Derivar é preciso: breve análise do processo criativo no fotolivro Paisagem Interior

Page 1



UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS | ESCOLA DE BELAS ARTES

JULIA S CARDOSO DE SOUZA

DERIVAR É PRECISO: breve análise do processo criativo no fotolivro Paisagem Interior

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Habilitação: Gravura Orientadora: Profª. Drª. Maria do Carmo de Freitas Veneroso

BELO HORIZONTE | 2021



SOUZA, Julia S Cardoso de. TÍTULO APROVADO EM: ________/________/____________

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Orientadora: Profª. Drª. Maria do Carmo de Freitas Veneroso

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________________________________________ Profª. Drª. Maria do Carmo de Freitas Veneroso - Orientadora - EBA/UFMG

_______________________________________________________________________________________________ Profª. Drª. Juliana Gouthier Macedo - EBA/UFMG



Dedico à alvorada que transborda em um primeiro desejo de cor. Ao aroma vago, quase só imaginado. À enorme indolência dos ares roseados. Ao dia aguado e lento. Ao olhar que suspira quando o azul se define. À sensação feroz das ruas ignoradas. Ao branco de sublime grandeza. Às tardes que se desmancham em um debrum de roxo vivo com ouro nas bordas. A todos os matizes da cidade caótica. Ao horizonte manso. À brisa que desperta o cinza puro. Às águas lisas, fluidas… e também às tormentas dos oceanos. Ao instante de intensa escuridão. À noite funda e ao frio nítido.



À minha querida avó, que me criou com todo seu amor e dedicação. À seu colo aconchegante, seu cafuné, e seus doces maravilhosos, dos quais pude desfrutar e que esquentaram meu coração. Às amigas Ana Júlia Gomes e Marina Thomaz, que acompanharam de muito perto minha trajetória na faculdade e na vida, e com as quais troquei muitos momentos especiais. Sem dúvida, foram elas que conseguiram amolecer esse coração ariano e bravo que eu carrego comigo. Agradeço as infinitas horas de conversas acaloradas madrugada afora e a todas as vezes que cantamos juntas. Em especial, à Thyana Hacla e Circe Clingert, amigas e colegas de profissão, que acompanharam de perto todo o projeto, ajudaram a idealizar, a editar e a imprimir o fotolivro e sem as quais eu nada teria feito. Deram também ótimos conselhos, leituras de tarot muito precisas, trocas de trabalhos e muito, muito conhecimento. À meu companheiro, Fellipe Chaves, por todo amor, dedicação, apoio emocional e pelas comidas deliciosas que me acalmaram nos momentos difíceis. Por ser meu porto seguro, contribuindo fundamentalmente para a realização deste trabalho. Aos colegas do grupo de estudo orientado pela professora Daniela Maura, que me fizeram enxergar potência em meus trabalhos e ampliar as perspectivas ao redor desse projeto. À Universidade Federal de Minas Gerais e à Escola de Belas Artes. Aos professores que inspiraram toda a minha trajetória durante a graduação, com os quais aprendi muito e que fizeram crescer ainda mais a minha paixão pela Arte: Dani Maura, Patrícia Azevedo, Joice Saturnino, Juliana Gouthier, Wagner Leite e em especial, à minha orientadora Maria do Carmo de Freitas Veneroso - Cacau - por sua generosidade em aceitar orientar meu projeto e ter contribuindo com importantes referências, ideias e sugestões que me ajudaram no desenvolvimento do trabalho e me instigaram a dar continuidade nesta pesquisa para um futuro mestrado. Agradeço também à sororidade da artista e querida colega Rachel Leão, por ter compartilhado ótimas idéias e ter dado suporte à orientação, sempre inspirando positividade. À todos que aqui não couberam citar, mas que fazem ou fizeram em algum momento parte da minha rede de afetos, os meus mais sinceros agradecimentos.

AGRADECIMENTOS

À meu pai, que há muito já fora estudar a geologia dos campos santos, mas que antes plantou em mim seu olhar contemplador.



Imaginar caminhos é como sonhar. Um ato descontínuo, ambíguo e ilusório. Ao construir paisagens, pensamos na ideia, quase sempre, de um território desejável. A imagem que formulamos destoa da natureza, de como ela se coloca para nós. Pensar por imagens é tracejar a forma de um tempo e de um espaço intermediários, que ficam no meio, no hiato da sugestão, de narrativas imaginárias, pelas quais apreendemos a subjetividade dos lugares.

GEORGIA QUINTAS



RESUMO

O trabalho que apresentarei a seguir se desdobrará a partir da análise do processo de criação do fotolivro Paisagem Interior, desenvolvido por mim no ano de 2017. Na época, eu buscava explorar meios de editar meu material fotográfico existente e pensar em como poderia desenvolver registros visuais - além dos escritos já presentes - das ações de percurso que eu me propunha a fazer. Durante essa busca, comecei a investigar alguns “eixos” artísticos que me chamavam a atenção, como por exemplo: a Teoria da Deriva (Guy Debord), a apropriação de imagens na Fotografia, o fotolivro, e as relações entre corpo-cidade e texto-imagem. E o fotolivro Paisagem Interior foi, portanto, o resultado dessa pesquisa. Ao longo da graduação, esses “eixos” se mostraram cada vez mais presentes em minha produção artística, de forma que hoje, ao olhar para o percurso que tracei, posso percebê-los com mais clareza. E foi através dessa percepção e do quão importante é a discussão de tais conceitos na Arte Contemporânea, que escolhi o Paisagem Interior para analisar. No decorrer desta pesquisa, procurarei delinear as ações iniciais que motivaram a feitura do fotolivro Paisagem Interior, bem como a construção do texto presente no livro, suas poéticas profundas, a produção e escolha das imagens, e o projeto gráfico final, apontando e desenvolvendo os conceitos nele presentes e os contextualizando dentro desse processo.

***



Landscape), created by me in 2017. At the time, I sought to explore ways to edit my existing photographic material and think about how I could visually document - in addition to the notes I already had - my wanderings. During this search, I began to investigate some artistic concepts that caught my attention, such as: the Theory of the Dérive (by Guy Debord), the appropriation of images in Photography, the Photobook, the connections between body and city, and between text and image. The Paisagem Interior (Inner Landscape) photobook was, therefore, the result of this research. During my graduation, these concepts were more and more present in my artistic production so that today when I look at the path I have taken, I can see them more clearly. And it was by realizing this presence and how important is the discussion of such concepts in Contemporary Art that I chose the Paisagem Interior as my object of study for this work. During this research I will try to outline the initial actions that motivated the making of the photobook Paisagem Interior, as well as the construction of the text present in the book, its deep poetics, the production and choice of images, and the final graphic project, showing and developing the concepts present in it and contextualizing them within this process.

***

ABSTRACT

The following work is an offshoot of the creation process of the photobook Paisagem Interior (Inner



sur les passions de l’amour (1957), Guy Debord FONTE:Guide psychogéographique de Paris: discours sur les passions de l'amour: pentes psychogéographiques de la dérive et localisation d'unités d'ambiance

…………………………………………………………………..……...32

FIG. 2 - Trecho do texto desenvolvido no Registro de percurso I. Acervo pessoal, 2016.

…………………………………………………………………..……...37 FIGURAS 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 - Polaroids digitais do

primeiro registro de percurso só com fotografias. Acervo pessoal, 2016.

……………………………………………………………………..…...38

FIGURAS 10, 11 e 12 - Registros do percurso Metrô: da Vilarinho ao Eldorado e resultado final da dupla exposição. Acervo pessoal, 2017.

…………………………………………………………………………..39 FIGURAS 13 e 14 - Registros do percurso Viagem à São João Del Rey. Acervo pessoal, 2018………………………………………...……………...…………40

FIG. 19 - Programa da Grande Saison Dada, 1920. FONTE:https://2.bp.blogspot.com/_Aqb7YnNm-Jk/S CNIAUNriuI/AAAAAAAAA2U/6Y3bJm5WvDA/s 1600-h/Sin+título12.jpg

………………………………………………………………..………...51 FIG. 20 - Folha de prova do panfleto, 1920. FONTE:DADA Excursions & visites, 1921: orig.

pamphlet; Tzara Picabia Arp Aragon Rigaut 1921; ORIGINAL DADA ITEM !! (rare)

……………………………………………………………………..…...51

FIG. 21 - Foto coletiva em Saint-Julien-le-Pauvre, 1921. FONTE: Dada à Paris. ………………………………………………………………..………...52 FIG. 22 - Vista da Estação Pampulha. Acervo pessoal, foto tirada em 2018……...……..………..……...57 FIGURAS 23 e 24 - Polaroids de Andrei Tarkovski, 1979-83. FONTE: The Polaroids of Andrei Tarkovsky, 1979-1983 – East European Film Bulletin

……………………………………………..…………...……………...60

FIG. 15 - Resultado final da dupla exposição. Acervo pessoal, 2018.……………………………..……….…41

FIG. 25 - Folha de rascunho. Acervo pessoal, 2006……………………………………………………………....…..68

FIGURAS 16, 17 e 18 - Registros do percurso

FIG. 26 - Poema Minguante, Julia Leite, acervo pessoal, 2007.……………………..………………………...……70

Metrô: da Vilarinho ao Eldorado e resultado final da dupla exposição. Acervo pessoal, 2017 .…………………………………………………………….…………...42

LISTA DE FIGURAS

FIG. 1 - Guide psychogéographique de Paris : discours


FIG. 27 - Poema O corpo, recriado a partir do poema Minguante, acervo pessoal, 2012.

…………………………………………………………..……………...70 FIG. 28 - Página 32 do livro Olhos de Cão Azul, de

Gabriel Garcia Marques, edição de 1974. Acervo pessoal.………………………………………………..………….…72

FIG. 29 - Folha do caderno de escrita. Acervo pessoal, 2018.……………………………………………..…………...………72

gativo, sem título, Julia Leite. Acervo pessoal, 2015………………………………………………..…………….…...78

FIG. 37 - Xilogravura, sem título, técnica chine-collé. Acervo pessoal, 2016.

…………………………………………………………………………..79 FIG. 38 - Xilogravura, Hamlet, chine-collé, Julia Leite. Acervo pessoal, 2017.

……………………………………………………………………..…...80

FIG. 30 - Para fazer um poema dadaísta, Tristan Tzara, 1921. FONTE:https://i.pinimg.com/originals/7e/0b/a4/7e0b

FIG. 39 - Xilogravura, Virgo, chine-collé, Julia

………………………………………………………………...………..73

FIG. 40 - Un coup de dés, Stéphane Mallarmé, 1897. FONTE:http://www.alain.les-hurtig.org/coup_de_de

a4a08ba7cb64a40f78ac46985ffd.jpg

FIG. 31 - Poema Karawane, Hugo Bell, 1917. FONTE:https://i.pinimg.com/originals/72/4a/22/724a 2234eb34dd46bb58b8344d6eea6c.jpg

…………………………………………………………………………..73 FIG. 32 - Poema That big sadness, Julia Leite. Acervo pessoal, 2017.…………………………………...……74 FIG. 33 - Poema Desimportar, Julia Leite. Acervo pessoal, 2019.…………………………………….….……………74 FIGURAS 34 e 35 - Recortes para montagem de colagem. Acervo pessoal, 2015…...…………….………78 FIG. 36 - Imagem final digitalizada com efeito ne-

Leite. Acervo pessoal, 2017.

………………………………………………………………………….80

s/pages-d-images/image2.html

………………………………………………………………..………...83 FIGURAS 41, 42, 43 e 44 - Zine Um mundo de imensidões, Litografia Offset. Acervo pessoal, 2018.………………………………………………………....…..…..84

FIGURAS 45, 46 e 47 - Revista Useful Photography #007, publicado por KESSELSKRAMER, Amsterdam, 2007. FONTE: Useful Photography — ERIK KESSELS

…………………………………………………………………..……...93 FIGURAS 48, 49, 50 e 51 - Revista Useful

Photography #001, publicado por BIS, Amsterdam, 2000.


FONTE:https://www.erikkessels.com/useful-photogr

FONTE:https://www.gerhard-richter.com/en/art/atla

………………..………………………………………………………...94

……………………………………………………………..…………...99

aphy-1.

FIGURAS 52 e 53 - Exposição 24hrs in photos, Erik Kessel.

FONTE: 24HRS IN PHOTO — ERIK KESSELS ………………………………………………………………..………...95 FIG. 54 - Obituário Transparente, Rosângela Rennó,

s/landscapes-11722/?&p=5&sp=32

FIGURAS 62, 63 e 64 - Fotos do livro Atlas Book e página 144 aberta. FONTE:https://unionlosangeles.com/wp-content/upl oads/2012/03/L11109031-700x466.jpg

………………………………………………………………..………100

1991.

FIG. 65 - Fotografia da coleção de paisagens com

FIG. 55 - Cicatriz, Rosângela Rennó, 1997. FONTE: Rosângela Rennó …………………………………………………………………..……...96

FIGURAS 66 e 67 - Projeto gráfico do fotolivro

FIGURAS 56, 57 e 58 -

FIGURAS 68 e 69 - Primeiro projeto gráfico do

FONTE: Obituário Transparente ……………………………………………………………………….....96

Rennó, 1994. FONTE: Imemorial

Imemorial, Rosângela

…………………………………………………………………..……...97 FIG. 59 - Coleção de fotografias de paisagem. Acervo pessoal…………………………………………………..98 FIG. 60 - Fotografia coletada na internet utilizada no fotolivro. Acervo pessoal, 2017.

