Memórias em série Reabilitação de edifícios industriais no Norte da França
JULIA MAZZUTTI
Universidade de Brasília Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Ensaio Teórico - Departamento de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo.
Memórias em série: Reabilitação de edifícios industriais no Norte da França Autora: Julia Mazzutti Bastian Solé Orientadora: Maria Cecília Filgueiras Lima Gabriele Banca: Eduardo Pierrotti Rossetti e Reinaldo Guedes Machado
Ensaio Teórico apresentado como disciplina obrigatória, a qual encerra a cadeia de Teoria e História da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Ensaio Teórico sobre a reconversão de edifícios do período industrial em equipamentos culturais no Norte da França: A recuperação do valor cultural e do valor de uso como instrumentos de valorização do patrimônio e resgate da memória coletiva local.
Brasília, 2017 1
(...) o artista, que representa o universo como o imagina, formula seus próprios sonhos e ainda assim enriquece a alma da humanidade. Pois, materializando o seu espírito no mundo real, ele revela aos seus contemporâneos extasiados mil nuances de sentimento. Ele os faz descobrir neles mesmos riquezas até então desconhecidas. Ele lhes oferece novas razões de amar a vida, novos clarões interiores para se conduzir. (Rodin, 1911, p. 112)
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SUMÁRIO 07 Resumo
09
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Introdução
Capítulo I. Patrimônio Industrial no Norte da França
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25
I.I
Capítulo II.
II.I
A Região de Análise Nord-pas-de-Calais
O Patrimônio Industrial como Locais de Cultura
Por que Cultura ?
16
28
I.II
II.II
O contexto industrial e a valorização do patrimônio local
Valorização da Memória e da Localidade
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33
Capítulo III.
III.I
II.III
Estudos de Caso
A Arquitetura se transforma e se integra à vida da comunidade
Identidade e Interatividade
38
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III.II
Apêndice I
Centro Cultural Gare Saint Sauveur Roubaix, França
42
60
III.III
Considerações Finais
Museu La Piscine Lille, França
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Imagem Pรกgina anterior:
Merve Ozaslan, House. 2013. Fonte: merveozaslan.com
RESUMO Este Ensaio Teórico consiste em uma análise da reabilitação de edifícios do período industrial em museus e centros culturais no Norte da França. O foco da investigação e análise a ser desenvolvida está na recuperação do valor cultural e de uso dessas construções como instrumentos de reconhecimento do patrimônio e da memória coletiva local. A partir das ideias e formulações de Beatriz Kuhl, Françoise Choay e Alois Riegl sobre patrimônio, objetiva-se examinar o contexto histórico formador desse conjunto arquitetônico industrial na região de avaliação, assim como as políticas patrimoniais e reformulações espaciais empregadas na conversão desses edifícios em programas culturais e seus efeitos em relação as vivências de identidade e memória pela comunidade local. Para tanto, prossegue-se a análise de dois estudos de caso nas cidades de Lille e Roubaix, verificadas sob os mesmos parâmetros inicialmente examinados para o tratamento patrimonial industrial em geral. Palavras-chave: patrimônio industrial, cultura, memória, reabilitação, Nord-Pas-de-Calais
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INTRODUÇÃO O fascínio que a França exerce sobre a população ocidental é incontestável. Seus feitos históricos; as cidades maravilhosas - cenários de tantos sonhos e disputas; sua gastronomia; suas palavras infiltradas em vários idiomas; seus artistas e seus museus; sua arquitetura que conta e constrói essas histórias que permeiam nosso intelecto e imaginação. Todo esse conjunto, de conhecimento universal, mas de um caráter extremamente local, exerce um deslumbre ainda maior sobre nós, estudantes de arquitetura. No caminho do arquiteto, todos esses marcos são inspiração e necessidade. Comigo não foi diferente. Bastou um primeiro olhar em direção ao Sena e o encanto estava feito. Ainda em Paris, a quantidade de feitos e marcos históricos reunidos em um único centro urbano e os clichês que inundam o nosso imaginário apareciam por todos os cantos e me faziam pensar que quem viu Paris, viu a França. Para a minha grata surpresa, o meu destino na França era outro. Mais alto no mapa, mais frio, mas não menos surpreendente. A particularidade e importância mundial e local do norte da França passam desapercebidas e até mesmo desconhecidas por esse contexto francês do grande público. A cidade de Lille foi a responsável por me receber e me mostrar, entre traços dos flandres e garoas, que a França e o mundo têm que conhecer o Norte. Arquitetura que fala francês, belga e holandês; gastronomia que conforta e revela a vida nos ventos gelados do Norte; cervejas que brindam com os vizinhos belgas; cidades que contam em suas formas e hábitos a história de um lugar que viveu e construiu o processo de industrialização na França e na Europa. Esse último ponto me cativou em especial. Enquanto estudante de arquitetura e entusiasta da valorização artística e patrimonial, era impossível passar reto pelas grandes construções fabris. Os tijolos vermelhos, característicos das construções da região, captam de imediato a atenção para os extensos galpões no centro das cidades. As indagações iniciais faziam com que eu me perguntasse o porquê de dezenas de celeiros industriais ao longo da cidade, alguns em posições muito privilegiadas. Bastou o letreiro chamativo de LED na banal fachada de tijolos vermelhos para que eu entrasse em um desses edifícios e voilá, tudo fez sentido! A fábrica agora é museu. Manter as pedras avermelhadas é acima de tudo cultivar a memória das pessoas que se reconhecem naquelas construções e se orgulham de possuir um elemento que as caracterize em meio a tantos croissants e torres Eiffel. Ser e estar no norte da França passa pelas indústrias que formaram a economia da região desde o século XVIII, e que construíram as instituições e hábitos nos quais a sua população vive até hoje. Reconverter essas edificações em locais de cultura significa reatribuir a esses lugares a utilidade e importância social que esses exerceram ao longo do período industrial. Mais do que isso, agregam-se valores de identidade e formação cultural construídos entre as necessidades do presente e a valorização da tradição. As adaptações e modificações nos edifícios para abrigarem uma exposição contemporânea o trazem para a atualidade e ativam a sua função social e educacional nos visitantes e moradores do entorno. A manutenção e preservação de fachadas e partes da construção original ativam nos usuários o apreço pela arquitetura e pelas histórias por ela contadas.
Imagem Página anterior: Banhistas na Piscina de Rubaix, 1935. Fonte: roubaix-lapiscine.com
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CAPÍTULO I. PATRIMÔNIO INDUSTRIAL NO NORTE DA FRANÇA
A Região de Análise Nord-Pas-de-Calais Desenvolvidas a partir da Idade Média na Europa, as inovações na utilização da energia, assim como no comércio, conduziram, nos finais do século XVIII, a mudanças tão profundas como as que ocorreram entre o Neolítico e a Idade do Bronze. Estas mudanças geraram evoluções sociais, técnicas e econômicas das condições de produção, suficientemente rápidas e profundas para que se fale da ocorrência de uma Revolução. (TICCIH, 2017)
A então chamada Revolução Industrial teve, durante os séculos XIX e XX, a Europa como berço dos seus eventos e transformações. Esse grande desenvolvimento produtivo teve inquestionáveis impactos nas conformações urbanas do local, influenciando não só os processos de urbanização e crescimento demográfico das cidades, mas também a estrutura social e espacial das mesmas. Além das indústrias, construídas em uma materialidade inovadora para a época, de forma a atender novas conformações de produção, outras estruturas habitacionais e institucionais foram sendo criadas de forma a construir e integrar essa nova conjuntura e fornecer os serviços que se tornavam necessários para a população que movia e utilizava esse contexto industrial. Dentro desse cenário, destaca-se a região administrativa do Norte da França - Nord-pas-de-Calais 1 , que desempenhou um papel fundamental na produção industrial têxtil e mineral nas escalas nacional e continental. Com uma superfície de 12 414 km2, é uma das regiões francesas mais densas demograficamente e concentra boa parte das atividades econômicas e políticas do país. Devido à sua posição geográfica, entre a França e a Bélgica, possui influências francesas, belgas e holandesas que remontam das disputas territoriais entre os países nessa região ao longo da sua formação, sendo conhecida até o século XVII, e depois durante a Primeira Guerra Mundial, como ‘o campo de batalha’ da Europa. Foi retomada oficialmente pela França no final do século XVI, demarcada como estabelecimento público regional em 1972 e a partir de 1982 como região administrativa. É uma área altamente industrializada e urbanizada, e congrega assim uma extensa rede viária e fluvial que integra o seu território e é utilizada como importante rota desde o império romano. Já no início do século XIX, o bloqueio continental 2 , imposto por Napoleão Bonaparte contra o Reino Unido, conduziu a necessidade e desenvolvimento da produção industrial no norte da França. Acrescido a isso, fatores como a privilegiada posição geográfica, assim como a abundância de minérios e matérias-primas fez com que, durante o século XIX, a região conhecesse um desenvolvimento econômico e um crescimento demográfico sem precedentes, os quais a colocaram no posto de ‘primeira usina da França’, tornando-a ainda palco de importantes marcos do movimento operário. Indústrias, minas, escolas industriais de engenharia e química, equipamentos públicos urbanos... A arquitetura industrial surgia assim em meio a estradas de ferro e minas de carvão.
1 Nord-Pas-de-Calais: região administrativa francesa. Desde janeiro de 2016 faz parte, junto com a antiga Picardie da nova região francesa denominada Hauts-de-France. Para efeito desse trabalho, considerando a data recente de mudança e o período histórico em análise, será utilizada a denominação e os limites territoriais anteriores, da região enquanto Nord-Pas-de-Calais apenas. 2 Bloqueio Continental foi a proibição proposta pelo então imperador Napoleão Bonaparte, com a emanação de 21 de novembro de 1806, do decreto de Berlim, que consistia em impedir o acesso a portos dos países submetidos ao domínio do Primeiro Império Francês (1804-1814) a navios do Reino Unido. A imposição impôs a regiões como o norte da França a produção interna de produtos que antes eram comprados no mercado externo inglês.
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Mapa da França demonstrando a posição da região Nord-Pas-de-Calais em relação às outras regiões administrativas francesas. Fonte: Geoportail - Intervenção da autora
Mapa da região Nord-Pas-de-Calais demonstrando a posição das cidades de Lille e Roubaix. Fonte: Geoportail - Intervenção da autora
Os anos 1970 marcaram a região com uma grave crise econômica que se estabeleceu com o fim simultâneo das minas de carvão e das indústrias siderúrgica e têxtil. A partir disso, o Nord-Pas-de-Calais tenta reencontrar seu dinamismo por meio da sua centralidade geográfica com as vias de transporte e comunicação europeias. Nesse cenário de reinvenção que se estende até os dias atuais, observamos duas cidades em específico, hoje conurbadas na mesma região metropolitana: Lille e Roubaix. Próximas geograficamente, exercem forte influência regional e possuem histórias que divergem em alguns pontos, mas que se reencontram na valorização do seu passado industrial e no proveito desse fato nas suas reestruturações urbanas. Começamos por Lille, cidade medieval de origem portuária, ponto estratégico nas rotas comerciais históricas, levando logicamente a muitas concupiscências e reinvindicações territoriais ao longo dos séculos. No século XIX, sob os pilares da metalurgia, química e produção têxtil de linho e algodão, a cidade assume sua posição de grande capital industrial, anexando quatro regiões administrativas – Wazemmes, Esquernes, Moulins, Fives - vizinhas ao seu domínio municipal. Lille triplica sua superfície territorial e duplica sua população. Grandes avenidas e praças são planejadas de acordo com o modelo haussmaniano para receberem monumentos como a prefeitura, o palácio de Belas-Artes e as universidades. A crise industrial que domina a região na década de 1970 atinge a cidade com mais força nos anos 1980. As taxas de desemprego passam de 3% em 1975 para 13% em 1990. Lille entra então em um período de reconversão baseado na recuperação da sua ‘vocação medieval de cidade comerciante’ (Berger, 2006) e desenvolvimento do setor terciário. Mais uma vez, recupera seus valores históricos e geográficos inerentes e refaz sua imagem, por meio principalmente de ações e investimentos governamentais em transportes e títulos culturais, como estação turística e cidade artística. Governo e comunidade atuam juntos de forma a fomentar e disseminar o modo de vida acolhedor do Norte, o patrimônio preservado e a vida cultural intensa no município. A cidade de usinas e ateliês abre espaço para uma cidade de escritórios e serviços. A ligação TGV Lille-Paris em 1993, a criação do novo quarteirão Euralille projetado por Rem Koolhaas e a chegada do Eurostar em 1994 são alguns dos ativos que têm permitido à cidade entrar com confiança no terceiro milênio. (Berger, 2006)
