TFG João Cabral de Melo Neto: Paisagens com figuras

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Paisagens com figuras João Cabral de Melo Neto Juliana Fernandes Silveira Trabalho Final de Graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo sob orientação do Prof. Dr. Luís Antônio Jorge em junho de 2011.



Resposta a Vinícius de Moraes Não sou um diamante nato nem consegui cristalizá-lo: se ele te surge no que faço será um diamante opaco de quem por incapaz do vago quer de toda forma evitá-lo, senão com o melhor, o claro, do diamante, com o impacto: com a pedra, a aresta, com o aço do diamante industrial, barato, que incapaz de ser cristal raro vale pelo que tem de cacto.


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Premissas

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João Cabral de Melo Neto e sua obra poética Museu da Língua Portuguesa

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Apresentação

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Morte e vida severina

Intimidade

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O c達o sem plumas

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Sevilhizar o mundo

Obras referenciais

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Poeta arquiteto

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Agradecimentos

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Restituer l’émotion poétique à volonté, en dehors des conditions naturelles, où elle se produit spontanément et au moyen des artifices du langage, telle est l’idée attachée au nom de poésie. Paul Valéry

(Epígrafe de João Cabral de Melo Neto: Obra completa, 1994)

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O presente trabalho é um exercício de projeto expográfico, partindo da escolha de um tema relevante a ser abordado por uma exposição – a obra poética de João Cabral de Melo Neto – e de um lugar pertinente para realizar tal mostra – a sala de exposições temporárias do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. Por tal sala, passaram exposições dedicadas a escritores consagrados da Literatura lusófona, como Grande sertão: Veredas, baseada no romance homônimo de Guimarães Rosa, Clarice Lispector: A hora da estrela, Machado de Assis: Mas este capítulo não é sério e Fernando Pessoa: Plural como o universo. E também exposições com temas linguísticos, tais como Palavras sem fronteiras: Mídias convergentes, O francês no Brasil em todos os sentidos e Menas: O certo do errado, o errado do certo. Como são dois os tipos de exposição sobre a Língua, linguística ou literária, e o que me era mais instigante era o segundo tipo, passei primeiro a pensar no hall dos meus escritores preferidos, que tivessem apelo junto ao grande público, cuja obra era produzida em português. Clarice Lispector foi homenageada quando se completavam os 30 anos de sua morte em 2007, Machado de Assis ganhou sua exposição em seu centenário de morte (2009). Mas a exposição sobre a grande obra de Guimarães Rosa teve um motivo mais alegre: os 50 anos da publicação de Grande sertão: Veredas, que inaugurou o Museu em 2006. Fernando Pessoa também seria um dos escolhidos, mas também já honrou sua exposição. Dentre outros que ainda não foram homenageados, poderia citar José Saramago, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira. Mas talvez o fato de João Cabral de Melo Neto ser chamado “poeta engenheiro” ou “poeta arquiteto”, tenha sido uma provocação maior para escolher, entre escritores que já me eram familiares, este poeta tão racional e metódico. Um poeta arquiteto. 9


Museu da Língua Portuguesa

Edifício, objetivos e público A exposição do Museu da Língua Portuguesa se localiza na ala leste do edifício (lado esquerdo do corte acima), ocupando os três pavimentos acima do térreo. Seções administrativas do Museu estão na ala oeste. A entrada do público é feita pela Praça da Luz, em frente à Pinacoteca do Estado. A bilheteria e o guarda-volumes estão logo no nível térreo, mas a partir daí os visitantes tomam dois elevadores que os levam para qualquer um dos três pisos de exposição. Os mesmos elevadores os trazem de volta à saída. O Museu da Língua pretende promover e difundir o idioma, valorizando este aspecto do patrimônio imaterial a fim de afirmar a Língua como elemento fundamental e fundador da cultura brasileira; apro10


Corte longitudinal do edifício da Estação da Luz que abriga o Museu da Língua Portuguesa. A visão é desde o Parque da Luz para a direção da avenida Cásper Líbero. A gare é vista ao fundo.

ximar o visitante à língua materna, como usuário cotidiano e agente modificador; tratar a Língua de forma interativa e tecnológica, evitando a abordagem por vezes maçante da educação formal e chamando a atenção do público para aspectos interessantes e inusitados do idioma; complementar a educação formal, de forma a diversificar e intensificar o aprendizado. O público do Museu é constituído principalmente por escolares que já sejam alfabetizados, com idades entre 6 e 17 anos, e seus eventuais acompanhantes adultos, sejam pais, familiares ou professores. Há, evidentemente, uma visitação espontânea constituída por pessoas das mais variadas idades, interessadas em conhecer curiosidades, aprofundar aspectos da língua, celebrar escritores homenageados. Nesse aspecto, há que se considerar que as exposições temporárias recebam uma gama muito variada de visitantes, de diferentes idades, origens, classes econômico-sociais, contando também com portadores de necessidades especiais. Por isso, os textos e as instalações devem conter linguagem o mais acessível quanto seja possível. 11


