Cara, sem brincadeira, eu era o único forasteiro no meio daquela cambada de descendentes grunge. Pra falar a verdade eu sou um pouco descendente dessa coisa toda também, e a gente estava de volta, ali, juntos e desconhecidos e dividindo a cerveja com um bando de outras cambadas mais moderninhas e sofisticadas, debaixo de um final de tarde cinzento pra caralho, e até meio escuro, porque lá em cima um batalhão de nuvens negras avançavam para oeste e cruzavam nossas cabeças meio ecoadas por todos aqueles acordes distorcidos num boteco da periferia de São Matheus, na zona leste de São Paulo. Mas, numa boa, eu me sentia em casa. Lá no fundo sabia que todo mundo ali tinha brotado do mesmo maldito lugar, de um mesmo maldito neurônio que reverberou quando aquele rock-star enfiou uma bala nas idéias 16 anos atrás e deixou uma geração inteira um pouco órfã. Mas o negócio é que, de qualquer forma, a maioria de nós já nasceu órfã mesmo. Não é brincadeira, a gente foi a juventude que inaugurou esse novo milênio inspirando os últimos suspiros dos 1990. E, cara, ele evaporou como heroína negra sobre o alumínio de um isqueiro vagabundo direto para nossos corações. Direto para nossos corações, meu velho.
Era por isso que estávamos todos naquele pardieiro, cruzando uma porta de ferro de correr para encontrar o Gui com aquele Marlboro vermelho entre os dedos entornando sua terceira Skol a R$ 3,20 em menos de uma hora. Eu o conheci um dia antes, no ensaio da Monaural, e senti que nossos santos bateram. Acho que sou um dos poucos que curtem aquela imensa rosa vermelha tatuada no seu ombro direito. É um desenho bonito, tem cores fortes como os traços do cara. Mas o que me intriga mesmo é um símbolo do Pearl Jam gravado no braço esquerdo. Numa boa, aquilo destoa, porque ele tem um cabelo castanho claro meio ondulado que vai até o queixo, e aqueles traços assim, meio rudes, e uma voz rouca pra caramba, grave, ainda mais quando bebe ou fica excitado com uma discussão. E ninguém que curte Pearl Jam fica excitado com uma discussão. Ontem ele estava com uma camiseta dos Stones, mas agora usava uma do Doors e o mesmo óculos estilo Ray Ban anos 1980 e sempre com um cigarro por perto. O Gui é o baluarte dos ecléticos, não dá pra negar, e ele estava escorado em uma das quatro ripas forradas com páginas de gibi que sustentam as telhas mofadas, daquelas de amianto, no teto do Formigueiro. Ele conversava distraído com uma garota que eu nunca soube o nome e que ninguém lá conseguia lembrar.
Então nós a chamávamos de ‘a garota que faz cover do Hole’, porque o Gui apresentou ela assim. Pedi uma Brahma e fiquei ali no bar enquanto o Ovelha bebia a especialidade da casa, uma pinga ou vodca esquisita com licor de menta. Éramos dois escritores separados pela geografia que agora bebiam juntos e brindavam ao futuro. O Ovelha disse que já escreveu dois livros, e ele realmente parece ter uma verve toda especial pra esse tipo de coisa: apesar de só ter 21 anos, o cara quer dar um jeito de juntar um estilo meio Joseph Mitchell em “O Segredo de Joe Gould” num romance policial. Sei lá, pode parecer até meio pretensioso,mas o cara tem colhões, puta merda. Ele contou que sonha em um dia escrever uma grande obra sobre como seria o mundo se Hitler tivesse vencido a guerra. Eu avisei que era tarde demais, alguém já havia pensado nisso antes. Mas ele nem ligou. Acho que tem uma história exclusiva em mente, vai saber. “Quer um pouco?”, esticou a mão colocando aquele líquido verde perto do meu nariz. “Por que não!?”, a bebida tinha um gosto artificial pra caralho, então entornei um longo trago de cerveja na seqüência. “Você já reparou que tem uma igreja evangélica