Atualmente, Lille é a capital administrativa e econômica da região e configura a quarta maior região metropolitana da França. Eleita ‘Capital Europeia da Cultura’ em 2004, concentra hoje cerca de 28% da economia nacional, com forte alcance internacional devido à posição central em relação à importantes centros urbanos europeus e mundiais, como Londres, Paris, Bruxelas, Amsterdã e Frankfurt. A metrópole Lille, que engloba hoje as cidades de La Madeleine, Tourcoing, Roubaix, Villeneuve D’Ascq, Seclin, La Bassée e Armentiéres; não pode ser compreendida sem a amplitude de suas regiões adjacentes. Assim, considerando o contexto industrial e os desdobramentos contemporâneos desse cenário, escolheu-se também o olhar e desenvolvimento de um estudo de caso em uma dessas cidades do entorno: Roubaix. Roubaix é hoje parte da metrópole lilloise, sendo a segunda maior cidade em número de habitantes da região Nord-Pas-de-Calais. No entanto, a conjuntura recente de ‘subordinação’ econômica em relação à Lille, seguida por altos índices desemprego, violência e pobreza, não demonstram a real circunstância histórica da cidade em seus valores e fatos que determinaram a situação ao longo das últimas décadas. A cidade tem suas origens que remontam ao mesmo caráter medieval e comercial da formação de Lille. Roubaix, no entanto, se formou de maneira autônoma nessa época, com instituições administrativas e comerciais que se firmaram no centro urbano ao longo do tempo. Ainda no século XVIII, a intensa produção de lã na área já indicava o potencial têxtil do local, o qual teve o seu auge com as indústrias no século XIX. A importação de lã e algodão alcança níveis internacionais e acarreta significativas mudanças sociais na cidade. A euforia industrial de Roubaix, no entanto, também não resistiu à crise que se inicia em 1960. O pós-guerra
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trouxe ainda a demolição de uma série de heranças da época industrial em detrimento da demanda habitacional instantânea. Após o início dos anos 1990, Roubaix se enquadra em consonância com as ações de reestruturação urbana que começavam a ser tomadas por Lille, e apresenta um novo plano diretor da cidade que possui como objetivo principal o reinvestimento em locais já urbanizados. Dentro desse quadro de ações políticas, a valorização do patrimônio é vista e acatada como uma alavanca para o desenvolvimento urbano. O patrimônio industrial é o assunto em voga na Europa desde a década de 1980 e apresenta-se em perfeita coerência com as possibilidades históricas e arquitetônicas da cidade. Mesmo tendo algumas de suas construções fabris destruídas nos anos 50 e 60, o volume de edificações industriais é ainda significativo e expande-se igualmente na direção das estruturas sociais associadas que representam fielmente o período, em termos de arquitetura e função, e muitos ainda permaneceram bem conservados por possuírem usos que se estenderam ao longo dos anos pela população, como escolas, estações, piscinas públicas e galpões. Dessa forma, a prefeitura local se empenha na reconversão do patrimônio industrial roubaisien em locais de cultura, de maneira a permitir que a população e seus governantes, imbuídos desse espirito, promovam a cidade enquanto lugar histórico e cultural. O título de ‘Cidade de Arte e de História’, obtido pela cidade em 2000, vem ao mesmo tempo como reconhecimento e propulsor do caráter patrimonial como elemento reestruturador da cidade. O valor patrimonial se estende para além das edificações industriais, considerando também suas heranças paisagísticas, como o emblemático Parque Barbieux, um dos maiores parques urbanos do pais, retomado como ponto de interesse de investimentos públicos e uso da população, recebendo a partir de 2000 diversas premiações e atuando como elemento de reabilitação urbana. Além disso, retoma-se a vocação têxtil da cidade por meio da criação do ‘Quarteirão da Moda’ que abriga dezenas de ateliês, lojas e confecções de jovens estilistas, situado em uma posição estratégica entre a estação de trem principal e o museu da indústria. Em Roubaix, a “apropriação indevida de lugares” tornou-se verdadeiramente uma arte: as antigas indústrias têxteis abrigam casa empresários, estudantes, dançarinos, artistas... E a Condition Publique, local onde uma vez foi processada a lã, tornou-se uma fábrica cultural onde a cultura se expressa em todas as suas formas. (Ville de Roubaix, 2017)
As cidades de Lille e Roubaix enquadram-se assim em um cenário maior de influência e notoriedade industrial no século XIX, seguido pela decadência econômica e urbana desses espaços na segunda metade do século XX. O declínio da produção fabril gerou cerca de 300 000 demissões entre os anos 1950 e 1980 na região. Esse cenário de abandono físico, associado às tensões sociais que se seguiram à derrocada econômica, tornaram Roubaix e as cidades da região metropolitana de Lille um polo de violência. A ausência do “valor de uso”, mencionado por Riegl, não só nos edifícios, mas na cidade como um todo, que teve parte de sua identidade perdida com a decadência industrial, culminou nesse cenário de violência e aniquilação da memória e pertencimento coletivos. As consequências econômicas e sociais desse período eram visíveis e as ações governamentais iniciais de investimento em novos setores da economia eram insuficientes, principalmente em grandes centros urbanos como Lille e Roubaix. Assim, as políticas de renovação urbana tomam um novo sentido de forma a trazer essas e outras cidades industriais de volta ao circuito econômico e de desenvolvimento social. É um mundo que desapareceu em sua organização econômica e social, mas não física. Era preciso reinventá-lo sobre novas bases, mas sem ignorar seu legado. Nesses casos, é impossível propor programas de renovação sem considerar o conjunto industrial tão presente nessas cidades. Com o fim das atividades produtivas, os edifícios não correspondiam mais às suas ocupações originais, estando em estado de ruína. Para a prefeitura, a ação básica a ser tomada envolveria a compra e posterior destruição dos mesmos para abrir espaço para novas construções, o que além de demandar muito dinheiro e tempo, poderia também causar conflitos de memória. Essa questão inicial abre então espaço para novos pensamentos, que já haviam sido iniciados em 1950 na Inglaterra, sobre o desenvolvimento urbano sustentável, o qual prevê a reutilização e reconversão desses espaços já existentes de forma a produzir menos resíduos, preservar a memória local e propor espaços de uso público em edificações antes restritas a usos particulares como forma a aumentar a permeabilidade urbana e as potencialidades sociais das cidades.
Mapa das cidades que compõe a região metropoliatana de Lille. Fonte: Geoportail - Intervenção da autora
Arte Urbana no muro de uma fábrica abandonada na cidade de Roubaix Fonte: Sara Conti
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O Contexto Industrial e a valorização do patrimônio local Quando ele veio para definir uma área de prospecção, várias razões favoreceram o desenvolvimento do campo industrial em um Nord-Pas-de-Calais que passou do artesanato e do comércio à grande indústria no século XIX. A história deixou seus traços antigos e onipresentes: têxteis, carvão, indústrias pesadas (metalurgia, siderurgia, produtos químicos), agroalimentar no interior das terras e atividade portuária na costa moldaram a região e imprimiram marcas na sua paisagem. Após a retirada de alguns desses ramos, o Nord-Pasde-Calais viu uma segunda transição fundamental ao longo dos últimos trinta anos para se transformar em uma “Euro-região” terciária exibindo a vontade de assumir seu legado através da valorização do património industrial. Histórias simbólicas destinadas a permitir a mediação entre o passado e o presente foram preservadas e valorizadas, as autoridades locais viram isso como um elemento da reestruturação / reconversão conduzida. Quanto aos atores privados, o Nord-Pas-de-Calais é agora a principal região francesa pelo número de empresas participantes do turismo industrial e os de acolhimentos dos visitantes. (Polino, 2006)
O período industrial representou um marco econômico, social e estrutural na história e desenvolvimento da região norte francesa. O declínio das atividades econômicas fomentadoras desse contexto, no entanto, não determinou igualmente o fim das edificações e estruturas sociais associadas produzidas a partir dessas. Ainda em 1990, a região Nord-Pas-de-Calais concentrava 50% das friches industrielles 3 francesas. No entanto, esse conjunto de obras, apesar de extremamente representativo quantitativa e simbolicamente, não estava livre da dificuldade de reconhecimento do valor histórico-artístico das obras mais recentes. De acordo com a arquiteta Beatriz Kuhl, em sua obra Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização: Problemas teóricos do restauro, “todo o património datado de períodos cronológicos mais próximos e com cunho marcadamente funcional e menos prestigiante, tem uma menor aceitação, a não ser que constitua um exemplar arquitetônico excepcional.” Como olhar então, no final do século XX, para vestígios materiais que a até tão pouco tempo desempenharam uma função altamente pragmática na modelação urbana na estrutura econômica da sociedade? O movimento de defesa do legado industrial teve a sua gênese em Inglaterra, na década de 1950, momento em que a expressão “arqueologia industrial” é cunhada, e ganha ainda mais vigor e atenção pública alguns anos depois com a destruição de importantes testemunhos da arquitetura industrial. Essa nova preocupação em relação às edificações industriais traz à tona também o fato de que, com a recessão industrial ocidental aprofundada, as cidades industriais enfrentavam não só problemas de proteção do patrimônio industrial, mas também o surgimento de um grande número de relíquias industriais que se tornaram um fardo para o desenvolvimento urbano nos âmbitos econômico e social. Nesse momento, já se entende que o patrimônio industrial representa o testemunho de atividades que tiveram e que ainda têm profundas consequências históricas. Contudo, a degradação e a inutilização dos mesmos se tornava um problema cada vez mais pungente. A partir desses enclaves e do pleno entendimento desses como bens patrimoniais, iniciam-se estudos e ações em busca de possibilidades de reestabelecimento desses locais em usos e significados.
3 Expressão francesa que designa vazios urbanos formados a partir da década de 1960 por espaços que abrigavam atividades industriais e foram abandonados após o fim dessas. Para fins desse trabalho, a tradução mais aproximada obtida seria ‘áreas industriais abandonadas’.
Patrimônio Histórico. A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos. Em nossa sociedade errante, constantemente transformada pela mobilidade e ubiquidade do seu presente, “patrimônio histórico” tornou-se uma das palavras-chave da tribo midiática. Ela remete à uma instituição e à uma mentalidade. (Choay, 2001, p. 11)
O patrimônio industrial, entre todas as suas variações e tipos de edifício que são abarcados nesse conceito – manufatura; indústrias; estruturas sociais associadas; obras públicas e infraestruturas - mostra-se, a partir da década de 1980, como uma das categorias patrimoniais de maior dinamismo, oferecendo inúmeras possibilidades de reconversão de usos e funções dentro dos contextos urbanos contemporâneos. Investigações, publicações, pesquisas, turismo cultural, reutilização e requalificação de espaços e imóveis eram algumas das opções que se mostravam cada vez mais viáveis. Em 1992, Alfrey e Putnam agregam mais uma probabilidade de uso e compreensão e explicam os patrimônios industriais para fins educacionais e artísticos, preocupando-se principalmente com a proteção do fator insubstituível de áreas industriais, e envolvendo-se em manter os edifícios, locais, equipamentos e processos de desenvolvimento, buscando a reutilização do legado de grande número da paisagem industrial. Ainda diante dessas novas e variadas perspectivas de uso e agregação do patrimônio industrial e sob o financiamento da União Europeia; Reino Unido, Países Baixos e Alemanha criam em 2001 a associação ERIH (Rota Europeia da Herança Industrial) sob os objetivos de “integrar, coordenar e divulgar os vestígios, museus e sítios remarcáveis do patrimônio industrial.” São caminhos que vão sendo desenvolvidos em busca da conciliação entre a preservação do legado histórico e arquitetônico por meio da reutilização destes edifícios e conjuntos.
Mapa dos países da Europa contemplados pelos estudos e ações da ERIH - número de patrimônios industriais catalogados por país. Fonte: ERIH, inetrvenção da autora.
Mapa levantamento patrminônio industrial por regiões da França. Fonte: ERIH, inetrvenção da autora.
