discórdias concordantes

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO JULIA FERNANDES POMBO DE BARROS

discórdias concordantes: imagens invertidas na relação entre corpo, sexualidade e melancolia

RIO DE JANEIRO 2013


Agradecimentos

Impossível agradecer genericamente e não mencionar alguns nomes. Assim, deixo aqui registrada a importância dessas pessoas no processo de formação deste trabalho.

Agradeço à minha família – Diana, Fernanda, Joana e Carolina –, por sempre me apoiarem nas experiências de estudo e profissionais, independente de concordarem com as atividades e meios que escolhi desenvolver. Agradeço ao artista Pontogor, por sua colaboração na produção de grande parte dos trabalhos fotográficos e videográficos presentes aqui. Agradeço a Beatriz Lemos, Luísa Nóbrega e Anja Nowak pelas incessantes conversas (ou e-mails) sobre meu trabalho e os temas abordados nesta pesquisa. Agradeço a Juliana Borzino por ter acompanhado de perto o desenvolvimento deste texto, sendo uma interlocutora paciente e muito importante durante o processo de escrita. Agradeço a amigxs como Bruno, Douglas, Fox, Gabriel, Inês, Jô, Joaquim, Juliana, Matheus, Sergio e tantos outros, pelas vivências compartilhadas, teorias e práticas discutidas durante minha estada no mestrado. Agradeço a Luiza, Marisa e Mariana Mello, pelo apoio e compreensão durante boa parte de meu processo de pesquisa. Agradeço às companheiras de turma Ana Luiza Flores e Mayana Redin pelas conversas sobre inseguranças e conquistas dentro do mestrado. Agradeço às pessoas presentes no EncontrADA: corpo, feminismo e tecnologia: livre!, ocorrido em 2012 na nuvem – estação rural de arte e tecnologia, pela ajuda em importantes tomadas de consciência e transformações políticas relacionadas a questões presentes nesta pesquisa e tantas outras. Finalmente, agradeço ao meu orientador Tadeu Capistrano, que desde o início mostrou sensibilidade e compreensão absurdas aos meus trabalhos e pesquisas, motivações e processos.


Resumo

BARROS, Julia Fernandes Pombo de. discórdias concordantes: imagens invertidas na relação entre corpo, sexualidade e melancolia. Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado em Linguagens Visuais)- Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. Em “discórdias concordantes” procuro desenvolver, dentro dos limites de uma dissertação, uma pesquisa sobre a relação entre uma vivência do corpo como matéria, experimentada por ações realizadas para o registro da câmera, e a problematização das normatizações em relação a sexualidade e às categorias de "gênero", através de uma sensibilidade melancólica e sua potência de resistência aliada à imagem.

Se por um lado as práticas corporais são fruto e efeito de processos históricos e discursivos, por outro, o corpo também resiste às pressões que o conformam. A partir dessa relação de forças podemos pensar a melancolia como efeito de uma crise. Tratase de movimentos e imagens que proporcionam a criação de um corpo fragmentado, de intercessões paradoxais de corpos sem "sexo" ou com dois sexos. Tal determinação biológica ainda persiste e a produção da melancolia muitas vezes é associada aos limites dessa condição.

Palavras-chave: corpo, sexualidade, melancolia, imagem.


Abstract

BARROS, Julia Fernandes Pombo de. discórdias concordantes: imagens invertidas na relação entre corpo, sexualidade e melancolia. Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado em Linguagens Visuais)- Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

In "discórdias concordantes" I try to develop, within the limits of a dissertation, a research on the relationship between an experience of the body as matter, lived by actions taken to the record of the camera, and the questioning of norms regarding sexuality and the categories of "gender" through a melancholic sensibility and its power of resistance allied to the image.

If on one side the body practices are the result and effect of historical and discursive processes, on the other, the body also resists to pressures that conforms it. From this relationship of forces we can think melancholy as the effect of a crisis. These are movements and images that provide the creation of a fragmented body, of paradoxical intersections of bodies without "sex" or with both sexes. Such biological determination persists and the production of melancholy is often associated with this condition limits.

Keywords: body, sexuality, melancholia, image.


Lista de ilustração:

As imagens apresentadas que não possuem nome do(a) autor(a) na descrição, foram feitas pela autora desta dissertação.

Série Introspectiva. 2009 ...................................................................................... pag. 05

Lina. Scheynius - Diary Summer. 2011 !!...!............................................!... pag. 06 Gêmeos. 2011 ...................................................................................................... pag. 08

Sem Título. 2009 .................................................................................................. pag. 09

Francesca Woodmam - Space series. 1977 ......................................................... pag. 10

Vazio. 2010 ........................................................................................................... pag. 11

Helena Almeida - Sem Título. 2003 ...................................................................... pag. 12

Ryan McGinley - Christie. 2010 ............................................................................ pag. 13

Violeta Niebla. Self Portrait #6 .............................................................................. pag. 14

descontínuos. 2011 .............................................................................................. pag. 16

Elina Brotherus - Série Movimento. 2007 .............................................................. pag 17

Repetição incessante ou aquela entre cujos membros se define uma relação de ordem. 2011 ...................................................................................................................... pag. 18

Louise Bourgeois - Seven in Bed. 2001 (fotografia de escultura) ........................ pag. 19


Elina Brotherus - Beaucoup. s/d ........................................................................... pag. 22

Elina Brotherus - Model Study 3. 2003 ................................................................. pag. 22

Robert Mapplethorpe - White Gauze. 1984 .......................................................... pag. 25

Stills do vídeo celebrate you. 2011 ....................................................................... pag. 26

Cristina Salgado - Sem Título, série Humanoinumano. 1995 (foto de escultura) . pag. 26

fratura. 2012 ......................................................................................................... pag. 27

ligação extrema #7. 2012 ..................................................................................... pag. 30

Violeta Niebla - Self Portrait .................................................................................. pag. 33

Elina Brotherus - Reflection. 2010 ........................................................................ pag. 34

Yijun Liao (Pixy) - You don't have to be a boy to be my boyfriend. 2010 !...!! pag. 36 Luísa Nóbrega e Deyson Gilbert - Horizontal. 2010 (foto de performance) !..! pag. 38 Antunes, Gabriela. Nuvens. 2007 (fotografias e indumentária) ............................ pag. 40

fotografia feita em colaboração com Anja Nowak, 2012 ........................ pag. 41, 44 e 48

Wolfgang Tilmans - Knotenmutter. 1994 .............................................................. pag. 50

Stills do vídeo Máquina. 2010 (co-autoria de Pontogor) ....................................... pag. 52


Elina Brotherus - Artist and model reflected in a mirror #1. 2007 !!...!!!.. pag. 55 Frontal. 2009 ......................................................................................................... pag. 56

pense em si mesma, mas não se enterre antes do tempo. 2012 !!!!!!! pag. 58 Still do vídeo The body can be magically transformed into something else. 2009 pag. 59

melancolia. 2011 ................................................................................................... pag. 61

ponte-continuidade. 2011-12 ................................................................................ pag. 63

condição. 2011 ..................................................................................................... pag. 65

Francesca Woodmam - Untitled, 1975 – 78 ......................................................... pag. 66

Yijun Liao (Pixy) - How to build a relationship with layered meanings, 2008 ....... pag. 67

a long way together. 2011 .................................................................................... pag. 68


Sumário:

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nota introdutória sobre a escrita: o caos, a (des)continuidade, a autonomia .....................................................................1

1. corpo - permitir que os contornos se alonguem ....................................................4 1.1 - matéria | objeto (o animado e o inanimado, o primeiro mais importante) ...............4 1.2 - o movimento (que jamais limita) ............................................................................13 1.3 - a fragmentação (tudo como um e como vários ao mesmo tempo) .......................19

2. sexualidade - o que diferencia os homens dos outros animais..........................28 2.1 - pulsões incorpóreas manifestadas no corpo .........................................................29 2.2 - a sexualidade e sua extensão visível ....................................................................37

3. imagem e melancolia como lente para ver o mundo............................................53 3.1- uma digressão .......................................................................................................53 3.2- sensibilidade melancólica e imagens invertidas ....................................................60

Referências Bibliográficas ..........................................................................................69

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! nota introdutória sobre a escrita: o caos, a (des)continuidade, a autonomia

esse trabalho foi feito por uma tímida, concentrada e cheia de ordem, com a descontinuidade inquieta da tentativa de usar a linguagem.

durante esse exercício da escrita ao descobrir meus pares para este trabalho, optei por uma utilização das citações que chega perto da apropriação. ao longo do texto, ao mencionar um desses autores incluo seus dizeres em contiguidade com os meus, devido à proximidade que tem com aquilo que escrevo aqui – com as reflexões, pensamentos e vivências articuladas nesta pesquisa. para alcançar maior fluidez na utilização dos fragmentos dos autores em meio aos meus pensamentos fragmentados/descontínuos, destaco-os apenas pelas aspas, sem desloca-los do corpo do texto, porém atribuo os devidos créditos nas notas de rodapé e nas referências bibliográficas. além desse processo, os casos em que as citações sofreram deslocamento da margem e/ou diferença na formatação, aconteceram pela necessidade dar um destaque semelhante àqueles dados às imagens. outra questão importante sobre a formação da escrita desta pesquisa é que não haveria texto sem as imagens, e estas, em muitos casos, funcionam como uma linguagem impossível de ser verbalizada.

*** “Acho até que é um grande esforço às vezes escrever seja lá o que for.”1

“muitas vezes a ideia se materializa no pensar de um outro. (somos todos outros para os outros) somos todos o mesmo, mais unidos do que podemos imaginar. na arte ainda mais, desde o primeiro traço na pedra, continuamos a fazer e a viver as coisas no fazer de outros. ‘fazer as coisas não é difícil, difícil é se colocar no estado de fazê-las’ !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1

BOURGEOIS, Louise. Louise Bourgeois: o retorno do desejo proibido – escritos psicanalíticos.

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! (...) superposição / (‘palimpsesto da memória’) concentrar sobre o fazer que gera imaterialidades (ainda que seja material) (afeto) dimensões de amor e beleza.

arte é o que une vida interior e vida exterior? ‘para ser refeito’ reescrever, continuar, continuar a partir de um outro (...)

