abriram novos caminhos de produção e comunicação para os povos ditos periféricos. Em todos os cantos do mundo, artistas têm produzido música em laptops ou estúdios caseiros se utilizando das tecnologias digitais como base. Os resultados são diferentes, porém a essência é a mesma: cada um desses países se apropriando da cultura pop globalizada e costurando a sua própria versão. (CHICO DUB, 2009)18 .

Este rótulo parte de um ponto generalista, insuficiente para explicar toda a cadeia que este se propõe a abarcar, sendo necessário o estudo de cada gênero em 17 Bairro onde são confinadas certas minorias, por imposições econômicas, ou raciais, ou mesmo

sociais.

Dicionário

informal,

disponível

em

<http://www.dicionarioinformal.com.br/gueto/> Acesso em 08 nov. 2013 18 Matéria Jornal O Globo. Caderno Rio Fanzine, 01/05/2009, disponível no link: http://dancingcheetah.wordpress.com/2009/05/01/global-guettotech-no-rio-fanzine/

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separado e suas especificidades e contextos culturais para a compreensão desse em toda sua singularidade. Como vimos anteriormente, o Dub nasce em uma região periférica, é resultado da fusão de ritmos locais com tecnologia, ainda que muitas vezes adaptada, isso em meados da década de 1950. Atualmente, de forma geral, dizemos que os movimentos tidos como Guettotech se apropriam de algo já existente para dar-lhe novo significado, gerando uma nova sonoridade.

4.2. Contracultura popular, a face do Guettotech

A crise na indústria fonográfica, a partir da pirataria e da troca de arquivos sonoros, evidencia um dado extremamente significativo culturalmente: nunca se consumiu tanta música quanto hoje (Sá, 2006). A tecnologia faz parte de toda cadeia produtiva, não somente na criação musical, como no fortalecimento das cenas criadas, com a troca de informações, compartilhamento de arquivos, divulgação de eventos, resenhas, críticas, comentários, acendendo a faísca do público como potencial criador de conteúdo e não somente consumidor passivo. Toda esta cena reforça um forte apelo contracultural, pois a mídia de massa não mais obtém o monopólio da informação e, por muitas vezes, para estar em sintonia com o gosto popular, tem de estar coadunada com o que ocorre nestes nichos, de forma que esta atualidade não está em antagonismo com a indústria cultural estabelecida e a mídia convencional, mas sim em constante diálogo, pois ainda é configurada a relação produção – circulação – consumo. (SÁ, 2006). Sem ares de utopia, a indústria fonográfica ainda detém esmagadora parte do que é difundido no campo musical; o caminho natural de artistas que obtém destaque é a filiação ou adoção por uma grande gravadora ou empresa que gerencie sua carreira, e a maioria absoluta dos produtores e artistas dos movimentos de periferia justamente sonha e idealiza esse ponto, que trará o reconhecimento de seu trabalho a uma esfera social maior. Sendo as cenas de gêneros do Global guettotech em sua essência populares, no

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ponto de vista pop da expressão, um grande destaque de um artista lhe confere um status e logo ele é cooptado pela indústria musical de massa. Não podemos esquecer que falamos de internet e tecnologia, mas ainda tratamos de periferia, e, por maior que seja o acesso a bens de consumo, como celulares, computadores, e a espaços como os das lan houses19, o acesso ainda não é suficiente em certas regiões de países como Brasil, Angola, África do Sul, Colômbia etc. Fator que torna a materialidade ainda essencialmente importante. Surge uma cena de guerrilha, que vai desde o pirateamento dos softwares de criação e edição, passando pela produção caseira dos CDs, a criação de rádios comunitárias e piratas, chegando à produção de festas e shows em locais improvisados e muitas vezes na ilegalidade, quando não contando com apoio de milícias e gangues locais. Desta forma, uma enormidade de pessoas estão inseridas nesse mercado informal, que abarca desde o público vizinho ao evento ao camelô que vende os CDs, o ambulante que vende sua bebida, a meninada que carrega os equipamentos, os carros de som e as mais variadas formas de divulgação. A infinidade de participantes cria fora do mundo virtual também o sentido coalizão, pois involuntariamente gera uma comoção geral na participação. O boca a boca e o papo de esquina ainda se mostram um potente fomentador cultural. (SÁ e MIRANDA, 2011) Nesta cultura do remix, onde “até onde eu remeta talvez eu refaça”, as bases de direito autoral são ignoradas, em meio a downloads ilegais, samplers de trechos de músicas famosas, mash ups20 cuts21 scratches, loops22. Uma nova demanda surge e talvez o velho mundo do direito autoral não consiga acompanhar. A cultura do remix nascida no dub, infiltrada no hip-hop e personificada na disco, na house e demais 19 O termo LAN foi extraído das letras iniciais de "Local Area Network", que quer dizer "rede local", traduzindo assim uma loja ou local de entretenimento caracterizado por ter diversos computadores de última geração conectados em rede de modo a permitir a interação de dezenas de jogadores. Dicionário informal, disponível em: <http://www.dicionarioinformal.com.br/significado/lan%20house/2845/> .Acesso em 08 nov. 2013. 20 Termo usado na música eletrônica que significa misturar duas ou mais músicas. 21 Termo referente a cortes na edição, adaptando a música, a tornando menor. 22 Repetição de determinado trecho da música. 17


movimentos da música produzida sinteticamente, é a base do chamado Guettotech. O mundo se mostra mais aberto à experimentação, e a fronteira entre ator e espectador se confunde, o processo é tão importante quanto o produto, talvez este seja o caminho para a arte popular do futuro.23

23 Ver mais no documentário: RIP! A Remix Manifesto. GAYLOR, Brett. 2008. 18


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24 Esquerda, dançarinos em apresentação de Kuduro; direita, “Aparelhagem” em show de Tecnobrega, créditoVincet Rosenblatt; abaixo, apresentação do DJ e produtor de Dubstep Skism. 19


5. Funk carioca, a estética do tamborzão25

5.1. Hip-hop rulezzz, a influência do bass

No Brasil, em especial o Rio de Janeiro, uma cidade de muitas contradições e desigualdades, um gênero em particular chama a atenção, o Funk. Dentro da estética de guerrilha, ele não é somente um estilo musical ou modismo, é uma força, uma extensão da vida que atravessa tão fortemente o cotidiano das pessoas que não se restringe mais somente aos envolvidos em sua produção. A população do Rio de Janeiro, do mais rico ao mais pobre, do preto ao branco, sabe o que é Funk. Tal fato nos lembra que, em determinados momentos da história, os movimentos artísticos mais intrínsecos à sociedade não são vistos sob a ótica da sacralização que a palavra arte suscita, mas vistos como algo “normal”, cotidiano. Como as tragédias gregas, nas festas e ritos ao Deus Dionísio, as artes plásticas e a arquitetura no renascimento em Florença, a escrita no Iluminismo, em especial na França, o teatro Elisabetano no período da renascença Inglesa, as encenações litúrgicas dos Mistérios na Europa da Idade média. Todas estas manifestações de grande comoção popular de alguma forma ou outra estavam tão ligadas à vida e inconsciente coletivo das pessoas nessas épocas que eram entendidas como cotidianas, naturais. Esse talvez seja o espaço da música popular no nosso século. Ela não é vista como arte, é vista como música, pura e simplesmente. Até causam estranheza quando ditas como arte, sobretudo as sonoridades ultra populares como o Funk carioca. (GOMBRICH, 2000) Como dito anteriormente, o termo Guettotech traz um conceito, mas de forma alguma explica os movimentos que busca abraçar, sendo necessário esmiuçar cada cena musical e cultura nele inserida. Dito isso, falaremos do Funk carioca, que, dentro da estética de música eletrônica de gueto, é o movimento que muito bem representa essa cultura no Brasil. Clive Campbell, Jamaicano, conhecido como DJ Kool Herc, em 1967, muda-se para Nova Iorque, levando consigo seu sound system amplificado com grande potência 25 Para elaboração deste histórico foi usado como referência o Livro Batidão, Uma História do Funk. Silvio Essinger, 2000. 20


