Pão e cravos 6 Julho/Agosto

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PÃO E CRAVOS Jornal dos jovens do Bloco - nº 6 julho/agosto 2016

NESTA EDIÇÃO: EDITORIAL

Exigir mais, já! | p.2 NACIONAL Estivadores, não estais sozinhos Luís Bento | p.3 EDUCAÇÃO Regime funcional: quando os privados se apoderam do ensino público Márcia Silva Pereira | p.4 TRABALHO JOVEM A teoria marxista, os jovens e os sindicatos: passado e presente Afonso Jantarada | p.5 A LUTA TODA Contra-hegemonia e movimento Gonçalo Pessa | p.6 A luta LGBT ontem, hoje e amanhã Inês Ribeiro | p.6 e 7 Contribuintes “ilegais” Angela Sankara | p.7

Austeridade e luta de classes Filipe Teles | p.8/9

INTERNACIONAL O movimento Nuit Debout Rafael Fernandes Boulair | p.10 CULTURA Qual o poder político de uma “imagem intolerável”? Daniel Barros | p.11 TEORIA A classe ainda conta? João Mineiro | p.12 e 13 HISTÓRIA A SDN ou (des)ensaio do capitalismo global João Quartilho | p.14 Deslocamentos do centro de gravidade Mundial Karl Marx | p.15


Editorial

Exigir mais, já! anti-racistas e as lutas pelo ensino público. A Marchas do Orgulho LGBT de Lisboa e do Porto, que foram as mais participadas de sempre, a manifestação pela escola pública, que juntou

As últimas semanas foram marcadas por lutas sociais intensas, pelos direitos do trabalho, pelo respeito das identidades sexuais e de género, pelo respeito da diversidade. Os estivadores do porto de Lisboa combateram o ataque aos seus direitos laborais, com reivindicações que não podem ser consideradas corporativistas nem por luxos, mas apenas a reclamação de condições dignas para trabalhar. A título de exemplo, a greve levada a cabo por estes trabalhadores foi feita a fins-de-semana e horas extraordinárias, que ainda antes de alcançarmos metade do ano já tinham ultrapassado o máximo permitido pela lei num ano inteiro. O tratamento dado pela comunicação social a esta greve reforça mais ainda a necessidade de a lembrarmos e discutirmos, para repor a verdade sobre aquela que é uma causa justa e uma luta de todxs, por um trabalho com direitos e com contrato. A convocação de uma manifestação exigindo o fim da precariedade em todas as profissões e não apenas para os estivadores ilustra a solidariedade de que precisamos: unidxs somos sempre mais fortes, e não poderá haver justiça deixando ninguém para trás. As últimas semanas vieram lembrar também que a solidariedade deve ir bem para lá dos laços entre quem trabalha; passa também pelas lutas LGBT, as lutas

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dezenas de milhares de pessoas na Avenida da Liberdade, o fim-de-semana da Festa da Diversidade na Ribeira das Naus, a manifestação contra as dificuldades da regularização de imigrantes em Portugal, todas elas vieram disputar o direito a viver de forma digna numa sociedade que nos trate como iguais, que não tolere atos nem leis machistas, classistas ou racistas e que respeite a diversidade. A internet e as redes sociais, que são instrumentos poderosos e fundamentais de mobilização e divulgação, são também uma forma fácil e cómoda de dar voz à revolta perante as injustiças, o que pode muitas vezes substituir os protestos na rua por dar a sensação de que a nossa voz já foi ouvida. O problema desta união virtual é que se torna menos ameaçadora, e acima de tudo mais dispersa e portanto mais fácil de ignorar. As grandes conquistas, mesmo as do tempo da internet, são, ou têm sido, feitas na rua. O caminho que importa percorrer é o de juntar forças que exijam, na rua e junto das instituições de poder, o fim da precariedade nas nossas vidas, nomeadamento no trabalho. A situação atual em França vem lembrar que é na rua que os protestos conseguem pôr em causa leis injustas e trilhar novos caminhos: milhares de ativistas sociais têm levado a cabo um combate forte à precarização laboral que o governo francês tenta impor. Estas reivindicações

pelos direitos do trabalho têm mobilizado milhares de estudantes, conscientes de que a precariedade laboral será, se não se inverter o ataque ao trabalho, o seu futuro. Por vezes é necessário saber reinventar as geometrias existentes nos sindicatos, partidos e no movimento social como um todo para dar o pontapé de saída para mobilizar as pessoas para a luta pelos seus direitos. Apenas unidxs, superando a rigidez de estruturas demasiado hierarquizadas e/ou burocratizadas, conseguiremos criar uma onda de reivindicação e esperança que percorra e agite a sociedade, que saiba encontrar soluções também nos momentos em que nos parece que não há saída. Setembro trará consigo a oportunidade de demonstrarmos, no ensino superior, que existem alternativas a estas lógicas, que atualmente se sintetizam numa instituição retrógada chamada praxe. É o momento para começar a criar alternativas concretas de integração. O manifesto “Democracia é Escolher” é um bom prenúncio para o ano letivo que se avizinha, mas será preciso que estudantes, coletivos, associações e outros grupos venham lembrar que há alternativas à hierarquia e à humilhação e que a integração pode e deve ser muito mais do que uma praxe. Este Pão e Cravos é também um incentivo a que sejam trocadas ideias, testemunhos e contatos para ajudar a criar essa alternativa. Com o desemprego em massa e os contratos temporários a constituírem as únicas promessas para a nossa geração, com as pressões vindas de Bruxelas a pretenderem mostrar que qualquer esboço de alternativa à austeridade nos irá sair cara, importa nunca desistir e ter bem presente a célebre frase de Saramago: “sabemos muito mais do que julgamos, podemos muito mais do que imaginamos”. Para discutir estes e outros temas e para pensar como podemos conquistar esse mundo justo que ambicionamos, o Socialismo, os Jovens do Bloco realizarão de 3 a 8 de agosto, em São Gião, o Acampamento Liberdade. É um espaço de liberdade, reflexão, debate e festa, em que tentamos juntar todas as pessoas interessadas em pensar e criar alternativas ao capitalismo. Inscreve-te!

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Nacional

Estivadores, não estais sozinhos Luís Bento Os estivadores do Porto de Lisboa deram, nos últimos meses, voz a uma luta que deveria ter sido travada por toda a classe operária do país: a luta contra a precariedade. Revoltando-se contra a ditadura do capital, os estivadores não se mantiveram submissos e lideraram um movimento contra a precariedade, a chantagem dos patrões e uma imprensa tendenciosa que sempre protegeu aqueles que exploram e se aproveitam do trabalho de uma classe inteira. Uma luta para a qual se mobilizaram os estudantes e vários outros setores da sociedade, mas que continua a ser insuficiente para defender o trabalho com direitos, digno e justamente remunerado. Infelizmente, este não é problema que se limita ao Porto de Lisboa. A precariedade afeta estivadores de todos os portos do país e da Europa, desde Sines a Leixões e de Pireu a Estocolmo, que gritam por socorro a cada dia que passa. Trabalham em condições tão ou mais precárias que os companheiros do porto de Lisboa, mas não conseguem protestar da mesma maneira devido à repressão e às ameaças de que são alvo por parte dos patrões. Depois de uma greve parcial que durou várias semanas, a luta dos estivadores terminou com um acordo que pode ser considerado uma vitória para os trabalhadores, embora ainda insuficiente. É preciso estender este acordo a todos os portos do país! A Porlis, empresa de trabalho temporário responsável por se apropriar de grande parte dos seus salários, ficou impedida de contratar novos trabalhadores precários e obrigada a resolver a situação dos atuais. Foi adotada uma nova tabela salarial com dez níveis e estipulado um regime de progressão na carreira em função dos anos de serviço e do mérito. Todos nós conhecemos amigos ou familiares que já passaram ou que ainda se encontram nesta situação. A precariedade assume várias formas, seja pela inexistência de contratos coletivos, pelas empresas de trabalho temporário que se apropriam do salário de quem realmente trabalha, pelos estágios não remunerados (uma nova forma de escravatura moderna) ou até pelos falsos recibos verdes. É através de todos estes instrumentos (e muitos outros) que a burguesia consegue

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aumentar de forma brutal os seus lucros, à custa da exploração de uma classe inteira e da apropriação dos salários dos trabalhadores. Só baixando salários, eliminando direitos, como o subsídio de férias e de Natal, ou aumentando os horários de trabalho é que a burguesia consegue manter a acumulação de capital no topo da pirâmide. Não podemos deixar que as conquistas realizadas pela classe operária depois do 25 de abril, sejam agora destruídas por uma burguesia sedenta de aumentar os seus lucros à custa da exploração dos operários. Depois de anos de humilhação por parte do governo da Direita e da troika, que se limitaram a atacar os direitos dos trabalhadores, chegou a altura de exigirmos aquilo que é nosso por direito: o fecho imediato de todas as empresas de trabalho temporário, que se apropriam dos rendimentos dos trabalhadores; o fim dos falsos recibos verdes, que obrigam os trabalhadores a pagar a sua própria Segurança Social, mesmo quando já recebem um salário demasiado baixo para viver com dignidade; o término de todos os estágios não remunerados, que são nada mais nada menos que uma forma de trabalho gratuito; e a substituição de todos os contratos quinzenais, semanais e até diários

por contratos de trabalho permanentes que permitam aos trabalhadores terem uma vida mais estável e digna. Só a união de vários setores da sociedade pode permitir que estas reivindicações sejam conquistadas. A luta contra a precariedade e por um trabalho digno com direitos não é apenas dos estivadores, mas de todos os restantes trabalhadores e dos estudantes, que mais tarde ou mais cedo enfrentarão este flagelo nas relações laborais. A unidade dos trabalhadores e dos estudantes na luta contra a precariedade é fundamental. Sem força nas ruas, o patrão não recua. Só unindo todos os trabalhadores na luta por uma causa que é de todos, a da luta contra a precariedade, e vindo para as ruas, é que poderemos marcar a nossa posição e vencer as nossas lutas. A manifestação contra a precariedade do dia 16 de junho, convocada pelo sindicato dos estivadores, foi apenas o primeiro passo de uma luta que se prevê longa. Ganhámos uma batalha mas ainda estamos longe de ganhar a guerra. Precários de todo o mundo, uni-vos!