(o ideal seria repetir esse processo de escrever e apagar continuamente.) tantas são as palavras-chave e as portas, a questão é encontrar a correspondência. (contornar as facilidades)

a escrita é uma possibilidade de distância e precisão, confronto com a precariedade e o poder da palavra.”2

“Para que a boa questão do corpo venha a ser uma arte da existência, ela deve passar por uma colocação na escrita, efetuada pelo sujeito a propósito de si mesmo; através da escrita ele poderá adquirir sua autonomia e escolher com conhecimento de causa o que é bom e o que é mau para ele.”3

“se não existe escrita que não seja amorosa, não existe imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica.”4

"Pois, por uma sábia economia da natureza, nosso espírito moderno quase pode dispensar a linguagem; as expressões mais comuns bastam, desde que nenhuma expressão basta; por isso, a mais banal conversação é muitas vezes a mais poética, e a mais poética é precisamente a que se não pode anotar. Razão

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GOMES, Fernanda. Notas Inúteis. Gagarin. v. 8 #2. 2007 FOUCAULT, Michel. A História da sexualidade II: o uso dos prazeres. 1984, p. 98 4 KRISTEVA, Julia. Sol Negro – depressão e melancolia, 1989. p. 13

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! pela qual aqui deixamos um grande espaรงo em branco, o que servirรก para indicar que o espaรงo estรก completamente repleto."5

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WOOLF, Virgina. Orlando. 1978, p. 142

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! 1. corpo - permitir que os contornos se alonguem

1.1 matéria | objeto (o animado e o inanimado, o primeiro mais importante)

Falar de corpo é falar de matéria, com massa e forma. Por mais amorfa que a matéria seja e por mais vivo que o corpo seja, o corpo também é matéria6. E se o corpo é matéria, é uma simples (ou complexa) porção de massa corpórea contida em determinada forma. Ele tenta existir independente de qualquer classificação que possa ser dada a essa forma, pois, como matéria, não precisa ser classificado. A matéria simplesmente tenta sobreviver com toda a atividade e/ou inatividade que lhe é sugerida ou demandada. Podendo, assim, ter massas e formas variadas.

Com ações desse corpo é possível testar potências de intensidades através de matérias de expressão, e assumir as variadas formas que podem surgir, o que se concretiza, aqui, através de imagens. As ações feitas para a captura da câmera são um ponto de partida para pensar e questionar o lugar do corpo, suas materialidades e subjetividades. As imagens resultantes dessas ações estão longe de serem a conclusão desse processo, elas são a exteriorização e uma maneira de dialogar com tantas outras reflexões sobre o corpo.

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Abordamos matéria em primeiro lugar, como princípio fundamental de que procedem todos os seres do mundo físico, qualquer substancia sólida, líquida ou gasosa que ocupa lugar no espaço. E esse lugar ocupado no espaço se dá através de certa quantidade e volume – massa –, contidos em certa estrutura – forma. Então, do ponto de vista físico, temos a massa – a composição com quantidade e volume, e temos a forma – a estrutura, o plano de composição, os limites. Assim, pensar no corpo como matéria, a partir disso, é colocá-lo em um estado de substancia física – “O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações.” (G. Deleuze, F. Gattari, Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3, 1996, p.12). Porém, também pensamos nesse “corpo sem órgãos” com as intensidades que dependem de “matérias de expressão” para se exteriorizarem, porque as “intensidades em si mesmas não tem forma nem substancia, a não ser através de sua efetuação em certas matérias cujo resultado é uma máscara.” (S. Rolnik, Cartografia Sentimental – transformações contemporâneas do desejo, 1989, p. 31). Temos, então, o copo como essa matéria de expressão na qual se exteriorizam as intensidades, assumindo diferentes máscaras (formas) nesse movimento de devir que é a existência.

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Série Introspectiva, 2009

Por que não se assumir como matéria?

Em primeiro lugar, trata-se de um tipo de renúncia, uma autonomia para se renunciar e esvaziar das significâncias e subjetivações, “com efeito, (meu corpo) é a possibilidade para minha existência de demitir-se de si mesma, de fazer-se anônima e passiva”7. O que não implica em inatividade, a matéria continua a fazer esforço no complexo trânsito entre as intensidades que se materializam em formas mais definidas ou mais ‘abstratas’, “justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação.”8

É difícil ultrapassar suas próprias barreiras. O corpo pode ter limites duros e resistentes e seguir com a teimosia de se manter contido, ou até fechado, como uma tentativa de se proteger, pois assumir essa possibilidade de ser matéria em variadas formas é se expor, correr riscos, estar sempre em transição. Um movimento de batalha para desproteger-se e deixar cair as barreiras para fazer do corpo uma matéria indefinida.

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MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 1999. p. 227 ibidem. p. 228

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Lina Scheynius – Diary Summer, 2011

“Uma forma pode tornar-se informe sem por isso virar outra forma encontrar

sentido no não sentido ordem na desordem prazer no desprazer, harmonia no sofrimento.”9

Mudando sua composição, seu estado e seu posicionamento no mundo: um corpo que se permite assumir posições porque é matéria antes de qualquer significação que lhe é dada. Aquilo que toca direta ou indiretamente sua condição de existência torna-se algo mutável, dentre elas a sexualidade – como algo em trânsito nesse corpo: nas imagens, ao anular ou sobrepor as diferenças entre corpo feminino e masculino, entre corpo humano e objetos inanimados, ou quando um movimentar do corpo gera incertezas quanto a classificações, busco desapegar-me das marcas instituídas a priori para toda e qualquer pessoa: as !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 9

BOURGEOIS, L.: op. cit., p. 111 e 123

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! marcas identitárias de “gênero”. Na tentativa de problematizar essas marcas, antes, reconheço as diferenças de gênero de forma tão sofrida que preciso eliminá-las. Repensar a sexualidade e o sexo no corpo, sem deixar a sensualidade, que diz respeito ao material: sensualidade como: amor aos prazeres materiais ou sensual que é definido pelo dicionário como: “respeitante aos sentidos”.

Ativar o “corpo vibrátil” que tem acesso às camadas invisíveis da existência – “(...) teu corpo vibrátil, aquele que alcança o invisível. corpo sensível aos efeitos dos encontros dos corpos e suas reações: atração e repulsa, afetos, simulação em matérias de expressão.”10 Percebendo que aquilo que se refere ao corpo não pertence, necessariamente, à sua materialidade – a sexualidade é uma questão que se constitui através de suas construções histórico-sociais. Buscando, então, se relacionar com a sexualidade de acordo com a vontade (camadas invisíveis), em um movimento que permite ao corpo não se limitar às suas condições anatômicas, nem tão pouco a suas construções históricas. Movimentando-se nas camadas invisíveis é possível entender como querer usar o corpo em suas manifestações na existência [reconstituir mundos a partir de vestígios – através de atuações sutis (re)estabelecer relações outras na vida].

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ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental – transformações contemporâneas do desejo. 1989, p. 26

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Gêmeos, 2011

A matéria pode ser qualquer coisa. Assim, o sentido do corpo pode mudar tanto quanto o sentido de um objeto, conseqüentemente poderia não ser necessária a submissão a categorias que produzem divisões binárias. Então, posso afirmar as potências do meu corpo e construir novas condições para minha existência. Experimentar formas de vida que não coloquem o “sexo” como pressão de estruturas de poder/saber.

O oculto também profere discursos.

Com imagens que usam o corpo como matéria construo nenhum sexo no corpo, porém não nego a sexualidade, questiono-a em suas relações e na pressão que sofre pelos “gêneros”. Assumindo essas duas partes indissociáveis – a matéria física e a matéria de expressão – o corpo se posiciona no mundo procurando outras maneiras de se relacionar com aquilo que perpassa sua existência. Estar nu diz respeito à

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! materialidade da pele, ao volume e à forma, que só essa superfície exposta pode revelar, se opondo ao estado fechado. “É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se a si mesmo.”11 A sensibilidade da introspecção, por exemplo, se expressa numa reorganização da estrutura do corpo, e aquilo que está à mostra se refere a algo da camada invisível. Um depositar-se no espaço quase que inexpressivamente, mas ainda dialogando com ele, porque cada forma que a matéria assume é importante para seu descobrimento e sua vivência neste espaço/mundo.

Sem Título, 2009

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BATAILLE, Georges. O erotismo. 1987. p. 17

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Francesca Woodmam – Space Series, 1977

Muitas vezes ocultar a nudez possibilita deixar ainda mais à mostra questões que passam pelo corpo, aquilo que cobre a materialidade da pele cobre a anatomia do sexo. Embolar e confundir isso é permitir uma atuação do corpo que não se restringe às questões de sua fisiologia – é o visível chamando o invisível através de um agir no mundo com variações de movimento, sem se condicionar. Nesses devires, a sexualidade não fica estagnada ao estado (forma) primeiro do corpo e ao peso (significações) que ele carrega socialmente. É esse transito que permite a experiência do corpo como algo para além de seus estereótipos, vagando com mantas como sombra (imaterial), ou despido como carne (material).

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Vazio, 2010

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Helena Almeida – Sem Título, 2003

São movimentos que produzem uma pausa. Para introduzir visualidades de retorcimento do corpo, por uma nova composição da existência, opera-se “uma desordem elementar, de uma coisa cuja essência é uma mudança inquieta.”12

Essa mudança inquieta está visível nos movimentos desse corpo, e cria o espaço assim como é criado por ele. Manter o corpo em movimento gera um prolongamento de si no mundo, proporcionando trocas com o ambiente – corpo espaço / espaço do corpo – e não um simples “corpo-depósito”.

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Ibidem. p. 13

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! 1.2 o movimento (que jamais limita)

A linguagem, mais precisamente a fala, é um instrumento do corpo que expele. Mas essa voz cheia de signos carregados de sentidos não é suficiente para exprimir a carga que o corpo carrega, a carga que vem do invisível, emergindo para o corpo carregar. Debater-se, mover-se – reposicionar-se é refletir a condição mutável, de forma individual e com aquilo que está em volta. Movimentos que permitem uma pausa “para liberar a existência dessa existência que a limita, mas também para conduzi-la aos limites que essa existência limitada apaga”13. O corpo percorre essa linha tênue do limite, transita por vários caminhos, vai ocupando diferentes espaços, lugares, estados e experimentando certezas invertidas. A posição de um braço já pode ser uma experiência desse movimento, a simples reposição ou recomposição de uma pequena parte do corpo já o coloca em trânsito – vivências sutis do cotidiano, registro marcado na imagem.

