O individualismo na grande cidade

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O INDIVIDUALISMO NA GRANDE CIDADE

Uma reflexão sobre o espaço urbano na escala humana. Sensação Percepção Direção Julian Monteiro Seifert observador e vítima.


Trabalho Final de Graduação - TFG Universidade Júlio de Mesquita Filho, UNESP - Bauru Faculdade de Artes, Arquitetura e Comunicação, FAAC Orientador: Paulo Roberto Masseran Claudio Silveira Amaral 2013

SOCIEDADE SOCIEDADE SOCIEDADE SOeCIDADE


Agradeço a todos que compartilham da sensibilidade de questionar o espaço que o homem ocupa ou como ele o faz. Agradeço especialmente a minha família e aos meus amigos. Obrigado.


SUMÁRIO


1.0 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 2

10.0 BIBLIOGRAFIA .................................................................................... 77

2.0 RESUMO: ..................................................................................................... 7 3.0 O PANORAMA ESPACIAL: A CIDADE COMO REDE .................. 15 4.0 POSSÍVEIS REFLEXOS NA RELAÇÃO INTERPESSOAL ............ 32 5.0 A CIDADE DO SKYLINE E A CIDADE DO HOMEM..................... 38 6.0 INTERNET................................................................................................ 48 7.0 CONCLUSÃO ............................................................................................ 55 8.0 CONFRONTO ........................................................................................... 59 9.0 TEXTOS E REFLEXÕES ........................................................................ 62 9.1 TESTEMUNHO: .................................................................................. 63 9.2 EXAME: ................................................................................................. 64 9.3 VEM NA MINHA SOMBRA: ............................................................ 66 9.4 SURDEZ URBANA: ............................................................................ 68 9.5 MORADOR: .......................................................................................... 69 9.6 JOÃO ....................................................................................................... 70 9.7 REFLEXÕES:........................................................................................ 71

1


1.0 INTRODUÇÃO


A partir de meu entendimento da responsabilidade e

Extrapola-se aqui a possível interpretação a respeito do

oportunidade que durante a graduação, somente um trabalho de

espaço urbano como espaço puramente construído. Partimos da

final de curso é capaz de gerar, na busca por respostas ou quem

residência

sabe, ainda mais perguntas que toquem minha percepção

individualistas ao abandono das praças públicas de bairro, do

pessoal enquanto indivíduo componente de uma massa de

transporte coletivo demasiadamente adensado, porém silencioso

personagens situacionais ou pessoais sobre o espaço urbano, o

à solidão do pensamento alto e do monólogo mentalmente

presente trabalho irá introduzir uma discussão a respeito do

ensaiado.

subdividida

em

claustros

cada

vez

mais

tema geral da individualidade na grande cidade do século XXI,

Para tanto, o trabalho se apega sobre uma

sob a hipótese que parte do questionamento da existência de

percepção pessoal de um cotidiano típico de classe média,

uma possível relação proporcional entre indivíduo e cidade, de

retratado pela crônica. Para o retrato desta percepção, estão

forma que quanto maior e mais urbana é a cidade, mais

presentes aqui alguns dos textos criados por mim a partir da

individualista tende a ser seu cidadão, até alcançar o universo da

observação de situações comuns desta rotina que insinuam

teoria e linguagem da cidade. De sua impressão e expressão.

minha inquietação quanto a esta individualidade do cidadão

Atentando e entendendo aqui, o conceito de espaço

urbano.

urbano como aquele adimensional, palco das atrações e repulsões entre indivíduos ou entre estes e seu meio sob um contexto de organização social, política e espacial das cidades

*

*

*

grandes ocidentais, tomando como principal exemplo a cidade de São Paulo.

3


O embasamento do trabalho se dará em grande parte,

Além dos dois livros de maior repercussão de Gehl (CITIES FOR

pela comparação entre o contexto vivido em São Paulo em pleno

THE PEOPLE, 2010 e LIFE BETWEEN BUILDINGS, 1971), também

século XXI e duas referências principais no que diz respeito à

serão usados materiais encontrados na internet de palestras e

relação do indivíduo com a cidade. São elas: Nova York durante o

entrevistas por ele dadas que tratam sobre sua obra e

século XX, descrito por Jane Jacobs em seu livro MORTE E VIDA

apreensões.

DE GRANDES CIDADES (1961) a respeito das cidades americanas deste período, sob um olhar similar ao adotado no trabalho enquanto narrativa, testemunhado por ela o cotidiano urbano da sociedade de uma forma geral1; e Copenhagen durante o processo de reurbanização na segunda metade do século XX realizado pelo escritório do arquiteto urbanista Jan Gehl, que ganhou destaque e respeito pela efetividade de seus projetos no planejamento adequado2 para cidades, baseado na valorização e adequação do espaço urbano pelo ponto de vista do pedestre.

Jane Jacobs descreve em MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES principalmente o cotidiano urbano de classes menos abastadas da sociedade durante o século XX, diferentemente deste trabalho que como citado anteriormente trata do cotidiano de uma classe média, da qual eu faço parte. 2 Em Life between buildings, Jan Gehl demonstra a importância e efetividade do rompimento com o paradigma da valorização do automóvel e como o investimento em iniciativas projetuais que ressaltam os fluxos da cidade pela escala do pedestre e da ciclovia, se mostram importantes e funcionais no resgate do contato humano com a cidade. 1

Posteriormente, questionamento

em

após torno

incitar da

e

desenvolver

discussão

central

o da

individualidade na grande cidade pretende-se aplicar tais conceituações de forma prática sobre algumas áreas potenciais encontradas em São Paulo. Essas áreas não são obrigatoriamente áreas de vazio, mas também pontos já utilizados pela sociedade frequentemente que se mostram aptas para uma intervenção direta, que será representada de forma simples e objetiva por croquis e esquemas gráficos de justificação. Ou então, na tentativa de influenciar uma área em uma escala maior, pode eventualmente, surgir a oportunidade de propor um projeto arquitetônico edificado, que respeite e represente uma tipologia nova, descoberta através dessas reflexões, capaz de incentivar a interação social e a coletivização 4


da sociedade sem comprometimento funcional nos moldes econĂ´micos e polĂ­ticos atuais. Um estudo da tipologia edificativa ideal para a grande cidade do sĂŠculo XXI.

5


Figura 01: Imagem do livro Cities for the people, de Jan Gehl. 2010.

6


2.0 RESUMO


“Interação” vem do Latim inter que significa “entre”; mais

diretamente, mas o levantamento de questões e sutilezas

“ação”, também do Latim agere que significa “realizar, fazer”. E,

cotidianas

a

respeito

baseado no aglomerado significativo que a sociedade atualmente

contemporâneo urbano, empiricamente tratado aqui por minha

atende e que a meu ver, se mostrou a melhor e objetiva definição

convivência, observação e reflexão sobre a cidade de São Paulo,

da palavra, entendamos aqui interação como um tipo de ação

particularmente no trajeto típico de um cidadão dotado de

que ocorre entre duas ou mais entidades quando a ação de uma

minhas condições, valores, costumes e posição, sob uma

delas provoca uma reação da outra ou das restantes

sensibilidade fruto da impossível dissociação entre filosofia e

(WICKIPEDIA, 2013). Sendo assim, a interação será tratada não

arquitetura ou entre filosofia e a arte de uma maneira geral.

somente entre dois indivíduos porem também entre o indivíduo

Mario Sergio Cortella, filósofo e professor brasileiro define: “A

e o ambiente em que se habita, em que se convive; ou entre o

filosofia trata dos porquês e não dos comos [...]”. Tal

indivíduo e o ambiente que sugere a interação com ainda outras

interpretação e postura podem ser assumidas, até certo ponto,

entidades. Ao discorrer sobre este conceito, uma das possíveis

no desenvolvimento deste trabalho, na medida em que levanta

abordagens e a que será aqui tratada com foco especial, é a da

questionamentos ou hipóteses sobre o tema, na tentativa de

individualidade humana, como reflexo da interação de seus

entender

protagonistas ou da falta dela, por vezes potencializada como

desdobramentos.

suas

da

individualidade,

justificativas,

suas

no

origens

cenário

e

seus

resultado ou consequência do crescimento das características

Porém, diferentemente da filosofia, muito embora esta

que tratam o aglomerado de seres humanos em um mesmo

seja um fator decisivamente influente sobre a percepção do

espaço como urbanidade ou urbanização.

espaço e da arquitetura em geral, penso que a arquitetura se

Vale deixar claro que o trabalho não intenciona a

utiliza de uma profundidade intelectual e reflexiva sobre as

descoberta ou criação de uma resposta a este panorama

considerações que devem ser realizadas no desenvolvimento de

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um projeto, principalmente como forma de justificação e

de minha autoria no decorrer do trabalho, na sugestão de que a

projeção das consequências decorrentes de uma postura

interpretação do leitor gere uma percepção própria dos temas

adotada. Sendo assim, ela se lança sobre o espaço baseada e

abordados ou relatados nos textos, gerando assim um possível

resguardada de uma interpretação sobre as questões envolvidas.

contato interativo entre nós dois. Encontrei na poesia, uma

Podemos dizer então, que diferentemente da filosofia, a

forma de interagir com o leitor pela interpretação. E na medida

arquitetura deve atuar também sobre o plano prático, real e

em que o texto poético se abre a diferentes interpretações, talvez

concreto.

também seja esta, uma provocação contra o individualismo e a falta de interação. Faço isso por entender que não somente a *

*

*

interpretação dos textos, mas também o ato de interpretar uma situação ou cenário se mostra importante no descobrimento

Talvez este trabalho seja também fragmento de um

desse sentimento.

exercício de autoconhecimento na medida em que sua abordagem parte de um incômodo pessoal, de um tema que toca

“Corvos no trigal. É o nome do meu

a um tempo considerável minha própria forma de avaliação

quadro favorito. E não é somente porque ele é

sobre o meio circundante, isto é, minha forma de enxergar as

bonito. Lembro que foi assim que conheci Van

pessoas, os lugares e todas as relações possíveis entre estas duas entidades. Para compreensão de meu ponto de vista, julgo necessária aqui uma apresentação da minha pessoa para com o leitor. Porém, tal apresentação não se dará de forma clássica ou convencional. Dar-se-á então, através da apresentação de textos

Gogh. Talvez eu encontre a beleza desse quadro pelo significado que ele tem para mim. Talvez, de alguma forma, Van Gogh tenha pensado nessa possibilidade. Talvez ele tenha pensado em mim ao pincelar sobre a tela. Sinto que foi ali que tudo começou. Sandra era o nome da minha professora,

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verdes eram os olhos dela e inchados e molhados eles estavam quando terminei de ler o poema de lição de casa sobre a obra de arte que ela entregara aleatoriamente na aula passada. Mas só eu tinha feito. Outros colegas escreveram sobre a obra de arte deles, mas não era uma descrição que ela queria. Sem querer eu entendi. Sem querer eu escrevi. Queria lembrar o que escrevi. Queria lembrar o que ela disse depois. Mas só lembro que terminava com “voam, como corvos no trigal...”. E com eles, voou também, sem querer, o tempo, os anos, o verde dos olhos dela.”

