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5. O VELHO OESTE DO ROCK PAULISTA
Carlos Calado
5. O VELHO OESTE DO ROCK PAULISTA
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Numa manhã ensolarada, no final do inverno de 1966, André sentiu que já estava pronto para enfrentar o duelo. Tinha chegado a hora de tirar a limpo quem era mesmo o bom. Passou logo cedo pela casa de João, seu amigo, e seguiu junto com ele para a zona oeste da cidade. João não queria perder por nada aquele desafio: o gatilho mais rápido do bairro do Brooklin contra o mais ágil da Pompeia. Os dois nem precisaram tocar a campainha da casa da Venâncio Aires. Um quarteirão antes, na própria rua, encontraram alguém um tanto diferente do que imaginavam ser o famoso Serginho. Era um garoto gordinho, de cabelo comprido com franjinha beatle, calça Lee e tênis preto de basquetebol. Feitas as apresentações, o desafio não pareceu perturbá-lo nem um pouco. Com um sorriso maroto de quem já tinha visto aquela cena antes, Serginho convidou os dois a entrarem na casa. Ali estava sua arma mortal: uma Barera acústica, italiana, que fora adaptada por Cláudio César, seu irmão. Com um braço mais estreito, ela facilitava bastante as escalas para Serginho, que ainda tinha dedos relativamente pequenos.
Até que o duelo musical começou equilibrado, com os dois exibindo alguns truques e muita velocidade para intimidar o adversário. Mas quando Serginho sacou Caravan, envenenando o arranjo dos Ventures para o antigo sucesso do jazzman Duke Ellington, André pediu água. Virou mais um na longa lista de derrotados pelo paladino roqueiro da Pompeia. Porém, como geralmente acontecia nessas ocasiões, também nasceu ali uma longa amizade (Duas décadas depois, André Geraissati homenageou o amigo Sérgio Dias com uma bela composição: Com o Sol Nas Mãos, incluída em seu álbum 79 89, lançado pela WEA, em 1989).
Os desafios e duelos musicais eram bastante frequentes na Pompeia dos anos 60. Naquela época os guitarristas se comportavam como pistoleiros do velho Oeste norteamericano. Quando um deles começava a se tornar conhecido por suas façanhas sonoras, era obrigado a provar constantemente sua destreza nos improvisos contra os incrédulos desafiantes que surgiam de todos os cantos da cidade. Vencia o mais rápido, ou o mais sabido. A competição era o aditivo mais poderoso para a evolução musical dos roqueiros. Serginho não deixava por menos: exibindo uma técnica surpreendente para um garoto da sua idade, chegava a tocar de costas para o adversário, com a maior cara de pau, só para não revelar alguma posição nova que tinha descoberto sozinho. Todos os truques eram válidos para entortar o desafiante, inclusive humilhá-lo com malabarismos. Foi o que aconteceu com um garoto de Perdizes, Arnolpho Lima Filho, o Liminha. Guitarrista do The Smarts, um dos vários conjuntos amadores em que tocava em 1966, um dia Liminha ouviu um pedido engraçado da mãe de Rubinho e Élcio, respectivamente o baterista e o baixista dos Smarts: "Eu queria que você desse uma lição num garoto. Ele toca bem, mas é muito convencido." Confiante, Liminha não negou fogo. Armou-se com a sua Giannini e partiu para o desafio, marcado em terreno neutro. O adversário chegou com um enorme e estranho estojo de guitarra. Em vez do padrão tradicional de caixa, que acompanhava as formas arredondadas do instrumento, a de Serginho era quadrada. Quando Liminha percebeu que se tratava de uma Fender importada, sua segurança de bom guitarrista começou a despencar. A sensação do garoto durante a disputa foi a de ser esmagado por um rolo compressor. Serginho fez misérias na guitarra, principalmente nos
A Divina Comédia dos Mutantes
improvisos. O golpe de misericórdia veio quando ele começou a tocar com uma mão só, coçando a cabeça com a outra. Aí já era covardia. Liminha foi à lona, mas o vencedor se mostrou bastante camarada. Serginho não só deu algumas dicas para o abatido adversário, como o convidou para ir até a Pompeia, naquela mesma noite, conhecer Cláudio César, o verdadeiro dono da preciosa Fender. Desde que Cláudio César iniciou sua produção artesanal de guitarras, a oficina nos fundos da casa da Pompeia já vinha sendo frequentada por músicos profissionais e amadores. Porém, com o fim do 0'Seis, Arnaldo, Rita e Sérgio passaram a ensaiar na Venâncio Aires, transformando rapidamente a casa em ponto de encontro dos roqueiros do bairro. Para estes, a casa dos Baptista passou a ser um programa mais interessante até do que o Dólar Furado, a pioneira lanchonete na esquina da rua Cotoxó com a rua Padre Chico, onde a maioria dos garotos da região comeu seu primeiro hambúrguer acompanhado pela infalível Coca-Cola. Foi ali também que vários deles curtiram o barato do primeiro baseado, ou se prepararam para a primeira viagem de LSD. Até então, a garotada classe média baixa da vizinhança ainda via Cláudio César, Arnaldo e Sérgio como "burguesinhos" que estudavam em colégios grã-finos e tinham pais de hábitos sofisticados. Uma imagem com a qual os três irmãos corroboravam em parte, já que não perdiam a chance de se mostrarem mais cultos, ou até mais inteligentes que a média de seus colegas. "Eles pensam que têm um rei na barriga", ironizavam alguns. Mas essa relação de estranhamento começou a mudar. De repente, a partir do rock, todos estavam no mesmo barco.