bem aqui na frente?”. Eu não havia reparado, e provavelmente eu era o único que ainda não tinha se incomodado com aqueles cristãos surdos berrando do outro lado da rua. Eles gritavam tanto que atrapalhavam nosso papo, e, porra, era difícil até de pensar se a gente estivesse no meio fio tentando trocar idéia ou falando mal da vida. Uma puta falta de respeito. Depois que Ovelha comentou, não consegui parar de me emputecer com aquilo. Acho que ele não gostou muito que eu ficasse ali, amaldiçoando os caras, então foi jogar sinuca com Julia e Gui. Eu só queria descobrir que horas o show iria começar, por isso fui falar com Ayuso e aproveitei pra beber outra cerveja. Ele tinha organizado o evento e explicou que seriam quatro bandas, no sorteio a Monaural caiu como a terceira. Puta merda, como era bom ver o Ayuso feliz daquele jeito. Ele tem um sorriso muito sincero, é sério, meio retraído e tímido, pra falar a verdade é bem introspectivo quando sai assim, espontâneo demais. E ele é sempre espontâneo demais quando está contando uma história ou sorrindo. Mas naquela noite aquilo parecia fosforescente, brilhava e iluminava todo mundo. Ele tem 27 anos, o Ayuso, ainda mora com os pais, mas não é porque ele quer,
o negócio é que o trabalho como design não rende grana suficiente pra ele sair de casa, criar independência e todas essas responsabilidades de um cara de 27 anos. Além do mais, ele foi chutado de seu último emprego há mais de um mês, disseram pra ele que a crise que o havia demitido, e mesmo se tratando de um respeitado jornal de economia, ele não acreditou. Mas foi assim, uma tarde simplesmente disseram pra ele passar no R.H. porque estava fora. Eu conheci o Ayuso uns dias depois e lembro que ele disse: “bom, vamos brindar, eu fui demitido”. Então fomos brindar com algumas cervejas num boteco da Augusta. Era pra ser um papo rápido, eu precisava de um sujeito gente fina com uma banda grunge bacana pra minha matéria. Meu lance era entender o que diabos tinha acontecido com o espírito grunge depois destes últimos 16 anos e acabei na página da Monaural no MySpace. No final ficamos até as três da manhã conversando, eu, Herik e Ayuso, e eles me contaram como tudo começou. O lance é que a primeira banda do Ayuso chamava Difuntos Dançantes, assim mesmo, escrito errado e tudo mais. É que eles achavam que desse jeito
ficava mais legal, era o charme da coisa. Agora, de onde veio esse nome, isso ninguém sabe, nem o Ayuso. Ele acha que deve ter algo a ver com mortos que gostam de dançar, um negócio assim, meio de sonho, de bobeira. “Mas antes disso tem a história de como começou a banda. Sente só, lembra que tinha aquela música do Mamonas, o sabão crécré?! Então, os caras gravaram ela num cassete e me entregaram falando que eles tinham gravado aquilo enquanto tocavam violão na casa do vizinho. Porra, eu ouvi e fiquei maior entusiasmado, mas claro que era mentira”, ele sorria enquanto contava aquilo, daquele jeito, meio retraído, “aí, do nada a gente pensou ‘vamos montar uma banda’, mas na época só o Sorriso tocava teclado, mas aí o Amaury disse ‘vou tocar baixo’, aí o Antonio Carlos foi pra bateria, e eu falei ‘beleza, eu toco violão e canto’”. Ele pegou o violão emprestado com o tio, um Giannini com uma corda só que parecia um arco e flecha, o baterista descolou uma lata de arroz e fez de surdo, uma tampa enferrujada de uma lata de Suvinil pra ser o prato e as baquetas eram aqueles pedaços de madeira de segurar janela. Eles conseguiram um tecladinho minúsculo e depois de um tempo rolou até uma guitarra pra fazer as vezes do baixo. “Cara, mas com tudo que eu produzi nesses 11 anos de música eu posso te dizer que é