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Educação

Regime Fundacional: quando os privados se apoderam do ensino público Márcia Silva Pereira Em 2007, foi publicado o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, onde surgiu a possibilidade das instituições de ensino superior públicas se tornarem fundações de direito privado, mediante aprovação do Governo. Desde essa data, já observámos a passagem a este regime da Universidade do Porto, da Universidade de Aveiro, do ISCTE e da Universidade do Minho. A próxima será, ainda este ano, a Universidade Nova de Lisboa. Nenhuma destas mudanças foi feita por unanimidade nem sem luta: na Universidade do Minho, foram convocados referendos internos em que o “não” venceu sempre, muitas vezes com uma larga margem. Na

Universidade Nova de Lisboa, o Conselho da Faculdade de Ciências e Tecnologias opôs-se fortemente, particularmente os seus docentes. Surgiu também um movimento de alunos da UNL, chamado Não Vai Ter Fundação, que organizou diversas atividades, um abaixo-assinado e um manifesto subscrito por professores, investigadores e alunos. Mas porque é que as Universidades não devem passar a este regime? Quais as suas implicações e consequências práticas? A passagem das universidades a Fundação vem na sequência da visão progressivamente mercantil do ensino, em oposição à sua orientação para a «criação, transmissão e difusão da cultura, do saber e da ciência e tecnologia, através da articulação do estudo, do ensino, da investigação e do desenvolvimento experimental», como é referido no RJIES. É uma óptica semelhante àquela que observámos na redução da duração dos diferentes ciclos de ensino superior no Processo de Bolonha: o foco não é a melhoria da qualidade do ensino - tendo até o efeito contrário através da compilação de diversas cadeiras num currículo insuficiente -, mas sim o aumento da competitividade, pondo em causa o primeiro. Um dos principais argumentos, se não o principal, defendido a favor do regime fundacional baseia-se no plano financeiro e na obtenção de novas fontes de financiamen-

entidades privadas cujos objectivos, nomeadamente a maximização de lucro, colidem com os de uma instituição de ensino público. Porque é que uma empresa investe sem qualquer retorno? O segundo argumento prende-se com a necessidade de maior flexibilidade no que toca à gestão do património e dos seus recursos humanos de forma a continuar a subida no plano internacional. O que acontece é que um dos principais órgãos de gestão passa a ser um Conselho de Curadores, composto por 5 indivíduos externos à instituição a quem compete homologar decisões do Conselho Geral no que toca à aprovação

de planos estratégicos, das linhas gerais de orientação da instituição no plano científico, pedagógico, financeiro e patrimonial, ou até mesmo no que toca à criação, transformação ou extinção de unidades orgânicas. Assim, este órgão posiciona-se acima tanto do Conselho de Gestão como do Conselho Geral, ou seja, acima dos representantes dos estudantes, dos docentes, dos investigadores e dos não-docentes. Porque é que estas «personalidades de elevado mérito e experiência profissional», como é referido no RJIES, devem ser órgãos de tomada de decisão numa instituição estatal? Qual é que era

o mérito, por exemplo, de Ricardo Salgado para que tenha sido eleito para o Conselho de Curadores da Universidade de Aveiro? O que é que o qualificava em particular para decidir sobre ciência ou pedagogia? Para além disto, o vínculo laboral para novos docentes muda: passam a ter um contracto de trabalho individual em vez do que seria anteriormente um regime de contracto de trabalho em funções públicas. Os direitos e especificidades da carreira de docente na função pública são postos em causa, sendo exactamente esta precarização a maior consequência observada no ISCTE desde a sua transição a fundação.

A perda de autonomia científica, o colocar em risco do ensino de conteúdos sem uma óptica directamente lucrativa, ou a precarização da profissão de docente são apenas algumas das consequências deste processo. Abertas as portas ao corporativismo, a estrutura do ensino, e consequentemente da sociedade que queremos, é assim posta em causa. Porquê ser conivente com o afastamento do que acreditamos que deve ser o sistema de ensino público quando nos podemos posicionar aberta e activamente contra este regime?

to no contexto do desinvestimento público no Ensino Superior. Aqui, a dependência face ao Estado é substituída pela dependência de interesses privados, permitindo que mais de 50% do seu orçamento seja proveniente de

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Trabalho Jovem

A teoria marxista, os jovens e os sindicatos: passado e presente Afonso Jantarada Os sindicatos são, na concepção marxista da sociedade, os órgãos de resistência da classe operária contra a burguesia. Para compreender melhor o pensamento dos vários teorizadores do Socialismo é preciso ter em conta os diferentes períodos históricos em que viveram: O contacto com o sindicalismo de Marx e Engels é necessariamente diferente do contacto que Lenin e Trotsky tiveram. Karl Marx debruçou-se sobre a função dos sindicatos na luta de classes, nomeadamente na sua obra “Miséria da Filosofia”. Neste trabalho Marx completa a ideia de Engels de que os sindicatos seriam uma “ escola de socialismo” e diz ainda que o principal objectivo dos sindicatos era também de ajudar a construir uma revolução social, no sentido de construir uma sociedade sem exploradores nem explorados. Marx também afirma que é a luta sindical que faz com que a classe trabalhadora deixe de ser uma classe “ em si” e passe a ser uma classe “ para si”, transformadora da sociedade lutando contra o capital e a burguesia. Engels analisava a sociedade capitalista não só como uma competição entre os capitalistas para conseguirem novos mercados, mas também como um sistema que criava as condições para que houvesse competição entre os trabalhadores, para conseguirem um emprego, trabalho a jorna, como membros dum exercito de desempregados que deflacionavam o salario. O sindicato, segundo Engels, seria uma forma de abater essa competição entre trabalhadores e trabalhadoras, organizando-as no objectivo de atingir os seus interesses comuns., concertados num programa laboral e numa pratica de luta revolucionaria. Também Lenin e Trotsky fizeram a sua análise sobre a importância dos sindicatos para a luta de classes concordando com Engels e Marx na ideia dos sindicatos serem escolas de socialismo para os trabalhadores e analisando como as conclusões destes poderiam cumprir uma táctica revolucionária. Os sindicatos são uma ferramenta de organização da classe operária, que são fundamentais na luta por uma sociedade sem classes e com a economia planificada. ´ Actualmente, o capitalismo rompeu as

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fronteiras do estado-nação tornou-se global. Esta globalização capitalista nivelou por baixo as relações laborais por todo o mundo, havendo cada vez mais uma pressão para baixar os salários, precarizar as relações laborais e privatizar os sectores principais da economia. A social-democracia capitulou face ao liberalismo sendo muitas vezes os Partidos Socialistas a implementar leis que desregulam o mercado de trabalho. O TTIP e o CETA, tratados comerciais entre a EU e os EUA e o Canadá respectivamente, que destroem a regulação do ponto de vista laboral, institucional e ambiental. Neste cenário de destruição das conquistas da classe trabalhadora, a mobilização dos trabalhadores através dos sindicatos é uma das formas de enfrentar os interesses do capital. Recentemente o sindicato dos estivadores deu um exemplo a toda a classe trabalhadora. Mostrou que um sindicato combativo pode realmente levar as suas reivindicações a bom porto, contra a normalização da precariedade laboral e contra os interesses da burguesia. A questão principal é saber como reproduzir o exemplo de luta sindical dos estivadores em toda a sociedade. Nenhum partido de esquerda pode achar que os trabalhadores se vão organizar espontaneamente e que a sua função no movimento deve ser apenas de observação e consultoria. Se um partido representa a classe operária tem, de apoiar e incentivar a organização da mesma, apresentando o seu programa e acompanhando os desenvolvimentos inerentes aos movimentos sociais, numa posição vanguardista que não atrasa os movimentos através duma posição retardatária ou retaguardista. Um verdadeiro partido revolucionário deve ser a vanguarda dos trabalhadores e ter vários activistas que influenciem os seus e as suas camaradas a organizarem-se para defender os seus direitos. É este o principal papel de um revolucionário ou de uma revolucionária, presente num sindicato. Esta ofensiva do capitalismo global formou aquilo que podemos chamar a nova geração. Hoje em dia a maior parte dos e das jovens até aos 30 anos ou está desempregado\a, em empregos part-time, é precário a falsos recibos verdes ou ganha

