Bruto

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22 DE FEVEREIRO A 6 DE ABRIL DE 2O18 D E S E G U N D A A S E X TA , D A S 1 0 H À S 1 9 H D E C U LT • U E R J GALERIA CANDIDO PORTINARI R UA S Ã O F R A N C I S CO X AV I E R , 5 2 4 MARACANÃ - RIO DE JANEIRO

bruto JULIA ARBEX • FELIPE ABDALA

CURADORIA: FERNANDA PEQUENO


A Galeria Candido Portinari é um espaço potente de difusão das artes visuais, reconhecendo, nos variados processos, linguagens e suportes artísticos contemporâneos, valores artísticos, simbólicos e culturais. Constitui-se, assim, em importante instrumento de propa-

CATALOGAÇÃO NA FONTE CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

gação das práticas institucionais que, sem criar hierarquizações entre saberes e fazeres distintos, oferece oportunidades iguais àqueles que têm nas artes um campo de

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Bruto / Julia Arbex, Felipe Abdala ; curadoria: Fernanda Pequeno. - Rio de Janeiro : UERJ, DECULT, Galeria Cândido Portinari, 2018. 28 p.

projetos, ações e pensamentos. Essa é a segunda exposição oriunda da Convocatória para Ocupação da Galeria Candido Portinari, edital públi-

ISBN 978-85-85954-72-7 Catálogo da exposição realizada no período 22 de fevereiro a 6 de abril de 2018. 1. Instalações (Arte) - Brasil - Exposições. I. Arbex, Julia. II. Abdala, Felipe. III. Pequeno, Fernanda, 1983- . IV. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Departamento Cultural. CDU 069.9:73.038.55(81)

co para a seleção de projetos culturais na UERJ, lançado no final de 2016. Com essa iniciativa inédita, procuramos ampliar o acesso democrático de artistas e curadores a uma galeria institucional equipada com recursos humanos e materiais qualificados, bem como potencializar a relação do público com a multiplicidade das práticas artísticas contemporâneas.

Bibliotecária: Regina Andrade CRB7/4051 3


Aqui o sistema é bruto

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Fernanda Pequeno

bruto, exposição de Julia Arbex e Felipe Abdala selecionada pela Convocatória para Ocupação da Galeria Candido Portinari, abarca, entre outros, os significados de simplicidade, integridade e matéria bruta. Sem aludir à aridez (formal, poética, linguística ou conceitual), precariedade ou falta de depuração, a sua grafia com a inicial minúscula enfatiza uma ideia de inteireza. Em seu texto “Da supressão do objeto (anotações)”, de 1975, Lygia Clarks2 utiliza a expressão “em bruto” para tratar de experiências que ocorrem sem mediação ou qualquer processo intermediário, ou seja, direta e integralmente. Nesse caso, como no da presente exposição, então, falamos de concisão sem referenciarmos secura, insensibilidade, infertilidade ou falta de rebuscamento. Ao contrário, há muita força, potência e vida em ambos os processos. Ao mesmo tempo, o sentido do adjetivo que intitula a exibição diz respeito, também, àquela “arte em estado bruto” a respeito da qual Marcel Duchamp3 fala em seu texto “O ato criador”, de 1957. Nesse artigo, o artista se refere ao coeficiente artístico (a diferença entre a intenção e a realização) que produz “arte em estado bruto – à l’état brut – ruim, boa ou indiferente” (DUCHAMP in BATTCOCK (org.), 1975, p. 73). Nesse sentido, o artista não aborda a arte por um viés estético ou 4

moral, mas como um mecanismo ao mesmo tempo subjetivo e indiferente, que produz arte em estado bruto. Duchamp, ao caracterizar o coeficiente artístico, enuncia que este é “uma expressão pessoal da arte à l’état brut, ainda num estado bruto que precisa ser ‘refinado’ pelo público” (Idem, p. 73). Assim, ele retira da arte um enfoque retiniano e clama para o público uma responsabilidade na coautoria do ato criador num processo que é mental e material, compartilhado entre espectador e artista. Por tocar em questões referentes aos modos de operar do sistema artístico, suas colocações são relevantes para a abordagem dessa exposição. Ao trabalharem integralmente com materiais e objetos naturais ou industrializados em suas acepções primárias (como as plantas e lâmpadas de Julia Arbex ou as lâminas e espumas de Felipe Abdala) ou oriundos de outros usos (como os de limpar e cortar, presentes nas obras de Abdala ou de iluminar e decorar, como nos trabalhos de Arbex), os artistas lidam com materialidades que não sofrem transubstanciações plásticas ou materiais efetuados por eles. Há, no entanto, transmutações de funções e sentidos que permitem que, por exemplo, tubos de concreto, utilizados como manilhas ou poços, e luvas de plástico sujas, previamente usadas em