um bagulho que ninguém nunca fez e ninguém nunca vai fazer, porque não parece com nada. Eu ainda escuto Difuntos, mesmo. A gente não tinha referência musical, eu lembro que na época eu descobri três acordes, mas isso foi só depois que eu já tinha composto todas as músicas, era tarde demais”. Os caras eram tão fodas que um dia resolveram fazer um show numa casa abandonada em Mongaguá, que fica no litoral de São Paulo e também foi onde a banda começou. Eles deixaram o portão aberto pra galera entrar e nem pensavam em cobrar ingresso ou coisa parecida. Uma mulher estava passando na rua com duas crianças e resolveu parar pra escutar: foram o único público daquele show único, e bastardo. Depois disso a banda acabou. Mas tudo bem, o negócio é que Ayuso é um rockstar falido, ele mesmo me disse, e acho que no fundo eu concordo. É provável que esse dom tenha vindo de seu pai, que ouvia muito Elvis quando ele era pequeno, inclusive as canções da fase decadente. E, cara, analisando o simpático buraco onde estávamos, o Formigueiro, não dava pra discordar dele. Não que fosse um lugar ruim, realmente não era, o banheiro até cheirava pinho sol e tudo mais. Mas tinha três fliperamas space vision lá, e isso diz
muita coisa. A parede direita era a única pintada de rosa, o resto era vermelho, mas na metade inferior todas eram coloridas de preto. Havia também duas mesas de sinuca e umas bandeiras de bandas, Led Zeppelin, Ramones, AC/DC e duas do Nirvana. E um quadro do Che com aquela foto clássica. Eu reparei nisso, mas não era um detalhe importante de jeito nenhum. O que não dava pra deixar de reparar era numa guitarra de madeira, toda zoada, sem corda nenhuma e grudada na parede do fundo com uma frase escrita em prata: ‘Fonte Da Juventude Sonora’. A última palavra já tomava a parede do palco, que tinha um monte de CDs colados, era toda pintada de cinza com uns grafites desenhados ao lado. Sem dúvidas era uma decoração estranha, pra ser sincero parecia um pouco deprimente, mas não dava pra negar que aquele era o verdadeiro palco de um rockstar falido. E quando a primeira banda subiu naquele palco o pessoal foi fumar um beck na esquina. Julia queria tragar de qualquer maneira, porque ela não poderia beber. Disse que precisava fazer um exame de sangue no dia seguinte ou coisa assim, mas no final acabou bebendo e fumando. Ela é a garota do grupo, a progesterona, deve estar com uns 17 ou 18 anos e tem um olhar triste. Triste demais. Demais.
Ela fica bem quando sorri, as sardas do rosto repuxam e o cabelo ruivo balança. Mas os olhos permanecem tristes. Acho que é a garota com os olhos mais tristes que eu já vi distribuindo sorrisos e segurando um copo de cerveja pela metade. Não demorou muito e o beck terminou, então eles voltaram, relaxados de verdade, e eu estava no mesmo lugar, na entrada do Formigueiro, ao lado de um pessoal indie sentado nos dois sofás em frente ao palco. Eles enchiam a cara desde muito antes da gente chegar. As mesas estavam lotadas de garrafas vazias e copos cheios e eu bebia junto deles como um corpo estranho, completo desconhecido. E brindávamos em silêncio. Gui e Julia foram conversar com ‘a garota que faz cover do Hole’. O resto entrou no boteco para comprar algumas cervejas e curtir a Bufálo. Eu me aproximei pra dar umas bicadas e ficar mais perto daquele pós-rock instrumental, um lance pesado e intenso que me lembrava de verdade a pegada de Chicago. E, na verdade, os caras escutam Tortoise pra caralho, mas também embalam num God Speed You, Explosions In The Sky e tudo mais. E eu ficava pensando nisso tudo e em outras coisas ao mesmo tempo e tudo se embaralhava de um jeito