muito próximo do salário mínimo nacional. A dificuldade de arranjar o primeiro trabalho atomiza os jovens trabalhadores que, sem nenhuma força sindical por trás e com a necessidade de ganhar direito para sobreviver, Sendo assim é imperativo que os jovens se tendam a sindicalizar e a participar em movimentos dos trabalhadores e das trabalhadoras. A defesa da contratação colectiva, o aumento do salário, a proibição dos despedimentos sem justa causa, são exemplos de reivindicações que devem unir os jovens trabalhadores. A própria CGTP – a central sindical portuguesa que provavelmente embarga a maior parte dos trabalhadores portugueses – possui uma secção chamada InterJovem que é responsabilizada pela sindicalização dos trabalhadores e as trabalhadoras mais jovens. A questão da solidariedade de classe entre trabalhadores e trabalhadoras mais jovens e mais velhos deve também ser algo a ter em conta e a ser trabalhado pelas forças sindicais progressivas como a CGTP, uma vez que a burguesia tudo fará para dividir os trabalhadores metendo os mais velhos contra os mais novos. Concluísse então que é nos momentos de maior ataque aos direitos laborais que os sindicatos têm mais força enquanto organizações da classe dos trabalhadores e que nós, os e as jovens, devemos ter um papel activo na luta pelo direito ao trabalho.

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A luta toda

Contra-hegemonia e movimento Gonçalo Pessa A força política das ideias contra-hegemónicas reside na capacidade dos grupos que as sustentam de ocuparem o espaço público, de criarem organização e mobilização em torno delas. No entanto, nenhuma ideia transformadora consegue fazer o seu caminho na disputa da hegemonia e do senso-comum, nem criar organização e mobilização popular, se se circunscreve à prática política como a tradicionalmente conhecemos, na redoma da política institudcionalizada. Deste modo, a força política das ideias anti-sistémicas reside não apenas na construção de um partido que dispute o poder e o estado, e que no dia-a-dia crie condições favoráveis no plano institucional, mas igualmente na constante catalização de movimentos sociais, criadores de espaços de contra-cultura e combate político que produzam um novo protagonismo popular. Movimentos que levem a política a invadir todos os lugares, a invadir o quotidiano e a transformar as nossas vidas, a combater todas as formas de dominação em todos os espaços, no trabalho e nas relações de género, na estética e nos detalhes da vida social. A construção de movimentos sociais, os velhos e os novos mo-

vimentos, os globais e os locais, os setoriais para as causas singulares e os abrangentes, que criem espaços de mediação de sensibilidades e despoletem protestos de massas, é uma experiência fundamental de ativismo e militância e uma necessidade para quem se compromete com a construção do outro mundo que queremos. O desenvolvimento de uma teoria e prática política que sustente o movimento, capaz de polarizar em torno da ideia de uma outra sociedade, de uma alternativa socialista ao capitalismo, exige ideias à medida do seu tempo, das circunstâncias, das relações de forças. Para fortalecermos os sindicatos, os movimentos de precários, de estudantes, os movimentos feministas e LGBT precisamos de ajustar a nossa proposta e prática política à consciência das massas e às caraterísticas do alvo político. Se essa teoria e prática, em vez de se enquistar na paixão por si próprio e pela estética dos discursos que produz, pretende mesmo operar uma transformação política total, precisa de ser evolutiva, ou será falhada. Procurar construir movimento social norteando a sua participação a partir de teorias pronto-a-vestir, com uma cartilha rígida

construída por um corpo dito vanguardista e uma ideia do que é o revolucionário-modelo em nome de um socialismo-puro é uma estratégia falhada à partida, fecha o movimento e e não traz nada à luta popular. A ideia de que não é possível ao proletariado controlar o poder político sem que haja “correias de transmissão, que vão da vanguarda às massas trabalhadoras” é uma ideia obsoleta. O movimento social constrói-se do voluntarismo dos seus e das suas ativistas, e da sua capacidade de criarem sínteses e proposta política, e não da disciplina militar de participantes que olhem para o movimento como o seu destacamento atribuído pela tal vanguarda, a missão que lhes foi conferida. Hoje, num contexto de tímidas conquistas no plano institucional, a esquerda precisa de alimentar um movimento social combativo que expanda a fronteira dos possíveis, que combata a dominação em todas as esferas da vida social, e que condicione a governação. Mas só teremos um movimento social forte e agregador se participarmos nestes, não como antenas transmissoras da agenda de um partido, mas construindo-os coletivamente, da reflexão ao ativismo.

A luta LGBT ontem, hoje e amanhã Inês Ribeiro Depois das eleições legislativas, foi conseguido um acordo entre os partidos da esquerda para uma maioria parlamentar. O milhão de votos à esquerda do PS mostrou sinais de mudança. Esta conjuntura parlamentar permitiu uma série de avanços no que toca às políticas LGBT. Foi com a força do Bloco de Esquerda que se conseguiu alargar a PMA a todas as mulheres, libertando-as da tutela de um homem ou de uma doença para o acesso à maternidade. Aprovou-se a adopção e co-adopção - e retirou-se, finalmente, essa discriminação patente na lei desde a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo – o que foi um avanço no reconhecimento legal de famílias já existentes e um avanço nos direitos das crianças: direito

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a protecção legal, direito a uma família. A maternidade de substituição, embora devolvida ao parlamento para nova apreciação, foi aprovada. Mas sabemos também que ainda falta muito. Não nos é permitido ficar acomodados nem pensar que já está tudo feito, conquistado e que a igualdade existe. É urgente ter presente que as mentalidades não mudam por decreto e, ainda que tenham sido dado pequenos passos de gigante a nível da igualdade legislativa, ainda há um caminho muito grande a percorrer para atingir uma sociedade mais equitativa e de direitos iguais. No fundo é disto que se trata: nem menos, nem mais, direitos iguais. O preconceito social é prova de que ainda falta fazer muito. É o preconceito que oprime e mata tantos e tantas, diariamente, por esse mun-

do fora. É o preconceito que motiva ataques homofóbicos e transfóbicos como os de Orlando ou México e é também o preconceito que nos leva a fazer da islamofobia um veículo para atribuição das culpas a um grupo específico. Os desafios que avistam num horizonte próximo são claros: o alargamento da maternidade de substituição – vulgo “barrigas de aluguer” - a todas as pessoas - necessário, também, que a possibilidade de recorrer a este método não esteja dependente de uma condição médica- e o direito à auto-determinação de pessoas trans* e intersexo sem que tenham de estar presas sob o jugo da psiquiatria. Proteger e defender os seus direitos passa, no entanto, por mais do que garantir o direito à auto-determinação: é preciso que se garanta o acesso livre aos

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A Luta Toda

Contribuintes “ilegais” cuidados de saúde, que se facilite o acesso à mudança de nome no registo civil, que se garanta o acesso ao mercado de trabalho e também que se proteja o direito à livre expressão de género. Um pilar central neste caminho que nos falta percorrer é a educação. É urgente educação cívica, educação para a diversidade. Apostar na educação não é uma escolha, é uma necessidade. Só com a educação podemos fomentar uma sociedade onde dois homens andarem de mãos dadas na rua não é motivo de ataques de ódio, onde duas mulheres estarem abraçadas não é um gatilho para ataques homofóbicos ou piropos machistas, onde uma pessoa trans* não é morta simplesmente pelo seu direito a ser quem é. E não nos podemos demitir de travar esse combate. Se somos mais iguais na lei, queremos sê-lo também na sociedade. As marchas do orgulho LGBT fazem cada vez mais sentido, ao contrário daquilo que se pode ouvir hoje em dia. A reivindicação pública de direitos numa sociedade que nos diz que já temos demasiado é um acto revolucionário. A luta contra a homofobia e a transfobia tem de ser feminista e isto tem de ser claro. Não se faz este combate só para uns. Faz-se para todos e todas. E não desistimos, vamos à luta! We’re here, we’re queer, we’re not giving up!

Qualquer trabalhador pobre vê na imi-

gração uma esperança para melhorar a sua

condição de vida e a dos seus familiares.

Mas não imagina como o processo de legalização, em Portugal, será longo e dis-

Angela Sankara foram alteradas (Lei n.º29/2012, de 9 de

agosto); Decreto Regulamentar n.º2/2013, de 18 de março).

Atualmente, uma pessoa com interesse

em estabelecer-se em Portugal enfrentará

guesas de seus países, Vistos de Turismo.

Um visto deste tipo “destina-se a permitir

a entrada em Portugal para fins que, sendo aceites pelas autoridades competentes,

(...), ex. trânsito, turismo, visita ou acompanhamento de familiares que sejam titulares de Visto de Estada Temporária (...)

com prazo de validade que pode ir até um ano.”, ou seja, não permite a exerção de atividade profissional.

Para assinar contrato, o cidadão tem

que possuir uma Autorização de Residência e para possuir uma Autorização de

desenfreada.