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Nord-Pas-de-Calais Patrimônio Industrial
02
Dunkerque
01
04 Calais
03
Ghyvelde
Gravelines
05
Audruicq
11
Terdeghem
Boulognesur-Mer 06
Saint-Omer
Desvres
09
Hazebrouck
13/14
Steenwerck
Arques
07/08
12
Boeschèpe
Étaples-sur-mer
Lille 10
Auchy-les-Hesdin
Béthune 29
Bénifontaine
Lens
Montreuil
30/31/32 Oignies
Douai
36 Arras 37 38
Souastre
Área Industrial de Mineração (”Bassin Minier” Nord-Pas-de-Calais) Perímetro tombado com Patrimônio Mundial da UNESCO
17
33
Residência Leroux
Maréis, centro da descoberta do peixe no mar
32
Museu da Mina
Museu da Cerâmica
31
Centro da Mina e do Caminho de Ferro
Celebração das Raízes e dos Homens
30
Conjunto de minas 9-9 Bis
Cidade da Renda e da Moda
29
Cervejaria Castelain
Ecomuseu do Bommelaers Wall
28
Atelier Museu do Vidro
Museu Portuário
27
Museu do Território Regional
Espaço Tourville
26
Museu a céu aberto
50
Museu da Marinha de Étaples
49 34
Centro Histórico da Mineração
48
Ferrovia turística do Vale do Aa
47 35
Centro da Memória da Vidraçaria de En Haut
46
10
Sítio do Fiar
9
35 Aniche
45
11
Sítio do Steenmeulen
42/43/44
Saint-Amand-Les-Eaux
34 Lewarde
44
12
Museu do Rádio
8
Villeneuve d’Ascq
Wattignies
Orchies
43
13
Fazenda dos Órgãos: Museu da Música Mecânica
7
25/26/27
28
33
O Moinho Branco
42
14
Museu da vida rural
Museu da Torre Abadia
Museu do Têxtil e da Vida Social
41
15
Museu das Fitas
Museu do Vestuário
Museu do Sabot
40
16
Pequeno Museu do Gaufre
Patrimônio, História e Estudo do Ferro de Passar
Museu Motobécane: Vila dos trabalhadores industriais
39
17
Museu das Bonecas e dos Jogos Antigos
Museu das Rendas e Bordados
Parque da Descoberta Aeronáutica
38
18
Bonde turístico do Vale do Deule
Cervejaria Histórica da Abadia de Cateau
Ecomuseu de Souastre
37
19
Destilaria Clayessens
Memória Vidraceira de Boussois
Moinho de La Tourelle
36
25 24 23 22 21 20
Museu Regional das Telecomunicações e do Rádio
6
Beaucamps-Ligny
Museu da Memória e da Criação Têxtil
5
Lille
4
18 Marquette-lz-Lille 23
3
22
Marcq-en-Baroeul Wattrelos
24
Museu de Artes e Tradições Populares
Museu dos Ladrilhos e Vasos Cerâmicos
Roubaix
20
16 Houplines
Museu Regional Hospitalar
2
Wambrenchies
Tratores em Weppes
1
21
17/19
Fórum Departamental de Ciências
45 Valenciennes 46
Sebourg
49 Boussois 50
Ferriére-la-petite
Cambrai Avesnes-sur-Helpe 51 Felleries
47
Caudry
48
Le Cateau Cambrésis
52 Sains-du-Nurd 53 Trélon
54 Fournies
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Se a Inglaterra se movimentou em termos de estudar e renovar seu patrimônio industrial a partir da década de 1950, a França se interessa efetivamente pelo tema a partir de 1970, mais especificamente em 1975, quando o arquiteto Maurice Daumas realiza a primeira pesquisa sobre os edifícios industriais dos séculos XVIII e XIX. Em 1978 é criado o Comitê de Informação e Integração para a Arqueologia, Estudo e Valorização do Patrimônio Industrial. Nesse contexto, a região Nord-Pas-de-Calais já aparece como uma das mais antigas e representativas nesse contexto, sendo alvo direto do Comitê e abrigando em 1979 o primeiro colóquio temático sobre “ A Conservação do Patrimônio Industrial nas sociedades contemporâneas. ” Ainda sob os efeitos do entusiasmo do ‘ano do patrimônio’, em 1980, em 1983 é criada a Célula do Patrimônio Industrial, sob a direção do já tradicional Inventário Geral de Monumentos e Patrimônios Artísticos da França, parte do Ministério da Cultura nacional. Essa Célula age a partir de 1986 por meio de um programa de reparação nacional do patrimônio industrial, mapeando todos os pontos industriais em atividade ou não. A partir desses mapeamentos e estudos, se estabelece um disparate de obras de reconversão nos países europeus de maneira geral. O Estado utiliza inicialmente a proteção administrativa como principal recurso contra a destruição patrimonial, e em seguida as próprias comunidades começam a atuar em prol da preservação e reconversão desses edifícios. Em 1994, só na França, existiam mais de 250 canteiros de obras simultâneos. Os patrimônios nacionais em forma de museus e centros culturais adquiriam uma nova importância econômica e social, tornando-se uma das formas de cidades e países se incorporarem nas rotas turísticas internacionais. Na região Nord-Pas-de-Calais, as edificações são tratadas por meio de ações de conservação regional de sítios completos e monumentos isolados, inventariados de acordo com a sua representatividade histórica e urbana, de forma a proteger e estudar esses da forma mais eficaz e coerente possível. Nas cidades de Lille e Roubaix, antigas habitações e usinas são empregadas para novos e diversos usos. É o caso da usina de algodão Motte-Bossut ocupada pelo Centro dos Arquivos do Mundo do Trabalho; em Lille, a fiação Le Blan é transformada em museu, assim como a tecelagem Crave em Roubaix. As fábricas de rendas Bailleul Caudry em Calais; as de bordados em Villers-Outreaux; o Museu de Têxteis e da Vida Social implantado na antiga fiação Prouvost Masurel Fourmies. O conjunto Arc International em Arques, surge como o mais importante sítio de turismo de negócios ao norte de Paris. Em 1990, o Museu Industrial e Comercial de Lille, fundado em 1853 por iniciativa da Sociedade de Artes, Ciências e Indústria da cidade, é renovado e passa a participar ativamente da dinâmica do patrimônio industrial. O desejo de preservar uma memória e identidade passam assim também pela preocupação em não romper os laços estéticos e culturais locais, bem como por uma compreensão dos interesses econômicos do turismo industrial que emergem claramente nesse momento. Ao assumir o controle do seu património industrial, a região se lança além da mera preservação de edifícios e máquinas, colocando também a população como foco de interesse das intervenções. Dez locais, incorporando inclusive indústrias ativas, foram integrados em redes por meio de museus de técnicas e culturas, trazendo uma dimensão mais ampla para o conceito do patrimônio industrial. Até mesmo outras expressões culturais, como filmes rodados na região, como o Les grandes gueules, de Robert Enrico, que se passa em serrarias Vosgiennes , sendo algumas delas posteriormente reabilitadas como parte de políticas de desenvolvimento de fundos nacionais de patrimônio, trazendo assim outros recortes de consciência sobre esses vestígios industriais. As Jornadas do Patrimônio de 1997 marcam os primeiros momentos de iluminação específica sobre o patrimônio industrial de fábricas, minas, fornos de cal, locomotivas e carros, por parte dos moradores locais que puderam descobrir nesta ocasião a extraordinária diversidade técnica e humana que recobre esse tipo de patrimônio. Esta intervenção é legítima, porque reconhece a natureza pública deste património; é igualmente necessária, porque o serviço de monumentos históricos, ouvindo os tempos, deve confrontar sua experiência com as mais diversas formas de patrimônio. Além do tecnológico, é, sem dúvida, uma dimensão humana que dá a forma do património industrial. (...) (Gatier, 1998)
Em 2003, a Carta do Patrimônio Industrial, ou Carta de Nizhny Tagil, é elaborada de forma a estabelecer diretrizes para a compreensão, estudo, tratamento e intervenção nos patrimônios industriais. Surge como uma proposta internacional de regulamentação do assunto que conjuga essa série de pensamentos e ações que vinham sendo formulados e aplicados ao longo das últimas décadas. O olhar sobre alguns casos de reabilitação já feitos a partir da década de 1960, assim como sobre as formulações apresentadas posteriormente pela Carta de Nizhny Tagil, nos permitem reconhecer o caminho encontrado para o tratamento dos edifícios industriais. O primeiro passo de reconhecimento desses como patrimônio é seguido pela valorização, estudo, conhecimento, recuperação física e valorativa, reabilitação e utilização desses testemunhos do período industrial. As ações iniciais em relação ao patrimônio industrial determinam o reconhecimento e valorização dessa herança enquanto bens a serem preservados e inseridos no cotidiano contemporâneo. Essa primeira consideração nos direciona para o estabelecimento de parâmetros e diretrizes que conduzem os estudos e intervenções sobre o legado industrial. A Carta de Nizhny Tagil sobre o Patrimônio Industrial, publicada em julho de 2003 pelo Comitê Internacional para a Conservação da Herança Industrial (TICCIH) vem para: (...)afirmar que os edifícios e as estruturas construídas para as atividades industriais, os processos e os utensílios utilizados, as localidades e as paisagens nas quais se localizavam, assim como todas as outras manifestações, tangíveis e intangíveis, são de uma importância fundamental. Todos eles devem ser estudados, a sua história deve ser ensinada, a sua finalidade e o seu significado devem ser explorados e clarificados a fim de serem dados a conhecer ao grande público. Para além disso, os exemplos mais significativos e característicos devem ser inventariados, protegidos e conservados, de acordo com o espírito da carta de Veneza, para uso e benefício do presente e do futuro.
A consolidação e formalização desses conceitos na Carta, os quais são utilizados como principal referência no campo teórico e profissional até hoje, é feita em um momento onde já haviam sido realizadas várias intervenções, como é o exemplo de um dos estudos de caso a serem analisados posteriormente (Museu La Piscine – 2001). Esses parâmetros balizaram inúmeras intervenções realizadas nos primeiros anos do século XXI, e foram capazes de fazer isso uma vez que tinham sido conglomerados sobre as experiências e conhecimentos oferecidos pelos trabalhos que vinham sendo realizados nessa área desde os anos 1950. O decorrer dos anos demonstra igualmente que as referidas reestruturações e novas utilizações desse patrimônio podem ser realizadas sobre diversas variantes locais, as quais implicam diferentes ferramentas de adaptação e remodelação física e funcional. Estas devem ser motivos de análise e debate uma vez que possuem semelhanças dentro da mesma tipologia inicial de edifício industrial, mas também apresentam nuances próprias a partir do estado inicial do local, dos objetivos e escalas que se almeja com esse novo contexto de atividades e usuários. Nesse sentido, é possível observar os processos e modificações físicas aplicados e a forma como esses, além de adequar a construção em questões de infraestrutura e novas tecnologias, buscam também remontar valores de uso e memória, muitas vezes perdidos após o fim das atividades econômicas nesses locais. As novas leis e concepções de acessibilidade e sustentabilidade regem a implantação de equipamentos e estruturas para a climatização, instalações, circulação, armazenamento e usos associados de forma a receber os novos fluxos e visitantes. Por conseguinte, a maneira de implantação dessas novas tecnologias e configurações espaciais deve ser pensada de forma a estabelecer conexões sociais com a nova população que os recebe por meio da reposta às suas demandas e tangência a pontos da memória coletiva local 4. Os valores inerentes e também aqueles atribuídos a esse tipo de patrimônio são o motivo para que sejam
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lançados o olhar e os cuidados patrimoniais sobre as obras desse período. São também, de alguma forma, o fim que busca-se alcançar/recuperar a partir da conservação, estudo e reabilitação dos mesmos. Alguns desses valores foram descritos e detalhados pelo autor Alois Riegl 5 , em sua obra de 1903, O Culto
Moderno dos Monumentos.
Riegl organiza a obra em três capítulos, ao longo dos quais apresenta uma série de valores atribuídos aos monumentos durante sua evolução histórica e sob os seus caráteres de rememoração e contemporaneidade. O autor trata assim dos valores outorgados ao monumento vendo esse como participante ativo de um evento histórico, como é o caso dos edifícios e monumentos históricos do período industrial que tiveram seus valores de memória e história atribuídos a partir de uma conjuntura social, econômica e política posterior que percebeu a utilização desses para resgatar esses edifícios em forma de monumentos imbuídos de valores de uso e contemporaneidade. A partir da análise dos diversos valores e suas relações, Riegl estabelece igualmente a dimensão funcional para a preservação de um monumento, principalmente nos patrimônios mais recentes, esclarecendo que a ausência de uma função pode comprometer a integridade do bem. Segundo ele, (...) a sensação de ver uma edificação que possuía um uso e que passou a não tê-lo mais pode proporcionar um súbito sentimento de destruição violenta. E no caso dos edifícios que já conhecemos sem uso, a falta de uma atividade humana não é tão perturbadora (como as ruínas de um castelo medieval, ou de um templo romano), distinguindo, dessa forma, as obras mais antigas das mais recentes, e de modo semelhante, as obras mais suscetíveis a serem utilizáveis ou não (Riegl, 1990, p. 60).
Já em 1890, Viollet-le-Duc defendia o uso do patrimônio como uma das melhores maneiras de preservá-lo: Ademais, o melhor meio para conservar um edifício é encontrar para ele uma destinação, e satisfazer tão bem todas as necessidades que exige essa destinação, que não haja modo de fazer modificações. (Viollet-le-Duc, 2000, p. 65).
Décadas mais tarde, Françoise Choay retoma a importância do uso no caso especifico dos bens arquitetônicos: A preservação do patrimônio cultural abrange diversos aspectos daquilo que é considerado monumento histórico. No caso dos bens arquitetônicos essa discussão relaciona-se intimamente com uma de suas características intrínsecas, o uso: “A arquitetura é a única, entre as artes maiores, cujo uso faz parte de sua essência e mantém uma relação complexa com suas finalidades estética e simbólica” (Choay, 2001, p. 230).
A funcionalidade de uma obra arquitetônica suscita diversas reflexões, pois, além de seu papel simbólico relativo às representações sociais, percebemos aqui a necessidade de uma destinação útil para a preservação desses bens, uma vez que o abandono é uma das principais causas da deterioração dos monumentos. Olhando assim mais especificamente sobre os valores de uso e de memória descritos pelos autores, vemos como essa prática tornou-se cada vez mais utilizada ao longo dos anos nos tratamentos patrimoniais, sendo o conjunto industrial um importante e recente expositor. As formas de atuação nesse sentido variam entre planos de desenvolvimento integrado, iniciativa pública e privadas isoladas e envolvimento da comunidade local. No caso da região especifica de análise, Nord-Pasde-Calais, houve um interesse por parte da comunidade e dos governantes em despertar e atuar em direção a esse ‘novo’ interesse patrimonial.
A população local atuou principalmente em forma de coletivos que trabalham na recuperação desses espaços e busca de parcerias com o governo. Os coletivos locais propõem novas utilizações para esses espaços. As reconversões e reabilitações, palavras-chave nesse contexto, são planejadas e implantadas de acordo com as necessidades daquela comunidade e em conjunto com ações de despoluição dos solos e áreas adjacentes que foram danificadas ao longo das atividades industriais e posterior abandono. É um trabalho extenso, que exige uma serie de atores e ações, mas que é facilitado pela formação dessa rede de colaboração iniciada pela comunidade local agregando os governos da região e algumas vezes até da União Europeia. Assim, centradas sobre diversos polos, as políticas de reconversão vão ganhando forma rapidamente e em diversas frentes ao longo da região: o conjunto de minas e estruturas fabris ao longo da faixa litorânea em torno de Calais e Dunkerque; os chamados beffrois du travail (chaminés de usinas industriais) que são reconhecidos pela UNESCO e formam um objeto de inventário e memória do trabalho em toda a região chegando até a Bélgica. Roubaix volta igualmente ao centro das atenções da conjuntura industrial em 1993 com a inauguração do Centro dos Arquivos Nacionais do Mundo do Trabalho, instalado em uma antiga fábrica têxtil de 1840. A partir disso, outros ‘vazios industriais’ tornam-se pontos de memória e de relevância no contexto urbano contemporâneo: museus, habitações, ateliês, polos e centros comerciais... Portanto, a questão da reabilitação urbana é desenvolver, apesar da crise, o património de trabalho, o qual não irá existir sem causar também alguns verdadeiros “conflitos de memória” (Veschambre, 2009).
Nesse caso, o valor econômico e social também vem à tona através da percepção da possiblidade de recuperação socioeconômica das microrregiões urbanas que sofriam junto aos edifícios os processos de degradação, diminuindo índices de violência que assombravam a região. Acrescido a isso, a possibilidade de reforço do caráter identitário e histórico do local perdido ao longo do tempo e o desejo dos habitantes em retomar a sua cidade por meio desses conjuntos edificados, se mostram como uma forma de inserir a região não só no circuito cultural em nível maior, mas também em movimentar a sua economia e formação de seus jovens. Como afirmado pelo Conselho Internacional na Carta do Patrimônio Industrial, “o interesse e a dedicação do público pelo patrimônio industrial e a apreciação do seu valor constituem os meios mais seguros para assegurar a sua preservação. ” Dentre as várias opções possíveis para reabilitar e utilizar esse patrimônio, destaca-se ainda a opção por equipamentos culturais, que se apresenta como caminho escolhido para grande parte dos casos de reabilitação de obras industriais e será objeto de aprofundamento a partir dos próximos capítulos. As escolhas feitas para a requalificação desses edifícios, como o novo uso de destino e as formas arquitetônicas de reuso e restauração, passam primordialmente por essas questões, e serão melhor explanadas a seguir a partir das opções e ferramentas utilizadas nas reabilitações em locais de cultura, e dois estudos de caso que representam, por seu nível de importância e reconhecimento local e internacional, o sucesso dessas escolhas.
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Coniderando o eixo de condução do trabalho e a estrutura do mesmo, não cabe aqui o desenvolvimento do tema; no entanto é necessário
ressaltar que ao atuar-se em meios urbanos já existentes, a importância de estabelecer-se o olhar e cuidado para a comunidade que ali vive e evitar ou minimizar os processos de gentrificação. 5
Alois Riegl: historiador da arte vienense, designado, em 1902, presidente da Comissão de Monumentos Históricos da Áustria, e por ela
encarregado de empreender a reorganização da legislação de conservação dos monumentos austríacos. No exercício desse cargo, elabora a obra O Culto Moderno dos Monumentos, a qual caracteriza-se como “um conjunto de reflexões destinadas a fundar uma prática, a motivar as tomadas de decisão, a sustentar uma política”, utilizada até os dias atuais como base teórica para o tratamen-to públicos de monumentos e edificações históricas.