…………………………………………………………….……….…...98 FIG. 61 - Landscapes do Atlas Book, Gerhard Richter, 1971.

marcas de corte. Acervo pessoal, 1994……………………....………………………………………...101

Paisagem Interior, frente e verso, 2021………………………………………………………..….102-03

fotolivro Paisagem Interior antes das alterações finais.

……………………………………………………………...…..108-09

FIGURAS 70, 71 e 72 - Páginas avulsas do fotolivro A espera (Waterlist) de Jan Voss, 1984. FONTE:httpwww.artistsbooksonline.orgworkswarti mageindex1.1.1.5.xml

……………………………………………………………..…………..111 FIGURAS 73 e 74 - Fotolivro Paisagem Interior. Acervo pessoal, 2021.

……………………………………………………………………..….112


IG. 75 - Fotolivro Paisagem Interior. Acervo pessoal, 2021.…………………………………………………..….….……...113 FIGURAS 76 e 77 - Fotolivro Paisagem Interior. Acervo pessoal, 2021.……………….……………………....114 FIGURAS 78 e 79 - Fotolivro Paisagem Interior. Acervo pessoal, 2021………..………………………...…….115 FIG. 80 - Fotolivro Paisagem Interior. Acervo

pessoal, 2021.………………….……………………...………………….….116

FIG. 81 - Fotolivro Paisagem Interior. Acervo

pessoal, 2021.………..……………………………...………………….…….117

***




SUMÁRIO

O PERCURSO COMO FERRAMENTA DE ESCRITA VISUAL DO ESPAÇO

25

VIAS DE AFETO

31

INCONSCIENTE SURREAL

47

GRAVAR PALAVRAS

65

PERCORRER COM O OLHAR

89

CONSIDERAÇÕES FINAIS

121

REFERÊNCIAS

126



O PERCURSO COMO FERRAMENTA DE ESCRITA VISUAL DO ESPAÇO

minha vida. Eu gostava de andar, e muito. Coisa de mineiro talvez, rs. Mas sei que não, coisa de humano na verdade. O caminhar faz parte da humanidade desde muito muito tempo, quando ainda éramos

INTRODUÇÃO

Muito antes de eu me dar conta de que queria ser artista, o caminhar sempre esteve presente na

nômades, e andávamos por aí e acolá, em busca alimentos e de um lugar para se viver por um tempo mais prolongado. Às vezes me pego pensando em como deve ter sido fazer longas e infinitas jornadas por um mundo praticamente desabitado, só o homem e a natureza. Devia ser algo incomensurável. E maravilhoso também. Pois bem, eis que com o passar dos tempos, encontramos lugares de permanência e construímos cidades. Mas a paisagem continuou se fazendo presente com sua força extraordinária, e uma vez mais saímos andando ruas a fio, perseguindo esse reencontro com o indizível. Com o que só pode ser absorvido se sentido, se contemplado. Eu andava, andava muito. Desde a adolescência, quando usava o caminhar como válvula de escape da realidade difícil da casa. Colocava meu fone no ouvido e saía sem rumo, a andar pelo bairro, observando as casas, vendo a cidade ao longe. Se tinha algo a fazer, não importava o quão distante fosse, eu sempre ia a pé. Andar sempre foi para mim uma forma de me conectar com a vida, com o mundo, com a natureza, com a cidade. Caminhando, eu sentia a vida pulsar. Vinha de muito tempo a vontade de registrar a sensação que eu experimentava enquanto fazia minhas andanças por aí. E primeiramente, isso se desdobrou na escrita. Comecei a escrever ainda muito jovem, com os diários. A felicidade que senti quando ganhei a primeira máquina de escrever ninguém imagina. O dia todo, tec tec. A máquina na frente, o dicionário do lado, pescando de olhos fechados uma página aleatória e escolhendo as palavras que despontavam. Assim nasceram as primeiras poesias. E mal sabia eu o tanto que esse processo simples e ingênuo ia estar presente no meu processo de criação como artista.

25


INTRODUÇÃO

A Fotografia também sempre fez parte da minha vida. Em especial, a de paisagem. Desde muito nova lembro de já gastar os filmes das máquinas tentando capturar um pôr do sol, ou mesmo uma vista da cidade. Algo que enfurecia meus pais, que pagavam caro pelo rolo fotográfico que era para ser gasto com fotos de família e não com fotos do “nada", como eles diziam. Que raiva que eu sentia. Mas uns anos mais tarde, com os celulares ficando cada vez mais acessíveis, e mais para frente, com o surgimento do Instagram, voltei a fazer esses registros. E sempre que estava a caminhar, procurava registrar ao menos uma foto que sintetizasse por onde eu tinha passado naquele dia. Quando iniciei os estudos em Arte, sempre tentava unir a Fotografia com a escrita, inicialmente escolhendo uma delas como geradora da outra: escolhia uma foto e escrevia sobre ela, ou pegava um poema e tentava capturar uma imagem que o traduzisse visualmente. E foi através desse “jogo” que comecei a ver o percurso como uma linguagem. Num dia qualquer, quando eu estava num trajeto de metrô indo visitar minha família, e observando o caminho pela janela, me perguntei o que poderia acontecer se palavra, imagem e percurso se unissem em um só propósito. Partindo daí é que comecei com as primeiras ações de percurso, mas antes é necessário entender um pouco mais o que me levou até elas. Pois bem, para o primeiro capítulo deste trabalho, decidi analisar o percurso como narrativa poética e visual através de sua incursão em alguns movimentos artísticos, abordando inicialmente a Teoria da Deriva Situacionista, e em seguida, como se deram as primeiras ações de percurso que pratiquei e seus registros escritos e visuais. Com o intuito de esclarecer o tema central do fotolivro, no segundo capítulo me dediquei a abordar o conceito de “paisagem”, explicando brevemente como a incorporação do urbanismo alterou nossa percepção da mesma. Na sequência, apresento as excursões dadaístas e as deambulações surrealistas para ilustrar como a relação corpo-cidade se deu nas primeiras experiências artísticas de percurso, e como influenciaram minha experiência contemplativa, servido de inspiração para a 26

construção do texto que acompanha o fotolivro Paisagem Interior.


Já no terceiro capítulo, falo sobre meu primeiro contato com a escrita criativa e como se deu o também nesse capítulo alguns dos trabalhos que produzi relacionando texto e imagem, incluindo gravuras e os primeiros fanzines de poesia que me levaram para o universo da publicação. Na quarta e última parte/capítulo deste trabalho, abordo brevemente a apropriação de imagens na

INTRODUÇÃO

processo de construção do texto a partir de explorações inspiradas na poesia dadaísta. Compartilho

fotografia com a intenção de demonstrar como foram escolhidas e ou produzidas as imagens do fotolivro e explico o porquê da escolha do objeto livro como obra e como objeto de ação/experimentação visual e textual. Mostrarei as etapas de criação do fotolivro, como por exemplo: as experimentações no formato do fotolivro, a escolha das fotografias e sua disposição, a aplicação visual do texto, as mudanças que foram feitas no projeto, etc., visando expor os diálogos que foram criados através desse processo e como eles demonstram sua singularidade em meu processo criativo. Com isto posto, os convido para uma breve deriva criativa.

***

27



Linha reta, caminhar sem saber onde vai dar. No breu sigo só. E o corpo no espaço é bom. Me alimento desse breu, já nem sinto quem sou eu. Noturno, fugaz. Já não sei se sou capaz de parar. Bifurcação, entroncamento, contramão são ruas sem fim, vias de fato aos pés de quem desrespeitou sinais e atravessou ileso. Decidiu flutuar, quis se plantar de peso. Quando a noite cansar e a luz brotar à esmo, sigo o meu caminhar, nunca amanheço o mesmo.

METÁ METÁ



VIAS DE AFETO


CAPÍTULO I ◾ VIAS DE AFETO

FIGURA 1 - Guide psychogéographique de Paris : discours sur les passions de l’amour, Guy Debord, 1957.

32


A primeira aproximação que fiz quando comecei a pesquisar sobre o percurso na arte foi a Teoria da Deriva, criada pelo pensador e escritor Guy Debord em 1958. Só depois é que fui me aprofundar no

CAPÍTULO I ◾ VIAS DE AFETO

ANDAR SEM RUMO: O QUE DIZEM AS RUAS?

estudo das excursões Dadaístas de 1921, e das deambulações Surrealistas, de 1924. No entanto, falarei destas duas incursões com mais profundidade no próximo capítulo deste trabalho, concentrando-me, agora, em esclarecer a abordagem Situacionista. O Dadaísmo e o Surrealismo foram os primeiros movimentos a explorar a prática do caminhar como recurso estético de contestação aos espaços sacralizados da Arte. Já os situacionistas queriam algo ainda maior: contestar não só os espaços, mas sim todo o sistema capitalista em que a Arte estava inserida. Iniciada no final da década de 1950, a Internacional Situacionista consistia em um grupo de pensadores, escritores e artistas que acreditavam que uma revolução pudesse ocorrer ao se unir a vida cotidiana e a prática artística, e viam portanto, que a cidade era um veículo/suporte muito propício para se atingir esse objetivo. Porque afinal de contas, a Arte estava dentro dos museus, e as pessoas estavam do lado de fora, nas ruas da cidade. Esse caráter contestador dos situacionistas não se direcionava apenas ao sistema capitalista, mas também a questões ainda mais profundas, como bem pontua o arquiteto e professor Luiz do Monte: O que os situacionistas propunham em contrapartida aos surrealistas era fundir arte e vida cotidiana num mesmo fluxo, em que não se pudesse distinguir onde começa um e termina outro. A IS pretendia, por conseguinte, erradicar as fronteiras entre o tempo de diversão e o tempo de tarefa, reunindo-os num único momento, numa única situação. Essa relação de rompimento com o establishment não tem a ver apenas com as questões de regência do sistema artístico e com o capitalismo, mas também com mudanças em relação à própria teoria da arte, aos valores e conteúdos da produção realizada na época e à separação entre arte e vida cotidiana. (MONTE, 2015, p.31)

33


CAPÍTULO I ◾ VIAS DE AFETO

Mas antes mesmo de chegar a essa ideia de unir arte e vida em uma única situação, Debord publicou em 1956, com o poeta e artista Gil J. Wolman, quando o grupo ainda se autodenominava Internacional Letrista1, um texto que seria muito caro ao conceito desenvolvido posteriormente na Teoria da Deriva: Um Guia Prático para o Desvio. Neste texto, Debord e Wolman abordam o conceito de “desvio” com a proposta de o deslocar para o jogo urbano: A interferência mútua de dois mundos sensíveis, ou a união de duas expressões independentes, supera os elementos originais e produz uma organização sintética de grande eficácia. (...) Se o desvio fosse estendido às realizações urbanísticas, poucos ficariam insensíveis à reconstrução exata de toda uma vizinhança de uma cidade à outra. A vida é sempre um labirinto: desviá-la dessa maneira a tornaria verdadeiramente bela (DEBORD; WOLMAN, 1956).

Luiz do Monte argumenta que o desvio se apresentava para ambos como uma forma de enxergar na cidade um labirinto de jogos e realizações, o que implicaria também em uma investigativa afetiva da cidade, propiciando a união tão desejada entre arte e vida (MONTE, 2015). A Teoria da Deriva de Debord consistia então em criar uma situação específica de percurso, com definições e limitações previamente estabelecidas, como por exemplo, o lugar a ser explorado, a duração ideal e o número de participantes, pois ele defendia que a deriva era melhor aproveitada se feita em pequenos grupos de duas a três pessoas com o mesmo nível de consciência, o que levaria a conclusões mais objetivas.

_______________ 1.

34

Criado em 1951 por Guy Debord (1931-1994) e Isidore Isou (1925-2007), A Internacional Letrista foi o movimento precursor da Internacional Situacionista (IS). Isou já havia fundado antes, em 1946, o grupo Letrista, cuja produção era focado na poesia, cinema e pintura; depois de conhecer Debord, fundaram juntos a Internacional Letrista, que começou como um desdobramento teórico do primeiro movimento, e acabou culminando anos mais tarde na IS. (MONTE, 2015)


também era importante se levar em conta a geografia afetiva da cidade durante a deriva, o que acabou se transformando em um método designado pelos situacionistas de “psicogeografia”. Luiz do Monte esclarece melhor a relação entre esses termos:

CAPÍTULO I ◾ VIAS DE AFETO

A intenção principal era andar pela cidade, deixando que o acaso interferisse no percurso, e

Na tentativa de elucidar a relação entre os termos deriva e psicogeografia, parece adequado afirmar que a deriva se constitui como uma técnica de investigação da psicogeografia, como é descrito no texto apresentado por Debord na fundação da Internacional Situacionista: “uma primeira tentativa de modo de comportamento já foi obtida com o que chamamos de deriva, [...] um meio de estudo da psicogeografia e da psicologia situacionista” (DEBORD, 1957) (...) Sendo assim, é possível admitir que a psicogeografia se configura como uma ciência ou método de exploração dos aspectos afetivos da cidade, tendo a deriva como principal elemento de investigação. (MONTE, 2015, p. 52)

Esclarecida a Teoria da Deriva, vamos às primeiras investidas praticadas por mim no que diz respeito às ações de percurso. Estando a praticar, lá fui eu fazer a deriva à minha maneira: sozinha.