processos de ateliê de outros artistas, tornem-se materiais de suas próprias produções artísticas, aproveitando todas as suas potencialidades plásticas e conceituais. É sabido que tal procedimento de deslocamento de objetos do cotidiano para o campo artístico é característico de grande parte da produção artística contemporânea, tendo sido a apropriação, a assemblage e o readymade procedimentos bastante explorados ao longo do século XX. Desde os readymades duchampianos e pelo menos desde as assemblages modernas, há uma união de objetos, imagens e materiais que mesmo combinados não perdem totalmente sua identificação com o mundo cotidiano do qual foram retirados. Na série Unidos Sempre Constrói-se Algo, Felipe Abdala levou em consideração a sua atuação como assistente de outros artistas, atividade que desenvolve desde 2008. Em ateliês diversos, Felipe coleta materiais como fitas, lâminas e luvas utilizadas, estopas, panos sujos e chumaços de algodão que seriam descartados após o uso. Partindo do procedimento minimalista de acúmulo serial, de ênfase na verdade dos materiais e de não utilização de qualquer aglutinante, o artista encaixa, amarra e sobrepõe os objetos de modo a uni-los em um equilíbrio precário. Além dessa questão procedimental, o título da série faz referência direta à Rua Usca, localizada na Pavuna, onde o artista viveu até pouco tempo atrás, na qual a sigla que a nomeia é formada pelas palavras que intitulam a série: Unidos Sempre Constrói-se Algo. Tais materiais, oriundos de sobras do processo de produção de obras de outros artistas, são coletados, separados, classificados e acumulados por Abdala, formulando a pergunta a respeito da relação entre tempo, energia e trabalho: o assistente trabalha para outros artistas ou são eles que trabalham para ele?

Já a série Eclipse, de Julia Arbex, ocasiona embates de forças naturais e artificiais nos quais concreto pré-moldado, utilizado na construção civil, e lâmpadas fluorescentes são aproximados de plantas trepadeiras, gerando imprevisibilidades. As instalações constituem relações entre energia e esgotamento, morte e vida, crescimento e queda, densidade e leveza. Ao aproximar concreto, argila verde, terra, plantas e lâmpadas elétricas, a artista tensiona as relações entre natureza e artifício, o que origina o quê e quem pode matar quem. Outra série da artista relacionada a essas questões intitula-se Sedimentações, sendo formada por desenhos produzidos em tiras de papel mataborrão mergulhados em água com argila verde, cada qual com uma duração diferente. Jogando com o acaso, as sedimentações da argila são irregulares, gerando manchas diferentes. Os trabalhos de Arbex encontram-se também em equilíbrios precários, lidando com a processualidade: estruturas em interação instável, como a própria vida, recuperam o significado grego do termo ékleipsis no sentido de ‘desaparecimento’. Afinal, o que restará das instalações ao final da exposição? As séries de trabalhos expostos de Arbex e Abdala lidam, então, com uma espécie de “estar em construção”, incorporando a abertura. No caso de Julia Arbex, as perguntas que ficam são: as plantas crescerão ou morrerão? A luz da lâmpada elétrica substituirá a luz do sol? A lâmpada queimará a planta ou será quebrada por ela? A argila verde sustentará o peso dos tijolos ou esses cederão à gravidade? No caso de Felipe Abdala, alguns trabalhos serão modificados, gerando alterações na ocupação do espaço expositivo ao longo da montagem e da exibição, uma vez 5