Um dos primeiros garotos do bairro a frequentar a oficina de guitarras de Cláudio César foi Gilberto Kawabi, o Pataca. Um ano mais velho que Arnaldo, cabeludo e filho de um japonês motorista de táxi, Pataca chamava atenção por seus traços de mestiço. Morava na esquina da Venâncio Aires com a Cotoxó, a cerca de 30 metros dos Baptista. Além de ter um conhecimento literário que poucos garotos da redondeza possuíam, tocava bem guitarra e tinha uma discoteca recheada de Ventures e outras novidades. Foi um dos roqueiros pioneiros da Pompeia. Bom de briga. Pataca era também líder de uma gangue de quase cinquenta adolescentes, numa época em que a violência raramente ultrapassava meia dúzia de socos, um dente quebrado ou um nariz sangrando. Nada de armas ou drogas. Apesar de não ter um lugar em casa para ensaiar. Pataca não se perturbava. Ligava seu Dual Showman (um clone do amplificador Fender) no meio do empório da mãe e mandava brasa na guitarra. Quando não tocava com Serginho ou algum outro amigo, ficava reproduzindo ou acompanhando discos dos Ventures, dos Beatles ou dos Yardbirds — este conjunto sua grande descoberta. Se um freguês entrasse no empório, não havia acordo possível. O sujeito tinha que esperar a música terminar ou então iria embora sem a mercadoria. O único problema desses ensaios no empório era o de alguém ser atingido por alguma lata de conservas, que às vezes caía das prateleiras graças à vibração das caixas acústicas. E quando a mãe se enchia do barulho e não havia outro lugar disponível. Pataca e outros roqueiros da turma tocavam na rua mesmo, em esquinas como a da Cotoxó com a Ministro Alves Ferreira. Junto com Arnaldo, Pataca participou da "estreia profissional" de Serginho.
Numa tarde, em 1964, esse trio improvisado ganhou alguns trocados para tocar na seção de instrumentos e aparelhos musicais da Sears — a loja de departamentos que funcionava na avenida Antárctica, onde hoje se encontra o Shopping West Plaza. Os três nem tiveram tempo para dar um nome ao conjunto. Arnaldo andava ocupadíssimo com vários compromissos musicais e o trio não vingou. Outro frequentador diário da oficina de Cláudio era Ismar da Silva Andrade, o Bororó, um crioulo fanático por guitarras que, por volta de 1968, veio a se tornar uma figura
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folclórica no bairro, graças à sua semelhança física com Jimi Hendrix. Bororó era uma espécie de outsider — até os amigos mais próximos sabiam muito pouco de sua vida. Tinha vivido em Bauru, no interior paulista, antes de se mudar para a Pompeia. Sem família, morava na pensão de dona Chica, ali perto, onde pagava o aluguel de um quartinho com todos o tipos de tarefas: lavava e passava roupa, fazia a limpeza dos quartos e servia as mesas. Quando acabava seu expediente na pensão, ia direto para a oficina de Cláudio César, para quem também fazia pequenos serviços, em troca de poder manusear as guitarras e aprender alguns rudimentos de eletrônica. Bororó era até mais velho que Cláudio César, mas tinha a idade mental de um garotinho. Era capaz de vender sua própria guitarra por uma mixaria, só para deixar um amigo feliz. Nesse misto de ingenuidade e generosidade, invariavelmente se tornava alvo de gozações e peças pregadas pelos garotos. Nas sessões de hipnotismo conduzidas por Raphael, por exemplo, Bororó sempre servia de cobaia. Com o tempo, acabou se tornando uma espécie de escravo de Cláudio e, mais tarde, também de Arnaldo e Serginho, que lhe davam roupas e tênis usados em troca dos serviços e favores mais prosaicos. Porém, escravidão por escravidão, o bonachão Bororó preferia mesmo trabalhar perto das guitarras. Enquanto os irmãos evoluíam rapidamente na música, Cláudio César também progredia a olhos vistos em suas experiências de artesão sonoro. No final de 1965, ele já exibia, orgulhoso, a primeira de suas criações: um inovador baixo elétrico, feito a pedido do cantor Erasmo Carlos para um músico de sua banda, chamado Raul. O Supercontrabaixo — nome que recebeu de seu autor — era um baixo sólido, com um design aerodinâmico e espacial, que para muitos lembrava o do Batmóvel, o carro do super-herói Batman. Entre várias inovações, esse instrumento possuía um apoio para o osso do quadril (segundo Cláudio, para que o músico não se cansasse ao tocá-lo de pé), um encaixe para o polegar, escala temperada com 24 trastos, um captador para processar cada corda separadamente (o que evitava roncos e isolava os harmônicos), toda a parte elétrica com circuitos transistorizados e ainda tarraxas metálicas fundidas pelo próprio autor. Em outras palavras: Cláudio construíra um baixo elétrico que, se fosse lançado no início dos anos 90, ainda superaria em recursos um Fender, ou outro instrumento similar de renome no mercado internacional. Mas, nos ambiciosos planos do luthier da Pompeia, isso era só o começo.