Ryan McGinley – Christie, 2010

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FOUCAULT, Michel. Prefácio à transgressão. In: _____. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. p. 31

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! Neste processo, aquilo que é visível (carne, pele, pelos, massa, formas) “diz” o invisível (vontade, força, resistência, instinto, “travas”, dor). Assim, o corpo se move e move tudo a sua volta. A dança é inevitável: a dança da mudança inquieta, do prazer e da dor. Prazer da materialidade do corpo, e de expelir através dele a sexualidade / uma sensualidade singular. Mas a dor de viver no conflito entre essa materialidade (o visível limitado por suas condições anatômicas e todo o discurso biologizante) e essa vontade (o invisível buscando transgredir limitações).

Essa dança é a passagem dessa dor vivida no “espaço interior”, que, não encontrando mais espaço, se extrapola no movimento, se revirando, se revertendo, e alcançando o prazer de viver no limite, nas “desconstruções”, no desapego de discursos normatizantes. “Para que a dança – (...) – comece, é necessário que já não haja espaço interior disponível para o movimento; é necessário que o espaço interior despose tão estreitamente o espaço exterior que o movimento visto de fora coincida com o movimento vivido ou visto do interior.”14

Violeta Niebla – Self Portrait #06

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GIL, José, O corpo paradoxal. In: ______. Movimento Total - O corpo e a dança. p. 49

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! “Pensar que uma coisa é, mas ao mesmo tempo não é, ou que ela pode num mesmo tempo ser o que ela é e outra coisa.”15

O corpo experimentado como um personagem múltiplo: suas expressividades são mutantes a ponto de se tornar irreconhecível enquanto qualquer classificação anatômica de gênero. O movimento reconfigura o corpo e muda estruturas de pensamento: “existem momentos na vida onde a questão de saber se é possível

pensar diferentemente do que se pensa, e perceber

diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.”16 Movimentos são, por parte do indivíduo, uma prática refletida de si mesmo e de seu corpo. Vivemos sob estruturas e discursos constituídos, como uma regra encarnada, ficamos submetidos a certas restrições em comum. Mas nenhuma lei aplicável a todos de uma mesma maneira e em todas as circunstâncias poderá dar conta da descontinuidade, das discórdias, das inquietações que compõem a existência tanto em termos de alteridade como de coletividade.

Assim, o movimentar do corpo possibilita uma dissolução das

formas constituídas – a dissolução dessas formas de normatização da vida que impõem sua ordem, ou “biopolitica”.

Pensar esses movimentos em uma análise da proveniência, segundo Foucault, permite descobrir marcas sutis que se entrecruzam e formam redes embaraçadas: “a pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo.”17 A atividade múltipla desse corpo é experimentada em vivências com as imagens, e estendida para o contexto no qual se encontram, ambos, corpo e imagem, “pensado[s] como um conjunto de falhas, de fissuras, de camadas heterogêneas que a tornam instável (...)”18. Faz-se necessário o movimento para !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 15

BATAILLE, G. Op.cit., p. 42 FOUCAULT, Michel, A História da sexualidade II: o uso dos prazeres. 1984, p. 13 17 FOUCAULT, Michel Microfisica do Poder. 1979, p. 21 18 Ibidem.

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! enxergar o quanto estamos percorrendo solos instáveis, percebendo que padrões externos não dão conta da complexidade de intensidades que transitam no corpo: despertar vontades, abrir olhares, vivenciar possibilidades. Percebo as marcas que a anatomia e a história gravam no corpo, e, com as imagens, tornoas visíveis sem me submeter a elas. Aqui a proveniência diz respeito ao corpo – “o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo.”19

descontínuos, 2011

Movimentos contraditórios do corpo para os mudismos da existência adquirirem voz, vivenciando a heterogeneidade e não se deixando calar ou arruinar pela homogeneidade da ordem que se impõe mesmo que sutilmente. São muitas possibilidades tentando emergir nesse antagonismo de si para consigo. Questionamos definições, categorias e posições para que a potência ativa do corpo não seja depreciada por uma potência reativa.

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Ibidem. p. 22

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Elina Brotherus – Série Movimento, 2007

Pensando o corpo como matéria sensível, desprendendo-se das características que, a princípio, o prendem a uma condição, as questões da sexualidade adquirem novos gritos: como habitar em um corpo dois gêneros, dois sexos? Ou como não habitar em dois corpos nenhum gênero, nenhum sexo?

Poderia ser preciso empreender um deslocamento a fim de analisar o que é designado como “identidade” da sexualidade, pesquisando quais são as formas e as modalidades das “praticas de si” através das quais o indivíduo constitui e reconhece sua sexualidade nessa separação de “gêneros”.

Os corpos são condicionados para sentirem, se comportarem e se manifestarem de acordo com uma estrutura binária baseada na diferença anatômica dos sexos. Mantê-los em constante movimento abre a tentativa de não definir um campo de conduta e um domínio de regras válidas – segundo as modulações necessárias – para os dois sexos, tal como afirma Bataille: “a posição em que me coloco permite perceber a coordenação dessas possibilidades opostas. Não tento reduzi-las umas às outras, mas esforço-me para apreender, para lá de

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! cada possibilidade negadora entre elas, uma última possibilidade de convergência.”20 Não se trata, portanto, de eliminar características, mas de não se condicionar às características – convergências experimentadas nas fragmentações.

Repetição incessante ou aquela entre cujos membros se define uma relação de ordem, 2011

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BATAILLE, G. Op. cit., p. 7

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! 1.3 a fragmentação (tudo como um e como vários ao mesmo tempo)

As diversas posições que os movimentos do corpo proporcionam se tornam peças que contestam o que é o inteiro, esse todo que é nada, por ser muitos ao mesmo tempo. Pontos de vista múltiplos, pertinentes entre si, mas, também, inarticuláveis. Essas peças são re-encaixadas, por mais inarticuláveis em um corpo, tornam-se articuláveis com outros corpos. Uma fragmentação dos corpos, que é feita para uma posterior junção em novas perspectivas. Dilacerar para reconstruir em fusão com outros, em uma simbiose que pode formar todos ou nenhum em um mesmo corpo.

Louise Bourgeois – Seven in Bed, 2001

Cabe pontuar brevemente o contexto histórico e manifestações artistas que trataram da fragmentação do corpo, que vem a ser considerada por muitos autores, como Eliane Robert Moraes, uma característica do modernismo, sendo percebida desde o final do século XIX. Essa época foi marcada por fortes tentativas de classificações e gerenciamentos de ordem nos estudos sobre o

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! corpo, a sexualidade, a saúde, a família, o trabalho, etc. O que gerou nos artistas e intelectuais movimentos de questionamento e recusa dessas ordens disciplinares. Ao mesmo tempo, a sociedade trilhava cada vez mais rápido o caminho de uma vivência fragmentada, de uma percepção múltipla, capaz de dar conta de tantas transformações socioculturais relacionadas a exigências da produção industrial capitalista.

Dentro disso destacam-se dois momentos diferentes em relação às atividades dos artistas, diretamente relacionados ao período de guerras mundiais. Primeiro existiu uma certa positividade com o caráter de destruição da guerra, uma assimilação da destruição como ato criador, um espírito de esperança que acreditava que dessa destruição proveniente da guerra surgiria a “experiência ousada da consciência e das formas de expressão que anunciavam o novo”.

Após o final da guerra, a violência e suas imagens de destruição e decomposição geraram uma consciência da situação de crise que foi engendrada em toda Europa e ao redor do mundo, sendo assim, devido a essa consciência, foi intensificada a obsessão com o espírito novo (não mais pelo entusiasmo e inquietação iniciais).

Como destaca Eliane Robert Moraes, em seu livro O corpo impossível: “Fragmentar, decompor, dispersar: o vocabulário que define a postura modernista é exatamente o mesmo que serve para designar a ideia de caos, supondo a desintegração de uma ordem existente, e implicando igualmente as noções de desprendimento e de desligamento de um todo. (...) À fragmentação da consciência correspondeu imediata fragmentação do corpo humano.”

Assim, de artistas surrealistas, como Hans Bellmer e Man Ray, a autores como Artaud e Bataille, a fragmentação passa de experiências com a linguagem, a jogos com a hierarquia, a invenção e a funcionalidade não só do corpo como também dos objetos.

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! Aqui, procuro experimentar as potências do corpo como matéria vibrátil, para além de suas organizações, assimilando estudos sobre o “corpo sem órgãos” e o “erotismo”, colocando esses pensamentos em diálogo com outros autores como Michel Foucault, José Gil, Deleuze e Guatari, trabalhando com as imagens em um constante exercício daquilo que existe potencialmente em relação ao corpo, principalmente quanto à sexualidade. Pensando, assim, em “heterotopias” no corpo, trazendo um conceito de Foucault sobre nossas vivências em relação a espaços paradoxais para refletir os diferentes posicionamentos que podemos experimentar com/no corpo. Pois as heterotopias permitem “suspender, neutralizar ou inverter o conjunto de relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou pesadas.”21 Com o corpo, então, torna-se possível agir através de nossas virtualidades, nossas dissonâncias, gerando mal estar, abalando

nosso

“espaço

interno”,

problematizando

suas

relações.

As

heterotopias possibilitam a vivência de vários espaços em um mesmo lugar – várias (ou nenhuma) sexualidades em um mesmo corpo. Através de gestos essa relação permite aberturas e fechamentos, simultaneidade de isolamento e penetração – movimentos constantes dos corpos que não querem eliminar suas diferenças, mas, não se sujeitam à estados fixos e repetições. São espaços de imagens, cujas visualidades rompem a noção ordinária de espacialidade e abalam a relação binária dos corpos.

Existir nesses vários lugares “externos” e “internos” – na “abertura do mundo” e no “recolhimento da singularidade”. Num movimento de troca com ‘o outro’ simultâneo à afirmação da vontade.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 21

FOUCAULT, M. Outros Espaços. In: _____. Estética: Literatura e Pintura, Musica e Cinema. 1994, p. 414

!

