SAÚDE, REALIDADE E LIBERDADE
“BEM-VINDOS A ESTE CENTRO DE PODER POPULAR”*
DIANA ANDRINGA: “SER MULHER É SEMPRE, NAS NOSSAS SOCIEDADES, SER DA RESISTÊNCIA.”
A LUTA ESTUDANTIL NO ESTADO NOVO
jornal dos jovens do Bloco - Abril 2018
pão cravos e
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DIANA ANDRINGA: “SER MULHER É SEMPRE, NAS NOSSAS SOCIEDADES, SER DA RESISTÊNCIA.”
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A LUTA ESTUDANTIL NO ESTADO NOVO
Joana Correia Pires
EDITORIAL Há 44 anos, no dia 25 de Abril de 1974, um grupo de militares das Forças Armadas portuguesas deu início à Revolução que terminou a ditadura fascista em Portugal. Ao fim da ditadura seguiu-se o PREC (Processo Revolucionário Em Curso), um período de fortalecimento das lutas sociais com vista a outro modelo de sociedade, em que se conquistaram muitos dos direitos fundamentais que ainda hoje se refletem nas nossas vidas, desde os direitos civis e políticos, como o direito ao voto e à liberdade de expressão, até às transformações que construíram o Estado-providência que nos garante os direitos sociais de que usufruímos hoje, através do investimento na escola pública, no sistema nacional de saúde e na melhoria das condições de habitação, da nacionalização dos setores estratégicos da economia, do incentivo às ocupações de terras e à criação de cooperativas e comissões de moradores. O código do trabalho reflete ainda hoje muitas destas lutas: o direito à greve, o salário mínimo, o subsídio de férias, o subsídio de desemprego, a proibição dos despedimentos sem justa causa. Os impostos tornaram-se muito mais progressivos, pondo os ricos a pagar comparativamente mais que os pobres, e a Segurança Social tornou-se muito mais solidária, permitindo socializar os riscos de doença, desemprego, velhice, etc. O investimento na educação e aumento da escolaridade obrigatória levaram a que passássemos de mais de ¼ da população analfabeta em 1970 para apenas 5% em 2011. O investimento na saúde levou a que passássemos de uma das maiores taxas de mortalidade infantil da Europa para uma das menores do mundo. A vitória das forças conservadoras no 25 de novembro de 1975 marcou o início da reversão, ao longo dos últimos 43 anos, de muitas destas conquistas. O código do trabalho foi “liberalizado”: passou a facilitar o uso abusivo do trabalho 1
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precário e dos falsos recibos verdes; as empresas nacionalizadas foram privatizadas e foram conferidas concessões dos bens públicos a empresas privadas, que passaram a geri-los com vista à maximização do seu lucro e não à garantia de um serviço de qualidade (o que fez, por exemplo, com que as redes de transportes e de correios passassem a priorizar as zonas com mais população e isolou ainda mais as zonas do interior); o IRS tornou-se menos progressivo. Temos hoje um país mais desigual, com menor capacidade produtiva e menos coeso territorialmente do que há 40 anos. Lembrar as conquistas de Abril é lembrar que um outro mundo é possível, que houve um momento da nossa história recente em que foram postas em causa muitas das narrativas que hoje se consideram inevitáveis. Mas lembrar Abril não é apenas lembrar as conquistas. É lembrar os militantes comunistas e antifascistas mortos e torturados pela PIDE. É lembrar os mortos da guerra colonial – e lembrar também o nosso passado de colonialismo, que demasiadas vezes continua a ser camuflado de “descobrimentos”, encobrindo a exploração e escravatura de povos inteiros perpetuadas durante séculos pelos países europeus. Lembrar os horrores cometidos durante o Estado Novo é a única forma que temos de evitar voltar a cometê-los. Num momento em que em tantos países se assiste a recuos e a restrições de liberdades, em nome do combate ao terrorismo que demasiadas vezes tem como principal consequência a perseguição racial e religiosa (como tem vindo a acontecer nos EUA e na Europa com a ascensão dos partidos de extrema-direita), ou da preservação do poder a todo o custo (vejamse a Turquia, o Brasil, a Catalunha), lembrar a nossa história é um ato político: que a memória da ditadura nos impeça de a voltar a repetir.