nas frequências graves (qualquer semelhança posterior com o baile funk não seria mera coincidência). Residindo em áreas de periferia, a população negra norte americana começa a ter contato com um grande número de imigrantes Porto-riquenhos e Jamaicanos. O DJ Kool Herc (que usava seu sound system para divulgar a cultura Reggae em praças e feiras da região do Bronx e Harlem) começa também a ser influenciado pelo som negro americano, a Soul Music. Assim, o DJ começa a reproduzir o som em seu equipamento, introduzindo e repetindo cada vez mais as passagens e viradas instrumentais das vibrantes faixas de soul, os chamados breaks, vendo que a resposta positiva do público era quase imediata (qualquer semelhança com o Dub também não é mera coincidência). A partir de músicas existentes, Kool Herc criava novas narrativas musicais. Nasce nos Estados Unidos a figura do sampler e da discotecagem autoral, com esses breaks, os dançarinos de Herc, os Herculoids, que inovavam com passos de dança que misturavam movimentos de James Brown com Kung-fu e passos de dança meio robóticos, temas muito populares em filmes da época. Nascia assim o Breakdancing. Kool contava também com um assistente, Coke La Rock, que realizava o toast no lugar do DJ. Assim, com o DJ ocupado entre transições e mixagens de discos, ele ficava encarregado de agitar o público e fazer as chamadas no microfone. Passou a ser o Mestre de Cerimônias, também conhecido na abreviatura MC, figura que integra os três pilares essenciais da cultura Hip-Hop, o MC/DJ, o Breakdancing e posteriormente o grafite. (ESSINGER, 2005) Paralelamente a estas novidades, o DJ Grandmaster Flash começa a tocar dois discos iguais em duas pick-ups26, podendo assim repetir os breaks por mais tempo, uma técnica conhecida como loop. Esta abriria maior espaço na manipulação do andamento da música, nascendo outra criação do DJ, a partir do rápido movimento da faixa no disco para frente ou para trás, o Scratch. Flash começa a se apresentar, entre outros, com o grupo de poesia de rua Furious Five. Funciona tão bem a fusão do ritmo do DJ com a poesia dos MCs que a partir de então gera mais um elemento essencial para a cultura do hip-hop, o Rap, rhythm and poetry. Sendo Kool Herc e Grandmaster Flash as maiores referências no movimento, falta a figura de Afrika Bambaataa no panteão da cultura negra americana do Hip-hop. Em 1982, munido de uma bateria eletrônica, a TR-808 Roland, na faixa “Planet Rock”, 26 Toca discos 21


ele trazia um ritmo novo diferente do Soul, Funk (americano) e R&B. Era algo mais próximo da House music de Chicago e da Techno music de Detroit, estilos musicais majoritariamente com a adição de equipamentos eletrônicos em sua estrutura, que nasciam a partir da popular Disco Music. Era a música eletrônica no seu conceito mais generalista como é entendida hoje, que começava a ser desenvolvida na América. De certa forma, a faixa tinha sonoridade mais próxima de Kraftwerk do que de James Brown, com graves muito fortes em bumbos até então não vistos, uma linha de baixo marcante que ditava a melodia, teclados e timbres eletrônicos, que conferiam uma aura de ficção científica à música, e acima disso tudo os Raps do Soul Sonic Force. Estava formada aí a base do Hip-Hop, o Batidão. Nascia um novo gênero musical nas entranhas do movimento, um gênero eletrônico, o Electro. (ESSINGER, 2005) Na outra ponta do hemisfério, nos subúrbios do Rio de Janeiro, a faixa “Planet Rock” se transformava em hino; os DJs, cada um à sua moda, fuçavam por discos exclusivos de Electro, que lotariam seus bailes. Era a periferia consumindo música eletrônica de vanguarda.

5.2. O movimento Black Rio A cena carioca de bailes é um caso à parte na história do Funk e da própria sociedade. Em meados da década de 1960, a música negra americana é apresentada ao Rio de Janeiro pelas mãos de Big Boy, Ademir Lemos e Monsieur Limá, DJs que alcançam enorme destaque, conquistando programas de rádio e televisão. Big Boy, pioneiro no rádio, iniciava uma onda de programação jovem. Onde exclusivamente se tocava Bossa Nova, samba-jazz, Maysa, Nelson Gonçalves e artistas do gênero, o programa de Big Boy abria espaço para Rock, Funk e Soul, nos fins de semana, ao lado de Ademir Lemos, tido por muitos como o primeiro DJ “técnico” do país. Comandavam o baile da pesada, no Canecão, onde, munidos dos mais recentes lançamentos internacionais, tocavam rock, pop e soul. O público era de classe média branca, em sua maioria; porém, estava plantada a semente, a garotada da periferia, através do rádio, se encantava com a Black music e só queria saber de Soul (ASSEF, 2010) Nos bailes de clube do subúrbio, o que tocava até então era um híbrido de samba e Rock, embalado por bandas e conjuntos. Era o programa certo da massa todos os finais 22


de semana (Essinger, 2005 p.15). Impulsionado pelo som que Big Boy revelara no rádio, Oseas Moura dos Santos, o Mister Funk Santos, auxiliar de palco de algumas pequenas bandas de Rock de baile, se reúne com sete amigos do Morro da Mineira para fazer uma festa 100% soul, uma festa 100% negona, na quadra lendária do clube Astoria, no Catumbi, ao lado do que hoje é a praça da apoteose. (Essinger, 2005 p.18). Sucesso total, logo os bailes black começavam a se multiplicar. Focados no Funk e Soul, os DJs começavam a garimpar discos com sonoridades mais rápidas e pesadas que as de Big Boy, que fizessem a pista do baile “ferver”. DJs, técnicos e empreendedores começavam a se organizar e montar verdadeiras estruturas acústicas, as “Equipes de Som”, que passaram a ser como grifes de festas. As primeiras, Soul Grand Prix, Black Power e Funky Santos, arrastavam multidões nos subúrbios e, a cada final de semana, cada festa reunia mais e mais pessoas. Equipes começavam a surgir em todos os cantos além da zona sul, da baixada à zona norte; era o início do movimento Black Rio. De viés contracultural, as equipes de som andavam à margem da indústria musical do momento. Em uma época de ditadura e instabilidade econômica, era dificílimo comprar discos e compactos27, havia poucas lojas, o preço era elevado, muitos lançamentos sequer vinham para o Brasil e viajar para os Estados Unidos era caríssimo. Inicia-se uma espécie de mercado negro de discos na cidade. Comissários de bordo, funcionários de gravadoras e clubes da zona sul contrabandeavam discos de funk e soul, abastecendo as equipes e mantendo a disputa acirrada na exclusividade da música X ou Y. O povão só tinha acesso às novidades músicas pelas mãos dos DJs ou torcia que tocasse em algum programa no rádio. Ecos do movimento Black ressoam para dentro da produção musical brasileira. Recém-deportado dos EUA, Tim Maia emplaca vários sucessos do seu disco de estreia, juntamente com o vencedor do festival da Internacional da canção, Tony Tornado, Gerson King Combo, o James Brown brasileiro, o fenômeno Wilson Simonal e a histórica Big Band de soul brasileiro, a Black Rio. Esse sucesso da Black Music é elevado a tal nível que equipes de som como a Soul Grand Prix começam a fechar

27 Um disco do tipo long play, mas de menor duração. Assemelha-se à noção de EPs e singles. 23


contrato com gravadoras e lançar coletâneas de sucessos, é a época de ouro do movimento Black Rio. Vinda do outro ponto no norte do hemisfério, chegava uma febre que tomaria a sociedade carioca de assalto, a Disco Music, de caráter menos ideológico e contestador, capitaneada por ícones brancos como John Travolta (lembremos o estrondoso sucesso do filme “Os embalos de sábados à noite”). A Disco foi incorporada pela indústria do entretenimento em larga escala. Surgia a novela Dancing Days na Rede Globo, discotecas, que eram um meio termo entre as quadras de clubes e as chiques boates da zona sul, pipocavam por toda parte, o som da Soul music era tido como datado e desatualizado, equipes começavam a se dividir e aquelas com maior apelo comercial migravam para a disco. Porém, como toda febre ou paixão avassaladora, a Disco em alguns anos foi dando sinais de esgotamento; uma superexposição criou uma espécie de estafa, em pouco tempo tudo era Disco, todo mundo fazia versões Disco, bandas de rock tinham remixes em Disco, cantores de MPB cantavam em batidas de Disco. Houve uma saturação pela exploração dos temas Disco, e criou-se uma lacuna nos bailes de subúrbio da cidade, que aos poucos foi sendo preenchida com uma Disco music com contornos mais “funkeados” próprios da Soul music, a Disco-funk, o popular balanço e o Charme, estilo de batida mais cadenciada de melodia e BPM28 mais lentos, próximo à sonoridade do R&B. Todavia, não conseguiam manter o legado deixado pelo movimento Black Rio. Até que um movimento também de raiz negra entraria como uma avalanche nos bailes do rio: era a vez do hip-hop.

