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Expediente Texto: Juscelino Ribeiro Orientação e revisão: Samantha Castelo Branco Capa: Juscelino Ribeiro Fotos: Juscelino Ribeiro / Arquivo do CRIA

_________________________________________ RIBEIRO, Juscelino. Casa: Um Olhar Sobre Abrigamento Institucional em Teresina Juscelino Ribeiro de Oliveira Júnior UFPI: Teresina, 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – CCE DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Juscelino Ribeiro de Oliveira Júnior

Casa: um olhar sobre abrigamento institucional em Teresina

TERESINA 2012 3


Juscelino Ribeiro de Oliveira Júnior

Casa: um olhar sobre abrigamento institucional em Teresina

Livro-reportagem Departamento

apresentado de

ao

Comunicação

Social da Universidade Federal do Piauí, como trabalho de conclusão de curso. Orientadora: Profª. Drª. Samantha Castelo Branco.

TERESINA 2012 4


Agradecimentos A Deus, por me dar capacidade para produzir este livro.

À minha família, que sempre me apoiou em qualquer situação e forneceu tudo o que eu precisava para realizar meus sonhos, agradeço nas pessoas de meu pai, minha mãe e minha irmã.

Para Luíra Lyra, que veio e tão cedo se tornou a alegria que sempre procurei.

Para os grandes amigos, que foram fortes incentivadores e responsáveis pelos momentos de descontração e apoio, agradeço nas pessoas de Igor Prado, Tamires Coelho, Rodrigo Siqueira e Allyson Campos.

Ao CRIA, por ter aberto totalmente as portas para que esse trabalho fosse realizado, bem como os abrigos e todos os que contribuíram de alguma forma para a concretização deste livro, agradeço na pessoa de Francimélia Nogueira.

A todos os meus professores, pelas lições aprendidas até hoje. À minha orientadora, Samantha Castelo Branco, pela liberdade e pela compreensão.

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Sumário Introdução.............................................................................................................................8

Apresentação......................................................................................................................11 - A primeira visita ao abrigo................................................................................................13

1. O histórico.......................................................................................................................16 - A criança e o adolescente enquanto sujeitos de direitos..................................................17 - O panorama social até a elaboração das primeiras leis...................................................18 - O surgimento da primeira legislação................................................................................19 - “O Internato de Horrores”.................................................................................................21 - A Funabem e o “menor” na ditadura.................................................................................22 - Surge o segundo Código de Menores..............................................................................25 - O Estatuto da Criança e do Adolescente..........................................................................27 - O ECA e o acolhimento familiar........................................................................................28

2. O abrigo..........................................................................................................................31 - Perfil dos abrigos no país.................................................................................................32 - O que acontece a nível local............................................................................................34 - A permanência nos abrigos..............................................................................................36 - O modelo do “Lar da Criança”..........................................................................................38 - Como funciona o “Lar”......................................................................................................40 - Como o tempo passa no abrigo........................................................................................41 - O Lar da Criança, o CRIA e o Programa de Acolhimento Familiar..................................42 - O perfil buscado pelos pretensos a pais..........................................................................44

3. O CRIA e o Acolhimento Familiar...................................................................................47 - O surgimento do Acolhimento Familiar.............................................................................48 - Os primeiros acolhimentos em Teresina..........................................................................50 - O CRIA.............................................................................................................................52 - Sua missão.......................................................................................................................53 - A importância do trabalho.................................................................................................55 6


- Os benefícios da implantação do programa.....................................................................56 - O histórico do projeto........................................................................................................57 - O desenvolvimento pessoal proporcionado pelo programa.............................................58 - Sobre o preparo para deixar os abrigos...........................................................................61 - A necessidade do tratamento individual...........................................................................62 - O que ainda tem que mudar?...........................................................................................63 - As alternativas à fila de espera.........................................................................................64 - O CRIA está cumprindo seu papel?.................................................................................66 - “O abrigo deve ser a última das alternativas”...................................................................67

4. Aspectos jurídicos...........................................................................................................72 - Como adotar................................................. ...................................................................73 - A Lei Nacional de Adoção................................................. ..............................................74 - A nova Lei e o CRIA................................................. ................................................. .....76 - Como esse processo é visto pelas famílias................................................. ....................78

Conclusão..........................................................................................................................79 - Seria o acolhimento uma solução? .................................................................................80 - Casos em destaque.........................................................................................................81 - O Acolhimento mais comum............................................................................................83 - Perspectivas para o abrigamento em Teresina...............................................................85

Referências bibliográficas..................................................................................................89

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INTRODUÇÃO No Brasil, ainda é assustador o número de crianças e adolescentes vivendo em abrigos mantidos por instituições públicas e organizações não-governamentais. Hoje, em Teresina, existem oficialmente seis destes, responsáveis por oferecer moradia e assistência a crianças e adolescentes retirados de suas famílias originais por medidas judiciais. Grande parte do problema está relacionado à grande quantidade de destituições familiares, ao interesse por apenas alguns perfis de crianças por parte das pessoas aptas a adotar, além dos trâmites legais que atrasam a resolução dos processos, obrigando os abrigos a receberem crianças e adolescentes para os quais não existe outra saída senão esta. Uma das questões incitadas neste trabalho foi a de analisar como se dá a vida desses jovens após o abrigamento; como esse fator interfere em sua vida; e como o abrigo prepara (ou não) essas crianças e adolescentes para a reintegração social, seja no retorno ao seu núcleo de origem ou em uma outra família. Além disso, a proposta desse livro foi a de conhecer melhor uma realidade que, ao longo de todo o curso da história, sempre teve sua relevância social extremamente subestimada até poucos anos: o fato de crianças e adolescentes serem indivíduos detentores dos direitos universais do ser humano, bem como de garantias próprias. Um dos principais objetivos, sem dúvida, foi o de buscar formar uma peça importante para a discussão dos direitos de crianças e adolescentes que vivem nos abrigos de adoção em Teresina. No entanto, a ideia de produzir esse livro surgiu de uma inquietação totalmente pessoal minha no sentido de descobrir de perto como funciona cada peça do sistema de adoção e dar mais visibilidade às informações sobre esse trabalho. Desempenhei o trabalho de assessor de comunicação da ONG Centro de Reintegração Familiar e Incentivo à Adoção1 (CRIA) em diversos períodos isolados desde junho de 2010 a fevereiro de 2012 e pude constatar, in loco, todas essas situações e o

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O Centro de Reintegtração Familiar e Incentivo à Adoção é uma Organização Não-Governamental que trabalha em contato direto os seis abrigos de Teresina gerenciando o processo de acolhimento familiar e incentivando a reintegração familiar ou a adoção, de acordo com cada caso.

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impacto emocional que elas provocam nas crianças e adolescentes que ainda vivem hoje em abrigos de adoção. Foi analisado todo o sistema socioassistencial público e filantrópico colocado à disposição desses jovens e a maneira como esses abrigos e entidades relacionadas atuam para garantir-lhes o direito à convivência familiar e comunitária. Durante o período em que este projeto encontrava-se apenas na fase de pesquisa preparatória, entre agosto e dezembro de 2011, procurei traçar as formas de atuação, conversando com famílias acolhedoras, psicólogos, assistentes sociais, cuidadores dos abrigos, diretores das casas de abrigamento e outros profissionais que vivenciam essa realidade diariamente. Além disso, procurei ler bastante trabalhos na área de assistência social duante o processo de preparação. Neste ponto, posso citar como os que mais me ajudaram a ver a realidade por dentro, a coleção “Abrigos em Movimento” (Secretaria de Direitos Humanos, 2010) e “Manual do Pai Adotivo” (Sávio Bittencourt, Niterói, 2010). A partir de janeiro de 2012, o primeiro processo a ser colocado em prática foi o de pesquisa historiográfica sobre a posição social atribuída às crianças e adolescentes ao longo da história, não somente no país. Para isso, toda a legislação brasileira referente ao tratamento de crianças e adolescentes, desde o período em que eram conhecidos apenas por “menores”, também foi consultada no acervo digital do site da Presidência do Brasil (www.planalto.gov.br). Esta pesquisa, basicamente documental, também contemplou informações referentes à realidade teresinense, se utilizando de materiais jornalísticos (como matérias em sites e jornais impressos) e de dados coletados pelas instituições que lidam diretamente com essa realidade. Somente com uma análise desta situação, levando em conta como ela foi formada a partir das evoluções alcançadas em cada ponto, é que a coleta dos depoimentos pôde ser iniciada. A maior parte das entrevistas que resultaram nas falas que integram este livro foram realizadas em momentos diferentes, entre janeiro e junho de 2012, durante os acompanhamentos nos abrigos, visitas ao CRIA em datas semanais de encontros para acompanhamento psicológico das famílias acolhedoras, e em eventos maiores, envolvendo as crianças que ainda estão abrigadas.

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Apesar de ter visitado a Casa Dom Barreto2 e ter tido contato direto com outros diretores de abrigos antes da produção, por tratar de uma realidade tão delicada, o local escolhido para a pesquisa e acompanhamento do livro foi o Lar da Criança Maria João de Deus3, especialmente pela abertura e disponibilidade para o acompanhamento encontrada junto à direção do local. Por já ter trabalhado - inclusive de maneira voluntária - diretamente em ações envolvendo crianças do Lar da Criança e até conhecer parte da equipe que o integrou durante o ano de 2012, o acesso e a liberação para o acompanhamento se deu de maneira mais fácil, com intermédio do CRIA. O acompanhamento para a escrita do capítulo que se passa dentro do abrigo foi realizado entre os meses de março e início de abril de 2012, observando o comportamento das crianças e ouvindo psicólogos e assistentes sociais sobre como realmente é a realidade dentro de uma casa de acolhimento institucional. Nesse período, a técnica utilizada foi a de pesquisa de campo. Nesse trabalho de acompanhamento, visando uma posterior publicação mais ampla do material coletado, o projeto abriu espaço para extensões em outras plataformas midiáticas, como fotografia, áudio e vídeo – alguns destes inclusive utilizados na ocasião da captação dessas informações via entrevistas. Todas as coletas de depoimentos somente foram realizadas após a devida explicação sobre o propósito final do trabalho e de autorizações gravadas por áudio ou apresentadas via email por parte dos entrevistados. Levando em conta seu potencial emocional e, especialmente, seu caráter informativo, o trabalho será registrado sob o selo de utilização livre “Creative Commons”, que permite livre circulação, reprodução e abre espaço ainda para reformulações por parte do público, de forma gratuita.

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A Casa Dom Barreto é uma instituição de abrigamento filantrópica mantida com recursos do Instituto Dom Barreto desde 1984. Atende a crianças e adolescentes com idades entre 0 e 18 anos. É a mais populosa de Teresina e fica situada no bairro Mocambinho I, zona Norte de Teresina. 3

O Lar da Criança Maria João De Deus é um abrigo mantido pelo governo estadual do Piauí por meio da Secretaria de Assistência Social e Cidadania (SASC). Funciona no bairro Vila Operária, zona Norte de Teresina, desde 2003. Atende a crian ças com idades entre 0 e 12 anos e é o segundo abrigo mais populoso de Teresina.

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APRESENTAÇÃO

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Entre indas e vindas, já se vão cerca de dois anos desde que termos como “adoção” e “reintegração familiar” viraram expressões comuns ao meu trabalho. Vendo quase que diariamente crianças que encontraram uma família em novos lares e pessoas que se esforçam ao máximo para garantir a elas esse direito, fica fácil acreditar em finais felizes e acabar esquecendo que nem todos tiveram a mesma sorte. A prova disso vem de um levantamento4 realizado em Teresina pela Organização Não-Governamental Centro de Reintegração Familiar e Incentivo à Adoção (CRIA) e finalizado em julho de 2012. Apesar do forte trabalho de assistentes sociais, pedagogos, psicólogos e outras dezenas de profissionais, as seis instituições de abrigamento institucional existentes em Teresina ainda servem de casa em tempo integral para 186 crianças e adolescentes que foram abandonados ou afastados de suas famílias de origem por medida protetiva. O dado fica ainda mais sério se você souber que, segundo os dados coletados pelo CRIA, a estrutura (ou a falta dela) do sistema de abrigamento de Teresina faz com que apenas três instituições tenham de somar juntas 93% de todos os abrigados em seus prédios. Sim, essa percentagem equivale a 173 crianças e adolescentes vivendo em três abrigos da cidade. Infelizmente, este é um dos problemas que ainda não encontraram espaço suficiente na sociedade para manter uma discussão permanente sobre a importância de pensar a longo prazo no futuro desses jovens. Para a maioria das pessoas, o assunto não desperta tanto interesse. Há pouco mais de dois anos, eu poderia ser incluído nesse grupo. No entanto, uma vez lá dentro, conhecendo pouco a pouco o trabalho duro e as vidas que se desenrolam por trás da palavra “Adoção”, é que se vê que tudo o que se conhecia por fora antes era apenas uma mera visão romântica de um conjunto de histórias quase sempre tristes - daquelas que deveria ser proibido se viver, muito menos nessa idade. 4

Os dados da pesquisa realizada pelo CRIA foram feitos com o intuito primário de revelar dados sobre a realidade dos abrigos para consumo interno da instituição, aprimorando sua maneira de trabalhar junto às casas de abrigamento. Tais dados não foram amplamente divulgados, no entanto, encontram-se disponíveis na sede da instituição para consulta por parte de interessados em estudos relacionados.

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Durante meses, mesmo antes do processo de escrita deste trabalho, acompanhei as movimentações - por vezes, cotidianas – dessas casas, estando sempre em contato com crianças e adolescentes que já haviam conseguido um dos passos mais difíceis: encontrar um caminho para a saída do abrigo e a entrada em uma nova vida. Vendo cada caso, é possível ver que a saída para todos, na verdade, é a reintegração social em um ambiente familiar. Apesar da aproximação com o tema, testemunhando frequentemente a realização de projetos e até conhecendo várias das crianças que ainda viviam em abrigos, foi apenas com o início do acompanhamento para este livro que acabei visitando de verdade um desses locais: o Lar da Criança Maria João de Deus, localizado em frente à igreja da Vila Operária, na zona norte de Teresina. A primeira vez que entrei no Lar foi “diferente”. Não diferente do que esperava encontrar, mas diferente de tudo o que já tinha visto até aquele momento. De tudo o que eu conhecia.

A primeira visita ao abrigo

Foto 1. Crianças são servidas com a merenda no meio da manhã no Lar da Criança (Arquivo do CRIA)

Era manhã do dia 19 de março de 2012, horário de escola para muitos dos pequenos, então todo o ambiente estava bem mais silencioso que o normal. Boa parte da equipe do Lar participava de uma reunião na sala da diretoria. Então uma amiga 13


(estagiária de Serviço Social do CRIA) e eu fomos deixados à vontade para conhecermos o lugar. Uma rápida visão daquelas muitas portas dispostas nos corredores, aliada àquele silêncio inesperado, me remeteram vagamente à lembrança de um hospital - ou mesmo um colégio em horário de pouco movimento. No entanto, as grades na entrada principal e por mais onde quer que eu olhasse - fizeram questão de arrastar minha mente para um outro lugar distante, bem mais sombrio. Apesar do clima pesado, aquele era um bela segunda-feira. Não fazia tanto sol e o forte calor que geralmente faz em Teresina antes de alguma chuva havia dado uma trégua - embora as crianças não pareçam ter ligado muito para o tempo. Era um dia de visita dos pais. Das famílias de origem. O movimento, porém, não era grande. Por volta das 10h30, apenas um grupo de cinco a dez pessoas, todas mulheres aparentemente com idades entre 20 e 30 anos, se reunia com os bebês no corredor que dá acesso aos dois berçários. O carinho em cada movimento delas era evidente, mas não haviam muitos risos - a não ser por alguns pequenos, que transbordavam alegria com o encontro. Cenas como esta geralmente são carregadas de pesar. Todas as crianças que vivem atualmente sob medida protetiva em abrigos sofreram ou estavam sujeitas à alguma forma de violência em ambientes familiares que não ofertavam a segurança que elas precisavam. Foram vítimas de abandono, negligência ou até mesmo de violência física, sexual e/ou psicológica. É exatamente por isso que, em alguns casos – não raros -, as próprias crianças rejeitam a ideia mais defendida por esse tipo de instituição: a reintegração à família de origem. Provavelmente pela mesma razão, boa parte das outras crianças mais velhas não tenham recebido visitas especiais naquela manhã, pensei. A greve dos funcionários da educação infantil estava no fim, mas nem todas as escolas haviam reaberto as portas ainda, então as crianças que se encontravam no Abrigo naquela manhã ou estavam em um momento com seus pais biológicos ou envolvidas em atividades de recreação com as equipes do Lar. Falando nisso, até mesmo em um rápido passeio pelo abrigo, não é difícil notar a atenção e o carinho com que cada funcionário lida com as crianças. Desde as brincadeiras nos momentos de atividades em conjunto até os cafunés gratuitamente distribuídos pela recepcionista. Afeto este que tenta amenizar o efeito do abrigamento, apesar de tudo. Um pensamento que não pude evitar foi o de que, mesmo com essa atenção e a estrutura do 14


local – que é um dos melhor aparelhados, dispondo de dezenas de profissionais para atender a todos -, para aquelas mais de 50 crianças, tal tratamento ainda passa longe de se aproximar do que é uma família. Se isso fez você refletir sobre o que passa na cabecinha de cada uma de nossas crianças todos os dias, peço que imagine qual é o efeito de meses, e até anos, vivendo em instituições que não possuem nem mesmo essa estrutura. Grande parte das crianças e adolescentes não possuem ainda nem seus processos jurídicos em situação próxima da adoção. Nossa situação, teria sido melhor antigamente? Se não, estaremos perto de alcançar um sistema que evite que a vida desses garotos seja rodeada por algo tão sombrio quanto a incerteza? Apresento-lhes, enfim, minha inquietação. Isso foi o que tentei descobrir durante estes meses. Este livro é uma espécie de coletânea de textos que juntos buscam sinalizar para onde estamos indo e em que velocidade caminhamos. Muito do trabalho busca desvendar qual seria a real opção que mais se assemelha a uma saída para os problemas que impedem que o sistema atual dos abrigos seja mais eficiente. Espero que pelo menos uma parte do que senti em cada visita aos abrigos, cada procura

por

documentos

oficiais

antigos,

cada

entrevista

realizada

e

cada

acompanhamento de ação em mais de um ano e meio possa ser sentido por você enquanto lê.