estranho, porque eles são uns pirralhos que mandam bem e não sabem sintonizar uma rádio, e conhecem as tangentes e ninguém dirá que são da zona leste e não de East Village enquanto eles ficarem de boca fechada, e no final eu admirava ainda mais o Ayuso por ter chamado a Bufálo, porque curto pra caralho essa onda pós-rock e já estava ficando puto com aquele melodrama sem graça do Hurtmold. Mas aí apareceu o Ayuso e a Bufálo e a Monaural e o Formigueiro e toda aquela galera grunge e um monte de outras galeras e de novo a Monaural era só mais uma no meio das outras naquele pequeno festival na puta que o pariu, como o filho bastardo de um filho bastardo, porque no fim das contas o grunge pulou a janela do mainstream pra roubar a chave do cofre e fazer umas cópias e distribuir por aí e agora ele voltava pra casa, sei lá, bem-sucedido e tudo mais, mas resignado também, desejando apenas que tudo voltasse a ser como antes, como um a mais no meio daquilo tudo, dos outros, do underground. E então, de repente, parecia que as coisas se encaixavam. Definitivamente, parecia que as coisas se encaixavam. “Cara, o grunge é o beat pós-moderno”, agarrei Ovelha quando o vi se aproximar. “Acabei de perceber isso, porra, agora parece tão óbvio”, eu
estava excitado, e antes que ele pudesse abrir a boca, eu emendei, “o Ayuso me disse que é foda ter uma banda grunge hoje em dia, o pessoal tem um pouco de preconceito, acha que é um som intenso e tudo mais, mas coisa do passado, sem propósito. Sentiu a conexão?! Kurt Cobain é nosso Jack Kerouac! Cara, como eu não pensei nisso antes?!”, velho, como eu estava orgulhoso de mim mesmo naquele momento. “Tá curtindo o som dos caras? Eu não gosto muito de banda instrumental, me cansa um pouco”, apontou para a Bufálo. “Eu gosto”, olhei pra ele, ansioso pra burro, esperando aquela boca se mexer e concordar comigo, era a coisa certa a fazer naquele momento. “Pensa bem, os caras eram rebeldes, o pessoal de Seattle, mas não o que se pode chamar de politizados, saca?! Não que eles fossem os filhos de uma crise sem precedentes, mas talvez de uma crise moral, que seja, de um abismo de desesperança”. “To ligado. Mas, velho, acho que você vai gostar da próxima banda, chama Vollupeo”. “Mas agora”, eu ia insistir, cara, até ele me dar ouvidos, “olha pra esse pessoal, é a herança porque, poxa, o Herik vende seguros e toca bateria, o Gui estuda produção musical e limpa microfone como estagiário em alguma produtora, e o Ayuso, velho, o
Ayuso acabou de ser mandado embora. Sente a conexão, porra!”. “Então, você vai curtir o som dos caras da Vollupeo, de verdade, é meio hardcore”. “Uma bosta”. Tudo bem, talvez não fizesse assim tanto sentido, mas eu pensaria melhor naquilo num outro momento. Prometi pra mim mesmo que pensaria. Todo o pessoal entrou pra ouvir a segunda banda e eu os segui ainda lembrando do que Ayuso havia me dito sobre ter uma banda grunge. Eu tive uma banda grunge, chamava Kitsh e a gente era ruim pra cacete. Nunca fizemos um mísero show, mas a gente gravou umas músicas no computador do Vitor, o baixista. O som soava bacana, mas só porque o baixo parecia um conta-gotas. É que o Vitor plugou ele nunca caixinha de violão e no fim parecia até original. Era bem a nossa cara, dois adolescentes de classe média cheios de angústias, e de náuseas dos colegas mauricinhos e das patrícias biscates, que davam pra todo mundo menos pra gente. Aquelas vadias. E com um puta medo do futuro, cara, a gente se borrava todo pensando no futuro. Mas tinha um negócio que nos protegia, que jogava a gente numa ilha meio solitária e ranzinza, e isolada pra caralho, mas aquela, cara, aquela era