10


Figura 02: Corvos no trigal de Vincent Van Gogh, 1890. DisponĂ­vel em: <http://thecaterpillars.wordpress.com/2010/11/15/trigal-com-corvos/>

11


*

*

*

consequência do processo de desenvolvimento, industrialização e modernização capitalista. Nietzsche coloca:

Não serão apontados aqui apenas o ônus ou as desvantagens

provenientes

desse

caráter

individualista

"Nesses pontos limiares da história

crescente nas grandes cidades, mas também os detalhes, as

exibem-se [...] nada a não ser novos "porquês",

vantagens ou surpresas que o tratamento da vida urbana em

nenhuma fórmula comunitária; um novo conluio

uma comunidade individualista acaba trazendo. Haverá o

de

interesse em balancear a discussão entre prós e contras desse caráter, ainda que assumidamente acredite – baseado em uma análise sobre outros modelos de organização e relacionamento urbano – que o conceito de comunidade, enquanto aglomeração

incompreensão

e

desrespeito

mútuo;

decadência, vício, e os mais superiores desejos atracados uns aos outros, de forma horrenda, o gênio da raça jorrando solto sobre a cornucópia de bem e de mal; uma fatídica simultaneidade de primavera e outono. [...] Outra vez o perigo se

conjunta de seres dotados de relacionamentos afetivos,

mostra, mãe da moralidade - grande perigo - mas

familiares, ou ao menos mutuamente compartilhados, tende a

desta vez deslocado sobre o indivíduo, sobre o mais

gerar um sentimento de satisfação e segurança no contexto

próximo e mais querido, sobre a rua, sobre o filho

urbano muito mais positivo e vantajoso do que qualquer outra

de alguém, sobre o coração de alguém, sobre o

forma de elo entre as personagens da cidade.

mais profundo e secreto recesso do desejo e da

Assim, para auxiliar a legitimidade desta hipótese, os exemplos internacionais já mencionados se mostram de crucial

vontade de alguém. [...] Em tempos como esses, o indivíduo ousa individualizar-se.”

importância na sugestão de que este caráter seja, não somente uma característica própria brasileira ou paulistana, mas uma

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Assim, eventualmente podemos ser levados a questionar

Dessa forma, somos direcionados ao exercício da reflexão

este modelo no toque deste sobre a sociedade modernizada e

sobre o peso do valor do trabalho – como objetivo e objeto

“descoletivizada”, ou até mesmo em seus próprios valores e

representante deste contexto – e sua provável interferência na

conceitos, por vezes contraditos, como sugere a reflexão:

relação humana entre as pessoas, ou ainda, no desinteresse das pessoas por uma relação humana e conjunta, entendendo que a

“Sendo o conhecimento fruto do ensino e do aprendizado das pessoas, e consequentemente

concretização desta característica, deste valor parta claramente de um modelo cultural burguês capitalista3.

da troca de ideias e experiências – troca esta,

Também consideraremos, na medida em que tratamos

somente possível através da interação entre dois

sobre a situação atual e contemporânea da individualidade e da

seres – e entendendo o conhecimento como fundamental na própria existência humana e um dos principais fatores que regulam o índice de desenvolvimento de uma sociedade, pode-se até considerar

a

possibilidade

do

equívoco

contraditório na conformação espacial da cidade

interação entres as pessoas, a influência do advento da internet e de como as pessoas acabaram por substituir a relação ou interação humana física real pela virtual. Como, ou até que ponto esta substituição se mostra favorável em prol dos interesses sociais.

urbana contemporânea que intenciona e visa tal

Por fim, trabalharemos com imagens, esquemas gráficos e

desenvolvimento, mas não incentiva, ou ainda,

croquis, como maneira de refletir sobre o espaço na defesa ou

desmotiva a interação entre seus componentes e, portanto o desenvolvimento propriamente dito.”

Vale reforçar que o trabalho se resguardará, apesar de entender a relevância de uma discussão neste sentido, de tratar de uma maneira mais aprofundada as influências político econômicas na postura individualista social, visto que como anteriormente citado, esse parte de uma leitura e interpretação sensitiva do espaço e deverá se ater com mais frequência às questões e considerações sociais e perceptivas deste cenário. 3

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resgate de um valor humano interativo no espaço urbano. Assim, em um segundo momento, através da leitura sensitiva sobre uma área, somada a carga teórica desenvolvida, pretende-se apresentar propostas interventivas para estas áreas a fim de sugerir melhorias que estimulem a coletivização da sociedade e a interação humana. E, se viável, deve-se procurar uma resposta conceptiva de um edifício que também seja pautado na linguagem poética, como forma de potencializar sua capacidade – enquanto espaço – de incentivar a interação humana, como contraposto à individualidade, em um plano de médio ou longo prazo.

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3.0 O PANORAMA ESPACIAL: A CIDADE COMO REDE


Figura 03: A cidade como rede de pontos de interesse. Abstração da cidade contemporânea.

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“Um dia desses, voltando de

analisada com certa profundidade, ainda que talvez sob um

viagem com alguns bons amigos, a minha radio

ponto de vista diferente, é aquilo que chamo de caráter poli

favorita novamente não me decepcionou e a boa

centralizado de organização. Tal caráter será retomado com

música começou no momento em que a mata

alguma frequência durante o trabalho, porque de alguma forma,

nativa que abraça as estradas paulistas deu lugar às

artérias

correntes,

velozes,

incessantes,

teimosas da grande cidade. O sol se punha, completando ou contrapondo aquele cenário de beleza e falsidade. A ameba que se estendia sobre a avenida indicava nada além do atraso, mas o

acredito que esta característica espacial atinge direta ou indiretamente os habitantes da metrópole e consequentemente, aliado a inúmeros outros fatores não apenas urbanísticos ou espaciais, mas também políticos, econômicos e culturais, influenciam na conformação de sua postura individualista.

atraso hoje não era problema. Era domingo e eu

Durante o processo de desenvolvimento de uma cidade, é

não tinha pressa, afinal estava com meus amigos e

natural o aparecimento de áreas com uso mais específico,

o sol se punha do céu. Estava passeando. Boas

centralidades relativamente isoladas umas das outras, separadas

risadas, boas conversas, bons momentos. Estava

por corredores de asfalto – no caso de São Paulo – que deveriam

passeando. Não havia gramado para deitar, bola

levar as pessoas de um ponto a outro com rapidez e facilidade. E

para chutar, pássaros para admirar. Havia carros,

de fato, estes corredores facilitam muito o deslocamento da

barulho e poluição. A pressa era de todos, menos nossa, e do sol que se punha no céu.”

Uma das características de grande relevância desse complexo único a que denominamos cidade, a ser considerada e

legião diária de trabalhadores que viajam incessantemente no início e no fim do dia, do trabalho para casa ou vice versa. Já a questão da velocidade, possui hoje algumas limitações, geradas basicamente pela impossibilidade física de suporte de qualquer planejamento de mobilidade funcional baseada na utilização

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prioritária do transporte individual para um contingente tão volumoso

de

pessoas.

Porém

tal

questão

não

De qualquer modo, a cidade, enquanto conjunto de uma

trata

diversidade funcional, social, cultural, econômica entre outras, é

necessariamente apenas de um mal planejamento de mobilidade

percebida pelo homem (em especial por seu habitante, que é

nos grandes centros ou de sua má administração, mas também, e

aquele mais capacitado de enraizar um valor ou percepção

quem sabe ainda mais, de uma cultura por parte da sociedade de

daquele espaço com maior profundidade), resumidamente, como

valorização demasiada sobre o automóvel, em diversos sentidos.

uma rede de caminhos que guiam seus usuários, na grande

Paulo Mendes da Rocha coloca, em entrevista realizada no dia 10

maioria das vezes, a algum ponto de interesse específico.

de Maio para o programa “Roda Viva”:

Problema é quando este ponto de interesse, interessa muita gente e ao mesmo tempo. Podemos pensar inclusive que o

“[...] é um absurdo você morar em um

entendimento da cidade como um complexo marcado por pontos

apartamento de 50m² e ter uma garagem que

de interesse já é, possivelmente, um equívoco à medida que os

exige 25m² para o carro. É um absurdo imaginar o

próprios caminhos que conduzem aos chamados pontos de

transporte individual com uma lata que pesa 700kg. E você pesa 70kg.” “[...] O maior desastre é a educação daquele que está lá dentro. Estamos criando uma população de conformistas, de tolos, de pessoas

interesse já são ou deveriam ser ponto de interesse de algum outro indivíduo naquele momento. Ou ainda, o interesse pelo caminho está intrínseco no interesse pelo ponto originalmente pensado, no ponto final. Ainda que inconscientemente.

completamente alienadas em relação à graça das invenções humanas.”

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Figura 04: Imagem da Av. 23 de Maio em São Paulo. Disponível em: <http://www.transitomaisgentil.com.br/ blog/tag/transitogentil/> Acesso em: 20/07/2013.

Figura 05: Rua Santa Ifigênia em São Paulo. Conhecida pelo comércio de eletroeletrônicos. Disponível em: <http://viajeaqui.abril.com.br/materias/ nerds-em-sao-paulo> Acesso em: 20/07/2013.

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Figura 06: Imagem da construção da capital brasileira Brasília. Disponível em: <http://spinbrothers.blogspot.com.br/20 12/10/construcao-de-brasilia-anos50.html> Acesso em: 19/07/2013.

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Figura 07: Perspectiva do eixo monumental de BrasĂ­lia. DisponĂ­vel em: <http://spinbrothers.blogspot.com.br/2012/10/construcao-de-brasilia-anos-50.html> Acesso em: 19/07/2013.

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A conformação de uma centralidade especializada no

estendido entre eles. Algo similar acontece, por exemplo, em

mapa da cidade, de certo ponto de vista ajuda não somente aos

uma viagem de São Paulo a Bauru, onde o percurso é claramente

que oferecem o produto de interesse, mas também aos clientes

dotado de rica beleza natural das matas atlânticas e de cerrado,

que o desejam (considerando neste caso, um interesse material,

porém existe alguma dificuldade por parte dos viajantes em

comerciável). De um lado, o cliente se beneficia ao saber que

apreciação do cenário, pois este se encontra entre os dois pontos

naquela determinada região, ele vai encontrar o que precisa,

de interesse daquele momento. No caso, o ponto de saída (São

quando precisar, o que colabora na construção de uma

Paulo) e o de chegada (Bauru), o que nos faz pensar que esta

identificação dele com a cidade em uma primeira análise. Além

lâmina adimensional é aparentemente nada mais além de

disso, a provável existência de uma concorrência entre os que

monótona aos olhos dos passageiros do automóvel.

oferecem também conforta os clientes, por um dos próprios

Interessante perceber que esta apreensão não é

conceitos abordados na ideia de concorrência em si, que é a de

particularidade da escala urbana, da velocidade do automóvel,

competição entre os ofertantes pela melhor relação de custo

entretanto não se pode afirmar que este não teve seu papel de

benefício a ser oferecido. Pelo outro lado, o ofertante se

uma provável importância crucial no entendimento ou ainda na

beneficia pela provável grande quantidade de clientes que virão

mera e despretensiosa reflexão sobre o valor e o significado do

à região à procura de serviços iguais ou similares aos que ele

espaço de passagem em detrimento do espaço de convívio.

presta.