que as obras continuam em formação, já que novas partes serão agregadas a partir de cada ida aos ateliês onde atua como assistente. Desse modo, bruto configura-se como uma exposição work in progress cuja montagem mais longa do que o usual - três semanas - evidencia o caráter processual dos trabalhos dos dois artistas. Ao transformarem a galeria em uma espécie de ateliê, esta se torna, além de local de exibição, também lugar de produção, enfatizando a experimentação. Ao darem visibilidade aos seus processos de trabalho, em geral privados, é como se as paredes de seus ateliês se tornassem transparentes, proporcionando uma relação interessante com a opacidade e o caráter concentrado dos materiais por eles empregados. Nesse sentido, desmistificam a visão tradicional do artista, ao compartilharem com o público, ecoando, o que foi preconizado por Duchamp, o seu ato criador. Ao irem rotineiramente para a Galeria Candido Portinari durante o período de montagem, não para montarem trabalhos já prontos, mas para produzi-los, os artistas lançam indagações a respeito dessa relação entre tempo, trabalho e remuneração, questionando, afinal, o que faz um artista e qual é o seu trabalho. Ele precisa de um local específico para desenvolver as suas atividades? O ateliê tem delimitações físicas ou é um espaço mental? O artista trabalha o tempo inteiro? Quando ele para de trabalhar? O que caracteriza o trabalho de arte? E, ao lançarem essas perguntas a uma instituição cultural dentro de uma estrutura universitária, apresentam desafios para a concretização do projeto. E, se podemos afirmar que o sistema em geral é bruto, o sistema artístico contemporâneo, que integra o mundo capitalista, não é diferente. Por outro lado, se o que institui o 6

trabalho é a transformação, qualquer material transmutado em outra coisa constitui um trabalho de arte. Assim, Julia e Felipe mantêm uma rotina laboral na galeria que, embora seja uma atividade não remunerada, implica no dispêndio de tempo e energia, constituindo-se em trabalho. Por outro lado, ao utilizarem energia elétrica como substituta da energia natural ou aproveitarem materiais que seriam sobras da produção de outros trabalhos, os artistas operam numa zona interessante de uma economia da arte: enquanto Felipe produz obras a partir de restos de ateliês de outros artistas, já que atua a maior parte do tempo como assistente e sobram-lhe poucas horas para dedicar-se a sua própria produção, Julia utiliza a energia elétrica para fazer crescer plantas, num jogo entre natureza e cultura. Jacob Gorender4 , na introdução à tradução de Leandro Konder para O Capital, enuncia um caráter dúplice do trabalho: “trabalho concreto, que responde pelas qualidades físicas do objeto, e trabalho abstrato, enquanto gasto indiferenciado de energia humana. O trabalho abstrato, pelo fato de estabelecer uma relação de equivalência entre os variadíssimos trabalhos concretos, vem a ser a substância do valor. [...] Em O Capital, essa distinção foi firmada e salientada, pois se tornava clara a necessidade de focalizar no valor, em separado, a substância (trabalho abstrato cristalizado), a forma que se manifesta na relação entre mercadorias (valor de troca) e a grandeza (tempo de trabalho abstrato)” (GORENDER in MARX, 1996, p. 30). Um exemplo interessante nesse sentido é a instalação Time/Bank, de Julieta Aranda e Anton Vidokle (e-flux), montada no Parque Karlsuhre durante a 13ª Documenta de Kassel, em 2012. Time/Bank trazia a discussão sobre valor, relacionando o tempo de trabalho e o seu correspondente em produtos a

serem adquiridos, em um modelo de serviço recíproco de troca que usa unidades de tempo como moeda. Acompanhando a instalação, havia um jornal no qual constava publicado o texto Zombies of immaterial labor: the modern monster and the death of death, de Lars Bang Larssen5 , que tratou da zombificação facilmente aplicada à noção de que o capital come o corpo e a mente do trabalhador e que os vivos são explorados por meio do trabalho morto. Lixo=eletricidade, de Artur Barrio, 1976, opera em uma direção próxima porque uniu imagens fotográficas de lixo acumulado com textos, desenhos, esquemas e códigos que tratam de atrito e atração, positivo e negativo, tensões elétricas e de pensamento. Propondo lixo no interior dos bancos e das sedes das instituições governamentais, Barrio relacionou-o com a sujeira simbólica, como se esses espaços fossem o seu habitat. Por outro lado, ao pensar no lixo como gerador de energia, o artista propôs o seu uso como possibilitador da vida, interessado que estava em desestabilizar as relações de produção e de consumo, propondo a energia a partir de dejetos. A partir desses exemplos, então, podemos concluir que as peças da presente exposição encontram-se num embate de forças e numa espécie de equilíbrio precário. Os artistas atualizam o legado minimalista de “verdade dos materiais”, não empreendendo nenhum tipo de simulação e não atribuindo sentidos metafóricos à matéria bruta, empregada por meio de materiais provenientes ou não do mundo artístico, da natureza ou do cotidiano. Também não há procedimentos de cola ou de solda, mas arranjos, amarrações e encaixes entre os objetos, gerando instabilidades e imprevisibilidades a respeito das quais eles não têm o controle absoluto do resultado. Nesses processos, Julia Arbex e Felipe Abdala detêm as