21


!

Elina Brotherus – Beaucoup, s/d

Model Study 3, 2003

A fragmentação não se dá com uma dissecação violenta, porque o corpo precisa estar no limite – na linha tênue onde de um lado estão os sistemas aos quais quer-se opor, e de outro o plano de liberação. Praticar a “prudência”22 com ações micropolíticas, que proporcionam a eficácia para os planos de fuga: através do limite como prudência chegar ao conhecimento sobre estratégias de resistência que, de fato, proporcionem uma liberação. Pois as tentativas bruscas de rompimentos a sistemas podem guiar a um dilaceramento, eliminando as possibilidades de escape e instituindo o completo abandono. Propõem-se estar no limite, transitando nas diferenças – o corpo fluindo energias, transmitindo sutilezas de parte para parte, de um corpo para o outro. A imagem como ferramenta de visão dessas sutilezas – imagem que não cega, mas estimula o olhar. E nessas imagens tudo é fragmentado, proporcionando um repensamento sobre cada corpo que as compõe.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 22

Conceito usado por Deleuze e Guattari em Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 3, 1996 que será melhor destrinchado no próximo capítulo do presente texto.

!

22


! Fragmentar-se é importante para não se congelar em uma só forma, para não engolir padrões externos a si, padrões homogeneizantes. “desarticulação (ou as n articulações) experimentação (nada de significante, não interprete nunca!) nomadismo (inclusive no mesmo lugar, ande, não pare de andar, viagem imóvel, dessubjetivação.)”23

Produzir uma imagem do corpo que não se preocupa em representá-lo por completo – nunca há como representá-lo em sua totalidade – caracteriza-se por não se preocupar com a representação, mas com a exposição. Uma criação de imagens que não diz respeito à representação, pois representação implica na crença em um modelo. Aqui, busco linhas de fuga a modelos rígidos, e estabeleço relações com o corpo que fluam em suas diversas dinâmicas de parte a parte, em um fluxo que passe de mim para o outro.

“Dar-se as mãos quando se dança é oferecer-se a si e ao outro o prazer da solidão quebrada por um momento na comunicação de dois corpos que, em princípio,

deveriam se completar sempre, o cheio e o vazio, janela aberta,

convite ao debruçar-se.”24 Somos seres fragmentados, segmentários. Permitirse, então, vivenciar cada parte, sem buscar uma totalidade, mas se concentrando nessas experiências particulares: “como um rebanho perseguido por um pastor infinito, a carneirada que somos fugiria, fugiria sem fim o horror de uma redução do ser à sua totalidade.”25

Uma busca por fragmentar o corpo porque é pesado carregá-lo por inteiro, e assim, seguir percebendo um pedaço de si e um pedaço do outro: sempre se vivencia o outro fragmentado, porque o outro nunca se dá por inteiro, e nunca nos damos por inteiro ao outro. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 23

Ibidem. p. 21

24

CLARK, Lygia, “Breviário sobre o corpo”. Revista Arte & Ensaios nº 16. 2008. p. 115 Bataille, 1954, apud FOUCAULT, Michel. Prefácio à transgressão. In: ____. Estética: Literatura e Pintura, Musica e Cinema. p. 39

25

!

23


! Essa fragmentação que supostamente separa, procura ser alcançada para que o corpo assuma novas maneiras de aparição, novas formas de composição, que começam em experiências de si para consigo e que, nos constantes questionamentos, se estendem para o outro: “trata-se de criar um corpo sem órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que não haja mais nem eu nem o outro, isto não em nome de uma generalidade mais alta, de uma maior extensão, mas em virtude de singularidades que não podem mais ser consideradas pessoais, intensidades que não se pode mais chamar de extensivas."26!

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 26

DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. vol. 3. 1996. p. 17

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24


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! Robert Mapplethorpe – White Gauze, 1984

Dividir-se e se juntar com o outro, dilacerar-se e se fundir com o outro não é formar uma igualdade cega, não é esquecer as diferenças. É, justamente, tentar vivenciar potências que são fontes de convergências dessas duas diferenças. O corpo aqui não é um instrumento de contenção, mas canal de extensão.

Diferenças que são notadas de outras formas, a partir de um pensamento de convergência que precisam de cuidado para serem percebidas, e essa acuidade é o ponto inicial de re-pensamentos sobre meu corpo, minha condição, minhas vontades, minhas possibilidades e minhas capacidades de transgressão. Nesses

!

25


! gestos de fragmentação e fusão, as partes ainda são diferentes – elas precisam ser – mas a maneira como vou explorar e usar minhas partes encontram novas perspectivas.

Stills do vídeo celebrate you, 2011

O corpo como um canal em trânsito, estabelecendo fluxos e rupturas. Essa busca pelas convergências vem em um movimento de contestação que, justamente, não é o apontamento de contradições, que não se esforça para negar existências, mas um gesto que reconduz cada corpo aos seus limites. Pensar

nesses

limites

possibilita

uma

“desaparição”

das

cargas

de

categorização e normatização: o “corpo sem órgãos”, desorganizado, através de uma vivência da sexualidade como fissura, surgindo na marca dos limites como absoluto limite de si. Assumindo, no movimento, a fragmentação e a dispersão, que formam nas imagens esse confuso emaranhado de diferentes partes.

Cristina Salgado – Sem título, série Humanoinumano, 1995

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26


!

fratura, 2012

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27


! 2. sexualidade - o que diferencia os homens dos outros animais

Até aqui falamos sobre a possibilidade de encarar o corpo como matéria física, que independe das significações e subjetivações, e, como matérias de expressão, que são resultados da exteriorização de intensidades. Corpo que se propõe movimentos constantes e uma vivência em fluxos ao invés de uma segurança em estados rígidos, gerando fragmentações e integrações com outros corpos. Para tal, utilizamos a imagem como ferramenta de exposição desse corpo e uma lente para a visão das sutilezas que nele transitam.

Agora, refletiremos sobre a sexualidade em suas duas indissociáveis formas de expressão: como pulsão incorpórea e como dispositivo de saber-poder. A pulsão incorpórea é aquilo de invisível referente à sexualidade, uma força não classificável e não generalizada, que se manifesta quando ativamos a percepção sensível capaz de acessar o que está além daquilo que o olho físico pode captar quando ocorre produção de desejo, como um corpo que pode tocar o invisível (“corpo vibrátil”). E o desejo é entendido aqui como produção de intensidades e sentidos que surgem através de encontros aleatórios e agenciamentos dos corpos vibráteis. O dispositivo de saber-poder é a extensão visível da sexualidade, gerado e formado nas relações construídas dentro do contexto histórico-social. Como ordem discursiva na sociedade, ele direciona caminhos de existência tanto quanto é direcionado por seus agentes.

Assim, discutiremos sobre as manifestações das pulsões incorpóreas no corpo como matéria, em práticas para desconstruir valores normativos quanto às noções de sexo e gênero. Práticas que passam pelos movimentos de deslocamento

(“territorializações-desterritorializações”)

assimilados

e/ou

produzidos para possibilitar as vivências das potências criativas do desejo, sempre articuladas com as relações de poder-saber engendradas nesse devir da existência contemporânea.

!

28


! 2.1 pulsões incorpóreas manifestadas no corpo

Problematizar a sexualidade, antes de questionar o corpo (sexo) ou resistir a um sistema classificatório (gênero), é refletir sobre pulsões incorpóreas que nos posicionam em desequilíbrio: é o próprio ser se colocando em questão, onde “a experiência interior do homem é dada no instante em que, (...), ele tem consciência de se rasgar e si mesmo e não a resistência colocada de fora.”27

A sexualidade é aquilo de invisível, e muitas vezes indizível, que direciona vontades, desejos, fluxos e produções de afetos particulares à humanidade, e que, por isso, corre o risco constante de ser fixada em noções de organização, significação e subjetivação que são rígidas e normatizadas para todos. Podemos ter a percepção sensível de nossos “corpos vibráteis” para ativar “planos de fuga” nesse constante trânsito em que vivemos. Desfazer-se de “estratos”28 sociais que enrijecem formando uma espécie de cristalização existencial, e perceber/realizar os movimentos sutis que geram fissuras - “[a sexualidade] é antes fissura: não em torno de nós para nos isolar ou nos designar, mas para marcar o limite em nós e nos delinear a nós mesmos como limite.”29

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 27

BATAILLE, Georges. O erotismo. 1987. p. 36 No texto Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 3, quando Deleuze e Guatarri falam do corpo sem órgão, expõem a noção dos três estratos: “Consideremos os três grandes estratos relacionados a nós, quer dizer, aqueles que nos amarram mais diretamente: o organismo, a significância e a subjetivação. A superfície de organismo, o ângulo de significância e de interpretação, o ponto de subjetivação ou de sujeição. Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo — senão você será um depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado — senão será desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado — senão você será apenas um vagabundo.” 29 FOUCAULT, M. Estética: Literatura e Pintura, Musica e Cinema, Prefácio à Transgressão. 1994. p. 29 28

!

29


!

ligação extrema #7, 2012

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30


! A partir da vivência da sexualidade como fissura, como esse limite de nós mesmos, podemos estar na fronteira, caminhar em uma linha tênue, e, assim refletir/experimentar o sentido de desaparecimento desse sujeito classificado pelo gênero através de seu sexo – mulher/homem. Em movimentos constantes de desassubjetivação, dessignificação e desorganização, refletindo sobre a produção de desejo e sobre o uso do corpo, pode-se escolher aquilo que será uma economia justa para as experiências com a sexualidade, e isso não poderá ser igual para todas as pessoas. Vivenciando a sexualidade como pulsões incorpóreas, deixando emergir sua invisibilidade na dispersão que nos possibilita ser muitos, estaremos não só atentos para as desterritorializações que sucedem o tempo todo a nossa volta, mas as proporcionaremos, fazendo da consciência um meio de exploração, do inconsciente uma verdadeira produção de desejo e do corpo um canal para essas intensidades.