28 Termo próprio da linguagem de música eletrônica que designa Batidas por minuto de determinada faixa 24


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29 Esquerda superior, Big Boy e o “Baile da Pesada” no Canecão; direita superior, DJ Corello, um dos pioneiros no Rio de Janeiro, atuante até hoje, conhecido como o Mestre/Papa do Charme; esquerda inferior, o cantor Tim Maia; direita inferior, “fila” na porta da boate Studio 54 em Nova Iorque durante a febre da Disco music.

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5.3. A fundação de uma instituição: o Baile Funk O Electro chegava com força e pedia passagem. As principais equipes de som, como a Soul Grand Prix, a Cashbox e a Furacão 2000, vindas da estrutura do soul, estavam prontas para grandes festas de massa. Uma nova geração do subúrbio vinha aos bailes, o Miami Bass com bumbos muito graves e impactantes ficava famoso em músicas de ícones como Afrika Bambaataa. O ritmo mais dançante com a levada eletrônica de compassos marcados propiciava aos DJs maior interferência nas músicas. Cada apresentação se tornava única com a mixagem dos DJs e as equipes de som recomeçavam a se multiplicar por todo perímetro urbano do Rio. (ESSINGER, 2005) No rádio, a mudança era lenta e gradual. Passando do Balanço ao Charme, os programas jovens começavam a incluir dez minutos ao final da programação para o Hip-hop, a revolução acontecia mesmo nas ruas. Uma nova intervenção tecnológica faria o Miami bass encontrar sua maior explosão muito longe dos Estados Unidos, no Brasil: o Sampler, um aparelho que permitia o disparo, repetição e colagem de determinados trechos sonoros nas músicas. Com a força da bateria eletrônica já enraizada no som, os samplers produziam novos hinos do electro tão potentes como “Planet Rock” de Afrika Bambaataa. As batidas em frequências graves eram intensificadas juntamente com letras de forte conotação sexual. Na mão das equipes de som, chegava ao Rio a vertente que já seria mais forte que sua raiz do Hip-hop, o Miami Bass. (ESSINGER, 2005 p.65). No rádio, um DJ despontava levantando a bandeira do Miami bass: Luís Mattos da Matta, o DJ Marlboro, vencedor da etapa brasileira da primeira edição nacional do mais importante campeonato de DJs do mundo, o DMC, Dico Mix Club. Marlboro alcançaria grande prestígio e posteriormente viria a parar até na TV. Nesta época, metade da década de 1980, o grande som do povão era o Hip-Hop do Miami bass. Todas as grandes equipes, detentoras das únicas cópias dos discos, tinham programas em praticamente todas as rádios da cidade, em horários dos mais variados. As músicas com raps e versos rápidos em inglês não eram decifráveis e a galera dava um jeito em abrasileirar os refrões: “You talk too much”, do Run DMC, virava “Taca tomate”; “How much can you take”, do MC ADE, virava a “Melô da sexta-feira 13”. Era a onda das 26


Melôs, na qual a galera que ouvia determinado trecho da música inventava sua tradução do que, ao seu entender, parecia que estava sendo dito na canção, moda incentivada inclusive por DJs como Marlboro, que realizava concursos em seu programa com premiações para quem inventasse a melhor versão da música apresentada. Estas versões cariocas constituídas através das bases musicais do Miami bass ficam conhecidas simplesmente como Funks. Em uma intervenção que mudaria o curso do Miami bass, Marlboro ganha de presente do amigo Hermano Vianna uma bateria eletrônica TR-808 Roland. Vianna era um antropólogo que estudava o fenômeno dos bailes no subúrbio do Rio de Janeiro, um trabalho acadêmico pioneiro à época. O mercado negro de discos passava a funcionar a pleno vapor e Equipamentos começavam a entrar nas transações, e a figura do DJ, antes secundária em relação aos equipamentos, iluminação e efeitos especiais das equipes de som, ganhava destaque para o público. Surgem performances cada vez mais elaboradas com Samplers com misturas de filmes, orquestras, latidos e tudo o mais que decorresse da criatividade do DJ. Até o final dos anos 1990, a matéria prima do funk majoritariamente eram pedaços de músicas norte americanas. (MIRANDA, 2011, p.7) Na década de 1990, no Rio de Janeiro, houve grande aumento da violência armada, ligada ao narcotráfico. Devido ao descaso histórico do Estado em relação a certas regiões da cidade, desprovidas de saneamento básico, educação e segurança pública, facções criminosas passaram a exercer o controle sobre essas regiões carentes ignoradas pelo poder público. Neste mesmo período, o Funk iniciava seu processo de amadurecimento

musical.

Marlboro

e

posteriormente

Grandmaster

Raphael

enveredavam como produtores musicais, lançando CDs não mais como coletâneas, mas com repertório autoral, ainda que baseado em arranjos de Miami bass. As faixas traziam letras em português, como as Melôs cantadas pela multidão dos bailes. Marlboro convidou pessoas próximas como DJs e alguns amigos para a produção e composição das músicas, estes figurando como os primeiros MCs do Funk.

Na sequência,

Grandmaster Raphael, DJ e produtor musical da equipe de som Furacão 2000, começou

27


a realizar os “Festivais de Galeras”30 e a reproduzir as músicas vencedoras destes concursos nos programas de rádio da Furacão 2000. Estava inaugurada uma nova fase na história do Funk carioca. (ESSINGER, 2005)

30 Concursos realizados nos bailes com premiação para várias categorias como: melhor música, rainha do baile, melhor dançarino, etc. 28


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31 Esquerda, Disco: “Funk Brasil” de DJ Marlboro; direita, Disco: “Afrika Bambaataa – Don‟t Stop Planet Rock - Part1 – UK edition”; abaixo, Sampler Akai MPC 500. 29


5.4. O Funk dá as caras, uma apresentação conturbada. Ao mesmo ponto que os novos Funks começavam a se popularizar para fora do circuito de bailes, o poder exercido pelas facções criminosas no Rio de Janeiro também se expandia, sobretudo nas regiões mais carentes. Os concursos de bailes vieram a se transformar em palcos de certa rivalidade já há muito tempo existente entre favelas e facções rivais. Inicia-se uma onda de confrontos violentos nos grandes bailes, onde nestes os jovens se enfrentam e tentam reafirmar a superioridade de seu grupo e comunidade32 frente aos demais. Os conflitos começavam a ter uma cultura própria: os grupos se organizavam e reconheciam seus rivais e aliados; estabeleciam códigos de como proceder na “luta”, a hora de começar, o que era motivo de provocação e o que não era. O embate extrapolava os limites dos bailes. Na saída desses eventos, começaram a acontecer as brigas de galeras, assaltos, depredações. Nessa época, um termo ganhou fama na imprensa: o “Arrastão”, onda de atos de violência e vandalismo praticados em bando. A cidade do Rio de Janeiro ficaria assombrada quando um “arrastão” aconteceu na praia de Ipanema, cartão postal e lugar de moradia da elite. O que era costumeiro (e ignorado pela mídia) na periferia tomou ares de calamidade em manchetes de jornais de todo o país, que trataram de ligar o confronto ao funk, como se este fosse responsável pelo comportamento violento dos jovens. Essa visão extremamente simplista ignorava toda a construção social do jovem de periferia nesse momento. Era como se não houvesse o desamparo e a falta de perspectiva de vida deste jovem, que culminava muitas vezes na aderência ao tráfico de drogas e aos conflitos em outros espaços e eventos populares como as torcidas de futebol. (HERSCHMANN, 2000) Juntamente com o processo de difusão dos novos Funks, inicia-se uma campanha de demonização dessa música pela mídia tradicional. A realidade do ritual de embate era tão chocante pra a parcela da sociedade mais abastada que houve até tentativas de se proibir a circulação de ônibus nos finais de semana, para que os suburbanos não tivessem acesso às praias, mostrando um pensamento mais uma vez ignorante, pois grande parte das comunidades está localizada na Zona Sul. (ESSINGER, 2005 p.125) 32 Termo usado comumente para referir-se à favela e à população pertencente aquela favela 30