Mas, com o início da crise, as leis que permitiram a legalização de tantos imigrantes

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rias não são pagas, os descontos para a Segurança Social, em muitos casos, não

são realizados; em suma, a lei atual incentiva o o desrespeito pelos direitos do trabalhador previstos no Código de Trabalho.

Mais ainda: esta situação, por colocar em

competição, no mercado de trabalho, tra-

balhadores “imigrantes” e “nacionais” com diferentes direitos, permite o rebaixamento dos salários de toda a classe trabalhadora.

É necessária uma revisão da atual le-

imigrantes. Estes contribuintes “ilegais”,

torização de Residência.

Como foi explicado, durante o período

do visto de turismo o imigrante não pode

exercer atividade profissional. Claro que

não é assim na realidade. Muitos imigrantes conseguem assinar contratos de trabalho com o visto de turismo ainda em vigor, com o risco de fiscalização por parte do

Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF)

e pagamento de coimas que podem ultrapassar 1000 euros.

O imigrante que durante todo este

e veja o seu visto de turismo caducado

encontrar um patrão que assine contrato com este trabalhador “ilegal”.

Se conseguir um trabalho formal, o

nifestar o seu interesse — através da via

meses (renováveis) — foi

trabalho informal), as horas extraordiná-

peleja pela obtenção de uma simples Au-

trabalho vigente. É assim que se inicia a

balho — vistos que permitem exercer atipor períodos normalmente inferiores a 6

vínculos laborais (falsos recibos verdes ou

gislação, que nega a estes trabalhadores

imigrante terá que realizar pelo menos 6

vidade profissional em Território Nacional

Os salários dos trabalhadores

são miseráveis, as condições de trabalho

Residência precisa de ter um contrato de

obras públicas como a Expo 98. Durante

esta época a atribuição de Vistos de Tra-

Os patrões são favorecidos com esta

são altamente precárias, assim como os

gados a solicitar, nas Embaixadas Portu-

tem duas opções: regressar ao seu país ou

quência do desenvolvimento de grandes

cia repetidamente negados pelo SEF.

faz com que os imigrantes se vejam obri-

tos de Trabalho é quase inexistente, o que

zação dos imigrantes teve o seu apogeu

sidade de mão-de-obra barata, conse-

seus pedidos de Autorização de Residên-

situação

período não tenha assinado um contrato

na década de 90. O país via-se na neces-

somam já anos de descontos mas vêem os

grandes dificuldades. A concessão de Vis-

pendioso.

A facilitação nos processos de legali-

descontar para o Estado. Vários imigrantes

a cidadania pelo simples facto de serem que sustentam o Estado exatamente da

mesma forma que os trabalhadores “nacionais”, têm de ter os mesmos direitos

que os restantes trabalhadores! Mas uma alteração legislativa deste tipo, que prejudica o Capital e beneficia o Trabalho, só pode ser conseguida com luta. Essa luta,

naturalmente, deve ser encabeçada pelos

imigrantes organizados, mas não triunfará

a menos que as organizações de trabalhadores mais amplas — sindicatos e partidos de esquerda — a travem lado-a-lado com

os imigrantes. Ao fazer isso, essas organizações não estarão a fazer mais do que

aquilo que lhes compete: defender toda a classe trabalhadora contra a burguesia e o seu Estado.

meses de descontos para que possa malaboral (Art. 88) — em permanecer legalmente em Portugal. Aqui surge o double

standard das políticas legislativas: estes cidadãos são considerados “ilegais” mas o rótulo desvanece sempre que se trata de

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Capa

A austeridade e a luta de classes Filipe Teles “The crisis creates situations which are dangerous in the short run, since the various strata of the population are not all capable of orienting themselves equally swiftly, or of reorganizing with the same rythm. The traditional ruling class, which has numerous trained cadres, changes men and programmes and, with greater speed than is achieved by subordinate classes, reabsorbs the control that was slipping from it’s grasp. Perhaps it may make sacrifices, and expose itself to an uncertain future by demagogic promises; but it retains power, reinforces it for the time being, and uses it to crush it’s adversary and disperse his leading cadres, who cannot be very numerous or highly trained.” – Antonio Gramsci. O termo ‘austeridade’ cobre uma pluralidade de vícios. Para a direita, o argumento é simples: não podemos viver acima das nossas possibilidades e a solidez financeira significa a liquidação da dívida o mais rápido possível para nos livrarmos da intervenção externa, embora já tenhamos visto que, após anos de cortes nas despesas e de aumento dos impostos, as dívidas não foram reduzidas. É só realismo, dizem eles. Nesta versão dos factos, o Estado é visto como se fosse um lar e a austeridade não passa de um pequeno esforço, de um simples aperto no cinto por uns tempinhos para a gente se aguentar. Felizmente, a esquerda - que sabe que o Estado não se parece nada com um lar – entende a austeridade como uma transferência directa do trabalho para o capital, em que o salvamento dos bancos pelos Estados é uma das suas vertentes.O “realismo neutro” da direita tem muito que se lhe diga. De acordo com Mark Blythe “ A austeridade é uma forma voluntária de deflação, na qual se ajusta a economia através da redução de salários, preços e a despesa pública para restaurar a competitividade, que é (supostamente) melhor alcançado reduzindo os orçamentos, as dívidas e os défices dos Estados”. Todavia, a austeridade não é só a redução das despesas do Estado. Para entendermos melhor a complexidade à volta da austeridade e o que esta implica, é necessário, também,

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perceber o porquê dos constrangimentos gerais impostos pelo neoliberalismo, através da institucionalização de certas “normas” como o Tratado Orçamental e o TTIP. A resposta é submissão. Submissão aos mercados. Não se trata de meros devaneios tecnocráticos para proteger o lar. Trata-se mesmo de uma estratégia para modificar as relações de forças no capitalismo, a favor do capital, claro. Por mais que se reduzam as despesas sociais do Estado, por mais que se corte na Educação e na Saúde e por mais que se despeçam funcionários públicos, a probabilidade que as despesas dos Estados sejam efectivamente diminuídas nos próximos 10 anos é muito reduzida. Num período de crise constante como aquele em que vivemos é altamente im-

provável que isso aconteça, não só porque o crescimento económico é suprimido e porque milhares são atirados para a miséria, as despesas sociais são inflacionadas (contraditório, não é?), mas sim porque os custos de investimento em relação aos lucros são maiores e como o capital é altamente dependente do Estado, necessita de incentivos constantes deste para pôr dinheiro em circulação, aumentando, assim, as próprias despesas do Estado. Mesmo em períodos de relativo dinamismo económico durante a própria crise, o formato particular da dependência que o neoliberalismo tem face ao Estado fará com que o segundo continue a aumentar a sua despesa. Portanto, a austeridade é um instrumento para implementar uma estratégia muito maior e que pretende : 1) Um reequilíbrio drástico e a longo prazo das economias, desviando-as do consumo e em direcção ao investimento – isto é, uma diminuição no rendimento do trabalho para uma maximização dos lucros. 2) O crescente fortalecimento da financierização da economia e por conseguinte, seguida por uma dispersão crescente da precariedade em todas as áreas das nossas vidas. 3) A recomposição das classes sociais, com maior desigualdade e estratificação entre e dentro destas.

4) A crescente penetração das empresas no Estado 5) A reorganização do Estado, desviando-se do conhecido Estado social para uma instituição mais punitiva e coerciva 6) A disseminação de uma cultura ou de várias culturas que valorizam a hierarquia, a competitividade e um certo sadismo para com os mais vulneráveis. Nem todo este processo está sob o controlo dos estados-nação, mas estes antecipam-se, organizam-se e promovem-no de modo crucial. Por isso é que o termo austeridade tem um uso crucial para a implementação do acima descrito: dá um nome político ao processo e identifica o papel político na sua formação. A austeridade é justificada como uma estratégia apenas económica e financeira, em resposta a uma crise. Pagamos a dívida,

os investidores ganham confiança numa suposta condição económica no futuro e começam a investir – gerando crescimento económico e emprego. Se a austeridade fosse só uma tentativa de lidar com a crise económica, já teria terminado. E teria falhado. Contudo esta crise capitalista não é apenas económica. É inevitavelmente política porque o Estado está de tal modo envolvido na organização económica, que, escolhendo salvar o sistema bancário, esta torna-se numa crise iminentemente política. Houve quem declarasse a morte do neoliberalismo como ideologia e modelo económico no inicio da crise, por achar, superfluamente, que este se reduzia ao fanatismo do mercado livre e desregulamentado. Porém, o neoliberalismo não se afirma apenas como uma simples reiteração dos princípios clássicos do liberalismo, mas sim, como uma reconfiguração autoritária da própria ideologia clássica liberal, que já de si nunca foi lá muito favorável à democracia. Como regra, os liberais mantêm uma estrita distinção entre liberalismo e democracia. Uma sociedade liberal pode, ou não, ser democrática. A liberdade primordial para os liberais é a liberdade de participação no mercado, nas suas transações, na liberdade de comprar e vender nos termos da suposta ordem