Cada produção de afeto procura conquistar um espaço para se exercer, um “território”, com direções para sua apresentação (gestos, jeitos, trejeitos, comportamentos, etc). Os territórios são planos consistentes em que o desejo e/ou afeto encontra um lugar estável para atuar, e o corpo se restringe a uma zona de conforto que são eficazes dentro dessa inteligibilidade. Porém, quando passamos por novos encontros são geradas outras produções de desejo/afeto que precisarão de um novo território para atuar e, consequentemente, de nova matéria de expressão. Quando mantemos nossos corpos vibráteis atentos para perceber esse ciclo das pulsões incorpóreas, abrimos espaço para as desterritorializações: as desterritorializações são os movimentos necessários que provocam as mudanças de territórios para as produções de afeto/desejo exercerem seu potencial criativo em quantas e quais matérias de expressão forem necessárias.

***

!

31


! Pausa

Uma breve pausa para colocar o quanto pode ser complexo falar em sexualidade como pulsões incorpóreas, justamente por estarem acessíveis somente à sensibilidade dos corpos vibráteis e serem algo particular de cada um. Que práticas estabelecer para se construir uma relação fértil com as produções de desejo e as desterritorializações é uma questão de si para consigo. Neste trabalho procuro colocar a prática de construção de imagens usando o corpo como um ponto de partida para essa relação com os territórios gerados pelas produções do desejo e pelas possíveis desterritorializações que posso ativar para não enrijecer minhas pulsões incorpóreas em modelos normativos. Uma prática que vejo extrapolar as bordas da produção artística para alcançar potências em vivências diárias, em “problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado”30. Vida que busca ser criativa em sua “estética da existência”: “práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.”31

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 30

FOUCAULT, M. Op. cit. 1984. p. 15! idem. p. 15. (grifo meu). O autor sinaliza essa estética da existência e as “técnicas de si” como parte dos estudos da problematização e comportamento sexual na Antiguidade, que aborda nesse volume da História da sexualidade, e reforça o quanto elas perderam uma parte de sua importância e autonomia quando o cristianismo as integrou no exercício de um poder pastoral e em práticas de tipo educativo, médico ou psicológico.

31

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32


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Violeta Niebla – Self Portrait, s/d

***

Quando nos desfazemos dos estratos da organização (corpo e sexo organizados em um organismo – masculino ou feminino), significação (interpretação do sexo como gênero – homem ou mulher) e subjetivação (o sujeito sexualizado de acordo com seu gênero – heterossexualidade), criamos outras possibilidades de vivências, a começar pelas práticas corporais abrindo espaço para questionar classificações binárias, e deixar fluir as intensidades das pulsões incorpóreas nas matérias de expressão conforme se fizer necessário: “aquele teu outro olho, o respiradouro para o invisível, sabe que tal composição é efeito de uma série de imperceptíveis processos de simulação que se puseram a funcionar, ao mesmo tempo e sucessivamente.”32 Para que “pouco a pouco, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 32

ROLNIK, S. Op. cit., p. 27

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33


! uma nova máscara, uma série de novas máscaras, possam ir se delineando em seu corpo, de modo a compor um plano de consistência para seus afetos.”33

Elina Brotherus – Reflection, 2010

Os processos de simulação que geram novas máscaras não têm nenhuma relação com falsidade ou disfarces que escondem um suposto real, porque tal real não existe no sentido de autêntico e originário. A noção de que temos um interior autêntico para mostrar ao mundo é mais um estrato de subjetivação que enrijece em uma forma fixa e numa busca que nunca terá fim, pois nossos desejos/afetos estão em constantes mudanças de acordo com as potências dos encontros que estabelecemos e as intensidades neles geradas. Assim, experimentar as pulsões incorpóreas, em suas diversas virtualidades, se movimentando, se rasgando, e se transformando possibilita compor planos de consistência para os afetos/desejos em territorializações e desterritorializações, ao invés de “gorar”34 em um território de uma suposta verdade pré-estabelecida. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 33

idem. p. 30 Termo usado por Suely Rolnik em Cartografia sentimental: a insistência em permanecer no mesmo território quando as possibilidades de experimentar criativamente o desejo gerado neste encontro já não são produtivas, nos faz gorar, malograr, frustrar esta vivencia. E também impede a passagem de novos desejos produzidos em novos encontros. Ficamos no limbo. 34

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34


! “E aqui pareceria, por certa ambigüidade das suas expressões, que censurava igualmente ambos os sexos, como se não pertencesse a nenhum; e, na verdade, naquele momento vacilava; era homem; era mulher; conhecia os segredos, compartilhava das fraquezas de cada um. Era um estado mental desorientador e atordoante. (...) Não é para admirar que confrontasse os sexos entre si, e alternativamente achasse cada um repleto das mais deploráveis misérias e não soubesse, com segurança, a qual pertencia – (...)”35

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 35

WOOLF, V. Op. cit., p. 88!

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35


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Yijun Liao (Pixy) - You don't have to be a boy to be my boyfriend – série Experimental Relationships, 2010

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36


! 2.2 a sexualidade e sua extensão visível

Após ativarmos nossos corpos vibráteis abrindo a sensibilidade para a passagem das pulsões incorpóreas expostas como matérias de expressão no corpo (o visível), percebendo e gerando desterritorializações, vivenciando as potências dos encontros através das virtualidades, saímos do aspecto da constituição de si, e adentramos na “relação ao real em que se efetua, e uma relação ao código a que se refere”36 – a sexualidade também faz parte de uma ordem discursiva “de um sistema prescritivo que é explícita ou implicitamente dado em sua cultura”37. Pois somos construídos pelo em torno tanto quanto o construímos: “não existe um sujeito fora das relações de poder que estabelece com os outros sujeitos”38. A esfera visível da sexualidade “é um dispositivo de saber-poder: um mecanismo complexo de leis, regras e convenções linguísticas, religiosas, morais, científicas e jurídicas que se aplicam ao indivíduo, condicionando seus relacionamentos com os outros e consigo mesmo.”39 Por isso, cabe aqui pensarmos sobre as construções histórico-sociais em torno das políticas identitárias de sexo, gênero e sexualidade. Quando questionamos as lógicas binárias normativas podemos produzir diferenças nas vivências particulares e coletivas.

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FOUCAULT, M. Op. cit., 1984. p. 26! idem. p. 26 38 BERNINI, Lorenzo. Macho e fêmea Deus os criou? A sabotagem transmodernista do sistema binário sexual. 2011. p. 37! 39 idem. p. 23. Bernini aqui comenta a noção de Foulcault sobre sexualidade como dispositivo de saber-poder. 37

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37


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Luísa Nóbrega e Deyson Gilbert – Horizontal, 2010. (foto de performance)

Não pretendo traçar a história desses dispositivos de sexo, gênero e sexualidade, e os discursos construídos a respeito deles. Este trabalho trata de relacionar questões desta história, já traçada por grandes autores, com as práticas geradas a partir da criação de imagens com o corpo: usando a fotografia e o vídeo registro ações experimentais, explorando gestos, movimentos e limites que o corpo pode alcançar, e, em muitos casos, que dois corpos podem alcançar em uma cooperação de força, em relações de similaridade, em intercessões de seus fragmentos. Então, se faz necessário apenas um recorte para o apontamento de noções importantes sobre essa problemática na contemporaneidade.

Primeiramente, podemos pensar sobre os processos de normatizações e classificações iniciadas no século XIX e continuadas ao longo do século XX. Dentro desse processo encontra-se a dinâmica de categorização da identidade através do sexo, gerando a classificação em gêneros, que se sustenta em uma ordem binária, e na concepção de que existe um “sexo verdadeiro”: “a ideia de

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38


! que existe uma complexa, obscura e essencial relação entre sexo e verdade não é achada – pelo menos em um estado difuso – somente na psiquiatria, psicanálise, e psicologia, mas também na opinião corrente. Certamente estamos mais tolerantes no que diz respeito a práticas que violem a ordem. Mas, nós continuamos a pensar que algumas delas insultam “a verdade”: nós podemos fingir ao admitir que um “homem passivo”, uma “mulher viril”, pessoas do mesmo sexo que se amam, não prejudicam seriamente a ordem estabelecida; mas estamos prontos o suficiente para acreditar que tem algo como um “erro” envolvido no que fazem.”40

Assim, as características fisiológicas se colocam como determinantes para constituir noções de identidade, como aponta Foucault, os corpos são disciplinados para se sentirem, se comportarem, se manifestarem como homem ou mulher, e são criadas regras e condutas que cada gênero deve seguir. Essas teorias biológicas sobre sexualidade e concepções jurídicas sobre o indivíduo mostram-se como formas de administrar o controle nas nações modernas: “o próprio gênero é uma performance cujo caráter não é cômico nem trágico, mas dramático: na modernidade, o gênero é uma representação considerada real, em que os atores colocam em questão a própria sobrevivência cultural.”41

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 40

FOUCAULT, M. Herculine Barbin – introdução. 1980. p. X (tradução do inglês minha) BERNINI, Lorenzo, Macho e fêmea Deus os criou? A sabotagem transmodernista do sistema binário sexual. 2011. p. 29

41

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39


!

Gabriela Antunes – Nuvens, 2007 (fotografias e indumentåria)

!

40


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fotografia feita em colaboração com Anja Nowak, 2012

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41


! Nesta estrutura binária que atravessa a construção social constituíram-se normas

e

regras

bem

estruturadas

que

provocaram

separações

nas

possibilidades de vivências de homens e mulheres. Cada gênero se põe a representar seu papel, limitando-se a produções de desejo/afetos apresentadas pelo sistema hegemônico como verdadeiros para definir suas identidades. E neste ponto é inevitável mencionar que essas diferenças geraram ao longo da história (pensando especialmente do século XIX para cá) uma relação de podersaber entre os gêneros masculino e feminino que acarretou na formação do que podemos chamar de maioria e minoria moral, no que diz respeito à participação política, jurídica, econômica, etc. Estas relações eclodiram em uma “guerra dos gêneros”42, onde as mulheres, como minoria moral, particularmente durante o século XX, travaram lutas, em um nível macropolítico nas diversas esferas da sociedade para alcançarem igualdade de direitos e dignidade – “no visível, o óbvio: uma guerra entre identidades sexuais, lutando por seus interesses; especialmente o assim chamado gênero feminino oprimido em luta contra o assim chamado gênero masculino, seu opressor. Mas só aqui dá para captar algo desta ordem, já que neste plano os personagens são feitos de figuras através das quais eles se representam, assim como nós os representamos; tais figuras são efetivamente classificáveis em identidades ou gêneros e funcionam segundo uma lógica binária de oposições e contradições, cujo atrito pode transformar-se em conflito.”43

Tais lutas ainda se fazem necessárias, uma vez que ainda vivemos numa lógica sócio-política que polariza as pessoas não só no que diz respeito à sexualidade, e que continua reproduzindo desigualdades de direitos civis e jurídicos.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 42

Termo parte do título do texto de Suely Rolnik, Guerra dos gêneros & Guerra aos gêneros, em que a autora aborda os sentidos macro e micropolíticos relativos à realidade individual e coletiva da divisão binária da sociedade. A macropolitica concerne a essa realidade “enquanto representação, cujas figuras definem identidades e suas classificações dualistas – por exemplo, a classificação em gêneros. A micropolítica concerne a mesma realidade enquanto multiplicidade de fluxos, cujas composições engendram as transformações de suas figuras e, portanto, de identidades de gêneros.” p. 6 43 ROLNIK, S. Guerra dos gêneros & Guerra aos gêneros. 1996. p. 1!

