entrada. “Só mais um vagabundo”. Há tanta violência nessas palavras quanto inveja em seu coração. Por isso silencia: é o que faz quando quer ser ouvido. É o que pensa. E o violeiro agradece. Ele desce escada abaixo. Se mete catraca adentro. Aperta o botão. Entra no elevador. Pega o celular, abaixa a cabeça e digita: “S2 Bom Dia S2” e envia para o grupo da família. Passa pelo corredor, pela secretária e três fileiras de baias cheias de colegas desconhecidos: “Aí seus puto soh assim q eu acordo”, anexa o vídeo de um boquete matinal do My Friends Hot Mom e manda para o grupo de amigos machos. Coloca o celular no bolso. Levanta a cabeça e liga o computador. Estica duas carreiras de timeline e inspira profundamente as notícias do dia: é um cara bem informado, superinformado, excessivamente informado. Como quem come cereal a colheradas, consome todas as verdades da internet – e se está na internet, só pode ser verdade... Abre o site de esportes e desfruta de seu antiácido matinal. Aproveita a aba aberta e dedica alguns minutos à militância: assina petições pelas baleias japonesas, pelos gatos australianos e em prol da liberdade religiosa na Tailândia. O mundo precisa de caras de alto rendimento e super bem informados para sustentar suas causas urgentes. Com exceção, evidentemente, dos sem terra, sem teto, sem universidade: “Tudo tem limite”. Apoia a am-
pliação dos direitos, é claro, contanto que não rele em seus privilégios e propriedades. Nada demais: branco e hétero, um Playstation 8 e um iPhone 6S. Finge arrumar o sapato e confere as pernas da colega em frente. “Já é a terceira vez com essa calça jeans só essa semana.” Todas as manhãs ele torce – chega a fazer figa e ensaiar prece – pela saia curta e leve, de preferência sem meia-calça. “Deus tá vendo, porra!”, mas, na verdade, as câmeras de segurança interna foram desligadas por conta da crise. Bem como 30% dos funcionários. Respira aliviado. Se benze enquanto clica numa manchete escondida no cantinho da tela: “Mais de 1.284 exoplanetas descobertos de uma só vez”. Ah... Se Deus tivesse os telescópios de hoje em dia. Faria milagres. Almoça respondendo e-mails: no entanto, antes de devorar uma caesar salad com frango empanado – afinal, é importante manter hábitos alimentares saudáveis –, tira uma foto e posta no Insta com a legenda: “healthy food : )”. Posta no Face como se não houvesse amanhã. 730 calorias, 1.400 miligramas de sódio: mais do que uma porção de nhoque ao molho de tomate; mais do que um prato de feijão, arroz e batata; mais do que um Big Mac. Mais do que ele jamais saberá. Termina a Coca Diet e segura o arroto. Educação vem de berço. Bebe um expresso pra matar o sono. Come um Snickers para matar a fome. Abre o Tinder pra matar o tempo (e quem sabe encontrar a mu-
lher de seus sonhos, a princesa encantada, a mãe de seus filhos: recatada de dia, depravada de noite). Três matches, quatro linhas de conversa e nada de sexo: um novo recorde, deve estar com sorte. Volta correndo para sua baia: é disciplinado no trabalho e hedonista em casa. É o princípio básico da nova economia capitalista. É o que se espera que seja. E está muito bem assim, obrigado. Bate o cartão como quem bate punheta. Vai ao psicólogo como quem vai ao mecânico. Vai à academia como quem vai à Igreja. Vai ao centro espírita. Vai ao encontro de cientologia. Só não vai pra umbanda e pro candomblé. Vai pro culto como quem oculta no peito um pedaço do inferno ou esconde no bolso um hectare e meio de um paraíso fiscal. Mas só quando for chefe. Assim espera. Por agora, dá o dízimo de acordo com a oferta. Cartão de crédito, por favor. Ganha milhas por cada louvação. Volta pra casa cansado: quer escrever o romance da década, mas tudo o que consegue tragar são alguns episódios repetidos de Friends e o segundo tempo de um jogo da série B. Abre o Pornhub: hardcore, amadoras, MILF, hentai, DP, threesome, gangbang, trans. Por cinco minutos, dedica-se ao amor próprio. Enfia um dedo no cu. Enfia outro: ejaculação precoce. Tosse. Cospe. Culpa-se. Lava-se. Dropa dois comprimidos de Dorflex. Abre uma cerveja. Engole. Engole a noite. Encolhe-se. c
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