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Capa

espontânea do mercado livre, liberdade para estar à mercê da “ blind force of social process” (como uma vez pôs Hayek), que é o mercado livre. No entanto, esta força cega não passa dum aparato. A própria frase implica uma visão da economia dirigida por um sistema natural, brutal e sem misericórdia. Uma espécie de sistema de selecção natural, que tem tudo de artificial. É um sistema que tem que ser fixado por um regime legal. Um sistema legal neoliberal é uma ordem que regula a economia extensivamente, que é altamente intervencionista na organização da dominação empresarial e que, por isso, exclui a possibilidade de qualquer planeamento económico sem ser esse. Que liberdade tão miserável esta. Portanto, é um modo de organização legal que não só protege a ordem do mercado de tentativas populares para o subordinar – punindo severamente quem tentar subverter essa ordem - como tenta criar “sujeitos neoliberais”. Lembram-se da enorme propaganda de empreendorismo que o Governo de Passos Coelho incentivou? Lembram-se dos grandes gurus da auto ajuda, Miguel Gonçalves, Miguel Forjaz e tantos outros, que, de repente, vieram basicamente dizer que a culpa de estarmos desempregados era nossa ? E falar de classes no neoliberalismo? Ai que isso é um conceito comunista. A senhora Thatcher era conhecida por dizer “there is no such as society”, só indivíduos e famílias. A tentativa de menorizar o conceito tinha um objectivo político claro. A mensagem que a senhora queria passar era que a “sociedade” era composta, somente, por unidades empresariais, maximizadoras do lucro. É o tal self interest, que eles tanto nos querem fazer crer que o ser humano é egoísta e pronto. Não há volta a dar, dizem eles. Os neoliberais têm

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medo do conceito de classe, porque este vai contra a sua teoria social. Têm que nos fazer crer que não existem formas colectivas de organização que nada tenham de empresarial, de busca do lucro. Admiti-lo (que existem classes) seria autorizar a perpetuação e expansão de formas de organização colectiva, que levariam à supressão da liberdade capitalista. Têm medo da nossa própria emancipação. A austeridade faz parte duma estratégia de classe, pois não poderia ser outra

coisa. Não existem pontos neutros para resolver as múltiplas crises financeiras, políticas e ideológicas. Qualquer estratégia para confrontar estes problemas estará sempre a responder a interesses sociais bem delineados. E neste caso – e como é tão frequente neste sistema capitalista a campanha foi contra o salário, contra o valor do trabalho. E todos os meios foram mobilizados: a opinião ilustre, as empresas, os comentadores, os mercados financeiros, os ministros e ex-ministros, as agências de notação, as sociedades jantaristas, os bancos, Wall Street, Downing Street, os fundos imobiliários, o FMI e a OCDE . A solução única era ( e continua a ser) a redução do salário e o colapso financeiro que iniciou a recessão já não era para aqui chamado. Como disse Francisco Louçã “dizem-nos que a ciência garante não haver outra. Reduzir o salário, porque o mercado de trabalho é muito rígido. Reduzir o salário, porque os custos são demasiado elevados. Reduzir o salário, porque é preciso restabelecer a competitividade. Reduzir o salário do reformado, mesmo que seja pouco” . E como sempre, o Estado é o maior instrumento para a implementação destas políticas. Isto é uma luta ideológica e teórica, contudo é-nos apresentada a maior parte das vezes como ciência exacta e dogmática. Dizem que os agentes económicos têm um conhecimento perfeitamente informado, agem racionalmente e só pensam no seu interesse próprio, desde que seja garantida a concorrência de mercados livres,

claro, e sem abuso regulador do Estado. De resto, a mão invisível resolve. E nós, pessoal de esquerda, é que somos idealistas! Deste modo, os mercados alcançarão o óptimo social, mesmo que esse óptimo social seja sinónimo de miséria e precariedade. É uma guerra do capital contra o trabalho que nos tem sido imposta como uma evidência da modernidade. Quantas vezes já não vimos as cotações das bolsas prejudicadas pelo anúncio de um aumento de emprego? Não é estranho que o índice principal de saúde económica sejam os próprios mercados? Esta entidade abstracta que quer transformar tudo o que é bem público em serviços, mercadorias, inclusive as próprias pessoas. Querem-nos medir apenas pela utilidade financeira e económica. São estes que mandam. E quando nós lhes damos a mão, eles tiram-nos obra. Como a expansão da comodificação é algo em sim, intrínseco ao sistema, eles agora arrancam-nos monopólios naturais.A EDP, a REN, a ANA… São as“reformas estruturais”. E, para terminar, o governo de Passos Coelho obteve com as privatizações cercca de 15 mil milhões de euros em receitas, que dão para pagar pouco mais de 1 ano de juros. Só de juros, a dívida em si nem é para aqui chamada. Pois claro que é uma estratégia de classe que tem a sua ideologia e que domina o Estado . O neoliberalismo defende uma sociedade em que o mercado é o agente principal. Defende, uma totalização mercantil das nossas vidas. E a privatização é um pilar da ideologia neoliberal, que expande sempre o domínio da mercadoria, apropriando-se de toda e qualquer região da existência humana. E a austeridade serviu para isso. Para a expansão do lucro. O capital, os mercados’não vão parar, vão querer mais. A esquerda tem que parar de pensar de pensar numa lógica meramente defensiva. Temos que pensar a longo prazo, como tem feito a classe dominante – os mercados e os seus agentes. O neoliberalismo é um sistema que – como disse acima – procura activamente criar “sujeitos neoliberais” .Infelizmente, tem conseguido. Precisamos de um processo de reconstrução socialista. Temos que complementar a luta institucional com a reconstrução de novas formas de organização social, colectivas e solidárias, por mais pequenas que sejam, para disputar a hegemonia individualista e precária.

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Internacional

O Movimento Nuit Debout Rafael Fernandes Boulair Acudiam de todo o lado, vinham de toda a parte. Eram resistentes de longa data ou principiantes na matéria. Chegavam à Place de la République movidos por uma simples máxima: depois da manifestação, não voltavam para casa. Foi assim no dia 31 de março, dia em que o movimento Nuit Debout tomou forma. Tinha-o precedido a maior manifestação contra a lei do trabalho que, nesse mesmo dia, trouxe um milhão de pessoas para a rua. A França estava a viver um novo ciclo de lutas sociais. À raiz do conflito esteve o anúncio da lei de Myriam El Komri, que previa o fim das 35 horas, a redução das indemnizações por despedimento, a redução do pagamento pelas horas extraordinárias. Em suma, o reforço da precarização das relações laborais, que despoletou de imediato uma reação explosiva do mundo do trabalho. Parecerá natural para quem conhece os franceses como um povo combativo, consciente e mobilizado, mas não o é, atendendo às circunstâncias em que o movimento surge. França viveu um longo período de refluxo das lutas a partir da vitória de François Hollande nas presidenciais de 2012. Para o seu triunfo tinham contribuído as batalhas que trouxeram os trabalhadores para a rua no tempo de Sarkozy (aumento da idade da reforma). Hollande rapidamente arrefeceu os ânimos de quantos nele confiaram, entregando 40 mil milhões às grandes empresas, recusando-se a aumentar o salário mínimo e a renegociar o Tratado Orçamental, como prometido em campanha. Os quatro anos do seu mandato puseram os sindicatos à defesa e na difícil situação de terem de se virar contra o governo que ajudaram a eleger. Entretanto, o PS foi dizimado nas urnas nas autárquicas, europeias, departamentais e regionais arrastando consigo toda a esquerda para o precipício, enquanto a extrema-direita aproveitava a traição da social democracia e o vazio que esta provocou. Intelectuais do campo da reação não souberam esconder o seu regozijo por, segundo eles, a dialética de classes ter sido ultrapassada pela questão étnico-racial. O assassinato por um grupo fascista de um estudante, em junho 2013, foi apenas um sintoma do sinistro e asfixiante clima que

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se estava a esboçar. Os atentados foram a gota de água que permitiram a Marine Le Pen alcançar os 30% de votos nas regionais de 6 de dezembro. No entanto, o sofrimento social não podia ser eternamente ocultado pela questão racial. Foi-se manifestando cada vez mais em lutas locais e setoriais como a greve da Air France, que valeu a camisa a um dirigente da companhia. Essas lutas locais procuraram um denominador comum que as fizesse convergir e emergir para um combate à escala nacional.