Nota-se pela total falta de atenção do transeunte com as Em contrapartida, aliado aos fatos envolvidos no ato de se

ocorrências que o circundam diariamente durante qualquer

utilizar o automóvel, isto acarreta num subconsciente de que

viagem entre dois pontos de interesse. Os habitantes urbanos,

todo espaço existente entre dois pontos de interesse durante

ou pelo menos a grande maioria deles, têm grande dificuldade

determinado momento se tornam uma espécie de vazio,

em descrever a fisionomia de uma pessoa que julgou muito

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bonita há dois dias, tampouco qualquer detalhe que tenha lhe

urbanamente – entra em esferas muito mais abrangentes e

chamado atenção, lembrar-se de qualquer pessoa que tinha

delicadas a que este trabalho não intenciona grande análise,

dificuldade para recolher a caneta caída no chão ou qualquer

como a educação ou as estratégias políticas em prol de seu

senhora cansada que poderia ter sentado no banco que ela ainda

investimento por parte de um governo ou grupo social. Porém,

não vira; apagado pela preocupação e afobação do ritmo ditado

claramente estas entidades influenciam com relevância e

pela cidade e consequentemente de seu sistema insaciável. Não é

colaboram nesse processo de adestramento do indivíduo a se

necessário nos atermos a eventos tão específicos e singelos

individualizar. Talvez esta seja uma das mais rentáveis

assim. Os cidadãos de uma grande cidade parecem prestar

atividades que alguns cidadãos certamente devem estar a

atenção àquilo que é possivelmente rentável por algum

prestar atenção.

momento, de alguma forma. Estados de saúde de importantes

De qualquer forma, a configuração de vazio no percurso

nomes da mídia, grandes revoltas ou eventos naturais

entre dois pontos de interesse se dá também na escala visual do

desastrosos, são assuntos que tendem a ter uma relevância

pedestre, o que nos leva a considerar este perfil para toda e

maior, e destes, as pessoas se recordam com mais facilidade no

qualquer escala.

geral. Por uma semana ou duas.

Do entendimento deste caráter fluido das pessoas, da

Neste momento, aparece então um dos mais famosos

velocidade e da alta desatenção pelo percurso, surgiram então os

ditos populares: “não lembro nem o que comi no almoço, imagina

reflexos arquitetônicos que resgatassem essa atenção (ver

se vou me lembrar de alguém que cruzei na rua.”.

figuras 04 e 05), que se adaptassem também a esta escala, o

Claro que esse assunto, sobretudo quando atinge a escala

simbolismo construído que representavam, seja ele de interesse

do pedestre – do usuário direto da cidade e do convívio com os

social, político ou econômico. Uma arquitetura extravagante,

milhares de colegas de trabalho no engenhoso ofício de viver

capaz de despertar novos interesses em uma velocidade

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igualmente acelerada. (ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura Nova. 2002).

Na tentativa de criar uma comparação entre o panorama atual e aquele que se julga, em primeira instância, “ideal” do homem na grande cidade, Paulo Mendes parte de um dos

*

*

*

conceitos que a arquitetura e o urbanismo contemplam e entendem como objeto de trabalho:

Dessa forma, podemos começar a compreender essa faceta cultural e o fardo individualista que os cidadãos das

“A ideia da arquitetura, não é obrigar

grandes cidades vestem. “Preocupação”, originado do Latim

você pelo projeto que se faz. A se comportar desta

praeoccupatio é “pré” mais “ocupação” e é definido segundo

ou daquela maneira. Outra ideia quanto a esta

Novo Dicionário Aurélio, em sua 1ª edição como “ideia fixa e antecipada que perturba o espírito a ponto de possivelmente produzir sofrimento moral”, uma ocupação antecipada, prévia. Em suma, podemos dizer que, independente do lugar para o

pergunta que pode se formular em relação a qual é o objeto da arquitetura é que não existe um. Mas se você quiser isolar um ou dois, destacar. Eu já disse: “evitar o desastre”. Outro é “amparar justamente, a imprevisibilidade da vida”. [...] Se

cidadão urbano intenciona ir, há uma preocupação quase

você sai do trabalho aflito e sabe que vai levar uma

exclusiva em chegar ao destino, que pode variar de surgir

hora e meia, duas, para chegar em casa; é um

presencialmente em algum lugar combinado a executar uma

homem completamente diferente daquele que sai

função previamente planejada. Nitidamente, me posiciono a

do trabalho, sabe que o metrô passa de dois em

favor de uma reflexão a volta dos desdobramentos espaciais e

dois minutos, portanto, não se afoba; encontra um

perceptivos de organização humana nos períodos seguintes e,

amigo, vai para o bar e troca ideias. Alguém diz

portanto, decorrentes do ideal modernista nas cidades.

que vai ao teatro e telefona para outro amigo, o

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qual vai para o bar e depois vão ao teatro juntos.

consequentemente sua velocidade. Dessa forma, nada mais

[...] Você tem a imprevisibilidade a sua disposição.

previsível do que a construção de ícones edificados de

Você tem a alegria. Fala-se mesmo de uma visão

contemplação distante e direta. Apreende-se o impacto do

erótica da vida. Uma vida agradável. Uma vida

edifício no contexto situado mesmo de dentro do automóvel,

onde há tempo livre para você cogitar o que vai fazer. É completamente diferente da ideia do planejamento como algo coercitivo. Não é isso.”

deixando de lado o contato humano, os pequenos, porém não menos importantes, gestos da interação humana, os quais também são igualmente passivos de apreensão e admiração, que acontecem ou aconteceriam entre cidadãos em uma escala

*

*

menor. Não se pode setorizar aquilo que Paulo Mendes chamou

*

de “imprevisibilidade da vida” para as superquadras ou ainda,

Seguindo esta linha de raciocínio, tomemos aqui duas cidades para objetivos de comparação. Brasília, cidade construída basicamente sob esta filosofia de uma nova cidade moderna

que

desenvolvimento

representasse do

ser

uma

humano

nova ou

do

época

de

brasileiro

especificamente; uma cidade que possui seu traçado idealmente correspondente ao fluxo moderno de informações, dados e desenvolvimento de maneira geral, fundado nas grandes avenidas e corredores asfaltados de alto tráfego. Ora, a cidade como

conjunto

feito

e

pensado

para

os

carros

e

para áreas específicas destas. O carro parece cumprir, em Brasília ou mesmo em São Paulo, um papel alienador da sociedade quanto ao entorno e a vida de uma forma geral que se passa do lado de fora. Pois bem, o cenário que um cidadão brasiliense se depara na maior parte do tempo, consequentemente acaba se configurando ilustrativamente como um grande borrão. Uma imagem congelada do movimento propriamente dito, com conteúdo muito dificilmente decifrável. Há um engessamento do ato de apreciar o entorno durante o percurso, restrito somente

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aos raros momentos de relação humana externa ao automóvel, o que implica, além disso, na dificuldade deste indivíduo de suprir uma de suas necessidades psicológicas mais patentes, sobretudo numa rotina doutrinada pela pré-ocupação individualista, que é o entretenimento. É muito comum, em sociedades como esta a contradição de grupos familiares ou sociais de uma maneira geral tratarem o entretenimento4 também como um ponto de interesse,

como

algo

que

necessariamente

requer

um

posicionamento ativo de quem se entretêm, o que penso ser uma grave e errada interpretação da atividade. O entretenimento está presente a todo momento em volta das pessoas. Pode-se quem sabe até, dizer que o entretenimento se faz presente com a própria natureza, sendo ele flexível e relativo a quem o percebe, passivo do interesse pessoal.

Entendendo entretenimento como distração, momento ou ação de se entreter, ou seja, ocupar de maneira satisfatória ou prazerosa o que há entre duas atividades premeditadas ou planejadas. 4

26


Figura 08: Croqui de representação de um cenário estático, visível e apreensível à baixa velocidade.

Figura 09: Croqui de representação de um cenário em movimento, o “borrão” da cena visto de dentro do automóvel.

27


Figura 10: Ilustração do “borrão” do cenário externo ao automóvel. Cena retirada do filme Koyaanisqatsi: Life out of balance. 1982.

28


Figura 11: Senhor faz barba meio à multidão no espaço público – figura imagética da invisibilidade do percurso. Cena retirada do filme Koyaanisqatsi: Life out of balance. 1982.

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De qualquer modo, consideremos agora rapidamente, na

análise5. Essa redução de velocidade, e consequentemente

tentativa de contrapor tal cenário, outra cidade cujas relações

(arrisco dizer), o aumento da sensação de segurança do

entre indivíduo e espaço se dão de uma outra forma, muito

transeunte traz à tona exatamente o que foi apontado como raro

devida a diferença de velocidade e maneira de consideração dos

ou quem sabe até, inexistente, na cidade de Brasília: a apreciação

fluxos de pessoas no espaço urbano, além é claro de inúmeros

do entorno durante um percurso. É provável que a utilização da

outros fatores de fundamental importância como costumes,

bicicleta, diferentemente do automóvel, se some ao fator da

clima, geografia, política, história, cultura de maneira geral etc.

imprevisibilidade citado por Paulo Mendes, sugerindo então

que não deverão ser aqui tidos como foco principal. Copenhague

dessa maneira, a maior probabilidade de encontro de pessoas, de

é atualmente reconhecida como a cidade mundial das bicicletas e

interação entre indivíduos e de um espírito de caráter coletivista

apesar do histórico de utilização destas como meio de

em detrimento de um individualista. Essa desaceleração torna

transporte, a cidade tem se tornado exemplo cada vez mais

possível ou pelo menos mais suscetível, a mudança de planos de

admirado e estudado por cidades grandes que se deparam com o

um indivíduo durante o trajeto entre dois pontos de interesse

caos aparentemente incontrolável consequente do emprego do

(em outras palavras, a alternância de pontos de interesse ou a

automóvel como principal forma de trânsito nos grandes

mudança destes próprios), devido a algum fator inédito e/ou

centros.

inesperado, ocorrido no percurso.