propriedades intelectuais e, como artistas trabalhadores, operam numa relação intermediária com dada economia da arte. De forma ao mesmo tempo irônica e poética, ao originarem não produtos, mas desencadearem processos artísticos, os artistas disparam procedimentos que se inserem no campo artístico contemporâneo, tangenciando questões institucionais e econômicas para além de sua atividade criativa. Chamam atenção, assim, para as forças em ação e os agentes em tensão no sistema artístico atual, apontando para a sua crueza, tirando partido e propondo operações de transformação na matéria. O sistema pode não ser amigável, mas o pulso ainda pulsa. Para nele abrir brechas, às vezes, é preciso empregar a força bruta.

1. Aqui o sistema é bruto é o enunciado profético do trabalho homônimo de Livia Flores, produzido nos anos 2000, que reverbera no título da presente exposição do qual me apropriei para intitular esse texto. 2. CLARK, Lygia. “Da supressão do objeto (anotações)”. In COTRIM, Cecilia & FERREIRA, Gloria (orgs.). Escritos de artista. Anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 3. DUCHAMP, Marcel. “O ato criador”. In BATTCOCK, Gregory (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1975. 4. GORENDER, Jacob. “Apresentação”. In MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 5. LARSSEN, Lars Bang. “Zombies of immaterial labor: the modern monster and the death of death”. In: Time Bank. Jornal que acompanhava a instalação homônima de Julieta Aranda e Anton Vidokle. 13ª Documenta de Kassel, Alemanha, 2012.

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ECLIPSE II, 2017 Julia Arbex anel de concreto e planta dimensões variáveis

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ECLIPSE II, 2017 Julia Arbex anel de concreto e planta dimensões variáveis

SEDIMENTAÇÕES II, Julia Arbex tijolo de concreto, argila dimensões variáveis

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ECLIPSE II, 2017 Julia Arbex anel de concreto e planta dimensões variáveis

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ECLIPSE, 2017 Julia Arbex lâmpada e planta dimensões variáveis 14

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ECLIPSE, 2017 Julia Arbex lâmpada e planta dimensões variáveis

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UNIDOS SEMPRE CONSTRÓI-SE ALGO, 2016-2018 Felipe Abdala espumas de poliuretano dimensões variáveis

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UNIDOS SEMPRE CONSTRÓI-SE ALGO, 2016-2018 Felipe Abdala lâminas x-acto dimensões variáveis

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UNIDOS SEMPRE CONSTRÓI-SE ALGO, 2016-2018 Felipe Abdala lâminas x-acto dimensões variáveis

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UNIDOS SEMPRE CONSTRÓI-SE ALGO, 2016-2018 Felipe Abdala luvas de procedimento dimensões variáveis

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Julia Arbex, nascida em 1982, vive no Rio de Janeiro. Mestranda em Artes Visuais - Processos Artísticos pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Graduada em Design na Pontifícia Universidade Católica - PUC RIO (2001-2007). Em 2017, participou das exposições Responder a todos (Despina, 2017) como a segunda parte de um projeto de colaboração entre artistas brasileiros e ingleses, que teve sua primeira exposição na Manchester School of Art (Reply all, MSA UK, 2016); e Pensar alegórico (Ateliê Dezenove, 2017). Em 2014, foi selecionada para o Salão NOVÍSSIMOS (Galeria de Arte IBEU, 2014).

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Felipe Abdala, nascido em 1987, vive no Rio de Janeiro. Graduado em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (2007-2014). Como parte complementar da sua formação participou do programa de aprofundamento pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Entre as principais exposições individuais estão: e eu via quase de perto (Largo das Artes, 2014) e resistir não é mudar (Casamata, 2012). Participou das exposições coletivas My Body Is a Cage (Galeria Luciana Caravello, 2016), Abre Alas (A Gentil Carioca, 2015), 5ª Mostra (EAV Parque Lage, 2015) Situações Brasília (Museu Nacional, Brasília, 2015); Salão NOVÍSSIMOS (Galeria de Arte IBEU, 2014), o 65º Salão de Abril (CCBNB, Fortaleza, 2014); o 13º Salão Nacional de Artes de Itajaí (Itajaí, 2013); Exposição (Teatro Ipanema, 2012). Em 2012, participou do grupo AULA, uma residência extensiva no CAPACETE (Rio de Janeiro). Foi um dos artistas premiados no 65º Salão de Abril.

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