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CAPÍTULO II. O PATRIMÔNIO INDUSTRIAL COMO LOCAIS DE CULTURA
Por que Cultura ? Se o patrimônio corresponde àquilo que deve ser transmitido, se ele é o resultado de uma escolha coletiva e durável que transcende o indivíduo, é o resultado de uma seleção, uma transmissão de pensamento feita a partir de escolhas, mesmo que sejam dolorosas. Mas acima de tudo, a herança envolve um público presente e um público futuro. Por isso, pertence à esfera da memória e da cultura comunitárias. (Polino, 2006, p. 8)
Considerando as variadas possibilidades de intervenção, é notável a utilização dos programas de caráter cultural como centro reestruturador dos edifícios em si e do seu entorno urbano enquanto contexto social e econômico diretamente afetado pela não-utilização dessas construções ao longo dos últimos anos. O uso cultural conecta-se ainda diretamente aos ideais históricos inerentes à um objeto patrimonial. No caso dos bens decorrentes do período industrial, a proximidade cronológica e o caráter utilitário desses apresenta-se por vezes como uma barreira ao estabelecimento da conexão funcional e simbólica desses com a sociedade contemporânea. Analisar e discutir esses processos de reabilitação de edifícios históricos passa inevitavelmente pela relação entre esses edifícios e seu contexto urbano e cultural. A urbanidade que forma, molda e determina os usos dessas construções é também por eles modificada. Da mesma forma, a compreensão da cultura da sociedade formadora desses espaços e significações é também de fundamental importância no processo de investigação dessas conversões patrimoniais e suas consequências. O termo ‘cultura’ possui diversas definições, entre elas aquela estipulada pela Antropologia e que será aqui utilizada como base conceitual. Isso porque, entre tantas variações, a abordagem antropológica apresentase como a mais adequada e abrangente dentro das questões que tangem o desenvolvimento deste trabalho: população, natureza e produção de meios de existência como fatores primordiais na formação de uma sociedade. (Schlee, Medeiros, & Ferreira, 2009, p. 191) O conjunto desses três elementos compõe, a meu ver, o ecossistema do homem – este pequeno mundo que o homem fabricou para si, e que chamo de patrimônio cultural – vai nos levar a recusar justamente estas distinções, estas classificações cômodas, úteis, entre monumentos, entre arte popular e arte erudita, entre uma máquina que incluímos na história das técnicas e um arado que chamamos de folclórico etc. (Bohan, 1974, p.5)
Nesse sentido coloca-se a sociedade local da região Nord-pas-de-Calais, na França. Aqui observa-se a cultura por ela formada e vivida a partir do meio ambiente na qual está inserida. Além disso, os edifícios históricos e suas reabilitações feitas, entre outros motivos, como requalificação de um meio social e econômico de existência, consistem no estabelecimento de novas relações de troca e apropriação histórica, cultural e produtiva. Segundo Melville J. Herkovits (1973), Eunice R. Durham (1984), Victor Hell (1989) e Luiz G. de Melo (1991) – que defendem uma definição antropológica de cultura – o que distingue o homem (animal social) de todos os outros animais é sua capacidade de ter e criar cultura, integrando para o indivíduo o ambiente natural em que se encontra, o passado histórico de seu grupo e as relações sociais que tem que assumir. (Schlee, Medeiros, & Ferreira, 2009, p. 194)
A partir das definições acima apresentadas da cultura enquanto conceito antropológico e da compreensão
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dessas nos sentidos locais da região analisada, entende-se cultura como “esse movimento de criação, transmissão e reformulação desse ambiente artificial.” (Schlee, Medeiros, & Ferreira, 2009, p. 195) Dentro das variáveis que compõe esse entendimento de cultura, destaca-se aqui o patrimônio cultural e as relações de identidade por ele fomentadas. “De um modo geral, é possível afirmar que devemos preservar nosso patrimônio para reforçar nossa identidade e memória, pois, a proteção dos bens culturais gera um processo de identidade entre determinado patrimônio e determinada sociedade. ” (Schlee, Medeiros, & Ferreira, 2009, p. 184) No caso das cidades de Lille e Roubaix, vemos o tratamento desse patrimônio por meio de processos de reabilitação de edifícios, os quais enquadram-se sob essa ótica de patrimônio e identidade no conceito de reabilitação apresentado por Bourdin (1984): “(...) com todas as suas conotações jurídicas tem, sobretudo, um significado social: trata-se de dar, uma vez mais, o ‘direito de cidade’ a um bairro ou a um imóvel. ” Esse conceito de reabilitação enquanto uma das possíveis ações a serem tomadas em relação ao patrimônio e à reestruturação urbana, está intrinsicamente ligado à ideia de cidade como representação e concretização macro da cultura de uma sociedade local. Nesse sentido, vale citar Park (1973) quando ele diz que “(...) a cidade é um estado de espírito, um conjunto formado pelos costumes e tradições advindos dos processos vitais das pessoas que a habitam, como um produto da natureza humana que ultrapassa os mecanismos meramente físicos da construção artificial. ” Os edifícios históricos, mais especificamente os aqui tratados, pertencentes à categoria de patrimônio industrial, mostram-se como elementos fundamentais e estruturadores nessa dinâmica cultural urbana. Relações de criação, transformação e produção artificial estão inteiramente representadas no percurso físico, histórico e simbólico desses patrimônios arquitetônicos. O auge dessas construções enquanto locais de produção econômica e relações de trabalho, a decadência urbana concomitante ao abando desses edifícios e a recente revalorização desses, ilustram de maneira primordial o processo de construção cultural como aqui o entendemos. Nessa última etapa do processo cultural acima descrito, destaca-se mais uma vez a cultura como “(...) todo o ambiente feito pelo homem, o que pressupõe a existência de um espaço artificial (cultural). ” O patrimônio é assim conceitualmente um desses espaços artificiais (culturais) criados pelo homem. Em muitos casos, os patrimônios arquitetônicos devem passar por intervenções uma vez que a dinâmica social e econômica do local não comporta mais o uso original dessas construções. A partir dessas reformulações, (re) constrói-se naquele local um processo cultural, no qual há uma pertinência ativa da sociedade que participa e estabelece trocas intelectuais e identitárias com o patrimônio de forma a preservá-lo enquanto parte fundamental da sua cultura. Partindo desses preceitos de espaço cultural e pertinência ativa em relação ao patrimônio, é possível entender o museu como uma consequência. Ele é ao mesmo tempo espaço cultural criado pelo homem e reflexo dessas criações ao longo do tempo. É um lugar que surge pela necessidade de cultura enquanto representação, identidade, a qual se mostra por meio não só de obras de arte, mas de conjuntos arquitetônicos, peças, crenças e hábitos ali representados e vivenciados. Congrega em si a representação e aglomeração de elementos tangíveis (quadros, esculturas, máquinas, objetos) e não tangíveis (conhecimentos, técnicas, estórias) que compõe a cultura humana, nesse caso a cultura antropológica de um local especifico e das relações ali desenvolvidas ao longo do tempo. À preservação e valorização do patrimônio industrial são imprescindíveis, além da referida formação pessoal competente e da sua inclusão nos programas e manuais escolares, a inventariação e a musealização. (Mendes, 2013)
Os museus, já a partir da segunda metade do século XIX, quando deixam de se relacionar exclusivamente com intervenções de ordem prática e incorporam outros valores (formais, históricos, simbólicos e memoriais) à discussão, tornam-se um ato cultural (Camargo, 2010), assim como os edifícios industriais que são compreendidos e tratados como patrimônios e bens culturais.
Tais equipamentos culturais e os programas de necessidades a ele associados, remontam um caráter de uso, funcionalidade e valor ao espaço. A partir dessa nova utilidade, até então perdida entre tijolos caídos e janelas quebradas, a história que aquele local representa é revalorizada e reconhecida pela população. São lugares essenciais de formação e representação cultural uma vez que funcionam “integrando para o indivíduo o ambiente natural em que se encontra, o passado histórico de seu grupo e as relações sociais que tem que assumir. ” (Schlee, Medeiros, & Ferreira, 2009) Os estudos de caso a serem analisados no próximo capítulo seguem nessa linha de valorização do patrimônio, da identidade, ressignificação e consequente reestruturação do edifício e do local entorno. A “cidade de pedras” é urbs, mas não pode ser entendida sem civitas. São pedras que incorporam inúmeras significações em um processo que não se congela no espaço e no tempo. É o dinamismo da vida urbana transformando e reinventando significados. (Mello, 2004, p. 14)
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Valorização da Memória e da Localidade (...) uma vez que entendemos o patrimônio cultural como lócus privilegiado onde as memórias e as identidades adquirem materialidade. (Pelegrinni, 2007: p. 1)
A compreensão sobre o monumento histórico enquanto instrumento de preservação de memória coletiva e as respectivas formas de intervir foram se transformando ao longo dos anos, principalmente na França onde os eventos do século XX trouxeram uma série de mudanças políticas e sociais, afetando diretamente as maneiras de lidar com a “história construída” desses locais. Nesse contexto, é possível perceber o entendimento e a consolidação da recuperação física e funcional de um edifício como um ato cultural, atribuindo além dos valores de uso e econômicos, o valor ao edifício e à história da população, local e período histórico que ele representa. Segundo Rodrigo Diaz Cruz, “A memória pode ser entendida como processos sociais e históricos, de expressões, de narrativas de acontecimentos marcantes, de coisas vividas, que legitimam, reforçam e reproduzem a identidade do grupo.” (Cruz, 1993). Considerando assim a memória nesse sentido de formações sociais coletivas e construtoras de identidade, é possível constatar a relação existente entre a memória social/coletiva, o património cultural e a identidade. Essa conexão se estabelece no fato de serem os três conceitos frutos de construções sociais fundamentadas na representação e na significação coletivamente construídas, partilhadas e reproduzidas ao longo do tempo. Assim como a memória coletiva e o patrimônio cultural, A identidade é um processo de identificações historicamente apropriadas que conferem sentido ao grupo (Cruz 1993). As identidades, que são diferenciações em curso (Santos, 1993), emergem dos processos interativos que os indivíduos experimentam na sua realidade quotidiana, feita de trocas reais e simbólicas (Maalouf, 1998). A construção da identidade, seja individual ou social, não é estável e unificada – é mutável, (re) inventada, transitória e, às vezes, provisória, subjetiva; a identidade é (re) negociada e vai-se transformando, (re)construindo-se ao longo do tempo.
O patrimônio cultural, enquanto conjunto de bens materiais e imateriais é legitimado e perpetuado a partir do interesse coletivo por ele despertado. Como atributo coletivo, o patrimônio é um elemento basal na construção da identidade social e cultural e, simultaneamente, “ é a própria materialização da identidade de uma sociedade.” (Choay, 2001) O património faz recordar o passado; é uma manifestação, um testemunho, uma invocação, ou melhor, uma convocação do passado. Tem, portanto, a função de (re)memorar acontecimentos mais importantes; daí a relação com o conceito de memória social. A memória social legitima a identidade de um grupo, recorrendo, para isso, do património (Martins, 2011).
O patrimônio expressa a identidade histórica e as vivências de um povo. Nesse caso, atua de maneira ativa na construção e perpetuação dessas memórias e identidades uma vez que é utilizado nas reabilitações e reestruturações urbanas no sentido de favorecer uma sociedade com acesso à cultura e educação e, consequentemente, com conhecimento e condições sociais favoráveis para que essas pessoas, enquanto indivíduos e coletivo, voltem seu olhar e cuidados para esses edifícios históricos.
Tal apreço e zelo por parte da população local é suscitado pela tangência em pontos da memória coletiva e constitui-se como parte fundamental na preservação do patrimônio. Como é exposto pelo historiador Jacques Le Goff em sua obra História e Memória, A memória acaba por estabelecer um vínculo entre as gerações humanas e o tempo histórico que as acompanha. Esse vínculo que se torna afetivo, possibilita que essa população passe a se enxergar como ‘sujeitos da história’, que possuem assim como direitos, também deveres para com a sua localidade. (LE GOFF, 2000, p. 78)
É assim igualmente reproduzido e preservado através da memória social. O reconhecimento e legitimação desse período da história e do seu legado perante a população local, que vê sua história ‘oficializada’ e assim se apropria mais fortemente dela, tornando-a (consagrando) como parte efetiva da sua memória coletiva. Seguido a isso, é possível observar essa efetivação de parte da história como elemento significativo da memória coletiva atuando na representação ativa dessa memória nas cidades e sociedades contemporâneas que abrigam essas construções e narrativas. É o que observamos na região da metrópole de Lille, onde a legitimação social e política das estruturas industriais como patrimônio acarretam para a urbanidade atual uma nova contribuição econômica, social e identitária em relação à essas construções e aos fatos históricos a elas associados. Como demonstra Choay em um trecho de sua obra Alegoria do Patrimônio, o resgate da memória e localidade de um local está intrinsecamente ligado às formas de reabilitação e tratamento do patrimônio material que, de acordo com a autora, para se fazerem efetivas, devem ser pensadas e realizadas de evocando o passado em usos presentes: A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma memória viva. [...] A especificidade do monumento devese precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar (Choay, 2001, p. 18)
O Conselho Internacional do Patrimônio Industrial também ressalta os efeitos de recuperação econômica e social promovidos por essas reabilitações: Adaptar e continuar a utilizar edifícios industriais evita o desperdício de energia e contribui para o desenvolvimento econômico sustentado. O patrimônio industrial pode desempenhar um papel importante na regeneração econômica de regiões deprimidas ou em declínio. A continuidade que esta reutilização implica pode proporcionar um equilíbrio psicológico às comunidades confrontadas com a perda súbita de uma fonte de trabalho de muitos anos. (TICCIH) , 2003)
O passado só permanece “vivo” através de trabalhos de síntese da memória, que nos dão a oportunidade de revivê-lo a partir do momento em que o indivíduo passa a compartilhar suas experiências, tornando com isso a memória “viva” (ALBERTI, 2004, p. 15). Mais do que mantê-la viva em objetos e narrativas, é necessário reativá-la por meio da participação dessa no cotidiano da população local que, após determinado período de tempo não possui mais relações diretas com as funções e formas originais desse patrimônio edificado. Nesse sentido, entram as reabilitações e reconversões de forma a adequar esses edifícios aos usos contemporâneos. Uma vez em condições de utilizar esse patrimônio ativamente para produções culturais, educativas e comerciais, a população é capaz assim de reconhecer igualmente a história ali presente, estabelecer conexões simbólicas e assim continuar a propagá-la por meio da sua identidade cultural.