Desta forma conturbada, o Funk tomou os noticiários e foi apresentado para toda sociedade brasileira. Esse movimento que já era uma realidade na periferia, porém ignorado pelos outros setores da sociedade, começou a despertar curiosidade entre pesquisadores e instituições que passavam a querer entender que fenômeno era esse, que movimentava mais de um milhão e meio de pessoas33, entre jovens de quatorze a vinte anos, todos os finais de semana. Era assustadoramente o maior movimento cultural de massa do país. (ESSINGER, 2005 p.127) A superexposição do Funk na imprensa sensacionalista começou a gerar dois resultados diversos na classe média: a camada adulta conservadora que ficava alarmada com as questões da violência (que independiam do funk) e a camada jovem que passava a alimentar uma certa curiosidade sobre o assunto. Neste mesmo período dos anos noventa as produções de Funks começavam a ganhar maior maturidade. As “Montagens” que consistiam em jogar samplers em cima de bases do Miami bass começavam a virar um grande sucesso; trechos de músicas de bandas de Rock como The Smiths e Dire Straits, passando pela trilha sonora da série “Sítio do Pica-pau amarelo”, até trechos de dublagens de filmes, tudo era material para os DJs, sendo a faixa “Volt Mix 808” do DJ Battery Brian, com base de bateria eletrônica TR-808, a mais usada e inserida em quase todas as músicas. Os bailes de galera em meados dos anos 1990 revelavam músicas que já era famosas nas comunidades, como o “Rap do Pirão”, do MC D‟Eddy, que falava sobre as comunidades do Pirão e Mutuapira-Boavista. Letras com bom humor, sátiras e exaltação da comunidade eram os temas dominantes, tendo figuras também como a de MC Galo que trazia um quê de contestação nas letras como “Rap das Montagens (História do Funk)” sobre a chacina de Vigário Geral e “Rap do Funkeiro II” que pregava a paz nos bailes, e Mc Mascote que escrevia letras românticas e também compunha letras de contestação como o “Rap da Daniela”, música que fala sobre a impunidade e a violência sofrida pela mulher no país, tomando como o exemplo o caso da atriz Daniela Perez, que neste ano havia sido brutalmente assassinada. (ESSINGER, 2005)

33 Seminário “Barrados no Baile- Entre o Funk e o preconceito”, Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. FAPERJ, 1992. 31


No decorrer da década de 1990, com o estilo se sedimentando, aos poucos surgiriam os subgêneros, que caracterizavam a letra e a levada da música, dentre eles os RAPs, que refletiam a vida nas comunidades, as histórias e o dia a dia do povo; a maior a maturidade das Melôs, versões de músicas com letras geralmente de conteúdo mais bem humorado e sexual; e o Funk Melody com letras românticas e de teor mais Pop. O Funk explodia de vez no Rio de Janeiro. As principais equipes, como a Pipo‟s e a Cashbox, produziam novos MCs e lançavam CDs de coletâneas próprias. A Furacão 2000, além de produzir seus CDs, comprava espaço na TV e iniciava com produção própria um programa na CNT (um canal de televisão de pouca audiência), que logo se torna o de maior audiência da emissora e em pouco tempo o de maior audiência do horário e começa a ser transmitido em rede nacional. Marlboro montava sua equipe própria equipe a Big Mix, um Selo próprio para produção de fonogramas, além de um programa no rádio de três horas no horário nobre e ser o DJ responsável num programa por toda tarde de sábado na Rede Globo, o Xuxa Hits, onde diversas atrações de funk se apresentavam em uma das principais vitrines da indústria musical do país. Os principais nomes dos bailes das comunidades começavam a ganhar projeção para além do circuito de festas, como MC D‟Eddy, MC Galo, MC Mascote, Bob Rum, autor do hino do Funk “Rap do Silva”, Marquinhos e Dolores com o “Rap da diferença”, os MCs Júnior e Leonardo com o “Rap das Armas”, os MCs Cidinho e Doca com o“Rap da Felicidade”. Claudinho e Buchecha, Latino e MC Marcinho na linha do Funk Melody extrapolavam o circuito do funk e já tocavam na programação de rádios convencionais e se apresentavam em diversos programas de televisão. O funk estava sendo difundido em escala nacional, as grandes gravadoras começavam a produzir CDs de funk, que eram sucesso total em vendas. O ano de 1995 marcou a explosão do fenômeno para proporções nacionais, o Funk alcançara um patamar de popularidade gigantesco não antes visto em outro movimento popular no país. (ESSINGER, 2005).

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34 Esquerda, matĂŠria Jornal do Brasil de 25/10/92; direita superior, dupla de MCs Claudinho e Buchecha; direita centro, cantor de funk melody Latino; direita inferior, dupla de MCs Cidinho e Doca. 33


5.5. A Proibição e o exílio. Os bailes em subúrbios e comunidades começavam a atrair os jovens da classe média no decorrer da década de 1990, um fato que começava a incomodar em muito os setores mais conservadores da sociedade, pois o gênero ainda carregava aquela imagem de violência em que fora apresentado e os confrontos nos bailes ainda eram rotineiros. Aparecia nos bailes um modalidade diferente de confronto, o “Corredor”, em que os grupos rivais acabavam dividindo todo o baile em dois lados durante o enfrentamento. Foi uma época de muitas polêmicas na mídia sobre o papel do Funk e sua associação à criminalidade, o gênero começou a ser muito massacrado e a figurar mais em páginas policiais do que matérias musicais. Até que, no final da década de 1990, o movimento sofre um forte golpe: em 3 de novembro de 1999 a Resolução 182 da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro institui, por iniciativa do deputado Alberto Brizola (PFL), Comissão Parlamentar de Inquérito “com a finalidade de investigar os „Bailes Funk‟, com indícios de violência, drogas e desvio de comportamento do público infanto-juvenil”. A “CPI do Funk” resulta na Lei 3410, promulgada em 30 de maio do ano 2000, responsabilizando pelos bailes os presidentes, diretores e gerentes dos locais onde são realizados (art. 1o); obrigando-os a instalar detectores de metais na portaria (art. 2o); exigindo a presença de policiais militares durante todo o evento (art. 3o); requerendo permissão escrita da polícia (art. 4o); autorizando a interdição de locais onde se realizem atos de violência incentivada, erotismo e pornografia (art. 5o); proibindo a execução de músicas e procedimentos de apologia ao crime (art. 6o); impondo à autoridade policial a fiscalização da venda de bebidas alcoólicas para menores (art. 7o)35. Essa lei, na prática, tornava inviável a realização dos bailes nos clubes, pois o Estado, na figura da Polícia, não fazia o menor esforço para liberar a realização destes. Assim, por um bom período a grande maioria dos bailes se refugia nas quadras de escolas de samba dos morros cariocas, lugar onde o Estado e a Polícia não tinham presença. 35 Ver mais no Artigo: Justiça e Cultura: Funk Proibido, PALOMBINI, Carlos. 2002 http://www.proibidao.org/justica-e-cultura-funk-proibido/ 34


