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11. A MALDIÇÃO DA GUITARRA DE OURO
Carlos Calado
Fora a enorme diversão que as filmagens renderam para o trio, esse trabalho foi bastante compensador em termos financeiros. Os Mutantes receberam o polpudo cachê de NCr$ 100 mil, dinheiro que nenhum deles jamais tinha visto de perto até então. Outra vantagem estava no fato de a campanha apenas insinuar a marca da Shell. Não atuaram exatamente como garotos-propaganda tradicionais, dizendo “compre isso ou use aquilo”, mas sim como atores de cinema. Havia ainda um vantajoso efeito secundário. Exibida “n” vezes na televisão e nas rádios, além de veiculação em jornais e revistas, a campanha acabava funcionando como um eficiente meio de divulgação, não só da imagem jovem e irreverente do conjunto, mas também de sua musica. Um caso típico foi o da canção Não Vá Se Perder Por Aí (de Raphael e Tobé, os autores da pioneira Suicida, do O’Seis), faixa que fazia parte do segundo LP dos Mutantes. Depois de se tornar conhecida como trilha sonora de um dos filmes da campanha da Shell, essa canção virou hit na trilha sonora da novela Beto Rockfeller, um grande sucesso televisivo da época. Aliás, para completar a boa maré que o trio atravessava, as vendas do novo LP — lançado em fevereiro — estavam correspondendo às expectativas da Philips. Ao contratar os Mutantes, o produtor Manoel Barenbein calculara que eles não seriam um sucesso comercial logo de cara. O álbum de estreia atingira a faixa de 15 mil cópias vendidas, número considerado bom para o mercado fonográfico brasileiro daquele momento —mais ou menos o que vendia aqui um LP de James Brown, artista pop de sucesso, que também pertencia ao catálogo da Philips. Só grandes campeões de vendagem, como Elis Regina, chegavam à marca de 100 mil cópias. O mais importante, dizia Barenbein, era investir no trabalho criativo do conjunto. Não seriam os Mutantes que pensariam de outra forma.
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11. A MALDIÇÃO DA GUITARRA DE OURO
“Se Stradivari fosse vivo, trabalharia aqui comigo.” Quem entrasse no quarto de ferramentaria de Cláudio César, no porão da casa na Pompeia, não podia deixar de notar aquela inscrição pouco modesta, cercada por dezenas de corpos de guitarras pendurados no teto. Não era piada. Mal começou a conhecer a obra do célebre luthier de violinos, Cláudio se identificou com ele. Afinal, tinha um objetivo semelhante ao do mestre da luteria. Também queria criar uma guitarra perfeita e avançada, simplesmente a melhor. Depois de construir suas primeiras — e primitivas — guitarras sólidas, Cláudio começara a aprofundar as pesquisas. Um passo importante foi a reforma de um violão italiano Barera, transformado por ele em uma boa guitarra acústica, que Serginho imediatamente adotou. Foi assim que o principiante em luteria aprendeu a adaptar o cabo de madeira, como deveria ser a estrutura de um instrumento acústico, ou mesmo a fazer a alavanca para distorcer o som. Entre as guitarras conceituadas daquela época, o design que mais agradava Cláudio era o de um modelo especial da marca Guild, que homenageava justamente seu guitarrista favorito: Duane Eddy, norte-americano que no início dos anos 60 se tornou famoso através de hits como Rebel Rouser e Peter Gun, influenciando não só os Ventures e os Shadows, mas até o beatle George Harrison. Porém, alguma coisa lhe dizia que sua guitarra seria diferente. Cláudio já tinha patenteado a marca Régulus, para a linha de pedais de distorção, amplificadores e caixas acústicas que começara a construir, quando recebeu o empurrãozinho que faltava para se lançar em seu projeto mais ousado. Numa tarde, Raphael o procurou na
A Divina Comédia dos Mutantes
oficina, com uma ambiciosa encomenda:“Eu quero que você faça pra mim a melhor guitarra do mundo.”