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Identidade e Interatividade Justamente porque a lembrança de intuições anteriores análogas é mais útil que a própria intuição, estando ligada em nossa memória a toda a série dos acontecimentos subsequentes e podendo por isso esclarecer melhor nossa decisão, ela desloca a intuição real, cujo papel então não é mais [...] que o de chamar a lembrança, dar-lhe um corpo, torná-la ativa e consequentemente atual. (Bergson, 1999, p. 69)
Nos casos observados anteriormente, a legitimação dos edifícios industriais como patrimônio e parte da memória coletiva da sociedade local passa, em um primeiro momento, por ações em escala nacional e regional por parte de iniciativas governamentais. Todavia, após o estabelecimento do caráter histórico/ patrimonial desses edifícios e atribuição de novas funções a esses, de forma a inseri-los no contexto urbano atual, é notável e imprescindível a ação dos atores locais na consolidação e administração desses espaços. Neste trabalho, o direcionamento da análise para equipamentos culturais nos permite pontuar questões nesse sentido em relação à equipe que compõe essas instituições, entre curadores, administradores, museólogos, educadores e servidores em geral que devem atuar como uma equipe multidisciplinar, integrada, estabelecendo e divulgando a missão da instituição. Nesse sentido, cabe a essa equipe não só assegurar e transmitir a salvaguarda e comunicação desse patrimônio e das obras de arte que ele abriga, mas também a de orientar todas essas ações em direção ao público alvo – faixa etária, perfil sociocultural, etc. Os temas abordados nas exposições temporárias, as conexões estabelecidas entre as questões locais atuais e as reflexões suscitadas pelo projeto museológico, as visitas guiadas e sessões interativas de educação são alguns dos exemplos que podem ser utilizados nesse entendimento. Cuidadosamente planeadas e estruturadas, as sessões interativas de educação estão entre as formas mais poderosas e eficazes de atender às necessidades específicas do público não tradicional, de criar caminhos para a inclusão. As atividades interativas são fundamentais para permitir aos visitantes um olhar interrogador, sem pressupostos de conhecimento prévio. As conversas são estimuladas ao redor das exposições. O museu também atua como um espelho, onde as pessoas se podem ver, fazendo conexões entre as suas próprias vidas e as experiências. (Café, 2017)
É evidente no encaminhamento recente das ações da equipe coordenadora como a interatividade é parte fundamental da comunicação do equipamento cultural. No entanto, “a interatividade tem que ser um elemento essencial bem como a parte crítica do processo. ” (Mendes, 2013). A parte crítica se mostra e é construída com base na percepção da relação explanada anteriormente entre memória, identidade e patrimônio. Os recursos tecnológicos e interativos são válidos e eficazes no sentido de conexão real e construção intelectual a partir do momento em que tocam pontos da memória do expectador, fazendo-o se reconhecer e refletir a partir daquilo. A questão da interatividade é assim e deve ser usada como uma ferramenta de comunicação patrimonial que pode auxiliar a consolidação e rememoração da identidade local. A identidade de um povo é constituída por pontos de lembrança e simbolismo em comum. Essa identidade está por vezes ‘adormecida’, diluída entre fatos históricos oficiais que pouco dizem à sociedade que o conforma atualmente. O ‘despertar’ desses pontos de reconhecimento e memória é feito nesses locais de cultura que se valem já do valor patrimonial dos edifícios que os abrigam, e que simultaneamente utilizam-se da interatividade para atingir esse fim.
Dentro dessa compreensão, a interatividade pode ou não ser estruturada por recursos tecnológicos. Esse vínculo imediato estabelecido comumente entre interatividade e tecnologia pode ser rompido a partir da análise e compreensão de experiencias museológicas e psicológicas, as quais não serão aqui detalhadas, mas que indicam que a formação da identidade pessoal e coletiva passa por pontos de conexão emocional que podem ser ‘despertados’ por estímulos sensoriais – que vão desde cheiros, toques, sons e sabores que se conectam à experiências e memórias coletivamente estabelecidas. Assim, a criatividade e empenho dos programas de equipamentos culturais devem ser usados para incentivar o estabelecimento dessa interatividade que será estabelecida em níveis físicos, mas muito mais importantes em níveis intelectuais e emocionais. Dessa forma, as instituições culturais aqui tratadas, que se estabelecem em locais imbuídos de fatos e significados históricos, são também marcantes por terem consciência e se valerem desses recursos ‘sinestésicos’ no sentido de provocar nos seus visitantes rememorações, buscas e sentidos que podem ser vistos e materializados nas formas do museu. Uma equipe multidisciplinar que atua no sentido de utilizarse da capacidade e poder de seleção e legitimação da instituição para materializar essa memória coletiva existente, porém por vezes não explorada e reconhecida. A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração, e assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela. (Bergson, 1999, p. 77)
O modelo utilizado muitas vezes no tratamento do patrimônio industrial é notavelmente eficiente nesse sentido: preserva-se uma parte da forma original da construção, transformando-a num lugar com usos relacionados, ou seja, plantas e equipamentos que se mantiveram praticamente intactos, mantendo parte da função original de exibição, com um significado histórico e valor. É o que observamos por exemplo nos dois estudos de caso que utilizam os tijolos avermelhados, típicos da região, em seu revestimento externo. A opção pela manutenção desse revestimento dos edifícios originais remonta não só a história material do local, mas também, e principalmente, à relação identitária estabelecida pelos habitantes locais e até de outras regiões em relação a esse material e a região. Em Lille e cidades do entorno vemos diversas residências revestidas com esse material. A oralidade local perpetua a narrativa que conta que essas residências foram construídas durante o período de maior atividade industrial e eram feitos assim porque os operários das fábricas, recém inseridos no contexto urbano e sem muita renda ou auxílio para o fazer, aproveitavam os restos dos materiais provenientes das produções e construções fabris para construir suas casas. Assim, as intervenções aqui tratadas, retornam a esses acontecimentos legitimados pela oralidade local e pela imagem da cidade, a qual se concretizou e permanece firmada sobre os ‘tijolos vermelhos’, de forma a promover uma interatividade entre museu e sociedade que vai além de recursos tecnológicos – passa essencialmente por fatos e matérias que são historicamente reconhecidas como parte da memória e identidade coletiva dessa sociedade.
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CAPÍTULO III. ESTUDOS DE CASO
A arquitetura se transforma e se integra à vida da comunidade Mas, quando se tratar, ao contrário, de obra de arte, mesmo se entre as obras de arte haja algumas que possuam estruturalmente um objeto funcional, como as obras de arquitetura e, em geral, os objetos da chamada arte aplicada, claro estará que o restabelecimento da funcionalidade, se entrar na intervenção de restauro, representará, definitivamente só um lado secundário ou concomitante, e jamais o primário e fundamental que se refere à obra de arte como obra de arte. (Brandi, 2004, p. 26).
São apresentados a seguir os dois estudos de caso selecionados para análise e exemplificação das questões apresentadas ao longo dos capítulos anteriores. Edifícios que atuam como casos bem-sucedidos de utilização do patrimônio industrial e que conformam em si um caráter de ampla influência e reestruturação cultural/ social do local. De acordo com a Carta do Patrimônio Industrial, O patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infraestruturas, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação.
Assim, os edifícios a serem estudados não se apresentam como exemplos de patrimônio industrial literal, tais como conjuntos edificados relacionados com à extração de matéria prima, processamento, produção, armazenamento, transporte, produção energética, mas sim à edifícios que foram construídos durante o período industrial francês (séc. XIX e início do séc. XX). Apesar de não fazerem parte do circuito operacional de produção das indústrias, foram criados sob os contextos e crenças sociais, políticas, econômicas e intelectuais da era industrial e por isso serviam em suas formas e funções à essa realidade, refletindo a sua configuração cultural. São assim atualmente considerados como patrimônio cultural e histórico que representam e simbolizam não só esse momento, mas também as consequências e desdobramentos do seu fim. As estruturas sociais associadas são tipologias construtivas e organizativas que refletem uma filosofia industrial que não pode ser dissociada de uma análise de conjunto do processo de industrialização. (Ministério da Cultura de Portugal, 2017)
Edifícios imbuídos de soluções técnicas e estilos inovadores para a época, como o Art Déco da piscina pública de Roubaix, que materializam o espirito da época de inovação e crença no futuro. As suas reconversões refletem mais uma vez a sociedade, atribuindo a esses novos valores de uso de acordo com as necessidades contemporâneas. Os edifícios industriais são os testemunhos mais próximos das comunidades, impondo-se pela utilização de algumas linguagens próprias, difundidas através de diversas soluções construtivas, caso do telhado em shed ou da utilização de diversos materiais de construção, tal como o ferro, o tijolo vermelho e mais tarde o concreto. (Ministério da Cultura de Portugal, 2017)
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Em meio a essas demandas atuais, em uma investida que transita entre a manutenção da história e consolidação da memória coletiva local por meio do uso, a arquitetura se transforma: adaptações, intervenções e modificações que recolocam a construção nos fluxos e usos dos seus empreendedores e visitantes. A limpeza, o tratamento de superfícies, de lacunas e de espaços vazios, a inserção de novos elementos, a escolha de função compatível, são temas sempre presentes, maioria das vezes ao mesmo tempo, que resultam em mudanças que devem preservar as características essenciais dos bens, como meio de assegurar sua salvaguarda e sua real inserção na vida das sociedades. Isso leva sempre a escolhas difíceis, que devem ser fundamentadas em análises criteriosas e multidisciplinares. No que respeita à arquitetura, o projeto exige, ainda, maestria e capacidade de interpretação das formas, devendo ser sensível e respeitoso, concomitantemente aos aspectos formais e documentais da obra. Alterações, remoções, inserções e uso da criatividade devem ser consequência da abordagem multidisciplinar fundamentada, e não premissas. (Kuhl, 2009)
A necessidade de adaptar e intervir é intrínseca à história da preservação dos objetos arquitetônicos. A adequação às necessidades e exigências contemporâneas passa pelo reuso de alguns materiais e ambientes, destruição e abandono de outros decorrentes da perda de função e enfim, alterações no projeto original, com mudanças funcionais; reformulação do programa de necessidades; compatibilizações com normas ambientais, de segurança, salubridade e a conservação de partes significativas do conjunto original de forma a promover a adaptação para os novos usos. O autor Josep Maria Montaner, em seu livro Museus para o Século XXI, diz que a característica predominante dos novos museus reside na complexidade do programa. Nesse ponto, podemos destacar a demanda contemporânea por espaços culturais que ofereçam não só a obra artística e patrimonial em si, mas uma estrutura ampla, cada vez mais equipada em diversos aspectos que passam desde a alimentação, até a atividade comercial associada com lojas e espaços de coworking e produção cultural. Nesse sentido, constata-se a também a substituição das salas e galerias tradicionais, rígidas e adequadas a usos e exposições especificas, pelos espaços flexíveis que além de oferecerem maior possibilidade/diversidade de instalações, permite assim também uma nova relação entre o público e a obra, mais dinâmica e fluida no espaço expográfico, e mais uma vez adequada às solicitações de interatividade e conexão das pessoas hoje. Os locais de cultura remontam os valores do edifício também por meio das suas estruturas modernas e tecnologias cênicas que tornam as obras e o prédio em si uma ‘atração imperdível’ - a excelência dos métodos de conservação, a exibição e iluminação dos objetos, a disposição desses em percursos que constroem uma narrativa quase sinestésica... A tecnologia e o projeto museográfico atribuem ao conjunto maior que engloba o patrimônio arquitetônico, um papel urbano como monumento e lugar de arte. As adaptações técnicas/estruturais para obtenção do conforto contemporâneo são de vital importância para o real funcionamento e desenvolvimento do local. Os novos usos estão relacionados não só à demanda local de serviços e atividades culturais, mas também da apropriada adequação desses para atrair e receber os novos visitantes. Que um arquiteto se recuse a fazer com que tubos de gás passem dentro de uma igreja a fim de evitar mutilações e acidentes é compreensível, pois é possível iluminar o edifício com outros meios; mas que não consinta na instalação de um calorífero, por exemplo, sob o pretexto de que a Idade Média não havia adotado esse sistema de aquecimento nos edifícios religiosos, que ele obrigue assim os fiéis a se resfriar por causa da arqueologia, isso cai no ridículo. (Viollet-le-Duc, 2000, p. 66)
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A avaliação crítica em relação às obras do passado recente permite a valorização dessas, não só pelo aspecto histórico, mas também pelo artístico.
Um exemplo interessante dessa ainda incipiente noção sobre a relevância do uso para a preservação e o restauro, foi a postura de Michelangelo (1475-1564) quando chamado para a transformação das Termas de Diocleciano em Igreja Santa Maria dos Anjos, onde inseriu apenas os elementos necessários de forma criativa e criteriosa adequando para a nova função, respeitando a espacialidade original e preservando o aspecto de ruína exterior, proposta muito próxima aos conceitos de intervenção mais recentes (Kuhl, 2001, p. 24-36).