Teresina, 29 de outubro de 2012 Juscelino Ribeiro

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CAPÍTULO 1 O HISTÓRICO

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A criança e o adolescente enquanto sujeitos de direitos Hoje, é inegável que a unidade da família é uma peça fundamental ao processo de socialização e humanização dos indivíduos que a compõem. Principalmente no que se refere à criança e ao adolescente, a legislação brasileira atual reconhece oficialmente a família como estrutura essencial para o desenvolvimento integral de qualquer indivíduo. No entanto, a discussão sobre a importância da integridade da família para o desenvolvimento dessas crianças e jovens, da forma como ela acontece hoje, não conta muitas décadas em seu histórico. Na maior parte da história do país, pouco – ou, praticamente, nada - se falou sobre como o Estado deveria agir perante casos de desrespeito aos direitos de crianças e adolescentes que tenham sido vítimas de violência ou negligência familiar – sejam elas de qualquer forma. Essa situação perdurou até a primeira parte do século XX. E aí está a questão. O problema é bem mais antigo que isso. No que se refere à legislação sobre o tema no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é o atual guia que serve de base para a defesa desses direitos. O ECA (Lei nº 8.069), que está em vigência desde julho de 1990, foi assinado pelo então presidente Fernando Collor e acabou por finalmente preencher uma série de lacunas seculares que insistiam em incentivar o tratamento de crianças e jovens como seres desprovidos de voz ao invés de pequenos indivíduos detentores de direitos. Os debates que começaram a surgir nos primeiros anos do século passado renderam uma série de experiências que foram levadas em conta para a elaboração do Estatuto. Durante 60 anos entre a oficialização das primeiras leis de assistência social com esse foco e a assinatura do ECA, alguns modelos de códigos foram formulados e chegaram até a serem colocados em prática no país. Analisando-se em uma linha do tempo, o primeiro ponto histórico em que a discussão legal sobre preservação dos direitos de crianças e adolescentes aparece no Brasil surge com a oficialização do Código de Menores, no fim da década de 1920. Num comparativo da legislação vigente com os códigos que antecederam o ECA, é possível notar claramente essa diferença, revelando nas entrelinhas os contextos históricos nos quais cada sistema de normas foi elaborado. 17


O panorama social até a elaboração das primeiras leis Os contextos social e político nos quais o país se encontrava emergido no início do século XX eram totalmente diferentes dos que conhecemos hoje. Pela não existência de rigorosas leis que impusessem ao Estado a responsabilidade sobre as crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, durante boa parte da história do país, esse papel foi desempenhado por “instituições de caridade”. Voltando à época do período colonial, seguindo ordens da coroa portuguesa, as câmaras municipais deveriam ser as encarregadas de encontrar os meios para criar as crianças que não possuíam família. Por ter de fazê-lo utilizando seus recursos, esse encargo não raro era desempenhado a contragosto. Apesar disso, a atuação do poder público se resumia ao repasse de quantias irrisórias a amas-de-leite para amamentar e criar essas crianças – isso quando não procuravam se isentar da responsabilidade ao delegar esses serviços especiais de proteção a outras instituições, em muitos casos as Santas Casas de Misericórdia. Foi nessa época que surgiram as primeiras instituições voltadas para a criança vítima de abandono. No século XVIII, foram implantadas no país três Santas Casas de Misericórdia: a primeira em Salvador (1726), a segunda no Rio de Janeiro (1738), e a terceira em Recife (1789). Eram as famosas “Rodas dos Expostos”. Esse artifício conectava os dois lados isolados de uma parede com um pequeno compartimento que poderia ser girado, estabelecendo uma comunicação entre os ambientes. Ele surgiu na Itália, ainda na Idade Média, e foi criado para garantir o isolamento dos monges que viviam reclusos. Anos mais tarde, o mesmo dispositivo foi adotado pela Santa Casa para preservar o anonimato dos que depositam nela seus bebês. No século XIX, a única conquista de direitos para as crianças perante o poder público havia sido a assinatura da Lei do Ventre Livre (Lei nº 2040), em 1871, que garantia aos filhos de escravos o direito de nascer sem estar sob propriedade do senhor de seus pais. No entanto, a criação da lei foi feita mais como uma medida política que como uma garantia de direitos. As opções que restavam aos pequenos não ofertavam tanta liberdade assim. Segundo o que previa a própria lei, as crianças nascidas após a oficialização do documento não seriam mais escravas, mas ainda permaneceriam sob a responsabilidade 18


dos senhores de suas mães ou de associações escolhidas pelo governo. Por manter a tutela, estes então possuíam o direito de utilizar - e até alugar, diga-se de passagem - os serviços desses jovens de maneira gratuita, até que eles completassem 21 anos. Muitos desses jovens escolhiam fugir e viver por sua conta. Não existem estatísticas que denotem a quantidade de crianças e adolescentes que viviam nessa situação durante aquela época, mas a velocidade com que os números aumentavam forçou o Estado a tomar as primeiras medidas específicas voltadas para esses casos. O primeiro passo estava sendo dado. O país agora passava a ver essa situação como um problema de ordem pública e não mais das “instituições de caridade”. De acordo com informações da Rede ANDI5 Brasil (2012) - que reúne 11 organizações para pautar dados sobre a infância e adolescência -, em 1922 ocorreu a inauguração do primeiro estabelecimento público para o abrigamento de crianças e adolescentes, na cidade do Rio de Janeiro. Ação esta que foi seguida pela criação do Tribunal de Menores, específico para esses casos, em 1924.

O surgimento da primeira legislação A criação do Código de Menores Mello Mattos (Decreto nº 17.943) data de 12 de outubro de 1927 e foi assinada pelo então presidente do Brasil, Washington Luís. O código nasceu como a complementação de outro decreto que fora assinado um ano antes e que consolidava a criação das primeiras leis de assistência e proteção a crianças e adolescentes no país. O Código de Menores foi bastante específico. O decreto presidecial resume seu objeto e como deve focar sua atuação logo em seu capítulo primeiro: “O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste Código”. A forma como a lei se dirige às crianças e jovens, de modo geral, em todo o seu texto de instituição é extremamente seca e não abre espaço para a defesa de seus direitos. A ordem é clara: o código foi criado para atuar apenas na realidade daquelas crianças que se encontravam em situação irregular. No contexto em que essa legislação foi concebida, o Estado propõe utilizá-la como um instrumento de proteção e vigilância da criança e do adolescente que tenha sofrido 5

A Rede Andi Brasil é um grupo formado por 11 organizações a partir da Agência de Notícias dos Direitos da Infância. Seu objetivo, descrito em seu site (www.redeandibrasil.org.br), é o de colocar a infância e a adolescência como prioridades absolutas na definição e implementação de políticas públicas pautando e qualificando notícias e reportagens sobre o universo infanto juvenil.

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agressão ou negligência da família de origem em seus direitos básicos. No entanto, a forma como que o Código foi elaborado acaba por adotar uma visão simplista desse jovem, visualizando-o apenas como um objeto que esteja totalmente sob autoridade do sistema legal. O código chega até mesmo a classificar oficialmente a criança ou o adolescente em três categorias: menor - afastado da família de origem pelo Estado por razão de omissão ou violência no convívio familiar; menor abandonado - que não possua moradia, nem responsáveis vivos ou conhecidos; ou menor delinquente – que tenha sido encontrado pelo poder público enquanto autor ou cúmplice de um delito ou contravenção qualquer. Existem ainda outros pontos na legislação que seriam abandonados com o passar dos anos e evolução das leis. Um bom exemplo se refere aos termos de aplicação da medida protetiva que pede a destituição de crianças e adolescentes das suas famílias de origem, em caso de exposição a situações socialmente desapropriadas. Atualmente, tal medida é aconselhável apenas em casos extremos, em que não exista outra saída. Além disso, o acompanhamento psicológico e social da criança e da família desenvolve-se sempre no caminho de garantir a reintegração familiar o tão cedo quanto for possível. No que se refere a famílias nessa situação, o Código de Menores traz - de maneira bem delimitada, no Artigo nº 45 do Capítulo V – uma série de restrições que acabaram dificultando essa reintegração:

O pai ou a mãe inibido do pátrio poder não pode ser reintegrado senão depois de preenchidas as seguintes condições: I - serem decorridos dois anos, pelo menos, depois de passada em julgado a respectiva Sentença no caso de suspensão e cinco anos, pelo menos, no caso de perda; lI - provar a sua regeneração ou o desaparecimento da causa da inibição; lII - não haver inconveniência na volta do menor ao seu poder; IV - ficar o menor sob a vigilância do juiz ou tribunal durante um ano;

O Código de Menores determinava uma série de ações que buscavam solucionar o problema de vulnerabilidade social dessas crianças e jovens, mas não na mesma 20


perspectiva do ECA. O Código, por se preocupar com o que chama de “menor delinquente”, tenta resolver o problema tutelar desses jovens, mas peca ao não garantir a preservação de seus direitos, hoje invioláveis, em qualquer situação.

“O Internato de Horrores” Com o passar dos anos, foram surgindo novas políticas de Assistência Social voltadas para o atendimento dessas crianças. Um desses exemplos é a instituição de um órgão responsável por ser o primeiro modelo de assistência centralizada no país, o Serviço de Assistência do Menor (SAM), criado pelo então presidente Getúlio Vargas, em 1941. O SAM ficou marcado na história como um modelo autoritário e totalmente desaconselhável. A Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), instituição vinculada à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro (SEASDH), afirma em seu site (www.fia.rj.gov.br) que o sistema chegou a ficar conhecido como “Internato de Horrores”, tendo sido condenado por seus próprios dirigentes, anos mais tarde. O sistema previa atendimento diferenciado para o adolescente autor de ato infracional e para aquele carente e abandonado. Para o primeiro, a medida proposta era a colocação em internatos, reformatórios e casas de correção. À criança ou jovem encontrado em situação de abandono, restavam os patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos. A atuação prioritária do Sistema de Assistência do Menor era correcional-repressiva. Segundo informações da Rede Pró-Menino, uma ONG que trabalha na busca pela preservação dos direitos de crianças e adolescentes e no combate a exploração do trabalho infantil, o SAM acabou se tornando o “órgão do Ministério da Justiça que funcionava como um equivalente do sistema Penitenciário para a população menor de idade”. Além do SAM, outras instituições federais de atenção à criança e ao adolescente foram criadas nesse período. A Legião Brasileira de Assistência (LBA) era uma agência nacional de assistência social que originalmente se chamou “Legião de Caridade Darcy Vargas” - em homenagem à então primeira dama do país. A instituição era voltada primeiramente ao atendimento de crianças órfãs da guerra. Mais tarde expandiu seu atendimento. Existiram também outros casos, como a Casa do Pequeno Jornaleiro, a Casa do Pequeno Lavrador e a Casa do Pequeno trabalhador. Todos esses foram programas de capacitação e encaminhamento de crianças e jovens ao trabalho urbano e rural. Como 21


pode-se perceber, o próprio Estado ainda não havia abandonado a visão de que a criança não passava de um pequeno adulto, sem necessidade de direitos ou garantias a mais.

A Funabem e o “menor” na ditadura O terceiro momento na história da legislação acerca das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social teve início em 1º de dezembro de 1964, com a sanção da Lei nº 4.513, decretada pelo congresso e assinada por Humberto Castelo Branco - primeiro presidente do regime militar, instaurado em 1º de abril daquele ano. A nova lei instituiu a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), que nascia sob representação do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Sua função, de maneira bastante resumida, pode ser citada agora dentro do Artigo 5º do Parágrafo 1º da lei sancionada naquele dia:

Art. 5º A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor tem como objetivo formular e implantar a política nacional do bem-estar do menor, mediante o estudo do problema e planejamento das soluções, a orientação, coordenação e fiscalização das entidades que executem essa política.

Todas as atribuições antes designadas ao Serviço de Assistência a Menores foram então transferidas para a responsabilidade do órgão recém-criado. Logo em seu texto de instituição, a Fundação demonstra o interesse em desempenhar uma série de funções fundamentais para a resolução da problemática das crianças e adolescentes. Entre elas, podemos citar: o incentivo às iniciativas locais (públicas ou privadas), com a criação de conselhos regionais; a realização de estudos e organização de um levantamento nacional do problema do “menor”; a fiscalização do cumprimento da política de assistência, fixada por seu Conselho Nacional; e a mobilização pública no sentido de conseguir a participação das comunidades para solucionar essa questão. Além disso, o Brasil procurou também basear suas prioridades em documentos utilizados em outros países, estabelecendo uma forma de modelo internacional. A mudança colocada no texto oficial prometia muitas inovações que viriam a ser reaproveitadas anos mais tarde na criação do ECA. Neste novo modelo, como primeiro ponto citado no Artigo 6º, sobre as diretrizes da Fundação, encontramos “Assegurar prioridade aos programas que visem à integração do menor na comunidade, através de assistência na própria família e da colocação familiar 22


em lares substitutos”. No Código de Menores, de 1927, o detalhamento de como ocorreria a inserção deste indivíduo em uma nova família ou mesmo em um ambiente comunitário diferente havia sido completamente desconsiderada. Outro ponto, até então novo, é o pedido de criação de “instituições para menores que possuam características aprimoradas das que informam a vida familiar” ou, se preferir, a primeira política nacional com interesse na construção e manutenção de instituições públicas de abrigamento por todo o Brasil. O Código de Menores já previa a possibilidade de suspensão de tutela da família de origem e também a admissão da responsabilidade estatal sobre um “menor abandonado”, mas, nessas situações, a guarda da criança ou do adolescente ficava sob decisão da autoridade que ordenara sua “apreensão” – no caso, o juiz. Para aqueles que haviam sido destituídos de suas famílias por meio de medidas protetivas, o código previa a designação de um tutor – geralmente alguém próximo a esse jovem. No caso de abandono comprovado e na falta de uma pessoa idônea disponível para manter a tutela, o Código de 1927 previa a “internação em hospital, asilo, instituto de educação ou oficina escola de preservação ou de reforma”. Para os “menores delinquentes” que não estavam sendo bem orientados, a solução encontrada foi “confiálos até a idade de 18 anos a uma pessoa idônea, uma sociedade em uma instituição de caridade ou de ensino publico ou privada”. Até aí, a ideia de criação de um modelo de instituição mantida por recursos oriundos do poder público, com o específico objetivo de manter essas crianças e adolescentes sob tutela estatal era totalmente nova. As inovações nesse âmbito prometeram muitas mudanças positivas, mas não foi exatamente isso o que aconteceu. A Funabem distribuiu-se por todo o país, por meio de um órgão descentralizador: a Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, a Febem. Sob o comando da ditadura militar, o sistema manteve sempre um atendimento extremamente massificado, administrado com disciplina militar, mantendo a visão simplista do extinto SAM. Os registros sobre como o sistema funcionou nesse período, com o país imerso nos anos de chumbo, são marcados por um forte sentimento de regresso. O pesar fica evidente até mesmo nas páginas dedicadas a esse assunto dentro do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, lançado pelo Governo Federal em 2006. […] a história social das crianças, dos adolescentes e das famílias revela que estas encontraram e ainda encontram

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inúmeras dificuldades para proteger e educar seus filhos. Tais dificuldades foram traduzidas pelo Estado em um discurso sobre uma pretensa 'incapacidade' da família de orientar os seus filhos. Ao longo de muitas décadas, este foi o argumento ideológico que possibilitou ao Poder Público o desenvolvimento de políticas paternalistas voltadas

para

o

controle

e

a

contenção

social,

principalmente para a população mais pobre, com total descaso pela preservação de seus vínculos familiares.

Essa desqualificação das famílias em situação de pobreza, tratadas como incapazes, deu sustentação ideológica à prática recorrente da suspensão provisória do poder familiar ou da destituição dos pais e de seus deveres em relação aos filhos. A engenharia construída com o sistema de proteção e assistência, sobretudo, durante o século passado, permitiu que qualquer criança ou adolescente, por sua condição de pobreza, estivesse sujeita a se enquadrar no raio da ação da Justiça e da assistência, que sob o argumento de “prender para proteger” confinavam-nas em grandes instituições totais.

Essas representações negativas sobre as famílias cujos filhos formavam o público da assistência social e demais políticas sociais tornaram-se parte estratégica das políticas de atendimento, principalmente da infância e da juventude, até muito recentemente. (Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Governo Federal, 2006. Pág.15)

O poder econômico que as famílias possuíam passou a ser um dos principais elementos analisados dentre os critérios de julgamento sobre a situação familiar. A legislação vigente na época acabou permitindo que o Estado utilizasse dela, a seu bel prazer, como um instrumento de controle social da infância e da adolescência, sem manter respeito pela integridade das famílias carentes.

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Surge o segundo Código de Menores O marco que inicia o quarto momento da legislação voltada para crianças e adolescentes chega no dia 10 de outubro de 1979, com a Lei 6697/79, que revogou o Código de Menores Mello Matos, em vigor havia mais de 50 anos. Em seu lugar, foi sancionado um modelo novo, que deveria atender àqueles casos de forma mais condizente com a nova cultura de que as crianças e adolescentes também são seres detentores de direitos. Em mais de meio século de história que separa os contextos nos quais surgiram os dois códigos, muitos passos foram dados em todo o mundo, inclusive em território brasileiro. Em 1950, por exemplo, havia chegado ao Brasil um escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). O fundo havia sido criado em 1946 para dar suporte às crianças em situação de vulnerabilidade, que haviam perdido suas famílias na Segunda Guerra Mundial, e passou a desempenhar um papel fundamental na defesa dos direitos de crianças e adolescentes em todo o mundo. Tão importante quanto, em 1959, foi publicada a Declaração Universal dos Direitos da Criança6, que foi formulada com a intenção de extinguir quaisquer dúvidas que ainda pudessem existir sobre a necessidade de uma legislação específica que contemplasse as crianças e adolescentes. A cada ano que passava, a discussão sobre a preservação dos direitos de crianças e adolescentes se tornava mais forte e ainda mais necessária. Problemas como os números alarmantes de crianças desnutridas e a dificuldade no acesso à educação em diversos países não demonstravam esperançosas quedas. Assim, todos esses fatores culminaram para que 1979 fosse proclamado o “Ano Internacional da Criança” pela Organização das Nações Unidas. O objetivo da escolha foi o de chamar a atenção do mundo para a questão e pedir urgência na resolução desses problemas. Isso gerou efeitos em vários países, incluindo o Brasil. Ainda no mesmo ano, o presidente João Figueiredo aprovou um novo modelo de legislação. Fora sancionada o que viria a ser uma atualização do antigo Código de Menores Mello Matos. No entanto, poucas mudanças puderam ser percebidas em relação àquela lei dos anos 20. 6

A Declaração dos Direitos da Criança foi proclamada em 20 de Novembro de 1959. Aprovada por unanimidade pela Assembleia Geral da ONU, é integralmente fiscalizada pela UNICEF. Constitui uma enumeração dos direitos e das liberdades que devem estar à disposição de toda e qualquer criança. Muitos dos direitos fazem parte também da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada por Assembléia Geral em 1948. .

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As disposições preliminares da lei previam que a assistência, proteção e vigilância do poder público fossem dirigidas aos “menores”, ou seja, pessoas com idades até dezoito anos, que se encontrassem em situação irregular. Nesse termo, inclui-se a criança e o adolescente:

I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:

a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;

b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;

Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;

III - em perigo moral, devido a:

a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;

b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;

IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;

V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;

VI - autor de infração penal.

De acordo com o código, a assistência está prevista, mas apenas para os casos em situação irregular, não prevendo direitos universais para crianças e adolescentes. Além disso, a visão de que o problema é de ordem social e não judicial ainda não havia se consolidado.