A convergência das lutas

Neste quadro, a Lei do trabalho permitiu a nacionalização da luta e o reforço da solidariedade entre os trabalhadores. Embora imaginado por várias organizações semanas antes da manifestação, o Nuit Debout teve uma forte componente de espontaneidade. Foi o resultado do cansaço de gerações fartas de estar à defensiva face ao neoliberalismo. À primeira vista, parece-nos um movimento semelhante ao 15-M espanhol ou ao Occupy Wall Street americano. Partilha, decerto, elementos de ambos. Tem, porém, um aspeto que o singulariza: não é somente um ajuntamento de jovens indignados que decidem ocupar o espaço público para reclamarem um futuro decente. Ao analisarmos o tecido social, encontramos jovens, militantes de longa data, iludidos e desiludidos da política - há uma riqueza, uma generosidade entre gerações que é o coração e a força do movimento. Na praça, lê-se Lenine, discute-se Gramsci. Fala-se de organização, estratégia, tática. Muito longe de um movimento anarquizante e desarticulado, o Nuit Debout procura tirar as lições de outros movimentos, das suas falhas, insuficiências, para não acabar da mesma forma, esvaziando-se. É robusto e estruturado e, como tal, mais pe-

rigoso para o sistema. A sua capacidade desingrar e transformar a sociedade dependerá da relação que estabelecerá com os sindicatos e da sua utilidade para as lutas que estão por diante. Geneticamente insubmisso, o movimento tem conhecido pressões de toda a ordem, desde cortes de luz durante da noite ao uso da força bruta por parte da polícia que é, como bem a definem os manifestantes, uma milícia do capital. O futuro do movimento será fulcral para a derrota dos planos do governo e, eventualmente, para deitar a baixo o executivo, que enfrentará em Julho a sua segunda moção de censura no espaço de três meses. O Nuit Debout, entretanto expandido a uma série de cidades como Marselha, Toulouse, Estrasgurgo, Lion, Grenoble, Lille, Brest, etc será útil para o aprofundamento do debate sobre a educação, a saúde, o estado social francês e o caminho para a sua reconstrução. Mas deve ir mais além. Encerra a oportunidade do debate sobre a constituição francesa e a sua refundação, no sentido da proposta feita pelo Mouvement Pour La Sixième République, que reclama a convocação de uma Constituinte e a elaboração de uma Constituição mais democrática e portadora de novos direitos sociais. Em suma, o Nuit Debout surge como uma absoluta inovação no sistema político e na sociedade francesa, e o seu sucesso, energia e dinamismo ajudarão os trabalhadores franceses a trilharem os caminhos do futuro .

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Cultura

Qual o poder político de uma “imagem intolerável”? Daniel Barros A expressão “imagem intolerável”, retirada de um texto do mesmo nome do filósofo francês Jacques Rancière, refere-se aqui a um tipo de imagem, seja ela de uma origem artística ou fotojornalística, cujo objectivo é deslocar um acontecimento originário de injustiça, horror ou dor, para o presente do seu espectador numa lógica de confronto que procura o choque. Uma das coisas que o texto procura perceber é qual o potencial político desta prática para a consciencialização e emancipação política do seu receptor e qual o seu lugar no nosso sistema de informação clássico capitalista. Um exemplo chave de imagem intolerá-

vel é a série de fotografia que a artista americana Martha Rosler realizou nos anos 60 e 70 intitulada Bringing the War Home. Estas apresentam-nos, através da montagem, civis vietnamitas feridos e mortos por soldados americanos em luxuosos lofts americanos, sendo imagens icónicas do movimento de protesto à Guerra do Vietname e da crítica ao imperialismo dos Estados Unidos da América. Mas qual é o poder político desta produção? A imagem procura a culpa no seu espectador (americano e contemporâneo da guerra) mas é óbvio que vai sempre encontrá-la: só se o espectador já se sentir culpado é que entende a totalidade do seu sentido. Será que este tipo de imagem tem assim tanto poder político ao reduzir o seu público-alvo a um papel passivo e culpado das barbaridades do imperialismo americano? Muito do pensamento contemporâneo pensa a condição da circulação de imagens no nosso sistema de informação como uma de excesso, onde a internet e os novos media promoveram uma acessibilidade que resultou nesse excedente de imagens onde a “verdadeira” informação se perde e os horrores da condição humana contemporânea são banalizados. Essa visão crítica, muitas vezes a funcionar como denúncia da nossa condição de consumidor de comodidades e imagens, e ancorada no pensamento marxista crítico do fetichismo, só reforça a he-

gemonia dos media dominantes. Porque os media controlados pelas elites globais não nos sufocam com um excedente de imagens – estas, mesmo quando são diferentes formalmente, têm o mesmo significado e são

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escolhidas ideologicamente para servir uma narrativa. Um exemplo próximo de nós é a escolha de vários jornais internacionais e portugueses nos dois últimos anos de associar notícias de terrorismo feito por fundamentalistas religiosos com fotografias de campos de refugiados sírios. O horror não é banalizado através destas imagens, é codificado: massas anónimas transformam-se em números que são interpretados pelas caras que ou são as elites ou estão ao serviço destas. Algumas das imagens alternativas propostas por essa visão crítica do “excesso” do sistema de informação tradicional não funcionam como alternativa. Procurar o confronto com o espectador, culpabilizando-o, só replica a condição deste como consumidor passivo de uma imagem autoritária, como no caso das fotografias de Martha Rosler, referida atrás. Uma imagem que pretende ter verdadeiro poder político tem de procurar a mudança, oferecer uma verdadeira alternativa de sistema de informação e não tratar do seu espectador como um derrotista culpado. Mas as imagens da arte política não têm de entrar nesse beco sem saída, podendo oferecer essa mudança de paradigma. Tem de, primeiramente, assumir uma outra relação com o seu espectador: uma elaborada com base no pressuposto que a imagem (e o artista) e o seu alvo podem estar num pé de igualdade e juntos construírem um senso-comum. Nesse senso-comum, não existe visão privilegiada e autoritária e o que se pretende é a emancipação perante a sociedade de espectáculo fetichista. O que pode ser, no entanto, esta al-

ternativa? Voltando para o texto do Rancière, uma obra do artista chileno Alfredo Jaar que também trata os horrores resultantes do imperialismo pode apontar-nos para esse caminho. Em The Eyes of Gutete Emerita (1996), o espectador é confrontado com o olhar de uma das testemunhas dos massacres no Ruanda em vez da atrocidade intolerável em si. A narrativa textual, que se restringe aos factos do massacre, e a fotografia, que apresenta apenas a cara serena de Gutete Emerita, nega-nos a “pornografia” do intolerável, muitas vezes comodificada como mercadoria na nossa sociedade. Assim, permite essa construção de um senso-comum emancipador onde a obra não é autoritária e acusativa do espectador e oferece uma alternativa de circulação de imagem ao sistema de informação clássico.

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Teoria

A classe ainda conta? João Mineiro No início dos anos 90, extasiado com o como é que as mutações na estrutura de tribuindo para um olhar multidimensionadesmoronamento do designado “socialis- classes ajudam a explicar a emergência da lidade do processo de estratificação social. mo real”, Fukuyama anunciava que tínha- precariedade e a sua relação com as desiNo entanto, a estrutura de classes que mos chegado ao fim da história. Passadas gualdades? Para pensar algumas respostas hoje espelha as desigualdades, mantendo mais de duas décadas, esse argumento é vale a pena voltar às principais teorias das os seus traços fundamentais – exploração simultaneamente pouco credível embo- classes, que aqui sinalizo de forma muito económica em Marx; estratificação social ra estranhamente forte no senso comum, sucinta. em Weber -, sofreu alterações que importa na media em que a maioria das pessoas Como se sabe, as propostas desenvol- considerar. Erik Olin Wright, um sociólogo não parece imaginar a possibilidade real vidas por Karl Marx e por Max Weber fo- de inspiração marxista, afirmou mais rede uma alternativa ao modo de produção ram duas influências estruturantes para as centemente que a evolução das relações capitalista. O crítico Fredic Jameson cha- análises da estratificação social. Para Marx sociais de produção fez emergir “lugares ma mesmo a atenção para o facto de que as classes sociais evidenciavam-se pela contraditórios de classe”[3], isto é, posihoje, para a maioria das pessoas, o fim posição social dos indivíduções sociais na pro“[...] a estrutura de classes dução intermédias do mundo parece bastante mais credível os face aos meios de produque hoje espelha as que o fim do capitalismo. Paralelamente ção. Na sua perspetiva, o que entre o proprietáaos que anunciaram o capitalismo como caracterizava as sociedades desigualdades, mantendo rio e o trabalhador último estado da organização humana, a capitalistas modernas era menos qualificado os seus traços fundaressaca do Consenso de Washington ou o a divisão da sociedade em e com menos poder mentais - exploração deslumbre com os avanços tecnológicos, dois campos absolutamenda empresa. Seguneconómica em Marx; fizeram ainda com que outros anuncias- te distintos: a burguesia e o do os seus estudos estratificação social em sem igualmente o “fim das classes” ou o proletariado. O proletariado 85% a 90% dos traWeber -, sofreu alterações balhadores pertence “fim do trabalho”. Que sentido farão essas seria a classe que nada mais que importa considerar.” à categoria dos que análises e em que medida, em plena crise tinha além da sua força de capitalista, não continua a classe social e trabalho. Ele dependia dos são forçados a vena organização do trabalho a constituir um meios de produção que a burguesia tinha der a sua força de trabalho[4]. Contudo, instrumento central para compreender- em sua posse, sendo por ela explorado são equacionadas duas novas variáveis mos as formas de organização política, a partir da apropriação da mais-valia em além da propriedade: as relações com a económica e social do mundo contempo- forma de trabalho assalariado. A relação autoridade (ou recursos organizacionais) râneo? Como olhar para este contexto de de classes em Marx é portanto antagónica que representam toda a panóplia de lucrise do capitalismo com a curiosidade, a e conflitual. Já a tese de Max Weber traz gares contraditórios e hierarquizados de profundidade e a urgência de emancipa- novos elementos ao debate, na medida em classe em que mesmo quem vende a sua ção que o nosso tempo exige? que o seu conceito central para compre- força de trabalho exerce relações de poder Num livro anterior à crise, Paul Bou- ender a estratificação social é o conceito sobre outros trabalhadores, executando ffartigue[1] retomava uma questão de de poder. Identifica, através desse concei- funções de autoridade que os proprietáLouis Chauvel[2], transformanda afirmati- to, três tipos de estratificação: as classes, rios cedem; e a posse de competências vamente: estaríamos a assistir ao “regres- baseadas nas condições e possibilidades técnicas e de perícia (ou os recursos culso das classes sociais”. Nessa obra, vários económicas dos indivíduos; os grupos de turais) que se traduzem em posições difeautores conceptualizam as desigualdades, status, baseados em valores como a honra renciadas no trabalho e na produção. De as categorias sociais e de classes, proble- ou o prestígio social; e os partidos polí- facto, as fronteiras entre a burguesia e o matizado igualmente as múltiplas formas ticos, baseado no posicionamento parti- proletariado tornaram-se mais ramificade dominação (de génelhado dos indivíduos das, embora a existência de diversos lugaro, na etnia, na orientação em função de objeti- res contraditórios (sub-chefes, responsá“Como olhar para este sexual, no território...). vos ou interesses co- veis de equipa, coordenadores de secção, contexto de crise do Em que media, então, muns. Dentro destas supervisores, etc.), mesmo que podendo capitalismo com a curicontinua a classe social osidade, a profundidade configurações há in- dividir subjetivamente os de baixo, não a ser um mecanismo pridivíduos e grupos que esmorece as rígidas desigualdades de dise a urgência de emancivilegiado para explicar as são positivamente ou tribuição de rendimento, salário e direitos pação que o nosso tempo desigualdades? E de que negativamente privi- nas empresas. exige?” classes e setores de caslegiados em cada um Também para o sociólogo francês se falamos? Como é que dos sistemas de estra- Pierre Bourdieu o capital cultural é um mea desigualdade se expressa nas institui- tificação. A abordagem weberiana inspirou canismo privilegiado para perceber como ções e na nossa própria subjetividade? E muitas teorias que se lhe seguiram, con- as classes sociais se expressam