A bicicleta, entre inúmeras outras vantagens – físicas e de ocupação de espaço, por exemplo – permite uma circulação de pessoas mais segura à medida que sua velocidade é abruptamente inferior a do automóvel em uma primeira

Segundo documentário (20/06/2011) divulgado pelo projeto Cidade para as pessoas, idealizado pelo arquiteto urbanista Jan Gehl, – um dos maiores responsáveis pelo plano cicloviário de Copenhague – em uma comparação feita com a cidade de São Paulo, constata-se que a velocidade média de um automóvel na capital paulista é de 13km/h, enquanto a velocidade média da bicicleta na capital dinamarquesa é de 20km/h. 5

30


É importante também, ressaltar que não somente a bicicleta é detentora exclusiva destas vantagens. Aliás, talvez ela também a seja, devido ao seu uso de caráter múltiplo – para fins de lazer, trabalho, etc. – e comunitário (no caso de Copenhague) somado às decorrências da desaceleração citadas anteriormente. É admissível entender que o transporte público de qualidade, ou seja, aquele que atende adequadamente a demanda de seu uso, também possa ser causa na geração desse sentimento. Sendo

o

percurso

admirado,

tampouco

suas

manifestações, diferentemente do borrão fotografado em Brasília, apreende-se, em uma cidade como Copenhague, o cenário de uma maneira mais aproximada ao que realmente é ou está sendo naquele momento, durante o trânsito. O que permite assim, a mencionada interação de quem observa com o que está sendo observado.

31


4.0 POSSÍVEIS REFLEXOS NA RELAÇÃO INTERPESSOAL


Vimos até agora, como o fluxo de pessoas na grande

uma, muito embora estes fatores devam de fato potencializar tal

cidade, juntamente com um conjunto de valores específicos a

obstáculo, mas pela aparente construção de um valor pessimista

cerca da percepção do espaço construído ou não, é capaz de

e efêmero sobre as coisas. Sobre pertences, sobre momentos,

influenciar na conformação de um perfil individualista numa

sobre relacionamentos. Ao que tudo indica, a velocidade e a

sociedade, e desenvolvemos uma reflexão um pouco mais sólida

desatenção com as partes constituintes de um percurso chegam

quanto a alguns modelos urbanos conhecidos. Porém, vale a

a tocar, inclusive, sobre um relacionamento humano no percurso

pena também refletirmos um pouco a respeito da similaridade

de uma vida. Como ensaio reflexivo próprio de abordagem mais

entre a relação do indivíduo com o espaço de forma efêmera e

filosófica sobre isso, penso que:

distante, e a relação entre dois ou mais indivíduos que convivem em um mesmo panorama urbano perceptivo que, portanto,

“Entendendo a vida como mero espaço de

tende a se desdobrar de maneira parecida entre seus cidadãos. A

tempo, onde, quase ocasionalmente, eu existo; e

necessidade de introduzir sobre essa relação parte de uma

sendo este espaço de tempo passageiro, é possível

aproximação direta com a individualidade na grande cidade, principal objeto de estudo deste trabalho. Serve como hipótese de importante papel no processo justificativo. Partindo do pressuposto de duas pessoas que já se

uma aproximação da percepção essencial do espaço passageiro entre dois pontos de interesse (num contexto urbano) e consequentemente o desinteresse pelas relações de percurso com a percepção das relações interpessoais ou quem sabe

conhecem e possuem um vínculo mínimo de relacionamento, há

qualquer outro tipo e relação durante o percurso

de se considerar nesta cidade, uma dificuldade curiosa de sua

dessa vida.”

manutenção. Não somente pelo distanciamento físico entre elas, ou da diferença entre agendamentos e compromissos de cada

33


Seguindo esta linha, somos levados a pensar novamente na abstração da fotografia do percurso, desta vez sobre o relacionamento humano. E novamente, salta a diferença entre a do borrão obtido na grande cidade, apressada à custa da combustão humana e o congelamento e permanência do momento convivido, característicos de cidades menores ou de cidades de velocidade reduzida de trânsito. Falando nisso, devese ponderar a ideia de que a velocidade dos fluxos, relações, transmissão de dados e informações e desenvolvimento em geral, são proporcionais ou tem alguma associação à velocidade da rotina social. Talvez a superficialidade das coisas e a efemeridade dos produtos traga de fato movimentação a uma economia emergencial, quando baseada numa qualidade de vida fundada no investimento corretivo e momentâneo ao invés da prevenção do investimento planejado, porém isto implica em inúmeros outros fatores negativos que incitaria uma análise mais cuidadosa na adoção desta postura.

34


Figura 12: Cena estática representativa da relação interpessoal apreensível à baixa velocidade.

Figura 13: Representação do “borrão” da relação interpessoal encontrada na grande cidade.

35


Fica insinuada, de alguma forma, a ironia de que talvez o

No caso de São Paulo, foi até criado um slogan, que, em

único relacionamento mais duradouro seja mesmo entre o

uma primeira vista é, em geral, despretensioso e intende

indivíduo e o próprio ambiente que carrega esse teor de

somente evidenciar esse caráter produtivo ininterrupto de uma

efemeridade e percurso vazio, sendo a relação desse indivíduo

cidade que transita valores, informações, produtos, pessoas e

com qualquer componente deste ambiente tão efêmero ou vazio

serviços 24 horas por dia, mas que não deixa de estar

quanto.

relacionado também ao ônus que esse mesmo caráter reflete sobre a sociedade e sobre a percepção desta no espaço. “São Paulo, a cidade que não para.” soaria ainda melhor se o ponto final fosse substituído por uma exclamação, que represente o Figura 14: Croqui de representação da dificuldade de relação entre indivíduos na grande cidade.

imediatismo desta cidade, a prontidão deste organismo em se autoalimentar e se autodesenvolver. Que represente o grande valor e a importância, talvez demasiada, de afirmar com orgulho os vários significados que uma sentença como esta pode apresentar. Há de se questionar, antes de concordar e aderir ao compasso incessante desta rotina por inércia, os aspectos negativos de uma sociedade que carrega tais valores. Talvez a principal crítica que se possa tecer em torno

Figura 15: Croqui de representação da relação entre indivíduo e cidade.

desta tentativa de propagandear a cidade, fazer desta algo aproximado a um produto (LAHORGUE, M.L. Cidade: obra e produto) que gere consumidores interessados, gere um

36


fetichismo presente tanto no orgulho de seus consumidores, muitas vezes superficial ou alienado de certas classes habitantes das grandes cidades, quanto no planejamento daqueles mais distantes física ou economicamente em pertencer6 a este grupo. Este que pode se dar ao “luxo” de viver na grande cidade que não para. E aí, como de muitas outras formas já realizada, surge a comparação da cidade moderna (pós-industrial) com o conceito da máquina. Um complexo capaz de criar ou possibilitar não somente um produto material para seus usuários consumidores, mas também de iludir ou influenciar de inúmeras formas, as determinações

e

decisões

tomadas

rotineiramente

pela

sociedade.

Para caracterizar melhor o sentimento de “pertencimento”: “A cidade conserva um carácter orgânico de comunidade que vem do povo, e que se traduz na organização corporativa. A vida comunitária (que comporta assembleias gerais e parciais) em nada impede as lutas de classes. Ao contrario. Os violentos contrastes entre riqueza e poder, os conflitos entre poderosos e oprimidos não impedem nem a afeição à cidade nem a contribuição ativa à beleza da obra. No marco urbano, as lutas de facções, grupos e classes reforçam o sentimento de pertencimento.” (LEFEBVRE apud LAHORGUE, M.L. Cidade: obra e produto. 2002). 6

37


5.0 A CIDADE DO SKYLINE E A CIDADE DO HOMEM


O

problema

da

cidade

urbana

contemporânea

aparentemente, através dos pontos aqui levantados, transcende

valor atribuído a cada um dos fatores a serem considerados neste exercício:

a questão da percepção humana sobre o espaço a partir da organização do traçado. Muito dos reflexos sociais, econômicos e

“Nos tempos antigos, sempre se pensou

políticos se dão também pela forma de gestão do sistema, na

nesta ordem: pessoas, espaços, edifícios. Até que se

medida em que pode potencializar gradativamente tais

inverteu a ordem: edifício, espaço, pessoas.”

problemáticas pela alternância de foco deste para a tentativa de correção ou manutenção de outros setores. Há a suspeita de uma

Nitidamente, para Gehl, o planejamento da cidade deve

investimentos

necessariamente partir do pressuposto de que é feita para as

realizados sobre a urbe, inclusive quando se trata daquele

pessoas, logo, deve partir da relação do ser habitante com o

traçado ou das medidas de sua formulação. Há uma possível má

espaço habitado, ou seja, partir da percepção da escala humana.

interpretação da relevância dos valores que devem ser

A Síndrome de Brasília é justamente a perda dessa postura

considerados em prol da boa circulação e da qualidade de vida

projetual, entendendo o skyline e a importância dos edifícios

de maneira geral na cidade. Jan Gehl denomina esta tendência

enquanto objetos arquitetônicos únicos, ícones de algum

modernista de projetar a cidade pela implantação, distante da

significado mais abrangente, como fator decisivo na elaboração

escala humana, em seu livro Cities for people como a “Síndrome

de um plano urbano em detrimento da percepção humana e

de Brasília”. Ele coloca em entrevista concedida à revista AU

consequentemente dos reais motivos e variáveis que estimulam

(Arquitetura e Urbanismo. Edição nº 215, fev. 2012), seu

o cotidiano em direção ao melhoramento da qualidade de vida:

condução

errônea

no

gerenciamento

dos

posicionamento sobre a inversão que se resultou no processo moderno de projeto e planejamento para as cidades quanto ao

39


“Pela primeira vez na história da humanidade, cidades não são construídas como conglomerações de espaços urbanos, mas como edificações individuais.”

40


Figura 16: Congresso Nacional de Brasília. O objeto arquitetônico como ícone. Disponível em: <http://www.nosrevista.com.br/2010/04/22/tracos-de-brasilia-50-anos-de-contemplacao/> Acesso em 19/07/2013.

41


Figura 17: Ciudad de Las Artes. Valencia, Espanha. Disponível em: <http://www.calatrava.com/#/Selected works/Architecture/Valencia 1?mode=english> Acesso em 10/07/2013

Figura 18: Burj Khalifa. Dubai, Emirados Árabes. Disponível em: <http://hotnaijanews.com/2013/02/21/world-tallestbuildingburj-khalifa-in-dubaiphotos/> Acesso em 10/07/2013

42


Utilizando exemplos práticos de cidades que apresentam ou apresentavam situações problemáticas, como Copenhague,

reflexão, é a partir da escala dos olhos que os problemas da cidade devem ser enfrentados.

Nova York, Vancouver, Melbourne entre outros, pode-se

Na medida em que há, para eles, a necessidade da

discorrer uma reflexão comparativamente embasada sobre

interação humana na constituição de uma melhor forma de vida

casos brasileiros de cidades que sofrem ou possuem alguma

urbana, Gehl incita que as características negativas dessas

dificuldade em solucionar, ou ainda, descobrir quais são os

cidades são hoje, fruto de uma má interpretação ou um mal

pontos que devem ser considerados fundamentalmente, na

entendimento do elo entre a cidade e indivíduo: “É preciso

evolução de um planejamento que visualize a qualidade de vida

entender as pessoas antes de querer entender a cidade.”.

humana como prioridade.