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Ou seja, aqueles casos que não pudessem ser caracterizados como os descritos no artigo de apresentação do público do código não estariam sob competência do Juiz de Menores, portanto não poderiam utilizar-se da legislação como um guia para seus direitos; simplesmente porque ainda permaneciam à margem dela. Contudo, após vários anos de discussão, a realidade mudou com a elaboração do ECA.

O Estatuto da Criança e do Adolescente Este novo código, que surgiu com o intuito de ser uma cartilha definitiva de defesa dos direitos de crianças e adolescentes, foi oficializado em 13 de julho de 1990 – sancionado pelo então presidente Fernando Collor de Melo. Esta é a legislação específica que até hoje vigora no país com relação a este assunto. A mudança dos antigos códigos até que fosse formulado e entrasse em vigor o ECA coincidiu temporalmente com uma série de grandes avanços na área de proteção dos direitos do ser humano no Brasil - bem como para este caso, em específico. Pouco antes da oficialização do ECA, o país promulgava a atual versão da Constituição Federal, aprovada em 1988. Importante também para as crianças e adolescentes nesse período, foram a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança, em 1990, e a sanção da Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993. Ambas foram essenciais par provocar rupturas em relação às concepções e práticas assistencialistas e institucionalizantes. Enfim, após mais de 70 anos de uma lenta evolução, o sistema legislativo brasileiro passa a reconhecer oficialmente os direitos de crianças e adolescentes de forma integral, sem diferenciá-los de acordo com sua situação judicial e abandonando totalmente a nomenclatura “menor”. No Estatuto, fica instituída a proteção integral à criança e ao adolescente, considerando criança a pessoa até doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Em alguns casos específicos, a Lei aplica-se excepcionalmente às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. Nos artigos que compõem as disposições preliminares, já se afirma que a “criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”. 27


Como bem apontado no Art. 4º do ECA, é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. As garantias de prioridade instituída pelo Estatuto e mencionadas no artigo 4º asseguram ainda aos pequenos direitos como:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Além disso, fica instituído que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (art. 5º). Tais disposições levando em conta sempre a condição da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. Outra mudança importante trazida no Estatuto foi a priorização da família como um elemento imprescindível no processo de proteção integral e sua instituição como um dos objetivos maiores do sistema de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Desta

forma,

o

Plano

visa

priorizar,

em

qualquer

situação,

o

desenvolvimento pleno das famílias e a proteção aos vínculos familiares e comunitários.

O ECA e o Acolhimento Familiar Por reconhecer a importância do convívio familiar e essa instituição enquanto entidade fundamental para o desenvolvimento das crianças e adolescentes, o Estatuto

28


inova mais uma vez ao trazer disposições específicas com relação ao direito à convivência familiar e comunitária. Em seu artigo 19, o ECA preconiza que toda criança ou adolescente tem direito de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, sob justificativa de assegurar-lhe o direito à convivência familiar e comunitária. Este, sem dúvidas, foi outro marco de extrema relevância para a formação do sistema que conhecemos hoje. Com base nesse princípio, o ECA estabelece o caráter excepcional e provisório do Acolhimento Institucional, sempre recomendando que estejam asseguradas “a preservação dos vínculos familiares e a integração em família substituta quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem” – como apontam os artigos nº 92 e nº 100 do Estatuto. O Estatuto dispõe ainda que a entrada da criança ou adolescente em uma família substituta deva acontecer sempre via decisão judicial: através da adoção, quando em caráter definitivo, ou por meio de concessão de tutela ou guarda, quando em caráter provisório. Fazendo um adendo necessário, em 2004, outra mudança importante foi concretizada. O Governo Federal, por meio de decreto assinado no dia 19 de outubro, criou a Comissão Intersetorial para Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. A comissão foi criada com o intuito de elaborar um plano nacional com as diretrizes da política específica para a área. O grupo foi formado pelos representantes do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Nacional de Assistência Social e Associação Nacional dos Defensores Públicos da União. De acordo com o Plano Nacional de Conviência Familiar e Comunitária, que foi lançado em 2006 e trouxe novas maneiras de pensar a assistência social voltada para as crianças e adolescentes abrigados, a regulação das formas de colocação familiar não foi alterada por nenhuma outra lei posterior ao ECA. Entretanto, o ECA preconiza também que o Estado deve intervir em situações que representem risco e enfraquecimento dos vínculos familiares. Essa intervenção se daria por tentativas de preservação da relação familiar, fornecendo, por exemplo, um apoio socioeconômico às famílias. 29


Nos casos em que não se pode evitar a ruptura desses vínculos, o Estado fica automaticamente responsável pela proteção destas crianças e adolescentes. Se torna inteira responsabilidade do poder público a proteção desses jovens e o desenvolvimento de políticas que possibilitem a criação de novos vínculos familiares e comunitários sempre priorizando o resgate dos vínculos originais. Esse trabalho, realizado na ponta de toda a gigantesca árvore organizacional que é formada pelo sistema de proteção de crianças e adolescentes, deve acontecer dentro das instituições de acolhimento institucional montadas em cada ponto do país: os abrigos.

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CAPÍTULO 2 O ABRIGO

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O histórico das discussões sobre o papel que os abrigos desempenham atualmente enquanto representantes do Estado ainda é extremamente pequeno em relação à importância desse debate. Enquanto instituição, o abrigo foi desenvolvido para ser acionado na ausência de uma família substituta preparada no cadastro. Ele funcionaria como uma garantia de preservação integral dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes que tenham sido expostos a situações de vulnerabilidade social e que, por isso, tenham sido afastados de suas famílias de origem por meio de medida protetiva prevista no artigo nº 101 do ECA. O acionamento deste recurso cabe ao Conselho Tutelar. Por consistir na suspensão do poder familiar sobre crianças e adolescentes, resultando em seu afastamento temporário do convívio com a família, a medida somente deve ser aplicada em extremos casos de violência. Nesta situação, inclui-se qualquer forma de violência, seja psicológica, física, sexual, por meio de negligência ou mesmo abandono. Nestas, enquadrariam-se apenas aquelas em que, injustificadamente, os pais ou responsáveis deixassem de cumprir seus deveres de sustento e de proteção de seus filhos, em que as crianças e adolescentes fossem submetidos a abusos ou maus tratos ou devido ao descumprimento de determinações judiciais por parte dos pais. É importante ressaltar também que, segundo o ECA, o abrigamento possui caráter provisório, tendo-se sempre como objetivo prioritário o retorno da criança ou do adolescente abrigado a sua família de origem ou o encaminhamento para adoção quando isto for mais adequado. Essa recomendação do ECA implica dizer que, enquanto durar a aplicação da medida ou enquanto estiver estabelecida uma forma de acolhimento provisório (seja em família ou no abrigo), devem ser apoiadas iniciativas com o intuito de manter os vínculos dos abrigados com suas famílias de origem.

Perfil dos abrigos no país Segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Governo Federal, 2006. Pág.66), em um levantamento nacional realizado em colaboração com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2004, foram identificados 589 abrigos em todo o país. De acordo com a pesquisa, a maior parte dessas instituições não possui vínculos governamentais em suas administrações, funciona com recursos próprios e é dirigida por voluntários ou líderes religiosos. Ao todo, as casas mantidas apenas por ONGs lideram a 32


classificação quantitativa com 68,3%, enquanto o poder público se encarrega de 30% dos abrigos. Nos casos de orientação ou vínculo religioso, esse número é de 67,2% de todos os abrigos existentes. As ligações com a religião católica são as de maior quantidade. Somente nas instituições vinculadas à esta Igreja, os dados apontam 62,1% de abrigos com esta orientação. No ranking, os católicos são seguidos pelos evangélicos, com 22,5%; e, logo em seguida, pelos espíritas, com 12,6%. Além disso, a pesquisa revela ainda que a oficialização do ECA em 1990 iniciou uma onda de mudanças, tanto no perfil das instituições já existentes quanto na implantação de novas unidades por todo o país. De todos os abrigos encontrados em funcionamento durante a pesquisa, apenas 41,4% já havia sido implantado antes da instituição do ECA. Segundo o levantamento nacional, 58,6% dos abrigos tiveram seu surgimento inserido em uma realidade construída após o marco de oficialização do Estatuto. Um outro levantamento7, este de 2003, realizado pelo IPEA e pelo DISOC (Diretoria de Estudos e Políticas Sociais), levou em consideração o nível de preocupação dessas instituições com a preservação dos vínculos familiares das crianças e adolescentes abrigados. De todos os abrigos, 65,9% faziam questão de proporcionar visitas dos abrigados a seus lares de origem. Enquanto isso, 41,4% das instituições incentivava a preservação da família permitindo visitas livres dos familiares ao abrigo. As tentativas de manter unidos os grupos de irmãos também foi computada na pesquisa de 2003. Segundo os dados coletados, 66,4% dos abrigos priorizavam a manutenção ou reconstituição dos grupos de irmãos sob sua responsabilidade. Quanto ao apoio à reintegração familiar, a mesma pesquisa apontou que 78,1% dos abrigos promovia visitas domiciliares com suas equipes às famílias de origem, buscando o acompanhamento para revelar e aumentar, dentro da menida do possível, a probabilidade de reintegração. Segundo o mesmo levantamento promovido por IPEA/DISOC, 65,5% dos abrigos ofereciam acompanhamento social para as famílias; enquanto o número de instituições que realizavam discussões ou grupos de apoio era de 34,5%; e o de abrigos que encaminhavam crianças e adolescentes para os programas de auxílio/proteção à família

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Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC. IPEA/DISOC, 2003. Publicado na página 63 do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária.

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era de 31,6%. Dos critérios de apoio à reintegração familiar citados acima, apenas 14,1% de todo o universo dos abrigos mantinha todas as ações em conjunto.

Foto 2. Crianças participam de lanche após encontro mensal das famílias acolhedoras

O que acontece no âmbito local Em Teresina, a principal rede de abrigamento institucional de crianças e adolescentes afastados de suas famílias de origem é formada por seis instituições e mantida pela Pefeitura de Teresina, pela Secretaria de Assistência Social e Cidadania do Governo do Estado e por um grupo de instituições filantrópicas. Entre junho e julho de 2012, uma Organização Não-Governamental chamada Centro de Reintegração Familiar e Incentivo à Adoção (CRIA), em funcionamento desde agosto de 2009, realizou uma pesquisa8 que abrangeu todos os abrigos em Teresina para descobrir quais os números oficiais de crianças e adolescentes nessas instituições, revelar seus perfis e as principais causas de abrigamento. No último levantamento nacional, em abril de 2010, o país contava com mais de 80 mil crianças e jovens vivendo em abrigos. Em Teresina, o número constatado em 2012 é de 186, vivendo em seis instituições - sendo que apenas duas delas são responsáveis por concentrar 141 abrigados.

8

Análise situacional de crianças e adolescentes em instituições de abrigamento de Teresina. Centro de Reintegração Familiar e Incentivo à Adoção. Teresina, 2012.

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Segundo os dados, no período da pesquisa, a Casa Dom Barreto, que é uma instituição filantrópica, possuía 86 abrigados, de ambos os sexos, com idades entre 4 e 50 anos. Foi constatado também que o Lar da Criança, de responsabilidade publicoestadual, ao fim da pesquisa, abrigava 55 pessoas, de ambos os sexos, de um mês de idade a 23 anos. No ranking dimensional de população abrigada, a instituição filantrópica Casa Savina Petrilli ocupa atualmente a terceira posição, tendo 32 abrigadas do sexo feminino, com idades entre dois anos de dez meses a 16 anos. O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária é bastante claro quanto ao limite populacional nos abrigos. Levando em conta a atenção necessária para que o acompanhamento de cada criança e adolescente reduza ao máximo possível o impacto negativo em sua formação psicológica e social, o Governo Federal determinou que todas as instituições não poderiam mais exceder o limite de 20 abrigados por casa. Em Teresina, os únicos a conseguirem seguir essa recomendação são três instituições mantidas com recursos públicos: o Abrigo Masculino, com 06 abrigados do sexo masculino, entre 13 e 16 anos; o Abrigo Feminino, com 04 abrigadas do sexo feminino, com idades entre 14 e 15 anos; e a Casa de Punaré, com 03 acolhidos do sexo masculino de 13 a 15 anos. Os dois primeiros são de responsabilidade do Governo do Estado e este último é mantido pela Prefeitura de Teresina. Um fato importante de ser ressaltado é o de que em 2010, o número de abrigados, que era de 215, caiu para 186 em 2012. E muito se deve ao programa de Acolhimento Familiar, implantado na cidade pela ONG CRIA em 2009 e que já conseguiu a retirada do abrigo e colocação em famílias substitutas de mais de 25 crianças e adolescentes por meio de guardas provisórias. A frente falaremos melhor dele. Uma informação importante aponta que, apesar do perfil mais procurado de crianças para a adoção ser de meninas, a porcentagem de sexo dos abrigados demonstra que a maioria das crianças e adolescentes nas instituições pertence ao sexo feminino, com 59% do total. Sete pontos percentuais a mais do que na primeira pesquisa realizada pelo CRIA, ainda em 2010. Segundo Francimélia Nogueira9, presidente do CRIA, uma das razões que podem explicar esse dado se refere aos principais fatores que levam à destituição do poder familiar.

9

NOGUEIRA, Francimélia. Reintegração familiar e incentivo à adoção. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 22 de março de 2012.

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“Em 2010, a pesquisa do CRIA apontou a violência sexual como a causa de abrigamento mais recorrente nos casos analisados, e isso deve ser observado com bastante atenção. Evidentemente, as meninas são as vítimas mais frequentes desse tipo de abuso”, explica Francimélia. Com base na pesquisa de 2012, que aponta uma queda da violência sexual como causa de abrigamento de 28% para 8,1% dos casos, Francimélia destaca: “Essa queda foi bem significativa, mas esses dados podem não representar a realidade de maneira literal, já que o abrigo mais populoso de Teresina, o Bom Barreto, infelizmente não se dispôs a participar deste novo levantamento”. Segundo a pesquisa, o uso de drogas foi constatado como causa principal de abrigamento, com 29,7% dos casos na cidade. A segunda causa mais frequente foi o abandono, com 24,4%. Logo depois, seguem-se a negligência, com 19%; os maus tratos, com 10,8%; a violência sexual, com 8,1% dos casos; problemas psicológicos e entrega espontânea, cada uma com 2,7% do total; e prisão da mãe e conflito familiar representando 1,3% de todos os casos cada.

A permanência nos abrigos Não somente em Teresina, mas em todo o país, o sistema de assistência social voltado para as crianças e adolescentes se mantém de maneira bastante delicada. Se um dos pontos que mais preocupa as instituições de abrigamento se refere aos fatores que levam essas crianças e adolescentes ao abrigo, por outro lado, questões como o tempo de abrigamento e a reinserção social pós-abrigo não acenam com tranquilidade. Um dos pontos que mais agravam a situação é a falta de organização judicial dentro das instituições de abrigamento. Segundo o levantamento apontado no Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (Governo Federal, 2006, pág. 64), dentre as crianças e adolescentes abrigadas nas instituições consultadas pelo Governo Federal, apenas

10,7%

deles

se

encontravam

judicialmente

em

condições

de

serem

encaminhados para a adoção definitiva. Se os dados a nível nacional já se mostravam pequenos, a situação em Teresina no ano de 2010 conseguia ser mais grave ainda. Dos seis abrigos consultados pelo CRIA na época, somente o Lar da Criança possuía crianças judicialmente disponíveis para adoção durante. Sem falar que, das 50 crianças e adolescentes que se encontravam abrigadas no local, apenas 7 delas poderiam ser incluídas nessa situação. O número representava 36


apenas 3,25% de todo o universo de crianças e adolescentes que viviam em abrigos de Teresina em abril de 2010. A pesquisa realizada em 2012 apontou uma melhora nessa situação. Das 186 crianças e adolescentes em abrigos de Teresina, 74 já possuíam pelo menos um processo regularizado. O número de abrigados que se encontra disponível para adoção também cresceu, de 7 para 17. No universo total de crianças e adolescentes nos abrigos, a porcentagem subiu de 3,25% para 9,13%. Destacando ainda mais a seriedade da questão, o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária aponta que apenas 54% dos meninos e meninas abrigados nas instituições consultadas tinham processos judiciais em 2006 – data do último levantamento nacional.

A outra metade, por certo, lá estava sem o conhecimento do judiciário, já que muitas crianças e adolescentes foram encaminhadas aos abrigos pelas próprias famílias (11,1%), pela polícia (5,5%), dentre outras instituições que, judicialmente, não teriam tal prerrogativa. (Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Governo Federal, 2006. Pág. 70).

A contagem judicial em Teresina encontrada na pesquisa de 2012 aponta que 60,21% dos abrigados não possuíam registro algum perante o Juizado. Esse número representa 112 crianças e adolescentes de um total de 186. Dessa maneira, raramente a permanência no abrigo se dá de maneira curta. A média geral de tempo de abrigamento em Teresina no ano de 2010 era de até quatro anos, oito meses e 20 dias. Como bem explicado no Capítulo nº 3 do Título II do Estatuto, enquanto as crianças e adolescentes tiverem que permanecer nos abrigos, devem ser feitos esforços no sentido de garantir seu direito à convivência familiar e comunitária. As alternativas mais comuns são a colocação em uma família substituta ou a vivência em abrigos que se assemelhem a uma residência. Para a adaptação à nova realidade, os cuidados são fundamentais, mas nem de longe substituem a convivência familiar. Como o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária frisa, a criança ou o adolescente que vive em um abrigo encontra-se com seu direito de convivência familiar e comunitária violado, não importando os recursos dos quais a instituição dispõe. 37


O modelo do “Lar da Criança” Os abrigos, em teoria, são instituições de abrigamento provisório destinadas a crianças e adolescentes que tenham sofrido abandono ou sido afastados de suas famílias de origem, por meio de medida protetiva, e que ainda não puderam ser reintegrados ou inseridos em novos ambientes familiares seguros. No entanto, o que acontece quando a situação judicial dessa criança não apresenta uma evolução suficientemente rápida e esse pequeno período de permanência no abrigo precisa ser estendido para um tempo maior que o aconselhável? Os casos do tipo são a maioria. Então como lidar com algo tão preocupante como a indefinição do futuro, especialmente quando os envolvidos são crianças? A faixa etária dos abrigados no Lar da Criança Maria João de Deus, no bairro Vila Operária, varia entre 0 e 12 anos. Você pode imaginar a importância do acompanhamento constante dessas crianças para minimizar os efeitos que o abrigamento por longos períodos pode causar. Ao todo, a equipe de acompanhamento do "Lar" é composta por duas psicólogas, quatro

assistentes

sociais,

uma

fisioterapeuta,

uma

fonoaudióloga

e

duas

psicopedagogas. Quem explica isso é Elenice Macedo10, que integra a equipe de Psicologia do Lar da Criança há mais de sete anos. "Nós temos também um pediatra que presta serviço voluntário aqui. Ele era um funcionário, mas o Estado infelizmente achou que ele não deveria estar aqui. Mesmo assim, ele decidiu vir todos os sábados atender as crianças”, explica Elenice, em uma entrevista realizada na sede do Lar, no início de abril deste ano. A psicóloga prossegue: “Fora isso, temos os funcionários. Na verdade, o quadro do Lar da Criança é composto por 96 pessoas. Aí você pode pensar 'Nossa, mas por quê tantos funcionários?' Porque sempre precisamos - tudo aqui funciona em regime de plantão". A equipe técnica, composta pelos profissionais psicossociais, trabalha com carga horária de 30 horas semanais. Os outros funcionários ficam em regime de plantão, trabalhando 12 horas em 48 horas. Além disso, o abrigo ainda conta com sete professoras cedidas pela Secretaria de Educação do Estado para proporcionar sessões de reforço escolar. Os meninos e meninas de 3 a 12 anos estão matriculados nas escolas públicas localizadas nas 10

MACEDO, Elenice. O funcionamento do Lar da Criança. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 20 de março de 2012.