Volvidos 44 anos sobre 25 de Abril, a revolução democrática indissociável dos valores da liberdade, da democracia e da justiça social preconizou as lutas dos trabalhadores por conquistas fundamentais. A construção de raíz de uma rede de cuidados de saúde primários e hospitalares ditados por conhecimento e tecnologias veio dar ao Estado democrático um dos componentes do serviço público e social que tirou Portugal dos anos do fascismo e consequente atraso em que se vivia antes da revolução dos cravos. Que conquista é esta? Como mudou o panorama da saúde em Portugal? Que desafios tem hoje em mãos? Em 1979, ano da criação do Serviço Nacional de Saúde, a prestação de cuidados passou a abranger toda a população independentemente das condições sócioeconómicas, sendo este na altura um serviço estritamente público. Formava-se assim um serviço que garantia a igualdade de acesso a cuidados de saúde a todas as pessoas, democratizando-se a saúde e possibilidando qualidade de vida a toda a gente, independentemente da sua possibilidade de pagar. Desde a evolução materno-infantil, visão do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a cobertura assistencial em saúde, foram inúmeros os traços evolutivos e marcos desta conquista de Abril. Conquistas como o Plano Nacional de Vacinação, a diminuição da taxa de mortalidade infantil e materna são exemplos paradigmáticos. Sendo uma conquista social que na sua origem preconizava valores como a igualdade, universalidade e gratuitidade, ao longo do tempo vêm-se esbatendo estas bases e tem vindo a instalar-se uma visão lucrativa e imediatista que se reflete nas sucessivas políticas para a saúde. A prevenção em saúde, o apoio aos centros de saúde (que dentro do setor é o parente mais pobre), dado o paradigma da doença e da cura que estrutura os nossos cuidados, a forma de investimento centrada na profilaxia traz a longo
prazo resultados de uma população mais saudável. Porém, têm sido recorrentes a redução de profissionais, o recurso aos contratos de prestação de serviços médicos, enfermeiros e outros técnicos de saúde e a sua contratação através de empresas de trabalho temporário que degradam o SNS. Fecharam-se centros de saúde, hospitais e maternidades, a colocação de recursos humanos não corresponde às necessidades reais que precisam de ser suprimidas. Continuamos a ser um dos países da OCDE em que a despesa pública com os cuidados de saúde é a mais baixa. A saúde assume-se cada vez mais enquanto negócio. À burguesia interessa-lhe esvaziar a conquista de Abril que foi a democratização do acesso à saúde e privatizá-la, em jeito de sistema de saúde privado e em nada universal. A saúde pública necessita de progresso tecnológico, de conhecimento, de profissionais, enfim, de recursos e organização. Continuar a investir em PPP´s é antagonizar a sustentabilização deste serviço público, subsidiando privados. “Abril Sempre!” é o que costumo escrever em todas as agendas no dia 25 de Abril. Contudo, o degradado SNS, as pressões para a privatização e as taxas moderadoras têm vindo a contrariar o seu sentido e a relembrar-nos de que nada está garantido. Ser de esquerda é lutar contra o processo de mercantilização dos serviços de saúde, lutando por cuidados equitativos no seu acesso, por um verdadeiro serviço público de saúde, com investimento imediato em recursos humanos e materiais que contribuam para a construção de um SNS de qualidade, que chegue a todos e todas, invertendo a tendência de privatização e de precarização que tem como resultado a deterioração da saúde da população. “Dar mais força à liberdade” é também lutar por um serviço de saúde verdadeiramente público e democrático, como a revolução de Abril nos ensinou e possibilitou. 2
“Bem-vindos a este centro de poder popular”* Tomás Marques e Vicente Ferreira O período que sucedeu ao 25 abril foi marcado por um forte movimento popular que assumiu a dianteira na transformação de um país que acabava de se libertar do jugo fascista. Um momento de confronto máximo entre trabalho e capital, resultado das inevitáveis contradições de um sistema opressor. Após a revolução, foi esta a reação da classe trabalhadora, um processo de luta de classes acentuado depois dede 48 anos de repressão fascista . Assim se reagiu a um movimento que começou por ser um golpe militar, mas que progressivamente se propagou por toda a ordem social - as antigas estruturas do poder foram derrubadas e o modelo de relações sociais subvertido. Este cenário é marcado também pelo estado económico do país, descrito pelo MFA como uma situação de “desequilíbrio muito acentuado da balança de pagamentos, desemprego muito acentuado e uma produção interna decrescente”. Ancorado nas camadas reacionárias da sociedade, Spínola convoca para 28 de setembro uma manifestação - a “maioria silenciosa”. O que ocorre na noite anterior à manifestação é exemplo perfeito do clima de agitação social que se vivia. Trabalhadores, organizações operárias, movimentos de extrema esquerda montam barricadas à volta de Lisboa de forma a impedir a movimentação deste fluxo contrarrevolucionário. A derradeira tentativa das forças reacionárias frustra-se no golpe de 11 de março. Este é um momento fulcral do processo revolucionário. Uma descontinuidade vincada na história da economia e da sociedade portuguesa, uma aceleração do processo revolucionário. O governo decreta a nacionalização da banca, justificada com a necessidade de “concretizar uma política económica antimonopolista que sirva as classes trabalhadoras e as cama3
Edifício do Banco Nacional Ultramarino, nacionalizado em 1974.
