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1. SALTO NO ESCURO
Carlos Calado
1. SALTO NO ESCURO
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No ano 2000, ele terá 18 anos de novo. Afinal, embora já tivesse vivido 33 anos, Arnaldo Dias Baptista praticamente renasceu naquela noite em que seu corpo se estatelou no chão acimentado do estacionamento do Hospital do Servidor Público. Era o primeiro dia de 1982.
Só quatro dias depois as rádios paulistas começaram a noticiar a aparente tentativa de suicídio do ex-tecladista e compositor dos Mutantes. Arnaldo quebrou com as próprias mãos o vidro de uma janela do setor de Psiquiatria, no terceiro andar do hospital, alcançou a pequena sacada e se atirou. A precária grade externa estava longe de servir como proteção. Antes de atingir o solo, o corpo bateu no parapeito do andar inferior, o que ajudou a amortecer um pouco o choque. Mesmo assim, a base do crânio foi fraturada — um tipo de lesão que normalmente resulta em morte. Além do edema cerebral e um outro pulmonar, sete costelas fraturadas e várias lesões pelo corpo compunham um quadro clínico desesperador. Os médicos eram unânimes no diagnóstico: o estado de coma em que Arnaldo se encontrava era apenas uma questão de horas. Ou, no máximo, de poucos dias. Só um milagre o faria escapar com vida.
Rita Lee, ex-mulher de Arnaldo, chegou chorando ao hospital, no meio da tarde do dia 5, acompanhada pela parceira Lúcia Turnbull. As duas tentaram desviar do grupo de fãs, repórteres e curiosos parados na frente do portão principal, mas logo foram reconhecidas. Os mais inconvenientes chegaram até a pedir autógrafos. Lúcia teve que empurrá-los, para conseguir furar o cerco. "Agora não! Agora não!", repetia, puxando a amiga pelo braço. Rita estava tão abalada que mal conseguia andar em linha reta, muito menos falar. A ex-vocalista dos Mutantes soubera da tragédia minutos antes, em sua casa, ali perto, no bairro do Paraíso. Conversava descontraidamente com o marido Roberto de Carvalho e Lúcia, sobre a viagem à Europa que fariam naquele mês, quando o telefone tocou. Um amigo tinha escutado a notícia pelo rádio. Roberto ainda tentou argumentar, mas nem foi ouvido. Não queria que Rita se envolvesse com o caso, muito menos que fosse até o hospital. Irritado, ao vê-la sair correndo com Lúcia, derrubou todos os objetos da mesa. Já nas dependências da Unidade de Terapia Intensiva, as duas chegaram a passar pelo corpo de Arnaldo, mas não o reconheceram. Ele estava com a cabeça bastante inchada, envolta por uma faixa. Quando refizeram o caminho e finalmente o acharam, Rita voltou a chorar, compulsivamente. Lúcia a deixou só, encostada no vidro que a separava de Arnaldo, murmurando frases ininteligíveis, como se pudesse falar com ele. Entre as cenas que passavam pela cabeça de Rita, a mais recorrente era a de seu último encontro com Arnaldo, pouco antes do Natal, depois de quatro anos sem se verem. Ela, Roberto e os filhos Beto e João tinham acabado de se mudar para uma casa na Serra da Cantareira, ao norte da cidade. O casal comprara o sítio, pensando em ter ali o terceiro filho. Numa tarde, Rita conversava com Roberto no portão da casa, quando pensou ter vislumbrado um fantasma. Subindo a ladeira, junto com alguns cachorros, surgiu o último sujeito no mundo que Rita esperaria encontrar ali. Muito menos que fosse seu vizinho. "Arnaldo?!" "Oi... Eu moro aqui do seu lado..." Com um sorriso amarelo, Rita o apresentou a Roberto. Apesar do constrangimento geral, Arnaldo aceitou o convite para entrar na casa e conhecer o resto da família. Estranho, sem dizer quase nada, ficou olhando fixamente para Rita, como se tentasse transmitir uma mensagem telepática.