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proximidades do "Lar". Quem estuda pela manhã recebe reforço com essas professoras à tarde, quem estuda à tarde tem o horário do reforço marcado para a manhã.

Foto 3. A psicóloga Elenice, de preto, posa ao lado de crianças do Lar enquanto se preparavam para uma apresentação (Arquivo do CRIA)

Elenice explica que todo o atendimento oferecido no local tem de ser adequado ao modelo do abrigo. "O 'Lar' é um abrigo e orfanato. Por quê abrigo e orfanato? Orfanato porque recebemos as crianças que são abandonadas nas maternidades. Há casos diversos de doença mental ou uso de drogas. Além disso, acontece muito de a mãe não ter condições, a família que não aceitá-la com a criança...", explica ela. "É também um Abrigo porque recebe a criança que sofreu um tipo de violência que o Conselho Tutelar ou o Juizado da 1ª Infância determinou que essa criança não tem condições de ficar onde estava porque continuaria sofrendo riscos. Quando isso acontece, ela é encaminhada, via medida judicial, para o Lar da Criança até resolver a situação dela." No caso da criança que chega ao abrigo por meio de uma medida protetiva, o tempo que se segue à mudança é fundamental - seja para a adaptação da criança à nova realidade ou para os esforços no sentido da reintegração. "Após o abrigamento, cabe à equipe psicossocial desenvolver um trabalho com esses familiares, a família extensa, pra ver a possibilidade que essa criança tem de condições de retorno".

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Quando Elenice menciona a palavra "família" ao falar da origem das crianças, ela se refere ao pai e à mãe biológicos. O termo "família extensa", na maioria dos casos, é utilizado para denominar outros familiares que geralmente são menos próximos, como tios, avós e primos. "Quando a gente estuda a situação e percebe que a reintegração é impossível, já sabe que essa questão está inviável. Assim, fazemos um parecer e já enviamos pro Juizado solicitando a destituição. Quando se destitui na Justiça, é quando essa criança fica livre para adoção." O parecer enviado ao Juizado é um relato da equipe psicossocial sobre as tentativas de estabelecer contato e promover a reintegração à família de origem. Com a análise desse relatório, uma audiência é convocada para decidir o que acontecerá com essa criança ou adolescente. "Tem casos em que o tempo de destituição não demora, mas tem casos que sim e muito. Por exemplo, nós temos uma criança, um menino, que chegou aqui antes de três anos. Ele não tinha três e hoje tem 11! Já colocamos ele com a avó, mas infelizmente não não deu certo. Um ano depois ela o trouxe de volta e ele ainda está aqui", explica Elenice. Casos como esse não são raros. Por isso, a estrutura de pessoal precisa estar bem preparada. Não é segredo que, por mais que o Lar da Criança seja um dos abrigos melhor aparelhados de Teresina, todos os recursos - financeiros e humanos - que hoje estão disponíveis ainda não são suficientes para reduzir o impacto do abrigamento a um nível aceitável para todos.

Como funciona o “Lar” Sobre isso, numa das manhãs de visita ao abrigo, Maria do Socorro Solano11, diretora do Lar da Criança “Maria João de Deus” concedeu uma entrevista, na qual também mencionou um pouco da história do Lar e sobre o que ainda precisa ser melhorado. “Mudou tudo. Abrigar uma criança; ter uma unidade de acolhimento envolve muita coisa, desde a estrutura do ambiente aos serviços prestados. Quando nós chegamos aqui, em 2003, não tinha praticamente nada. Depois desses anos, com a gente fazendo esse trabalho, houve todo um crescimento e o desenvolvimento de projetos para que a realidade melhorasse”, explica.

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SOLANO, Maria do Socorro. O abrigamento institucional e o acolhimento em famílias substitutas. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 19 de março de 2012.

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“Claro que não é o ideal porque ainda está no modelo velho de grandes casas, mas dentro dessa realidade antiga a gente procura fazer o melhor. Antes, as crianças tinham acesso à educação, saúde, lazer, mas eles iam pra escola e quando retornavam não tinha quem acompanhasse, então nós passamos a tratar disso aqui. Hoje nós temos uma equipe especial para esses cuidados.” Segundo Maria do Socorro, uma das prioridades assumidas pela equipe multidisciplinar do Lar da Criança foi a educação, no sentido de tornar isso uma ferramenta de transformação na vida das crianças do abrigo. “Eles vêm muito fragilizados, com um déficit de aprendizagem muito grande, dificuldade de leitura; e isso acaba piorando com o tempo se não estivermos atentos.”

Como o tempo passa no abrigo Na pesquisa de 2010 do CRIA, que conseguiu os dados de todos os abrigos, a média de tempo de abrigamento apontada era de 4 anos e 8 meses até a reintegração ou a saída para uma família nova. Um dos exemplos na dificuldade de saída é que grande parte dos grupos de irmãos que deram entrada nos abrigos há poucos anos ainda se encontram no local. “A gente precisa fazer mais campanhas pra esse perfil de público; para a adoção tardia, de grupos de irmãos, que a nossa família brasileira não é muito aberta pra acolher grande número de pessoas de fora. Talvez seja até a situação econômica. Aqui precisa também de um suporte, que é um dos problemas que sei que o CRIA enfrenta. Como ajudar essas famílias sem ter recursos?”, indaga Socorro Solano, diretora do Lar da Criança. Socorro continua: “O Estado, municipal ou federal, devia olhar pra esse campo da família acolhedora como um investimento também, porque sai muito mais em conta em todos os sentidos. Além do emocional, de promover a garantia que aquela criança está crescendo numa família, em uma comunidade”. “Toda a possibilidade de ser um verdadeiro cidadão uma criança depende muito disso. E é mais fácil de resolver um problema econômico, por exemplo. É muito mais viável você ajudar uma criança que se desenvolve numa família com uma bolsa do que manter uma instituição de abrigamento”, afirma. “É caríssimo manter uma instituição como essa. Aliás, qualquer abrigo é muito caro! Então até economicamente seria muito mais eficiente partir para ajudar essas ONGs com verbas pra que essas famílias tenham um suporte mais direto. Às vezes a pessoal tem o desejo, tem a vontade, mas na hora tem o problema financeiro; precisa de ajuda.” 41


Socorro defende que a forma que tem se mostrado mais rápida e eficiente para a saída das crianças e adolescentes dos abrigos é o acolhimento familiar. Segundo ela, a rapidez é necessária por conta da situação atual, que não obedece as novas diretrizes do Governo Federal. “O Plano Nacional fala que cada casa pode ter, no máximo, 20 pessoas. Mas, por exemplo, aqui no estado praticamente só existe essa casa! E o município já deveria ter sua própria casa de acolhimento. Depois de muita pressão realizada por nós aqui, provocamos vários encontros com vereadores, com desembargador, fizemos várias atividades pra acordar a Prefeitura para sua responsabilidade!”, ressalta Socorro. “Logicamente, tem que existir uma casa de abrigamento municipal porque boa parte dessas crianças - a maioria absoluta - é de Teresina. Então já não seria mais da competência do Governo do Estado, mas, sim, do município. E eles, depois de muita luta, começaram a construir uma casa de acolhimento, mas aí fizeram no mesmo molde desta aqui, para 70 crianças.” “A diferença lá é que os quartos são para, no máximo, cinco crianças e adolescentes, mas infelizmente até agora não abriram porque não tem pessoal ainda pra começar a trabalhar. Ou seja, ainda estamos aí nessa luta para dividir essa responsabilidade com o município.”

O Lar da Criança, o CRIA e o Programa de Acolhimento Familiar Este adendo sobre o programa de Acolhimento Familiar se faz extremamente necessário. A opinião de Socorro Solano, enquanto diretora da maior instituição de abrigamento mantida pelo Governo do Estado, é fundamental para todo esse setor da assistência social na cidade e todas as vidas que ele envolve. Socorro Solano é irmã de Francimélia Nogueira, presidente do CRIA, e também é assistente social. “Se não me engano, hoje não chega a 30 crianças que estão no Famílias Acolhedoras. São 25 a 30 crianças. É pequeno, o número? É, mas é super importante. São 25 ou 30 crianças que estão realmente crescendo, se desenvolvendo com o aconchego do lar e com carinho. Isso é fundamental.” A diretora do Lar continua: “A gente espera até a participação do Juizado. Que realmente todos entendam - não só a juíza, que é muito aberta a essa realidade, mas todos - que o caminho é a Família Acolhedora. A gente aposta nisso. Esse trabalho do CRIA é muito importante. Espero que ainda apareçam outras ONGs com esse perfil”. A ideia do programa Famílias Acolhedoras é a de tornar o abrigo uma instituição obsoleta por meio da sua substituição pelo acolhimento familiar. Em alguns países, o 42


cadastro de famílias substitutas funciona com um sistema eficiente, evitando que sejam necessários locais específicos para o abrigamento institucional nos moldes dos que existem no Brasil.

Foto 4. Criança brinca na sala de atendimento psicológico do CRIA

Nesses lugares, quando ocorre o afastamento da família de origem, a busca por outra família de perfil adequado é iniciado imediatamente por meio de um cadastro nacional de interessados em acolhimento. Quanto ao modelo ser aplicado no Brasil, Socorro fala: “Os abrigos aqui, eu acho, vão existir sempre, porque às vezes você não encontra uma família rápido pra uma criança e ela precisa sair da família de origem; tem que existir um local pra acolhê-la nesse meio tempo”. A inexistência de um cadastro que possibilite a seleção de uma família acolhedora de maneira ágil afasta a probabilidade de aposentar as casas de abrigamento. Ainda mais quando a criação desse banco de informações demanda um longo período de trabalho nas frentes de divulgação do programa, cadastro dos interessados, análise do perfil psicossocial de cada família e a quantificação desses resultados. Sem falar que este não é o único empecilho para a eficácia total do programa. Como bem explica Socorro Solano, o acolhimento - que deveria funcionar como uma alternativa baseada somente na necessidade familiar de cada criança ou do adolescente hoje envolve muitos fatores que não deveriam estar ligados a ele. 43


“Qual o problema do Famílias Acolhedoras no momento? Tem muita gente buscando, mas está acontecendo a mesma coisa que sempre acontece com o resto das famílias que querem adotar”, explica ela, que continua: “É sério porque, nos outros estados que desenvolvem esse projeto, mesmo fora do Brasil, a família acolhedora não é a família que vai adotar aquela criança”. “É justamente acolher durante aquele período em que se tá buscando uma solução praquela criança. Mas aqui no nosso caso, o que está acontecendo é que as famílias acolhedoras (todas as que apareceram até agora); todas, de fato, querem ficar com a criança de forma definitiva.” Nesse momento, o conflito chega também ao Juizado. Ao passo em que uma série de interessados em adoção definitiva passa a se inscrever para o programa de acolhimento familiar temendo a morosidade no processo, a ordem da fila do cadastro para adoção acaba sendo burlada. “Aí se cria um impacto um pouquinho com o Juizado, que pela Lei deveriam ser priorizadas as pessoas que tão no cadastro; mas o que acontece é que no cadastro atualmente não existe gente suficiente para adotar todas as crianças que nós temos aqui disponíveis. Então, realmente, o acolhimento familiar seria a saída”, explica.

O perfil buscado pelos pretensos a pais Tal saída para o problema, por mais que consiga abrir as portas do abrigo, ainda não conseguiu sua forma ideal. O fato de muitas pessoas procurarem o programa de acolhimento familiar como um atalho para a adoção não resolve o problema de crianças com os perfis menos buscados. Socorro explica: “Muitas famílias acolhedoras não estão abertas para acolher qualquer criança, qualquer perfil, qualquer idade”. Apesar de ambas trazerem grandes benefícios para as crianças e adolescentes, as duas modalidades são extremamente distintas quanto às formas de agir. Enquanto a adoção se baseia inteiramente no envolvimento e integração definitiva de um novo membro à família, o acolhimento é temporário e prima pela reinserção social de um indivíduo em um ambiente familiar e comunitário que permita seu desenvolvimento afetivo e intelectual. “Temos uma dificuldade

com

relação aos perfis de algumas crianças,

especialmente os grupos de irmãos. Nós temos muitos deles, porque realmente é complicado você ter uma família e estar disposto a receber três ou quatro pessoas a mais, quando com uma já é difícil.” 44


“Além disso, tem muitas famílias acolhedoras que realmente gostam de bebês; têm aquele mesmo perfil da adoção - até porque muitos sonham no futuro que ficar essa criança”. Em julho de 2012, das 26 crianças e adolescentes que estavam inseridos em famílias substitutas, 10 crianças (38,46%) tinham idades entre 0 e 2 anos. O tipo de criança mais buscado, tanto para adoção quanto para o acolhimento, é de meninas com idades entre 0 e 6 anos. “O pensamento é de „quanto mais novo melhor‟. Para a família acolhedora, eles ainda gostam quando tem 5/6 anos, mas para adoção é mais cedo ainda. Neste caso, a preferência mesmo é recém-nascido”, aponta. Segundo Socorro, a maior parte dos pais que buscam a adoção partilham do desejo de moldar a educação do filho desde seus primeiros anos. “Se você entrevistar a maioria das pessoas que querem adotar um filho hoje, a preferência é recém–nascido porque ainda existe toda aquela coisa de que é bebê; que é mais fácil você adaptar; você acompanhar toda a sua vida, com a sua filosofia de vida, dos seus familiares”, explica. A diretora do Lar da Criança aponta: “Muitos defendem que a dificuldade na educação se daria porque uma criança com idade entre 0 e 6 anos já absorveu uma carga de informações muito grande. Os sentimentos, pontos positivos e negativos, que ela já viveu acabam influenciando em toda a sua vida. Isso causa uma preocupação nos pais”. “No entanto, a gente vê também - dentro do perfil de algumas famílias que adotaram crianças fora desse perfil de 0 a 2 anos ou até 3 anos - que esse problema não existe. É um empecilho porque existe tanto amor, tanto carinho, que os problemas vão aparecendo e a gente vai resolvendo na medida do possível. Exatamente da mesma forma que a gente faz com um filho biológico.” “Quando você vai ter um filho, você pensa: Será que vai ter algum problema? Vai! Mas a gente acredita que com amor, com carinho, com dedicação, muita conversa, muitos problemas são facilmente solucionados.”

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Foto 5. Crianรงa brinca sozinha na sede do CRIA (Arquivo do CRIA)

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CAPÍTULO 3 O CRIA E O ACOLHIMENTO FAMILIAR

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O surgimento do Acolhimento Familiar Imagine uma criança. Um menino. Ele tem dez anos de idade e possui certa dificuldade em se relacionar. Imagine agora que as imagens de todas as histórias que ele consegue se recordar ter vivido se formam delimitadas pelas quatro paredes de um abrigo. Ele não conhece outra casa. Qual a chance que uma criança com esse perfil, que normalmente atinge a maioridade sob tutela do poder público, tem de conseguir encontrar um ambiente familiar que possa oferecer suporte para todas as suas necessidades? Ou ainda: quais são as reais chances de reintegração social, conquista de autonomia e independência financeira desse rapaz se ele precisar que o abrigamento institucional se estenda até seus 18 anos? Pensar em respostas para perguntas como essas revela a incerteza presente no futuro de centenas de crianças e adolescentes que foram para o abrigo porque precisaram ser afastados de suas famílias de origem. Infelizmente, estes meninos não são nenhuma exceção. Nem na Lei, nem na realidade. O interesse em garantir o direito de crianças e adolescentes ao convívio inserido em um ambiente familiar seguro levou o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) a elaborarem, em 2006, o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Nele, uma das principais diretrizes diz respeito à capacidade dos abrigos. De acordo com estudos, uma das formas de reduzir os impactos do abrigamento por longos períodos seria promover uma série de mudanças por meio das quais o abrigo pudesse se assemelhar a um ambiente familiar, com mais atenção e individualidade para cada integrante do local. Com isso, o Plano Nacional recomenda que todos os abrigos em funcionamento no país se adequem a novas regras, de forma que todas essas casas - que chegam a abrigar mais de 50 crianças e adolescentes atualmente - passem a oferecer suporte a, no máximo, 20 abrigados por vez. As equipes do CONANDA e do CNAS apresentaram, no Plano, um panorama da realidade e algumas ações que amenizariam os problemas, permitindo que os abrigos pudessem se adaptar às novas regras. Uma dessas medidas para reduzir o impacto que o abrigamento gera em todos os casos é a real priorização dos programas de Acolhimento Familiar em detrimento da institucionalização. 48


O Programa de Famílias Acolhedoras surgiu da proposta de evitar o abrigamento institucional quando outra alternativa for viável, organizando o acolhimento de crianças e adolescentes afastados da família de origem na residência de famílias selecionadas e capacitadas para recebê-los enquanto sua situação se normaliza, com a reintegração familiar, com a adoção ou mesmo com sua autonomia aos 18 anos. Falando em termos jurídicos, essa é uma forma diferenciada de acolhimento porque se concretiza por meio de uma guarda provisória requerida pelo programa em favor da família acolhedora. Essa guarda só será mantida enquanto a família e o acolhido estiverem com sua situação favorável à permanência no programa. As regras do acolhimento familiar permitem que ele se estenda por um período indeterminado. No entanto, é importante frisar que o programa se refere a um serviço de caráter provisório, com acompanhamento contínuo, e de maneira alguma deve ser confundido com a adoção definitiva. Pelo acolhimento, as famílias têm acesso às crianças e adolescentes por estarem vinculadas ao programa, que as seleciona, prepara, dá entrada no processo e passa a acompanhar frequentemente esse relacionamento Família x Acolhido. A equipe multidisciplinar que monitora o acolhimento possui autoridade para intervir e indicar o comportamento mais aconselhável em cada situação. Só lembrando que o objetivo prioritário do acolhimento familiar é o de proporcionar o desenvolvimento psicológico, afetivo e social de crianças e adolescentes abrigados por meio da convivência em um ambiente familiar e comunitário seguro, que possa os proporcionar esta oportunidade. O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, de 2006, já recomendava o programa. O Estatuto da Criança e Adolescente passou a incentivar a medida oficialmente após uma atualização, feita em 2009, pela Lei nº 12.010. Segundo o novo artigo nº 34 do ECA, a colocação em uma família acolhedora é a ação mais recomendada em casos de necessidade de afastamento da família de origem. A inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida, nos termos desta Lei. (Art. 34, Lei nº 12.010, 2009)

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A recomendação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária foi que o programa fosse implantado nas cidades. Em primeira instância, sua execução exige a presença uma equipe multiprofissional atuando nas áreas de mobilização, cadastramento, seleção, capacitação, acompanhamento e supervisão das famílias acolhedoras enquanto estas se encontrarem incluídas no projeto. Também está previsto no Plano outro item de suma relevância: o acompanhamento psicológico e social das famílias de origem. A reintegração se mostra a maneira mais viável quando o problema que levou ao abrigamento pode ser solucionado e os pais - ou mesmo tios, avós ou outros membros da "família extensa" da criança/adolescente demonstram interesse em reaver seu poder familiar, passando a oferecer um ambiente familiar estável. A mudança que trouxe a recomendação oficial do programa foi um grande passo. No entanto, até quatro anos atrás, Teresina não dispunha de nenhuma iniciativa privada ou pública – nos níveis federal, estatal ou mesmo por parte do município - no sentido de instaurar e manter o programa em Teresina. Isso significa que, até junho de 2009, para crianças e adolescentes em abrigos, a única chance de poder desfrutar de uma convivência familiar e comunitária - respeitando sua necessidade de proteção integral definida pelo Conselho Tutelar – era esperar pela tão sonhada adoção definitiva.