das mais desfavorecidas da população”. Toda esta explosão de atividade revolucionária força a ação do governo, que ampliou o seu programa antimonopolista. Procede-se também à criação do Conselho da Revolução, que se revelou na prática o órgão governativo do país. A ocupação de fábricas torna-se uma realidade comum, formam-se comissões de moradores, comissões de trabalhadores na indústria e nos serviços, discutem-se formas de autogestão, exige-se o controlo operário dos setores estratégicos da economia. Assiste-se à agitação social e uma vontade clara de mudança – o povo marca o tempo e o ritmo da revolução. Os meios de produção, da indústria ao campo, são coletivizados, administradores e patrões afastados, sucedem-se greves e manifestações, são ocupadas casas e edifícios para abrir escolas e creches. Todos debatem e pensam os destinos da revolução. No extremo oposto da estrutura de classes estão os grandes grupos monopolistas, que controlavam a indústria, a banca e os serviços. É esta burguesia que em 1975, receosa, conspirava pelo regresso da “ordem”. Neste contexto, podemos olhar com mais detalhe para o caso da nacionalização da banca, pela importância estratégica do setor. Após a revolução, a banca perdeu o poder e a influência política que detinha junto do regime. Os primeiros meses do período revolucionário são marcados pela tentativa por parte dos banqueiros de prejudicar a economia, descapitalizando a banca, movimentando fundos para o estrangeiro e congelando as remessas dos emigrantes. Portugal vê-se condicionado pelos efeitos da crise económica internacional (fim do período de crescimento sustentado das 3 décadas anteriores, acentuado pelo aumento
do preço do petróleo). Era indispensável estabelecer formas de controlo democrático do sistema financeiro que permitissem ao Estado fomentar a atividade económica (submetendo a concessão de crédito às empresas aos critérios de desenvolvimento nacional estabelecidos pela vontade popular), promover a criação de emprego e pôr fim às tentativas de sabotagem da revolução. Uma das principais bases sociais do regime fascista português encontrava-se no campo, junto dos latifundiários, que, durante décadas, exploraram os camponeses que viviam em condições de miséria extrema. As diferenças sociais e de acesso ao trabalho e à posse da terra agudizam-se gradualmente sob o regime fascista. Com os trabalhadores agrícolas do sul num “elevado amadurecimento político”, entrava-se numa dinâmica de movimento popular de ocupação e autogestão. Os trabalhadores e as trabalhadoras rurais iniciam um processo de ocupação das grandes terras agrícolas, sob o célebre lema: “A Terra a quem a Trabalha”. A reforma agrária é condição indispensável para a liquidação do poder dos latifundiários e para a transformação revolucionária da sociedade. Este foi um período em que, segundo F. Martins Rodrigues, as pessoas comuns subitamente descobriram já não haver motivos para temer a força armada e os patrões e se reuniam em assembleias para discutir e resolver as questões da sua vida coletiva. A descoberta de que a democracia pode ser algo mais do que o espetáculo das instituições, pode ser a via para questionar uma ordem social iníqua. Os avanços registados traziam esperança ao movimento popular: o ‘rumo para o socialismo’ parecia possível. Sabemos hoje que este era o último passo de um caminho que foi vedado e com as privatizações dos tempos seguintes, no movimento
Mulheres em manifestação de apoio às ocupações de terras.
contra-revolucionário. É lastimável verificar que, mesmo depois de todo este furacão revolucionário, a democracia burguesa estabeleceu o seu poder e monopólios característicos do Estado Novo. Não podemos deixar que este processo se torne uma mera lembrança nostálgica, a História está longe de terminada e urge, seguindo o exemplo do processo revolucionário de 74-76, lutar por uma sociedade diferente. *Frase à entrada da Herdade da Torre Bela, ocupada por trabalhadores em 1975
Entrada da Herdade da Torre Bela.