A Divina Comédia dos Mutantes
"Que cara mais esquisito! Deve estar louco", disse Roberto, assim que o inesperado visitante foi embora. Os dois maridos de Rita ainda não haviam sido apresentados. Tinham apenas se visto de longe, no dia em que ela e Arnaldo assinaram o desquite amigável, no Fórum, em março de 1977. Naquela época, tanto Rita como Marta, a nova mulher de Arnaldo, já estavam em avançado estado de gravidez. "É uma pena vocês quererem se divorciar agora, com um filho prestes a nascer", comentou o juiz, olhando para a barriga de Rita. "Mas não é dele não. É de outro cara que está lá fora", explicou a futura mãe. "Ah, sim", engasgou o juiz, tão constrangido com a gafe que assinou a papelada do divórcio na hora, sem dizer mais nada. O mesmo fizeram Arnaldo e Rita: despediram-se rapidamente e nunca mais se falaram até o imprevisto reencontro na Cantareira. Na saída do hospital, já um pouco mais controlada, Rita aceitou falar com os repórteres. A situação a fez lembrar da irmã mais velha, Mary, que morrera um ano antes, após uma série de complicações cardíacas. Emocionada, Rita acabou fazendo um indignado desabafo:
"E bom ficar de olhos bem abertos. Minha irmã me disse, um dia antes de morrer, que o tratamento que um paciente recebe numa UTI é pior do que tortura. Eu mesma, quando estava na sala de parto, tendo meu filho, ouvi os médicos conversando sobre futebol. Temos que ficar alerta e rezar muito por ele." Suzana Braga ficou perplexa ao receber a notícia por telefone, só no dia seguinte ao acidente. Vivia com Arnaldo há um ano e meio e já conhecia bem suas fases de depressão. Ao visitá-lo no hospital, na véspera, sentiu que ele estava triste, mas jamais a ponto de fazer uma loucura como aquela. Arnaldo chorou bastante naquela tarde, dizendo que tinha passado o pior dia de sua vida. Estava muito angustiado por ficar internado numa clínica durante a passagem do Ano-Novo. Só não contou a ela que 31 de dezembro também era o dia do aniversário de Rita. A medicação que Arnaldo recebeu ao ser internado deixara-o mais ansioso. Sentia dificuldade para falar, como se sua língua estivesse enrolada — outro efeito colateral dos remédios. Agressivo, chegou a esmurrar o vidro de uma porta da Psiquiatria, até conseguir quebrá-lo. Porém, naquela sexta-feira, quando Suzana se preparava para sair, ao final do horário de visitas, Arnaldo já começara a dar sinais de melhora. Até se convidou para um joguinho de buraco com alguns enfermeiros e pacientes. Arnaldo fora internado à revelia, por iniciativa de sua mãe, dona Clarisse, em 27 de dezembro. Andava muito tenso, fumando quatro maços de Hollywood por dia, além de tomar vários comprimidos do tranquilizante Lorax, receitados por seu médico. Mas quando começou a ficar mais agressivo, a mãe não viu outra alternativa. Com um sedativo diluído num copo de Coca-Cola, ela conseguiu fazê-lo dormir e então chamou a ambulância com os enfermeiros, para carregá-lo até o hospital. Aquela era a quinta internação de Arnaldo, desde que começou a tomar LSD e algumas outras drogas com frequência, no início dos anos 70. Para piorar as coisas, ele não possuía um plano de saúde, muito menos dinheiro para pagar uma clínica especializada. A sorte da família era que o prestígio do pai, César Dias Baptista, que fora secretário particular do ex-governador Adhemar de Barros, ainda abria algumas portas, cinco anos após sua morte. Arnaldo foi internado no Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo, por ordem expressa do então governador Paulo Maluf. Quando Sônia Abreu e Lucinha Barbosa receberam o telefonema de Suzana, desesperada, pedindo ajuda, as amigas lembraram imediatamente do que Arnaldo dissera na última vez que o viram. Bastante deprimido, ele estivera no apartamento das duas poucos dias
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antes de ser internado. Nem mesmo a proximidade do lançamento de seu novo LP (Singing Alone), que já estava gravado, ajudava a levantar seu astral. O papo de Arnaldo, naquela noite, foi bastante estranho. Entre alucinações e coisas incompreensíveis, disse que estava se sentindo "como Jimi Hendrix". "Estou sofrendo muito. Alguma coisa me diz que eu vou morrer", anunciou, deixando as amigas preocupadas. Lucinha quase desmaiou ao ouvir a notícia do acidente. Fanática por Arnaldo desde a época dos Mutantes, teve um caso rápido com ele, em 75, logo que se mudou do Rio de Janeiro para São Paulo. Na verdade, continuou apaixonada, mas se contentava em vê-lo apenas esporadicamente. Passaram a cultivar o que se chamava de "amizade colorida". Chocada, sem forças até mesmo para se levantar do sofá, Lucinha pediu à amiga que corresse para o hospital. Sônia trabalhava como radialista, mas tinha muita familiaridade com o universo da medicina. Além do pai, oito de seus tios eram médicos. Um deles, inclusive, era funcionário do próprio Hospital do Servidor