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Prefácio
O MUTANTE É MAIS FELIZ
No final dos anos 60, eu era uma garota que, como muitas, amava os três Irmãos Marx, os Três Patetas e um trio autóctone que respondia pelo curioso nome de Mutantes. E os Mutantes eram a versão cabocla dos Marx Brothers e dos Three Stooges, pra mim. Era com eles que eu ria, quando não estava rindo com os dois primeiros.
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Parafraseando Jim Jarmush a respeito de Screamin' Jay Hawkins, eu diria: eles eram loucos, e isso
bastava.
De fato, bastaria, se eles não fossem igualmente geniais. A conjunção perfeita de som, imagem e movimento. Os Mutantes eram cinema, em terceira dimensão. Dois irmãos Baptistas aliados à Linda Evangelista da música, a Chanel do rock'n'roll. Arnaldo, uma fusão de Rimbaud com Liszt e Chacrinha. Sérgio, um híbrido de Paul McCartney com Jerry Lewis, com pitadas de Segovia e Pernalonga. Rita, Da Vinci sem sair de cima, a mulher dos mil instrumentos, truques de Fada Sininho e humor de Lucille Ball. Sem esquecer, é claro, de Cláudio César, o "quarto mutante", possível reencarnação de Stradivari e Thomas Edison, numa só pessoa. Inventor tecnológico científico do grupo, ele desempenhou papel semelhante ao de Henrique Britto, no Bando de Tangarás, conjunto formado por Almirante e Noel Rosa, entre outros. Assim como Britto foi o inventor do primeiro violão elétrico da história, CCDB, você verá, concebeu inauditos modelos avançadíssimos de guitarra, baixo e demais geringonças eletro musicais, posteriormente, copiadas lá fora. (E ainda houve quem protestasse contra o ingresso da guitarra elétrica no universo da MPB — bem como a dos Mutantes, ignorando o fato de que a invenção era aborígene, tanto quanto não podia ser mais o trio.) Gosto dos três juntos, do mesmo modo que separados. Adoro a poesia de Arnaldo, a voz do Sérgio e o histrionismo da Rita. Ou seria: a voz do Arnaldo, o histrionismo do Sérgio e a poesia da Rita? Ou ainda: o histrionismo do Arnaldo, a poesia do Sérgio e a voz da Rita? É. Parece impossível destacá-los uns dos outros, quando se pensa neles e um sussurro inconsciente nos confidencia ao pé do ouvido: mutantes. E imediatamente, sobre nossas cabeças adultas, um céu de vinte e tantos anos passados se refaz. Um céu "cortado por pressentimentos e foguetes." O firmamento do futuro que não veio, mas acabou deixando uma memória virtual no nosso computador afetivo. Estou convencida de que Caetano Veloso não estava certo ao desconfiar, em seu livro Alegria, Alegria, de que a década de 70 não iria soar. Porém, caso nossos vienatones venham a sofrer a interferência da seleção antinatural das espécies raras e deles escape o som do século XXI, antecipado pelos Mutantes, nossas lentes de contato, nosso tato, nossa antena parabólica, paródica, satírica, há de se ajustar às exigências suaves das linhas que Carlos Calado costurou adiante, para este desfile de haute-couture jornalística. Tenho acompanhado Calado desde o início deste trabalho, e fui testemunha do zelo com que ele amealhou as informações que se seguem. Tão cuidadoso com a verdade. Mas, já proclamava Oscar Wilde, uma verdade deixa de ser verdadeira quando mais de uma pessoa acredita nela. E, dizia Abbey Hoffman, "if you remember the sixties, you weren't there". A verdade aqui perdeu a importância. Malgrado a sentinela diligente de seu autor, este livro transcende a verdade. É um argumento narrado de diferentes pontos de vista. Um Rashomon retropicalista. Um filme no melhor estilo do cinema mutante. Misto de tragédia com siap-stick. Farsa com romance. Jornalismo com literatura de primeiro time. Já se disse que 90% da humanidade não têm nada a dizer e os outros 10% fariam melhor em ficar calados. Menos este Calado aqui, que tem muito a dizer e da maneira mais saborosa. Esta é uma oportunidade imperdível para aqueles que não estiveram lá se deliciarem com o raconto sonhador proporcionado pelo emocionante texto que se segue. Quem não viveu, aqui lerá a história e as estórias
do tresloucado trio dentuço que, orquestrado pelo maestro Rogério Duprat, urdiu cinco Sgt. Pepper's, enquanto os Beatles, em si, e George Martin só tiveram fôlego para um. Uma história que é a síntese de uma época de muitas contradições, contrastes, e de uma efervescência que nossos tempos mauricinhos desconhecem. A descrição de uma saga que não se limita à trajetória atravessada pelo grupo, mas se estende igualmente ao levantamento das circunstâncias que a proporcionaram, o contexto em que ela se desenrolou. O autêntico rock'n'roll do mutante doido que foram aqueles anos 60/70, assistidos com uma perplexidade extasiante pelo planeta Terra. Sim. Os Mutantes eram demais. E esta também é outra oportunidade de lê-los (sic) reunidos novamente. Afinal, quem é que não sonhou com a volta de Rhett Butler para os braços de Scarlett 0'Hara? E como não associar Rita Lee a uma Scarlett 0'Hara pós-moderna, numa era de tantas starlets odaras antediluvianas? Mas esse é um outro filme. O que vocês vão ver daqui a duas páginas é o meu road-movie de cabeceira, dirigido magistralmente pelo meu mestre e super amigo, Carlos Calado, sobre quem eu diria: "é o Woody Allen do pop." E isto por si bastaria, se ele não fosse também um repórter que honra as palavras de outro diretor, Elia Kazan: "criticar é um ato de amor." Agora, você vai me dar licença, porque eu estou louca para ler tudo outra vez. Será que eles vão voltar no final?
Mathilda Kóvak1
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