A restauração desses bens escolhidos como estudos de caso segue a linha patrimonial consolidada ao longo dos anos, em especial ao longo do século XX: a obra é olhada e repensada de acordo com as suas razões e questões culturais, formais, documentais, simbólicas, memoriais, científicas e éticas. As questões de ordem prática, como econômicas e políticas, permanecem presentes, determinando cada vez mais a permanência e utilização desses espaços, e têm também as suas ações pautadas nos interesses de razão cultural. Essas experiências contribuíram para fundamentar as atuais noções ligadas aos processos de reabilitação, entendido como ação de caráter eminentemente cultural, que se transforma em ato crítico alicerçado na análise da relação dialética entre as instâncias estéticas e históricas de uma dada obra (Brandi, 2004, p.30), tendo por objetivo “conservar e revelar os valores estéticos e históricos do monumento e fundamenta-se no respeito pelo material original e pelos documentos autênticos. ” (Carta de Veneza, artigo 9). Acredita-se que a unidade de metodologia, para todos os tipos de bens culturais, é viável e que existem princípios gerais (algo diverso de regras fixas) comuns a todo o campo; o que varia, porém, na aplicação desses princípios, são os meios postos em prática em função da realidade de cada obra, de sua constituição física, de seus materiais e patologias, de sua configuração e inserção num dado ambiente, de seu particular transcurso ao longo do tempo. (Kuhl, 2009)
As intervenções, adaptações e remodelações que compõe grande parte dos projetos de reabilitação, assim como os estudos de caso a serem analisados, também são feitas de forma a mise en valeur (valorizar, colocar em evidência) a edificação e o conjunto de histórias e simbolismos que ela representa. A arquitetura é vista e colocada como parte da obra e do projeto expográfico. A Carta de Nizhny Tagil afirma que “É recomendável uma adaptação que evoque a sua antiga atividade. ” (TICCIH , 2003). Essa recomendação permite que percebamos não só a importância das adaptações para os novos usos, que devem ser feitas levando em consideração os padrões atuais de conforto e acessibilidade; mas que isso seja feito em consonância com a preservação estratégica de formas, percursos e atividades que remetam aos usos originais de forma a consolidar a preservação e exaltação do patrimônio cultural material e imaterial por parte dos novos usuários desses espaços. A apresentação e discussão desses aspectos do tratamento do objeto arquitetônico original será feito aqui, mesmo sabendo que é um tema extenso e que não será plenamente desenvolvido nesse trabalho, olhando para os casos selecionados nas cidades de Lille e Roubaix de forma a perceber como a incorporação do objeto arquitetônico original no novo conjunto expográfico/cultural contribui para o sucesso dessas reabilitações nas esferas sociais, econômicas e coletivas. O depoimento de uma visitante parisiense à cidade de Lille nos permite compreender melhor como a relação patrimonial e social perante o meio urbano e suas parcelas históricas oferecem aos locais e turistas uma nova percepção do seu conjunto e identidade: Os blocos cerâmicos são lindamente colocados em evidência, mas nunca em excesso. Talvez porque a cidade não é inteiramente composta de blocos cerâmicos e que essa possui um jogo de cores nos diferentes prédios que a compõe. Em verdade, andando pelo centro histórico, passando entre pequenas ruas estreitas ou fachadas flamandes que se alinham, nós encontramos nuances de cores de blocos cerâmicos que permitem uma diversidade e evitam a existência de um efeito excessivamente monótono e repetitivo à arquitetura. Os blocos cerâmicos preservados vêm enfim revelar o forte passado industrial da cidade. (Paul, 2016)
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O papel social da Museologia, tão presente nas discussões culturais e museológicas contemporâneas, afirma a necessidade de integração do patrimônio ambiental ao cultural, a importância da função socioeducativa do museu e do estímulo à reflexão e ao pensamento crítico, a afirmação do museu como meio de comunicação. As estruturas industriais do Norte da França viram nos locais de cultura meios e fins de reconexão entre o patrimônio urbano e cultural, entre ambiente físico e relações simbólicas.... Viram nessas conexões a porta de entrada para transformações sociais que há tempos assombravam a região e vieram em forma de realce e recognição da cultura local. Os museus e centros culturais comunicam educação e reestabelecimento (identitário, cultural, econômico, simbólico, politico); estabelecem o diálogo perdido entre a população atual e uma história na qual são capazes de se reconhecer. Os edifícios industriais reabilitados em equipamentos culturais aqui tratados são também objeto de análise por responderem a essas indagações que permeiam fortemente o meio na atualidade, sendo de certa forma concretizações dessas preocupações e exemplo para futuras intervenções patrimoniais. O novo foco passou a ser o museu como espaço de interação social com o patrimônio.
A reciclagem de edifícios históricos ou mesmo de conjuntos de edifícios dos centros históricos das cidades, como a Gare d’Orsay de Gae Aulenti em Paris (1977); o SESC Pompeia de Lina Bo Bardi em São Paulo (1986), demonstram em seus projetos a conciliação entre passado e presente feita com maestria, articulando novos usos e antigos significados urbanos, caminhando com equilíbrio na linha tênue que separa as adaptações para o conforto contemporâneo e a preservação da memória. O Museu d’Orsay em Paris, tomou lugar na antiga estação ferroviária criada na ocasião da Exposição Universal de 1900. Como nos estudos de caso aqui trabalhados, a localização central do edifício e a história nele representada foram os pontos condutores das obras de reabilitação que viram no equipamento cultural um mote extremamente adequado para maximizar o potencial simbólico do edifício que agrega locais e turistas todos os dias. O SESC Pompeia de Lina Bo Bardi foi ainda mais fundo na relação com o público local. Apesar de todas as indicações arquitetônicas do mercado, a arquiteta responsável pela reabilitação da antiga fábrica de tambores teve a força motriz do seu projeto na observação das atividades e usos que aconteciam no local antes da sua intervenção. A apropriação do espaço abandonado pela população do bairro que se reunia lá para lazer e descanso moldou as formas e percursos de Lina Bo Bardi criando assim um edifício que consegue ser ao mesmo tempo referência internacional e ponto de encontro e representação dos habitantes locais.
Os estudos de caso a seguir estão situados cronologicamente posteriores a esses exemplos, mas carregam em si as discussões por eles fomentadas. O pretérito industrial é colocado em evidência pelas adaptações que permitem que a população local e o mundo usem e se lembrem da importância de Lille e Roubaix na construção industrial. O conjunto edificado exterior preservado e as partes originais restauradas e evidenciadas ao longo da expografia resgatam registros e reconhecimentos esquecidos e a capacidade de reinvenção daquele local por meio de suas pedras e palavras existentes. A cultura mostra-se como a base apropriada para a construção paralela entre herança e projeção. As cidades e seus edifícios industriais voltam a existir enquanto lugar por meio da cultura ali formada e difundida. (...) mantendo sempre, portanto, o futuro no horizonte de suas reflexões. É ato de respeito pelo passado, interpretado no presente e voltado para o futuro, para que os bens culturais possam continuar a ser efetivos e fidedignos suportes da memória coletiva. (Kuhl, 2009)
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Centro Cultural Gare Saint Sauveur Lille, França
O Centro Cultural Gare Saint Sauveur conta sobre o seu passado em seu nome (gare – estação de trem em francês) e em suas formas. Inaugurada em 1865, a estação de trem destinada inicialmente só ao transporte e carga de mercadorias se abre mais tarde para a circulação de trens de passageiros. Durante esse período de efervescência industrial, Lille se posicionava mais uma vez no centro dos interesses e relações comerciais. Propositalmente ou não, a vocação mercantil da cidade, que vem desde a Idade Média, passa de maneira extremamente representativa pelo período industrial e retorna mais tarde como principal ponto de interesse e intersecção para renovação da área central de Lille que mais uma vez, após a crise econômica dos anos 1970, se reinventa a partir dos seus eixos de transporte e comunicação. O projeto e construção da estação original surgem em um contexto semelhante ao da metrópole lilloise atual: por volta de 1860, a cidade medieval é cada vez mais transformada em detrimento da nova conjuntura espacial e social formada a partir da Revolução Industrial. Esta expansão urbana deixa terrenos disponíveis devido ao projeto de desmantelamento de fortificações medievais e áreas militares ao sul da cidade. Seguido a isso, surge a ideia e necessidade de construção de uma nova estação mais ampla e centralizada de acordo com as novas rotas e fluxos da cidade. O projeto é apoiado por um decreto imperial de 1861 e em 1862 estabelece-se a construção da uma nova estação de mercadorias no antigo forte Saint-Sauveur. O contexto de formação e consolidação da edificação e da área no seu entorno nos indicam que essa já surgiu numa posição de centralidade e importância de articulação no contexto urbano e regional, o qual se estende até os dias atuais uma vez que o quarteirão Saint-Sauveur ainda constituiu parte principal do centro da metrópole Lille. Inicialmente no sentido de transporte de carga e de passageiros, hoje no sentido de articulação, divulgação e desenvolvimento cultural da cidade. A localização central privilegiada permanece, ao lado do movimentado parque Jean Baptiste Lebas e com plena mobilidade urbana (estações de ônibus, metro e bicicleta publica), o conjunto arquitetônico conta ainda com a proximidade de edificações emblemáticas, que contam e representam a história da cidade, como a Noble Tour, marco dos combates da Primeira Guerra Mundial; a praça do General de Gaulle, local que hoje abriga o Teatro do Norte; e o reconhecido projeto de Rem Koolhas que abriga entre outras atividades as principais estações de transporte de passageiros em nível municipal e internacional - Gare Lille Flandres e Gare Lille Europe; além de ruas e centros comerciais, museus, teatros e cinemas que congregam alta densidade e diversidade de usos e fluxos. Todo esse favorecimento geográfico e de usos se deparou com um enclave quando a estação Saint-Sauveur é desativada. Já a partir dos anos 1990, o equipamento começa a apresentar sinais de saturação, não comportando mais a diversidade de atividades que ali se desenvolviam. Diante da falta de espaço para abrigar a demanda e com novas estações mais adequadas que foram inauguradas nessa época, a estação Saint-Sauveur é finalmente fechada em 2003. O fim das atividades do local como estação de trem foi resolvido na questão da demanda de transportes com as novas estações inauguradas em pontos mais afastados da zona central e articulados com os eixos de entrada e saída da cidade. Contudo, o fim do uso do conjunto fez Lille se deparar com uma área de 20 ha no centro da cidade, agora sem ocupação e sem previsão de novos usos. Cerca de cinco anos se passaram e a falta de utilização do lugar deu espaço para o surgimento de um cenário de abandono, com um importante marco arquitetônico que se degradava dia após dia e passava a abrigar conflitos sociais e a alastrá-los pelo entorno.
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No ano seguinte à desativação da estação, Lille recebe o título de Capital Europeia da Cultura. A nomeação movimentou governo e sociedade em reflexões e ações formuladas sobre a constatação da necessidade de retomada dos valores históricos e artísticos da cidade. Nesse cenário, não era possível imaginar uma reestruturação e afirmação cultural que ignorasse o passado mercantil e industrial da cidade. O quarteirão Saint-Sauveur e o conjunto da antiga estação eram incontestavelmente o centro físico e simbólico de convergência desses pontos de rememoração. Assim, a cidade de Lille inicia um projeto de urbanização e reabilitação da área central em 2006. Um dos primeiros passos é o lançamento do concurso para o projeto arquitetônico de revitalização da área da Estação Saint-Sauveur. A gare em si, responsável pelo domínio de 7 dos 20 ha até então sem uso, foi a primeira parte a ser focalizada e teve suas obras de reabilitação concluídas em 2009. O projeto da edificação como centro cultural, ainda recente e em desenvolvimento no sentido de apropriações e consolidações, se encontra em pleno funcionamento e articulação de base nos pensamentos e ações sobre patrimônio industrial e reestruturação urbana em áreas já consolidadas. Os dois galpões principais, ocupados originalmente pela estação, foram reestruturados e continuam, a partir de suas atividades múltiplas e efervescência cultural, articulando o desenvolvimento do entorno próximo com bares, restaurantes, habitações e escritórios que surgiram após a implantação do centro cultural no local. No primeiro galpão, denominado Ala A, a superfície de 1 000 m2 do edifício do século XIX abriga agora um bar, frequentado diariamente por jovens lilloises, um restaurante e um cinema que contam com intensa programação, sendo algumas vezes guiadas por festivais e exposições que ‘tematizam’ todas as atividades do Centro. Nesse, toda a forma e estrutura externa original de blocos cerâmicos (os famosos tijolos vermelhos), assim como as treliças de madeira, os pisos de ladrilho e toda a estrutura e instalações internas que foram incorporadas pelas novas instituições de uso como parte da decoração temática que varia entre o vintage e o high-tec. Hall B, feito em concreto é o resultado da reconstrução de 1920-1930 e foi recentemente classificado. Ele também forneceu uma grande oportunidade para o seu tamanho, seus espaços. Sua No segundo prédio ou Ala B, a superfície de 5 000 m2, construída já nos anos 1920, mas ainda em função da estação e da produção industrial, é reconvertida em um espaço de exposições e organização de eventos. A nova função está diretamente ligada à forma original do prédio, composta por uma estrutura de concreto muito particular: o telhado é composto por duas conchas moldadas e traços de cofragem de madeira na evidência concreta da carcaça no local. No chão, uma linha ferroviária que passa dentro do espaço é incorporado no amplo espaço que abriga diversos tipos de exposição. Todo o local foi reabilitado no sentido de criar um espaço capaz de abrigar eventos culturais e espaços de lazer ao longo de todo o ano. Isso considerado, a forma e os materiais externos, assim como o interior em materialidade bruta, com pilares de concreto bruto e vigas, pilares e instalações aparentes, remontam e concretizam a valorização do patrimônio industrial que é assim afirmado como parte basal da construção cultural da cidade. Um espaço de arte contemporânea, em pleno desenvolvimento e focado na promoção social e educativa da sociedade presente, mas que constrói e desenrola cada uma de suas atividades em um meio que enfatiza a importância da memória coletiva na construção de uma atualidade conectada e representativa. A história materializada é fonte de reconhecimento identitário. Porém, essa mesma identidade precisa e é validada na sua propagação e construção contínua. Assim, a completa e surpreendente readequação do programa de necessidade entra no projeto como fonte de adequação à contemporaneidade e possibilidade de desenvolvimento da mesma: o quadro de funções original, pautado no transporte e armazenamento de mercadorias e passageiros, em uma época em que as estações ainda não contavam com todo o aparato comercial que possuem hoje em dia, abre espaço para a criação de um centro cultural que conta com bar, restaurante, auditório, sala de concertos, salão de jogos interno e ao ar livre, cinema, área de exposições
e espaços multiusos para eventos, performances e atividades em parceria com instituições culturais e educacionais da cidade. Dentro, simpatia e usabilidade foram priorizados – o Hall A abriga um cinema e seu bar, com material utilitário, acessível e surpreendentemente «low-tech». O Hall B apresenta exposições, concertos e os tradicionais mercados de pulgas de domingo, queridos pelos habitantes de Lille, onde o foco é o serviço de qualidade com os artistas convidados e sua produção cultural. (Azzi, 2018)
De acordo com os arquitetos responsáveis pelo projeto e obra de reabilitação, as limitações de tempo e recursos financeiros sob as quais a obra de reabilitação foi proposta, impuseram ao projeto um processo atípico “sem confusões ou gadgets técnicos arriscando a obsolência rápida, sem sofisticação, sem perdas”, onde optou-se ainda pela utilização de “ antigas cotações feitas por empreiteiros no âmbito de outros projetos e clientes cujo período de validade ainda não tinha expirado. ” Tendo desenvolvido sob os conceitos de adaptabilidade e ready-made, o edifício encontra-se reunido a partir de bits e peças tomadas de aqui e de lá, e surge como resultado aleatório de negociações anteriores – a exemplo das luzes fluorescentes provenientes de um parque de estacionamento público, cujo preço unitário tinha sido negociado durante o convite à apresentação de propostas para este último projeto. A mesma abordagem se aplica à pintura e ao mobiliário foi inicialmente desenvolvido para uma escola. (Azzi, 2008)
A cidade de Lille fez deste projeto um símbolo da sua política cultural, dando à sua população a oportunidade de fazer uma visita onde o sentimento de pertença já não é questionado. Esse sentimento de pertença é também e majoritariamente consolidado e transmitido pelo respeito e valorização da história do local. A antiga estação de Saint-Sauveur é em si uma história, uma paisagem. Isso entendido e afirmado, buscou-se respeitar a morfologia na hora de reinterpretar o sítio existente: as linhas dos trilhos são os elementos mais marcantes da paisagem, o quadro e a estrutura da planta são organizados em memória de seus passos. Aqui observa-se ainda e a partir disso o desejo e a expressão da forma de comunicação do objeto arquitetônico - o tratamento é claro no sentido de modernizar o local; o passado é presente mas não é o foco do desenvolvimento atual. Desse modo, a comunicação do edifício histórico resta na materialidade e forma expostas de maneira clara em referência ao passado industrial ali vivido, porém não se explora incessantemente a história em placas ou textos explicativos sobre a trajetória do edifício. A retomada da memória é parte de um processo maior de construção identitária que aqui é entendido por meio das manifestações e construções artísticas contemporâneas. Entre exposições, concertos, espetáculos, mostras de cinema e pistas de patinação no inverno, o centro cultural gare Saint Sauveur tornou-se um local acolhedor para todos e atua como centro estruturador e incentivador para desenvolvimento de outras etapas de desenvolvimento do local. É o caso do projeto do renomado arquiteto dinamarquês Jan Gehl 6 para o quarteirão, que teve suas obras iniciadas nesse ano e conta com um amplo projeto de urbanização com parques, residências, comércios e instituições que foram pensados à em conjunto com o Centro Cultural já existente e com base nas questões de reabilitação urbana por ele suscitadas.