Este resultou em uma transformação gigantesca na estética do estilo, pois alguns DJs começavam a flertar musicalmente também com alguns instrumentos em seus samplers, principalmente os de percussão que agora estavam mais próximos, estes sendo presentes nas escolas de samba e no Candomblé, principalmente congas, surdos e atabaques, que aos poucos iam se unindo à sonoridade dos bailes. Entre as primeiras bases do Funk, nos remixes de faixas como “Volt Mix 808” do DJ Battery Brian, “The Challenger” de Dr. Jeckyll & Mr. Hyde, remixadas em quase todas as músicas, uma interferência sonora aplicada pelo DJ Luciano Oliveira revolucionaria todo estilo musical até então criado, munido da bateria eletrônica TR-808 o equipamento fundador da base do Electro e Miami Bass que gerava as bases musicais do Funk, este adicionou um som de atabaque grave no equipamento e aplicou sua batida acelerando o BPM que era característico de 124 no Miami Bass para 129 BPMs, resultando em uma música com grave mais forte e mais rápida, muito é questionado até os dias atuais se esta de fato era a primeira modalidade desta intervenção, mas sem dúvida foi a mais popular dentro dos bailes, era a consagração de um novo som, era o nascimento do famoso Tamborzão. Com a bateria eletrônica e o sampler reunidas na praticidade de um único equipamento, o ilustre MPC, o som tinha uma configuração nova já distante do Miami Bass, mais voltado pra linha rítmica percussiva, não tendo sido registrada e logo se espalhando rapidamente não se sabe ao certo realmente qual a paternidade do Tamborzão, o fato é que esse rapidamente se torna a base de praticamente todas as músicas, sendo todo arranjo musical posterior costurado com “montagens” e mixagens em cima das letras e arranjo deste.36 Nesse meio tempo, refugiado nas favelas, novas modalidades vão se mostrando muito populares dentro dos bailes nas comunidades: o “Proibidão”, um Funk que exalta o narcotráfico local e o “Putaria”, voltado para a sexualidade explícita e por vezes mirabolante, com arranjos confeccionados já sob o formato do Tamborzão. O Funk perdera muito espaço com as gravadoras e as rádios nesse período turbulento, o sucesso de milhões de vendas de Raps e a febre do Melody estavam no passado, fora do circuito de bailes que o gerou, este começava a seguir por vias 36 Ver mais no documentário: Tamborzão, IVANOVICI, Tatiana e CUNHA, Diogo. 2006. 35


independentes novamente, os álbuns de equipes eram vendidos em bancas de jornal e seus piratas nos camelôs, com destaque quase único para a Furacão 2000 e Big Mix como equipes de som, que apesar da grande queda conseguiam se manter um pouco.

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37 Superior, “baile de corredor” dos anos 90; inferior, baile de “comunidade”, créditos da foto Vincent Rosenblatt, Agência Olhares. 37


5.6. A Era de Ouro do funk. Com as letras sob a nova base do Tamborzão e o forte conteúdo sexual, sarcástico e agressivo, logo o Funk começava a atrair um público jovem muito grande no início dos anos 2000 no Rio de Janeiro. Era o início da popularização da internet e o auge do mercado informal no Rio de janeiro. Abandonado pelas gravadoras não se tinha espaço na mídia para o funk, não se ouvia falar dele em grandes veículos de comunicação, mas ainda assim toda garotada conhecia, ouvia e dividia, ainda que de uma forma velada e escondida dos pais. Assim, no início dos anos 2000, com o “Proibidão” e o “Putaria” o Funk ganha ares de contracultura, em músicas como “Chatuba de Mesquita” de MC Duda, um fator que anteciparia a segunda grande explosão do Funk, no final deste mesmo ano. O grande “boom” veio com o Bonde do Tigrão, um grupo de adolescentes que mesclava letras de duplo sentido com passos de dança e uma formação comparada pelo jornal americano New York Times à Boy Band

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The Backstreet Boys. Seu estouro

instantâneo fez com que as grandes gravadoras convenientemente de novo se voltassem à cena Funk. Nessa nova onda surgem artistas de uma nova geração como: MC Sapão, Gorila e Preto, Naldo e Lula, MC Serginho e Lacraia, MC Deise Tigrona e MC Tati Quebra Barraco. O sucesso das letras de cunho sexual traz mais uma vez o gênero de volta ao centro da mídia e como anteriormente com ele um enorme bombardeio sensacionalista. Porém, a irreverência das letras de duplo sentido de MC Serginho e do Bonde do Tigrão eram de tal sucesso que superavam todo esse estardalhaço, fundamentando esta vertente que seria a mais popular do gênero. O ano de 2002 seria conhecido como “O Ano de ouro” do funk. Com a eclosão de novas sonoridades ligadas ao electro na Europa e Estados Unidos, surge um interesse da mídia estrangeira sobre o Funk carioca e sua sonoridade eletrônica, o que vêm a reforçar sua legitimidade e amenizar um pouco o massacre da 38 Grupos musicais formados por rapazes com músicas de essência exclusivamente Pop e passos de dança e figurinos elaborados. 38


mídia, que quando lhe convém se apropria deste, mas em geral é sempre muito reticente com o gênero. Em meados dos anos 2000, Marlboro iniciava uma série de incursões por países como França, Inglaterra, Estados Unidos, Croácia, Eslovênia, entre outros, levando o funk produzido no Brasil e abrindo as portas para sua apresentação em grandes centros do mundo. (ESSINGER, 2005) O estilo começa a se internacionalizar, os filmes nacionais “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, que contavam com alguns funks em suas trilhas, fazem um grande sucesso na Europa e acabam servindo como ferramenta para divulgação do gênero, com direito a turnê internacional da dupla Cidinho e Doca, intérpretes do “Rap das Armas” inserido na trilha do longa metragem “Tropa de Elite”. Posteriormente, chegariam a se apresentar em shows na Copa do Mundo de 2010. Diplo, um renomado produtor e DJ americano, reconhecido por ser um garimpeiro de novas tendências sonoras no mundo inteiro, se encanta pelo funk e pelo seu selo, o “Mad Decent”, começava um flerte com o gênero lançando coletâneas, produzindo artistas nacionais e se enveredando pela sonoridade do funk com produções próprias e de artistas internacionais sob a influência da sonoridade do Tamborzão. (MIRANDA, 2011, p.8) Nesta mesma época, é aprovada na Câmara e entra em vigor a Lei 4.264, de 2004, de autoria do Deputado Estadual Alessandro Calazans, que vêm a revogar lei anterior e legislar sobre a realização dos bailes funk. A lei é mais branda; porém, o funk continua sendo a única atividade cultural do estado do Rio regulada por lei, nos seguintes termos: (art. 1o); determina que o exercício dessa atividade fique sob a responsabilidade e a organização de empresas de produção cultural, de produtores culturais autônomos ou de entidades e associações da sociedade civil (art. 2o); responsabiliza os organizadores pela adequação do local às normas estabelecidas pela legislação (art. 3o); incumbe os organizadores e as entidades contratantes de garantir a segurança interna do evento (art. 4o).39 Entretanto, novamente, no ano de 2008, uma nova lei vem legislar contra o funk, a Lei 5.265, que o coloca na companhia das festas Rave e estabelece uma série de 39

Retirado do Artigo: Justiça e Cultura: Funk Proibido, PALOMBINI, Carlos. 2002

http://www.proibidao.org/justica-e-cultura-funk-proibido/ 39


restrições e procedimentos burocráticos para realização dos eventos. Porém, esta questão é enterrada com a revogação desta e promulgação de uma nova Lei de grande honra para a história do movimento, que agora asseguraria sua legitimidade: a Lei 5.543, que reconhece sua identidade e seu caráter de manifestação Cultural, de autoria dos Deputados Marcelo Freixo e Wagner Montes. Ela estabelece o seguinte: fica definido que o Funk é um movimento cultural e musical de caráter popular (art. 1o). Compete ao poder público assegurar a esse movimento a realização de suas manifestações, sem regras diferentes das que regem outras da mesma natureza (art. 2o). Os assuntos relativos ao Funk devem ser tratados, prioritariamente, pelos órgãos do Estado relacionados à cultura (art. 3o). Fica proibido qualquer tipo de discriminação ou preconceito social, racial, cultural ou administrativo contra o movimento (art. 4o). Os artistas do Funk são agentes da cultura popular e, como tal, devem ter seus direitos respeitados (art. 5o). No entanto, em parágrafo único, o artigo primeiro exclui “conteúdos que façam apologia ao crime” da rubrica “movimento cultural e musical de caráter popular”.40 Alguns MCs das antigas conseguiam se firmar, como Cidinho e Doca, Mr Catra, MC Mascote, Latino, MC Sapão e MC Galo, enquanto novos iam surgindo, como MC Fornalha do hit “Spring Love”, MC Bola de Fogo, MC Andinho na linha do Funk Melody, MC Menor do Chapa, na linha de contestação, e, embalados pelo sucesso do Bonde do Tigrão, surgia uma nova modalidade dentro do estilo, com grupos de MCs e dançarinos com coreografias muito elaboradas, os chamados “Bondes”, com grupos como o Bonde do Vinho, As Tchutchucas, Os Carrascos, Bonde das Panteras e Gaiola da Popozudas, para citar alguns. (ESSINGER, 2005) Uma grande reviravolta inesperada tomaria o mercado da música nessa década, com o advento da popularização da internet e ferramentas de compartilhamento de arquivo. A troca de músicas se tornaria a nova mania entre os usuários da rede e com ela um inigualável consumo musical; porém, este agora era trocado de forma gratuita e não mais comprado em mídias físicas como CDs, LPs e Fitas Cassete, fator este que viria a desestruturar completamente a indústria de grandes gravadoras criadas na década de 1960, como visto no primeiro capítulo. Este episódio, para o Funk, não traria demais 40 Retirado do Artigo: Justiça e Cultura: Funk Proibido, PALOMBINI, Carlos. 2002 http://www.proibidao.org/justica-e-cultura-funk-proibido/ 40