Os primeiros acolhimentos em Teresina Em 2009, o programa de Acolhimento Familiar ainda estava sendo implantado. Naquela época, a dona de casa Conceição Silva e Sousa12 procurou a ajuda do CRIA assim que a ONG abriu suas portas, no fim do ano de 2009, para se tornar uma família acolhedora. “Já tem mais de dois anos que tou com o meu menino. Em dezembro (de 2012) faz três. Hoje, de idade, ele já tem oito”, inicia ela. Dona Conceição, que já tinha três filhas, foi uma das pioneiras na cidade a conseguir o acolhimento. A partir do sucesso de casos como o dela é que as outras relações de acolhimento puderam ser estabelecidas, abrindo uma porta para a saída dos abrigos. Dona Conceição explica como tudo aconteceu, desde o encontro com seu “novo filho” até o surgimento do CRIA em sua vida. “Não foi exatamente eu que me inscrevi para 12

SILVA, Maria da Conceição. Os benefícios do acolhimento familiar. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 10 de abril de 2012.

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conhecer uma criança, foi através da minha cunhada. Ela trabalha no Lar da Criança e há um bom tempo que era madrinha afetiva de um menino.” “Minha cunhada o levava pra passar os fins de semana com ela, mas aí aconteceu de ela levar o menino para passar um final de ano lá em casa, um natal - porque eu sou bem vizinha da mãe dela. Quando esse menino chegou lá em casa, não quis mais sair. Nem dormir mais na casa dela ele foi mais”, prossegue dona Conceição. Ela continua: “A partir do momento em que ele teve contato comigo, com meu esposo e com as meninas, ele não quis mais ninguém. Dormiu a primeira noite lá em casa e foi ficando. Não digo que foi por acaso porque minha cunhada já tinha levado outras crianças, mas nenhuma delas se identificou com a gente de cara como ele.

Foto 6. Mãe brinca com criança acolhida em encontro de famílias acolhedoras (Arquivo do CRIA)

Conceição procurou se informar melhor sobre a situação de abrigamento daquele pequeno rapaz e deu entrada no processo.“Minha cunhada, que era a madrinha dele, me falou como que eu faria pelo CRIA. Aí logo corri pra resolver tudo. As assistentes sociais vieram aqui em casa, fizeram toda aquela visita que tem que fazer, e em pouco tempo meu pedido foi aprovado - porque ele já poderia ser incluído no projeto, né?” Dona Conceição, logo no primeiro momento em que viu a família ampliada, decidiu que queria a adoção definitiva. “Eu já tava feliz e foram me explicar como é que eu faria 51


se eu quisesse adotar. Foi uma correria! Eu e meu esposo, a gente teve que procurar um monte de papelada, mas foi muito rápido pra dar entrada no Juizado. Me falaram que a gente tinha que entrar na fila; e não era o fato de eu ser de uma família acolhedora que eu teria prioridade, né?” “Uma das coisas que sempre penso é que não existe coisa melhor do que as pessoas ao redor da gente nos apoiarem. Eu ouvi críticas, muita crítica; não vou dizer que só ouvi elogios, positividades, não. Eu ouvi muita crítica também. Perguntaram se eu estava louca - porque minhas filhas já estão moças -, falaram de tudo. Mas o melhor é que eu tive muito apoio.” Com isso, o pedido de adoção foi protocolado no Juizado e a família de Conceição ainda aguarda sua vez na fila para adotar definitivamente seu novo filho. No entanto, com mais de dois anos de conviência, o acolhimento acabou evoluindo para uma relação bem mais próxima, permitindo que o garoto pudesse ter o desenvolvimento afetivo que a vida no abrigo o havia privado. “As pessoas perguntavam, às vezes: „E ele te chama de mãe?‟. Muitas pessoas me conhecem por eu ter trabalhado na creche da minha comunidade, aí estranhavam quando viam ele, dentro do ônibus ou em qualquer lugar, pelo tamanho que ele chegou, me chamar de mãe.” “Pois eu digo: „Ele me chama de mãe desde que chegou lá em casa; desde o primeiro dia, já foi papai pra cá, mamãe pra lá‟. Aí pronto! Nunca teve um dia que ele me chamasse de „Dona Conceição‟. E foi espontâneo. Se perguntarem, por exemplo, „Quem é essa daqui?‟, ele responde: „É a minha irmã‟.” “Digo também que já vai fazer três anos que estou com ele e nunca ouvi um „Você não é minha mãe!‟. Ele tem as „mal-criações‟ dele, como toda criança tem, mas nunca se referiu a isso”, revela Conceição, que fala ainda: “Eu vejo que é de Deus. Não é uma coisa que eu diria que estava atrás de uma adoção. Não. Simplesmente veio, sabe? Ele chegou até mim.”

O CRIA “Eu sempre quis trabalhar com criança, mas a minha vida profissional me levou para outros rumos até que eu comecei a trabalhar no abrigo [Lar da Criança]. Pouco antes de eu trabalhar lá, participando do projeto de apadrinhamento afetivo, conheci várias crianças e, no natal de 2002, eu levei a Ana Carla. Ela tinha só um ano e oito meses e já demos entrada no processo de adoção, que acabou se concretizando após seis meses.” 52


“Com a adoção da Ana Carla, isso me motivou a querer fazer um trabalho com as outras crianças do abrigo. Comecei a chamar amigos que se interessariam pela causa para fazer reuniões para discutir aquilo. O que poderíamos fazer, de uma forma mais organizada e maior, por aquelas crianças.” A fala acima foi contada na sala da presidência do CRIA, durante uma pausa nos trabalhos. A presidente da ONG, Francimélia Nogueira, reservou cerca de duas horas da rotina do CRIA para relembrar toda a história da organização, que é pioneira em atuar na realidade de crianças e adolescentes abrigados em Teresina, mas que até hoje ainda não conseguiu que grandes parceiros a acompanhassem nessa caminhada. O CRIA é uma entidade sem fins lucrativos fundada por um grupo de assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e outros profissionais liberais com o objetivo de trabalhar para que cada criança e adolescente que vive atualmente nas instituições de abrigamento da cidade possa ter preservado seu direito de crescer inserido em um ambiente familiar e comunitário seguro. A principal mudança buscada pela organização diz respeito aos moldes em que o abrigamento acontece atualmente, com espaços superlotados e pouca celeridade nos processos. Esses fatores tornam a institucionalização ainda mais pesada, com a imposição de regras, mudanças de plantonistas e a falta de individualidade de cada criança e adolescente. O trabalho do CRIA nesse meio se dá através de ações que proporcionem a convivência familiar ou que primem pela desinstitucionalização das casas, seja inserindo esses jovens em um lares acolhedores, em abrigos menores, seja pela reintegração à família de origem ou pela adoção. A organização hoje mantém seus projetos sem quaisquer recursos oriundos de cofres públicos. Toda a renda que a sustenta é proveniente de colaboradores financeiros e do rendimento de um bazar permanente, montado nos fundos de sua sede, que comercializa peças de roupa que a ONG recebe de doação.

Sua missão Começando pelo começo, o CRIA trabalha diretamente com os seis abrigos existentes em Teresina desde o ano de 2009. “Esse processo de reuniões começou em 2008, mas quando foi realmente oficializado; quando saiu o CNPJ, já era junho de 2009. Nós abrimos as portas em agosto, assim que conseguimos a cessão dessa casa”, continua Francimélia. 53


A “casa”, que até hoje serve de sede para o CRIA, foi cedida pela Secretaria Estadual de Educação e fica localizada na Rua São Pedro n 1841, no centro de Teresina. O espaço é vizinho a outro reservado a um centro de capacitação profissional para familiares de pacientes em reabilitação no centro de tratamento de dependentes químicos "Fazenda da Paz". “Na época, contamos com uma parceria com o Governo do Estado e fizemos o lançamento em novembro [de 2009], com outdoors, campanhas na televisão e nas rádios... E é por isso que consideramos nosso aniversário nessa data. Foi quando o CRIA realmente se abriu para a sociedade, quando as pessoas tomaram conhecimento de que existia aquela ONG.” O primeiro passo havia sido dado, mas nada havia mudado ainda dentro dos abrigos. O trabalho precisava começar e a segunda etapa entrou em ação logo em seguida. “Começamos nosso trabalho de tentar viabilizar uma alternativa, algum projeto que retirasse essas crianças dos abrigos, mesmo elas não estando em situação jurídica disponível para a adoção”, lembra Francimélia, que fala ainda: “Esse, por sua vez, acabou se tornando nosso carro-chefe - o projeto „Família Acolhedora‟”. A fundação do CRIA revelou a necessidade que o Estado ainda possuía de promover o debate sobre a realidade nos abrigos. Antes da existência da organização, os únicos a promoverem essas questões eram os abrigos e outras instituições como o Conselho Tutelar, que já detinham a responsabilidade sobre as crianças e adolescentes, e que nem sempre podiam se encarregar de manter essa discussão de maneira permanente. Dessa forma, como esperar que a maioria das pessoas procure os abrigos e juizados quando surge a intenção de adotar, levando em conta um cenário carente desses debates e uma população pouco informada sobre o tema? Ou mais grave ainda: como esperar que o futuro de dezenas de crianças mais velhas que o perfil mais procurado dependa da persistência de alguns casais melhor informados e bem dispostos? "Eu acho que, apesar de não conseguirmos dar a visibilidade que gostaríamos, ainda somos muito procurados por pessoas que querem regularizar uma adoção ou mesmo adotar. Para estas, aqui se apresentam outras alternativas bastante importantes”, comenta Francimélia. A presidente do CRIA prossegue: “Explicamos que a maioria das crianças não está disponível para a adoção, mas que existe um projeto para acolhimento, apresentamos também o apadrinhamento afetivo, falamos da realidade do abrigo. Acho que o CRIA tem 54


sido muito importante no sentido de informar, pautar a discussão sobre essa temática na sociedade".

Foto 7. Francimélia, de preto, brinca com as crianças no evento mensal “Dia da Piscina”, promovido pelo CRIA, com as crianças dos abrigos

A importância do trabalho O quadro visualizado de uma maneira geral demonstra, a longo prazo, que a manutenção do debate promovido pelo CRIA é de essencial relevância para a geração das mudanças que ainda precisam ocorrer. No entanto, em uma análise do (ainda curto) histórico desse trabalho, é inevitável elencar a implantação do programa de acolhimento familiar em Teresina como um dos maiores acontecimentos sociais da área nos últimos anos. Como aponta Francimélia Nogueira, o programa de acolhimento familiar, implantado e coordenado pelo CRIA na cidade, hoje já supera até o limite estipulado pelas novas diretrizes da Assistência Social para o número de crianças e adolescentes que podem permanecer sob responsabilidade para apenas uma instituição de abrigamento. Se o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária define como adequado o número máximo de 20 crianças para cada instituição de abrigamento, somente o CRIA atualmente cuida, no programa de acolhimento familiar, de 27 crianças e adolescentes. E 55


a diferença é o mais importante: elas não estão abrigadas, mas inseridas em famílias que foram capacitadas para recebê-las. "Eu acho que nossa função essencial é essa, de mostrar para a sociedade que mesmo não querendo ou podendo fazer uma adoção definitiva, ela pode ajudar alguém da maneira que puder, acolhendo uma pessoa, dando carinho, cuidados que ela precisa até que se resolva a situação dela". Nesses casos, a informação se torna uma aliada fortíssima para concretizar a vontade de quem quer ajudar. Por exemplo, no ano de 2009, em que o CRIA estava se formando, o número de encaminhamentos da ONG para o projeto de Apadrinhamento Afetivo existente nos abrigos foi de 18 interessados. No ano seguinte, esse número saltou para 97 pretensos a novos padrinhos graças às ações de conscientização propostas pelo CRIA e ao cadastro dos interessados nesses eventos. O Apadrinhamento Afetivo é importante para as crianças e adolescentes por oferecer alternativas que possibilitam o estabelecimento de relações afetivas fora dos abrigos. A conversa segue. Aos poucos a tarde se aproxima, enquanto Francimélia lembra alguns casos antigos do programa de Acolhimento Familiar. Com base no trabalho já feito, em sua fala é perceptível que não resta dúvida alguma da importância que a mudança proporciona nas vidas de todos - seja dos acolhidos, seja na das famílias.

Os benefícios da implantação do programa “Uma observação que não só eu faço, como também os meus vizinhos, é que, quando chegou lá em casa, ele tinha uma feição triste, fechada. Era uma criança muito calada, muito pra baixo. As pessoas veem ele muito alegre hoje, mas isso ele veio adquirir com o passar do tempo, conosco”, relata Maria da Conceição Silva, mãe acolhedora, ao falar sobre as mudanças após o acolhimento. Dona Conceição conta que a situação em que recebeu seu filho a preocupa pelos que ainda moram nos abrigos. “Quando ele chegou lá em casa, os dentes dele precisavam muito de tratamento. Uma coisa triste, porque eu sei que é muito difícil pro Lar da Criança cuidar disso tudo, porque são muitas crianças.” “A gente procurou um tratamento pelo SUS. Estou desempregada e meu esposo é assalariado, mas tem umas vantagens muito poucas. Nós temos a médica da família, que é ótima, e ela fez todo o tratamento dele; a limpeza, toda aquela coisa foi feita de graça. Eu não tenho nenhum plano de saúde! Foi só uma questão de atenção nossa com ele, que a gente conseguiu.” 56


Pensar nesse ponto faz dona Conceição imaginar como seria sua vida sem o programa de Acolhimento Familiar. “Do jeito que ele chegou lá em casa e se identificou com a gente, com certeza eu te digo: iria procurar informações, alguém que pudesse me orientar, não sei. Existe uma defensoria, né? Pois eu ia procurar mesmo uma maneira de saber como poderia tê-lo de alguma forma legal”, revela. Ela continua: “Se eu tivesse chance, como era a situação, procuraria o Lar da Criança. Essa legalização é que é difícil; é muito complicada, mas, com certeza, eu teria ido à luta. Hoje em dia, o que eu quero é adotá-lo, dar meu nome e do meu esposo pra ele, porque meu filho ele já é! Mas eu sei: quando a gente tem boa vontade, as coisas se resolvem”.

O histórico do projeto As experiências que deram início à atuação do programa de Acolhimento Familiar em Teresina aconteceram no fim de 2009, se concretizando a partir de dezembro daquele ano, quando oito famílias já haviam sido cadastradas perante o Juizado da Infância e Juventude. Desse total, cinco acolheram crianças logo nos meses seguintes. Com a parceria do Juizado, os trabalhos de cadastro de interessados, entrevistas, análise psicológica de cada família, escolha e a capacitação das selecionadas para receberem crianças de perfil compatível resultaram no acolhimento de três crianças entre 21 de dezembro e 29 de janeiro de 2010. Os três casos que abriram a história do programa em Teresina completaram dois anos no fim de 2011 e seguem como modelos de relacionamento Família x Acolhido. Em todos os três processos, a convivência transformou a vontade inicial de acolher em um sentimento mais duradouro. Duas das três crianças tiveram sua destituição da família de origem totalmente concluída e as famílias acolhedoras já entraram na fila do cadastro com pedidos de adoção. Nos três casos, o desejo de tornar o acolhimento uma situação definitiva já havia se manifestado e a adaptação das crianças com os novos familiares está comprovada nos relatórios de Psicologia do CRIA. O planejamento das ações e monitoramento das famílias saiu do papel, ganhando vida. Os três primeiros acolhimentos concretizados possibilitaram que o programa pudesse evoluir com a experiência e passar a oferecer a mesma oportunidade para outras crianças e adolescentes. Com o passar do tempo, o Famílias Acolhedoras continuou sendo aprimorado até poder ser ampliado. Em novembro de 2010, o programa - que tem os grupos de irmãos 57


como uma das prioridades - atingiu outra conquista. Na mesma semana, dois grupos de três irmãos cada foram inseridos em dois novos ambientes familiares, encerrando 2010 com o total de nove crianças incluídas no quadro do programa.