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Museu La Piscine Roubaix, França
O Museu de Arte e Indústria André-Diligent, conhecido popularmente como Museu La Piscine existe na sua forma atual desde 2001. Locado em um prédio que existe desde 1932, o qual tinha como uso original uma piscina pública; a coleção e instituição atuais do museu remontam ao Museu Industrial de Roubaix que existe desde 1835. Assim, o presente Museu La Piscine nasceu e se desenvolveu sobre essas duas bases, as quais já eram desde as suas concepções originais repletas de conotações vanguardistas e fomentadoras do desenvolvimento cultural e identitário local. A Piscina Pública de Roubaix, inaugurada em outubro de 1932, representava um programa político e social. Congregava em si a beleza e inovação da arquitetura Art Déco; a qual carregava com sigo o pioneirismo do racionalismo teatral em uma obra pública – transgredia-se a barreira puramente técnica e utilitária das construções industriais, sem aniquilar a eficácia do programa e a concretização do ideário higienista em voga na época. O Museu Industrial da cidade que existe desde o século XIX, pensado e materializado em um momento de pleno desenvolvimento da atividade industrial, onde nem a consideração em nível de academia, política e sociedade sobre a importância do movimento industrial enquanto marco histórico e patrimonial era ainda inexistente. Sobre o Museu Industrial da cidade, a sua criação pioneira no sentido de inventariação e valorização do conjunto industrial remontam ao período áureo da industrialização da cidade. Donos de industrias da época criam o museu em 1835 sobre a euforia econômica que tomava conta da região e o administram até 1861 quando ele é transferido aos cuidados de um arquivista e bibliotecário local que amplia o acervo e orienta as novas ações em direção aos interesses e produções da academia de Belas-Artes. Esse caráter administrativo permanece até 1940, quando o Museu é fechado em virtude dos enclaves impostos pela Segunda Guerra Mundial. Em 1959 é desativado definitivamente e se torna o único caso na França de um museu desclassificado como monumento nacional pelo Estado. Com isso, a coleção é dividida e dispersada entre outras instituições. Em 1992, já sob as discussões e ações de revalorização do patrimônio industrial que se espalhavam por todo o pais, a coleção do Museu é resgatada como propriedade municipal por meio de uma parceria entre o Estado e o município de Roubaix. O momento histórico em que essa reapropriação é feita, assim como a existência de um passado artístico e valorativo em relação à produção industrial, demonstram como o caso do Museu La Piscine e a cidade de Roubaix na sua conjuntura cultural e histórica são de extrema relevância na discussão da valorização do patrimônio. Por conseguinte, observa-se também como o pioneirismo e desenrolar/prolongamento/extensão da instituição ao longo do tempo, se remodelando e adaptando em meio aos impasses urbanos, sociais e econômicos, demonstram o caráter de pertencimento e reconhecimento identitário desse passado industrial para a cidade de Roubaix. Em 1990, o conselho municipal valida a ideia proposta pela nova equipe de conservação do Museu, dirigido por Bruno Gaudichon, de transformar a antiga piscina, fechada desde 1985 por problemas técnicos, em museu. Essa proposição pode ser entendida por diversos aspectos, que passam por interesses políticos e econômicos e vão até a consciência, por parte da equipe de artistas e curadores, da relevância do edifício e da instituição no contexto local. Localizada em uma friche industriel, a construção já representava um ponto de conflito no avanço urbano. De um lado, a função original e a construção como exemplares primos da sociedade industrial que prezava pelo higienismo e convívio social ali representados.
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Do outro, um museu que já nasceu a frente do seu tempo e sempre agiu priorizando a cultura local e o cenário industrial como parte essencial da formação social e cultural da cidade dos seus cidadãos. Nesse sentido, torna-se clara a necessidade de reabilitação física e valorativa da cidade como um todo e que podia ser iniciada com sucesso por um edifício de relevância arquitetônica e geográfica, usado durante muitos anos e que receberia um novo valor de uso e significado se abrigasse uma instituição bem consolidada em seu tema. Esse último e definitivo passo de reestruturação do edifício e da instituição do museu demonstram mais uma vez a resistência da lembrança industrial como parte da memória coletiva da população local. Esquecida talvez em meio a tantos impasses sociais e econômicos que se seguiram após a década de 1960, mas nunca definitivamente apagada. Em janeiro de 1998, iniciam-se as obras na antiga piscina sob o comando do arquiteto Jean-Paul Philippon, escolhido para elaborar o projeto do novo museu em 1993 por meio de um concurso aberto. Coincidência ou não, Phillipon é também um dos principais nomes por trás do projeto de arquitetura do Museu d’Orsay em Paris, o qual também constitui uma reabilitação de uma estação de trem do século XIX em museu (hoje um dos mais bem-sucedidos e visitados do mundo). Nas palavras do arquiteto, A reutilização da antiga piscina Art Déco de Albert Beert e a extensão de uma friche industrielle, o novo Museu de Arte e Indústria de Roubaix redinamiza uma região e oferece potencialidades de utilização em consonância com o mundo criativo e educacional. É um museu de um novo tipo que associa a arte e a economia, a memória e a modernidade.
Inicia-se assim a construção de um lugar de memória cultural (arquitetônica, artística, produtiva, imaterial – hábitos, crenças e costumes). A partir do ano de 1999, com as obras do La Piscine em pleno andamento, a cidade de Roubaix recebe a linha do metrô e partir desse novo equipamento inicia uma política dinâmica de renovação e dinamização que se estendeu ao longo dos anos chegando hoje à cidade como “símbolo de um conjunto patrimonial excepcionalmente bem conservado e que ilustra grande parte da história da Revolução Industrial Têxtil. ” (Ville de Roubaix, 2017) Em 2000 a cidade recebe o título de ‘Cidade da Arte e da História’ e se insere em um esforço de ampliação do acesso à cultura por parte dos habitantes locais. A Direção Municipal de Cultura estabelece uma série de parcerias com estabelecimentos públicos e privados de forma a multiplicar os esforços nesse sentido. O Museu La Piscine é então inaugurado em 2001, sendo resultado dessas parcerias e empenhos. Mostra-se nesse momento como expoente perfeito para o Estado, que age na reestruturação urbana, e para a população que reforça/recupera por meio desses a sua memória coletiva dissolvida ao longo dos anos entre o abandono de edifícios e instituições. Nesse sentido, é notável como a instituição, inicialmente fruto de um investimento estatal é mais uma vez ressignificada pela população que abraça o projeto e o utiliza incessantemente, promovendo a consolidação dessa memória industrial e da imagem da cidade que se expande e retorna para o local por meio de investimentos, ampliações do Museu e de outras ações culturais. O turismo e atração de investimentos por meio dessa propaganda que se apoia na identidade local consolidada, se mostra no número crescente de 200 000 visitantes por ano, e de premiações como a de “O melhor museu francês de cidades de 20 000 a 200 000 habitantes”, concedido pelo Jornal das Artes e o sétimo lugar na classificação dos Monumentos preferidos dos franceses feita em 2014 pelo ministério da cultura nacional. A inauguração do novo Museu e todos os resultados seguidos à essas ações de revalorização do patrimônio industrial podem ser também observadas a partir do tratamento dado ao edifício. O conjunto edificado é restaurado e ampliado em alguns pontos para acolher as exposições permanentes e temporárias. No quadro central onde estava localizada a piscina é desenvolvida a exposição do acervo do museu, o qual é composto por coleções que evidenciam a consolidação desse patrimônio ao longo dos anos desde a criação do museu e que, já na sua composição, representam uma transgressão e valoração em relação à produção industrial. Isso porque poucos anos após a captação das primeiras peças do acervo, referentes apenas a peças
industriais, os artistas e administradores rompem essa fronteira e estabelecem sucessivamente a coleção atual e a forma que ela tem de possuir além de peças indústrias, peças modernas, de Belas artes e Artes Decorativas. O desejo de estabelecer um contato permanente entre os produtos técnicos industriais e as obras de arte são evidenciados e se mostram a fim de promover a aliança da arte e da indústria. Essa conexão entre indústria, arte e cidade, assim como a construção da memória local por meio desses objetos continua nas salas de exposições temporárias construídas em uma nova ala ao longo do jardim do edifício. O acesso ao prédio é movido para a rue de l’Espérance de maneira a criar um novo fluxo, coerente com a malha urbana atual e consequentemente promotor de novas atividades e usos nesse entorno. As modificações implementadas no projeto arquitetônico são feitas sob o completo entendimento da importância histórica do complexo e da necessidade de reafirmação dessa relevância por meio das escolhas de adaptações e preservações:
Longe de congelar as formas de utilização, o projeto autoriza, no seu centro formalizado na piscina, as mutações e cenografias das mais criativas. O espelho d’água preservado reflete as obras apresentadas no seu entorno e pode ser coberto para a ocasião de um desfile ou performance. Servido desde as ruas do entorno por instalações comerciais e complementado com um auditório, um vasto espaço de exposições temporárias é favorecido por um conjunto de rails de imagem de grandes dimensões, podendo ser fixos ou moveis e permitindo diversas apresentações. (Philippon, 2001)
A reformulação do programa de necessidades manifesta igualmente a preocupação do arquiteto em contato com as demandas locais em níveis econômicos e simbólicos. No programa original, temos no que representa hoje o edifício principal do conjunto, uma piscina de esportes dotada de uma raia olímpica de 50 metros e uma casa de banhos pública com banheiras dispostas em dois andares. No entorno, Albert Baert concebeu ainda várias estruturas para melhorar o conforto de Roubaix: um salão de beleza, uma sala de jantar para os banhistas, lavanderia industrial e banhos de vapor para relaxamento. O programa atual possui no interior, no centro do prédio principal, uma lâmina de água que recorda a vocação original do lugar. Nas suas margens, o jardim de esculturas. Esta área central do museu tem vários usos: exposições, desfiles de moda ... Ao redor da piscina, no piso térreo e primeiro andar, as cabines onde foram reutilizados os tijolos laminados originais são convertidas em vitrines expositoras que apresentam peças de cerâmica, tecidos, joias, desenhos ... Os vitrais no topo das extremidades, orientados no eixo norte-sul do edifício, representam o sol nascente e poente e foram restaurados na ocasião por um mestre vidraceiro local numa ação figurativa de consolidação do saber local associado às artes industriais e decorativas. Restaurase ainda o monumental pórtico em arenito policromado desenhado para o pavilhão da França na Exposição Universal de 1913. Esse pórtico agora ‘coroa’ a entrada da piscina e relembra as exposições universais e a exposição do mundo industrial que nelas se desenvolvia. Paralelo à essas reabilitações, são feitos dois anexos ao prédio principal, os quais abrigam a recepção e administração do museu, um restaurante, salas de exposições temporárias e salas de conferência. A habilitação da área para o seu novo uso enquanto museu, incluiu expansões, abertura de novas passagens e nova inserção e disposição do mobiliário; no entanto, o núcleo central do museu continua sendo a piscina que agora é colocada em evidência, valorizada, pelo conjunto de obras de arte que a circundam. Apesar de ter tido sua profundidade amplamente reduzida impossibilitando o uso original, o foco permanece sobre o objeto que traduz o uso original do edifício e o espirito da época de sua construção. Acrescido a isso, a manutenção de estruturas e ambientes típicos da caracterização do uso original do local, tais como os vestiários e duchas que circundam a piscina e ainda se encontram na passagem dos ambientes de exposição laterais para a parte central, os tijolos laminados que remetem ao material que construiu e identificou a região, elementos que tocam a memória coletiva, como é explicitado pelo depoimento dessa visitante parisiense ao Museu:
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Chegando lá, a primeira coisa que você nota é a presença de tijolo vermelho novamente. Nunca podemos nos esquecer de onde estamos com essas visitas. Ao entrar no museu, você é diretamente atingido pela arquitetura do lugar, mais do que pela própria exposição. A reconversão do museu tem mantido a essência e o espírito da piscina. Encontramos um lado místico com a composição arquitetônica. Não sabemos se o edifício é dedicado ao culto do corpo ou da mente. Os diferentes ambientes, piscinas, salas de vapor, vestiários, são inseridos em uma composição arquitetônica que brinca com a luz e com espaços articulados que evocam as de um convento. (Paul, 2016)
A preservação de elementos da edificação original, assim como toda a história existente por trás da edificação e da instituição nos fazem refletir sobre a comunicação do objeto arquitetônico. Nesse caso, assim como no Centro Cultural Gare Saint-Sauveur, essa comunicação não é feita de forma explicita. A pesquisa sobre a história e trajetória do edifício foi feita e pode ser encontrada no site da instituição ou em visitas guiadas oferecidas pelo museu. O trajeto da edificação, o contexto local industrial e até a herança do período romano com seus aquedutos e banhos públicos que de alguma forma influenciou a formação e consolidação das piscinas públicas nessa região. Aqui essa pesquisa não é comunicada diretamente ao longo do percurso expográfico com placas ou painéis informativos sobre as narrativas e simbologias presentes na arquitetura e nos objetos do atual museu – potencial histórico e comunicativo pouco explorado. A referida comunicação existe aqui assim por meio de elementos visuais, como a manutenção da estrutura original da piscina e algumas estruturas associadas, como os vestiários e duchas, os quais comunicam sobre a função original do museu. Essa forma de comunicação e as conexões entre patrimônio e memória são vistas também na parte externa do conjunto. O jardim “mostra a relação entre o botânico e a indústria têxtil: fibras e plantas de corante (os quais são utilizadas para tingir os tecidos) são plantadas de acordo com uma temática. O jardim é um espaço para contemplar, mas também para visitar. Ele foi projetado e é mantido pelo serviço de Áreas Verdes da cidade de Roubaix. A qualidade estética e sensorial do jardim podem parecer à primeira vista o ponto de interesse do espaço externo, no entanto, esse é acima de tudo um local temático que evoca o passado industrial da cidade, a qual se renova valorizando o seu legado. O Museu La Piscine se mostra assim como um exemplo louvável de alcance desses objetivos, que são de interesse de todos – a preservação e valorização do patrimônio arquitetônico ; a utilização desse patrimônio um ponto de reforço da atração comunitária ; ilustrar a história arquitetônica, urbana e paisagística da cidade que passa inevitavelmente pelo período industrial ; reutilizar e requalificar essas construções respeitando o seu valor patrimonial, alinhado com as metas de desenvolvimento urbano da cidade e das diferentes legislações (acessibilidade, segurança, etc); promover um diálogo harmonioso entre os novos edifícios e herança industrial. A partir disso, torna-se inevitável o sucesso do museu que atuou e atua incessantemente na consolidação econômica e social da cidade, projeção nacional e reafirmação da memória e identidade local. O foco que permanece sobre o objeto que traduz o uso original do edifício e o espirito da época de sua construção, o programa de necessidades que se renova em meio as demandas contemporâneas mas sempre marcado por tijolos, escritas, esculturas e processos construtivos que remontam o passado que se estende naquele local... Todos esses elementos e o tratamento à eles dado demonstram a sensibilidade e comprometimento em preservar e remontar a história a partir da estética e da vivência da mesma por parte do expectador; assim como o admirável equilíbrio entre a adequação ao novo valor de uso e o remonte do ambiente que conta por si só a história do período mas principalmente da cidade e dos habitantes de Roubaix e da região lilloeise que se reconhecem naquele conjunto e sentem sua memória e identidade valorizadas ao verem refletidos na água de La Piscine sua imagem ao lado de grandes obras de arte.