O espaço dedicado às exposições temporárias A sala de exposições temporárias do Museu da Língua está localizada no primeiro andar do edifício, contando com uma altura de pé-direito de mais de 4,50m. Como dito, o acesso dos visitantes é feito por dois elevadores que se abrem num mesmo espaço da sala, onde há seis pilares distribuídos simetricamente no eixo longitudinal (ver planta ao lado). Essa primeira clareira com pilares se espelha no eixo transversal para o fundo da sala. Aproximadamente no centro, está o bloco de escadas e sanitários que serve esta ala. Assim, fica estipulado um circuito de visitação circular pela conformação da sala de exposições temporárias. Em primeira análise, há duas possibilidades nesse circuito: 1. os visitantes saem dos elevadores e se espraiam na primeira seção, vão até a lateral esquerda (tendo os elevadores às costas), passam para a segunda seção com pilares, estreitam-se pelo longo corredor que permite acesso aos sanitários e, por fim, voltam ao lugar de origem, junto aos elevadores; 2. partem da mesma sala dos elevadores, mas desta vez percorrendo o estreito corredor lateral até o fundo da sala de exposições temporárias, então passando para a lateral mais generosa e dando novamente no largo dos elevadores. A maior parte das exposições já realizadas ali - se não todas - escolheram uma das duas opções de percurso acima, sobretudo a primeira. É possível tentar outros circuitos, ou mesmo fazer com que o visitante vá e volte exatamente pelo mesmo caminho, mas estas são geralmente opções mais dificultosas, já que as dimensões da sala não são tão generosas e há muitas especificidades arquitetônicas, como as diferentes larguras dos espaços laterais ou a dúzia de pilares presentes no meio dos dois espaços mais nobres da sala. 12


Trecho da planta do primeiro pavimento da ala leste do edifício, exibindo a sala de exposições temporárias. À esquerda, os elevadores que são o único acesso de visitantes à sala.

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Foto: Bob Wolfenson. Feita em 1995 no Rio de Janeiro.

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João Cabral de Melo Neto e sua obra poética

João Cabral de Melo Neto nasceu em 1920 no Recife e faleceu aos 79 anos no Rio de Janeiro. Publica seu primeiro livro, Pedra do sono, em 1942, e entra para a carreira diplomática em 1945. Em 1969, toma posse na Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 37, antes pertencente ao jornalista e empresário Assis Chateaubriand. João Cabral é considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX e tido como precursor da vanguarda brasileira da Poesia Concreta. Seu trabalho foi bastante peculiar, já que se apoiava na racionalidade e se valia quase que exclusivamente de substantivos concretos e situações do cotidiano para a construção de imagens e atmosferas. Neste sentido, suas maiores influências brasileiras foram, assumidamente, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. “Situado cronologicamente na geração de 45, dela se afasta por essa sua atitude diante do fazer poético, que diz não a todo tipo de confessionalismo, exigindo um tipo de verso que obrigue o leitor a despertar, fazendo apelo à sua razão e inteligência, não cedendo ao automatismo do surrealismo vigente, nem se deixando raptar por qualquer estado emocional ditado por aquilo que se chama inspiração”1.

1 Oliveira, 1994, p. 15-16.

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Premissas

Levando-se em conta o público primordial do Museu da Língua e grande parte dos que tomaram contato com a obra de João Cabral alguma vez, percebeu-se que a primeira ideia que vem à cabeça quando se fala deste poeta é a visão de um vasto sertão, com um Severino retirante fugindo da seca para a capital. Então, decidiu-se por começar a mostrar sua obra pelo que o poeta se notabilizou mundialmente: Morte e vida severina. A partir de então, quando supostamente o visitante já pisou em solo conhecido, tudo o que estaria por vir causaria espanto. E o objetivo da exposição é justamente esse, mostrar um João Cabral menos conhecido, menos desbravado pela educação formal escolar. E, tendo em vista que a sala de exposições temporárias do Museu conforma um circuito circular de visitação, os visitantes entram e saem pelos mesmos dois elevadores, ou seja, pela mesma seção do espaço expositivo. Assim, se a exposição João Cabral de Melo Neto: Paisagens com figuras começa com um sertão, ela termina do mesmo modo. A partir de então, tentou-se priorizar alguns períodos emblemáticos em que o poeta consagrou sua pesquisa poética ou tenha inovado nela. O primeiro critério utilizado foi o cronológico, ou seja, fez-se um levantamento de toda a obra poética de João Cabral e foram criados agrupamentos segundo a cronologia com que as obras foram editadas. Este