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Teoria hoje no espaço social. Em termos ge- jovens que agora entram para o mercado rais e altamente simplificados, a sua pers- de trabalho? Por um lado, ter em conta a petiva assenta na ideia de que agentes so- diversidade de recursos e capitais permite ciais atuam num espaço multidimensional tomar a grelha das classes como uma fonte de posições relacionalmente definidas e a de questionamento de múltiplas desigualque correspondem deterdades. Por outro, esta minados volumes e tipos linha de pensamento “Vinte e quatro anos de capital - económico, depois do anunciado “fim proporciona uma visão cultural, social e simbódas desigualdades de da história”, é a crise e o licos[5]. A prática social classe que contraria a regresso dos conflitos de visão homogeneizante de um agente depende classe que parecem ser as dos jovens como “clasda posição social (volume hipóteses mais credíveis.” se geracional”, chaglobal de capital), através de uma interiorização mando a atenção para subjetiva da estrutura social que se herda a presença de várias situações que fazem e que, em última análise, molda as nossas com que diferentes juventudes estejam em perceções, representações e ações. Bour- condições desiguais no que toca ao trabadieu designa por “habitus” estas disposi- lho e ao rendimento. ções incorporadas e duráveis que não são Contudo, não é possível compreender um mero reflexo na estrutura social, na hoje o papel da estrutura de classes, sem medida em são uma “estrutura estrutura- se ter em conta as transformações ao nível da predisposta a funcionar como estrutura estruturante”[6]. Este “habitus” incorporado nos indivíduos, porque depende da posição social de origem e dos seus capitais económicos, culturais, sociais e simbólicos, é sempre um “habitus de classe”, mesmo que não mecanicista. Pierre Bourdieu demonstra como é desigual a distribuição destas quatro formas de capital, tornando-se essa distribuição de capitais um dos mecanismos privilegiados para compreender as formas, os mecanismos e a reprodução das desigualdades. Como é que estas perspetivas nos ajudam a pensar o processo de precarização de quem trabalha e em especial dos mais

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do trabalho, que atingem com particular incidência os mais jovens e, dentro destes, os menos capitalizados (nas várias dimensões). Ao contrário de algumas teses que fizeram um certo furor em alguns meios intelectuais europeus, parece hoje evidente que, ao invés de termos saído da “sociedade salarial”, o que se assiste é a uma transformação profunda da condição salarial no quadro de uma erosão dos direitos laborais. A “classe-que-vive-do-trabalho” não desapareceu, antes se ampliou, se heterogeneizou e se complexificou. Vinte e quatro anos depois do anunciado “fim da história”, é a crise e o regresso dos conflitos de classe que parecem ser

as hipóteses mais credíveis. Se o otimismo liberal do início dos anos de 1990 quis anunciar do fim da história, hoje é evidente que as transformações do capitalismo não se traduziram no fim do trabalho ou no fim da estrutura de classes como mecanismo estruturador das desigualdades e da pobreza. Pelo contrário, o nosso tempo parece ser do seu recrudescimento, e a juventude é um segmento particularmente afetado por esses dois fenómenos. Que movimentos serão hoje capazes de tomar a história nas suas mãos para as transformar, não sabemos. Mas cabe-nos a nós, ativistas empenhados num futuro pós-capitalista, ensaiá-los com generosidade. Outro mundo continua a ser possível. Estejamos nós disponíveis para lutar por ele. ________________________ [1] Paul Bouffartigue, “Le Retour des classes sociales: inégalités, dominations, conflits”, 2004. [2] Louis Chauvel, “Le retour des classes sociales?”, 2001. [3] Erik Olin Wright, “Classes”, 1985. [4] Erik Olin Wright, “Class Counts. Comparative studies in class analysis”, 1997. [5] Pierre Bourdieu, “A distinção. Uma crítica social à faculdade do juízo”, 1984. [6] Pierre Bourdieu, “Esboço de uma teoria da prática : precedido de três estudos de etnologia Cabila”, 1972.

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História

A SDN ou (des)ensaio do capitalismo global João Quartilho Na sequência do fim da 1ª Guerra Mun-

neceu à sombra das potências imperialistas

sarmamento, que não produziam resultados

Versalhes, foi também criada a primeira or-

ignorando os apelos de ajuda da Etiópia e

falsa questão, uma vez que os Estados se

dial, para além da celebração do Tratado de

ganização internacional universalista - a Sociedade das Nações. Esta tinha os seguintes

objectivos: criar uma sistema colectivo mundial de paz, gerir a dissolução dos Impérios

derrotados (alemão, otomano e colónias,

que se já se tinham libertado durante a guerra), vincular os Estados a leis internacionais,

sob ameaça de intervenção armadas, e liberalizar a economia mundial, acabando com as pretensões proteccionistas e barreiras ao comércio.

O que significavam esses mandatos no

sistema internacional? Por um lado, os Estados capitalistas criaram a ilusão de que uma plataforma multilateral, por si, alteraria

ocidentais. As agressões da Itália e do Japão,

da China, respectivamente, foram ignorados.

Aliás, os impérios lucraram com a perpetuação da guerra, ao venderem petróleo e ao

fornecerem empréstimos a estas novas potências imperialistas ou lançando as suas

forças para aproveitarem o caos geopolítico regional. O Conselho da SDN também foi

incapaz de promover o desarmamento das potências vencedoras e derrotadas por força

dos medos nacionalistas, alimentados pelos

governos liberais, conservadores e sociais-democratas, que preferiam manter um punho forte sobre as suas indústrias de armamento.

aliança temporária (entre os vencedores)

para o ataque e desarmamento dos perdedores. Era um mero jogo de xadrez, perpetuando a lógica capitalista. Cada Estado

estava interessado em manter a “sua paz”,

ou seja, manter os seus trabalhadores controlados (nacionais ou ultramarinos) através do direito securitário burguês; e manter as potências estrangeiras fora dos circuitos dos

capitalistas nacionais. Qualquer agressão a este status quo estava fora do âmbito do

sistema colectivo de paz e, por isso, desencadearia sempre uma resposta armada. Na

obra Revolução Traída, Trotsky inferiu que na verdade o objecto da SDN se restringia

a dois eixos: 1) manter o sistema de classes e de acumulação por via de uma acção,

minimamente consertada entre as potências

desmantelasse o imperialismo e a concorreria entre monopólios capitalistas. Para além disso, a guerra só voltaria a acontecer se as

lideranças dos sindicatos europeus não conseguissem ver para além da ilusão da SDN

e dos seus instrumentos. Do mesmo modo

que os trabalhadores lutaram pela “democracia” na primeira guerra, numa segunda seriam chamados para tal sob ilusões iguais ou parecidas.

No que toca à intervenção económica da

de destruição das barreiras do comércio, do

dora”, delegou nas potências imperiais (In-

O sistema colectivo de paz significava uma

so concretizar uma aspiração socialista que

e soberania, sob a capa da missão “civiliza-

nopólios e territórios manteve-se no seio da doras e a URSS não entraram na sua criação.

Deste modo, para acabar a guerra era preci-

SDN houve sinais ambivalentes. A SDN pro-

libertar os territórios destituídos de Estado

SDN, de tal modo que as potências perde-

armavam para a guerra, e não o contrário.