Público. Providencialmente vestida de branco, Sônia não teve dificuldade nenhuma para atravessar o portão do hospital com seu fusquinha e deixá-lo no estacionamento. Passou fácil por todas as dependências do prédio, sem precisar se identificar ou responder alguma pergunta. Entrou até mesmo na UTI, cuja porta estava semiaberta. Quando encontrou Arnaldo enrolado em um lençol, com a cabeça enfaixada, ele ainda nem havia sido operado. Estava respirando artificialmente, ligado aos aparelhos, estirado numa maca. Sônia custou a acreditar no que via. Mas pela primeira vez pensou que o trágico vaticínio de Arnaldo parecia mesmo estar se tornando realidade. Alguns dias depois, um pouco mais calmas, Sônia e Lucinha fizeram um balanço geral da situação e perceberam que Arnaldo estava praticamente abandonado no hospital. Para começar, Suzana não tinha condições de cuidar direito dele. Além de sua evidente fragilidade física e emocional, ela ainda tinha a responsabilidade de cuidar das duas crianças de seu casamento anterior. Nem mesmo com a família Arnaldo podia contar muito. Dona Clarisse tinha acabado de contrair uma doença infecciosa e estava acamada, proibida pelo médico de sair de casa. Serginho se radicara nos Estados Unidos dois anos antes — sua tentativa mais consistente de dar uma guinada na carreira musical, desde que dissolveu a última formação dos Mutantes, em 1978. Cláudio César, o irmão mais velho, estava morando no Rio de Janeiro e tinha rompido relações com Arnaldo. Sônia e Lucinha não viram outra saída: para que ele tivesse alguma chance de sobreviver, precisavam assumir o controle de tudo. Quando foi procurar o doutor Buller Souto, assistente da diretoria do hospital, Sônia entrou no assunto sem rodeios. Lembrou a ele que a janela da enfermaria na qual Arnaldo estava internado não tinha proteção — uma falha gravíssima de segurança. Apesar de uma grade ter sido instalada às pressas, algumas horas após o acidente, o fotógrafo de uma revista tinha conseguido fotografar a janela ainda quebrada e desprotegida. Assim, Sônia propôs um pacto muito útil para as duas partes: se os diretores colaborassem sem restrições na recuperação de Arnaldo, ela manteria as provas em segredo e evitaria que o hospital fosse processado por negligência. O acordo foi aceito na hora. Até mesmo porque o delegado do 36º Distrito Policial, da Vila Mariana, onde já havia sido aberto inquérito, não descartava a possível responsabilidade do hospital quanto à segurança do paciente. A partir daquele dia, Sônia, que já tinha se transformado em uma espécie de assessora de imprensa do caso, passou também a ser a responsável oficial por Arnaldo perante a direção do hospital. Conseguiu até mesmo uma licença para três curtos horários diários de visitas na UTI, onde Arnaldo continuava em estado de coma.
A Divina Comédia dos Mutantes
O próximo passo foi formar um plantão de pessoas de confiança, para cuidar do paciente durante 24 horas por dia. Além de Sônia, Lucinha e Suzana, a escala também incluía Carmem Sylvia (cunhada de Dinho, o primeiro baterista dos Mutantes), Vera (irmã de Lucinha) e a fotógrafa Grace Lagôa. O importante era manter duas pessoas ao lado dele durante todo o tempo, para evitar qualquer descuido fatal. Apesar de os médicos afirmarem que o melhor a fazer, naquele caso, era rezar para que o paciente morresse logo, porque assim sofreria menos, as garotas sentiam que Arnaldo ainda não entregara os pontos. Em alguns instantes, era possível perceber que ele mantivera alguns reflexos. Às vezes seu pé esquerdo se mexia levemente, renovando as esperanças dos amigos. Finalmente, em meados de janeiro, Arnaldo foi transferido da UTI para um quarto particular, também cedido de graça pelo hospital. Ainda estava em coma, mas seus sinais de reação já eram bem mais evidentes. Sônia e Lucinha sabiam que deixá-lo na enfermaria coletiva seria perigoso. Com um simples deslocamento acidental do aparelho respiratório, ele poderia morrer asfixiado, sem que ninguém percebesse. Um walkman injetava música clássica e de meditação, durante todo o tempo, nos ouvidos de Arnaldo. Mais tarde, foi a vez dos discos dos Mutantes e muito Jimi Hendrix. Isso quando alguém não murmurava alguma canção que ele pudesse gostar, bem próximo de seus ouvidos. Uma tarde, por acaso, Sônia cantarolou a soturna Dia 36, da fase inicial da banda. Os músculos do rosto de Arnaldo esboçaram um sorriso. O que poderia ser mais forte para ele do que a música? Descrentes do tradicional tratamento alopático, Sônia e Lucinha também convocaram amigos e conhecidos que praticavam terapias alternativas. Arnaldo passou a receber tratamentos nada convencionais para um hospital público, como acupuntura e massagens. As garotas passavam o dia todo tocando o corpo do paciente, principalmente em pontos indicados pela terapia do do-in. Chegavam a subir sobre a cama, para massageá-lo com os pés.