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critério logo se mostrou insuficiente, já que o poeta elegera alguns temas em seus primeiros trabalhos e seguiu aprofundando-os durante toda a carreira1 . Então, acrescentou-se ao critério cronológico a análise das temáticas e formas de pesquisa de uma linguagem própria. Deste modo, O cão sem plumas (1949-1950) foi eleito para representar não só o grupo de obras em que João Cabral trata do rio Capibaribe e da realidade social pernambucana, mas também para demonstrar um primeiro patamar alcançado pelo poeta na busca por uma linguagem cabralina, tendo como degraus para este patamar suas quatro obras iniciais2. Depois da publicação de Duas águas (1956), coletânea que, para Barbosa, tem O cão sem plumas como poema articulador, sua obra poética alcançaria, nas décadas de 1960 e 70 o ápice do rigor com que “o nome de João Cabral passou a identificar-se na literatura brasileira”3. Aqui, tendo domínio absoluto de sua linguagem, Cabral teria feito, segundo Barbosa, a passagem, e não defasagem, do lúcido ao lúdico. Por fim, uma instalação aborda o que foi importante na Espanha para o poeta: reconhecer em outros fazeres o seu próprio fazer poético. 1 Tese defendida por João Alexandre Barbosa no ensaio escrito para a edição dos Cadernos de Literatura dedicada a João Cabral de Melo Neto. 2 Também baseado em João Alexandre Barbosa. Na seção dedicada à instalação O cão sem plumas, esclarece-se melhor o argumento. 3 Barbosa, 1996, p. 87. As referências a esse ensaio estarão indicadas assim.

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Instalação MORTE E VIDA SEVERINA A instalação leva o nome da obra que deu a João Cabral de Melo Neto reconhecimento internacional como poeta. De maneira geral, os últimos versos de Morte e vida severina pertencem ao imaginário brasileiro e, levando-se em conta que o público do Museu da Língua é formado primordialmente por escolares, é quase certo que a primeira imagem que venha à cabeça do visitante, ao se falar de João Cabral, seja uma paisagem de sertão, com sua secura e seus severinos. Por isso mesmo, esta instalação é o acolhimento da exposição e, dada a configuração da sala de exposições temporárias do Museu, é também a última. O visitante começa e termina no pedaço de sertão recriado a partir do quintal de uma casa sertaneja que, como a maioria delas, convive com dois sentimentos antagônicos: a celebração da vida e o pesar da morte. A partir deste ambiente íntimo do quintal sertanejo, percebe-se a morte como figura central e cotidiana, repousando estática no centro da sala, por-

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que “só a morte é certa”. Seu duplo de caráter vago sobrevoa todo o terreiro: a vida com seus fios que tecem uma trama incerta, em que um caminho se cruza a outro e se separa, em que há mil possibilidades e não se pode prever nenhuma. O estranhamento da justaposição de vida e morte, festa e velório, esperança e resignação, é o que Severino encontra pelo caminho. A alternância de sentimentos culmina na vontade de perguntar: “Seu José, mestre carpina, / que diferença faria / se em vez de continuar / tomasse a melhor saída: / a de saltar, numa noite, / fora da ponte e da vida?”. Ao que o sábio mestre contesta: “eu não sei bem a resposta / da pergunta que fazia, / se não vale mais saltar / fora da ponte e da vida; / nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; / é difícil defender, / só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é / esta que vê, severina; / mas se responder não pude / à pergunta que fazia, / ela, a vida, a respondeu / com sua presença viva. / E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida”.

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Conceito e abordagem expográfica

Os dois elevadores do Museu são unidos por uma cobertura de palha, remetendo a uma varanda da casa de um sertanejo, o que diminui o pé-direito neste trecho e provê o acolhimento da exposição. Dois dos pilares existentes no espaço expositivo são pilares dessa varanda, e se cria outros quatro para que a varanda seja então conformada. O chão é de terra batida: terra e areia coladas a toda a área de 143 metros quadrados do piso desta seção da sala do Museu. Ao sair da varanda ao “céu aberto”, o visitante se depara com um ambiente de ambiguidade entre festa e pesar, vida e morte. Os outros quatro pilares existentes estruturam, como num baldaquino, o cortejo fúnebre para um Severino Lavrador, que é carregado embrulhado numa rede que, quando o visitante se aproxima, permite ouvir “Funeral de um lavrador”, trecho de Morte e vida sevrina musicado por Chico Buarque (ver DVD anexo). As duas paredes laterais são muros de pau-a-pique em construção, ou seja, a vida está em processo, sob quaisquer condições. Por detrás das estruturas ainda incompletas destes muros laterais, vê-se o céu estrelado que no sertão

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não tem limites, com sua escuridão pontilhada por pequenas lâmpadas incandescentes. Pelo terreiro, há objetos do cotidiano sertanejo, de quem trabalha a terra incansavelmente de sol a sol. São latões, enxadas, cestos, dividindo espaço com galhos secos enfeitados com flores de papel. Segundo o próprio João Cabral, “a poesia não é uma coisa para ser lida com distração”. Assim, os pequenos folhetos de cordel que contêm os trechos selecionados do poema estão sobre uma mesa, em um canto, aguardando para serem levados embora pelos visitantes. Porém, agora contrariando o poeta, que dizia que sua poesia era para ser lida em voz baixa, surgem membros do serviço educativo que leem em voz alta algum trecho do poema. Leem - e não recitam - pois a poesia de João Cabral de Melo Neto já é suficientemente forte, pede a maior neutralidade possível para a voz. Assim, de tempos em tempos, os visitantes são surpreendidos pela audição do Auto de Natal pernambucano, mas com o perdão do poeta, já que ele foi escrito para o palco.