nossa ilha. E a gente ficava lá curtindo nosso visual grunge tosco, aquele jeitão relaxado e esnobe, cuspindo antipatia com o lacrimejar. Lá de longe. Na verdade o Vitor era mais descolado, eu não, nunca saía sem minha calça rasgada e minha blusa xadrez de flanela azul. Tenho até hoje essa blusa, acho que a gente nunca deixa de ser pelo menos um pouco de algo que nos cicatrizou. E aquela blusa era minha cicatriz, o que me fazia diferente daquela cambada de bovinos do Marista Paranaense, minha carta de alforria. Quando estava com ela eu não fazia parte daquilo e deixava isso muito claro pra todos aqueles malditos filhinhos de papai. Eu era um deslocado e esse era meu orgulho, minha bandeira, estava naquele lugar por uma merda duma dislexia do destino. Nada mais que isso. Mas na Monaural o Gui e o Herik parecem sossegados com esse tipo de coisa, apenas o Ayuso encana pra valer com isso de roupa, postura e tudo mais. De um jeito até meio compulsivo ele faz de tudo pra fugir do estereótipo grunge, e, puta merda, como ele enche o saco do Gui quando o cara fala que quer trocar seu modelo JazzBass por um Thunderbird. Acontece que esse é o mesmo modelo que o Christ Novoselic usava. Isso não seria um problema se ele mesmo não tocasse com uma
guitarra parecida com a do Cobain, uma imitação toda cheia de estilo feita pelo Marcatti. “Olha as coisas que uma banda grunge tem que se preocupar hoje em dia”, ele reclama de bobeira, mas é sério, até boné do NY com a aba virada pra trás ele usa. O boné é importante porque esconde bem o cabelo tingido de loiro e um pouco comprido, meio Beatles. Blusa xadrez, porra, nem pensar. Mas o talho no jeans está lá, na parte do joelho. O pior é que o cara parece mesmo o Kurt, é sério, às vezes ele deixa um cavanhaque e parece mais ainda, aqueles fios loiros despontando num rosto suave e delicado pra caramba. O Herik é da opinião de que ele ficou um pouco traumatizado por culpa do último baixista da banda, um tal de Gualter. “O cara teve uma banda que chamava Flanela Xadrez, tem noção?!”, me explicou Herik no dia anterior. “Ele fazia o estilo Kurt Tubaína, saca, com um símbolo da Sub-pop no All Star, sempre de blusa xadrez e calça rasgada, e com um puta pessimismo, maior brisa”, eles tinham dado um tempo no ensaio pro show do dia seguinte, então a gente aproveitou pra conversar um pouco. “Eu também tive minha fase Kurt”, continuava Ayuso enquanto me passava a ponta do primeiro e solitário beck, “acho que todo
mundo que viveu isso de grunge teve. Até hoje em dia a molecada ainda passa por isso. Mas a do Gualter durou tempo demais. Ele ficou na banda cinco anos e nos três primeiros, mais ou menos, o cara andava desse jeito”. É bem provável que ele esteja certo, eu fui um Kurt Tubaína por uns tempos, entre os 15 e os 17 meu negócio era deixar o cabelo seboso e longo e curtir a depressão, caralho, como eu arrumava motivos pra me meter numa fossa. Era um talento, velho, e eu sabia explorar direitinho aquela merda sem fundo. “Mesmo depois dos cinco anos a gente não teve nem um terço da afinidade com o Gualter, do que a gente tem com o Gui, que está na banda só há um ano”, explicou Herick. Mas foi uns três anos atrás que apareceu na caixa de entrada do Gui um e-mail do Ayuso. Porra, ele não fazia idéia quem diabos era aquele sujeito escrevendo pra ele clicar num link suspeito e escutar uma banda ainda mais suspeita. Nem sabia como ele tinha conseguido seu e-mail. De certo por alguma comunidade do Orkut ou coisa parecida. Mas o negócio é que o Gui resolveu clicar na droga do link do Trama Virtual e escutou uma versão de Ironia. “Porra, que som foda pra caralho”, pensou na hora, e ele tinha uma banda grunge na época,