O desenvolvimento pessoal proporcionado pelo programa Francimélia defende que o acolhimento familiar, em si, é uma decisão muito altruísta. Segundo ela, o modelo ideal de família acolhedora é justamente aquela que não tem planos futuros de adotar os acolhidos. "É aquela que não quer escolher; que vai receber a criança que estiver precisando de uma família. A família que cuida daquela criança enquanto se resolve a situação dela, depois cuida de outra...", explica. A maior parte dos interessados em acolher não segue esse perfil, mas o fato nem de longe se torna uma dificuldade para o acolhimento. O quadro das famílias incluídas no programa do CRIA é predominantemente formado por pretensos à adoção dos acolhidos. Dos 21 casais, apenas dois atualmente afirmam não ter a intenção de transformar o acolhimento em adoção definitiva. Nisso podem se envolver várias razões. Um exemplo é o fato de que algumas crianças incluídas no programa de acolhimento familiar voltaram a ter um contato maior com suas famílias de origem após saírem do abrigo e se ligarem ao CRIA. Isso também acontece por iniciativa das famílias acolhedoras, que acabam proporcionando os encontros entre pais biológicos e filhos com uma frequência maior que a permitida pelos abrigos. Com base na experiência do CRIA, Francimélia conta: “Muitas vezes, existe até a possibilidade da família acolhedora ajudar a família de origem a conseguir seu filho de volta. Normalmente, as famílias que querem distância o fazem porque o abrigamento envolveu contato com drogas ou abuso sexual, mas quando o caso foi depressão ou pobreza dos pais, a família acolhedora às vezes pode ter a condição de ajudar no empoderamento de forma que ela possa levar o seu filho de volta mais rapidamente”. Um dos casos acompanhados diz respeito a uma família que acabou sendo separada por conta de um problema de depressão. A mãe, que não identificaremos aqui, vivia com três filhos, sendo duas meninas - com idades de 11 e 9 anos - e um garoto, que possuía 7 anos durante o período do acompanhamento (abril e maio de 2012). Por volta de três anos antes disso, a depressão dessa moça levou a justiça a considerar uma medida protetiva de afastamento do poder familiar e abrigamento de seus três filhos no Lar da Criança. Em pouco mais de dois anos, com a melhora de sua saúde, o filho mais novo pôde ser reintegrado. 58


Pouco depois de chegarem ao Lar, as duas meninas foram designadas a uma família acolhedora que se encaixa no modelo ideal defendido por Francimélia, não visando a adoção definitiva. Dessa forma, o acolhimento familiar serviu para favorecer a reintegração. Assim, com o apoio da família acolhedora, a moça pôde ter um acesso maior às filhas, que antes não demonstravam tanto apreço pela mãe. O contato nesse período foi extremamente benéfico, já que uma das filhas já pôde ser reintegrada e a última não esconde o desejo de se juntar à sua família de origem. "O que fazemos é despertar esse sentimento nas pessoas, de que elas podem fazer alguma coisa. É claro que sei que a exigência que é para levar uma pessoa para morar dentro da sua casa, mas o que tem que ser visto é que, para aquela criança e para aquele adolescente, isso é muito importante. É claro que essa família não vai só cuidar, dar comida e roupas, ela vai se afeiçoar, dar seu afeto, seu apoio para o que ele precisar, que é fundamental." "É aquele cuidado individualizado, personalizado, formando justamente o vínculo afetivo que essa criança precisa, mesmo essa pessoa decidindo que não quer adotar. Isso já é uma possibilidade extremamente mais rica do que ela ficar abrigada até os 18 anos, já que na família ele tem suas potencialidades muito melhor desenvolvidas do que no abrigo."

Foto 8. Crianças veem apresentações educativas na sede do CRIA

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Quando menciona o desenvolvimento das potencialidades de crianças e adolescentes ao serem incluídos no programa, Francimélia não se atém a citar exemplos de melhoria de aparência física ou nas oportunidades sociais que se abrem a partir daquele momento. Ela fala também do crescimento pessoal que reside no simples fato de vivenciar um cotidiano comum a todos fora do abrigo. Passar a realizar ações comuns a qualquer pessoa de maneira independente pode não parecer a possibilidade de um grande avanço, mas esse pensamento é um engano, segundo Francimélia. "Ao sair do abrigo, a criança ou o adolescente está se inserindo em todo um contexto social, de escola, lazer, de realizar atividades como fazer uma compra e aprender coisas da vida doméstica que, infelizmente, eles não aprendem nos abrigos. Algumas famílias se queixamcquando recebem as crianças, de como elas são despreparadas", revela. Ela explica: "Pela dinâmica do abrigo, de tentar reduzir o trabalho, é mais fácil fazer por elas do que ensinar. Ainda mais pelo número grande de crianças, como no Lar da Criança e no Dom Barreto. Todo mundo faz e entrega na mão pronto”. “Os meninos não lavam uma peça de roupa, não aprendem a fazer pequenas tarefas na cozinha, limpar uma casa... O pior é que eles acabam sofrendo a consequência disso de maneira forte na vida, aqui fora. Eles vão sair com 18 anos sem nem ao menos esse preparo", aponta Francimélia. Segundo a presidente do CRIA, o despreparo é comum e acaba interferindo com uma força preocupante em vários momentos da vida. "São crianças que não sabem escolher ou lidar com dinheiro, por exemplo. Não sabem calcular um troco de maneira rápida ou muito menos são ensinados a racionalizar gastos para manter uma casa de maneira independente.” Francimélia prossegue: “Uma vez, eu viajei com duas crianças do abrigo para a praia e, na volta, nós paramos em um restaurante estilo self-service. Foi quando eu percebi o desespero de um dos meninos com aquele prato nas mãos". A presidente do CRIA, segurando um papel que estava sobre a mesa, involuntariamente o pega em suas mãos e dramatiza a cena como se a história fosse tão inacreditável a ponto do gesto se tornar necessário para reforçar o relato.

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"Aquele garoto não conseguia se servir simplesmente porque não sabia o que escolher! Em toda sua vida, o rapaz nunca tinha pego um prato vazio nas mãos e escolhido o que ele próprio queria comer."

Sobre o preparo para deixar os abrigos Uma mudança no modelo de preparação desses meninos e meninas para a vida adulta implicaria em alterar todo o cotidiano da instituição. Saber avaliar situações e fazer escolhas simples são atividades que qualquer pessoa é acostumada a desempenhar de maneira independente, mas a separação do convívio comunitário tornou inacessível para quem vive nos abrigos. “As pessoas podem duvidar porque essas pequenas coisas que sempre fizemos com os nossos pais nos são normais, mas pra eles não. Eles nunca fizeram isso. As mudanças no formato dos abrigos são para que eles possam ter o pensamento mais autônomo, uma preparação para saberem se cuidar.” Francimélia defende que um novo modelo seja implantado gradativamente. “Conversando com uma amiga da Casa Dom Barreto, eu sugeri que poderíamos fazer cursos de capacitação nos abrigos, nos quais a gente pudesse começar a influenciar na mudança das rotinas e fazer como nos encontros de jovens; como sei que é também nos seminários: existem as equipes responsáveis pelas atividades e, a cada semana, se faz o rodízio”. “Em uma semana uma criança ou adolescente estaria na equipe que vai ajudar na cozinha, na outra semana ele iria para a equipe que vai para a lavanderia, para ajudar na faxina, no jardim, da sala de costura – sempre alternando as tarefas para que todos pudessem aprender melhor a ter um comportamento mais autônomo”, explica. Segundo Francimélia, isso prepararia melhor a criança ao inserir em seu cotidiano atividades comuns, mas que não acontecem no abrigo. “O ideal é mudar o abrigo pra pequenas casas, mas enquanto tudo continua do jeito que está, vamos influenciar pra que elas sejam preparadas pra vida aqui fora”, explica. Essa preparação seria feita aos poucos. “Se houver um projeto focado nisso, essa criança pode ser preparada pra fazer uma pequena compra, mesmo que seja acompanhada, para aprender a lidar com o troco; a saber o valor do dinheiro. Coisas assim não são simples pra fazer numa casa grande mas também não são impossíveis. Isso é muito importante para a autonomia delas.” Francimélia cita um exemplo. Um rapaz deficiente físico, que hoje vive em um abrigo, beira os 18 anos. Ele chegou bem ainda pequeno ao Lar da Criança e foi 61


transferido aos 12 anos. Hoje, já um rapaz, ele possui renda própria graças ao Benefício de Prestação Continuada. “A coordenadora me informou do problema lá. Me disse que ele fica agressivo porque ele tem o dinheiro dele e quer ter privilégios que ela não pode dar para não diferenciar dos outros do abrigo.” “Eu disse para a coordenadora do Abrigo que ele precisa ser preparado para a vida; que ela deve começar a deixá-lo sair pra se acostumar; para que ele arranje um companheiro - já que ele é homoafetivo. O rapaz não tem o salariozinho dele? Pois tanta gente vive com um salário mínimo! Ele só precisa aprender a viver sozinho.” “Esse rapaz vivendo com o salário dele, arranja um companheiro e vai viver a vida. Vamos conseguir um lugar e preparar esse menino pra assumir uma casa. Claro que uma pessoa como ele vai ter muita dificuldade, porque viveu desde os quatro ou cinco anos de idade no abrigo. É um rapaz que quer ter uma coisa diferente porque já tem o dinheiro dele; quer namorar e - é claro - ele não está privado disso.” Para esses casos, Francimélia defende uma solução mais específica. “Acho que é possível, sim, iniciar uma gestão compartilhada. Consegue-se a casa pro menino, bota ele lá, depois se começa gestando com ele até ver que ele esteja pronto para ficar só. Acompanhá-lo até que ele possa viver por conta própria.” “E tem outros meninos desses aí trancados nos abrigos. São intervenções que devem ser individualizadas. Pensar „se nós vamos fazer um projeto de vida, qual a assistente social que vai acompanhá-lo até a autonomia?‟. Tem que ser assim. Não dá pra fazer pensando em todos como grupo, tem que ser individualmente.”

A necessidade do tratamento individual Uma das grandes vantagens do acolhimento em relação aos abrigos é justamente essa atenção que as famílias podem disponibilizar para cada criança ou adolescente acolhido, aumentando sua capacidade de desenvolvimento afetivo e social na medida em que recebe o apoio necessário. Um dos grandes dilemas para o CRIA é justamente poder oferecer essa atenção mesmo para aquelas crianças e adolescentes que não conseguem sair do abrigo, mesmo com o advento do programa de acolhimento familiar. Por conta do perfil buscado pelos pretensos a novos pais e famílias acolhedoras, os adolescentes são formam grande parte da poopulação das casas hoje. Pensando nisso, o CRIA desenvolveu um projeto de instituição voltado exclusivamente para estes adolescentes e que preze mais a atenção individual. O formato 62


das Casas de Acolhimento procura se assemelhar ao máximo a um ambiente familiar em seu cotidiano. Os adolescentes são acompanhados por uma equipe multidisciplinar e por um casal residente, se distanciando da ideia de um cuidador plantonista. A responsabilidade sobre as decisões são compartilhadas por todos. Nesse modelo, a capacidade é de 12 adolescentes, tendo - no máximo - três deles vivendo em cada quarto. Cada integrante da casa possui seu próprio armário com chave para guardar seus pertences. Uma fórmula bastante parecida já havia sido recomendada pelo Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária com o nome de “Casa Lar” (Governo Federal, 2006, pág. 127). O plano descreve o projeto como uma modalidade de Acolhimento Institucional oferecido em unidades residenciais, nas quais pelo menos uma pessoa ou casal trabalha como cuidador residente – em uma casa que não é a sua – prestando cuidados a um grupo de crianças e/ou adolescentes. As casas-lares são definidas pela Lei nº 7.644, de 18 de dezembro de 1987, devendo estar submetidas a todas as determinações do ECA relativas às entidades que oferecem programas de abrigo. O CRIA ainda não conseguiu os recursos necessários (financeiros e humanos) para dar início ao projeto em Teresina. Por enquanto, as Casas de Acolhimento voltadas para o abrigamento de adolescentes são apenas um plano. Por estarem fora dos perfis mais procurados para adoção, a esperança reside quase toda na eficácia do programa de Acolhimento Familiar.

O que ainda tem que mudar? As iniciativas de implantar projetos de acolhimento, promover ações de agilidade no judiciário ou tentar reduzir o peso da institucionalização no abrigamento manifestam a intenção de trazer melhorias ao quadro social. No entanto, apesar dos grandes saltos dados na legislação, pensar a tríade adoção-abrigamento-acolhimento como uma política integrada eficiente ainda exige mudanças profundas na aplicação das leis. Se antes os termos do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária eram recomendações dos conselhos de assistência social do país, a atualização do ECA os incorporou transformando-os em diretrizes a serem seguidas. O que acontece é que, apesar do amparo legal, as novas regras não possuem força de aplicação. “Sempre que temos oportunidades, perguntamos a mesma coisa: o que é que diz o 'Plano Nacional'? Que os grandes abrigos têm de ser reordenados para se adaptarem a 63


uma realidade condizente com as novas diretrizes. Infelizmente, existe uma legislação que, na prática, não é efetivada com força. Porque, se fosse, as verbas teriam que parar de chegar a uma instituição que não se adequasse, por exemplo”, defende Francimélia. A presidente do CRIA é incisiva nesse ponto. “Se ela [a legislação] tivesse uma força maior, um abrigo desses, como o Dom Barreto, com 80, 90 crianças e adolescentes teria de ser fechado. Porque teriam de ser feitas cinco casas, com no máximo 20 em cada uma." "Ou mesmo alguém deveria se dirigir ao Governo do Estado e dizer que ele deixará de receber mais verbas porque, por exemplo, no abrigo há um quarto que tem 17 meninos". Francimélia repete a informação: "Sim. Atualmente, o Lar da Criança possui um quarto que onde dormem 17 meninos...”. Segundo Francimélia, o caso citado acima se refere à dificuldade encontrada para inserir meninos maiores em famílias acolhedoras - fato este que também pode ser observado quando o assunto é o perfil mais buscado de crianças para adoção. Como já apontou a diretora do Lar da Criança, Socorro Solano, quanto menor a idade, mais disputado é o bebê. Além disso, a procura tende a aumentar ainda mais se a criança for do sexo feminino. A prova disso pôde ser vista com base nos registros. No dia da entrevista, a fila do programa de acolhimento familiar do CRIA já possuía cinco famílias esperando para receber meninas. Nenhuma delas havia manifestado interesse no acolhimento de meninos.

As alternativas à fila de espera Francimélia fala ainda que outro grande ponto que confirma a procura por bebês diz respeito ao número de “adoções prontas” realizadas nos últimos anos em Teresina, especialmente quando comparado à quantidade de adoções concretizadas por meio do cadastro de famílias no Juizado. A “Cartilha Passo a Passo para a Adoção de Crianças e Adolescentes no Brasil”, produzida pela Associação dos Magistrados do Brasil e publicada no ano de 2008, define a adoção pronta como um modelo no qual a mãe biológica determina para quem deseja entregar o seu filho. Nas palavras grafadas na Cartilha, a adoção pronta - que também pode ser denominada de “intuito personae” - funciona quando “a mãe procura a Vara da Infância e da Juventude, acompanhada do pretendente à adoção, para legalizar uma convivência que já esteja acontecendo de fato”. 64


Para a maioria dos casais que têm preferência por bebês, o modelo de adoção desponta facilmente como o mais prático entre as opções, por não envolver a tão temida espera na fila do cadastro nacional de famílias. Em Teresina, em primeira instância, a relação entre a criança e a família adotante não necessita de intermédio de instituições como o Juizado ou o Conselho Tutelar. "O que ocorre é que a cultura que as pessoas já assimilaram é a de que a demora é muito grande e isso faz com que, muitas vezes, elas nem procurem o Juizado para se habilitar. Elas vão por outras alternativas; fazem contatos com funcionários das maternidades até encontrar uma pessoa que esteja desistindo de seu filho", explica Francimélia Nogueira. A forma como a adoção pronta acontece na cidade é ainda mais simples que a maneira apresentada na Cartilha. Ainda na maternidade, a mãe biológica registra a criança com seu nome e assina um termo de consentimento, no qual abre mão de seus direitos familiares sobre aquele bebê em favor de outra pessoa. Com esses documentos em mãos, essa pessoa ou esse casal deve procurar as instituições competentes para regularizar a situação junto ao Juizado.

A decisão de

oficializar a adoção fica a cargo do juiz. Na apresentação jurídica, cabe a análise da família adotante por meio das equipes do Juizado, levando em conta diversos fatores, como a possibilidade da escolha da mãe ter sido induzida a tomar essa atitude ou se os pretendentes à adoção são ou não adequados. Apesar do que pode parecer, esse método é totalmente legal e representa grande parte das adoções acontecidas na cidade entre 2006 e 2010. Nesse período, dos 593 processos de adoção concluídos, 477 foram concretizados via adoção pronta. Um índice de 80,43%. Enquanto nesses quatro anos, o número de adoções desenvolvidas a partir do cadastro de famílias no Conselho Tutelar foi de 109. "Eu não tenho nada contra a adoção pronta porque evita até que essa criança vá para um abrigo e só depois vá para uma família definitiva. E é um procedimento legal. A mãe tem esse direito de escolher", destaca a presidente do CRIA. Em alguns casos, a falta de informação ou o medo de que a burocracia se estenda demais faz com que muitos pretendentes à adoção evitem qualquer proximidade com a Justiça, se afastando até de opções como a adoção pronta. Aí surge um problema que, infelizmente, ainda possui muitos exemplos no Brasil. A “adoção à brasileira”, como acabou ficando famosa, é um procedimento em que o adotante desconsidera os trâmites legais do processo de adoção, registrando uma 65


criança acolhida como filho biológico, sem que as autoridades tomem conhecimento de sua real origem. Essa maneira, além de ilegal, é

totalmente desaconselhável. As pessoas que

optam por essa forma de adoção geralmente desconhecem o fato de que, nesses casos, a mãe biológica é detentora do direito de reaver a criança se alegar que a adoção não teve seu consentimento. Atualmente, o CRIA é bastante procurado pelas pessoas que haviam optado por não comunicar a Justiça sobre a decisão de adotar. "Nós consultamos a dra. Maria Luiza (de Freitas, juíza da Infância e Juventude) para saber orientar as pessoas nesse sentido, indicando que procurem o Juizado. Sempre procuramos falar onde formos porque é essencial. Até hoje, o maior número de adoções tem ocorrido dessa forma. Quando a mãe biológica escolhe o adotante".

Foto 9. Francimélia concede entrevista a canal de TV sobre adoção

O CRIA está cumprindo seu papel? A pergunta é difícil. Francimélia reflete, como se buscasse a resposta no histórico da organização. “A gente nunca sentou para conversar e estabelecer uma meta, mas em algumas reuniões eu sempre fiz questão de colocar o seguinte: o sonho do CRIA é contribuir até que se acabem os grandes abrigos.”