Raphael não deixava por menos. Em termos acústicos, queria um instrumento de som perfeito. Visualmente, não esperava menos que uma joia. Apesar da velada competição que existia entre ambos, os dois amigos confiavam tanto na inteligência do outro que Cláudio nem se preocupou com a responsabilidade do desafio. Se Raphael pedira algo assim, devia mesmo acreditar que ele era capaz de fazê-lo, pensou. “Tudo bem. Eu faço, mas vai custar caro”, respondeu, com a maior tranquilidade. Na verdade, Cláudio já vinha se preparando para construir uma grande guitarra. Algumas semanas antes, tinha ido à Biblioteca Municipal, onde leu tudo que encontrou a respeito de Antonio Stradivari (1644-1737). Achou algumas menções sobre a vida do luthier, mas quase nenhuma informação técnica sobre a construção de seus preciosos violinos Stradivarius. Ainda assim, aprendeu algo: percebeu que, em termos de profundidade, as medidas das guitarras acústicas eram proporcionalmente menores que as dos violinos, violoncelos e contrabaixos. O desenho mais achatado das guitarras acarretava um acoplamento diferente entre a vibração das cordas e a tábua de harmonia do instrumento. Como resultado disso, em termos de qualidade, o som era sensivelmente inferior. Quando Raphael encomendou a guitarra, Cláudio pensou logo em combinar o desenho clássico dos violinos com uma profundidade maior na caixa do instrumento. A grande dificuldade estava na técnica de curvar a madeira de maneira correta. Foi essa fase que acabou consumindo boa parte dos oito meses gastos por Cláudio para a construção da guitarra. Ou melhor, das duas guitarras, pois ao passar seu projeto para o papel, por motivo de testes e de segurança, ele decidiu construir dois instrumentos ao mesmo tempo. Tudo o que fosse aprovado no protótipo, imediatamente era copiado no segundo instrumento — o de Raphael.
O instrumento do amigo foi construído com folhas de jacarandá da Bahia (uma madeira mais nobre), mas para o protótipo da guitarra Cláudio preferiu usar pinho, um material mais comum, porém com maior grau de flexibilidade. Primeiro, fez um molde em gesso. Depois fundiu dois pesados moldes de alumínio, que permitiram chegar à forma definitiva dos corpos das guitarras. O passo seguinte foi revesti-las internamente com um banho de ouro. Isso emprestava todo um charme à guitarra, mas Cláudio também tinha razões técnicas para isso. Além de ser um material de boa condutividade e capacidade de blindagem elétrica, o ouro protegia a madeira contra os insetos, aumentando a durabilidade do instrumento. Todos os testes resultaram positivos. O protótipo da nova guitarra se mostrou tão bom que Sérgio quis logo ficar com ela, propondo-se até a pagar os custos do banho de ouro e do acabamento. Essa foi, de fato, a primeira Guitarra de Ouro, batizada oficialmente por Cláudio como Guitarra Régulus modelo Raphael — homenagem do criador a seu amigo. Só alguns dias depois, terminado o trabalho de revestimento do segundo instrumento, é que Raphael recebeu enfim sua esperada “melhor guitarra do mundo”. Não era conversa mole. Apesar de seu design clássico, decalcado de antigos violinos (incluindo sofisticados entalhes na madeira com a forma de arabescos e cravelhas de metal fundidas pelo próprio autor), a parte elétrica e os recursos sonoros da Guitarra de Ouro eram os mais avançados possíveis, a começar do que Cláudio batizou de “circuito memória”. Graças a esse recurso, durante um solo, o guitarrista podia alterar radicalmente o som do instrumento, passando de uma sonoridade limpa, sem distorções ou agudos mais pronunciados, a um som bastante sujo, distorcido e carregado de harmônicos. Tudo isso era controlado através de uma simples chave, acionada com o polegar esquerdo. Ou seja: além dos tradicionais controles de volume e tonalidade, a Guitarra de Ouro já embutia avançados