*

35



Como eu andava muito de metrô, escolhi esse trajeto como primeiro percurso. Partindo então da estação Minas Shopping até a estação Eldorado, registrei o percurso através da escrita, tentando

CAPÍTULO I ◾ VIAS DE AFETO

MEMÓRIA AFETIVA DA CIDADE: REGISTRO DE PERCURSO

acompanhar o fluxo de pensamentos que emergiram da experiência visual. Também decidi que ao menos uma fotografia deveria ilustrar o percurso, e assim nasceu a primeira ação que chamei de “Registro de percurso I”, nada criativo, como se pode notar. Publiquei o texto do registro, junto da foto tirada, em um blog literário que eu alimentava ocasionalmente, e o segundo registro acabou ficando só no papel:

FIGURA 2 - Trecho do texto desenvolvido no Registro de percurso I, acervo pessoal, 2016.

37


CAPÍTULO I ◾ VIAS DE AFETO

Logo notei que o apelo visual experimentado no percurso era mais forte do que a escrita, e por isso substituí o registro escrito pelo fotográfico nas ações que se seguiram. Já no primeiro desses registros fotográficos determinei um período maior de execução que incorporaria vários trajetos de ônibus durante uma semana inteira, procurando também investigar algumas estéticas da fotografia, e para isso utilizei um aplicativo de celular que remetia às fotografias de polaroids.

FIGURAS 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 Polaroids digitais do primeiro registro de percurso, 2016.

38


CAPÍTULO I ◾ VIAS DE AFETO

FIGURAS 10, 11 e 12 - Registros do dois percurso Metrô: da Vilarinho ao Eldorado e resultado final da dupla exposição, 2017.

Nas duas ações seguintes, procurei apenas fotografar os trajetos e depois editar o material gerado e compilar em um só. No primeiro caso, registrei toda uma viagem de três dias de caminhada pela cidade de São João Del Rey, e no segundo, um novo percurso pelo metrô de Belo Horizonte, desta vez, da Vilarinho até o Eldorado, descendo em cada uma das estações para fotografar. Uma vez registrados os trajetos, editei um trabalho de duplas exposições, fazendo com que esses dois lugares diferentes se encontrassem através do percurso. Aqui eu já começava a notar uma vontade de manipular, editar, unir, sobrepor e subverter ou ressignificar os percursos.

39


FIGURAS 13 e 14 - Registros do percurso Viagem à São João Del Rey, 2018.


FIGURA 15 - Resultado final da dupla exposição.


FIGURAS 16, 17 e 18 - Registros do percurso Metrô: da Vilarinho ao Eldorado, e resultado final da dupla exposição, 2018.


palavras o que eu absorvia da cidade quando fazia os trajetos, e logo comecei também alguns experimentos poéticos com a palavra, já com o intuito de criar/editar um texto que pudesse acompanhar esses registros fotográficos. Uma das questões mais importantes que percebi com essas ações, foi justamente o estado mental

CAPÍTULO I ◾ VIAS DE AFETO

Contudo, a ausência do texto me incomodava. Eu sentia falta de algo que pudesse traduzir em

que eu atingia durante o percurso: um estado de plenitude e de contemplação que conversava e muito com as deambulações surrealistas, contradizendo em alguns aspectos o exercício da deriva. No próximo capítulo, discorrerei sobre como essa descoberta se traduziu no texto que acompanha o fotolivro Paisagem Interior.

***

43



Em cada um de nós há um segredo, uma paisagem interior com planícies invioláveis, vales de silêncio e paraísos secretos.

ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY



INCONSCIENTE SURREAL



contemplativo da paisagem, de forma a elucidar as sensações que foram despertadas em mim durante os percursos, e que acabaram por se traduzir no texto do fotolivro Paisagem Interior. Mas, primeiramente, é preciso procurar entender o conceito de paisagem. O arquiteto Francesco Careri defende em seu livro Walkscapes: o caminhar como prática estética (2013), que a percepção da paisagem se deu através do ato de

CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

Inicio esse capítulo com a intenção de apresentar algumas reflexões que partem do ato

caminhar, começando lá no nomadismo primitivo e evoluindo até a modernidade, principalmente com o surgimento das primeiras vanguardas artísticas que incorporaram à ela o urbanismo. Já no livro A filosofia da paisagem (2009), o sociólogo Georg Simmel (1858-1918) alega que mesmo quando caminhamos pela natureza livre e observamos as formas que se apresentam diante de nós, ainda não temos a consciência de ver uma “paisagem”. Para que isso aconteça, é necessário que façamos um recorte dessa vista, capturando através da subjetividade do olhar, um fragmento desse campo visual, a fim de criar uma unidade do todo e da natureza que observamos ao nosso redor: Mas, para a paisagem, é justamente essencial a demarcação, o ser-abarcada num horizonte momentâneo ou duradouro; a sua base material ou os seus fragmentos singulares podem, sem mais, surgir como natureza - mas, apresentada como "paisagem", exige um ser-para-si talvez óptico, talvez estético, talvez impressionista, um esquivar-se singular e característico a essa unidade impartível da natureza, em que cada porção só pode ser um ponto de passagem para as forças totais da existência. Ver como paisagem uma parcela de chão com o que ele comporta significa então, por seu turno, considerar um excerto da natureza como unidade - o que se afasta inteiramente do conceito de natureza. (SIMMEL, 2009, p.6)

Contudo, do momento em que as cidades passaram a integrar a paisagem houve uma mudança significativa na forma de percebê-la. Com a modernidade, se iniciou um distanciamento entre homem e natureza. A arquiteta e pesquisadora Letícia C. Coelho argumenta no ensaio “A paisagem na fotografia, os rastros da memória nas imagens” (2009) que, com isso a cidade começou a ser também a ser o foco dos artistas, que buscavam “encontrar o belo onde ele não era normalmente encontrado, a valorizar o pitoresco e o cotidiano, que passam a ser incorporados como paisagem de uma vida” (COELHO, 2009).

49


CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

Dessa forma a cidade passa a ser vista como uma paisagem. Por esta razão é que a ideia do percurso veio novamente à tona, como uma forma de despertar o olhar a partir da interação com o ambiente urbano. Assim se iniciou a flânerie, cujo sujeito principal, o flâneur2, acabou por ser o primeiro responsável por evidenciar essa relação com a cidade, por essa razão sua presença não tardou a ser percebida como potencial exploratório para os artistas da modernidade. Partindo então em uma espécie de excursão urbana rumo aos lugares mais banais da cidade, foram os dadaístas que começaram as primeiras investidas que utilizavam a prática do caminhar como forma de unir a arte ao cotidiano, contestando dessa forma, os espaços sacralizados que eram dedicados à ela, como por exemplo os museus. A proposta da excursão era marcar um ponto de partida em um determinado local e percorrer a cidade, ora realizando leituras de textos escolhidos ao acaso, ora interferindo na trajetória das pessoas que passavam nas ruas. À respeito dessa experiência dadaísta, Luiz do Monte pontua que: (...) os dadaístas perambulavam pela cidade não apenas com o objetivo de intervir em lugares específicos, mas de analisá-la como um artefato artístico. A caminhada do grupo sem deixar indícios pela cidade, apenas com a finalidade de experimentá-la, além de se contrapor à lógica das clássicas modalidades de intervenção artística urbana, distanciava-se enormemente do caráter funcionalista do urbanismo modernista e suas pretendidas operações por considerar a cidade como um lugar de compreensão, e não de remodelação. (MONTE, 2015, p.47)

_______________ 2.

50

Flâneur, do substantivo francês flâneur, significa "errante", "vadio", "caminhante" ou "observador". Flânerie é o ato de passear. O flâneur era, antes de tudo, um tipo literário do século XIX, na França, essencial para qualquer imagem das ruas de Paris. Careri o descreve em seu livro como um “personagem efêmero que, rebelando-se contra a modernidade, perdia o seu tempo deleitando-se com o insólito e com o absurdo, vagabundeando pela cidade” (2013, p. 74). Ver também texto O flâneur de Walter Benjamin, disponível em: https://www.academia.edu/27603950/BENJAMIN_Walter_Obras_escolhidas_III_Charles_Baudelaire_um_lírico_no_auge_do_capitalismo


CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

FIGURA 19 - Programa da Grande Saison Dada, 1921.

FIGURA 20 - Folha de prova do panfleto, 1921.

Tomando essa ideia da cidade como um lugar de compreensão foi que começaram a aparecer as primeiras pesquisas sobre o inconsciente da cidade, o que seria abordado na sequência, pelos surrealistas. Remanescentes das excursões dadaístas, os poetas André Breton (19896-1966) e Louis Aragon (1897-1982) se juntaram aos colegas Max Morise (1900-1973) e Roger Vitrac (1899-1952) para tentar uma nova investida do caminhar, mas que dessa vez teria como objetivo principal criar relações entre espaço e psiquê. Com um destino escolhido ao acaso, os amigos saíram de Paris de trem, e depois seguiram uma caminhada que levaria dias, passando por campos vastos e desertos, paisagem rurais, que como proposto por eles, teriam o poder de despertar imagens/pensamentos que explorassem os limites entre a vida consciente e a vida de sonho. As deambulações surrealistas foram cruciais para o nascimento do próprio movimento, que teve seu primeiro manifesto escrito a partir dessa experiência. A definição do termo “surrealismo” presente

51


CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL 52

no manifesto delineia bem a proposta da ação empreendida pelos escritores: “automatismo psíquico puro com o qual se propõe expressar, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento” (BRETON, 1924). Francesco Careri alega que: (...) junto com a intenção de superar o real no onírico há a vontade de um retorno a espaços vastos e desabitados, aos confins do espaço real. O percurso surrealista coloca-se fora do tempo, atravessa a infância do mundo e toma as formas arquetípicas da errância nos territórios empáticos do universo primitivo. O espaço apresenta-se como um sujeito ativo e pulsante, um produtor autônomo de afetos e de relações. (...) Esse território empático penetra nos extremos mais profundos da mente, evoca imagens de outros mundos em que realidade e pesadelo vivem juntos, transporta o ser a um estado de inconsciência. A deambulação é um chegar caminhando a um estado de hipnose, a uma desorientadora perda do controle, é um medium através do qual se entra em contato com a parte inconsciente do território. (CARERI, 2013, p. 78-80)

FIGURA 21 - Foto coletiva em Saint-Julien-le-Pauvre. A partir da esquerda: Jean Crotti, Georges D'Esparbès, André Breton, Georges Rigaud, Paul Éluard, Georges Ribemont-Dessaugnes, Benjamin Pèret, Théodore Fraenkel, Louis Aragon, Tristan Tzara e Philippe Soupault.


Guy Debord se referia à eles como “imbecis”, porque além de terem feito as deambulações em lugares rurais, e não em centros urbanos, ainda ignoraram a potência da deambulação como forma de arte coletiva. Que segundo ele, se tivesse sido feita em grupo teria anulado o caráter individual da obra de arte, o que era um dos princípios fundamentais defendidos tanto pelos dadaístas, como pelos

CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

No entanto, os situacionistas, algumas décadas depois, se opuseram às investigações surrealistas.

surrealistas, como explica Careri (2013). Debord dizia isso porque mesmo que as deambulações tivessem sido feitas com quatro pessoas, cada um tomou a experiência de forma individual, criando diferentes obras e textos a partir disso. E tanto ele como os demais letristas/situacionistas acreditavam que a realidade poderia ser maravilhosa de fato, e não só imaginada como pensavam os surrealistas, e tinham como objetivo tornar isto possível não através dos sonhos, mas sim através de ações/situações. Porém, ao refletir sobre o que eu senti e pensei durante minhas “derivas”, e também quando comecei o desenvolvimento do fotolivro Paisagem Interior, cheguei a uma conclusão que penso fazer mais sentido mediante o recorte que meu trabalho apresenta. Das deambulações surrealistas, ficaram o registro narrativo/descritivo, porém de caráter imaginativo, surreal e delirante, oriundos do devaneio. Uma leitura extremamente sensível e emocional da paisagem urbana, obtida através da contemplação e interação com o espaço. Já as derivas situacionistas trouxeram o estudo da psicogeografia como método de investigar os aspectos afetivos da cidade, incorporando a paisagem urbana como espaço ideal para que isso ocorresse. Portanto, acredito que o resultado proposto no Paisagem Interior tenha conseguido unir ambos os conceitos, que mesmo apresentando contradições, podem ainda se complementar. Me parece que o que faltava à Internacional Situacionista era exatamente trazer essa proposta do registro escrito e imaginativo gerado pelo ato da deambulação, bem como faltou aos surrealistas trazer essa proposição para o espaço urbano. O texto que acompanha o fotolivro Paisagem Interior foi criado sim a partir da minha leitura individual da paisagem urbana, no entanto, apresentar essa perspectiva usando como veí-

53


CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

culo um dos objetos mais democráticos que existe, o livro, é para mim, uma forma de tornar a arte coletiva e inclusiva, trazendo para a realidade um respiro reflexivo/contemplador em meio ao caos alienante.