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“E eu acho que, ultimamente, por conta dos projetos, o CRIA tem estado tímido nessa história, porque a gente teria que priorizar a participação nos eventos e seminários que buscam discutir também uma intervenção na maneira como essa política é posta em prática.” “É um trabalho importantíssimo - eu sei que é - tirar uma criança do abrigo e colocar em uma família acolhedora. É um a menos lá dentro. É um trabalho que tem tido resultados, mas sabemos também que é chegado o momento de sentar pra pensar em como a gente pode ter uma influência maior no sentido de provocar uma discussão mais ampla e realmente ir pro confronto, cobrar que os abrigos sejam reordenados.” Francimélia enfatiza sempre a ideia de que o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária deve ser cumprido com mais rigor. Segundo ela, a realidade de algumas instituições de abrigamento atualmente poderia implicar em fortes sanções, se as normas publicadas no Plano tivessem força de Lei. “Não tem como o Estado continuar dando isenção pro Dom Barreto se ele não readequar a casa dele. Não tem sentido existir um Plano Nacional e o Governo não adequar um abrigo estatal como o Lar da Criança, que é projetado pra 60 crianças. Está errado, mesmo tendo tido o plano aprovado, o município construir uma casa de abrigamento com capacidade para 60 - como o que construíram agora. Ele inclusive está fechado.” “Então, como você me perguntou: o sonho maior do CRIA é, primeiro: readequar os abrigos. Fazer com que as casas sejam feitas para, no máximo, 20 pessoas, como o Plano Nacional recomenda. Depois disso conquistado, o passo seguinte passa a ser lutar até que o Brasil conquiste o estágio no qual vivem os países mais ricos, onde não há abrigos.” Francimélia explica: “O que existe lá é uma instituição com um grupo de profissionais nas áreas de assistência social e psicologia pra acompanhar as famílias acolhedoras. Quando uma criança é encontrada em uma situação em que é necessária a retirada da família por medida protetiva, já entra em cena o cadastro, para localizar quem é que tem o perfil adequado para acolher naquela situação”. “O que é preciso é ter é um grupo suficiente de equipes para fazer essa supervisão, esse acompanhamento de perto para garantir que as crianças não estejam sofrendo qualquer forma de violência dentro do programa de Acolhimento Familiar”, afirma. A diretora-presidente do CRIA está ciente das possibilidades que o Famílias Acolhedoras possui de algum dia substituir efetivamente o abrigamento institucional em 67


Teresina. Segundo Francimélia, o caminho a se trilhar poderia ser bem menos sinuoso se o volume de investimentos públicos correspondesse melhor ao requerido pelas organizações responsáveis pelos programas de Acolhimento Familiar em todo o país. “O Famílias Acolhedoras só funcionará em larga escala quando existirem muitas famílias querendo acolher. E fica bem mais fácil encontrar famílias pra acolher se você tiver como bancar. Não apenas destinar uma bolsa simbólica, mas, sim, bancar todas as despesas.” “Para isso se efetivar, teria que, com mais apoio do Governo, fazer disso uma coisa maior em termos de campanha, para sensibilizar a sociedade. Uma coisa é trabalhar só com uma bolsa de 300 reais por família e procurar apoio financeiro para sustentar o projeto, outra coisa é ter uma política de Governo na qual os custos são todos bancados.” “Um exemplo disso é uma amiga piauiense que vive com o esposo, que é italiano. Eles se inscreveram no programa de Acolhimento Familiar da Itália e todas as despesas da casa eram bancadas pelo governo. Um deles trabalhava fora e o outro tinha um salário para ficar em casa, cuidando das crianças.” Segundo Francimélia, com o suporte de uma estrutura oferecida pelo governo, ficaria bem mais fácil conseguir famílias. Além disso, no exemplo citado pela presidente do CRIA, um dos pontos fortes é o do voluntariado. “Lá existem aquelas pessoas que voluntariamente dão apoio nas tarefas. Ou seja, esse casal assume os cuidados de pai e mãe, mas tem todo o apoio da sociedade e do governo para tornar isso menos pesado. Assim, esse casal amigo chegou a ter sete crianças com eles”, explica ela. Francimélia continua: “O CRIA quer contribuir para que isso aconteça e sabemos que não é impossível. Mesmo com todo esse suporte que acabei de citar, o acolhimento ainda é mais barato que manter no abrigo. Antes do CRIA ser fundado, eu fiz uma pesquisa e, já naquela época, o valor que uma criança no Lar da Criança custava era de 2.000 reais mensais. Claro que esse valor já subiu.” “Este ano [2012], a gente já reapresentou à Prefeitura um planejamento que, mesmo a gente destinando 20% do valor à parte administrativa do CRIA pra viabilizar mais assistentes sociais e psicólogos, o preço ainda ficou avaliado em 616 reais por criança. Com o valor gasto em uma criança no abrigo, dá para manter três em famílias e ainda sobra dinheiro. A Prefeitura prometeu uma resposta positiva, mas ainda estamos aguardando.

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“O abrigo deve ser a última das alternativas” Pouco antes do fim da primeira entrevista, o clima - antes de bate-papo - de repente toma um ar mais sério. Um ponto que aparentemente já havia sido encerrado acabou surgindo novamente na conversa após o término do primeiro momento. Sobre o que ainda precisa mudar, Francimélia tem sua opinião definida e pediu que o gravador fosse ligado novamente. Enquanto a defesa da reintegração à família de origem ainda se mostra fortemente recomendada em detrimento da adoção por parte de novos pais, a presidente do CRIA se baseia nos anos de trabalho social e apresenta uma opinião destoante, que faz questão de defender abertamente. “Eu fui ao Encontro Nacional de Apoio à Adoção e o Sávio Bittencourt, que é um promotor, fez a palestra de abertura. Ele colocou uma coisa lá que é exatamente o meu pensamento: ele não aceita que família adotiva seja tratada como família de segunda categoria; que a adoção seja a última das alternativas.” Francimélia explica. "Eu acho que a prioridade de interesse é o da criança. Então, zelando por isso, a hora para cada coisa tem de ser muito bem pensada e respeitada. Não se pode dar prazos indefinidos para as famílias de origem. Existem famílias que encaram o abrigo como o local onde elas guardam os filhos, pra irem lá de vez em quando visitar - quando querem visitar! -, ou que elas gostariam até que eles ficassem lá até a idade em que eles possam sair, ir trabalhar e ser mão de obra produtiva pra elas." A reintegração familiar nem sempre é a solução mais indicada por conta de casos como esses, mas o abrigamento, na opinião da presidente do CRIA, também está longe de ser a resposta mais adequada, apesar de ser uma medida necessária para a proteção de crianças e de adolescentes em situação de risco. O problema com o abrigamento reside no tempo que as crianças e adolescentes permanecem nesses locais. Francimélia defende que o trabalho com as famílias de origem seja bem realizado, proporcionando a chance da reintegração, mas com um planejamento que exija compromissos delimitados por prazos. "Tem que ter equipes técnicas suficientes capacitadas pra estabelecer contato com essas famílias, e, a cada contato, estabelecer um prazo. Não vai cumprindo... aí então já tem que ter um plano de ações muito bem traçado”, explica ela. Francimélia continua: “Quantas oportunidades a gente vai dar e dentro de que tempo a gente vai dar? Porque se essa família não se habilita, se ela não consegue 69


cumprir os prazos, organizar a vida dela pra ter o filho de volta, a criança não pode ficar esperando o tempo dela." "A gente tem que ter um tempo viável pra essa criança. A família não conseguindo se organizar, tudo tem de ser feito num tempo que seja ideal pra conseguir a colocação em uma família substituta. Não esperar até a criança ter 11 anos como A, 15 anos como B ou 13 anos como C pra decidir que a mãe delas não tem condição de reunir a família", explica Francimélia, lembrando um caso. “Não pode esperar! Esses prazos têm que ser curtos e a cobrança pra família que já negligenciou, que já abusou, tem que ser severa e acompanhada de muito perto para que, rapidamente, se resolva essa situação e essa criança vá pra uma outra família. A família por adoção não tem que ser a última das alternativas e não pode ser tratada como família de segunda categoria!” “A adoção é legítima, é uma maternidade, uma paternidade; é como diz o Sávio Bittencourt: „O filho biológico tem o DNA do meu corpo. O filho adotivo tem o DNA da minha alma‟. É uma decisão, é uma coisa feita pelo meu coração. Eu decidi fazer! É legítimo que a prioridade seja a reintegração, mas dentro dos prazos e limites cabíveis, tendo em vista o interesse da criança, acima de tudo.” Como defende Francimélia, o abrigo é que deve ser pensado, em qualquer hipótese, como a última das alternativas. Em um modelo ideal, a criança que precisa ser tirada da família de origem deveria ter uma família acolhedora encontrada por meio desse cadastro. Segundo ela, quando uma criança está sendo acompanhada por alguém de fora que tem interesse por ela, o processo ganha celeridade. “Aquela pessoa que está interessada começa a cobrar do juizado. Assim, não seriam precisos nem os dois anos que a nova legislação coloca. Com certeza, essas situações seriam logo resolvidas”, afirma a presidente do CRIA. “Você divide: ao invés de ter 60 num casa - ou 20, como diz agora no plano -, existem 20 casas, cada uma cuidando de um. A tendência é que tudo se resolva mais rápido e melhor.”

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Foto 10. Criança acolhida aproveita reunião das famílias participantes do projeto para brincar na sala de atendimento psicológico do CRIA (Arquivo do CRIA)

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CAPÍTULO 4 ASPECTOS JURÍDICOS

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Como adotar Do ponto de vista jurídico, a adoção pode ser descrita como uma maneira permitida pela legislação de uma pessoa poder assumir como seu filho uma criança ou adolescente nascida filha de outra pessoa. Por ser viabilizado por lei, este processo somente pode acontecer por meio dos Juizados da Infância e da Juventude. Este processo, quando concretizado, garante ao filho adotivo direitos equivalentes aos de quaisquer dos filhos biológicos, inclusive com participação em questões financeiras, como heranças. Dessa maneira, a adoção é uma medida que possui caráter irrevogável. A adoção pode ser concretizada por quaisquer indivíduos, independentemente de seu estado civil - solteiros, viúvos, divorciados ou casados. As únicas regras que envolvem primeiramente o perfil dos interessados em adotar são referentes à idade. Os pretensos a novos pais precisam ser maiores de 18 anos e também, obrigatoriamente, 16 anos mais velhos que os adotados. As pessoas que estiverem interessadas em adotar, obedecendo aos primeiros requisitos quanto à idade, ainda têm que seguir uma série de procedimentos para se tornarem devidamente aptas perante os Juizados para concretizar a adoção de uma criança ou de um adolescente. Primeiramente, os pretendentes precisam comparecer ao Cartório do Juizado da Infância e da Juventude com a documentação exigida. Bem como para o cadastro para a inserção no programa de Acolhimento Familiar, os documentos determinados pela Vara da Infância e da Juventude são os seguintes: - cópia autenticada da certidão de nascimento ou casamento; - comprovante de residência; - comprovante de renda; - atestado médico de sanidade física e mental; - atestado de idoneidade moral assinado por duas testemunhas, com firma reconhecida; - atestado de antecedentes criminais; - nome e endereço de três testemunhas (não podem ser parentes). A partir daí, os pretendentes são encaminhados ao setor técnico para que sejam realizados os estudos sociais e psicológicos. Com a os resultados, o Ministério Público pode dar seu parecer e a decisão fica a cargo do Juiz de cada Comarca. Se a posição 73


final for a de que o indivíduo se encontra habilitado, então será expedida a Certidão de Habilitação à adoção. Com isso, os interessados serão então registrados no cadastro do Juizado e aguardarão a indicação de uma criança e ou adolescente. Infelizmente, a maior parte da população dos abrigos atualmente não se encontra disponível para a adoção. Apesar dos longos períodos que muitos acabam vivendo nesses locais, pela natureza dessas casas, muitos deles permanecem ali em caráter provisório, sendo visitados por suas famílias de origem ou não. Encontram-se disponíveis para a adoção somente aqueles cujas famílias de origem renunciaram à guarda, os órfãos, os abandonados efetivamente e aqueles em que fica constatado pelo Ministério Público que não existe possibilidade de reintegração, ocorrendo então a destituição do poder familiar.

A Lei Nacional de Adoção A nova Lei da Adoção (Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009), também conhecida como "Lei Nacional de Adoção", trouxe uma série de modificações a serem feitas em todo o sistema por todo o país. Novas regras para os abrigos e recomendações especiais quanto à preservação dos vínculos familiares. Uma das diferenças trazidas é a de que a nova lei fixa um prazo máximo de até dois anos para que seja concretizada a destituição judicial do poder familiar em casos de violência ou abandono, visando acelerar a disponibilização judicial da criança para adoção. A Lei Nacional de Adoção ainda estipula o limite de tempo para permanência das crianças nos abrigos. Este prazo agora é de, no máximo, dois anos e, preferencialmente, em endereço próximo ao da família. Além disso, ainda determina que a cada seis meses a permanência da criança no abrigo seja reavaliada e que a possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta seja decidida com rapidez. Quanto ao trabalho de entidades como o CRIA, que disponham de programas de acolhimento, a lei permite que elas possam receber crianças e adolescentes sem a prévia determinação da autoridade competente, apenas com a obrigação de comunicar o fato em até 24 horas para o Juizado da Infância e da Juventude. Quanto à priorização do direito das crianças e adolescentes à convivência familiar, a nova lei amplia a noção de família para parentes próximos com os quais convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Além disso, determina que irmãos abrigados não sejam separados e exige a preparação prévia dos pais adotivos. 74


Outra inovação diz respeito à voz da criança. Segundo a Lei Nacional, fica determinado que agora a criança ou o adolescente seja ouvido pela Justiça após ser entregue aos cuidados de família substituta. Além disso, prevê a adoção de crianças indígenas e quilombolas dentro de suas próprias comunidades e a priorização da adoção nacional – estabelecendo que a adoção internacional só será permitida em última hipótese. A Lei ainda determina que gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para a adoção devem receber amparo da Justiça para evitar riscos à gravidez e abandono de crianças. Prevê ainda a criação dos cadastros nacional e estaduais de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e de pessoas ou casais habilitados à adoção e de outro cadastro somente para pessoas residentes fora do país interessados em adotar. Além disso, a Lei Nacional de Adoção impede que haja punição por adoção informal – também conhecida como Adoção à Brasileira, por desconsiderar os trâmites legais para obtenção legal de uma guarda sobre uma criança ou adolescente.

Foto 11. Crianças acolhidas brincam na sede do CRIA

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A nova Lei e o CRIA Além das modificações citadas acima, a oficialização da Lei Nacional de Adoção traz mais um adendo bastante importante para a discussão sobre o trabalho que o CRIA realiza junto aos abrigos.

§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato

domiciliado

no

Brasil

não

cadastrado

previamente nos termos desta Lei quando:

I - se tratar de pedido de adoção unilateral;

II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente

mantenha

vínculos

de

afinidade

e

afetividade; III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência

comprove

a

fixação

de

laços

de

afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.

O trecho mencionado aqui revela que somente poderão ser adotadas crianças menores de três anos pelos interessados que estiverem totalmente de acordo com seu cadastro na fila de espera do Juizado, cerceando assim a possibilidade de inserção desses meninos e meninas em acolhimentos familiares que visem a adoção definitiva. O Promotor de Justiça Ruszel Lima Verde Cavalcante13, coordenador do Núcleo das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude de Teresina, explica que a mudança na lesgislação teve de ser necessária para evitar que as famílias cadastradas junto ao Juizado não sejam prejudicadas por fatores alheios a elas.

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LIMA VERDE, Ruszel. Como a atuação das ONGs que trabalham com adoção é vista dentro dos parâmetros legais. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 22 de outubro de 2012.

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“A nova Lei da Adoção criou um empecilho à adoção. Ela diz que as crianças menores que três anos não podem ser adotadas por quem não está no cadastro de adoção. Por quê a Lei criou essa dificuldade? Porque hoje existe todo um mercado de negociação de bebês.” Ele prossegue: “A pessoa vem de fora e chega aqui dizendo que uma pessoa quis dar o bebê a ela. Fica difícil detectar essas negociações até que, em alguns casos, essas pessoas não concordem mais sobre o negócio e o caso venha à tona”. Um caso que serve de exemplo para a fala do promotor aconteceu em novembro do ano de 2011. A negociação de um bebê de dois meses foi descoberta e a titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), Andréa Magalhães, viajou até a cidade de Fortaleza, no Ceará, para resgatar a criança. De acordo com uma matéria14 publicada pelo site Cidadeverde.com, a venda da criança estava envolvida em um esquema de comercialização de bebês, chefiado no Piauí pelo ex-deputado da Paraíba Fausto Henrique Oliveira, que foi preso.

A mãe

biológica teria vendido a menina por R$ 70 e uma cesta básica. Segundo o promotor Ruszel, Teresina ainda está melhorando nessa questão. “Em São Paulo, se uma pessoa chegar com um bebê nos braços dizendo que o deixaram na porta de casa, o Juizado toma e entrega para alguém do cadastro. Eles não conseguem adotar. Esse é um procedimento que tem de ser uniformizado em todo o país. Não pode ser diferente.” “Tem gente de São Paulo que vem querendo adotar aqui porque não consegue adotar lá. Por isso que a gente está aqui hoje agindo dessa maneira, tendo esse posicionamento”, afirma o promotor. Sobre o CRIA, Ruszel Lima Verde conta: “Há pouco tempo, tivemos um mutirão para rever a situação de todas as crianças que estão acolhidas em abrigos. Agilizar os processos daquelas que poderiam voltar a viver com os pais ou com famílias acolhedoras e, ainda mais nessas horas, a gente pode sentir de perto o quanto é importante o trabalho desenvolvido especialmente pelo CRIA, criando contatos entre pessoas e crianças que estão acolhidas nas unidades.” “Eu vejo o trabalho das ONGs como o CRIA de forma extremamente interessante, desde que a gente cumpra a Lei; desde que isso não venha a criar embaraços legais. Hoje ainda existem muitos casos de famílias acolhedoras que pegam uma criança, criam um vínculo de afinidade, e depois querem adotar”, aponta. 14

Disponível em <http://www.cidadeverde.com/bebe-quot-vendido-quot-pela-mae-chega-a-teresina-e-e-entregue-aorfanato-87565.>. Acesso em 8 de novembro de 2012.

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O promotor continua: “A Lei diz que isso agora é impossível, a não ser que essa família acolhedora esteja no cadastro de adoção. Sabemos a importância de proporcionar o convívio familiar e comunitário, mas hoje, por exemplo, a gente tem orientado o CRIA a evitar o contato dessas crianças menores que três anos com as famílias acolhedoras.” “A Lei criou uma dificuldade, mas foi no sentido de legalizar esse processo de adoção; para que as pessoas que queiram adotar, elas entrem no cadastro, esperem uma criança que vai ser ou já foi destituída do poder familiar, que esteja em um dos abrigos e, posteriormente, terá uma família por meio da adoção. Esse é o procedimento.”