Carlos Calado
sistemas de distorção, filtros eletrônicos de harmônicos e reforçadores de agudos — recursos que nenhuma guitarra da época, nem mesmo as fabricadas nos EUA, possuíam. Outra invenção de Cláudio, também patenteada por ele, era o chamado Captador Milagroso. Diferente dos captadores tradicionais, sensíveis a apenas uma região da corda do instrumento, o de sua guitarra era capaz de registrar o som da corda inteira, com toda a gama de harmônicos. Não foi à toa que, ao ser estreada por Sérgio durante a viagem à Europa, a Guitarra de Ouro chamou a atenção de muitos músicos. Aliás, não apenas a guitarra, mas também o novo baixo elétrico levado por Arnaldo, que seu irmão batizara de Guitarra Baixo. Cláudio o construiu com um design semelhante ao de um contrabaixo acústico, incluindo nele vários recursos sonoros disponíveis na Guitarra de Ouro. Em vários aspectos, esse baixo era um desenvolvimento do Supercontrabaixo, que ele construíra quatro anos antes, para o baixista de Erasmo Carlos. Sérgio custou a acreditar, quando recebeu uma proposta de US$ 2 mil por seu instrumento, em Cannes. Era um oferta altíssima até mesmo para os padrões do mercado internacional. Com esse dinheiro poderia comprar pelo menos duas excelentes guitarras americanas, como as Gretsch. O garotão ficou tentado a fazer o negócio, mas acabou recusando. Sabia que seu desempenho musical na turnê seria bem inferior sem a Guitarra de Ouro. E, no fundo, tinha medo só de pensar em qual poderia ser a reação do verdadeiro pai da criança...
Desde a adolescência, Cláudio César nunca mais engoliu o que tinham lhe ensinado na escola sobre a religião católica. Na biblioteca do pai, o rapaz encontrava livros sobre diversas correntes místicas, desde Teosofia até a Rosa cruz, que acabaram lhe parecendo bem mais interessantes. Essas obras eram sobreviventes da biblioteca pessoal da mãe de dona Clarisse, Judith, que além de ser espírita se interessava pelos mais variados assuntos místicos. Como o doutor César Baptista era aberto a qualquer tipo de discussão religiosa, apesar de ser católico, os livros da sogra foram agregados à sua biblioteca sem nenhum problema. Foi num deles, um empoeirado volume de capa marrom, intitulado Magia Teúrgica, que Cláudio encontrou o que procurava: uma inusitada estratégia para afugentar prováveis imitadores da Guitarra de Ouro, ou até mesmo ladrões. Não que Cláudio temesse os concorrentes. O que ele não admitia era a ideia de ter suas descobertas pirateadas. Justamente por isso, costumava cobrir com cola Araldite os circuitos eletrônicos dos aparelhos que montava, para que suas ideias não pudessem ser copiadas. Ou mesmo instalava capacitores dentro dos captadores das guitarras que fazia, para que a resistência das bobinas não pudesse ser medida. Porém, daquela vez Cláudio se superou nos estratagemas para proteger suas invenções. Com um toque de maquiavelismo, prevendo que também poderia conseguir mais publicidade, não só para a nova guitarra, mas até para os Mutantes, copiou do livro de magia uma espécie de invocação dos espíritos do Mal, a Conjuração do Sábado, que foi gravada em uma placa banhada a ouro e instalada na parte traseira da guitarra, com essa face voltada contra a madeira. Na outra face da placa, a que ficava visível, Cláudio inscreveu a seguinte maldição, que ele mesmo formulou: “Que todo aquele que desrespeitar a integridade deste instrumento, procurar ou conseguir possuí-lo ilicitamente, ou que dele fizer comentários difamatórios, construir ou tentar construir uma cópia sua, não sendo seu legítimo criador, enfim, que não se mantiver na condição de mero observador submisso em relação ao mesmo, seja perseguido pelas forças do Mal até que a elas pertença total e eternamente. E que o instrumento retorne intacto a seu legítimo possuidor, indicado por aquele que o construiu. Assinado, Cláudio César Dias Baptista” Não deu outra. Talvez mais até do que as novidades tecnológicas lançadas pela Guitarra de Ouro, o truque da maldição foi perfeito para atrair a atenção da mídia. Um bom