fazia o vocal e tocava guitarra, então eles começaram a tocar uns covers da Monaural no ensaio. Até porque não é sempre que aparece um maníaco distribuindo e-mails por aí, assim, com um som foda pra caralho. Gui adicionou o Ayuso no MSN e começaram a trocar idéia. A primeira vez que se encontraram foi na galeria do rock, porque Gui queria comprar um ingresso e eles acabaram bebendo juntos boa parte da tarde. Quando o Gualter foi chutado da banda não tinha escolha mais óbvia, até porque o cara já era quase uma groupie. Além do mais, não é sempre que você manda um email qualquer e, de repente, algum maníaco resolve te adicionar no MSN e virar sua groupie. Além do mais o cara tocava bem pra caramba e tinha presença. E uns amigos que colavam em todos os shows. Era um pessoal mais novo, os amigos do Gui, e é sempre bom dar uma renovada e ter uns caras que sabem as letras de cor. É que o Gui tem só 20 anos, pra ter uma idéia, ele sequer lembra do dia em que o Kurt explodiu os miolos. Naquela tarde, Ayuso brincava de alguma coisa, devia ser lego, quando a Globo deu a notícia. Ele prestou um pouco de atenção, porque lembrava de ter gravado algum clipe da banda daquele cara. Ayuso tinha essa mania de gravar tudo quanto era clipe de rock naquela fase dos 12 ou 13 anos. Até Poison ele
gravou, vê se pode. Como não parecia muito importante ele voltou a brincar. Mas aquilo de alguma maneira ficou guardado na sua memória, porque dois anos depois, quando o primeiro cassete do Nevermind caiu na sua mão, ele lembrou daquela tarde de abril e o Nirvana nunca mais saiu da sua vida. Na manhã do dia seguinte, a tia do Herik foi visitá-lo, ela sempre aparecia lá com os filhos no sábado de manhã. Aí, sem mais nem menos, ela disse “vocês viram quem morreu?!”, ninguém estava ligando praquilo, mas ela continuou: “foi o vocalista daquela banda de rock, o Nirvana”. Herik estava pouco se fodendo se aquele insano tinha se matado, o lance dele era Guns, porque o irmão dele era fã da Axl e o negócio é que o cara levava bem a sério aquela droga de dever moral do irmão mais velho estragar o caçula. Eles tinham até uma banda cover do Guns, mas era só de brincadeira, pra se imaginar no palco com toda aquela galera gritando seus nomes, e eles lá, fazendo um solo de 23 minutos em cima do piano e no meio daquelas luzes todas. Era o máximo, Herik adorava. Mais tarde ele tentou escutar Guns na rádio, sintonizou a 89 mas só tocava Nirvana, aí ele tentou a Transamérica, porra, eram as duas únicas rádios rock’n roll e os caras só martelando grunge atrás de grunge.Uma porcaria.
Mas o lance é que nenhuma luz rebatia em cima deles quando os caras subiram no palco às 20h45. No máximo um flash aqui e lá estourando numa foto ou outra, ou o sorriso triste de Julia no meio do salão. O palco de um rockstar falido e a porra de uma banda de garagem. Cara, aquilo era a ressurreição. Ayuso subiu no palco e falou: “Eu quero agradecer ao Formigueiro, a todo pessoal que veio e é isso aí”, e então rasgou o primeiro acorde de Acaba Logo Com Isso. Quando tentou gritar algumas frases percebeu que a caixa de voz tinha pifado de vez. Mas aquilo não tinha muita importância por isso ele continuou cantando mesmo com aquele chiado estranho no fundo. Forte e cru, como uma bofetada de saudosismo que acerta em cheio o miocárdio. De verdade. O Ayuso embarca numa espécie de transe quando segura uma guitarra e se esgoela e sussurra no microfone, sem brincadeira, ele contrai o lábio prum canto da boca e fica grunhindo como um amaldiçoado, cochichando as letras como se contasse um segredo no ouvido de cada um ali na pista. É de arrepiar, sem frescura, é sério. Mas quando o cara grita vem aquela sensação do sangue rasgando as veias, saca, você sente o cara vivo e pulsando, e você se sente vivo e pulsando.