Como esse processo é visto pelas famílias Todas as famílias envolvidas em processos de adoção definitiva ou mesmo de acolhimento familiar são conhecedoras dos procedimentos e do tempo que leva para que cada estudo seja concluído e cada decisão seja tomada pela Justiça. Em muitos aspectos, não pode haver erros. No entanto, estar ciente disso não alivia a angústia que muitos pretensos à adoção sentem, especialmente aqueles que fazem parte do programa de Acolhimento Familiar, convivem com a criança que querem adotar e entraram na fila de espera do Juizado. Dona Maria da Conceição Silva pode ser citada como exemplo. “É muito difícil. Se me perguntarem o que mais me faz sofrer é essa espera. Olha, eu já declarei que eu quero adotá-lo; já fiz o curso de adoção; já fui várias vezes na assistente social lá no Juizado; já tive uma audiência com a Dra. Maria Luísa, mas até agora nada mudou”, revela. Dona Conceição fala ainda: “O que temos agora é uma identidade que não é completa. Por exemplo, toda família possui um cadastro no programa Saúde da Família, mas mesmo ele vivendo comigo há mais de dois anos, sendo meu filho, eu não posso colocá-lo no cadastro como parte da minha família”. Mesmo demonstrando total adaptação à família acolhedora há quase três anos, alguns processos tardam em sair. O pequeno novo filho de dona Conceição possui como apenas sua Certidão de Nascimento e o Termo de Desligamento do Abrigo como documentos referentes à sua situação judicial na família acolhedora. “Lógico que fato dele não estar cadastrado como meu filho não impede que ele tenha o atendimento no posto de saúde, por exemplo, mas é uma sensação de que não está tudo certo. Oficialmente, eu não posso me responsabilizar totalmente pelo meu filho. Nem a documentação de guarda provisória dele nunca saiu, mesmo o Juizado concordando que ele esteja comigo”, revela. 78


CONCLUSテグ

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Seria o acolhimento uma solução? Tão delicado quanto analisar a situação do abrigamento institucional em Teresina é apontar uma saída para os problemas que ainda ocorrem por todo esse processo. Fatos como a superlotação nos abrigos, ausência de preparação para a reinserção social desses jovens e a falta de capacidade do sistema para se adequar rigorosamente às novas diretrizes da adoção no país têm tornado essa questão um ponto difícil de se responder. Pensar em medidas para aliviar essa problemática esbarra ainda em um dilema dos grandes. Se é verdade que problemas tão antigos necessitam de boas soluções desenvolvidas a longo prazo, outra verdade é que não existe tempo suficiente dentro dos abrigos para ações que demandem anos para trazer resultados. Em muitos pontos deste livro, o programa de Acolhimento Familiar foi apontado como a solução imediata mais adequada para resolver conjuntamente problemas como a superlotação nos abrigos e o isolamento comunitário dessas crianças e adolescentes. Este último, principalmente, é responsável por várias deficiências sociais carregadas por cada jovem após anos de abrigamento. No entanto, muitas perguntas ainda permanecem sem devidas respostas. A maneira como o Acolhimento Familiar é realizado em Teresina ainda divide opiniões com relação à intenção dessas famílias ao acolher. As entidades jurídicas referentes à adoção em Teresina não veem como justa a posição das famílias que convivem com as crianças e pretendem transformar o acolhimento em uma adoção. Da mesma maneira, é importante ressaltar que a inserção em uma família acolhedora representa uma mudança total de perspectiva para quem deixa o abrigo. Trocar sua vida antiga por uma nova realidade integrada às de outras pessoas abre as portas de um mundo inteiro de oportunidades, mas, como qualquer mudança, traz uma série de novos questionamentos. O trabalho de uma equipe multidisciplinar, ao preparar previamente a família e acompanhar de perto o acolhimento, tem o objetivo de fornecer suporte para enfrentar esse novo desafio. Além disso, a maneira como cada criança ou adolescente lida com a situação exige que todos os casos sejam monitorados de maneira individualizada. A reação da criança ao fato de ter respeitar normas em um ambiente regido por uma pessoa relativamente nova em sua vida nem sempre se dá de maneira tranquila. Em alguns casos, a situação do acolhimento em si pode causar um desejo de desobediência, fruto da incompatibilidade de algum fator na relação Família x Acolhido. 80


Casos em destaque O CRIA já realizou cerca de 30 acolhimentos em menos de três anos. Em um rápido histórico, a presidente da ONG, Francimélia Nogueira, lembra de casos que cita como exemplos de adaptação e outros que, por alguma razão, não foram bem sucedidos como o esperado. “Existe uma família que eu quero muito ajudar. Eles são oito irmãos e apenas o mais velho teve oportunidade de ficar com a avó materna. A mãe é alcoolista e, desde 2001, esses meninos vivem em situação de abrigamento. Os irmãos mais velhos conheceram os mais novos no abrigo, à medida em que a mãe ia engravidando de novo”, inicia Francimélia. Ela prossegue: “Essa família já foi toda quebrada. O filho mais velho está com a avó materna, dois irmãos foram adotados por uma pessoa, o terceiro filho foi adotado por outra, o quarto está com o avô paterno, há um no abrigo Savina Petrilli, outro vive com uma tia e a última criança, a que me refiro agora, está no Lar da Criança”. A criança mencionada no exemplo lembrado por Francimélia possui um histórico bastante difícil para seus 11 anos. Ela viveu no Abrigo Dom Barreto até ser incluída no Famílias Acolhedoras do CRIA em 2011. A falta de referências familiares e a necessidade de medicação controlada não são fatores favoráveis a seu comportamento. Após várias tentativas de fuga do Abrigo Dom Barreto e de dois acolhimentos mal sucedidos em um curto espaço de tempo, o abrigo em que cresceu se recusou a receber a criança de volta, alegando que não tinha condições de mantê-la. Ciente da situação da garota, Socorro Solano, diretora do Lar da Criança, autorizou o abrigamento no Lar. Um dos pontos mais sérios neste caso é que o regimento do Lar da Criança só permite que sejam abrigadas no local crianças com idade inferior a 12 anos. Atualmente, a garota em questão possui 11 anos e atingirá sua “maioridade” ainda em 2012. Isso significa que ela terá de deixar a casa com a chegada de seu próximo aniversário, mesmo ainda sem ter para onde ir. “O que eu quero chamar a atenção para esse aspecto, quando me preocupo com essa criança, é que temo muito pelo que vai acontecer na vida dela; pela possibilidade de se tornar uma pessoa de rua ou uma usuária de drogas - porque, na rua, a probabilidade é muito forte, infelizmente”, revela Francimélia. A presidente do CRIA continua: “É uma ideia terrível a de que o sistema não conseguiu fazer nada por essa família; não conseguiu reuni-la. Enfim, não conseguiu ajudar essas crianças a terem um lar. Com isso, o quê eu vejo no comportamento dessa menina? Eu vejo revolta”. 81


Durante o tempo em que essa criança esteve fora do abrigo, acompanhada pelo programa de acolhimento familiar, as tentativas de reinserção social foram feitas, prioritariamente, com membros da família extensa da garota. Mesmo assim, os problemas de comportamento e, por vezes, a incompatibilidade com a família acolhedora impossibilitaram essa reintegração. “Eu acho que sempre - mesmo quando tentamos o acolhimento na casa de uma tia - existia aquele pensamento de que, se ela não se comportasse de uma determinada maneira esperada por todos, a tia iria simplesmente devolvê-la”, prossegue Francimélia. “Acho que a única luz no fim do túnel para uma situação como a dessa criança virá no dia em que ela encontrar alguém em que ela confie, que ela verdadeiramente sinta que essa pessoa a assumiu definitivamente. E, talvez, isso nem se consiga pelo Famílias Acolhedoras.” Francimélia finaliza: “Com o programa, haveria sempre o pensamento de que, pelo acolhimento, a família poderia devolver ou o CRIA poderia tirar, se houver razão para isso. Acho, infelizmente, que só quando ela fosse adotada e pudesse pensar: „Essa pessoa não vai mais me abandonar‟, aí, sim, essa criança se tornaria uma outra pessoa”.

Foto 12. As duas crianças que estão há mais tempo no Programa de Acolhimento Familiar jogam futebol em um momento de recreação

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O Acolhimento mais comum Segundo Francimélia, o caso citado acima foi uma exceção que o CRIA trabalha para que ainda se torne um exemplo de reintegração social bem sucedida. Em geral, a maioria das crianças e adolescentes incluídos no programa Famílias Acolhedoras consegue se adaptar sem grandes dificuldades e logo se integram como filhos às famílias que os receberam. A presidente do CRIA afirma que a mudança do abrigo para um ambiente familiar, especialmente nas crianças, fica perceptível aos olhos. “Uma coisa que a gente repara – e dá pra perceber isso com pouco tempo de acolhimento – é uma melhora na fala, o sorriso, o ganho de peso; como as crianças começam a ficar mais autônomas, a opinar mais, se sentir mais à vontade”, explica ela. A maioria das famílias que já conseguiu acolher partilha dessa opinião. O acolhimento representa um ganho de melhoria de vida extremamente rápido, seja para quem sai do abrigo ou para quem se vê ajudando a quem precisa de uma maneira tão bela. Com menos de um mês de família ampliada, o casal João de Deus Soares15 e Antônia Alves Soares16, que conseguiu concretizar o acolhimento de uma menina de cinco anos em março de 2012 e que possui três filhos biológicos cada um, esbanjou felicidade ao realizar o sonho de ter uma filha do casal por meio do programa de Acolhimento Familiar. “Pra nós, eu acho que não tenha coisa melhor. Nós éramos separados, mas aí casamos já tem 11 anos. Os filhos dela são grandes e os meus também, mas faz tempo que a gente tentava conseguir uma criança mulher”, explica João de Deus, que logo é complementado por Antônia: “Ele não teve filha; são todos homens”. Ela continua: “Pra gente é uma coisa nova, e criança em casa é uma coisa que fazia falta demais, fazia muita falta mesmo. Tava até falando pro psicólogo que tá sendo uma coisa nova, que a gente tá se sentindo bem; a gente sabe que a gente tá fazendo o bem”. Sobre as mudanças no comportamento da pequena desde que chegou à casa, João de Deus responde imediatamente: “Ela está ficando mais carinhosa”, logo

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SOARES, João de Deus. Os benefícios do acolhimento familiar. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 12 de abril de 2012. 16 SOARES, Antônia Alves. Os benefícios do acolhimento familiar. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 12 de abril de 2012.

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complementado pela esposa: “Agora que a gente tá ensinando tudo; a dizer „muito obrigado‟; que ela pode abraçar, beijar... porque eles gostam muito, né?” Antônia continua: “Esse projeto do CRIA é muito bom. Eu vi na televisão e há tempos que eu pro curava. É muito bom porque dá oportunidade. Você vai lá, começa a ser madrinha, visita o abrigo, pega a criança e começa a conhecer, a gostar, vai se apegando e a gente já ama”. “O programa é muito bom porque ele lhe dá a oportunidade de ter uma criança logo, porque eu tenho uma vizinha que há anos tá inscrita no cadastro e até hoje não conseguiu. Uma comadre minha que está com a irmã da minha menina, eu que indiquei. Levei ela lá no CRIA e deu certo”, explica ela. O esposo de Antônia aponta: “Eu digo é que quem quer fazer uma boa ação na vida, que procure os abrigos, porque tem tanta criança precisando de um lar, de um pai, de uma mãe, um irmão. É muita criança! Quando ia lá, eu nem gostava tanto de entrar porque eu não aguento. É muito triste”. Ele prossegue: "Se pudéssemos, teríamos mais de uma agora, mas eu acho que o problema não é pegar mais do que um. Não é pensar no que eles vão comer – porque a gente consegue -, mas, sim, em como a gente vai educá-los da maneira correta. Se educar um filho já é complicado, imagine mais do que um”. “Seria um projeto como esses tivesse um apoio maior, era um passo a mais pra tirar essas crianças do abrigo. Pporque a gente vê que não depende só da doutora. Tem muita gente que quer, mas não tem condição de chegar num Juizado daqueles porque acha que não tem espaço, tem algo que impede chegar.” “Acham que não são capazes de realizar isso. Mas só que nós somos pobres; não temos dinheiro, mas temos respeito, carinho; somos uma família respeitável, graças a Deus. É só a pessoa ter fé e boa vontade e acreditar em Deus, que a gente vence tudo.” Sobre o que acham da burocracia necessária ao funcionamento do sistema, João fala: “Acho que se não existisse esse programa, nós não estaríamos com nossa filha. A gente chegava no abrigo, pedia para entrar para visitar e muitos não deixavam. Queremos adotar, dar um lar pra uma criança e sempre diziam que „era preciso fazer isso, fazer aquilo‟. Lógico que devem conhecer a conduta de quem vai adotar, mas não deveria ser tão complicado.” A esposa complementa: “Um dia, eu perguntei à juiza, Dra. Maria Luísa, por quê é tão complicado adotar aqui. Ela me respondeu que o povo quer crianças de 0 a 1 ano de idade, quer escolher cor de olho, cor de pele. Eu acho estranho! Se você está atrás de uma criança, de um filho, não interessa cor de pele, cor de olho. Você quer, não é?”. 84


“Muita gente escolhe. Tem pessoas que não querem um filho moreno, só querem de pele branca; outros só querem com olho azul, só olham pro físico”, destaca Antônia, que segue apontando com a mão para o esposo: “Com a gente, foi ele que viu e disse logo „É essa daqui. É minha filha, essa menina‟”. Ele próprio continua: “Eu acho que as pessoas têm muito preconceito, principalmente quando vão adotar uma criança. Nos chamam de loucos. Eu nem ligo, pode chamar. Eu estou fazendo o que quero fazer. Eu quero uma filha, eu estamos realizando um sonho nosso”. Antes de terminar a entrevista, pergunto: Vocês se consideram financeiramente pobres, mas me disseram que o importante é que a pessoa não se sinta incapaz de oferecer o que uma criança precisa. Estando há cerca de um mês com a nova filha de vocês, me digam - a questão financeira faz alguma diferença para ela? Um sonoro “Não” é a resposta. “A única coisa que ela quer é muito amor e carinho”, fala Antônia. “E o respeito; ter o pai perto pra abraçar e beijar. Isso que ela quer mesmo”, responde ele, logo complementado: “Dá pra perceber que ela nos deixou bastante bobos até hoje, né?”. Muitos risos finalizam a entrevista.

Perspectivas para o abrigamento em Teresina Os dois exemplos de acolhimento familiar mencionados neste capítulo – opostos como são – representam duas realidades possíveis: o primeiro demonstra inúmeros problemas que podem ser enfrentados quando o acolhimento é concretizado enquanto o segundo revela a alegria de uma família em se sentir mais completa oferecendo uma oportunidade ímpar a uma criança. Dessa forma, apontar o Acolhimento Familiar como uma das possíveis soluções para muitos dos problemas se torna uma possibilidade cabível, mas uma unanimidade entre as entidades questionadas para este livro é a de que a forma com que o acolhimento acontece hoje ainda precisa ser aprimorada, com a inserção de mais famílias que projetem melhor a ideia do projeto: apenas acolher. Da mesma maneira, os resultados apresentados até agora tornam impossível negar os benefícios que foram realizados nos últimos anos, com a implantação do programa em Teresina, a ampliação da discussão sobre essa temática na sociedade e da abertura dos abrigos a novas iniciativas em conjunto com grupos e organizações como o CRIA. Vale a pena ressaltar que boa parte dos grupos e entidades responsáveis pelas ações mais significativas nessa área em Teresina são mantidos por recursos privados ou 85


tiram suas receitas financeiras de doações, sem repasses governamentais - sejam federais, estaduais ou municipais. Apesar do financiamento desses projetos não partir de incentivos públicos, uma das questões que têm sinalizado para uma possível melhoria no sistema de abrigamento é um aumento preocupação dos governos com essa área da assistência social. No âmbito federal, na última década, a participação de Conselhos como o CONANDA e o CNAS em discussões sobre os direitos de crianças e adolescentes cresceu notoriamente, tendo resultado na elaboração do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, em 2006, e na aprovação da nova Lei da Adoção, em 2010. Quanto ao poder municipal, Teresina apontou uma mudança que pode significar bastante para a evolução desse ponto. Em 2010, no dia 8 de julho, o prefeito Elmano Férrer assinou a ordem de construção de um abrigo próprio da Prefeitura nos moldes do Lar da Criança. O registro foi encontrado em uma matéria do site CidadeVerde.com17.

Foto 13. Matéria comprova assinatura de ordem de serviço para construção do abrigo municipal de Teresina (Reprodução) 17

Disponível em <http://www.cidadeverde.com/prefeito-assina-ordem-de-servico-para-construcao-de-abrigo-infantil61191.>. Acesso em 9 de novembro de 2012.

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A criação do abrigo batizado de “Reencontro”, construído no bairro Morada do Sol, zona Leste de Teresina, utilizou recursos conjuntos da Prefeitura e do Ministério do Desenvolvimento Social. Apesar de não ter sido aberto ainda, sua finalização é muito esperada. Francimélia Nogueira comenta a criação do novo centro. “A informação que recebemos é a de que toda a estrutura física do abrigo já foi construída, mas ele não pôde ser aberto ainda por conta da seleção de pessoal especializado para o trabalho a ser desempenhado lá”, revela a presidente do CRIA. Um dos problemas existentes se refere apenas ao fato da casa não estar de acordo com as novas diretrizes do Governo Federal quanto ao abrigamento. O projeto da nova casa inclui 15 dormitórios e possui espaço para abrigar até 60 crianças de ambos os sexos. A capacidade do abrigo Reencontro seria o triplo da recomendada pelo Governo Federal, de 20 crianças e adolescentes. No entanto, Francimélia revela que a disponibilidade de um abrigo vai ao encontro de um dos planos do CRIA: o de poder gerenciar uma casa do tipo com recursos assegurados pela Prefeitura.

Foto 14. Criança brinca com balões na sede do CRIA

“Não escondemos nosso interesse nisso. Seria uma oportunidade ótima de termos um abrigo de acordo com todas as recomendações federais dos conselhos, com pessoal 87


especializado e com experiência em reinserção social. Além disso, conseguiríamos gerenciá-la com bem menos recursos que o normal”, declara. Uma das esperanças para a melhoria do sistema de abrigamento e adoção no Brasil é a de que os órgãos responsáveis pelas decisões que o regulamentam demonstrem seriedade e rapidez para efetuar as mudanças que ainda são necessárias em abrigos por todo o país. Mais que isso, é importante que a realidade dessas casas esteja de acordo com a defendida em documentos como o ECA e o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Somente dessa maneira, poderemos saber de verdade a que velocidade caminhamos rumo ao sistema eficiente que ainda almejamos como ideal. Neste ponto, saber como vamos é tão importante quanto saber para onde estamos indo. Essa é uma questão que não permite grandes tropeços; exige pressa. São vidas que estão crescendo cerceadas pelas paredes de um abrigo. Nesta caminhada, tempo a perder nunca foi uma opção.

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MACEDO, Elenice. O funcionamento do Lar da Criança. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 20 de março de 2012.

SOLANO, Maria do Socorro. O abrigamento institucional e o acolhimento em famílias substitutas. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 19 de março de 2012.

LIMA VERDE, Ruszel. Como a atuação das ONGs que trabalham com adoção é vista dentro dos parâmetros legais. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 22 de outubro de 2012.

SILVA, Maria da Conceição. Os benefícios do acolhimento familiar. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 10 de abril de 2012.

SOARES, João de Deus. Os benefícios do acolhimento familiar. Entrevista concedida a Juscelino Ribeiro em 12 de abril de 2012.

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BITTENCOURT, Sávio. Manual do pai adotivo. Niterói, 2010. 89 p.

Bebê

"vendido"

CidadeVerde.com.

pela

mãe

09

chega

de

à

Teresina

novembro

e

de

é

entregue

2011.

a

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<http://www.cidadeverde.com/bebe-quot-vendido-quot-pela-mae-chega-a-teresina-e-eentregue-a-orfanato-87565>. Acesso em 8 de novembro de 2012.

Prefeito

assina

CidadeVerde.com.

ordem 08

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serviço

de

julho

para

construção de

2010.

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<http://www.cidadeverde.com/prefeito-assina-ordem-de-servico-para-construcao-deabrigo-infantil-61191>. Acesso em 9 de novembro de 2012.

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novembro de 2012.

90


Alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 12.010, de 2009). Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2009/lei/l12010.htm>. Acesso em 10 de novembro de 2012.

Lei de definição das Casas-Lares (Lei nº 7.644, de 1987). Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7644.htm>. Acesso em 10 de novembro de 2012.

91


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