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DIANA ANDRINGA: “SER MULHER É SEMPRE, NAS NOSSAS SOCIEDADES, SER DA RESISTÊNCIA.” Entrevista por Gisela Soares Carvalho
Diana Andringa nasceu no Dundo, Angola. Esta província chegou-nos de novo à memória com o programa História A História, de Fernando Rosas, em que também colabora, num episódio que nos trouxe ao ecrã a crueldade, a opressão e a exploração do colonialismo português materializado, entre outros, na Diamang, empresa colonial de exploração mineira. Mudou-se para Portugal em 1958. Em 64 ingressou na Faculdade de Medicina em Lisboa, tendo participado no “Boletim” da Pró-Associação da FMUL e na “Solidariedade Estudantil” da Reunião Inter-Associações. Abondonou a Medicina para se dedicar ao jornalismo. Escreveu para o
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“Diário de Lisboa”, “Diário Popular, “Vida Mundial”. Em 1970 foi presa pela PIDE por defender a independência de Angola. Passados 20 meses na prisão, regressa ao jornalismo. Trabalhou na RTP, na RDP, no “Diário de Notícias”. É também conhecida pelo seu trabalho enquanto documentarista, de onde se destacam “As Duas Faces da Guerra”, “Dundo, Memória Colonial” e “Tarradal: Memórias do Campo da Morte Lenta”. Nesta altura de comemoração do 25 de Abril, falámos com a Diana para “ouvir” na primeira pessoa a sua experiência enquanto mulher, estudante e jornalista na última década do Estado Novo.
Ficheiro de Diana Andringa no arquivo da PIDE.
Aponta-se a Guerra Colonial como fonte de politização da juventude universitária portuguesa. De que forma contribuiu o conhecimento da realidade em Angola para a tua politização? Eu nasci em Angola e, embora tivesse vindo para Portugal com 11 anos, tinha-me apercebido de vários aspetos odiosos do colonialismo, nomeadamente o racismo, a discriminação social e económica, a exploração através do trabalho compelido, a violência colonial. Isso ajudou-me a perceber melhor o início da luta de libertação e a violência de 1961. Ao princípio – tinha 13 anos – fiquei muito perturbada, diziam-me que se houvesse independência nunca mais poderia voltar a Angola – e Angola, ou mais precisamente o Dundo, era, é, a minha pátria – e, confesso, segui com muita atenção a atuação dos “pieds-noirs” da Argélia, os escritos dos mentores da OAS. Mas, aos poucos, fui-me lembrando das coisas a que assistira e compreendendo a violência da revolta. E depois fui crescendo, li muitos livros sobre Resistência, fosse em França, contra os nazis, ou na China, contra os japoneses, li o Brecht, “Do rio que tudo arrasa se diz que é violento, ninguém diz
violentas as margens que o comprimem” e, ao entrar para a Faculdade, encontrei pessoas que defendiam a independência das colónias e fui compreendendo que essa era a posição correta. Também li o Kipling sobre o fardo do homem branco, mas o que eu conhecia não correspondia ao texto…
«LI O BRECHT, “DO RIO QUE TUDO ARRASA SE DIZ QUE É VIOLENTO, NINGUÉM DIZ VIOLENTAS AS MARGENS QUE O COMPRIMEM”» 6
Começaste o teu percurso profissional na imprensa estudantil, no “Boletim”. Ainda durante a ditadura foste colaboradora no Diário Popular e no Diário de Lisboa. Posteriormente trabalhaste na RTP e escreveste para o Público. Temos assistido a várias polémicas com a imprensa: escândalos do Correio da Manhã, a compra da TVI pela Altice, a ideia das fake news. Como jornalista e ex-membro da Direção do Sindicato parece-te que tem sido desvalorizado o papel dx jornalista na saúde democrática?
Cartaz do filme Tarrafal – Memórias do Campo da Morte Lenta de Diana Andringa.