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Estação Principal de Roubaix
Grande Praça de Roubaix
100 m
Museu La Piscine
Local
Euralille
Grande Praรงa de Lille
Prefeitura de Lille
Lille Grand Palais
Palรกcio de Belas Artes Porta de Paris
Parque Jean-Baptiste Lebas
200 m OMM รฃ
N
Centro Cultural Gare Saint Sauveur 49
Museu La Piscine
Projeto Arquitetônico
ADRO
BISTRO SAINT SO’
VESTIÁRIOS
CINEMA
Centro Cultural Gare Saint Sauveur 51
Museu La Piscine
Centro Cultural Gare Saint Sauveur
Comunicação Objeto Arquitetônico
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Museu La Piscine
Centro Cultural Gare Saint Sauveur
Conservação Edificação Original
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desse trabalho pudemos observar, a partir de conceitos, ideias e análises arquitetônicas, como o passado e a memória de um local podem ser trabalhados na atualidade de forma a oferecer efeitos de recuperação social, econômica e identitária para o local e sua população. Em meio à programas renovados e construções reabilitadas, percebe-se o sucesso dessas intervenções a partir do momento em que se estabelece a relação de memória e reconhecimento da comunidade com o edifício e contexto urbano em questão. Essas investigações sobre patrimônio, memória e identidade, aparentemente já firmadas e validadas, foram feitas e destrinchadas a partir de um cenário específico: a região Nord-Pas-de-Calais. Um recorte que pode parecer não evidente de início, mas que mostrou-se extremamente adequado a partir da história que permeia a região e a vivência pessoal de trocas e experimentações dessas conceituadas relações de patrimônio e memória dentro da área. O papel fundamental da região na produção industrial têxtil e mineral nas escalas nacional e continental foi analisado mais especificamente sobre as cidades de Lille e Roubaix, ambas cidades de origem medieval, fortemente baseadas no comércio, que passaram pelo processo industrial com grande sucesso econômico e amplo desenvolvimento urbano e populacional. Se encontraram novamente na década de 1970 sob uma crise econômica que assolou esses locais após o declínio da produção industrial. Hoje enquadradas na mesma região metropolitana, se reestruturaram a partir da cultura e da valorização patrimonial. A partir disso, olhamos para como essa revalorização patrimonial foi feita nessas cidades a partir de títulos culturais municipais, eventos, ações públicas e particulares que se empenharam de modo a reconstruir a imagem e a economia dessas cidades em torno da sua história arquitetônica e social. Os estudos de caso escolhidos para a análise, assim como outros casos de reabilitação de patrimônio industrial visitados durante o trabalho, nos permitem o estabelecimento de um processo adotado em relação a esses edifícios e áreas urbanas que passa inicialmente pelo reconhecimento desses como patrimônio, de forma a chancelar a validade e preservar a estrutura dos mesmos. A isso, segue-se a valorização, estudo, conhecimento, recuperação física e valorativa, reabilitação e remodelação do programa de necessidades para demandas atuais. Nesse ponto que busca reestruturar os valores de uso desses locais por meio da resposta a necessidades contemporâneas, destacamos a opção recorrente por equipamentos culturais, a qual pode ser entendida a partir do conceito antropológico de cultura e do entendimento dos museus e equipamentos culturais em geral como consequências dessa construção cultural local que forma esses como lugares de criação, representação e memória. Patrimônio, memória, identidade se mesclam e foram aqui conceituados de forma a demonstrar como é fundamental o reconhecimento da população local para a efetivação dos novos usos e significados e consolidação da história ali representada. Os tijolos vermelhos, mencionados algumas vezes durante o texto, nos oferecem o debate sobre a interatividade, cada vez mais necessária nessas reabilitações, porém, que deve ser construída e usada como um reconhecimento crítico, com conexões que vão além do tato imediato, tocando o imaginário e o emocional desse público. Essas ações e conexões podem ou não ser estimuladas pela tecnologia que é um instrumento e não uma interação em si mesma. Os estudos de caso avaliados mostram-se aqui mais uma vez pertinentes por utilizarem de elementos arquitetônicos, formas e usos que provocam essas conexões mais amplas e profundas nos seus visitantes.
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A compreensão desses novos usos e seus reflexos na população foram vistos aqui também a partir da urbanidade que forma, molda e determina os usos dessas construções e é também por eles modificada. Como já afirmado por alguns dos autores trabalhados, o resgate da memória e localidade de um local está intrinsecamente ligado às formas de reabilitação e tratamento do patrimônio material que para se fazerem efetivas, devem ser pensadas e realizadas de evocando o passado em usos presentes. Os passos iniciais de reconhecimentos e reestruturação física dos locais permitem que a população obtenha o reconhecimento e legitimação daquele local e do período histórico que ele representa e a partir disso se apropria efetivamente dela tornando-a parte da memória coletiva local e fonte de desenvolvimento econômico e social. Isso considerado, vemos também como essas reabilitações tem sua boa condução ligadas à economia da cultura que permeia a sociedade ocidental de maneira geral desde o século XX, com a criação de ministérios da cultura e estudos sobre “Economia da Cultura, Cultura como fator de desenvolvimento, Indústria Criativa e Consumo cultural, entre outros. ” (Sobrosa, 2010) Esse novo panorama em relação aos bens culturais se estende até os dias de hoje e engloba os estudos de caso aqui vistos uma vez que neles consome-se cultura e a partir deles são criadas novas esferas de consumo no entorno e dentro dos próprios edifícios. É uma rede econômica que se forma e que contribui inquestionavelmente nos parâmetros de sociedade atuais para o funcionamento e desenvolvimento efetivo desses locais. Atividades de turismo, bens artísticos, difusão do patrimônio pela internet e a economia de redes e informação que se formam a partir disso. O retorno financeiro é parte igualmente importante na manutenção desses espaços que são fonte de memória e também de renda. Como dito por Françoise Benhamou em sua obra A Economia da Cultura, “o patrimônio é vivo, permanentemente em processo, e sua configuração constitui-se por meio das relações que uma sociedade mantém com sua memória. Em pleno século XXI, as relações passam inevitavelmente (mas não exclusivamente) pelos aspectos econômicos demandados e proporcionados pelo local. ” Chegamos por fim aos estudos de caso que nos permitiram compreender e exemplificar melhor esses efeitos de recuperação econômica e social promovidos por essas reabilitações. Por meio do texto e apêndice de imagens que nos permitem compreender melhor como o edifício foi modificado em suas formas e usos, podemos constatar como a conservação de elementos da edificação original, como a piscina e as duchas do museu de Roubaix e os revestimentos externos e estruturas industriais da estação de Lille, marcam o valor histórico e simbólico daqueles locais atraindo ainda mais usuários para as novas funções ali estabelecidas. A fábrica agora é museu e a história é degustada e acolhida em meio aos quadros e drinks do centro cultural. O êxito desses estudos de caso pode ser visto não só na consolidação econômica das cidades como pólos culturais, mas também, e principalmente, pelo reconhecimento e apropriação desses locais pelos habitantes locais. A Piscina Pública de Roubaix construída na década de 1920 sob os conceitos higienistas da era industrial é reabilitada como museu por meio de um projeto que pensa nesse público local e nas relações a serem ali estabelecidas. Hoje motivo de orgulho da população, oferece uma nova perspectiva de educação e produção local: Uma lembrança marcante desses 15 anos? Foi em 2006. No final de uma visita a um grupo de idosos, falei com uma senhora. Ela disse: “Eu realmente gostei, foi como se eu tivesse me visto na história da minha cidade.” Dounia Mérabet, funconária do Museu La Piscine à 15 anos Então eu penso em Roubaix. A piscina é um lugar que lhes deu imenso orgulho. Este é um dos lugares mais visitados da região, de longe. É também um lugar premiado: é o nosso melhor cartão de visita com relação ao resto do país e vai para além das nossas fronteiras. É um grande motor de desenvolvimento cultural. René Vandierendonck, Senador, ex-prefeito de Roubaix O que eu gosto sobre este museu é esse seu lado que se aproxima da cidade, e o trabalho feito com crianças e público leigo. O arquiteto tinha uma idéia muito inteligente, ele fez um excelente trabalho. As obras são acolhedoras para as pessoas como elas são, e estão próximas e sentemse familiarizadas e representadas por elas. É um belo cenário que é perfeitamente adequado para as obras de meu bisavô. Marinha Biras, bisneta do pintor local Jean-Joseph Weerts
Da mesma forma, a antiga estação ferroviária de Saint-Sauveur é peça fundamental na construção da cidade de Lille e região e recebe de volta todo o seu significado de uso e valor quando é revisitada e ganha para si um novo programa tão abrangente e significante quanto à sua história. Restaurantes, shows, exposições, palestras, jogos, mostras de cinema.... Muita cultura para Lille! A reabilitação da estação é feita por um competente projeto arquitetônico que a adequa às normas de segurança e necessidades atuais e encaixa todos esses novos usos em meio aos pilares de concreto e tijolos que transportavam e armazenavam no século XIX. O nome pelo qual os locais são atualmente conhecidos remetem ao seu uso original, demostrando uma série de valores históricos, sociais e locais imbuídos nessa reabilitação e demonstram mais uma vez, como no exemplo dos tijolos vermelhos citado ao longo do texto, o poder da história oral e a legitimação da história e da comunidade local pela linguagem e pelos usos. Os dois estudos de caso se encontram assim em edificações transformadas em locais de cultura e recolocadas na utilidade e importância social que esses exerceram ao longo do período industrial. Mais do que isso, agregam-se valores de identidade e formação cultural construídos entre as necessidades do presente e a valorização da tradição. As adaptações e modificações nos edifícios para abrigarem uma exposição contemporânea o trazem para a atualidade e ativam a sua função social e educacional nos visitantes e moradores do entorno. A manutenção e preservação de fachadas e partes da construção original ativam nos usuários o apreço pela arquitetura e pelas histórias por ela contadas. À guisa de conclusão, é preciso admitir que a análise das relações e dos conceitos de cultura, patrimônio industrial, identidade, interatividade, memória coletiva, reabilitação arquitetônica e urbana, economia da cultura, conceitos por si tão complexos, não se esgota em um texto tão breve. Até pelo formato do trabalho de Ensaio Teórico, não houve tempo nem espaço para que essas discussões fossem estendidas, mas optou-se pela escolha e discorrer do texto em cima de autores consagrados e bastante representativos no tema, uma vez que existem outros pensadores igualmente importantes, porém que discutem as temáticas aqui levantados em outras perspectivas/vertentes. A conceituação e discussão aqui apresentadas propõemse assim de forma a embasar o desenvolvimento de uma consciência acadêmica e pessoal sobre as relações entre patrimônio, memória e comunidade, abrindo-se para as novas reflexões que surgem a partir daqui.
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Imagens Todas as fotografias não referenciadas ao longo do trabalho aqui utilizadas pertencem ao fotógrafo Benjamin Vanhuyse, e foram concedidas em sua totalidade de usos e alterações para a realização do Ensaio Teórico aqui apresentado.
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