Como forma de favorecer a interação humana e a relação

Já era de suma importância, a vitalidade da vida das ruas,

com a cidade, o urbanista dinamarquês apresenta a tese do

das formas e relações possíveis que se fazem diariamente entre

gabarito máximo de 5 andares para os edifícios urbanos, como

pessoas, as manifestações e os contatos da percepção humana,

altura onde ainda é possível a apreensão do morador sobre o

no relato de Jane Jacobs em sua obra Morte e vida de grandes

que ocorre na cidade: “Após o quinto andar, não se pode mais ver

cidades (1961) que parte de um olhar muito aproximado àquele

ou estar em contato com o que se passa na cidade”.

que Gehl sugere como correto, no desenvolvimento de um plano

Também em seu discurso, deixa claro que a adoção do

urbano de organização espacial que vise a qualidade de vida

carro como principal meio de transporte e as medidas políticas

como principal objetivo. A própria forma como a obra é escrita

de incentivo a esta preferência são péssimas para a cidade. O

por ela, descrevendo literalmente o ambiente circundante, já

carro, que no Brasil tomou proporções quantitativas absurdas,

configura uma similaridade entre seu ponto de vista com o de

força a convivência urbana para fora dos espaços públicos, o que

Gehl. Nos dois casos, é a percepção humana que conduz à

como vimos, sugere o cultivo do senso de individualidade. Dessa

43


forma, quaisquer medidas que desestimulem a utilização do

É claro que algumas considerações devem ser feitas junto

automóvel como meio de locomoção prioritário são muito bem

à questão. Pra começar, inevitavelmente, a adesão da bicicleta no

vindas. Porém, infelizmente, por uma análise rápida sobre o

cotidiano das pessoas como forma de mobilidade, depende

histórico das reformas urbanas as quais vivenciei em São Paulo,

destas

é fácil destacar que por melhor intencionadas que sejam, na

consequentemente do interesse político em tal mudança. Devem

tentativa de amparar o aumento do fluxo de automóveis, criando

ser planejadas e construídas ciclovias estratégicas que levem em

novos corredores, novas faixas de circulação, elas novamente se

conta o contato dos ciclistas com os corredores rodoviários e

demonstram resultado de um plano emergencial corretivo de

mesmo com os pedestres nas calçadas, considerando um

curto prazo, incapaz de efetivamente solucionar a questão, para

percurso reduzido e objetivo que evite ao máximo seu desgaste

não considerarmos a hipótese – muito plausível por sinal em

físico excessivo. Aliás, duas observações devem ser feitas neste

minha opinião – de que ainda, estas agravam o quadro a médio e

ponto.

longo prazo. Uma das formas mais bem sucedidas, exercidas por Gehl,

reformas

urbanas

que

a

possibilitem,

e

Primeiro, é preciso lembrar que no caso do Brasil, que deve uma parte considerável de sua economia e da rotação de

na tentativa de gerar um desprendimento da sociedade por essa

capital

à

movimentação

cultura baseada no automóvel, que leva ou levou a situações

proveniente

verdadeiramente caóticas de volume descontrolado de veículos,

automobilísticas, a adesão a um modo alternativo de mobilidade

foi o insistente incentivo à utilização da bicicleta como

como as ciclovias implicaria então numa desaceleração da

alternativa de locomoção, justificando das mais variadas

economia neste sentido, o que somado ao histórico político

maneiras a grande vantagem de se aderir à mudança.

nacional em geral sobre as estreitas relações entre o setor

de

negócios

do

consumo

vinculados

pessoal/popular às

montadoras

44


privado e público, conforma um grande obstáculo a ser

ou do real aprimoramento da mobilidade urbana em São Paulo

superado.

quando somente comparado à Copenhague, que possui um ritmo

Em segundo lugar, é importante entender também –

e uma densidade demográfica muito adversa à paulistana, com

sobretudo em grandes cidades como São Paulo – que as ciclovias

apenas 3 milhões de habitantes. Porém, Nova York já é uma

não funcionam sozinhas e já o era esperado no plano de

cidade com características mais aproximadas, com 8 milhões de

Copenhague por exemplo. É preciso que haja a elaboração de um

habitantes, e que também utilizou de medidas drásticas de

plano de mobilidade mais abrangente que conecte variadas

requalificação do espaço (baseado nos ideais de Gehl) para essa

formas de mobilidade entre si, aproveitando e potencializando

mudança de valores que compõe o planejamento para as

as qualidades de cada uma delas. Além disso, deve haver

pessoas. Em geral, o fechamento de uma importante avenida ou

também, um investimento substancial em todos os meios de

rua de qualquer cidade, é visto com maus olhos em curto prazo,

transporte de caráter público e coletivo (ônibus, metrô, etc.),

como ele cita em entrevista concedida à revista Planeta

para assegurar a fluidez da população, o atendimento adequado

Sustentável sobre Copenhague e Nova York, quando fechou a

de demanda e indiretamente amparar o espaço urbano na

Strøget (Copenhague) e a Times Square (Nova York) para

diminuição de outros índices deploráveis típicos da grande

utilização apenas pedestre. Porém em longo prazo o quadro já se

cidade como saúde e segurança, que viriam como resultante

tornara outro:

deste novo hábito. Que por sua vez, possivelmente traria consigo, vagarosamente, uma mudança no panorama social interativo de individual para coletivo.

“A Strøget era uma importante avenida comercial e o anúncio de seu fechamento para

Nova York deve servir de grande exemplo nesse sentido.

virar um calçadão em 1962 causou reações

Pode surgir em algum momento, o questionamento da eficiência

negativas. "Não somos italianos", diziam os jornais

45


para argumentar que o clima gélido da Dinamarca

Como se não bastassem os exemplos, no que diz respeito

impossibilitava uma vida ativa nos espaços

à dificuldade de implantação de um valor diferente ao já

públicos. "Um ano depois, todos os comerciantes

enraizado culturalmente em uma sociedade, o caso de

reconheciam: eles estavam errados", conta Gehl. As

Copenhague chama atenção para mais uma questão importante:

vendas triplicaram e esse calçadão de quase 1 quilômetro passou a ser ocupado pelos habitantes da cidade.”

o clima. Se as estratégias de incentivo à utilização do espaço público se mostram eficazes em Copenhague, que é uma cidade

“Veja o caso de Nova York. Há três anos, a

típica de clima frio, não seria romantismo algum acreditar que

decisão de fechar a Times Square, centro nervoso

tal postura funcionaria perfeitamente no caso brasileiro,

de cruzamentos de grandes avenidas, causou

sobretudo em São Paulo que está situada a uma altitude

desconfiança. apareceu até gente dizendo que sem

relevante, logo não possui o frio de Copenhague nem o calor

aquele trânsito tão familiar a cidade perderia sua

intenso de uma cidade litorânea.

identidade. Os lojistas também desaprovaram,

Como muito defendido por Gehl, é somente através do

achavam que o comércio iria despencar já que o

entendimento da cidade como habitat das pessoas e, portanto,

movimento na área cairia. Mas as previsões mais

espaço que deve necessariamente refletir tão somente os desejos

pessimistas não se confirmaram. Hoje as pessoas passam mais tempo na região e se demoram justamente olhando as vitrines e comprando. Manhattan

de

fato

melhorou

com

essa

e carências por elas enfrentado, que se pode apresentar condições de planejamento com objetivo de primordialmente trazer melhoramento na qualidade de vida destas.

intervenção.”

46


Figura 19: Construção de edifício em São Paulo, com detalhe do adensamento de prédios ao fundo. Fotografia concedida gentilmente pelo acervo pessoal de Lucas Rigotto.

47


6.0 A INTERNET


A abordagem sobre o tema da Internet é muito

sobre a sociologia, psicologia, tecnologia, pedagogia, etc. Mas

importante para tratar do senso individualista ou de sua

tentemos aqui, manter o foco nas relações mais prováveis que

contradição na grande cidade contemporânea, uma vez que

esta tem com a cidade e com a concretização desse sentimento

possibilitou inúmeras novas formas de criação de vínculo entre

individualista ou possivelmente ensaiar o contraponto que ela

indivíduos e diferentemente das formas tradicionais de

pode insinuar à medida que tende cada vez mais a agrupar as

interação, acaba por inserir a cidade a que pertencem em uma

tribos escondidas por detrás do estereótipo do cidadão urbano.

rede de escala muito maior de forma muito mais imediata. Claro

Dessa maneira pretende-se, essencialmente, levantar questões e

que essas novas formas de interação geram também novas

desenvolver algumas reflexões baseadas em interpretações e

formas de relacionamento e novos valores. Uma vez que muitos

percepções próprias, em um plano mais geral do peso que esta

de seus usuários parecem ter substituído o ato do encontro

tecnologia aparentemente tomou com naturalidade o cotidiano

pessoal físico pelo virtual à distância, até que ponto a internet

corrido e complexo da metrópole.

tende a individualizar seus usuários? Ou será que a facilidade e objetividade da internet facilitam o encontro de pessoas com

*

*

*

gostos similares e nesse sentido, estaria ela incentivando a coletivização entre grupos mais específicos de forma mais

Individual:

rápida? Será essa rapidez uma vantagem? Será essa rapidez da internet um desdobramento da rapidez da grande cidade, tão citada anteriormente ou vice-versa?