abalos, pelo contrário. Este, já acostumado a ser independente, tendo se moldado e adaptado ao mercado informal e ao circuito dos bailes, só contou com o aparato das grandes gravadoras quando as foi conveniente. A internet trazia uma nova ferramenta de divulgação, uma quebra de fronteiras que já se internacionalizava e agora poderia ter seu consumo alavancado para dimensões muito maiores.41 A popularização da internet veio com o barateamento dos computadores pessoais e nesta corrida tecnológica novas plataformas, hardwares e softwares vão sendo criados e lançados; é uma revolução digital que traz uma nova forma de se lidar com o mundo em escalas não antes imaginadas e que, de forma profunda, acaba alterando completamente a vida contemporânea.42 Essa revolução transcorre também no campo da produção musical, onde novas ferramentas digitais começam a surgir de uma forma que permitem a criação e manipulação de áudio em uma estrutura infinitamente de menor complexidade que um estúdio e com programas até mais simples, que necessitam apenas de um computador. Assim, no final dos anos 2000, tem início um processo de grande democratização em toda produção musical no Brasil, em especial no Funk, onde estúdios caseiros podem ser montados e novas manipulações de áudio feitas por praticamente qualquer pessoa. A estrutura do Funk sempre esteve muito calcada nas equipes de som, como seus predecessores do Dub, e historicamente a marca muito forte das equipes são os seus artistas, ou seja, os compositores e intérpretes pertencentes àquela espécie de instituição de entretenimento. Desta forma, como em toda música eletrônica, a música é feita para a pista de dança, sob o formato de single: uma canção que é lançada com marketing focado nela, fora do contexto de um álbum com várias outras músicas, o que justifica o fato da grande maioria da carreira de MCs ter a vida curta. Isso ocorre porque só conseguem se manter aqueles que emplacam vários sucessos seguidamente ou que por ventura conseguem contrato com uma grande gravadora e têm sua carreira trabalhada 41 Ver mais matéria: Uma Crise Anunciada. Internet e downloads ilegais são os principais vilões do decadente mercado fonográfico norte-americano. Rolling Stone Brasil, Setembro de 2007. 42 Ver mais sobre a cultura de remix, compartilhamento e cyber cultura no documentário RIP! A Remix Manifesto. GAYLOR, Brett. 2008. 41


individualmente, o que começa a ficar mais escasso com a crise no mercado fonográfico. Esta democratização no acesso à produção musical vem trazer uma nova configuração no Funk na atualidade nas várias comunidades do Rio de Janeiro, Baixada Fluminense e interior. Existem produtores e estúdios de pequeno porte (ou também os próprios artistas que se lançam na produção) que cumprem o papel de dar materialidade à ideia da música, pulando assim a etapa de ter de participar e vencer algum concurso ou festival, chegando direto na criação do seu produto, na sua música. Nesse novo paradigma o gênero não somente se vê restrito por classes sociais. A geração criada a partir dos anos 1990, independentemente da classe, conviveu ou viu o funk crescer e juntamente com ela a maior diversificação no acesso à produção musical. Assim, é uma realidade a disseminação do funk para além das periferias, o que faz surgir novos grupos, como os Curitibanos Bonde do Rolê. Lançados diretamente na internet com produções próprias, logo alcançaram o interesse de Diplo, que veio a produzir o primeiro disco do grupo; seu lançamento foi muito bem aceito internacionalmente com resenhas em importantes periódicos, como o jornal The New York Times e a revista Rolling Stone, que inclusive citou-os como uma das dez novas bandas do mundo para se prestar atenção43. Também dentro do leque do estilo há o projeto “Heavy Baile” dos produtores e DJs cariocas Leo Justi e Johnny Ice, que mescla a batida do funk à elementos eletrônicos atuais, com influências do dancehall moderno, indo da sonoridade clássica à novos estilos como o Trap e o Jersey Club, de raiz também oriunda do Electro44, criando um baile com grave muito pesado, um legítimo “Heavy Baile”. Desponta, ainda, o produtor e DJ carioca radicado em Londres, João Brasil, mestre na arte do mash-up, que consiste em misturar duas músicas diferentes, não remixando para soarem como uma música só, mas misturando-as, juntando trechos e versos de canções distintas e assim fazendo os mais mirabolantes encontros da música que vão de Beatles versus Deize Tigrona à Radiohead versus Mr. Catra. Com seu projeto novo, de 2013, o Rio Shock, o grupo foca na sonoridade do Funk dos anos 1990 com o Deep House, uma sonoridade eletrônica que remete ao house mais clássico,

43 Referência tirada da página do grupo em http://www.avalanchetropical.com/ 44 Ver mais em www.facebook.com/heavybaile 42


suave e dançante.45 Sendo essa prática do mash-up muito comum em DJs que unem o Funk a qualquer possibilidade que resulte numa pista pulsante, outros sucessos são o projeto MashmyAs$, do DJ e produtor Porto Alegrense Claus Pupp, famoso por suas colagens de refrões de funk com clássicos do Rock alternativo46, e o DJ e produtor Capixaba André Paste, apontado pela Folha de São Paulo como uma das apostas da geração e pela revista DJ Mag, especializada em música eletrônica, como um dos produtores revelação de 2010. Nas comunidades, a produção musical só aumenta. Porém a distribuição, na larga escala, ainda se encontra concentrada na mão das principais equipes, como o a Big Mix, Furacão 2000, Curtisom, Espião e Via Show Digital, que possuem os melhores contatos em rádios e principalmente a produção dos bailes, em especial a Big Mix e Furacão 2000. Toda uma estrutura de mídia e marketing formada ao longo do tempo, concedem-lhes a possibilidade de receber as músicas dos produtores independentes e pequenos selos, lançando-as e as trabalhando conforme a aceitação destas nos bailes promovidos. Porém, a venda de músicas não é o produto final do funk. O grande negócio do MC, DJ e produtor de Funk é a festa, o cachê e, quanto maior é a visibilidade do artista, maior o número de apresentações, maiores as quantias dos cachês. (SÁ e MIRANDA, 2011) Desta forma, a circulação de novas músicas continua acentuadamente ligada à festas e bailes, que deram início a um mercado independente que aparentemente está surgindo também fora das comunidades.