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42


! Esta luta, ou guerra, não deve ser posta de lado, esquecida ou ignorada, ela ainda deve ser vista como “politicamente correta”. Porém, “se quisermos evitar que a guerra politicamente correta dos e pelos gêneros se transforme numa guerra politicamente nefasta para a vida, será preciso travar simultaneamente uma guerra contra a redução das subjetividades a gêneros, a favor da vida e suas misturas.”44 Pois esta guerra dos gêneros reforça as estruturas de forças às quais as mulheres – parte da minoria moral e política – tentam eliminar: “as minorias sexuais são produtos do dispositivo da sexualidade, assumir acriticamente o gênero feminino como identidade política comporta o risco de uma reprodução aparente dos efeitos de verdade induzidos por aquele mesmo regime de saber-poder que estabelece a subordinação das mulheres aos homens.”45

o corpo como matéria (desfazer-se do sexo marcado neste corpo) pulsões incorpóreas atravessando o corpo (ativar as potências do desejo) não categorização (multiplicidades de possibilidades de resistência) !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 44 45

Idem, p. 4 BERNINI, L. Op. cit., 2011, p. 27

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fotografia feita em colaboração com Anja Nowak, 2012

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! Além dessa divisão binária em gêneros, e de uma estrutura de poder-saber machista que coloca as mulheres como minoria moral, podemos encontrar, também, nesta “fábrica moderna das identidades sexuais” uma “matriz heterossexual”46, que pretende fixar as relações para além das diferenças entre homens e mulheres: esse “valor atribuído à heterossexualidade faz com que os sexos sejam culturalmente diferentes. O sexo é, portanto, produzido discursivamente como categoria de gênero, e que o gênero é produzido discursivamente como categoria do desejo: (...)”47. Ou seja, além de diferentes categorias de gênero, que separam em termos de representação sócio-cultural homens e mulheres, há o produto discursivo do gênero no que diz respeito ao desejo, buscando mais categorizações e, consequentemente gerando mais minorias, que precisarão lutar por seus direitos civis e jurídicos. Entramos, assim, em uma bola de neve que multiplica guerras entre os diferentes grupos sexuais da sociedade. As categorizações tentam reduzir as subjetividades, reforçando o binarismo da matriz heterossexual.

“Eu que sou chamada um homem, tenho sido admitida à intimidade e profundo entendimento de todas as facetas e todos os segredos do caráter de uma mulher. Eu posso ler seu coração como um livro aberto. Poderia contar cada batimento cardíaco. Em uma palavra eu tenho o segredo de sua força e a medida de sua fraqueza. Assim, por esta razão, seria um marido detestável. Também sinto que todos os meus prazeres seriam envenenados no casamento e, que eu, talvez, cruelmente abusaria da imensa vantagem que teria, uma vantagem que se viraria contra mim.”48 !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 46

Expressão usada por Judith Butler, mencionada por Bernini em seu texto. Para Butler a matriz heterossexual impõe uma perspectiva binária à produção da sexualidade, na qual “a obrigação da heterossexualidade regula o gênero como relação binária em que o masculino se diferencia do feminino através do desejo e de suas práticas.” p. 28 47 idem. p. 27 48 Trecho das memórias de Herculine Barbin, uma intersexual do século XIX, que foi dita do sexo feminino no momento do nascimento e, que após 19 anos tendo crescido, estudado e lecionado em ambientes e escolas para mulheres, inclusive estabelecendo relações amorosas com uma colega de trabalho, ao se submeter a exame médico teve seu estado civil modificado para o sexo

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! Propomos práticas que possibilitem vivenciar a sexualidade como pulsões incorpóreas, em um corpo vibrátil que está sensível para as produções de desejo que podem surgir nos diferentes encontros, sabendo que “desejo não é necessariamente caos e que, exercendo-se, o corpo vibrátil indicará as direções a tomar, os agenciamentos a fazer”49. Práticas experimentadas com uma concepção de si que assume os fluxos, as necessidades de desterritorialização e os efeitos singulares que acontecem em nossos corpos nos encontros aleatórios, pois “um fluxo mutante implica sempre algo que tende a escapar aos códigos não sendo, pois, capturado, e a evadir-se dos códigos, quando capturado”50. Neste fluxo, cada um cria espaço para se renovar criativamente no interior das estruturas de poder-saber em que estão colocados. Gerando abalos na noção de identidade à começar por si mesmo, e expandindo para o mundo para viver além de qualquer limite de categoria de gênero.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! masculino pelas autoridades religiosas, medicas e jurídicas. Herculine, que mantinha fervorosa fé cristã, consentiu a todas essas decisões, porém se suicidou aos 22 anos, não conseguindo se adaptar às mudanças que obrigatoriamente precisou sofrer em suas vivências em sociedade. Esta é uma livre tradução minha que coloca as palavras, que em inglês não possuem gênero, no gênero feminino mesmo quando ela se refere a si mesma como homem, por entender, após ler suas memórias, que Herculine, dentro dessa estrutura binária, se assimilava mais como mulher do que como homem, nesse confuso estado emocional, psicológico e corporal: “Vocês são dignos de pena mais do que eu, talvez. Eu me levanto em vôo acima de todas as vossas incontáveis misérias, participando da natureza dos anjos; pois como vocês disseram meu lugar não está em sua estreita dimensão.” p. 99 49 ROLNIK, S. 1989. p. 42 50 DELEUZE, G. & GUATARRI, F. Op. cit., 1996. p. 91

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! “Eu sou mocinha e arranco do meu queixo com uma pinça-rosametálica, pêlos. Se eu não arrancar, será que vira barba? Eu passo com meu dedo embaixo do meu queixo e os sinto, se não der para arrancar usando as unhas pego a metálica-rosa-pinça. Faço também meu bigode, com gilete-azul-escuro. É azul porque é do papai. Azul é cor de moço. Rosa, ainda mais metálico, é cor de mocinha – eu grito que sou mocinha. Aí os rapazes todos da região querem me namorar e eu os namoro, sim. Mas não conto meu segredo, não digo que sou metade moço e que faço minha barbicha, é bom demais ter segredo! Namoro também as meninas, a segunda metade pede. Beijo todas as bocas da região, todas as bocas da região beijam minha boca número dois, a que fica entre as minhas pernas. Eu não chupo ninguém, digo que tenho bronquite e que se beijar bocas número dois sufoco. Até quando poderei ser moça e moço? Espero não ter que me decidir tão logo, sendo dois sou maior, desejo ser gigante.”51

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 51

LAU, Geórgia. Futura Transexual. Fanzine Livro de piadas para jovens mulheres.

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fotografia feita em colaboração com Anja Nowak, 2012

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48


! Desconstruindo figuras fixas para fazer vir à tona a dispersão da invisibilidade. Atento à noção de que enquanto parte de uma sociedade, e para lidar com ela, ainda poderá se fazer necessário vestir as roupas de um personagem com sua identidade, num ir e vir constantes desse personagem vivendo nesse feliz estado de “esquizofrenia”. Transitando entre as nuances do masculino e do feminino, tomando suas decisões de onde e em qual formas colocar seu corpo e seu desejo. Exercendo esse trânsito com prudência – aquela consciência de si que sabe quais pensamentos e sentimentos acolher com vantagens e quais serão nefastos para o exercício de sua liberdade, e que faz possível seguir em uma relação meticulosa com os estratos, criamos planos consistentes para experimentar as linhas de fuga à normatizações binárias na “matriz heterossexual”. Lembrando que os estratos são camadas que fixam e enrijecem o corpo, as significações e as subjetivações; assim, “é necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder à realidade dominante.”52

A desconstrução do que é ser feminino ou masculino muitas vezes pede uma vivência sob este ou aquele estrato, buscando aí um lugar favorável, os eventuais movimentos das desterritorializações, a fragmentação de seu corpo e a intercessão com outros corpos – canal de passagem e troca das intensidades.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 52

DELEUZE, G. & GUATARRI, F. Op. cit., 1996. p. 22

!

49


!

Wolfgang Tilmans – Knotenmutter, 1994

“Estamos numa formação social; ver primeiramente como ela é estratificada para nós, em nós, no lugar onde estamos; ir dos estratos ao agenciamento mais profundo em que estamos envolvidos; fazer com que o agenciamento oscile delicadamente, fazê-lo passar do lado do plano de consistência. É somente aí que o CsO [corpo sem órgão] se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades. Você terá construído sua pequena máquina privada, pronta, segundo

as

circunstâncias,

máquinas coletivas.”53

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 53

idem. p. 23

!

50

para

ramificar-se

em

outras


! As imagens integrantes neste trabalho são exercícios desta prática, em uma junção do cotidiano da vida com as ferramentas da arte para se construir uma “estética da existência”. Imagens que expõem os conflitos com a sociedade na resistência aos planos de categorização, como um instrumento que possibilita chegar mais perto da ideia de integração entre os sexos, e da eliminação dos gêneros.