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Texto introdutório da instalação

Morte e vida severina: Auto de Natal pernambucano foi escrito a pedido de Maria Clara Machado, entre 1954 e 1955, para ser encenado. Narra a trajetória de Severino, retirante que sai do Sertão pernambucano a caminho da capital Recife, tendo o rio Capibaribe como guia. Cansado de ver só fome e miséria no Sertão, Severino resolve tentar a sorte na cidade grande, como tantos outros, para poder não só levar uma vida melhor, mas escapar da morte prematura que a tantos condena. Em sua jornada, o retirante se surpreende. Não só não escapa da morte, como ela o acompanha até seu destino final: as margens recifenses do Capibaribe. Mas é ali, em meio ao lamaçal do mangue e avistando a mesma miséria e a mesma fome que via no seu Sertão, onde o último fio de esperança se arrebenta, Severino encontra a vida renovando seu ciclo numa pequena explosão, “mesmo quando é a explosão / de uma vida severina.”

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Conteúdo

Poesia: Morte e vida severina: Auto de Natal pernambucano (1954-1955) Trecho 01

magra e ossuda em que eu vivia. B

A O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra 30

Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido Sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).

C


Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.

Trecho 02 A Antes de sair de casa aprendi a ladainha das vilas que vou passar na minha longa descida. Sei que há muitas vilas grandes, cidades que elas são ditas; sei que há simples arruados,

sei que há vilas pequeninas, todas formando um rosário cujas contas fossem vilas, todas formando um rosário de que a estrada fosse a linha. Devo rezar tal rosário até o mar onde termina, saltando de conta em conta, passando de vila em vila.

B Não desejo emaranhar o fio de minha linha nem que se enrede no pêlo hirsuto desta caatinga. Pensei que seguindo o rio eu jamais me perderia: ele é o caminho mais certo, de todos o melhor guia. Mas como segui-lo agora que interrompeu a descida?

C Vejo que o Capibaribe, 31


como os rios lá de cima, é tão pobre que nem sempre pode cumprir sua sina e no verão também corta, com pernas que não caminham. Tenho de saber agora qual a verdadeira via entre essas que escancaradas frente a mim se multiplicam. Trecho 03

B Penso agora: mas por que parar aqui eu não podia e como o Capibaribe interromper minha linha? ao menos até que as águas de uma próxima invernia me levem direto ao mar ao refazer sua rotina? C

A Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, só a morte deparei e às vezes até festiva; só morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida Severina (aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais severina para o homem que retira).

Na verdade, por uns tempos, parar aqui eu bem podia e retomar a viagem quando vencesse a fadiga. Ou será que aqui cortando agora a minha descida já não poderei seguir nunca mais em minha vida?

Trecho 04 A Bem me diziam que a terra

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se faz mais branda e macia quanto mais do litoral a viagem se aproxima. Agora afinal cheguei nessa terra que diziam. Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista.

esta aqui, tão feminina. Por onde andará a gente que tantas canas cultiva? Feriando: que nesta terra tão fácil, tão doce e rica, não é preciso trabalhar todas as horas do dia, os dias todos do mês, os meses todos da vida.

B Os rios que correm aqui têm a água vitalícia. Cacimbas por todo lado; cavando o chão, água mina. Vejo agora que é verdade o que pensei ser mentira. Quem sabe se nessa terra não plantarei minha sina?

C Não tenho medo de terra (cavei pedra toda a vida), e para quem lutou a braço contra a pirraça da Caatinga será fácil amansar

Trecho 05

A - Esta cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida. - É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio.

B 33


- Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. - É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo.

C - É uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo. - É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada não se abre a boca.

Trecho 06

A 34

Nunca esperei muita coisa, digo a Vossas Senhorias. O que me fez retirar não foi a grande cobiça; o que apenas busquei foi defender minha vida da tal velhice que chega antes de se inteirar trinta; se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda.

B Mas não senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais mínima. Está apenas em que a terra é por aqui mais macia; está apenas no pavio, ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina, e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça,


a vida arde sempre com a mesma chama mortiça.