45 Ver mais em entrevista concedida site Urbe: http://www.oesquema.com.br/urbe/2013/10/10/rio-shock-rio-shock-ep-2013.htm 46 Ver mais em https://www.facebook.com/mashmyass 43


5.7. Novos desdobramentos do movimento Um acontecimento comum no repertório das festas da classe média brasileira: o Funk se mostrando consolidado como um gênero musical de domínio comum, revelando certa aderência a ritmos de matriz eletrônica e regionais até as localidades mais longínquas do país. Hoje em dia pode-se vê-lo presente em festas de criança e comemorações de empresas, passando por casamentos e formaturas, configurando com certeza um ponto alto da festa. O funk, no final dos anos 2000, definitivamente se estabelece no Rio de Janeiro. Nas boates de música comercial ele é figura certa, sendo o ápice da festa, o momento que a pista mais extravasa. Inclusive, nas boates de música alternativa ele agora também se insere, com conotações de vanguarda musical eletrônica e ares Cult47. Festas do circuito rock e eletrônico da cidade também se rendem ao Funk, com a expansão de algumas casas noturnas consagradas na noite alternativa da cidade, como a Fosfobox em Copacabana, Casa da Matriz em Botafogo, Teatro Odisseia no Centro, Casa Rosa em Laranjeiras, Scala Rio no Centro. Com a inauguração de novas casas, como o Espaço Acústica no Centro, a La Paz também no Centro, a Cave em Copacabana e o Studio RJ no Arpoador, elas começam a abrigar festas de produtores com propostas de várias opções em sonoridade (algumas delas possuem mais de uma pista, o que abre um leque maior de possibilidades). A primeira grande festa a abarcar o funk, rock e música eletrônica foi a Way Out48, no Espaço Acústica, que, com três andares trouxe três festas diferentes com sonoridades distintas, uma para cada andar no mesmo lugar. Foi seguida pela 7 Day Weekend49, que nesse circuito de casas iniciou trazendo o Rock alternativo e aos poucos estilos de pista mais dançantes, dentre eles o Funk. Há também a Bootie50, uma espécie 47 Significa culto em inglês, porém é usado como gíria para determinar algo como alternativo ao consumo de massa, algo descolado. 48 Ver mais em matéria de inauguração da festa em: http://partybusters.virgula.uol.com.br/noite/ha-um-way-out-pra-tudo-na-vida/ 49 Ver mais em www.facebook.com/7dayweekendparty 50 Ver mais em http://bootiemashup.com 44


de franquia internacional de festa de Mash-ups, que conta com uma edição mensal no Rio de Janeiro; a New Laje51, uma festa com temática nos churrasquinhos de laje comuns do subúrbio carioca, onde além do Funk são tocados os mais variados ritmos super populares brasileiros; a Recalcada52, nessa mesma temática, mais voltada para o Pop americano e o Funk “Putaria”; e a Wobble53, que apesar de especializada nas frequências graves de sonoridades como o Trap, Garage, Future Beats, vez e meia flerta com o Funk em uma linha de baixo mais pulsante, característica da festa. Na produção musical, novas tendências musicais vão se desenrolando, como a mistura do Funk com o Trap, sonoridade com BPMs por vezes mais lentos e arrastados, vinda do Crunk uma modalidade de Hip-hop do Sul Norte Americano, notabilizando-se o produtor americano Comrade e o precursor dessa união o também americano Sango, sendo esse estilo conhecido como Favela Trap. Outras uniões e experimentações estão surgindo dentro de um movimento chamado Neo Baile, o novo Baile Funk, como toda sonoridade de matriz eletrônica o Funk também vai criando suas raízes de experimentação, suas vanguardas, e tem como principal destaque no trabalho de pesquisador, divulgador e plataforma desses sons o site Funk na Caixa.54 O Funk hoje também não se restringe ao Rio de Janeiro e já é um filão de produtores dos diversos cantos do país. Vimos nascer recentemente uma de suas maiores vertentes na atualidade, vinda de São Paulo, o controverso Funk Ostentação. A periferia de São Paulo absorveu em larga escala o Hip-Hop, porém diferentemente do Rio de Janeiro, com o Miami Bass, esta foi muito influenciada pelo Rap, com letras com teor de crítica social. O Funk que lá chegava popularizado pela mídia era o de vertente mais sexual e humorística, descomprometida com a realidade das comunidades, fator que inicialmente encontrou resistência na capital.

51 Ver mais em www.facebook.com/newlaje 52 Ver mais em www.facebook.com/recalcadabaileclub 53 Ver mais em www.facebook.com/festawobble 54 Ver mais em www.funknacaixa.com/ 45


Porém, no litoral, em meados dos anos 1990, na Baixada Santista, o estilo encontrou um terreno fecundo, com as discotecas Footloose. Munidas de equipes de som, suas festas eram inspiradas nos bailes cariocas e logo começavam a surgir MCs na cidade a fim de se apresentar nos bailes locais. Como no Rio e grande parte das periferias do país, os bailes de lá passavam por um período de domínio local por facções criminosas, que se refletia nas letras das recentes composições. A influência do Rap ainda se mantinha e a maioria dos MCs vinha dessa tradição.55 O tempo se passou e o Funk foi aos poucos se inserindo nas comunidades da Zona Leste de São Paulo, com espaço reduzido. DJs pioneiros da Baixada Santista tocavam as produções conforme sentiam abertura de forma ainda muito discreta. Inspirados nas figuras dos rapers americanos, o Funk Ostentação nasce da fusão entre o hip-hop e o funk, com uma onda de festivais em Santos nos quais os temas sobre criminalidade e sexo não podiam ser mencionados. Histórias fantasiosas dos MCs que “faziam e aconteciam”, que “eram os reis”, que “tinham isso e aquilo”, surgem nas letras das músicas e dão início ao movimento, que encontra um acolhimento grande por parte da população de periferia. Enquanto o hip-hop nacional tinha mais o caráter consciente, o funk ostentação vinha a se igualar com o atual Hip-Hop americano, nessa linha de exaltação à própria personalidade e aos bens materiais. O Funk de comunidade produzido em São Paulo abre espaço para toda a estética do Tamborzão e hoje pode-se dizer que é a expressão cultural dominante em todo território da cidade, a maior da América Latina. O Funk tem aí a cena que mais cresce no país; o que começou aos poucos na periferia hoje é principal tendência em todo perímetro urbano.56 O Funk Ostentação traz o que talvez seja um futuro para o estilo no que diz respeito à distribuição: as carreiras dos MCs são independentes de gravadoras e equipes de som; estes se lançam na internet, em especial no Youtube, com clipes em produções super elaboradas; o trabalho de divulgação é massivamente sobre a figura do artista.

55 Referência para elaboração deste trecho o Documentário Funk Ostentação. Kondzilla. 2012. 56 Para entender o panorama ver mais em: http://revistatrip.uol.com.br/revista/175/reportagens/funk-vs-rap/page-3.html 46


Neste momento, os principais MCs tem os seguintes números no site: MC Guime, o maior expoente - seu clipe mais assitido no youtube “Plaque de 100” conta com 39.502.814 de visualizações. MC Boy do Charmes com “Megane” com 6.856.146 visualizações. MC Daleste, “Mais Amor Menos Reclaque”, com 17.427.400 visualizações. Menor do Chapa, “Vou Patrocinar”, com 6.904.952 visualizações. Mc Backdi e BioG3, “É Classe A”, com 4.811.712 visualizações. Números estes que superam e por vezes triplicam os principais artistas pops trabalhados pelas grandes gravadoras dos mais variados estilos, como Ivete Sangalo, Luan Santanna, Thiaguinho e NX Zero.57 Entretanto, se engana quem pensa que as gravadoras estão perdendo, pois a resposta delas vem na mesma moeda, o funk. Na década de 1990, Tendo o melody estourado com grandes sucessos, o funk na atualidade novamente traz à cena seu caráter mais pop. Artistas com técnica de preparo vocal munidos de empresários, agentes, relações públicas, assessores de marketing e personal stylist, fazem parte do staff do maior mercado da música popular em 2013, o Pop Funk. O processo teve início com MC Koringa, este já de carreira longa no funk, descoberto por Marlboro, que estourou com um melody não tão sentimental, mantendo pitadas de sensualidade nas letras características do Funk mais popular, mas não caindo pra sexualidade mais obscena. Com boa desenvoltura para se comunicar, o MC emplacou músicas em cinco novelas da Rede Globo, abrindo um espaço para o Funk dentro da mídia tradicional e de um público mais conservador.58 Brecha esta que impulsiona a carreira do cantor Naldo Benny. Oriundo do mundo do funk, este também já era veterano dos bailes, quando um acidente fatal com seu irmão interrompe o trabalho da dupla de MCs. Naldo segue a carreira de forma solo e, impulsionado por uma grande gravadora, lança seu primeiro CD. Com influencias do Hip-Hop americano de caráter mais pop como o de Usher e Chris Brown, ele mescla a musicalidade do funk à música eletrônica característica do pop estadunidense e 57 Números retirados do www.youtube.com em 30/11/2013 58