*

54



CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

QUANDO OLHAMOS A CIDADE, ELA NOS OLHA DE VOLTA

O título do fotolivro Paisagem Interior já propõe em si mesmo seu significado: contemplar uma paisagem que nos diz da nossa paisagem interna. No entanto, revelar seus significados é essencial para entender como esse processo se dá. Contemplar uma paisagem ou uma vista, seja ela da natureza ou da vida cotidiana que se desdobra à nossa frente, é um ato que naturalmente nos direciona para um pensar reflexivo. Ora questionamos a vida, ora voltamos às lembranças da infância, e ao refletir a partir da paisagem, muitas vezes podemos experimentar um estado emocional de imensidão, onde podemos nos sentir realizados e vivos como nunca, ou podemos também olhar o abismo, afinal o “ato íntimo de entregar-se às imagens é suficientemente profundo, assim como vermos a escuridão” (2014, p.103), como descreve a antropóloga Georgia Quintas. Ao fazer a analogia - que dá título à essa seção do capítulo - com a célebre frase3 do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), foi que me dei conta de que a paisagem tinha esse poder de nos fazer olhar para dentro de nós mesmos. Não sei se contemplar é um ato comum entre as pessoas, mas a julgar pelo que vejo todas as vezes quando me encontro na Estação Pampulha4 esperando meu ônibus, eu diria que não. A plataforma em que meu ônibus pára é justamente a que dá a ver a Lagoa da Pampulha5 e para a cidade que se mostra ao fundo, e às vezes me choca como em praticamente todas as vezes que eu estava a esperar na fila, a maioria das pessoas se sentavam voltadas para a plataforma, de costas para a vista. E eu me perguntava como é que essas pessoas conseguiam passar o dia todo provavelmente enclausuradas em um ambiente de trabalho fechado, e quando têm a oportunidade de apreciar uma vista dessas, prefe-

_______________ 3.

56

"Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". A frase foi retirada de um trecho do livro “Além do bem e do mal”, publicado pela primeira vez em 1886. 4. Estação de ônibus localizada na interseção das avenidas Pedro I e Portugal, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. 5. A Lagoa da Pampulha é uma lagoa situada na região da Pampulha no município de Belo Horizonte no Estado de Minas Gerais.


celulares. Vai entender. Para contestá-las, sento de costas para a plataforma todas as vezes, e fico olhando a vista, às vezes escrevendo sobre ela. Alguns sempre me observam de rabo de olho, provocados pelo estranhamento.

CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

rem ficar olhando se o ônibus já está chegando, ou então, ficam olhando para a tela hipnótica de seus

FIGURA 22 - Vista da Estação Pampulha, 2018.

Pensem no quanto nossa sociedade poderia estar mentalmente evoluída se parássemos ao menos um pouco todos os dias para contemplar. E eu não sabia também explicar de onde é que surgia essa vontade do olhar contemplativo. Pelo menos para mim, ela foi passada através do meu querido pai, que não mais está entre nós. Com certeza uma das melhores lembranças que tenho com ele é a de estar sentada ao seu

57


CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

lado sob as pedras na Praia das Castanheiras6, observado o mar. Até hoje, quando fecho os olhos, posso evocar o som das ondas quebrando, a sensação do sol sobre a pele, e por dentro, nada além de silêncio e contemplação. Outras vezes, sempre que íamos andar de carro, ele me punha na janela dizendo: “senta aqui para você poder ver a vista!”. E eu ficava olhando a vida passar diante dos meus olhos, em silêncio, maravilhada. Penso que foi daí que veio esse hábito, como uma busca de viver novamente esse estado de plenitude. Só alguns anos mais tarde, ao esbarrar com a obra A poética do espaço (1984) do filósofo e poeta francês Gaston Bachelard (1884-1962) é que fui entender melhor o que me tocava quando eu estava a contemplar. Bachelard dizia que a imensidão íntima é uma categoria do devaneio, e que este teria em si mesmo uma “inclinação inata” para contemplar a grandeza. Em suas palavras: (...) a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular, que o devaneio põe o sonhador fora do mundo mais próximo, diante de um mundo que traz a marca do infinito. (...) De fato, o devaneio é um estado inteiramente constituído desde o momento inicial. Quase não o vemos começar e logo está longe, além, no espaço do além. (...) E o devaneio é, poderíamos dizer, contemplação primeira. (BACHELARD, 1984, p.316)

No entanto, só me aprofundei mais no assunto quando me deparei na vida com um outro inato e sensível contemplador: Andrei Tarkovski. Foi através do fascínio pelas imagens de seus filmes que comecei a estudar a fundo o termo, e não demorou muito para que eu descobrisse também suas polaroids7, através das pesquisas produzidas pela artista Miriam Chiara sobre a obra do diretor. O título do fotolivro veio de um de seus ensaios: “Paisagem Interior”, que foi publicado no catálogo da mostra cinematográfica “Tarkovski: eterno retorno", apresentada pela Fundação Clóvis Salgado em 2017, da qual

_______________ 6.

58

A Praia das Castanheiras é uma praia brasileira localizada na Ilha do Frade em Vitória, no estado do Espírito Santo. Possui pequenas piscinas naturais entre as pedras, além do mar aberto, propício ao nado. Situada em uma ilha, o acesso é feito por escadas ou por trilhas entre as rochas. Residi lá com meu pai por dois anos durante a infância.


O ensaio apresentado por Chiara no catálogo é um convite para a leitura de sua tese de mestrado: “A poética do tempo nas instantâneas de Andrei Tarkóvski”, publicada em 2016, a qual eu já havia lido. Entretanto, neste texto ela traz à tona um termo interessante para designar as polaroids de Tarkovski: imagens agentes. Agentes no sentido do “poder que possuem de agir na nossa imaginação, de provocar o

CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

tive a felicidade de participar.

nosso pensamento”(CHIARA, 2017). A artista defende que as fotografias do diretor conseguem despertar sensações ligadas tanto a memórias perdidas ou sonhadas, como também a imagens guardadas a partir do repertório individual de cada um, possibilitando pela associação entre a imagem observada e a imagem memorizada, “o devaneio e a invenção, alterando internamente o sujeito, abalando seu corpo e seu espírito, simultaneamente”. Chiara continua: “Todo estado de alma é uma paisagem", escreveu certa vez Fernando Pessoa. Em outras palavras, ele diz que a imagem tomada do mundo exterior não está separada, na nossa percepção, da maneira como a sentimos internamente. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria, um dia de sol no nosso espírito. (CHIARA, 2017, p.371)

Através das polaroids do Tarkovski e da análise feita por Miriam Chiara sobre elas, é que percebi que a fotografia também poderia ser um veículo para ativar esse processo no indivíduo. Se o recorte de uma paisagem, seja ela urbana ou não, consegue ser captado em conjunto com a atmosfera da fotografia para que esse processo ocorra. Chiara confirma isso ao dizer que:

_______________ 7.

Polaroid é um tipo de fotografia que é obtida de forma instantânea, e leva o mesmo nome da máquina que a produz. A Polaroid foi criada pelo físico americano Edwin Land em 1943, porém só se popularizou a partir de 1963, quando surgiram os filmes coloridos. Foi muito utilizada durante as décadas de 1970 e 1980, mas com a chegada das máquinas digitais se tornaram obsoletas. Há alguns anos atrás a Fujifilm lançou a Instax Mini, trazendo a nostalgia de volta. Existem também aplicativos para Android e IOS que reproduzem os efeitos da polaroid, um deles é o Insta Mini, que utilizei para registrar as polaroids mostradas no capítulo anterior.

59


FIGURAS 23 e 24 - Polaroids

de Andrei Tarkovski, 1979-84.


O uso da palavra “ferir” no parágrafo anterior, vem precisamente para relembrar o que o crítico literário, semiólogo e filósofo Roland Barthes disse em seu famoso livro A câmara clara, a respeito do

CAPÍTULO 2 ◾ INCONSCIENTE SURREAL

Os tempos e relações possíveis entre os seres, o que a imagem guarda do seu poder de sugestão é o que inspira o olhar para elas. Por isso, proponho uma leitura emblemática dessas fotografias, que extrapolem o seu referencial histórico concreto, para uma imersão em suas atmosferas, embaladas pela desmesura. (CHIARA, 2017, p.371)

termo punctum, que segundo ele seria uma espécie de “acaso” existente na fotografia que teria o poder de “pungir” o espectador. Ou seja, ferir no sentido de incitar, provocar. Barthes defende que essa provocação gerada pelo punctum é o que desperta o desejo para além do que a imagem nos mostra: “não somente para ‘o resto’ da nudez, não somente para o fantasma de uma prática, mas para a excelência absoluta de um ser, alma e corpo intrincados” (BARTHES, 2015). Não vejo portanto, forma melhor de finalizar este capítulo senão com as próprias palavras do autor, que possibilitam a compreensão da escolha que fiz em utilizar a fotografia como suporte técnico na tentativa de despertar no espectador do fotolivro Paisagem Interior esse desejo de contemplar sua imensidão íntima: A foto me toca se a retiro de seu blábláblá costumeiro: “técnica”, “realidade”, “reportagem”, “arte”, etc.: nada dizer, fechar os olhos, deixar o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva. (BARTHES, 2015, p. 52)

*** 61



Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria.

CLARICE LISPECTOR



GRAVAR PALAVRAS



Um dia, quando eu estava prestes a entrar na Galeria do Ouvidor8, vi um livro jogado no chão. Quando me abaixei para pegá-lo, vi que na verdade se tratava de uma apostila de literatura de algum cursinho

CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

UM LIVRO NO CHÃO

pré-vestibular. Dando uma rápida olhada, um dos poemas pescou a minha atenção, e ao ler uma única frase dele, logo quis ficar com a tal apostila. Perguntei a algumas pessoas que estavam em volta se tinham visto caindo da mochila de alguém. Não viram. Ninguém nem mesmo tinha notado sua presença obstruindo o caminho. Eu tinha dezesseis anos quando isso aconteceu, mas hoje em dia, quando a lembrança vem à tona, me pego dando uma risadinha, pois são muitas as ironias da vida. Porque é curioso pensar que justamente uma apostila que havia sido perdida, esquecida, abandonada no chão, foi justamente o que despertou na minha cabeça a vontade de ser escritora. Até aquele momento, a única forma de escrita que eu tinha experimentado era a dos meus diários, que era mais descritiva e documental do que poética. Na verdade, algumas passagens até tinham uma tentativa de escrita mais criativa, mas não era algo que eu considerava bom e nem dava muita atenção. Mas à medida que meu repertório literário foi aumentando - algo que devo muito às aulas de literatura do ensino médio - eu sentia crescer uma vontade de expressar melhor e mais fielmente o que eu sentia do que o que acontecia de fato. E eu tinha muita dificuldade de fazer isso em uma narrativa, então comecei a ler mais poesias com a intenção de me inspirar nas primeiras tentativas de construir um poema. Portanto, quando fui fisgada por aquele poema do livro no chão, eu soube imediatamente que precisava conhecer mais a fundo a autora. Eu aprendi a ler ainda muito nova, antes mesmo de entrar para o ensino fundamental, graças a

_______________ 8.

A Galeria do Ouvidor foi o primeiro grande centro comercial da cidade, inaugurado em Março de 1964, e é considerada uma das principais referências para os consumidores de Belo Horizonte.

67


CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

um tio muito paciente que se dedicava a me ensinar. E como ele me ensinava a ler a partir dos livros infantis, logo peguei gosto pela leitura. Porque também o livro é esse objeto fantástico capaz de transcender nossa realidade, nos levando para mundos antes nunca vistos ou pensados, e isso era o que eu mais amava. No entanto, foi só na adolescência que eu comecei a ler com mais frequência. Uma das lembranças mais gostosas que tenho é a das aulas de Educação Física, que eu passava deitada na arquibancada com algum livro afundado na cara ao invés de ir me exercitar. Eu tinha a mania de ler até mesmo enquanto andava de volta para casa. Bons tempos que não voltam mais.