E ele grita muito, é porque se não gritasse feito a catarse de toda aquela gente ele não seria um rockstar falido, alguém precisa fazer o trabalho sujo e exorcizar no berro toda aquela porra daquela angústia, daquela angústia jovem e pulsante, esse maldito negócio que faz a gente se sentir vivo e pulsando. E cara, a intensidade da coisa não parava de subir e eu conseguia ver os pedaços da baqueta do Herik se despedaçando sempre que ele a esmagava no surdo como se fosse a fuça daqueles filhinhos de papai do Marista. Ah, cara, eu me sentia em casa. E quando a tensão caía, assim, numa levadinha pop e calma, dava até pra reparar naquela fitinha azul do Senhor do Bonfim no tornozelo esquerdo do Herik balançando no ritmo do chimbal, tranqüila e preguiçosamente, aquela fitinha no tornozelo do Herik. Acontece que aquilo foi um presente que o Herik recebeu quando esteve em Salvador. Ela foi benzida, a fitinha, e o Herik não brinca com essas coisas, é um negócio importante pra ele, é sério, porque é um cara sossegado que não fuma e curte se sentir bem e tranqüilo com a vida, então ela fica lá, aquela fitinha azul, balançando nas baladinhas pop, como se fosse balançar pra sempre ao redor daquele pé descalço. Mas aí começou Risca do Zero e a corda da guitarra do Ayuso arrebentou. O maldito MI. E o Gui disse
que estava tocando sem retorno. E a baqueta do Herik partiu ao meio. Ele a atirou no chão, ao lado dos tênis Bamba, e coçou o ombro esquerdo onde tem uma tatuagem parecida com a capa do In Utero. Ele não tinha nenhuma baqueta reserva e suava pra caramba, acho que por isso estava se coçando, tinha até tirado a camisa depois que tocaram De Nada, bem no começo do show, mas suava demais mesmo assim. Ele bate pesado de verdade, às vezes até pesado demais, porque já saiu com as mãos sangrando de vários shows, mas só percebia quando a adrenalina baixava, e o álcool também. Acho que é por isso que ele costuma encher a cara antes de subir no palco, ou pelo menos ficar um pouco entorpecido, mas naquela noite tomou só umas duas ou três cervejas. O Ayuso também curte tocar meio bêbado ou chapado, mas pra ele isso é mais uma questão de princípios ou algo assim, porque não dá pra fazer um grunge assim, visceral mesmo, quando o cara é careta demais, sem brincadeira, as vísceras tem que estar ali, cara, explodindo na alma ou viceversa, e é assim que ele pensa e é assim que ele toca. Mas no final a sorte foi que o vocalista da Vollupeo emprestou a guitarra, e o baterista da Bufálo entregou a Herik seu par de baquetas. Mas o Gui, cara, o Gui continuava peregrinando do palco pro chão, do palco pro chão com movimentos secos
e contidos, secos e contidos, e ficava na frente da caixa de som sempre com aquele sorriso tímido na cara junto com Ovelha e Julia que não se pogavam pra tentar escutar o que ele tocava. E ele tocava, poxa, como ele tocava. Porque ele também curte ficar muito louco enquanto dedilha sem paleta aquele baixo meio ensandecido, mas o beck já tinha baixado e ele não segurava nenhum cigarro entre os dedos pela primeira vez naquela noite, mas bebericava uma cerveja e tocava como um ensandecido, seco e contido, seco e contido e aquele sorriso tímido sempre no rosto e do palco pro chão, do palco pro chão como um ensandecido. E aí, cara, aquele maldito som começava a subir e subia uma música e outra e forte e triste e angustiado demais e intenso pra caralho quando subia e subia mais e a gente lá e então o Ayuso largou a guitarra bem na frente da caixa de som e ela ficou lá reverberando cheia de microfonia enquanto ele mexia nos pedais e o Gui e o Herik aceleravam o ritmo até estratosfera e além, e até o silêncio. Era o gran finale. O suor ainda escorria pelas costas do Herik quando ele se virou para a última paulada no prato e pude
ver o símbolo da Monaural tatuado nas suas costas. Todo encharcado. Mas reluzia como nunca. Como nunca. E o Ovelha do meu lado, arrepiado pra cacete, balançando a cabeça e olhando os caras com um abismo nas retinas e falando: “Sem brincadeira, já vi eles tocarem pra cinco pessoas num muquifo pior que esse e, cara, é sempre assim, pesado, intenso, sei lá, mas é sempre assim”. Um lance meio mágico, cara, estranho de sentir, eu entendo. Então eu fui abraçá-los. Resolvi ir embora logo depois, não porque precisasse ou coisa assim, mas queria voltar pra casa com aquela lembrança bem viva e pulsando. Por isso me despedi de todos e rumei para a avenida tomar um ônibus. Deixei pra trás aquele pessoal, que bebia mais uma cerveja barata num boteco vagabundo, e era só mais um pessoal no meio de tantos outros. A gente voltou pro berço, cara. Pro berço.
Fotos: Pimar Ramos
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