Os estudantes foram uma importante voz de dissidência especialmente na última década do Estado Novo. Como avalias a participação estudantil na altura? Parece-te possível uma organização igualmente politizada atualmente? Acho que os estudantes foram uma força muito importante na luta antifascista e as Associações de Estudantes tiveram um papel fundamental para a consciencialização dos jovens. Fala-se muito do Maio de 68, mas em Portugal já tinha havido as crises de 61/62 e de 64/65 e depois a de 68/69. A guerra colonial, a que eram obrigados pelo Serviço Militar Obrigatório – tendo como único escape a deserção e/ou o exílio – acelerou a consciencialização dos jovens estudantes que, ao entrarem nas Forças Armadas como milicianos, ajudaram também à consciencialização do militares do quadro. Deixa-me dizer-te que, em minha opinião, temos de agradecer o fim da ditadura – o golpe de Estado dito “dos capitães” – aos Movimentos de Libertação das então colónias. Em relação ao que se passa hoje, num contexto muito diferente do que foi o nosso então, não sei o suficiente para responder. Tenho, porém, uma convicção: caso a liberdade seja posta em causa, e seja necessário lutar contra a opressão, os jovens estarão no bom combate. 7
Não creio que seja desvalorizado: acho que há muita consciência da importância dos meios de Comunicação. É por saberem que a informação é condição indispensável da Democracia que há lutas pelo controlo desses meios, e também por isso que se foi diminuindo a capacidade de intervenção dos jornalistas na linha editorial desses órgãos de Informação: enfraquecimento dos Conselhos de Redação, desrespeito pelo Código Deontológico e mesmo pelos Estatutos Editoriais e, sobretudo, precarização dos jornalistas – quando se sabe que a situação de precariedade diminui a liberdade individual do jornalista e a sua capacidade para dizer Não! a ordens que contradigam o Código Deontológico e mesmo as suas posições éticas. Acrescentaria que o que tem sido muito desvalorizado é o correto uso da língua portuguesa: campeiam notícias com palavras de sentido duvidoso, termos contaminados pela linguagem publicitária e das conversas de café, que põem em causa o rigor que se exige no jornalismo. Ainda há poucos dias ouvi que um ministro “estava a ‘vender’ o país”, em vez de “estava a ‘promover’ a imagem do país”…
«TEMOS DE AGRADECER
O FIM DA DITADURA – O GOLPE DE ESTADO DITO “DOS CAPITÃES” – AOS MOVIMENTOS DE LIBERTAÇÃO DAS ENTÃO COLÓNIAS.»
Em Janeiro de 1970, “comeste o pão que o diabo julgada em Fevereiro de 1971 e condenada a uma pena de prisão de 20 meses por apoio à causa da independência de Angola. Como foram vividos esses meses? Como foi e como é ser mulher na resistência? Não vou dizer que foi agradável estar presa, mas rejeito essa fórmula “comeste o pão que o diabo amassou”. Muita gente no nosso país comeu de facto esse pão, fosse na sua vivência quotidiana de fome e miséria, fosse nas torturas que lhe foram infligidas na PIDE e noutras polícias. É pelo meu muito respeito por essas pessoas que recuso a frase honrosa que escolheste. Ao contrário de muitos/ as presos/as – e por privilégio de classe e relacionamento familiar – não fui espancada, não passei noites sem dormir (a tortura do “sono”), nem fui obrigada a permanecer horas a fio na mesma posição (a tortura da “estátua”). Fui apenas submetida ao isolamento – hoje sei que para alguns era terrível, e que é considerado uma tortura, mas na altura sempre disse “só passei pelo isolamento” – a pressão psicológica/chantagem e a uma dose (para mim desnecessária e excessiva) de medicamentos com efeitos psíquicos. Também na cela de isolamento tive sorte: não foi um “curro” como os do Aljube, e da janela era possível ver o verde da mata em frente e uma nesga de azul do Tejo. Já em regime normal, tive a sorte de ter como companheiras de cela duas mulheres cuja memória muito respeito, a Fernanda Tomás e a Graciete Casanova, além de, por menos tempo, a minha amiga
e camarada de processo, a Zé Catanho. Aprendi muito com elas – até a fazer malha, coisa que, na cadeia, dá imenso jeito…Mas falando de algo mais importante, aprendi a resistir, quando nos vamos abaixo. A primeira Nota de Culpa pedia para nós penas de prisão de 20 a 24 anos. E eu, que ia nos 23, declarei; “Se apanhar uma pena assim, suicido-me!” Ao que a Fernanda retorquiu: “Uma comunista não se suicida!” E eu, muito envergonhada da minha fraqueza, respondi: “Mas eu sou só ainda aprendiza!” Uma boa gargalhada delas, a que me juntei, deu-me novas forças. Depois desse susto, os vinte meses não pareceram tão maus… Como é que foram vividos? Com a dificuldade inerente à situação, o apoio na camaradagem de algumas companheiras de prisão, na família, os mimos que as famílias nos traziam (ah, os suspiros de pinhão do Couço, quando a Graciete tinha visitas!), os livros e os discos (reler A Condição Humana de Malraux, ouvir Luigi Nono, A floresta é jovem e cheia de vida, ou a Nina Simone, Ain’t got no…) e os muitos textos e poemas que sabia de cor. Repito: não foi agradável estar presa, mas aprendi alguma coisa. Até sobre mim, nessa altura. E também que ser mulher é sempre, nas nossas sociedades, ser da Resistência.