Muitos, principalmente os pertencentes da geração imediatamente anterior ao aparecimento da internet como

A internet, quando associada ao tema central do

ferramenta prática e de uso rotineiro, costumam dizer que as

individualismo possibilita um questionamento muito amplo

crianças e essas gerações de conectados “não sabem mais usar a

49


rua” fazendo referência a uma época onde a rua era muito mais

apresentar chances mais significativas de acidente, quanto pela

coerente com o conceito de espaço público do que ela é capaz de

própria ausência dos “olhos da rua” (JACOBS, Jane. Morte e vida

demonstrar nos dias de hoje. Tal afastamento da rua e logo, de

de grandes cidades. 1961) que agora estariam escondidos por

brincadeiras coletivas, encontros em geral e tantas outras

detrás do volante, voltados e atentos ao semáforo logo a frente, e

atividades em grupo, independentemente de faixa etária ou

portanto se tornaram completamente indiferentes aos atos

classe social, podem ser vistos como alguns dos responsáveis

violentos e vândalos de indecentes oportunistas.

pelo cultivo dessa cultura individualista introspectiva. É claro

A partir daí, o entretenimento ou quaisquer outras

que não foi, obrigatoriamente, a internet o único fator – e nem se

utilidades que a rua apresentava teriam que ser substituídas de

pode falar que seu aparecimento cumpriria papel coadjuvante na

alguma forma, por atividades que pudessem ocorrer na

presença de tantos outros – dessa migração das pessoas do

segurança do ambiente fechado e privado. Nesse momento, a

espaço público para o espaço privado e individual. Muito embora

internet surge como uma possível solução e canal de escape para

possamos considerar que a internet surgiu como catalizador

estas pessoas que se interessassem em tomar ciência sobre o

deste processo – sobretudo para as novas gerações – uma vez

mundo externo às “quatro paredes” que as cercam.

que as pessoas já se afastavam do espaço público por motivos

O entretenimento, a informação e o trabalho começaram

talvez mais aproximados basicamente à segurança. Nesse

a enxergar na internet uma aliança perfeitamente cômoda e

sentido, podemos pensar que o carro influenciou de alguma

conveniente.

forma, até no sucesso da internet, ao menos em um primeiro

individualista só se fortalecia e só tornaria as coisas cada vez

momento. Com a intensificação do fluxo de automóveis, as ruas

mais críticas para aqueles que eram ainda obrigados de alguma

se tornaram menos habitadas, gerando maior insegurança para

forma a utilizar e confiar no ambiente público. Cada vez mais as

os que persistiram, tanto no ato de atravessar uma rua que pode

pessoas deixaram de olhar umas para as outras, cada vez mais as

Porém,

o

crescimento

desse

sentimento

50


pessoas aceleram o passo para chegar ao trabalho, ao médico, à

uma possível tentativa de se iludir, agir como se as pessoas que

escola ou até mesmo à inocente e dócil padaria logo ali na

andam e que usam o espaço público não fizessem parte deste

esquina.

contexto.

Aparentemente,

uma

tentativa

destes

em

Posso eu mesmo dizer, que fui ensinado durante a

assumirem-se algo como “cidadãos privados” que perambulam

infância inteira a “nunca dar bola a estranhos”. Vejamos com

pelo espaço público excepcionalmente quando não existe outra

cuidado tal orientação: trata-se de “nunca dar bola”. É ainda mais

opção. Um sentimento de que talvez os únicos verdadeiros

grave do que se fosse “nunca conversar com estranhos”. Nunca

cidadãos públicos, ou ao menos, cidadãos que possuem algum

“dar bola” a alguém pode ser entendido praticamente, como um

sentimento de pertencimento ao espaço público, sejam aqueles

conselho para simplesmente ignorar tudo e todos com quem eu

que o precariamente habitam.

cruzasse até que chegasse a algum local seguro, onde o encontro

Não se pode atribuir uma “culpa” a este cidadão privado.

com alguém em quem pudesse confiar era certo. Isso inclui

Talvez, de fato, o ambiente público tenha se tornado hostil e não

pessoas querendo saber do horário, pessoas perdidas no bairro

confiável e os conselhos dados aos filhos e este novo perfil

ou na rua e amigos que me viram de longe, mas se mostraram

adotado seja mera consequência do medo que surgiu da rua e

desinteressados em “atrapalhar” minha determinação em chegar

tão logo, das atrocidades que nela ocorrem.

ao meu destino. Voltamos assim, ao discurso e à comparação do

Assim, esta hostilidade do espaço público (que na

percurso vazio realizado pelos carros na grande cidade entre

realidade se trata muito mais da hostilidade de uma nítida

dois pontos de interesse com o mesmo tipo de percurso – salvo

minoria

as devidas proporções – realizado pelos pedestres que evitam ao

propriamente dito) acabou por se desdobrar em uma espécie de

máximo, assumidamente, qualquer papel público que pudessem

pessimismo entre quaisquer indivíduos componentes de uma

desempenhar perante o espaço. É quase um confronto ou ainda,

mesma cidade nesta situação. Um pessimismo, capaz de fazer

de

cidadãos

oportunistas

do

que

do

espaço

51


uma pessoa duvidar de qualquer gentileza, elogio ou olhar, vinda de outra. Tudo, na dúvida, vira ofensivo, invasivo ou

Em contrapartida, vejamos a faceta positiva do advento

desrespeitoso. A bolha do espaço íntimo se tornara muito mais

da internet no contato com a vida das pessoas moradoras de

sensível.

uma grande cidade.

A internet, que possibilitou e continua possibilitando

Na medida em que se faz necessário, obrigatoriamente, o

oportunidades memoráveis de troca de conhecimento, de acesso

interesse pessoal do indivíduo em buscar qualquer informação

à informação, de criação de serviços mais do que práticos,

na internet e consequentemente seu caráter ativo neste

também possibilitou, ou ao menos reafirmou, a disseminação

processo, podemos notar que o público alvo do conteúdo

deste espírito individualista pessimista sobre o espaço habitado

informativo se torna automaticamente imensamente mais

e por seus habitantes tampouco. Um sentimento pessimista

específico na maioria dos casos quando comparado com o

preguiçoso e cético na descoberta de uma mudança capaz de

público televisivo por exemplo. Dessa forma, é muito coerente

recuperar alguns dos valores comunitários anteriormente

que a interface onde a informação é apresentada, os meios de se

compartilhados. Com o perdão do trocadilho: um sentimento de

encontrá-la

pessimismo pessimista, consigo mesmo e com seu próprio

especialmente desenhados7 a fim de atender e agradar aquele

destino ou possibilidade de mudança.

grupo de indivíduos que de fato se interessam por aquele tema.

e

seu

conteúdo

propriamente

dito

sejam

Nesse momento, consideremos uma das várias áreas de trabalho deste novo profissional da internet, das tecnologias do computador e da informação de rápido acesso. O webdisigner (“desenhista da rede” - tradução livre) tem essa inédita responsabilidade de entender os perfis dos usuários dos mais variados conteúdos virtuais e desenhar a forma como seu conteúdo é apresentado aos internautas interessados em temas que variam de receitas culinárias à histórico de empresas multinacionais. 7

*

*

*

Coletivo:

52


Além disso, é notável a velocidade com que as

imprecisa, à conclusão de um caráter facilitador desses

informações correm na internet. Dados, acordos, fotografias,

encontros virtuais como favorável ao senso comum coletivo.

relatos etc. (ainda mais, quando amparados pelas redes sociais)

Entretanto, atentemos para a questão de que, de acordo com os

correm o mundo quase que instantaneamente na internet, o que

meios apresentados, os grupos beneficiados – aqueles que

entre outras razões confere a ela outro fator justificativo do

possuem interesse comum – são indiretamente levados, em

grande número de internautas ao redor do globo: maior

contrapartida, ao afastamento de outros grupos também

liberdade de expressão de seus usuários. Usuários sim, pois vale

formados por estes princípios, evidenciando assim, um papel

lembrar que aqueles que alimentam o banco de dados da

influente na desmotivação da sociedade no escopo interativo

internet, que disponibilizam ou possibilitam o conteúdo na rede,

baseado na diversidade social pública da grande cidade.

independentemente de etnia, credo, classe ou cor, também são

Seria a potencialização ou sugestão da união desses

usuários interessados ou em potencial de outros sites e

grupos separados uns dos outros, uma atrocidade contra a vida

conteúdos, conformando então uma rede mundial de informação

pública democrática? No momento em que surge uma

virtual – world wide web (“www”).

alternância do caráter segregativo, desconhecido, isolado,

Assim, entendemos que a especificidade de conteúdo

alienado, do indivíduo meio à multidão, pelos mesmos valores

pode facilitar e acelerar o encontro destes grupos virtualmente

agora na relação de um grupo com outro, é passível de

ou fisicamente, uma vez que certamente, diferente do primeiro

questionamento o auxílio da internet no processo coletivista da

contato na interação pública, já se sabe de antemão que ao

sociedade. Ainda que, como citado, tal distanciamento entre as

menos um ponto em comum, um interesse mútuo já existe entre

pessoas já acontecesse anteriormente ao aparecimento da

os componentes do grupo, antes mesmo de haver o contato

internet, é inquestionável que com a internet, isto obteve

propriamente dito. Isso pode levar-nos, de forma ainda

maiores proporções muito mais rapidamente.

53


fatídica – baseada na distância, diferente do valor “Cultiva-se assim uma desvirtuação em

atribuído à palavra “respeito”, pois para que haja

uma das interpretações a cerca do respeito

respeito, necessariamente é preciso que haja, o

conceitualmente. Aparentemente, em situações

convívio. Nesse sentido, a indiferença seja talvez

interpessoais como as encontradas na grande

até mais respeitosa que a ofensa do ato de se

cidade, o “respeito pelo próximo” se torna

evitar algo ou alguém.”

literalmente “distância pelo próximo”, distância suficiente para que não haja interação e consequentemente qualquer possibilidade de mal entendimento ou ato desrespeitoso entre as partes, seja ela intencional ou involuntária. Porém, obviamente,

dificulta

também

qualquer

possibilidade de interação bem intencionada.” “Se verdadeira tal reflexão, percebe-se uma absoluta contradição no ato de se respeitar, ao passo que em tais circunstâncias, o exercício dessa relação interpessoal só acontece quando ela não há. O respeito existe entre as pessoas quando a relação entre elas não acontece, quando ela deixa de existir, quando ela é nenhuma. Portanto, poderia até se falar sobre uma nomenclatura para esta nova relação interpessoal oculta – porém real,

54


7.0 CONCLUSテグ


A questão da individualidade na grande cidade não pode

encontrar seu contraposto; uma proposta de perfil, de projeto,

ser encarada como um tema dotado da possibilidade de uma

de atividade que incentive a coletivização em detrimento à

solução determinada ou de medidas (por mais experimentadas

individualização. Entender como as pessoas são, para então

que sejam) certeiras na mudança de um panorama para outro,

propor o oposto daquilo que não trouxer benefícios. Incentivar a

melhor no que diz respeito à qualidade de vida das pessoas. Para

união de um grupo, a busca pelas soluções para os problemas

possibilitar mudança efetiva deste quadro, são necessárias

individuais a partir da reflexão conjuntamente compartilhada. O

inúmeras outras considerações que tratam de outros fatores que

maior número de pessoas que refletem a respeito de algo,

envolvem a qualidade de vida e a satisfação pessoal do indivíduo

garante maior e mais acelerada possibilidade de cultivo de

com o meio. Tais parâmetros não foram nem serão foco deste

sensações públicas cruciais para a manutenção da boa qualidade

trabalho pelo caráter multidisciplinar que inviabiliza tal

de vida, como identificação do indivíduo com o meio, sentimento

produção.

de segurança, respeito entre seus componentes, agilidade no

De qualquer modo, o presente trabalho se mostra

plano de mobilidade, saúde, educação etc.

importante ponto de partida no processo reflexivo sobre este

Dessa forma, o escopo deste trabalho não intenciona

espaço urbano da grande cidade contemporânea. Importante

muito além de uma reflexão mais aprofundada sobre as relações

não somente na busca do entendimento das razões e influências

em torno do indivíduo. Gerar dúvidas que levem a novas

que este sofreu para atingir o estado atual, mas também para

descobertas e novos caminhos para elaboração de um plano de

embasar e justificar qualquer proposta arquitetônica projetual

longo prazo que vise o coletivo.

que atinja diretamente o cotidiano de uma sociedade.