Em segundo lugar, a SDN, em vez de

o comportamento da suas diplomacias. No

entanto, as rivalidades pela disputa dos mo-

palpáveis. Aliás, o desarmamento era uma

glaterra, França e EUA) o seu domínio. Deste modo, manteve-se o sistema de exploração

mercantilista do trabalho, das matérias-primas e petróleo importantes para a manutenção da crescente globalização do sistema capitalista. O sistema capitalista, por força

de uma nova vaga imperialista, expandiu-se para novos mercados e a SDN foi o porto de

embarque. Por exemplo, ainda antes da fundação do Estado de Israel, o Império inglês

e a SDN ignoraram as migrações massivas

de judeus zelotos e sionistas para a Palestina, que aderiram ao sionismo. Estes tinham

o objectivo de estabelecerem colónias e de comprarem o maior número de propriedades

possível, expulsando os palestinianos que lá

viviam. Prontamente criaram milícias armadas, como a Haganah, sob a protecção do

Império inglês e das grandes dinastias judaicas capitalistas.

A SDN também foi também incapaz de

movia avidamente um pensamento liberal controlo de capitais e até de desregulação

monetária e financeira. Estes apóstolos liberais visavam acabar com a pretensão nacionalista do capital, dando-lhe escala, ao mesmo tempo que o autonomizavam do controlo

geográfico e político do Estados. Embora estas iniciativas não tenham sido sufragadas

pelos Estados, elas constituíram o cimento para a futura globalização do capitalismo

através da Organização Mundial de Comércio ou a Comunidade Económica Europeia.

Para além disso, o refluxo de proteccionismo económico, juntamente com as revoluções socialistas, impediam a globalização do

capital. Não obstante, a SDN teve iniciativas meritórias, guiadas pela crença de que a paz

não se obteria sem desenvolvimento económico e combate à pobreza, de promoção de

acções de combate à pobreza infantil, despenalização da prostituição, provimento de cuidados de saúde infanto-maternais, etc.

Assim, embora possamos apreciar a

vencedoras e 2) impedir revoluções socialis-

traçar uma intervenção hegemónica interna-

inovação histórica de uma organização uni-

Ainda assim, terá o pensamento liberal

Os EUA não entraram na SDN com receio de

trumento situacionista de distribuição dos

tas na Europa e no resto do mundo.

e social-liberal dos agentes da SDN produzido algum efeito benévolo para o mundo? Em primeiro lugar, vejamos a criação de

um sistema colectivo de paz mundial, que no seu auge levou à celebração do Pacto Briand-Kelogg (1929), que proibia o recurso

à guerra. Apesar disso, o belicismo perma-

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cional que estivesse para além dos Estados.

ficarem limitados nas suas intervenções militares externas por força do direito da SDN. Deste modo, a organização estava ferida à

nascência por falta de credibilidade internacional. As sanções económicas eram para

“inglês ver” e poucos as cumpriam, assim

como as conferências internacionais de de-

versal para a paz, no essencial foi um insmercados e das matérias-primas entre as

potências imperialistas, promovendo o imperialismo opressor da diversidade cultural

extra-ocidental e da auto-determinação, de

como cada povo pode e deve gerir os seus próprios recursos. A única alternativa foi constituir uma Internacional Socialista que

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História concorresse com a SDN. Porém, com a

ascensão dos fascismos europeus e do nacionalismo soviético, liderado por Estaline,

o movimento socialista foi crescentemente tomado por uma agenda situacionista, sem estratégia socialista para a paz e libertação dos povos.

Vamos agora ocupar-nos da América, onde sucedeu algo mais importante do que a revolução de Fevereiro [1848]: a descoberta das minas de ouro californianas. Dezoito meses após o acontecimento já é possível prever que terá efeitos mais consideráveis do que a própria descoberta da América. Ao longo de três séculos todo o comércio da Europa em direção ao Pacífico contornou, com paciência admirável, o cabo da Boa-Esperança ou o cabo Horn. Todos os projetos de praticar uma abertura no istmo do Panamá falharam devido

às rivalidades e invejas mesquinhas dos povos comerciantes. Dezoito meses após a descoberta das minas de ouro californianas, os yankees começaram já a construir uma estrada de ferro, uma grande estrada e um canal no Golfo do México. E já existe uma linha regular de barcos a vapor de Nova Iorque a Chagres, do Panamá a S. Francisco, concentrando-se no Panamá o comércio com o Pacífico e deixando de se utilizar a rota do cabo Horn. O vasto litoral da Califórnia, com 30 graus de latitude, um dos mais belos e mais férteis do mundo, por assim dizer desabitado, vai se transformando rapidamente num rico país civilizado, densamente povoado por homens de todas as raças, do yankee ao chinês, ao negro, ao índio e ao mulato, do crioulo e mestiço ao europeu. O ouro californiano corre abundante em direção à América e à costa asiática do Pacífico, e os povos bárbaros mais passivos são arrastados para o comércio mundial e para a civilização. Uma segunda vez o comércio mundial muda de direção. O que eram, na Antiguidade, Tir, Cartago e Alexandria, na Idade Média, Gênova e Veneza, e, até agora, Londres e Liverpool, a saber, os empórios do comércio mundial, serão no futuro Nova Iorque e São Francisco, São João de Nicarágua e Leão, Chagres e Panamá. O centro de gravidade do mercado mundial era a Itália, na Idade Média, a Inglaterra na era moderna, e é hoje a parte meridional da península norte-americana. A indústria e o comércio da velha Eu-

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Deslocamentos do Centro de Gravidade Mundial Karl Marx

Fevereiro de 1850 ropa terão que fazer esforços terríveis para não caírem na decadência, como aconteceu com a indústria e o comércio da Itália no século XVI, isto se a Inglaterra e a França não quiserem tornar-se o que são hoje Veneza, Gênova e a Holanda. Daqui a alguns anos teremos uma linha regular de transporte marítimo a vapor da Inglaterra a Chagres, de Chagres e São Francisco a Sidney, Cantão e Singapura. Graças ao ouro californiano e à energia inesgotável dos yankees, os dois lados do Pacífico serão em breve tão povoados e tão ativos no comércio e na indústria como o é atualmente a costa de Boston a Nova

Orleans. O oceano Pacífico desempenhará no futuro o mesmo papel que foi do Atlântico na nossa era e do Mediterrâneo na Antiguidade: o de grande via marítima do comércio mundial, e o oceano Atlântico descerá ao nível de um mar interior, como é hoje o caso do Mediterrâneo. A única probabilidade que têm os países civilizados da Europa de não caírem na mesma dependência industrial, comercial e política da Itália, da Espanha e do Portugal modernos é iniciarem uma revolução social que, enquanto ainda é tempo, adapte a economia à distribuição segundo as exigências da produção e das capacidades produtivas modernas, e permita o desenvolvimento de novas forças de produção que assegurem a superioridade da indústria européia, compensando assim os inconvenientes da sua localização geográfica. Enfim, uma curiosidade característica da China, contada pelo conhecido missionário alemão Gutzlaff. Uma excessiva população, de crescimento lento mas regular, tinha provocado, já desde há muito tempo, uma tensão violenta nas relações sociais da maior parte da nação. Em seguida vieram os ingleses, que forçaram a abertura de cinco portos ao livre comércio. Milhares de navios ingleses e americanos singraram para a China, que, em pouco temo, foi inundada de produtos britânicos e americanos baratos. A indústria chinesa, essencialmente de manufaturas, sucumbiu à concorrência do maquinismo. O inabalável Império sofreu uma crise social.

Os impostos deixaram de entrar, o Estado encontrou-se à beira da falência, a grande massa da população conheceu a completa pobreza, e revoltou-se. Acabando com a veneração aos mandarins do Imperador e aos bonzos, perseguia-os e matava-os. Hoje, o país está à beira do abismo, e talvez sob a ameaça de uma revolução violenta. Mais ainda. No seio da plebe insurreta, alguns denunciavam a miséria de uns e a riqueza de outros, exigindo nova repartição dos bens, e mesmo a supressão total da propriedade privada - e ainda hoje continuam a formular tais reivindicações. Após vinte anos de ausência, quando o sr. Gutzlaff regressou ao contacto dos civilizados e dos europeus, e ouviu falar do socialismo, exclamou aterrorizado:”Não poderei então escapar em lado nenhum a esta perniciosa doutrina? É exatamente isso o que apregoam há algum tempo muitos indivíduos da população chinesa!” É muito provável que o socialismo chinês se assemelhe ao europeu como a filosofia chinesa ao hegelianismo. Qualquer que seja a forma, podemos alegrar-nos com o fato de que o Império mais antigo e sólido do mundo tenha sido arrastado em oito anos, pelos fardos de algodão dos burgueses da Inglaterra, até a iminência de uma convulsão social que, qualquer que seja o caso, deve ter consequências importantíssimas para a civilização. E, quando os reacionários europeus, na sua já próxima fuga, chegarem enfim junto à Muralha da China, às portas que supõem abrir-se como fortaleza da reação e do conservadorismo, quem sabe se não lerão ali:

República Chinesa Liberdade, Igualdade e Fraternidade

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Tiras fora da caixa


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