A Divina Comédia dos Mutantes
exemplo dessa atração está em uma enorme reportagem publicada pela Folha de S. Paulo, em 9 de junho de 69. Ocupando 3/4 de página, o texto noticiava a possibilidade de as guitarras de Cláudio serem exportadas para os EUA. Mas o repórter não resistiu à tentação de dedicar um bom espaço à inusitada “invocação do Mal”, inclusive reproduzindo na íntegra o texto da maldição. A Guitarra de Ouro e toda sua mística transformaram-se logo em uma marca dos Mutantes, frequentemente mencionados nas reportagens sobre o conjunto. Mais eficiente que essa estratégia de marketing, naquela época, só mesmo os Rolling Stones declarando simpatia pelo Demônio, ou os Beatles dizendo que eram mais famosos que Jesus Cristo. Sem capital suficiente para incrementar a produção de suas guitarras, nessa época Cláudio já tinha se associado a Pier Ângelo Cerfoglia, dono de uma pequena indústria de peças para automóveis, a Metalúrgica Simons. Sabendo do interesse que seus instrumentos despertaram no exterior durante a viagem dos Mutantes, expresso em várias ofertas de compra feitas a Sérgio e Arnaldo, Cláudio sentiu que estava na hora de investir em seu projeto. Ainda mais quando recebeu a primeira proposta concreta de exportação. Um fabricante de instrumentos musicais nos EUA, o maior da área de Massachusetts, encomendou uma Guitarra de Ouro, ao preço de US$ 1 mil. Ele pretendia exibi-la em uma feira, o que possibilitaria a posterior distribuição do produto pelo país. Com a adesão do marceneiro Osvaldino e do ferramenteiro Tomyo, a produção de guitarras e baixos foi logo aumentada, atingindo a média de cinco unidades por mês. A essa altura, a oficina na casa da família Baptista já ocupava sete compartimentos, divididos entre o porão e a edícola, nos fundos da residência. O “complexo industrial” incluía depósito, sala de testes, sala de eletrônica e sala de ferramentaria. A produção seguia de vento em popa, atingindo a marca de 30 guitarras vendidas, quando uma fatalidade interrompeu tudo. Num trágico acidente, o sócio de Cláudio, Pier Ângelo, teve uma mão esmagada por uma máquina de injeção de plástico e desistiu do negócio. Vendo a sociedade desfeita de um dia para o outro e sem o capital necessário para conduzir sozinho a empresa, Cláudio não teve outra saída. Arquivou o projeto de produção em série de guitarras e voltou aos amplificadores e caixas acústicas. Com o tempo, descobriu que podia viver bem só fazendo instrumentos sob encomenda. Sua vocação não era de industrial, mas de artesão. Embora não levasse muito a sério as supostas forças malignas que invocara na traseira de suas guitarras, tempos depois Cláudio se arrependeu da “brincadeira”. Pensou que a maldição poderia ser mal interpretada e, assim, decidiu desfazê-la, de uma maneira bastante prosaica. Procurou o recorte do jornal em que a invocação tinha sido reproduzida e, ao lado dela, escreveu com tinta azul: “Que esteja desfeita a maldição, em nome do Absoluto.” O mais curioso (ou insólito) é que dois dias depois a guitarra de Sérgio foi roubada. O instrumento acabou desembarcando em Minas Gerais, comprado por um sujeito que não sabia nada a respeito da lendária Guitarra de Ouro. Mas bastou ler a maldição e se informar melhor sobre o que tinha nas mãos, para que o crédulo mineiro despachasse imediatamente para São Paulo o instrumento, que retornou “intacto ao seu legítimo possuidor”.
Exatamente como prescrevera a maldição do “criador” Cláudio César Dias
Baptista.