Se propostas como as apresentadas em outras cidades

Não deixa de ser também a busca pelo entendimento

que passaram por situação similar de adensamento e tratamento

deste sentimento e perfil individualista afim de possivelmente

do espaço público surtiram efeito, como será que devem se

56


resolver tais problemáticas numa cidade como São Paulo para

prol da individualidade, quando poderíamos ter optado pelo

garantir mesmo efeito? Ou ainda, quais são as problemáticas

coletivo. É claro, que é um processo e um posicionamento muito

típicas e únicas da cidade paulistana que retardam a construção

indireto e de caráter passivo. Agimos, muitas vezes, contra a

de uma cultura que busque o interesse coletivo em detrimento

coletividade, involuntariamente, consequente de um processo

do individual? Como estão conectados fatos aparentemente

educativo e talvez cultural baseado no individualismo. Vale

isolados como a ausência de alternativas no transporte urbano e

assim, a sugestão das reflexões contidas neste trabalho em busca

uma tentativa de assalto que não terminou bem para o senhor

de um exercício perceptivo de relação interpessoal urbana

que não tinha mais do que algumas moedas no bolso? Perguntas

baseada na coletividade. A tentativa cotidiana de optar pela

como esta surgem além do incômodo profissional do arquiteto

coletividade, pela interação natural, pelo convívio coletivo

sobre o espaço. Diz respeito também, ao incômodo pessoal e

pacífico e otimista com a incerteza, otimista, por fim, com o

humano, que possivelmente (para não dizer certamente) faz

outro.

parte de um subconsciente de todo e qualquer membro dessa sociedade.

“Quanto maior a cidade, mais individualista tende a ser seu cidadão” deveria ou poderia ser substituído por “quanto

Coloquemo-nos sob esta perspectiva e vejamos em que

mais veloz, mais individualista tende a ser seu cidadão”, pois

grau também nós não já fomos vítimas deste quadro, ou ainda, se

uma cidade grande como São Paulo é extremamente veloz nos

já não fomos nós participantes e representantes no processo de

sentidos aqui atribuídos, e por este motivo, constrói-se a

consolidação da individualidade como senso comum na

hipótese de que seus cidadãos tendem a ser mais individualistas.

sociedade urbana. Em uma mesa de bar com os amigos, no

Algumas

intervalo das aulas do primário, em um trabalho, em um

complexas e desenvolvidas e nem por isso têm um cotidiano

percurso. Incalculáveis possibilidades de termos contribuído em

justificado na velocidade, como se “quanto mais rápido melhor”.

cidades

europeias

são

extremamente

grandes,

57


O mesmo raciocínio, ou ao menos algo similar, acontece

Em um segundo momento, pretende-se, além de

ainda em cidades menores, e consequentemente, menos velozes.

possivelmente nos aprofundarmos no tema central, utilizar tais

Ainda se conhece os vizinhos e na melhor das hipóteses, até a

reflexões para elaboração de um projeto que concretamente

vizinhança. Ainda se sabe a ocupação de boa parte deles, se o

incentive,

filho de alguém entrou na faculdade ou se a filha de outro foi

aprofundamento somado a estudos de caso poderão possibilitar,

pedida em casamento. Há uma facilidade de se conhecer e

através de intervenções em espaços já existentes que carecem de

reconhecer alguém na rua. O homem que você cruzou na rua da

tal tratamento e que conformam potencialidade para tanto ou

grande cidade há 2 minutos, é o homem que toma conta do caixa

através de uma proposta nova edificativa que crie resistência à

preferencial a mais tempo no supermercado que você frequenta

apropriação individualista, a sugestão de novas formas de uso

e você provavelmente nunca se dará conta disso. Você cruzou

público e coletivo.

insinue

a

coletivização

das

pessoas.

Este

com ele, olhou para ele, mas não o reconheceu. Acredito que, por fim, a dificuldade de gestação de um senso coletivo esteja de alguma forma, ligada à dificuldade de conhecer e reconhecer – portanto, conhecer de novo; observar e admitir familiarização com o outro, com o que está sendo observado. Conhecer e reconhecer pessoas, lugares, sensações. Talvez pelo tamanho, talvez pela pressa, mas enquanto conhecer e reconhecer não ajudar a pagar as contas no final do mês é luxo, e, portanto felizmente ainda não é desprezível, mas é dispensável.

58


8.0 CONFRONTO


Como proposta de confrontar este cenário abordado durante o trabalho, foi essencial o desenvolvimento e

possivelmente colabora na construção do senso comunitário urbano.

envolvimento de uma sensibilidade ao espaço que serviu de mote para um processo de imaginação que reconfigurasse o entendimento da relação das pessoas entre si e com a cidade propriamente dita. Ou seja, a sensibilidade gerou, sobretudo, imaginação. E pode-se dizer que é sobre ela que se sustenta a perspectiva adotada sobre o entorno, que através da linguagem poética (e só ela mesmo seria capaz de traduzir ou expressar tais sensações) provoca também a imaginação do leitor. Cria-se então essa abertura, estabelece-se assim um diálogo, um meio de comunicação direto entre autor e leitor, na interpretação e na observação. Com isso, o trabalho assume uma postura contra a problemática do individualismo na cidade8 de uma forma particular que, mais do que apresentar um ponto de vista, se abre à reflexão, à discussão de novas possibilidades e

O fotógrafo alemão Kai Ziehl retrata a relação do indivíduo com a cidade de uma forma poética que evidencia entre outros fatores, a diferença de escala construída e a escala humana e a solidão do indivíduo neste meio. 8

60


Figura 21: Fotografia retirada do portfolio de Kai Ziehl. DisponĂ­vel em: <http://www.kaiziehlphotos.com/portfolio/> Acesso em 27/11/2013. Figura 20: Fotografia retirada do portfolio de Kai Ziehl. DisponĂ­vel em: <http://www.kaiziehlphotos.com/portfolio/> Acesso em 27/11/2013.

61


9.0 TEXTOS E REFLEXÕES


9.1 TESTEMUNHO: Todas essas folhas tremem assim que os ventos passam. Os olhares,

desatentos,

para

essa

cena

aparentemente

insignificante. Um passo após o outro, e os olhos continuam cerrados a observar as folhas cantantes sem muito entender. O tempo então para, as folhas param e os olhos passam a enxergar. Sem motivo, sem programação, sem abraços ou sorrisos a serem admirados. As folhas verdes esvoaçantes sentem e assistem ao arrependimento, saudade, vontade, tristeza, amor. Em um instante de silêncio em respeito a especificamente este momento, não importa onde esteja, não importa quem seja. Quebrado gradualmente, enquanto os olhos se fecham, enquanto as folhas voltam a tremer assim que os ventos passam.

63


9.2 EXAME:

fazer mal a ninguém, infelizmente não pode fazer nada agora pelo fim iminente. Mas você pode pensar que já refletiu tantas

Quando ele pergunta: - Como é? Bonito isso, de você ser assim. Ainda sorri, no meio do trânsito, da multidão, da correria do dia-a-dia, dos pombos brigando pelo melhor lugar no fio elétrico ou dos LED’s queimados da cabeça do boneco do semáforo de pedestres. Justo você, sendo alguém que vai descobrir inesperadamente um tumor no cérebro inoperável aos trinta e dois. Bem na época que seu filho vai começar a ir pra escola?! - Está com o quê? Vinte e três? Nove anos então e, contando. Logo você, que nunca teve nenhum caso parecido na família e alguma vez pensou de fato nisso e até se sentiu mais seguro e aliviado. Caramba. Você jogou bola quando era pequeno, escovava os dentes corretamente, leu a quantidade de livros que se esperava para alguém com a educação que teve. Não faltou em nenhum aniversário da vó, mesmo que como desculpa para comer aqueles deliciosos docinhos que você achava que ela não sabia que roubava do pote no alto da

coisas sobre esse mundo cruel, que você já foi capaz de pensar de enxergar coisas tão importantes por um mundo mais humano que muito pouca gente pensou, se é que alguém o fez. Mas aí, você não também nunca contou para ninguém não é? E as vezes que tentou, ninguém quis te ouvir... - Você pode pensar que é justamente por ter entendido ou pensado ter entendido todas essas coisas que você foi escolhido, como se uma coisa fosse consequência da outra. Pode pensar que todos os grandes pensadores ou filósofos morreram por causa disso, mas seria só mais um pensamento seu, que especificamente dessa vez não vai adiantar ou adiar seu destino. Injustiça ou não, não adianta perder seu precioso tempo agora pensando nisso... – quando com o descuido do tremor nervoso de suas mãos o rapaz deixa cair o exame. Aquele exame. O outro rapaz, que até agora só ouviu sem entender nada, agora entendia tudo ao fitar o resultado do exame bem no centro da folha. Agachou, recolheu o papel e o devolveu, junto com um

despensa. Você, que fez tudo certo, sempre prezou por nunca 64


abraço de como se fosse uma amizade de infância, separada pelo tempo, pela vida. Depois de soltar o moço indignado, desesperado, perdido, limpou suas lágrimas e continuou a andar, seguindo seu ritmo, seu rumo, seu compasso. E o homem lá ficou. De olhos fechados, a segurar sua sentença. Só.

65


9.3 VEM NA MINHA SOMBRA:

Sem entender muito, e surpreso com o tom hostil que ela disse aquilo, resolvi insistir e repeti calmamente o plano para

No metrô tipicamente lotado de São Paulo, resolvi pôr em prova minhas considerações e reflexões.

desembarcarmos, que a meu ver, não tinha nada de desrespeitoso ou grosseiro.

Próximo à estação Sé, principal estação de transferência

Dessa vez, a senhora parecia ter entendido melhor minha

de linhas e também famosa pela quantidade de pessoas por

brincadeira e completou a conversa com seu sorriso. Depois

metro quadrado, estava eu em pé, próximo, mas não tão próximo

explicou que:

ou próximo o suficiente da porta de desembarque do trem,

- Quando alguém dia que estamos indo na sombra da

quando uma senhora de uns 50 anos de idade vividos no

outra é porque acha que estamos seguindo a pessoa. Ainda mais

endividamento da baixa classe média paulistana me pergunta:

com esse povo mal educado de hoje em dia!

- Mocinho, você vai descer na Sé? E eu respondo, na tentativa de simpática de introduzir e propositalmente romper com o conceito individualista urbano pré-definido:

Concordei e dei uma leve risada para aliviar o clima e tranquiliza-la quando à minha posição, enquanto pensava no que ela disse. As pessoas não esperam essa quebra. Elas apenas seguem

- Vou sim senhora, eu vou abrindo caminho até a porta (o

o fluxo e tardam a entender qualquer atitude fora do padrão, por

trem estava lotado, como era de se esperar) e a senhora vem na

melhor ou mais óbvia que ela seja. E ela talvez esteja certa, as

minha sombra!

pessoas estão de fato mal educadas e têm dificuldade para

Imediatamente veio o contra-ataque:

entender o mundo em volta pelo que ele é naquele momento.