C Agora é que compreendo por que em paragens tão ricas o rio não corta em poços como ele fez na Caatinga: vive a fugir dos remansos a que a paisagem o convida, com medo de se deter, grande que seja a fadiga. Sim, o melhor é apressar o fim desta ladainha, fim do rosário de nomes que a linha do rio enfia; é chegar logo ao Recife, derradeira ave-maria do rosário, derradeira invocação da ladainha, Recife, onde o rio some e esta minha viagem se fina.

Trecho 07

A Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita. Sabia que no rosário de cidade e de vilas, e mesmo aqui no Recife ao acabar minha descida, não seria diferente a vida de cada dia: que sempre pás e enxadas foices de corte e capina, ferros de cova, estrovengas o meu braço esperariam.

B Mas que se este não mudasse seu uso de toda vida, esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria na quartinha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa, ou meu aluguel com a vida. E chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, 35


sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado adiantado de uns dias; o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida.

C A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio, que vem também lá de cima, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama, mortalha macia e líquida, coroas de baronesa junto com flores de aninga, e aquele acompanhamento de água que sempre desfila (que o rio, aqui no Recife, não seca, vai toda a vida).

Trecho 08 36

A - Seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal, sabe me dizer se o rio a esta altura dá vau? sabe me dizer se é funda esta água grossa e carnal? - Severino, retirante, jamais o cruzei a nado; quando a maré está cheia vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de grande calado. - Seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem não é preciso muita água: basta que chegue ao abdome, basta que tenha fundura igual à de sua fome.

B - Severino, retirante, pois não sei o que lhe conte; sempre que cruzo este rio costumo tomar a ponte;


quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come. - Seu José, mestre carpina, e quando ponte não há? quando os vazios da fome não se tem com que cruzar? quando esses rios sem água são grandes braços de mar? - Severino, retirante, o meu amigo é bem moço; sei que a miséria é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la vale bem qualquer esforço.

mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida. - Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?

Trecho 09

A C - Seu José, mestre carpina, e que interesse, me diga, há nessa vida a retalho que é cada dia adquirida? espera poder um dia comprá-la em grandes partidas? - Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere comprar em grosso de tais partidas,

- Atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura. Vou dizer todas as coisas que desde já posso ver na vida desse menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar na lama, com goiamuns, 37


e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo.

B Cedo aprenderá a caçar: primeiro, com as galinhas, que é catando pelo chão tudo o que cheira a comida; depois, aprenderá com outras espécies de bichos: com os porcos nos monturos, com os cachorros no lixo. Vejo-o, uns anos mais tarde, na ilha do Maruim, vestido negro de lama, voltar de pescar siris; e vejo-o, ainda maior, pelo imenso lamarão fazendo dos dedos iscas para pescar camarão. C - Outras coisas que estou vendo é necessário que eu diga: 38

não ficará a pescar de jereré toda a vida. Minha amiga se esqueceu de dizer todas as linhas; não pensem que a vida dele há de ser sempre daninha. Enxergo daqui a planura que é a vida do homem de ofício, bem mais sadia que os mangues, tenha embora precipícios. Não o vejo dentro dos mangues, vejo-o dentro de uma fábrica: se está negro não é de lama, é graxa de sua máquina, coisa mais limpa que a lama do pescador de maré que vemos aqui, vestido de lama da cara ao pé.

Trecho 10

A - De sua formosura já venho dizer: é um menino magro,


de muito peso não é, mas tem o peso de homem, de obra de ventre de mulher. - Sua formosura deixai-me que cante: é um menino guenzo como todos os desses mangues, mas a máquina de homem já bate nele, incessante. - Sua formosura eis aqui descrita: é uma criança pequena, enclenque e setemesinha, mas as mãos que criam coisas nas suas já se adivinha.

B - Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender,

só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.

C E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina.

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Instalação INTIMIDADE De toda a sala de exposições temporárias do Museu da Língua Portuguesa, não há espaço ou canto mais íntimo que os banheiros. Soma-se a isso o fato de que João Cabral de Melo Neto não era um praticante da poesia confessional, pelo menos não explicitamente, além de ser um homem muito reservado. Mesmo que o poeta fale sobre si mesmo, ainda assim não revela sua intimidade ou seu cotidiano sem alguma relutância. Prefere falar sobre suas leituras, sobre sua poesia, sobre fazeres poéticos. Para saber mais, há que se tomar depoimentos de amigos e familiares, ou mesmo do próprio João Cabral, em alguns raros momentos, principalmente na velhice. Foi o que conseguiu Bebeto Abrantes em seu Recife / Sevilha, mas principalmente nos depoimentos deixados de fora, nos extras. Este documentário e a entrevista concedida pelo poeta aos Cadernos de Literatura Brasileira, cujo primeiro volume foi dedicado ao pernambucano, foram as bases para o desenvolvimento desta instalação: um interlúdio que ambiciona descobrir lados mais profundos e cotidianos daquele que foi chamado “homem sem alma”.