Corpos

mantendo

suas

pequenas

características

de

gênero

perceptíveis, ora, são um homem, ora uma mulher, todavia mais que isso, muito mais que isso... corpos, que são nenhum. Uma ponte, sutilezas que conectam: conexões por uma pequena ponte que transforma. Em um devir melancólico – entre o prazer da produção criativa de desejo e a tensão com os estratos que nos cercam – estas imagens invertidas, vindas nestes processos criativos, mostram uniões de discórdias concordantes, passagens das intensidades das pulsões incorpóreas e diferentes matérias de expressão formadas a partir daí. Fazendo desta melancolia uma força ativa, pois ela é a sensibilidade para a percepção e liberação dos corpos vibráteis nos encontros aleatórios que acontecem na formação social.

!

51


!

Stills do vĂ­deo MĂĄquina, 2010 (co-autoria de Pontogor)

!

52


! 3. imagem e melancolia como lente para ver o mundo

“discórdias concordantes” é um trabalho que relaciona uma produção de imagem,

iniciada

em

2009,

com

algumas

questões

conceituais

que

acompanharam essa produção, e com outras que foram percebidas após o ingresso no programa de Mestrado em 2011: o corpo como matéria e suas mutações através do movimento e da fragmentação, e questões de sexo, gênero e sexualidade em pulsões invisíveis que se manifestam no corpo, e em sua extensão visível como ordem discursiva no mundo ao longo da história. Até aqui, desenvolvemos

essas

questões

conceituais

colocando

apenas

breves

apontamentos sobre os processos de criação das imagens, agora, vale fazer uma recapitulação sobre motivações e práticas relativas ao desenvolvimentos de meus trabalhos. Assim, traçando paralelos com o que já foi apresentado até agora, este capítulo será dedicado à imagem e suas relações com a possibilidade de resistência através de uma sensibilidade melancólica como lente para ver o mundo, comentando também questões sobre os processos criativos e as ferramentas usadas na realização dos trabalho – o corpo e a fotografia.

3.1 uma digressão

“(...) ah, se ao menos a fotografia pudesse me dar um corpo neutro, anatômico, um corpo que nada signifique!”54

Para falar sobre a imagem dentro do contexto desta pesquisa, acredito ser necessário abordar, antes, algumas questões sobre minha relação com a fotografia, e desta com o corpo – principais ferramentas de criação dos trabalhos.

Em meu percurso como artista, venho pesquisando e questionando noções sobre representação, principalmente em manifestações imagéticas. Estes !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 54

BARTHES, Roland. A câmara clara. 1984, p. 24

!

53


! questionamentos são o motor propulsor de meu envolvimento com a fotografia. E foram as experimentações com essa ferramenta que me geraram a percepção e a prática de algo essencial para uma produção crítica de imagens na contemporaneidade: a noção de criar imagens que não se focam em representar, mas que procuram expor. Pois a representação implica em uma crença de que existem modelos a serem representados, enquanto a exposição não se limita ao visível, mas procura revelar os espaços das sutilezas e mistérios. Assim, pude me valer da precisão da técnica fotográfica quanto ao registro daquilo que é capturado pelo equipamento, ou seja, a precisão quanto à figuração, procurando ir além, observando que as maiores potências das imagens estão presentes nas desordens que elas podem revelar: “(...) uma imagem não poderia ser pura negatividade: “ela pode desmentir, por certo, e deve mesmo fazê-lo imperiosamente (uma imagem que nada desmentisse seria uma imagem fraca, sem verdade, nula e sem valor); mas ela deve também, seja como for, manter o traço daquilo que desmente, justamente para que sua negatividade trabalhe.”55

Iniciei, então, uma prática bastante experimental e reflexiva com a técnica fotográfica, buscando expor subjetividades e materialidades concernentes a experiências da existência.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 55

Didi-Huberman apud MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille, 2010, p. 166

!

54


!

Elina Brotherus – Artist and model reflected in a mirror #1, 2007

Nessa busca surgiram questionamentos sobre identidade, sobre como sair da armadilha de usar a imagem para reforçar representações de identidade, as quais eu já intuía serem limitadoras. Então, na tentativa de encontrar aberturas em conceitos rígidos de identidade, o corpo foi se tornando figura central das imagens, e uma prática de trabalho foi se desenvolvendo: um corpo (ou dois corpos) disposto(s) à frente de uma câmera, pronto para agir diretamente para formar uma imagem, experimentando ações específicas ou corriqueiras, para expor noções que extrapolassem os limites físicos desse próprio corpo. Nessa prática a fotografia foi se mostrando como “advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da consciência de identidade”56, e o corpo como principal instrumento para exposição dessa dissociação. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 56

BARTHES, R. Op. cit. 1984, p. 25

!

55


!

Frontal, 2009

Nesse ponto chegamos à citação de Barthes que iniciou esta parte do texto, a relação primeira, em meus trabalhos, entre a fotografia e o corpo: a tentativa de, através da foto, conseguir um corpo neutro, que nada signifique. E, assim como a expressão de Barthes se faz em forma de lamento, manifesto-me melancolicamente frente à impossibilidade de alcançar tal anseio por completo.

!

56


! Usar o corpo como matéria – assunto explorado no primeiro capítulo – foi uma maneira que encontrei para ter, através das fotos, essa neutralidade. Porém, apesar de ser possível produzir imagens que não afirmem noções de identidade, mas as coloquem em questão, em dúvida, como seria possível possuir um corpo neutro enquanto se praticam ações para expor subjetividades e materialidades da existência?

Mesmo que minha busca fosse pela neutralidade de significâncias a priori (para que em cada imagem se fizesse exposto questões específicas em momentos, experimentações e vivências específicas), observei não ser possível ter um corpo neutro. Então, outras perguntas se fizeram essenciais: que significâncias a priori meu corpo carrega? O que nele é evidenciado aos olhos mesmo quando encoberto?

Significâncias

de

gênero,

carregadas

pelas

evidências

do

sexo.

Melancolicamente constatei que meu corpo feminino estava nas imagens, e que a tentativa de neutralizar isso era uma maneira de lidar com aquilo que acreditava estar passando desapercebido. Assim, também melancolicamente, escolhi adotar esta prática de criação de imagem como possibilidade de atuação resistente diante das classificações de identidade, dos estratos de organização, significação e subjetivação referentes ao sexo, gênero e sexualidade. Pois se “a medida do homem é o impossível, qualquer tentativa de fixar-lhe uma imagem última torna-se igualmente uma tarefa impossível.”57

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 57

MORAES, Eliane Robert. op. cit, 2010, p. 153

!

57


!

pense em si mesma, mas não se enterre antes do tempo, 2012

Nota

Minhas experiências com o vídeo vieram como uma extensão da fotografia, nessa possibilidade para registrar o corpo, com métodos extremamente semelhantes – o(s) corpo(s) disposto(s) na frente da câmera praticando alguma ação para ser registrada. Por isso, menciono mais diretamente a relação de trabalho com o equipamento fotográfico, e não com o videográfico. Nos vídeos (celebrate you; Máquina; The body can be magically transformed into something else), especificidades que essa mídia oferece, e que a diferem da foto, foram

!

58


! exploradas, tais como a capacidade de capturar o movimento, e o som. Porém, na relação desses trabalhos com esta pesquisa não se faz necessário entrar em detalhes sobre estas questões, as reflexões sobre a imagem de uma forma mais geral, sobre desconstrução de conceitos de identidade através do uso da imagem, e sobre representação-exposição, se mostram mais importantes para o desenvolvimento deste estudo. ***

The body can be magically transformed into something else, 2009

!

59


! 3.2 sensibilidade melancólica e imagens invertidas

A despeito de esclarecer como me aproprio do conceito de melancolia, e, a partir de quais referências, faz-se necessário, pontuar algumas visões sobre o termo.

A melancolia, ou suas várias outras denominações (melaina khole, acedia, vanitas, atrabile, spleen, banzo, etc), vem cruzando os séculos e sendo encarada de diversas maneiras: desde a visão filosófica aristotélica, passando pela relação com a religião da Idade Média, e pelo status de patologia do século XIX

nos

estudos

psiquiátricos,

às

pesquisas

psicanalíticas

e

à

contemporaneidade. Na Antiguidade, Aristóteles evoca a melancolia como a própria natureza do filósofo, que, “equilibrada pelo gênio, é co-extensiva à inquietação do homem no Ser”58. Ele a coloca como “estado-limite”, “excepcionalidade reveladora”, assim, o filósofo seria “melancólico por superabundância de humanidade”59. Uma visão que não situa a melancolia como patologia, mas como algo natural, ligada ao princípio regulador do organismo, à interação controlada de energias opostas.

Na Idade Média, a teologia cristã faz da tristeza um pecado, mas, por outro lado, essa tristeza também é cultivada pelos monges: “a ascese mística se imporá como meio de conhecimento paradoxal da verdade divina e constituirá a maior prova de fé.”60

Observamos que nessas duas épocas, assim como ao longo do tempo, alcançando talvez até mesmo a Idade Moderna, existiu uma visão da melancolia bastante associada às virtudes das atividades do pensamento e da imaginação. Foi a partir do século XIX, com os estudos classificatórios relacionados ao corpo e à saúde, e o desenvolvimento de um controle sobre o poder de vida (não mais do controle sobre o poder de morte característico da época medieval monárquica), que a melancolia começou a ser vista como patologia, tornando-se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 58

KRISTEVA, Julia. Sol Negro – depressão e melancolia, 1989. p. 14 Segundo Carlos Angelino apud KRISTEVA, 1989 p. 14 60 KRISTEVA, 1989. p. 15

59

!

60


! objeto de estudo psiquiátrico e, posteriormente, psicanalítico. De acordo com Luiz Cláudio Costa, em texto escrito para o livro todos os nomes da melancolia da artista Leila Danziger (2012) essa mudança trouxe a melancolia do âmbito da vida pública para o da vida privada. O âmbito da vida pública seria o fato de a característica melancólica estar vinculada ao estado reflexivo e imaginativo, gerando produção de conhecimento, e enriquecendo o meio filosófico-cultural. Já a assimilação com o âmbito da vida privada diz respeito ao fato da melancolia ser encarada como um sofrimento particular, que é visto como um problema a ser combatido e tratado. A partir dessa abordagem da melancolia como patologia, as análises psicanalíticas, adentrando o século XX, procuraram pelas suas origens na psique humana e suas possíveis relações com estados patológicos, como a depressão, buscando reconhecer as diferenças entre as duas. Sem entrar nos detalhes sobre os estudos e textos realizados por psicanalistas como Freud ou Lacan, é importante observar como essa confusão entre melancolia e depressão persiste até hoje, fazendo prevalecer a ideia que vincula o estado melancólico a um estado de doença.

melancolia, 2011

!