Ver

mais

em

entrevista

concedida

ao

portal

G1

http://g1.globo.com/musica/noticia/2013/05/ex-acougueiro-mc-koringa-quer-levar-funk-casada-familia-brasileira.html 47


elementos do Hip-Hop, isso em letras com a malícia e sensualidade do funk, sem o apelo mais explícito dos “Proibidões”. Seus shows contém dançarinos, coreografias e telões dignos que qualquer estrela pop internacional, o que lhe rendeu um viés de fenômeno do pop.59 Por fim, a maior expoente do mundo Funk em 2013, Anitta, descoberta por um produtor da Furacão 2000, que se impressionara com a habilidade vocal e performance da cantora. Anitta, que praticava dança de salão e cantava na igreja, logo em uma de suas primeiras apresentações é contratada por uma empresária que “compra” seu contrato da Furacão 2000 e investe pesado nela com todo o staff digno de uma celebridade hollywoodiana. A cantora lança seu primeiro clipe que estoura na internet e rapidamente fecha com uma grande gravadora. De forma meteórica, seu primeiro CD é lançado e alcança enorme sucesso, sendo o mais vendido do país em forma digital. Suas músicas permanecem por semanas sucessivas entre as mais tocadas de todo país.60 Desta forma, o funk se envereda por diversos caminhos neste momento, na cena eletrônica, na popular, na independente e na grande mídia, e seus desdobramentos tomam

contornos

inimagináveis.

Vindo

de

um

movimento

caracterizado

intrinsecamente como símbolo do guettotech, este conseguiu manter elementos de seus predecessores do Dub e Hip-Hop e, a partir deles, construir sua própria trajetória, que, ao que parece, ainda tem muitos capítulos a trilhar.

59 Referência retirada de http://naldobenny.com/release/ 60 Referência retirada de http://oglobo.globo.com/cultura/anitta-preparada-da-vez-9110966 48


61

61 Esquerda superior, foto da festa Bootie Rio, em boate da Zona Sul carioca, créditos da foto: I Hate Flash; direita superior, MCs do Funk Ostentação no documentário “Funk Ostentação” produzido por Kondzilla; esquerda inferior, MC Anitta; direita inferior, o cantor Naldo Benny. 49


5. CONCLUSÃO

Podemos dizer que o funk é a maior expressão dentro do universo guettotech e a maior manifestação musical popular do Brasil, no que diz respeito ao seu sucesso como cultura de massa.

Ele nasceu de um fortíssimo movimento de festas nos subúrbios do perímetro urbano do Rio de Janeiro, criado a partir do movimento Black Rio, e se fortaleceu a partir dos elementos sonoros do hip-hop, do electro e do miami bass.

Com a sua forte expansão na cidade, o circuito do funk cresceu vertiginosamente. E cresceu inicialmente em áreas mais pobres da cidade, às quais o Estado não oferecia serviços públicos. Nesta situação de precariedade, a presença e a atuação de grupos criminosos marcava (e ainda marca) a realidade desses lugares. Esse fator muito contribuiu para o desencadeamento de abordagens preconceituosas e hipócritas levantadas pela mídia em relação ao funk, que culminam em medidas de restrição aos bailes por associação a uma violência que era característica da urbe nesta crise pública.

O Funk se reinventa musicalmente na favela durante seu exílio. Este toma uma força que não pode mais ser cerceada. A mídia e posteriormente os setores mais conservadores da sociedade não conseguem mais conter a massa. O funk novamente, após um período turbulento, é exaltado e reconhecido como manifestação cultural.

Eis a sua característica musical própria: a mistura do Miami Bass com os versos em português e a percussão eletrônica, que resultam no “Tamborzão”. Tais elementos despertam a curiosidade do mundo, e o funk carioca se encontra chancelado como música eletrônica de vanguarda. Seu sucesso é absoluto em todo país e agora para além dele.

Este estilo musical consolidado é ponto fecundo para uma série de ramificações e experimentações. No seu interior, começam a surgir novas abordagens e novos significados vão sendo criados, com abertura para novas misturas eletrônicas e sub 50


gêneros. O aproveitamento de seu caráter popular consolida-o como carro chefe da vigente indústria musical no país.

Por fim, concluímos que a estética sonora é entrelaçada com todos os aspectos sociais na construção do funk. Para sua compreensão, é necessário recorrer não somente à cultura dos bailes, mas a rotina das pessoas que têm com essa música uma relação muito próxima. O Funk é, portanto, música eletrônica que teve sua raiz no “gueto”. Elaborado nas periferias do Rio de Janeiro, é o maior expoente da música popular do país (a quantidade de acessos de seus artistas na internet mostra a sua força em termos mercadológicos). É uma força que se mantém por estar tão entrelaçada às pessoas, que fazem dele seu cotidiano, fazem dele parte de sua vida.

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GOMBRICH, Ernst Hans. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008. HERSCHMAN, Micael. O Funk e o Hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: ED UFRJ, 2000. JANOTTI JR, Jeder S. Gêneros musicais, performance, afeto e ritmo: uma proposta de análise midiática da música popular massiva. Bahia: Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura contemporânea, 2004. Disponível em <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/3 418/2488> Acesso em 02 out. 2013. MASSIN, Jean; MASSIN, Brigitte. História da Música Ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. MIRANDA, Gabriela. DO FUNK CARIOCA AO BAILE FUNK: Questões sobre World Music 2.0 e Funk carioca. Recife: GT3, Mídia, Música e Mercado. IIIº Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular, 2011. Disponível em < http://issuu.com/apafunk/docs/do_funk_carioca_ao_baile_funk> Acesso em: 27 set. 2013. MUNIZ, Bruno Barbosa. Dub: um estilo? Um gênero? Um vírus? Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2010.

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PALOMBINI, Carlos. Justiça e Cultura: Funk proibido. In: AVRITZER, Leonardo. Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Disponível em < http://www.proibidao.org/justica-e-culturafunk-proibido/ > Acesso em 20 nov. 2013. SÁ, Simone Pereira. Quem media a cultura do shuffle? Cibercultura, mídias e cenas musicais. Rio Grande do Sul: In: Revista eletrônica PUC-RS, 2006. Disponível em <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/viewFile/885/9 003> Acesso em 05 out. 2013. SÁ, Simone Pereira; MIRANDA, Gabriela. Aspectos da economia musical popular no Brasil: o circuito do funk carioca. Rio de Janeiro: Trabalho apresentado ao Seminário Internacional - “Música Independente no contexto pós-crise” Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ), 2011 SADIE, Stanley. Dicionário grove de música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1994. Artigos de periódicos: http://bootiemashup.com http://dancingcheetah.com/2009/05/01/global-guettotech-no-rio-fanzine/ http://g1.globo.com/musica/noticia/2013/05/ex-acougueiro-mc-koringa-quer-levarfunk-casa-da-familia-brasileira.html http://naldobenny.com/release/ http://oglobo.globo.com/cultura/anitta-preparada-da-vez-9110966 http://partybusters.virgula.uol.com.br/noite/ha-um-way-out-pra-tudo-na-vida/ http://revistatrip.uol.com.br/revista/175/reportagens/funk-vs-rap/page-3.html http://rollingstone.uol.com.br/edicao/12/uma-crise-anunciada http://www.avalanchetropical.com/ http://www.dicio.com.br/amplificador/ http://www.facebook.com/7dayweekendparty http://www.facebook.com/festawobble http://www.facebook.com/heavybaile http://www.facebook.com/newlaje http://www.facebook.com/recalcadabaileclub http://www.funknacaixa.com http://www.oesquema.com.br/urbe/2013/10/10/rio-shock-rio-shock-ep-2013.htm http://www.tecmundo.com.br/musica https://www.facebook.com/mashmyass

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Documentários: Documentário: NATAL, Bruno. Dub Echoes. 2009. Documentário: GAYLOR, Brett. RIP! A Remix Manifesto. 2008. Documentário: IVANOVICI, Tatiana; CUNHA, Diogo. Tamborzão. 2006. Documentário: DANTAS, Konrad. Funk Ostentação. 2012.

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