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Conceito e abordagem expográfica

Ao sair da instalação anterior, Morte e vida severina, o visitante se depara com um corredor de aproximadamente 2 metros de largura em que terá contato mais estreito com a figura de João Cabral: o pai, o amigo, o poeta. No corredor vertido em uma espécie de área de estar, assinalando o paradoxo entre espaço de passagem e de permanência, estão colocados dois vídeos (ver DVD anexo) e dois bancos nos 7,50m que antecedem a entrada para os banheiros do edifício. Estes dois vídeos, editados a partir de Recife / Sevilha, falam de dois aspectos de João Cabral de Melo Neto: o primeiro traz a filha Inez, o poeta e amigo Lêdo Ivo e o biógrafo José Castello contando histórias, revelando manias e medos, falando da carreira diplomática, das dores de cabeça que acompanharam o poeta até o fim da vida. Já o segundo vídeo aborda a postura poética, o racionalismo, as grandes influências de João Cabral: como sua poesia bebeu de várias águas.

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Além do corredor-estar, entrando-se para o acesso aos banheiros, uma parede com declarações do poeta sobre os mais variados temas, extraídas da entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira. E, finalmente, chegando-se à área de cabines e pias, está mais um vídeo (ver DVD anexo), idêntico para cada um dos sanitários, masculino e feminino. É uma compilação de imagens filmadas pela família Cabral durante férias ou passeios, que ilustram a narração de fatos curiosos familiares na voz da filha Inez. Este vídeo foi integralmente retirado dos extras de Recife / Sevilha. Como ambientação geral dos 50 metros quadrados de áreas intersticiais, trechos da fala do próprio poeta, transcritos pelos Cadernos de Literatura Brasileira, são colocados nas paredes. Aplica-se um filtro em tom sépia amarelado às luminárias para dar ao corredor e à área dos sanitários o aspecto de imagem antiga, que sofreu com a ação do tempo, enquanto o tom quente da luz de âmbar traz o calor das lembranças das pessoas queridas.

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Texto introdutório da instalação

João Cabral de Melo Neto foi um poeta que gostava da concretude. Aplicava substantivos concretos como pedra, faca, ferro, e ainda defendia que há adjetivos e verbos mais concretos que outros. Não gostava de música, gostava mesmo era de ver. Mais do que ver, ler. Dizia que por isso foi ser poeta, por gostar de ler. Igualmente, considerava um castigo terrível o fato de ter perdido parcialmente a visão nos últimos anos de sua vida. Foi diplomata, serviu em vários países. Mas se apaixonou pela Espanha e, em particular, por Sevilha. Mas não gostava de viajar e tinha pânico de avião. A opção pela carreira diplomática veio do fato de que ela lhe dava tempo para escrever. Preferia ler ensaios de estética sobre pintura ou arquitetura aos ensaios sobre poesia. Admirava o arquiteto Le Corbusier e escreveu um ensaio respeitado sobre a obra do artista plástico Joan Miró, de quem era amigo. Tamanha admiração pela materialidade, principalmente da palavra, montou uma gráfica em casa e se meteu a editar e imprimir seus próprios poemas e de alguns amigos. A palavra convertida em metal, para ser impressa sobre o papel, fascinava sobremaneira o poeta.

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Conteúdo

Entrevista: João Cabral de Melo Neto: Cadernos de Literatura Brasileira (1996) Trecho 01

A situação era a seguinte: aquele grupo que eu frequentava no Recife era profundamente influenciado pelo surrealismo. Mas o surrealismo, na minha opinião, sempre foi o traumatismo da escrita. Como eu era absolutamente incapaz de fazer a tal escrita automática, com a qual eu não concordava e, ao mesmo tempo, desejava continuar fazendo parte do grupo do Café Lafayette, eu forjei um tipo de surrealismo, quer dizer, meu surrealismo era algo construído. Quando li o artigo de Antonio Candido, me senti encorajado a escrever desenvolvendo meu construtivismo.

Trecho 02

Eu não me lembro de nenhum poema, mesmo da fase inicial, que tenha vingado em sua primeira versão. Nunca escrevi um poema, digamos, espontaneamente, compreende?

Trecho 04 O mundo interior para mim é fonte de tormento, acho uma chatice.

Trecho 05 Todo mundo sabe que sou o antimusical por excelência.

Trecho 06 Para mim, o inconsciente não tem nada de metafísico. Ele faz parte do ser humano, como qualquer outra parte do corpo, como um braço ou uma perna. Noutras palavras, eu tenho uma visão materialista do inconsciente.

Trecho 07 Eu não dei a contribuição original que os modernistas, Drummond ou os concretistas deram à poesia nacional.