68

FIGURA 25 - Folha de rascunho, 2006.


esperta, acabei ficando íntima da bibliotecária. Me valendo de sua boa vontade e confiança, desenvolvi um método para “ficar” com alguns livros de que eu gostava muito. Eu sei o que você está pensando, mas se vale de justificativa eu vinha de uma família que achava que gastar com livros era um luxo que só pessoas ricas podiam ter. E eu também gostava de me aventurar um pouquinho com rebeldias ao sistema,

CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

Eu era uma das poucas alunas que frequentava a biblioteca da escola e, como sempre fui muito

afinal, eu era uma típica adolescente. Foi assim que “consegui” da biblioteca escolar o tal livro de poesias mencionado naquela apostila. O livro era o Flor da Morte, da poeta, crítica e tradutora mineira Henriqueta Lisboa (1901-1985). O livro tinha sido publicado pela primeira vez em 1949, e reunia poemas escritos pela poeta entre 1945 e 1949, no período pós-guerra, motivo pelo qual a morte é o tema central do livro. Pairava sobre o mundo os reflexos terríveis da Segunda Guerra Mundial, que havia exterminado milhares de vidas, deixando no ar um profundo desalento, que levou muitas pessoas a questionarem, e até mesmo a buscarem, a morte. Esse era um tema que me pegava em cheio, pois ali, no auge da minha adolescência, eu também começava a me perguntar sobre como seria morrer. Na época, eu vinha já há alguns anos lutando com um processo muito longo de luto, devido à morte inesperada do meu pai. No entanto antes de ele partir eu já havia visto a morte outras vezes, e ela sempre foi para mim um grande mistério, principalmente se somado ao fato dos fantasminhas que me acompanhavam desde a primeira infância, indo e vindo pela minha casa. Eu fui uma criança mais ou menos assombrada por essas questões, e quando cheguei à adolescência, elas caminharam para uma depressão. Porém, foi através da escrita que descobri o primeiro meio para expressar o que eu pensava e sentia, e os poemas de Henriqueta caíram como uma luva, por assim dizer. Mas logo notei que escrever poesia era uma tarefa difícil, porque às vezes o que sentimos pode ser algo tão profundo e abstrato que fica quase impossível encontrar palavras que sintetizem bem esses sentimentos. Ao ler as poesias de Henriqueta Lisboa, eu fiz também uma outra descoberta: meu vocabulário era bem limitado, uma vez que existiam em seus poemas palavras das quais eu nunca tinha ouvido falar, mas que pareciam condensar em si mesmas toda a profundidade do que ela desejava expri-

69


CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

mir. Comecei então a buscar no dicionário os significados dessas palavras, mas o que inicialmente era um meio de expandir o vocabulário, acabou por despertar um processo de escrita. Logo percebi que o acaso de abrir uma página qualquer no dicionário e escolher uma palavra aleatória que me chamasse atenção poderia ser um método interessante e provocativo para compor meus poemas, então, a partir dessa “brincadeira” foi que fiz meus primeiros experimentos com a escrita. Hoje em dia, analisando tudo isso, penso que foi daí que veio o flerte com os adjetivos, que sempre chamaram mais a minha atenção, pois eram eles os responsáveis por trazer beleza para as palavras ordinárias.

FIGURA 26 - Poema Minguante, 2008.

70

FIGURA 27 - Poema O corpo, recriado a partir do poema Minguante, 2012.


pois eu mexia e remexia as palavras o tempo todo, reconstruindo meus próprios poemas, procurando como se diz, tirar leite das pedras, até obter uma certa pureza e ficar satisfeita com o resultado. Reescrever os poemas era para mim uma brincadeira muito divertida e que me mostrava que o ato de refazer um texto a partir de outro já pronto, poderia sim ser um ato de criação9. Assim sendo, comecei a

CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

No entanto, eu nem imaginava que esse ato me levaria a um processo que duraria muitos anos:

“catar” palavras nos livros ao invés dos dicionários. Enquanto eu lia, circulava com o lápis as palavras que me pungiam, depois as anotava no meu caderno de escrita, e aí começava a brincar. O texto que acompanha o fotolivro Paisagem Interior é, portanto, um texto composto a partir de fragmentos de outros. Mais tarde, quando comecei a estudar as vanguardas artísticas, em especial o Dadaísmo, experimentei também algumas composições a partir das instruções de Para fazer um poema dadaísta, que Tristan Tzara (1899-1963) escreveu em 1920. A intenção de Tzara era deixar a responsabilidade de selecionar palavras e comunicar ideias para o acaso, e não para o artista, como pontua a psicóloga Ana Maria Pina Martins em seu artigo Movimento Dada: o banal e o indizível, de 1999: A poesia do ocasional é uma outra forma de anulação do sentido. Porém, Tzara recusa a própria intervenção do autor na criação da obra. Mais radical que Arp com as suas colagens ou a sua pintura automática (pegava num lápis e deixava a mão mover-se livremente sem olhar para o papel) uma vez que neste a mediação da acção ou a determinação da forma lhe permitia assumir a paternidade da obra, que Richter ao tentar captar a enigmática essência espiritual do ser nos seus retratos visionários «criados espontaneamente, num transe, na hora em que as luzes começavam a escurecer e se submergia nos sonhos», ainda se encontrava aí alguma participação do artista (Richter, 1965), Tzara deixava essa escolha unicamente à sorte. (...) Assim qualquer resultado é contingente, qualquer combinação ocasional. «O acaso afigurava-se-nos um procedimento mágico pelo qual se podia transcender a barreira da causalidade e da vontade consciente, e pelo qual a vista e o ouvido ganhavam em acuidade. Por isso apareciam novas sequências de pensamento e experiência. Para nós o acaso era o inconsciente, que Freud descobriu em 1900» (Richter, 1965). (MARTINS, 1999, p.725)

_______________ 9.

Ver: https://www.literaturabr.com/2017/05/19/escrita-nao-criativa-de-kenneth-goldsmith/

71


FIGURA 28 - Página 32 do livro Olhos de Cão Azul, de Gabriel Garcia Marques, edição de 1974.

FIGURA 29 - Folha do caderno de escrita, 2018.


CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

FIGURA 30 - Para fazer um poema dadaísta,

Tristan Tzara, 1920.

FIGURA 31 - Poema Karawane, Bell, 1917.

Hugo

Porém, enquanto os artistas dadaístas levavam o acaso ao extremo, eu preferia um acaso mais intuitivo, por assim dizer. Explorando essa visualidade das poesias Dadá, eu recortava todas as palavras de uma página escolhida ao acaso, as embaralhava em um copinho e escolhia um certo número a ser retirado. Mas ao contrário de Tzara, eu remontava a frase como “bem queria”, deixando a minha intuição guiar, através do olhar, as palavras para as posições que mais seriam fiéis ao que meu subconsciente desejava expressar.

73


FIGURA 32 - Poema That big sadness, 2017.

FIGURA 33 - Poema Desimportar, 2019.


e como ele pode ser despertado através do ato contemplativo. A verdade que surge no devaneio é algo tão profundo e às vezes tão inassimilável à nossa realidade, que se torna impossível descrevê-lo em palavras que acompanhem seu fluxo real. O texto que construí para o fotolivro Paisagem Interior, é, para mim, uma busca de descrever as profundezas desse devaneio, desses signos que habitam meu inconsciente, e que

CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

No capítulo Inconsciente Surreal, vimos brevemente as questões que estariam por trás do devaneio,

encontraram nessas palavras uma representatividade das sensações por ele experimentadas.

*

75



CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

VISUALIZAR PALAVRAS, GRAVAR IMAGENS

Não sei bem quando surgiu meu interesse em unir imagem e palavra. Mas considerando que esta é uma relação que está intrincada desde a Pré-História quando o homem primitivo usava a imagem como uma forma de escrita (VENEROSO, 2012), cabe pensar que talvez seja uma vontade inata ao ser humano. As vezes sinto que é vontade que sempre esteve ali guardada em algum canto do meu ser, e que a partir do primeiro momento em que aprendi um meio pelo qual ela pudesse se materializar, ela veio à tona. Pois só isso pode explicar o primeiro dos primeiros trabalhos que fiz quando comecei a graduação em Artes, e ele já envolvia palavra e imagem, juntas, se complementando e se fundindo, formando o sentido do que eu desejava expressar. O primeiro trabalho artístico que fiz foi uma série de colagens feitas a partir de recortes de revistas, alguns dos meus poemas e resmas de papéis fantasia que eu guardava, nada sério ou intencional, apenas experimentos. Primeiro, colei todos os recortes em folhas brancas, depois os xeroquei em papel vegetal, o que quase custou uma das impressoras da papelaria e o emprego da atendente, e a partir dessas cópias criei as colagens, sobrepondo imagens e textos. Depois as digitalizei e utilizando um programa de edição, as coloquei em negativo, gerando assim a imagem final.

77


FIGURAS 34 e 35 - Recortes montagem de colagem, 2015.

para

FIGURA 36 - Imagem final digitalizada com efeito negativo, sem título, 2015.


primeira série de xilogravuras utilizando a técnica do chine-collé10.

CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

de que tomei com as revistas e jornais. E foi explorando esses veículos de comunicação que produzi a

FIGURA 37 Xilogravura, sem título, técnica chine-collé, 2016.

_______________ 10.

O nome da técnica vem do francês: “chine” aparece porque o papel fino tradicionalmente utilizado para essa técnica era importado da China, Índia e Japão. Já “collé” se refere à colagem.

79


FIGURA 38 - Xilogravura, Hamlet, chine-collé, 2016.

FIGURA 39 - Xilogravura, Virgo, chine-collé, 2016.


permite que a cor apareça na impressão final sem a necessidade de uma nova matriz de impressão específica para isso, usando a colagem de papéis coloridos para se obter o resultado. No entanto, antes de utilizar o chine-collé, eu fiz algumas impressões diretamente nos jornais, pois queria ter uma noção de como a palavra iria interferir na imagem. Com isso notei que o chine-collé poderia me dar mais

CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

A proposta do chine-collé é a de trazer cores e também texturas para a gravura. É uma técnica que

possibilidades de composição e interferência na imagem. Existem várias maneiras11 de se fazer o chine-collé, porém optei pela menos convencional, que era fazer a colagem com os jornais no papel final onde a gravura seria impressa, e depois disso fazer a impressão da matriz sobre a colagem. No ano de 2016 comecei a participar de feiras gráficas, em especial a Faísca12. Eu já tinha o costume de frequentá-las muito antes de começar meus estudos, mas quando iniciei a habilitação em gravura, notei que quase não haviam trabalhos com as técnicas tradicionais de gravura nas feiras. A serigrafia era a técnica mais utilizada pelos artistas feirantes, pois apresentava uma estética mais ligada às artes gráficas atuais e era também mais econômica para se produzir em larga escala. No entanto, eu pensava que o caráter manual da xilogravura era algo muito importante de ser valorizado, e assim criei o

_______________ 11.

A forma mais utilizada para fazer o chine-collé é a que imprime a matriz juntamente com o papel a ser colado para dar a cor. Funciona assim: recortamos primeiro o papel mais fino, que é o papel de seda colorido, passamos então uma fina camada de cola do lado mais opaco do papel. O próximo passo é entintar a matriz a ser impressa e depois colocar sobre ela os papéis coloridos, com a cola voltada para cima, de forma que ao passarmos a matriz pela prensa, o papel colorido será colado no papel final, dando assim a cor à gravura. O processo pode ser visualmente compreendido nesse link: https://handprinted.co.uk/blogs/blog/printing-with-chine-colle 12.

A Faísca foi criada em junho de 2015 como uma feira de publicações e arte impressa, a primeira do estado de Minas Gerais com essa periodicidade. Entre 2015 e 2017, foram realizadas 23 edições do evento, reunindo mais de 350 expositores diferentes, entre artistas com trabalhos individuais e grupos, como coletivos, selos e pequenas editoras. A feira era tradicionalmente realizada no BDMG Cultural e na rua Bernardo Guimarães, em frente ao Instituto, em Belo Horizonte. Em 30 de novembro de 2017 foi inaugurada a Fanzinoteca Faísca, a primeira biblioteca pública de Belo Horizonte voltada para zines e outros trabalhos gráficos independentes, que fica na Usina de Cultura e tem acesso gratuito. Em setembro de 2020 a feira se transformou no Faísca Festival Internacional de Risografia, e estreou sua primeira edição como festival e como encontro virtual, convidando artistas, designers, impressores e editores de vários países. A programação é composta por conversas e entrevistas, debates e palestras, oficinas, ateliês de impressão, por experimentações visuais e pelo lançamento de publicações impressas. O festival inaugurou sua loja online como encerramento do mesmo ano, estendendo suas atividades até os primeiros meses de 2021. A principal plataforma para acompanhar a programação é o canal de YouTube da Faísca, que pode ser acessado no endereço: https://www.youtube.com/faiscafestival e também no site: https://faiscafestival.com.

81


CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

Jardim Xilográfico, um projeto que se destinava a colocar em discussão a gravura tradicional e as artes gráficas. Foi assim que começou também meu interesse pelos fanzines13 e livros de artistas14, que estavam sempre presentes nas feiras também. Com o Jardim Xilográfico eu produzi os primeiros poezines, zines de poesia, onde texto e gravura conversavam. Quando fiz o Poesia Natural, comecei a experimentar a espacialidade das palavras no papel, o que seria mais tarde muito importante para me ajudar a elaborar a distribuição do texto no Paisagem Interior. No ensaio A imagem da escrita, escrita da imagem, de 2012, a artista, pesquisadora e professora Maria do Carmo de Freitas Veneroso, aborda a importância dessa espacialidade textual na página em branco, argumentando que é desses “vazios” deixados pelas palavras espaçadas que “emergem os significados” (VENEROSO, 2012). A autora destaca a importância que o poema “Un Coup de Dés”, de Stéphane Mallarmé15 (1842-1898), trouxe para a visualidade da palavra, mesmo que muito antes dele outros poetas tenham explorado essa espacialidade: Também Mallarmé, com “Un Coup de Dés”, provoca uma verdadeira ruptura, ao lançar mão de recursos visuais na composição de seu poema-constelar. O poeta não somente faz uso da tipografia, mas também quebra a linearidade (fundamento da escrita ocidental) e rompe com a sintaxe e a pontuação, de modo que as relações entre as palavras serão sobretudo relações espaciais. (...) Pode-se traçar, desde a Antiguidade Helenística, a trajetória de toda uma linhagem de poetas que exploram a visualidade da letra e também a importância do branco da página como elemento constituinte do poema, podendo ser considerados os “precursores” de Mallarmé e de seus sucessores. (VENEROSO, 2012, p.33)

_______________ 13.

82

A palavra fanzine vem da contração da expressão em inglês fanatic magazine, que significa em português revista de fãs. São publicações feitas por pessoas e para as pessoas que gostam de um determinado tema em comum, sejam elas amadoras ou profissionais. Eles podem trazer textos diversos, histórias em quadrinhos , reprodução de HQ 's antigas, poesias, divulgação de bandas independentes, contos, colagens, experimentações gráficas, etc. Os fanzines não são distribuídos em bancas ou livrarias e têm tiragens limitadas, o que os torna raros e também muito especiais pelo fato de terem muitas vezes um conteúdo exclusivo.


seus autores e precursores, e principalmente seu caráter visual, que influenciou a disposição textual do poezine Um mundo de imensidões, desenvolvido por mim em 2018. O projeto de impressão do fotolivro Paisagem Interior estava a essa altura parado, pois eu enfrentava dificuldades para resolver as questões de sua impressão, e resolvi colocar o projeto “de molho” por um tempo indeterminado. Havia também uma

CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

Conheci os poemas de Mallarmé quando comecei a pesquisar mais a fundo a Poesia Concreta16,

importante diferença entre os dois projetos: enquanto Paisagem Interior surgiu a partir de questionamentos sobre como editar o material registrado nas ações de percurso que eu executava, Um mundo de imensidões havia sido pensado para ser um fotolivro desde o início.

