A memória é uma experiência fugaz. Se contarmos múltiplas vezes a mesma estória, a narrativa, ainda que semelhante, dificilmente permanecerá imutável. Com a memória imagética não é diferente: somos atravessados por inúmeras paisagens, cenários e planos a todo momento e, mesmo se fecharmos os olhos e tentarmos reconstruir o que há pouco nos cruzou, não será possível o fazer com total fidelidade.
Gesto primordial, a linha nasce do movimento, da ação; o horizonte, da linha. Com o olhar atento em uma sociedade de acúmulos e excessos, Ana Sant’Anna e Julia da Mota nos mostram, por meio de memórias fragmentadas, apenas o essencial. Prédios, postes e praias são representados partindo do mínimo. As artistas desconstroem o mundo ao seu redor, dando vazão ao surgimento de novos cenários e geometrias vindos do movimento de um ponto que se transformou em linha e, então, em horizonte.
Com um avô amante das artes visuais, a fotografia foi introduzida quando Ana Sant’Anna ainda era muito jovem, tornando-se um suporte de conforto e experimentação no momento em que iniciou a sua prática artística nos períodos de faculdade. Convivendo com asma desde criança, o vazio sempre esteve presente na sua vida, onde, em seu quarto, havia apenas uma cama. Hoje, Ana resgata este mesmo vazio como espaço de construção do silêncio – e como um exercício de entendimento da vida. Enquanto na fotografia a artista reduz formas, quando experimenta em pintura trabalha de forma contrária: adiciona estruturas e camadas, uma dualidade que serve como força motriz para sua produção.
Composta por grande conhecimento técnico, a obra de Julia da Mota tem na aquarela o seu ponto de partida. Por meio da transparência, Julia arquiteta paisagens a partir de formas retiradas de seu imaginário urbano, tendo em
imagens sequenciais, como polípticos, vetores por onde suas narrativas se edificam. Presente tanto em suas aquarelas, quanto em monotipias, a geometria é o veículo pelo qual entende o mundo – característica alinhada aos trabalhos de um de seus mestres: Tuneu. Imersa nos ruídos da cidade grande, a busca por espaços vazios é o que dá fôlego para a artista, onde o ato de pintar e gravar é uma forma de meditação visual. O traço é como uma prova real do seu processo, assim como testemunha da sua construção poética.
Ana Sant’Anna deriva entre o mar e as esquinas da cidade, ocasionalmente coletando objetos – sementes para a nova realidade que nascerá em seu atelier. Julia da Mota submerge em memórias e coletas fotográficas da urbanidade que a circunda, experimentando cores e formas em aquarelas e gravuras. O mínimo é um convite à imaginação, e o abstrato é o que emancipa a produção das artistas, sem amarras com a representação fiel da realidade.
Oriundas de trajetórias diferentes, suas obras encontramse em panoramas infindáveis que, na fuga do excesso, apresentam diversos significados entre pigmentos, técnicas e suportes. Mergulhar em seus trabalhos é chocar-se com o acúmulo do mundo externo e entrar em um momento de pausa, de suspensão do factual. Entre registros fotográficos e coletas, as formas criadas e recortadas pelas artistas são universos que demandam tempo do observador. Um rápido olhar não é suficiente para que as portas do imaginário, escondidas em cada traço, se abram. É necessário aproximar-se e questionar cada gesto. O traço é o fio condutor de suas poéticas, assim como o que entrelaça e dá sentido aos seus trabalhos. Toda linha presente em suas produções é um horizonte de significados.
Fumo (políptico), 2016. Série Fumo
Monotipia sobre papel japonês Masa
54 x 40 cm (cada)
108 x 80 cm (conjunto)
Tiragem única
Sem título, 2016. Série Fumo
Monotipia sobre papel japonês Masa
54 x 40 cm
Tiragem única
Telégrafos (políptico), 2015
Monotipia e água-forte sobre papel Hahnemühle
20 x 15 cm (cada)
20 x 60 cm (conjunto)
Tiragem única
Ana Sant’Anna Deriva (políptico), 2020
Pigmento mineral sobre papel
14 x 21 cm (cada)
71 x 73 cm (conjunto)
Sobre a luz (políptico), 2015
Monotipia e água-forte sobre papel Hahnemühle
31 x 24 cm (cada)
31 x 96 cm (conjunto)
Tiragem única
Série Amorfos, 2020
Pigmento mineral sobre papel
10,5 x 14,8 cm / 10,5 x 7,4 cm (cada)
10,5 x 109,8 cm (conjunto)
Ana Sant’Anna Série Maré, 2021
Pigmento mineral sobre papel
42 x 29 cm (cada)
42 x 348 cm (conjunto)
Julia da Mota
Portal (políptico), 2017
Monotipia sobre papel Hahnemühle
25 x 20 cm (cada)
50 x 80 cm (conjunto)
Tiragem única
Ana Sant’Anna
Série Reminiscências, 2021
Pigmento mineral sobre papel vegetal
21 x 14 cm (cada)
21 x 167 cm (conjunto)
Ana Sant’Anna
Desanuviar (políptico), 2022
Pastel oleoso e bastão de tinta óleo
8 x 11 cm (cada)
48 x 66 cm (conjunto)
Julia da Mota Série Quando Estamos Imóveis, Estamos Algures, 2020-21 Aquarela sobre papel dimensões variáveis (aprox. 15 x 25 cm cada)
Ana Sant’Anna é artista visual, nascida e residente em Salvador, Bahia. Trabalhando com as linguagens da pintura e da fotografia, a produção da artista parte de um incômodo perante aos excessos, onde há uma fuga ao se deparar com questões referentes ao acúmulo. Essa fuga acaba por nortear sua obra à uma busca e construção de um pensamento que preza pela ideia do vazio, pela exploração do mínimo, pela tentativa de capturar a simplicidade das formas e por um desejo de extrair a essência das coisas contidas no ambiente que está ao seu redor.