Trecho 03 Eu parto de uma imagem, de um assunto, às vezes até de um ritmo. E aí fico trabalhando em cima. Assim, tenho poemas que demoram anos para serem escritos. 50

Trecho 08 É verdade, eu sempre tive a sensação de que estava escreven-


do meu último livro. Como é que eu vou explicar isso? Acho que foi porque, no fundo, eu nunca me senti vocacionado para a poesia. Para ser sincero, essa ideia de que eu estava escrevendo meu derradeiro trabalho nunca me abandonou. Eu nunca tive uma necessidade interior de me expressar, de forma que, ao escrever, isto me custa muito, dá muito trabalho. Quando acabava, era um alívio enorme, compreende? Minha vocação, como já disse, era para crítico. A realidade, porém, e não um movimento subjetivo interior, me dava novos motivos para criticar, e então eu voltava a escrever poesia. Às vezes, podia ser também porque considerava que nem tudo a ser criticado numa determinada realidade havia se esgotado no livro que eu acabara de fazer. Então, fui continuando a escrever. Deve ter sido isso, não tenho muita certeza. É difícil explicar por que segui escrevendo.

Trecho 09 Eu fiz o que podia. Mas insisto, não era uma vocação propriamente dita, como você pode falar em vocação religiosa, por exemplo. E se esta obra vai sobreviver ou não, eu não tenho a menor ideia.

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Instalação O CÃO SEM PLUMAS

Enquanto viveu em Pernambuco, ou mesmo no Brasil, João Cabral jamais escrevera sobre sua terra. Seus primeiros livros Pedra do sono (1940-1941), Os três mal-amados (1943), O engenheiro (1942-1945) e Psicologia da composição (1946-1947) são escritos antes do poeta ser removido como vice-cônsul para o Consulado Geral de Barcelona em 1947. O último desses livros é editado e impresso já na pequena tipografia artesanal que adquire na capital da Catalunha. Segundo João Alexandre Barbosa, nesses trabalhos iniciais já está presente grande parte da temática e da “intensa reflexão sobre a própria condição da poesia e do poeta”. E afirma que o livro seguinte, O cão sem plumas (19491950), foi o que permitiu ao poeta encontrar “uma modulação própria para incluir em sua poesia os resíduos de uma experiência pessoal, social e histórica, cuja tradução poética vinha sendo preparada pelos livros anteriores”1. Mais adiante, em 1956, é publicada sua primeira coletânea: Duas águas, que inclui o citado O cão sem plumas, O rio (1953), Paisagens com figuras (19541955), Morte e vida severina (1954-1955) e Uma faca só lâmina (1955). A coletânea afirmaria, segundo Barbosa, “as tensões entre composição e expressão que passam a ser, mais explicitamente, os fundamentos da obra. (...) Mas o texto central de articulação entre as Duas águas é mesmo O cão sem plumas, 1 Barbosa, 1996, p. 64.

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(...) que deixa passar o que havia sido represado por uma pensada educação poética: um certo modo de olhar e ver o regional, buscando-se vincular a linguagem do mínimo”2. Barbosa explica essa importância defendendo que “se O rio ou Morte e vida severina retomam o tom dramático, mas agora regionalizado, de Os três mal-amados, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina voltam a insistir na estrita dependência entre arte e comunicação, bem na senda de O engenheiro e da Antiode3, respectivamente”4. Desse modo, optou-se por recriar a atmosfera densa e abafada do poema que é um dos marcos na obra de João Cabral e em que pela primeira vez o poeta retratou sua terra natal. O rio Capibaribe nasce no Sertão pernambucano e atravessa o Estado até sua foz na cidade do Recife. Através do que vê em suas margens, o poeta o define como um cão magro e sujo, desprovido de adornos ou belezas. Usando palavras como “lama”, “espesso” e “mucosa”, constrói sua crítica social e histórica a respeito de homens vivendo às margens do Capibaribe catando caranguejos no mangue. Uma “vida suja e abafada”, em que já não se pode discernir o que é lama, o que é o rio, o que é o homem. É essa sensação de viscosidade, de superfície lodosa, de espaço abafado que a instalação pretende recriar.

2 Barbosa, 1996, p. 73-74. 3 A Antiode está incluída em Psicologia da composição. 4 Idem, p. 79-80. 54



Conceito e abordagem expográfica

O cão sem plumas se manifesta num rio canalizado, porém invertido, escuro e esverdeado. O piso e as paredes são revestidos de espuma para que pés e mãos afundem na simulação da maciez da lama ou do lodo, causando estranhamento tátil ao visitante. A partir de cima, uma retroprojeção de um rio acompanha o visitante do começo ao fim do canal invertido, dando a sensação de que se está sob a água olhando para o céu entre árvores. Trechos do poemas são ouvidos em caixas de som colocadas pontualmente, ao longo do túnel, ajudando a fazer referência à atmosfera abafada e pegajosa do poema tratado.

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Foto: Rafael Craice. Foto em que foi baseado o piloto do vídeo (ver DVD anexo) exibido em retroprojeção nesta instalação.