FIGURA 40 - Un coup de dés, Stéphane Mallarmé, 1897.

_______________ 14.

Segundo Stephen Bury (1995), “livros de artista são livros ou objetos em forma de livro; sobre os quais, na aparência final, o artista tem um grande controle. O livro é entendido nele mesmo como uma obra de arte. Estes não são livros com reproduções de obras de artistas, ou apenas um texto ilustrado por um artista. Na prática, esta definição quebra-se quando o artista a desafia, puxando o formato livro em direções inesperadas”. Em suma, o livro de artista é um objeto de arte que fala por si mesmo, podendo extrapolar inclusive o próprio conceito de “livro”, não necessitando de serem lidos para serem compreendidos — na verdade, a leitura deve ocorrer na estrutura geral do livro, e não pelo seu texto. Em sua grande maioria, livros de artistas são objetos de experimentação, podendo conter múltiplos discursos e poéticas. 15. Stéphane Mallarmé foi um poeta e crítico francês que representou o culminar de simbolismo e foi um antecedente claro das vanguardas que marcariam os primeiros anos do século seguinte. 16. Poesia concreta é um tipo de poesia vanguardista, de carácter experimental, basicamente visual, que procura estruturar o texto poético escrito a partir do espaço do seu suporte, sendo ele a página de um livro ou não, buscando a superação do verso como unidade rítmico-forma.

83


FIGURAS 41, 42, 43 e 44 - Zine Um mundo de imensidões, Litografia Offset, 2018.


acompanhar seus percalços desde a idealização até a impressão final. Foi também uma retomada de construção textual utilizando o processo parecido que fiz com o texto de Paisagem Interior, só que desta vez partindo de um só texto inicial escrito por mim, a partir da descrição de um sonho. A descrição também sugeriu as imagens que foram trabalhadas na litografia e depois impressas e digitalizadas. Por

CAPÍTULO 3 ◾ GRAVAR PALAVRAS

Isso foi muito importante para mim, pois entendi todo o processo criativo e pude também

fim, foi hora de construir o poema e experimentar sua espacialidade junto à dinâmica das dobras do livro. A experiência adquirida no poezine Um mundo de imensidões foi fundamental para que eu reavaliasse o projeto gráfico de Paisagem Interior, porque, inicialmente, ele era bem diferente do que é hoje. Mas falarei destes aspectos no próximo capítulo, por ora basta dizer que concluir o Um mundo de imensidões, foi, sem dúvida, muito importante para me fazer ver as relações entre a imagem e a visualidade da palavra no meu trabalho, o que me fez perceber um processo de criação, e possibilitou ainda que eu tivesse um panorama mais amplo, me fazendo sentir a vontade e a necessidade de me aprofundar nas pesquisas que eu levava antes como sendo apenas ingênuas investigações.

***

85



O espírito do mundo somos nós, a partir do momento em que sabemos mover-nos, a partir do momento em que sabemos olhar.

MAURICE MERLEAU-PONTY



PERCORRER COM O OLHAR



A citação acima foi extraída do livro Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo,

CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

“A pergunta artística não é mais: “o que fazer de novidade?”, e sim: “o que fazer com isso?”. dito em outros termos: como produzir singularidades, como elaborar sentidos a partir dessa massa caótica de objetos, de nomes próprios e de referências que constituem nosso cotidiano? Assim, os artistas atuais não compõem, mas programam formas.” (BOURRIAUD, 2009, p.13)

escrito pelo crítico de arte Nicolas Bourriaud e publicado em 2009, e a escolhi para iniciar esse último capítulo por ela ter me feito voltar no tempo e pensar em qual foi a primeira vez que me apropriei de algum objeto. Eu guardo comigo uma lata de biscoitos já meio velha e enferrujada, onde coloco alguns objetos que coletei durante a vida, alguns deles comprados em antiquários, alguns herdados de familiares e outros ainda, despretensiosamente subtraídos das casas por onde já passei. Todos têm em comum algo que eu não sei explicar, um certo brilho ou cor que me toca e me remete à um passado do qual não tenho mais lembrança, mas que insisto em perseguir com o olhar e com o tato, e que formam juntos uma história que eu não sei contar. Há ainda uma outra caixa, nessa, existem fotografias. Muitas delas são de meus antepassados e da minha infância, e há também as achadas nos lixos dos outros e algumas que foram compradas. Pessoas e lugares que não conheço, mas que quero guardar comigo. Sempre tive um mimo muito grande com essas coleções, e as guardava como um tesouro, sempre no canto mais protegido da casa. Nunca soube o que fazer com elas, mas elas sempre me chamavam. Sussurravam em meus ouvidos ecos das suas histórias, que desejavam ser contadas. Muito antes de eu decidir estudar arte, eu já tentava dar um destino a esses objetos, quando comecei a escrever, uma das maiores vontades era contar a história da minha família, e eu chegava a usar essas fotos para delinear meus personagens, mas como muitos projetos, fui deixando de lado. Foi só quando esbarrei com o termo “apropriação” na escola de artes que fui ver essas coleções com outros olhos. Olhos estes, que buscavam uma forma de narrar uma história, mas que não haviam pensado em narrá-las visualmente.

91


CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

Foi pensando neste “arquivo” pessoal que fui atrás de estudar mais sobre a fotografia, pois eu tinha ouvido falar do termo “apropriação” primeiramente ligado às imagens. A pós-produção citada por Bourriaud tem mais a ver com a ideia Duchampiana de dar um novo sentido/significado para um objeto já existente, no entanto, foi essa ideia a que primeiro levantou o questionamento do que hoje chamamos de apropriação e que é tão presente na Arte Contemporânea. Bourriaud explica que: Quando Marcel Duchamp expõe um objeto manufaturado (um porta-garrafas, um urinol, uma pá de neve, etc.) como obra do espírito, ele desloca a problemática do processo criativo, colocando a ênfase não em uma habilidade manual, e sim no olhar do artista sobre o objeto. Ele afirma que o ato de escolher é suficiente para fundar a operação artística, tal como o ato de fabricar, pintar ou esculpir: “atribuir uma nova ideia” a um objeto é, em si, uma produção. Desse modo, Duchamp completa a definição do termo: criar é inserir um objeto num novo enredo, considerá-lo como um personagem numa narrativa. (BOURRIAUD, 2009, p. 22)

A discussão levantada por Duchamp ao questionar o status quo da arte expondo um objeto banal e cotidiano como sendo uma obra de arte trouxe profundos questionamentos que permeiam toda nossa produção artística na atualidade. Foi pensando nessas questões que fui para a disciplina de Fotografia Projeto17. Eu tinha todo esse material, que eu achava por alguma razão que poderia ser um objeto de estudo potente para um trabalho de arte e queria aprender como fazer isso. A partir disso foi que conheci o maravilhoso mundo dos fotolivros, que me fascinaram instantaneamente devido a seus poderes transgressores de jogar com narrativas visuais que traziam à tona questionamentos sobre a veracidade na fotografia e na arte. Trabalhos de artistas conceituais e extremamente críticos que se incubiram em ressignificar imagens negligenciadas, abandonadas, arquivadas ou esquecidas por múltiplas razões, como o apagamento histórico, o arquivamento de dados, e até mesmo pela própria evolução da fotografia, e que

_______________ 92

17.

Disciplina de formação livre do curso de Artes Visuais da EBA - UFMG.


Contemporânea. Foram os fotolivros de artistas como Joan Fontcuberta, Duane Michals, Sophie Calle, Gerhard Richter, Erik Kessels e Rosangela Rennó que me mostraram o mundo infinito de possibilidades a que as imagens descartadas pela nossa sociedade atual podem servir no campo da arte. Rosângela Rennó disse uma vez em um vídeo18 uma frase que ficou comigo e que diz muito do porquê trabalhar com

CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

criaram a partir desse material novas narrativas poéticas, pontuais e muito necessárias à Arte

imagens que já existem: “Muitas vezes uma imagem que é destinada ao lixo, fala algumas coisas mais importantes do que as que foram guardadas no álbum.”

FIGURAS 45, 46 e 47 - Revista Useful Photography #007, 2007.

_______________ 18,.

O vídeo foi gravado para o lançamento de um livro sobre a obra da artista produzido pelo Projeto Circuito Atelier da editora C/Arte em 2003 e pode ser visto no endereço: https://comartevirtual.com.br/produto/rosangela-renno/69130

93


FIGURAS 48, 49, 50 e 51 - Revista Useful Photography #001,2000.


FIGURAS 52 e 53 - Exposição 24hrs in photos, Erik Kessels


FIGURA 54 - Obituário Transparente de Rosângela Rennó, 1991.

FIGURA 55 - Cicatriz, Rosângela Rennó, 1997.


FIGURAS 56, 57 e 58 - Imemorial, Rosângela Rennó, 1994.


CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

Bem, um dos punhados de fotografias que eu tinha naquela caixa eram as fotografias de paisagens. Muitas delas vinham dos meus álbuns de infância e eu nunca soube que as tirou, mas gosto de pensar que foi meu pai já que foi ele que me mostrou a habilidade contemplativa do olhar. Outras eu havia comprado em sebos e ou recortado dos livros escolares de Geografia e de História que eu também colecionava, pois amava mapas. Que coincidência não? Só me dei conta agora que escrevi o quão simbólico é para meu trabalho o ato de colecionar mapas, e eu nem me lembrava disso. Mas enfim, foram essas fotos de paisagem que escolhi para desenvolver o projeto do fotolivro Paisagem Interior, pois como disse anteriormente, eu buscava por imagens que pudessem representar as ações de percurso que eu fazia. Algumas das imagens do fotolivro vieram de fato dos registros que fiz nessas caminhadas, mas levando em conta o que aprendi com os fotolivros que estudei enquanto cursava a disciplina de Fotografia Projeto, escolhi usar também imagens desse arquivo que eu colecionada e ainda outras colhidas da internet. Um dos fotolivros que mais influenciou a escolha e a edição das imagens do Paisagem Interior, foi o Atlas, do pintor Gerhard Richter (1932).

98

FIGURA 59 - coleção de fotografias de paisagem, acervo pessoal.

FIGURA 60 - fotografia coletada na internet e usada no fotolivro.


FIGURA 61 - Landscapes do Atlas Book, Gerhard Richter, 1971.


FIGURAS 62, 63 e 64 - Fotos do livro Atlas Book e página 144 aberta.


revistas e jornais colecionados por ele desde os anos 1960 até a atualidade. A última edição saiu em 2011 e consistia em 862 páginas em que o artista se ocupou em construir uma extensa tipologia dessas imagens. O fotolivro é separado portanto em diversas categorias, e a que mais me tocou foi justamente a de paisagens. Richter editou as fotografias sistematicamente na ordem em que foram tiradas, incluindo

CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

Richter apresenta neste fotolivro um compilado de fotografias, suas e de outros, e recortes de

os erros e testes de câmera, o que criou degradê muito singular na edição. Esse degradê me despertou para a ideia de passagem de tempo e das sutis mudanças que afetam a paisagem a cada hora passada, e decidi trazer essa ideia para o Paisagem Interior. Eu queria determinar um tempo e espaço para a deriva que aconteceria no livro, ou seja o decorrer de um dia. Um dia de caminhada pela cidade, onde o corpo poderia interagir livremente com o espaço, onde o espaço pudesse ser contemplado, onde os pensamentos despertados pelo ato contemplador pudessem se revelar. Por essa razão, cortei as imagens em quadrados, visando privilegiar as nuances de cores que dão a percepção do passar do dia. O livro totalmente aberto, começa com o azul claro matinal, pelo branco nublado do meio-dia, pelo cinza amarronzado da tarde para finalmente desaparecer no preto da escuridão que a noite nos reserva.

FIGURA 65 - Fotografia da coleção de paisagens com marcas de corte, acervo pessoal.

101



FIGURAS 66 e 67 - Projeto gráfico do fotolivro Paisagem Interior, frente e verso, 2021.


CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

Outra provocação que as imagens cortadas trazem consigo é o detalhe, o recorte feito pelo olhar e guardado na memória, pois muitas vezes é somente um fugaz vislumbre a memória de um dia. Um cheiro, a cor do céu em um nascer ou pôr do sol. Doces lembranças que guardamos com nostalgia, às vezes vindas da infância, às vezes vindas dessa captura que nossa alma faz através do olhar desse mundo louco e ao mesmo tempo lindo que nos cerca. Penso que às vezes o olhar capta essas “paisagens” até mesmo não intencionalmente. Ele as capta do mundo real, do mundo imaginário e também do mundo virtual, e armazena em nossa memória esses fragmentos de imagem que são acionados quando precisamos de acessar nossa imensidão íntima, nossa paisagem interior.

*

104



CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

UM ACONTECIMENTO O arquiteto Francisco Carreri, que citei no primeiro capítulo deste trabalho, argumenta que o território terrestre foi modificado fundamentalmente pelo ato de caminhar, pontuando que o percurso seria um espaço imaterial com significados simbólico-religiosos que primeiramente se desdobraram através da narrativa literária: Durante milhares de anos, quando ainda era impensável a construção física de um espaço simbólico, percorrer o espaço representou um meio estético através do qual era possível habitar o mundo. Associavam-se à errância a religião, a dança, a música e a narração nas suas formas de epopeia, de descrição geográfica e de iniciação de povos inteiros. O percurso/narração transformou-se num gênero literário ligado à viagem, à descrição e à representação do espaço. (CARERI, 2013, p. 63)

É muito interessante perceber o quanto o caminhar e a escrita andam juntos a ponto até mesmo de terem se transformado em um gênero literário. Como já disse antes, sempre li muito, e esse sempre foi um dos meu géneros favoritos, no entanto, e somente agora, depois de ler essa passagem escrita por Careri, foi que essa relação se tornou mais evidente para mim, especialmente se penso em obras que narram a história a partir de uma viagem ou trajeto. Concluo então que um fotolivro que sugere uma narrativa visual do percurso é ainda um encontro mais íntimo do que pensei antes, e fico contente em perceber que existe ainda uma razão a mais para o Paisagem Interior ter acontecido na forma de um livro. Mas foram outras razões que me levaram a escolher o livro como um suporte para expor essa narrativa visual que criei a partir do percurso. Uma das ideias centrais para mim era fazer com que o espectador pudesse experimentar a Deriva, e que as fotos pudessem estar posicionadas de uma forma que o instigasse à ela. Porém, pensar essa série de fotos em uma instalação era um tanto difícil, uma vez que por estar trabalhando a partir de fotografias já desgastadas, escaneadas ou mesmo recortadas, a 106

ampliação das mesmas iria ficar prejudicada. Esse foi o pontapé inicial que me fez pensar em outro formato para o projeto.


que a escolha do livro como suporte poderia ser a mais adequada. No ensaio O livro-objeto na poética de Hilal Sami Hilal: a construção de um espaço/tempo os artistas Aparecida Ramaldes e José Cirillo afirmam que os livros nos convidam a interagir e mesmo que o deixemos na estante, sentidos como o tato e o olfato são convocados juntamente com a memória (2013, p.87-88), ou seja, o livro por si só é uma provocação que

CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

Ao pesquisar mais a fundo sobre o livro de artista foi que me deparei com algo que me fez pensar

convida para uma ação/experimentação. Nos livros de artista essa proposta é muito presente, pois suas abordagens além de muito abrangentes, permitem também uma desconstrução do formato do códice19, viabilizando além da leitura visual uma interação corporal com o mesmo. No catálogo da exposição Ainda: o livro como performance que aconteceu no Museu de Arte da Pampulha em 2014, o artista curador da exposição Amir Cadôr explica que: Se a performance implica o real, através da presença física do corpo, a leitura de certos livros de artista coloca o corpo em uma postura ativa e, portanto, performática. Dizem que a performance só pode viver se for apresentada de novo. Alguns tipos de texto dependem da leitura para ganhar vida (...) Um livro de artista é um tipo de obra cujo sentido é dado à medida que as páginas são viradas, à medida que percebemos sequencialmente sua estrutura. (CADÔR, 2014, p.50)

Não seria a Deriva um tipo de performance? De modo geral, a performance é um acontecimento que assim como o livro acontece em um determinado espaço/tempo. Olhando por esse viés, elaborei a primeira ideia para o fotolivro. Inicialmente o modo que pensei para o espectador/leitor experimentar a Deriva era através de uma leitura mais passiva que seria provocada mais pela disposição textual do que pelo formato do livro. O formato era sanfonado, ou seja, uma tira longa cujas páginas são formadas por dobras. Dessa forma a leitura poderia ser por página e também visualizada por completo se o livro fosse

_______________ 19.

Por definição: O livro como estrutura formal constituído por “cadernos” que compõem o corpo da encadernação - conhecido nos primórdios como códex (ou códice) e depois pelos manuscritos e incunábulos - é uma criação tardia na Europa que veio a substituir os volumem, rolos de pergaminhos e/ou papiros, usados fortemente até a o século IV d. C. (MCMURTRIE, 1997).

107



FIGURAS 68

e 69 - Primeiro projeto gráfico do fotolivro Paisagem Interior antes das alterações finais, 2017.


CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

totalmente aberto. Nesse primeiro formato, o texto do Paisagem Interior era disposto de forma que o leitor para conseguir fazer a leitura “correta” do texto, precisaria ir e vir do começo ao fim do livro a cada parágrafo do texto. Contudo, essa ideia remetia mais a uma lógica de vaivém do que com a da Deriva, e por essa razão o formato foi modificado. Eu buscava por um formato em que a ideia da Deriva pudesse ficar mais evidente e provocar o leitor a interagir com o livro de modo a experimentá-la, mesmo que fosse em uma micro perspectiva. Além disso, eu queria também que o leitor pudesse explorar o processo criativo do texto, criando a partir do formato, das dobras, outras frases e composições, assim como fiz quando o construí. Ainda no texto do catálogo que citei acima, Cadôr diz que: O termo performativo, no campo das artes visuais, “é usado simplesmente para descrever, identificar ou quantificar certo trabalho artístico que tenha relação com a performance ou tenha atributos conectados à performance”19. Nos exemplos a seguir, a aproximação entre livro e performance é dada por uma estrutura material que convida o leitor ao manuseio. A encadernação (ou sua ausência) permite que o livro seja reconfigurado pelo leitor, realizando combinações a partir de um grupo limitado de temas (palavras ou imagens). A leitura não é apenas um ato intelectual, uma atitude corporal passiva diante da obra, mas um gesto, uma ação física, em que virar as páginas pode fazer surgir um novo desenho ou um texto inédito. (CADÔR, 2014, p.60)

Cadôr cita dois exemplos de livros de artista para ilustrar a questão, e achei pertinente apresentá-los aqui, são eles: A espera (Wartelist) de Jan Voss, e Colidouescapo, de Augusto de Campos. No caso de o A espera, as páginas são vendidas avulsas de modo que quanto mais páginas são compradas, maior é o tempo de espera, já em Colidouescapo novas palavras20 são formadas a partir das dobras do livro. Então pensando nessas proposições foi que cheguei no formato final do fotolivro Paisagem Interior.

_______________ 110

20.

Um vídeo do livro sendo manuseado https://www.facebook.com/1029726673869633/videos/206675170831080

pode

ser

visto

neste

endereço:


FIGURAS 70, 71 e 72 - Páginas avulsas do fotolivro A espera (Waterlist) de Jan Voss, 1984.


FIGURAS 73 e 74 - Fotolivro Paisagem Interior, 2021.


verso, de modo que a cada dobra uma nova possibilidade de leitura tanto visual como textual pode surgir. Além de atender a ideia da Deriva com seus muitos possíveis caminhos, a experiência de manipular o livro evoca o ato de abrir um mapa21, exigindo assim um maior deslocamento corporal, uma ação, ao mesmo tempo que sugestiona a ideia de um trajeto a ser percorrido.

CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

No formato atual, suas páginas se abrem para diferentes direções, com impressões na frente e no

Outro ponto significativo é que ao reconfigurar o livro para seu formato fechado, cada leitor poderá dobrá-lo à sua maneira, fazendo com que o livro se torne uma obra inédita e exclusiva. A experiência textual também remete ao processo criativo pelo qual o texto foi construído, ou seja, através de fragmentos e recombinações. Ao dobrar as páginas em uma direção diferente, uma outra composição textual pode surgir, ampliando assim as possibilidades de interpretação e fazendo com que o leitor possa também executar o ato criador.

FIGURA 75 Fotolivro Paisagem Interior, 2021.

_______________ 21.

Disponibilizo neste link um vídeo do fotolivro sendo https://drive.google.com/file/d/1SLmwxSa7V7Pu5CDc9MJNI-lCXPT1a9BL/view?usp=sharing

manipulado

manualmente:

113


FIGURAS 76 e 77 - Fotolivro Paisagem Interior, 2021.


FIGURAS 78 e 79 - Fotolivro Paisagem Interior, 2021.


FIGURA 80 - Fotolivro Paisagem Interior, 2021.


FIGURA 81 - Fotolivro Paisagem Interior, 2021.


CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

Há ainda uma outra questão muito importante que este novo formato do Paisagem Interior levanta: ele rompe com as barreiras impostas pelas classificações à respeito dos livros produzidos por artistas, uma vez que transita entre o fotolivro e o livro de artista, pois ele explora as possibilidades da interação com o livro através da subjetividade do livro de artista ao mesmo tempo que constrói sua narrativa a partir de imagens. Confrontar essas barreiras é importante pois afeta a maneira de pensarmos o livro não mais como um objeto mas sim como um acontecimento, e a estudá-lo a partir das relações que ele propõe, e não através de suas classificações. Marina Feldhues Ramos defende em sua tese Conhecer Fotolivros : (in) definições, histórias e processos de produção de 2017, o rompimento dessas fronteiras ao dizer: Dissolvamos, então, as fronteiras. Soltemos os livros para que fluam livremente. Os livros são os seus movimentos. Se aqui tal fotolivro é obra, ali é projeto; se de um lado é livro de autor, do outro é de artista; ora é feito por um artista, ora por um fotógrafo, ora por um outro editor qualquer; ou tudo isso ao mesmo tempo. Os livros não reconhecem bem o que é dentro e o que é fora, o que pode e o que não pode, eles apenas se movimentam, se entrelaçam em devir. Só existem fronteiras quando enxergamos os livros como objetos inertes, estáticos, pertencentes a determinados lugares. Tim Ingold (2015, p.307) diz que os objetos46 são aquilo que ficam “em pé diante de nós como um fato consumado, completo em si mesmo, ele bloqueia nosso caminho”. Os livros são coisas. Coisas, por outro lado, não existem, acontecem. (RAMOS, 2017, p.48)

Concluo este capítulo refletindo todo o percurso apresentado neste trabalho. Todo o desdobramento que se desvelou a partir de um só livro, e penso finalmente que nenhum outro suporte poderia ser melhor e tão amplo em significados e possibilidades do que um livro. Pouquíssimas coisas, sim coisas, porque como já vimos o livro é uma coisa e não um objeto22, pouquíssimas coisas podem tanto a partir de tão pouco. É incrível que um volume tridimensional possa se expandir para tantas outras dimensões por nós nem mesmo imaginadas.

_______________ 118

22.

Esclareço aqui que me refiro ao objeto banal, pois existe também no campo dos livros de artista a categoria do “livro-objeto”, que se aproxima da escultura.


como performance, aqui já mencionado, uma pergunta feita pelo autor e também sem resposta ficou comigo: O que um livro pode? (2014, p.62). Esse trabalho é uma tentativa de responder esta pergunta. Ao perceber todos os caminhos pelos quais o Paisagem Interior seguiu, só posso concluir que um livro pode tudo o que ele quiser, inclusive ser uma suspensão no tempo. Pois é esta sua proposta principal:

CAPÍTULO 4 ◾ PERCORRER COM O OLHAR

No final do texto apresentado pelo curador Amir Cadôr no catálogo da exposição Ainda: o livro

caminhar, movimentar o corpo pelo espaço, contemplar a vida e a natureza que existe ao nosso redor, seja ela imersa no caos da cidade ou no silêncio do campo. Suspender a partir dessa experiência, o tempo, nem que seja apenas por um breve instante e contemplar então o que há dentro de si. Derivar é preciso.