Além de várias imagens indianas coladas pelas paredes, havia sempre um incenso aceso no quarto, para perfumar o ambiente e "afastar os maus fluidos". Até mesmo geleia real foi misturada ao tubo de soro do paciente — uma terapêutica que deixaria qualquer médico alopata simplesmente com os cabelos em pé. Tudo isso acontecia sob as vistas grossas dos enfermeiros e médicos, que seguiam ordens expressas da direção do hospital para não entrarem em atrito com as duas. Diariamente, sempre no final da tarde, Sônia se encontrava com o doutor Buller Souto e fazia uma espécie de relatório sobre a evolução do estado do paciente, como se fosse a verdadeira responsável por aquele caso médico. Quase dois meses após o acidente, Arnaldo finalmente saiu do estado de coma. Com 30 quilos a menos, ele mais parecia um refugiado de Biafra, magérrimo e careca, por causa da operação. Ao acordar, quase pulou da cama, vociferando uma língua estranha, entre o inglês e o alemão. A traqueotomia a que foi submetido atingiu as cordas vocais, alterando bastante o timbre de sua voz. Estava tão faminto que engoliu nacos de bananas e caquis, com a voracidade de um selvagem. O período de recuperação do coma também foi longo. Durante outros dois meses, Arnaldo enfrentou uma rotina muito pouco diferente da vida de um vegetal. Tomava água só com colher e tinha que ser banhado e limpo como um bebê. Usava até mesmo um fraldão de plástico. Além de todo o lado direito de seu corpo ter ficado paralisado, os membros também estavam atrofiados. No entanto, vê-lo desse jeito já significava um verdadeiro milagre para quem o encontrara praticamente morto.
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Sônia e Lucinha se encarregavam pessoalmente de fazer toda a comida para Arnaldo, que logo passou a incluir produtos naturais como arroz integral e granola. Cada vez mais confiantes na recuperação, as duas não viam a hora de poder tirá-lo do hospital. Algumas vezes, com a desculpa de que iriam levar Arnaldo para tomar sol no pátio, sentado em uma cadeira de rodas, chegavam a raptá-lo. Colocavam-no dentro do carro de Sônia e o levavam para passear na famosa "praça do pôr do sol", próxima à Cidade Universitária, frequentada por vários adeptos de um fuminho ao cair da tarde. Também sentado em uma cadeira de rodas, Arnaldo saiu finalmente do hospital, em 7 de maio de 1982, quatro meses e onze dias após a internação. Os médicos tinham proposto como experiência que ele passasse um fim de semana na casa da mãe, mas Arnaldo se recusou a voltar ao hospital e ficou de vez. Nessa fase, suas reações e atitudes ainda eram semelhantes às de uma criança. Sentia um prazer especial em dizer palavrões e coisas obscenas. Odiava tomar banho, o que só aceitava após muita insistência e bate-boca. Também tinha crises agressivas. Em algumas delas, promoveu verdadeiros pandemônios na casa da mãe, quebrando tudo que estivesse a seu alcance. "Eu não me atirei pela janela para me matar. O que eu queria era sair daquela clínica", explicou Arnaldo, nas primeiras entrevistas que deu, logo após o início de sua recuperação. E quando perguntavam qual era sua música favorita, ele não titubeava: Flagra (de Rita e Roberto), o hit daquele momento. Arnaldo começava assim uma segunda vida, na qual teria que reaprender muitas coisas e tentar esquecer algumas outras. Há quem diga que esse foi o preço pago pelos excessos de sua vida anterior. Aventuras e maluquices, nas quais o rebelde Arnaldo raramente esteve sozinho.