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A LUTA ESTUDANTIL NO ESTADO NOVO Mafalda Escada
grupo isolado para se tornarem reivindicativos e, mesmo sob a ameaça da Guerra Colonial, levantavam-se. Contavam-se 1200 estudantes na ocupação da Cantina Velha, cercados por um cordão policial. Nesse 1 de Maio, os estudantes burgueses juntam-se aos trabalhadores em protesto. A emergência de movimentos estudantis antissistémicos (Berkeley 65, Paris 68) contribui para a consolidação de um discurso semelhante no movimento português que se desenvolve e que inclusive participa nas operações de resgate das vítimas das cheias de 67, onde testemunhara a profunda crise social à qual o regime virara costas. A isto se soma o agudizar do conflito colonial que vem contribuir para o descontentamento. Paralelamente, o movimento vai contando com a crescente participação de estudantes radicalizados que trazem novos referenciais e que sedimentam o discurso anticapitalista. O caldeirão fervilha e em 69 é-lhes negada a palavra durante uma cerimónia em Coimbra. O Presidente da República e o Ministro da Educação
são vaiados, há estudantes presos e suspensos da Universidade. É decretado luto académico, nova greve estudantil. É ocupada a Universidade e decretado o fecho da mesma pelo Governo, mantendo-se os exames. Decide-se o boicote aos exames. Quase 90% dos estudantes da UC aderem ao boicote. Furam pneus à polícia, são agredidos, lançam balões, vão de luto para Lisboa, gritando palavras de ordem no Académica-Benfica, final da taça a que não compareceu o Presidente. O regime responde com repressão: mais estudantes presos e expulsos da Universidade, 50 dirigentes da Académica enviados para a guerra. “Uma Universidade Nova para um Portugal Novo” lia-se no manifesto do Conselho de Repúblicas. Em 69, o regime tinha perdido os estudantes, agora força revolucionária que contribuía para a sua erosão, decidida a combater a repressão. Combate este que ficará também para sempre marcado na história pelo assassinato de Ribeiro Santos, estudante do ISEG, em 72.
Manifestação de estudantes durante o PREC.
O Ensino Superior, espaço de elite ao qual apenas a burguesia e alguns filhos de famílias assalariadas acediam era uma academia fechada e os estudantes um grupo isolado da sociedade. As crises académicas de 62 e 69 vieram quebrar este paradigma. No virar da década de 50, indignados com a limitação da autonomia das associações de estudantes e influenciados por uma série de acontecimentos que fragilizaram o regime, os estudantes iam-se afastando do mesmo. No início dos anos 60, surgira já a ideia da criação de uma União Nacional de Estudantes e lançava-se o debate sobre organização estudantil que opunha duas visões: um associativismo relacionado com a vida na academia, responsável pelo desporto universitário e pela tradição académica, associado a uma ala conservadora; e um associativismo reivindicativo que via o estudante enquanto parte de uma realidade que ultrapassa os muros da Universidade, posicionando-se perante outras questões, associado a uma 9
ala progressista. Neste contexto, e é importante ter em conta a ameaça da Guerra Colonial, iniciada em 61, o discurso estudantil dilata-se a outras temáticas. Em Coimbra, nesse ano, é publicada a Carta A Uma Jovem Portuguesa que põe a nú a opressão da mulher, chocando a sociedade conservadora que nela vê uma afronta à moral cristã. É também por esta altura que José Afonso se inicia na canção de intervenção. Os estudantes já não queriam discutir pormenores das faculdades, mas sim a sociedade. Em março de 62 é proibida a celebração do Dia do Estudante em Lisboa. Os estudantes respondem com ocupação e greve de fome na Cantina Velha, greves estudantis e manifestações, seguidas de forte repressão policial. Estudantes agredidos, prisões em massa. Coimbra solidariza-se decretando luto académico. É suspensa a maiora das associações de estudantes. Cimentava-se o afastamento de uma grande parte da juventude universitária face ao regime. Os estudantes deixam de ser um
Manifestação de estudantes da Universidade de Coimbra pela democratização do ensino.
Manifestação de estudantes à frente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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