- Eu heim! Como se eu estivesse te seguindo!

Não se pode perder a esperança.

66


Mas talvez o mundo de hoje não permita boa educação. Talvez o mundo de hoje não permita nem a esperança. Talvez eu que esteja sendo mal educado.

67


9.4 SURDEZ URBANA:

– Nossa Julian, eu te vi na rua; aqui do lado, vindo pra cá, mas acho que você não ouviu. Até olhei bem para ver se estava

– Julian!

ouvindo música. Mas não estava.”

Virei aquela esquina, chutei aquele pedaço de cimento solto de um piso velho, cansado, ressecado da calçada que me serviu: “... Os corpos ausentes. Já pensou se alguém me chama na rua e eu não viro para olhar?! Acho que a primeira coisa que ela faria seria olhar bem se eu estava ouvindo música. Mas não estava. Preciso priorizar o meu projeto do quadro. Acho que pode ficar muito bom. É o individualismo, a representação dos corpos ausentes, é uma releitura do croqui original, de uma forma talvez, mais poética. Os fantasmas vazios, as gotas de chuva definindo o desenho e uma só gota interna à silhueta, mas essa não era de chuva. Esta era consequência inevitável do golpe de consciência de se estar só, em meio à multidão. A lágrima solitária, carente, se confundiria com a chuva ao redor e quem sabe também ela reforçaria, de alguma forma, esse contexto. Esse quadro poderia ser o resultado de meus problemas. Resultado de nossos problemas.” – quando já dentro daquela sala que cheirava atraso, uma amiga me diz: 68


9.5 MORADOR:

rachaduras na parede do outro lado da rua formam um desenho engraçado. Depois, todos irão dormir e sonhar. Como qualquer

Depois daquela briga a dois passos exatos da guia da

um.

calçada, assistida, ainda que meio à multidão, pelos ratos sujos e famintos que saíram de algum buraco próximo. Depois que ele encontrar um pedaço grande o suficiente de qualquer alimento para chamar de janta. Depois que ela tentar somente mais cinco vezes entender o que está escrito na placa de Proibido estacionar.

mais

uma

sequencia

será

mentalmente

cronometrada por ele entre as cores do semáforo longínquo o bastante para que só mesmo as cores pudessem ser compreendidas. Depois do próximo arrepio, causado pelo furo que cresceu nos últimos anos daquele tipo de pôster que chama de cobertor. Depois de sentir que seu melhor companheiro já está satisfeito e confortável com seus leves e sensíveis toques atrás da orelha. Depois de tentar uma última vez contar os pequenos minerais que refletem no asfalto úmido e gelado a luz piscante do poste da rua, imaginando serem tão numerosos e mágicos quanto as estrelas de uma noite generosa. Depois que aquela risada profunda e silenciosa sessar ao notar que as 69


9.6 JOÃO

que João nunca foi. Quem sabe o ladrilho trincado do banheiro ou o celular sem bateria de João sabiam qual era a sua expressão

João era um cara que todos achavam engraçado. Alguns detalhes, mais do que outros, o faziam ser assim. As meninas

ao não vê-lo usando o banheiro ou sussurrando palavras que ninguém jamais ouviu.

riam demais quando ele dizia que precisava ir ao banheiro de novo e todo mundo comentava como ele era um cara requisitado. Recebia umas duas ou três ligações a cada hora e era um cara difícil de prender atenção. Todo mundo gostava de contar história para João porque parecia interessado por todas elas, mas interessante mesmo eram as histórias que João contava. Ele sabia conduzir como ninguém e sempre guardava o clímax para o momento certo. Era expressivo e contava mesmo também sobre a importância disso nas pessoas. João não parava, sempre o admirei por ser assim, e pela intensidade que vivia uma vida simples. Alguns detalhes, mais que outros, o faziam ser assim. Mas também, não tinha como ser diferente. João sabia exatamente o momento de fingir precisar ir ao banheiro. João sabia levantar da mesa para atender a um telefonema que nunca tocou. Ele sabia extrair a expectativa das pessoas, sobre alguém 70


9.7 REFLEXÕES: “Eu abro os olhos todos os dias e sinto que algo não está certo... E vou me deitar toda noite achando que provavelmente sou eu.” “Não tenho certeza se sou eu o ser individualista, que trata o meio circundante pelo filtro de meus olhos individualistas e o descreve com minha criatividade individualista baseado num bom senso individualista ou se sou eu uma mera unidade inserida num contexto individualista coletivo e possuo valores e reflexões consequentes e empíricos desse conjunto. De um jeito ou de outro, o individualismo se mostra presente e é sobre ele e sobre seu toque na vida de cada ser compositor deste cenário que pretendo tratar.”

“Dois grandes amigos (e, portanto supõe-se que tenham valores e opiniões em comum) estudam juntos por cinco anos e moram juntos por este período. Porém demonstram absorções diferentes de uma época da vida convivida. O que talvez, e arrisco dizer provavelmente, sirva de incentivo na criação e desenvolvimento de novos valores também compartilhados, muito embora possivelmente contrários.”

71


“As pessoas gostam de fazer amizade ou interagir de uma maneira geral com aquelas que possuem coisas em comum. Mas morar na mesma cidade, no mesmo bairro, rua ou até mesmo residência,

usar

o

mesmo

meio

de

transporte

e

consequentemente compartilhar de seus defeitos e virtudes, ter o mesmo emprego, a mesma opinião política, a mesma opinião sobre o filme da semana, vestir o mesmo estilo de roupas ou ouvir o mesmo tipo de música parecem não ser o bastante.”

“Esse individualismo libera minha mente para criar a história .

que eu quiser. Não tem verdade ou mentira, possível ou impossível. Ninguém sabe, ninguém conta, ninguém descobre, ninguém procura.”

72


Figura 22: Etapa 01 - Expressão artística sobre o individualismo. Autoria própria.

73


Figura 23: Etapa 02 - Expressão artística sobre o individualismo. Autoria própria.

74


Figura 24: Multidão de ninguém. Etapa final - Expressão artística sobre o individualismo. Autoria própria.

75


Figura 25: Croqui de representação idealizado sobre o espaço público de uso comum da grande cidade, adaptado para estímulo de interação social.

76


10.0 BIBLIOGRAFIA


Palestras: - BARROS, Hudson dos Santos. A civilização, a cidade e o indivíduo em a peste de Abert Camus. Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado - UFRJ. Ano não publicado. - RIO, João do. A alma encantadora das ruas, 1908. Rio de Janeiro. - NIETZSCHE, Friedrich. Jenseits von Gut und Böse (Além do Bem e do Mal), 1886. - LAHORGUE, Mário Leal. Cidade: obra e produto, 2002. (UFSC) - SHAFTOE, Henry. Convivial urban spaces – Creating effectie public places, 2008. Londres, Inglaterra. - MARICATO, Erminia. Morte e vida do urbanismo moderno, 2001. Resenha do livro Morte e vida de grandes cidades (JACOBS, Jane. 1961). - JACOBS, Jane. Life and death of great cities (“Morte e vida de grandes cidades”), 1961. EUA. - ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura Nova, 2002. Editora 34.

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- O DESAFIO DO ESPAÇO PÚBLICO NAS CIDADES DO SÉCULO XXI. Texto disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.0 61/453> Acesso em 15/05/2013.

78


- TRÊS QUESTÕES SOBRE O URBANISMO. Texto disponível em:

- VIDA E MORTE DE UM GRANDE LIVRO. Resenha disponível em:

<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.0 05/966)> Acesso em 15/05/2013.

<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/0 1.001/3259> Acesso em 05/05/2013.

- PROJETO DE CONJUNTO HABITACIONAL DE USO DIVERSIFICADO. Apresentação de projeto que reúne praças comunitárias, comércio local e moradias familiares. Projeto de David Baker e parceiros. Disponível em:

- CICLOFAIXAS EM BRASÍLIA. Correio Brasiliense – reportagem. Disponível em:

<http://www.dbarchitect.com/project_detail/148/Station%20C enter.html> Acesso em 28/04/2013.

- CIDADES SUTENTÁVEIS: A VALORIZAÇÃO DO PEDESTRE EM LONDRES. Disponível em: <http://thecityfixbrasil.com/2013/05/31/cidades-saudaveis-avalorizacao-do-pedestre-em-londres/> Acesso em 28/04/2013.

- E SE RUAS E CALÇADAS FOSSEM UMA SÓ? Reportagem disponível em: <http://thecityfixbrasil.com/2013/06/10/e-se-ruas-e-calcadasfossem-uma-so/> Acesso em 03/05/2013.

<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2 013/04/07/interna_cidadesdf,358983/brasilia-implementaciclofaixas-de-lazer-nos-fins-de-semana-e-feriados.shtml> Acesso em 09/05/2013.

- RAÍZES DO CAOS. Texto disponível em: <http://arquiteturaelugar.com/2013/04/22/raizes-do-caos/> Acesso em 11/05/2013

- ESTREIA DA CICLOFAIXA EM BRASÍLIA. Agência Brasil de Comunicação – reportagem. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-04-07/estreiada-ciclofaixa-em-brasilia-divide-opinioes-de-ciclistas> Acesso em 20/05/2013. 79


- UM NOVO MEIO DE TRANSPORTE: A BICILETA. Disponível em:

- KAI ZIEHL. Disponível em:

<http://www.cetsp.com.br/consultas/bicicleta/um-novo-meiode-transporte-a-bicicleta.aspx> Acesso em 25/05/2013.

<http://www.kaiziehlphotos.com/portfolio/> Acesso em 27/11/2013.

- COPENHAGUE – A CIDADE DAS BICICLETAS. Disponível em:

- A MULTIDÃO NÃO É COMPANHIA. Disponível em: <http://macabreza.blogspot.com.br/2011/04/multidao-nao-ecompanhia.html> Acesso em 15/10/2013.

<http://cidadesparapessoas.com.br/2011/06/copenhagen-acidade-das-bicicletas/> Acesso em 25/05/2013.

- TAMANHO E BELEZA NÃO SÃO TUDO. Entrevista com o arquiteto Jan Gehl. Disponível em: <http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cidade/entrevi sta-jan-gehl-urbanizacao-projetar-cidades-melhor-populacao699625.shtml> Acesso em 01/06/2013

- JAN GEHL FALA SOBRE AS CIDADES E ESCALA HUMANA. Entrevista concedida à Revista Arquitetura e Urbanismo (AU). Disponível em: <http://www.revistaau.com.br/arquiteturaurbanismo/215/artigo250160-1.asp> Acesso em: 15/06/2013.

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