61


! Dentre tantas ambivalências e interpretações positivas ou negativas, quero considerar a melancolia aqui pelo âmbito da vida pública, afirmando que muito além de qualquer estado de patologia a “sensibilidade melancólica” está próxima das condições de imaginário e reflexão necessárias para a produção criativa de conhecimento. E, assim, “como uma sensibilidade entre outras, se constitui como uma lente para ver o mundo e uma possibilidade de uma nova formação, um guia para articular os fragmentos contemporâneos, sem homogeneizá-los em totalidades.”61

É desta forma que relaciono a melancolia com minha produção de imagens e com a possibilidade de resistência quanto às classificações identitárias do corpo, no que diz respeito ao sexo, gênero e sexualidade: como a escolha de vivenciar o mundo através dessa sensibilidade, e praticar/promover movimentos, retorcimentos,

fragmentações

desterritorializações,

no

corpo,

desorganizações,

proporcionando/experimentando

dessignificações,

dessubjetivações

daquilo que estratifica. Pois a sensibilidade não é um simples sentimento, é uma categoria mais indefinida, “um fluxo de percepções cujas significações se cristalizam e ampliam em diversos imaginários, um espaço de dispersão que não se reduz a estruturas binárias ou ternárias”62. Além disso, através de um caráter anti-utópico, que está além de qualquer pessimismo ou otimismo, a melancolia surge da consciência de que no devir da existência contemporânea é necessário estar em permanente trânsito, e, que este estado de inconstância marca as impossibilidades de se alcançar a neutralidade do corpo e suas significações.

Uma busca sem fim em um labirinto sem saída: “havia uma grande resistência interior, não somente porque se sentia duplamente em conflito com a sociedade, sobre o plano da vida particular e sob o plano da arte, mas porque não podia esquecer-se de que a natureza tinha diferenciado anatomicamente os dois !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 61 62

LOPES, Denílson. Nós os mortos, 1999, p. 27 idem, p. 39 (grifo meu)

!

62


! elementos do casal e que assim entrava em um tremendo conflito com a natureza.”63 Neste conflito com a natureza anatômica uso a imagem para alcançar autonomia dos corpos, dos sexos, dos gêneros, da sexualidade, na constatação de que essa “’ideia’ [de autonomia] só se realiza por completo em meio às imagens ‘invertidas’”64.

ponte-continuidade, 2011 - 12

A noção de que somente através do imagético é possível realizar uma total autonomia do corpo, traz à tona um potencial de resistência da imagem em seu conteúdo melancólico, já que “justamente por sua pouca ou vaga explicitação, as sensibilidades se expressam melhor por imagens do que por conceitos.”65 Não se trata de uma estagnação da vida através da contemplação de imagens, mas da estetização do cotidiano e do olhar por meio de uma prática de produção !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 63

HOCKE, Gustav, Maneirismo: o mundo como labirinto, 1974, p. 293. Modifico nesta citação o plural que o autor emprega para falar dos artistas maneiristas, colocando os verbos no singular como forma de apropriação do que com eles compartilho. 64 Idem, p. 294 65 LOPES, op. cit, p. 41!

!

63


! de imagens, que, em seu conteúdo estético, geram reflexões e novas experiências de conduta. Isto diz respeito ao que associamos com o conceito de Foucault sobre “estética da existência”, em um diálogo constante entre a produção criativa (artística) e as práticas do cotidiano da vida. Com consciência de si, e com a lente de visão da sensibilidade melancólica nos relacionamos com/no mundo de forma anti-utópica.

Nota-se que, anti-utópico não significa pessimismo ou niilismo, mas uma visão que não cai em ilusões, e usa o que existe, o que está presente, de forma a inverter, jogar com ordens, sair de linearidades e de continuidades. A visão antiutópica da melancolia provoca corrosão em continuidades. Trabalhar com a imagem através dessa lente de visão reforça a potência de não representação, ou seja, “a imagem não faz aparecer as coisas como elas são, mas um traço, um deslocamento de experiência”66, ela expõe fragmentos de inversão e não uma realidade natural. Os movimentos e fragmentações do corpo nas fotografias e vídeos proporcionam uma corrosão no pensamento de que o sexo, o gênero e a sexualidade seguem uma linha ordenada e contínua. Somos seres descontínuos, como disse Bataille, assim, ao invés de sair em busca de uma continuidade firmada em “verdades naturais” (ou seriam “verdades utópicas”?), acredito ser mais eficaz repensar essa descontinuidade, desorganizá-la, e viver no trânsito do descontínuo ao contínuo.

A imagem, como algo que, por essência, está “fora, sem intimidade, e no entanto mais inacessível e misteriosa do que o pensamento do foro íntimo; sem significação, mas invocando a profundidade de todo sentido possível; irrevelada e todavia manifesta”67, faz-se um instrumento oportuno para esse trânsito. Esse caráter polissêmico da imagem contribui para conduzir a existência às experiências limite – percorrendo uma linha tênue o corpo passa do feminino ao masculino, de um corpo com dois sexos a dois corpos com um sexo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! p. 12! Blanchot apud BARTHES. In: A câmara clara, 1984, p.157

##!Idem, 67

!

64


!

condição, 2011

A “natureza” é, assim, posta em dúvida na desconstrução de conceitos de interioridade, de um ‘ser’ que não existe “por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo.”68

Esse agente ficcional é mutável, são as diferentes matérias de expressão que se formam para simularem ou exteriorizarem as intensidades surgidas nos encontros aleatórios, ou seja, na ação. Assim, a melancolia se constitui como elemento fundamental dos sistemas atuais de simulação, ao se assumir o caráter de constante devir das matérias de expressão e se desfazer de conceitos rígidos sobre um interior “natural” e “original”. A sensibilidade melancólica mostra-se uma “qualidade inerente ao modo da desaparição do sentido, ao modo da valorização do sentido nos sistemas operacionais (...), !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 68

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral, 2009, p. 33

!

65


! desafecção brutal dos sistemas saturados”69. E, a imagem “é uma resposta teórica a um mundo simulacral, pós-representacional, pós-sígnico, e representa um desejo de constituir sua história em sua geografia.”70

“Ela vive o desejo como imanente a um plano de consistência, sendo que sujeitos e objetos se criam ao mesmo tempo que o plano. Para ela, o plano não é interior ao ego, nem vem de um ego exterior, nem de um não-ego. Em sua concepção, ela própria não é senão o efeito singular do que acontece em seu corpo (vibrátil) nos aleatórios encontros que tem.”71

Francesca Woodman – Untitled, 1975 - 78

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 69

Jean Baudrillard apud LOPES, op. cit, p. 21 LOPES, 1999, p. 12 71 ROLNIK, S., op. cit., p. 43! 70

!

66


!

Yijun Liao (Pixy) – How to build a relationship with layered meanings, 2008

Ao colocar o corpo em ações que estão longe de trazerem alguma forma resolvida, alguma imagem fixa, alguma resolução para conflitos, mas antes contribuem para a manutenção de instabilidade, incertezas e desordens, a melancolia se estende como uma sensibilidade que faz possível passar por essas experiências sem gorar nas expectativas de fazer acontecer discursos homogeneizantes, mas também sem ficar perdido e apelar para o abandono. Registrar essas ações e criar imagens é uma maneira de fazer visíveis tantas possibilidades que se abrem nas invisibilidades dos corpos e da existência – viver nas virtualidades do fazer. “A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das

!

67


! relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer.”72

Entre o que se faz e o que se pode fazer, construímos planos de fuga consistentes, agindo politicamente em resistência: através da sensibilidade melancólica que ativa fluxos do corpo vibrátil; movendo e fragmentando o corpo para dessignificá-lo; vivenciando a sexualidade com consciência de si e visão anti-utópica do mundo, criamos imagens invertidas na busca por quebrar classificações binárias de gênero.

a long way together, 2011

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 72

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 2005, p. 59

!

68


! Referências Bibliográficas: ARTE & ENSAIOS. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFRJ. 1994-. Anual. BATAILE, Georges. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BERNINI, Lorenzo, Macho e fêmea Deus os criou? A sabotagem transmodernista do sistema binário sexual. Texo publicado na revista Bagoas número 6, 2011. BOURGEOIS, Louise. Louise Bourgeois: o retorno do desejo proibido – escritos psicanalíticos. Coordenação geral Louise Bourgeois Studio, Instituto Tomie Othake. São Paulo: Instituto Tomie Othake, 2011. ! ! DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, v. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik — Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996 (Coleção TRANS). !

FOUCAULT, Michel, A História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. FOUCAULT, Michel, Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Organização de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. Coleção Ditos e Escritos III. FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder. Organização e tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. BARBIN, Herculine, 1838- Herculine Barbin: being the recently discovered memoirs of a nineteenth-century French hermaphrodite. Translation of Herculine Barbin, dite Alexina B. Copyright da Introdução por Michel Foucault, 1980.! GAGARIN. Antuérpia: Gaga para AIR – International Artist Program Antwerp, 2000-. Semestral. GIL, José, Movimento Total - O corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004. HOCKE, Gustav, Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo: Perspectiva, 1974.

!

69


! KRISTEVA, Julia, Sol negro: melancolia e depressão. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. LOPES, Denílson. Nós os mortos: melancolia e neo-barroco. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1999. MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenologia da Percepção; tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MORAES, Eliane Robert, O corpo impossível: a decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Iluminuras, 2010. NIETZSCHE, Friedrich, Genealogia da moral: um polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. RANCIÈRE, Jacques, A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental, 2005. ROLNIK, Suely, Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. ROLNIK, Suely, Guerra dos gêneros & Guerra aos gêneros. Ensaio escrito sob encomenda de TRANS. Arts. Cultures. Media (Nova York, Passim, inc.), para abertura da seção <<Genders War>> no número 3 da revista (1996, no prelo). WOOLF, Virgina, Orlando. Tradução: Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

!

70


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