***

119



fotolivro Paisagem Interior, com a intenção de demonstrar minhas poéticas pessoais e artísticas, e através delas tentar entender e apresentar alguns conceitos que transitavam em torno do projeto do fotolivro. Porém, escrever este trabalho foi um processo muito mais profundo e significativo do que eu havia imaginado. Me vi em um momento de reconhecimento e de descobertas que eu sequer pensava serem

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta inicial deste trabalho de conclusão de curso foi analisar o processo criativo do

tão intrínsecas à minhas experiências de vida, e isso foi uma surpresa muito fortuita e prazerosa. Voltar ao passado procurando entender o início dessas poéticas sintetizou todo meu processo criativo e acabou por direcionar a pesquisa até mesmo para questões que eu não havia intencionado antes. O trabalho aqui apresentado, foi portanto para mim, um reencontro com o fazer artístico que se desdobrou em inúmeras possibilidades de caminhos-derivas para os quais posso seguir na pesquisa, sejam eles intencionais ou direcionados pelo acaso. É um presente poder confiar nos caminhos do acaso, pois acredito que para quem confia nele, os resultados encontrados podem ser muito férteis. Essa multiplicidade de caminhos a seguir me fez deixar em aberto algumas questões nesta pesquisa, mas ao mesmo tempo despertaram a vontade de seguir adiante e ajudaram a delinear ideias para um futuro mestrado. No primeiro capítulo, Vias de Afeto, procurei falar sobre o ato de caminhar-derivar, e de como percebi a relação corporal-visual com o espaço da cidade e traduzi essa investigação em registros fotográficos, inspirada pela Teoria da Deriva de Guy Debord, e também pelas vanguardas artísticas dadaístas e surrealistas. Reconheci neste processo a importância que esses registros teriam para a construção de uma memória afetiva da cidade. No entanto, ao abordar o assunto, vi possibilidades de aprofundamento em outros conceitos muito interessantes para a discussão contemporânea. A exemplo, a questão de como o caminhar e as micronarrativas que surgem a partir deste ato simples e corriqueiro, podem vir a contribuir para o conhecimento espacial da cidade se utilizado como um instrumento de estudo na arquitetura, no design, no urbanismo e na arte, de modo a desenvolver as questões socioespaciais, e ampliar a partir desse deslocamento o uso do espaço para além do habitual, viabilizando uma cidade mais sensível, inclusiva, coletiva e experimental, e por consequência, mais criativa.

120


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Já no capítulo Inconsciente Surreal, busquei responder algumas questões que me intrigaram durante a deriva, como por exemplo o porquê o ato de caminhar-derivar-deambular interfere tanto na percepção de nós mesmos, do que está dentro. Teria a paisagem, ou seu recorte urbano, a ver com essa interferência? Analisando melhor o conceito de paisagem e o ato contemplativo pude notar que sim, observar a paisagem urbana e os recortes da paisagem natural é uma forma de buscar se reencontrar com nosso interior e a partir disso criar conexões afetivas com o mundo e com as pessoas que vivem nele. Aprofundar portanto na figura do flâneur, abordada por Walter Benjamin, seria de extrema importância para entender como essa relação surgiu e se transformou com o surgimento do urbanismo no início do século XX. Ao apresentar as deambulações surrealistas me deparei também com outras perguntas sobre o ato contemplativo. Seria ele uma ferramenta para acessar o inconsciente coletivo da cidade? A experiência feita pelos artistas surrealistas aguçam a questão desta interação com a paisagem, que como Careri mesmo coloca, partia de uma vontade primitiva em utilizar o caminhar para atingir um estado de hipnose com o intuito de adentrar o inconsciente do território (2013, p.78-80). No entanto, para estender esse questionamento seria importante investigar mais a fundo o inconsciente de Freud (1856-1939), e consequentemente o inconsciente coletivo de Carl Jung (1875-1961). Outra possibilidade seria o estudo do conceito de psicogeografia explorado pela vanguarda situacionista, que é também muito importante para entendermos os porquês dessa fenomenologia do fora-dentro, que a relação com o espaço e com a paisagem faz surgir. Porém, esse aprofundamento requer uma dedicação maior do que pude dar inicialmente a este tema. Em Gravar Palavras, terceiro capítulo deste trabalho, compartilhei meu primeiro contato com a escrita e como ele desencadeou um processo criativo que se uniu à imagem, primeiramente trabalhado na gravura, e depois nos projetos que desenvolvi a partir da fotografia. Expus também neste capítulo, as primeiras experimentações que fiz unindo palavra e imagem em publicações independentes, como o

122

fanzine, que foi a minha porta de entrada para o universo dos fotolivros, outro campo de estudo riquíssimo ao qual pretendo me dedicar mais no futuro.


trouxe também uma reflexão sobre o ato criativo: ressignificar narrativas a partir de um conteúdo já existente é algo de extrema relevância para questionar o que podemos fazer a partir do acúmulo de palavras e imagens que fabricamos todos os dias, e é também uma forma de fazer evoluir nossa história social. Fazer isto através de um ato revolucionário e transgressor, como o ato de copiar/apropriar, pode

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de reconstruir um texto a partir de outros, incitados pelas poesias dadaístas, me

ser profundamente transformador para nossa sociedade. Perceber isso serviu para me instigar a dar continuidade na pesquisa sobre a apropriação e também sobre a escrita não criativa, defendida por Kenneth Goldsmith, pois considero que a visualidade da escrita deve ser sim trabalhada junto a arte, mas também trabalhar com a potência que surge ao reconstruir seus sentidos é algo muito caro à nossa contemporaneidade. Essa questão da escrita não criativa, desperta o tema da apropriação, também muito presente nas poéticas contemporâneas, e da qual tratei brevemente no início do capítulo quatro Percorrer com o olhar. Nesse âmbito, os caminhos que podem se desdobrar para uma pesquisa em arte podem ser quase que, se não, infinitos. Basta mergulharmos no site do artista, designer e curador Erik Kessels (1966) para constatarmos o quão amplo e imersivo pode ser o tema da apropriação imagética. Um outro mundo a ser adentrado e que diz também a respeito da apropriação de imagens e de objetos, é o do colecionismo. Toquei brevemente no assunto ao apresentar algumas das fotos de paisagem que vieram de uma coleção pessoal minha e que utilizei no fotolivro, no entanto, muito há de se falar sobre a apropriação dos objetos, tanto na esfera cotidiana como na da arte, pois quase todos nós nos apropriamos de objetos pelos quais nutrimos algum sentimento, mas por que? E o que fazer com eles? Eu poderia então iniciar também a partir dessa questão toda uma pesquisa que partisse do readymade duchampiano, seguisse pelo estudo do objet trouvé surrealista e desembocasse em um estudo mais aprofundado da assemblage, como as caixas Fluxus, por exemplo. E por fim, procurei revelar como foi construído/projetado o fotolivro Paisagem Interior, e quais foram as mudanças necessárias para que ele se adequasse à proposta de criar uma experiência de deriva que utilizasse o livro como suporte. Neste ponto, voltei à narrativa visual dos fotolivros e adentrei um

123


CONSIDERAÇÕES FINAIS

pouco no aspecto performativo do livro de artista, e na possibilidade infinita de formatos e interpretações que podem se desdobrar a partir dele. Ou seja, estudar o livro de artista e trabalhar com suas subjetividades se torna também necessário por ser uma forma de se inserir na cultura, na arte, na literatura e na história, novas formas de olhar e conhecer o mundo e portanto, novas possibilidades de criar sensibilidades. Além disso, utilizar o livro como suporte para um projeto artístico viabiliza a democratização da arte, o que é essencial para a evolução humana. Portanto, só posso concluir que são muitos os caminhos a percorrer no porvir que esta singela apresentação sugestionou para mim, e espero poder seguir por todos eles, trazendo assim contribuições para a arte e para o mundo, como acredito que fiz aqui, mesmo que de forma mais breve. Se você derivou até aqui comigo, muito obrigado pela companhia. Até breve!

***

124



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mário de, 1893-1945. Mário de Andrade: fotógrafo e turista aprendiz. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1993. Trabalho de Con

auge do capitalismo. 2. ed. Trad. José Carlos Martins Barbosa; Hemerson Alves Baptista. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, 3).

ARBEX, Márcia. A Visualidade na Poesia - Os Precursores Do Concretismo. Revista de Letras v.19 Nº ½ - jan/dez 1997.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 2. ed. Trad. José Carlos Martins Barbosa; Hemerson Alves Baptista. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, 3).

ASSIS, Jean Felipe de. Contemplação e maravilhamento: Limites da causalidade em Platão, felicidade e prazer em Aristóteles, transcendência e emanação em Plotino. Clássica, v.31, n.1, p. 43-59, 2018. BACHELARD, Gaston, 1884-1962. A poética do devaneio / Gaston Bachelard; tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço / Gaston Bachelard; tradução Antônio de Pádua Danesi. - 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, selo Martins, 2008. (Coleção Tópicos) BARTHES, Roland, 1915-1980. A câmara clara: nota sobre a fotografia / Roland Barthes; tradução Júlio Castañon Guimarães. - [ed. especial] - Rio de Janeiro: il. (Coleção 50 anos) BEIGUELMAN, Giselle. Copiar é preciso inventar não. [Entrevista com Kenneth Goldsmith]. Select [S.l: s.n.], 2011. 126

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (Tradução de Carlos Felipe Moisés, Ana Maria Loriatti). BOURRIAUD, Nicolas. Introdução E O Uso Dos Objetos. In: Pós-produção. Como A Arte Reprograma O Mundo Contemporâneo. SP: Martins Fontes, 2009. BÜCHLER, Pavel. Turning Over The Pages : Some Books In Contemporary Art. Kettle’s Yard Gallery, 1ª edição. Cambridge, England; 1986. BURY, Stephen. Artists’ Books: The Book As a Work of Art, 1963–1995. Scolar Press, 1ª edição. Leicester, England; 1995. CADÔR, Amir. Ainda - O Livro Como Performance / Organização de Museu de Arte da Pampulha. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2014. 100 p. Campbell, Brígida. Arte para uma cidade sensível / Art for a sensitive city / Brígida Campbell; tradução pa-


CAUQUELIN, Anne. A invenção da Paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007. CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: G. Gili, 2013. CIRILO, José. RAMALDES, Aparecida. O Livro-objeto Na Poética De Hilal Sami Hilal: A Construção De Um Espaço/Tempo. In: Artistas - Autoria E As Práticas Colaborativas. / Poéticas da Criação, E. S. 2013. Organização de José Cirillo, Fernanda García Gil e Ângela Grando. São Paulo: Intermeios, 2013. 504 p. COELHO, Letícia Castilhos. A paisagem na fotografia, os rastros da memória nas imagens. In: gpit: Grupo de Pesquisa Identidade e Território. 2009. CHIARA, Miriam. Paisagem Interior. In: Tarkovski: eterno retorno / Philipe Ratton … [et al.], organizadores. Ed. única. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2017. 500 p. DEBORD, Guy. Teoria da Deriva. In: Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade / Internacional Situacionista; Paola Berenstein Jacques, organização; Estela dos Santos Abreu, tradução. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. 160p.

DIAS, Juliana Michaello M. “O grande jogo do porvir”: a Internacional Situacionista e a ideia do jogo urbano. In: Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.7, n.2, p. 210-222. UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. FRANÇA, Cláudia. Estratégias para se perder na cidade: Derivas urbanas de Sophie Calle. In: Arte & Ensaios Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ, v. 12, n.17. p.84-93. UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ra o inglês Valéria Sarsur e Pedro Vieira - São Paulo, Invisíveis Produções, 2015. 320 p.

GRAZZIANO, Gustavo. Códice: o tempo em suspensão. Dissertação de mestrado em Design e Arquitetura, FAUUSP. São Paulo, 2016. 228p. JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. LITTIG, Sabrina Vieira. O deslocamento do objeto pela apropriação artística. In: Artistas - Autoria E As Práticas Colaborativas. / Poéticas da Criação, E. S. 2013. Organização de José Cirillo, Fernanda García Gil e Ângela Grando. São Paulo: Intermeios, 2013. 504 p. MARTINS, Ana Maria Pina. Movimento Dada - O Banal E O Indizível. In: Análise Psicológica (1999), 4 (XVII): 723-726.

127


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MONTE, Luiz Augusto Dutra Souza do. Deriva e psicogeografia na cidade contemporânea: experimento situacionista no centro do Recife / Luiz Augusto Dutra Souza do Monte. Dissertação de mestrado. Área de concentração: Design e Ergonomia. Universidade Federal de Pernambuco. Recife: O Autor, 2015. 180 f. MORLEY, Simon. Introdução: palavras e imagens. In: FIGUEIREDO, C., OLIVEIRA, S. R., DINIZ, T. F. N. (org.). A intermidialidade e os estudos interartes na arte contemporânea. Santa Maria : Ed. UFSM, 2020. Cap. 7, p. 171-184. (no prelo) QUILICI, Cassiano Sydow. A contemplação reconsiderada: Artes Performativas e Investigações da percepção. Concept., Campinas, SP, v. 3, n. 1, p. 73-81, jan./jun. 2014 QUINTAS, Georgia. Inquietações Fotográficas: narrativas poéticas e crítica visual / Georgia Quintas; 1. ed. Fortaleza: Tempo d’Imagem, 2014. 216p.

128

RAMOS, Marina Feldhues. Conhecer Fotolivros : (in) definições, histórias e processos de produção. Dissertação de mestrado. Área de concentração: Comunicação. Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2017. 212 f.

SIMMEL, Georg. A Filosofia da paisagem. Política e trabalho, n.12, setembro, 1996, p.05-09. (Tradução: Simone Carneiro Maldonado). SPAGNOL, Elaine. O modo de fazer da fotografia artística contemporânea: memória e apropriação de imagens. Revista do Colóquio de Arte e Pesquisa do PPGA-UFES, ano 3, v.3,n. 5, dezembro de 2013. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Imagem da escrita, escrita da imagem. In : _______ CALIGRAFÍAS E ESCRITURAS. Diálogo e intertexto no processo escritural nas artes no século XX. BH: Editora C/Arte, 2012. Cap. 2, p. 32-40. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. A visualidade da escrita. In : _______ CALIGRAFÍAS E ESCRITURAS. Diálogo e intertexto no processo escritural nas artes no século XX. BH: Editora C/Arte, 2012. Cap. 4, p. 76-102.

***



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.