Texto introdutório da instalação

Em 1950, João Cabral vivia em Barcelona (Espanha) como vice-cônsul brasileiro e leu num jornal que a expectativa de vida na Índia era de 29 anos, ou seja, os indianos, em média, viviam até os 29 anos de idade. Pior, descobriu que seu Recife possuía então uma expectativa de vida de 28 anos. “Eu fiquei tão impressionado com isso”, disse o poeta, “que escrevi O cão sem plumas. Aí Pernambuco não me largou mais.” A instalação a seguir tenta materializar a atmosfera de O cão sem plumas, longo poema que trata do rio Capibaribe, que nasce no Sertão pernambucano e tem foz no Recife, revelando a condição miserável da população ribeirinha e a decadência e pobreza das paisagens em suas margens. Este poema pertence à seção da produção cabralina em que se pode notar claramente a crítica social e histórica que permeia quase toda a sua obra, apresentando inclusive tons de ironia e sarcasmo.

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Conteúdo

Poesia: O cão sem plumas (1949-1950) Trecho 01 A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada.

Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos polvos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras.

Trecho 03 O rio ora lembrava a língua mansa de um cão, ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão.

E jamais o vi ferver (como ferve o pão que fermenta). Em silêncio, o rio carrega sua fecundidade pobre, grávido de terra negra.

Trecho 02 Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água. Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem. 60

Em silêncio se dá: em capas de terra negra. Em botinas ou luvas de terra negra para o pé ou a mão que mergulha.

Trecho 04 Seria a água daquele rio fruta de alguma árvore? Por que parecia aquela


uma água madura? Por que sobre ela, sempre, como que iam pousar moscas? Aquele rio saltou alegre em alguma parte? Foi canção ou fonte em alguma parte? Por que então seus olhos vinham pintados de azul nos mapas?

Trecho 05 Entre a paisagem (fluía) de homens plantados na lama; de casas de lama plantadas em ilhas coaguladas na lama; paisagem de anfíbios de lama e lama. Como o rio aqueles homens são como cães sem plumas (um cão sem plumas

é mais que um cão saqueado; é mais que um cão assassinado.

Trecho 06 Mas ele conhecia melhor os homens sem pluma. Estes secam ainda mais além de sua caliça extrema; ainda mais além de sua palha; mais além da palha de seu chapéu; mais além até da camisa que não têm; muito mais além do nome mesmo escrito na folha do papel mais seco. Porque é na água do rio que eles se perdem (lentamente 61


e sem dente). Ali se perdem (como uma agulha não se perde). Ali se perdem (como um relógio não se quebra).

Trecho 07 Na paisagem do rio difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem. Difícil é saber se aquele homem já não está mais aquém do homem; mais aquém do homem ao menos capaz de roer 62

os ossos do ofício; capaz de sangrar na praça; capaz de gritar se a moenda lhe mastiga o braço; capaz de ter a vida mastigada e não apenas dissolvida (naquela água macia que amolece seus ossos como amoleceu as pedras).

Trecho 08 Um cão, porque vive, é agudo. O que vive não entorpece. O que vive fere. O homem, porque vive, choca com o que vive. Viver é ir entre o que vive. O que vive


incomoda de vida o silêncio, o sono, o corpo que sonhou cortar-se roupas de nuvens. O que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso. O que vive é espesso como um cão, um homem, como aquele rio.

Trecho 09 Como todo o real é espesso. Aquele rio é espesso e real. Como uma maçã é espessa. Como um cachorro é mais espesso que uma maçã. Como é mais espesso o sangue do cachorro do que o próprio cachorro. Como é mais espesso um homem do que o sangue de um cachorro. Como é muito mais espesso

o sangue de um homem do que o sonho de um homem. Trecho 10 Porque é muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida, como uma fruta é mais espessa que sua flor; como a árvore é mais espessa que sua semente; como a flor é mais espessa que sua árvore, etc. etc. Espesso, porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu voo). 63



Instalação POETA ARQUITETO

Depois de Duas águas (1956), João Cabral publica Quaderna (1960), Dois parlamentos (1961) e Serial em reunião com os dois anteriores, no volume intitulado Terceira feira (1961). Ainda publica A educação pela pedra (1966) e uma nova coletânea, Poesia completa (1968), fechando sua produção editada na década de 1960. Para Barbosa, “seria arriscado afirmar, tratando-se de um poeta como João Cabral, ser este o melhor conjunto de sua obra”, mas continua dizendo não ser exagero afirmar “que este conjunto de obras da década de 60 é o momento decisivo em que o poeta configura, de uma vez por todas, o domínio de sua linguagem. (...) É como se houvesse uma passagem da linguagem da poesia, dominada, sobretudo, pelo exercício lúcido do poema, à poesia da linguagem, abrindo o poema para exercícios lúcidos e lúdicos”1. Museu de tudo (1975) é publicado muitos anos depois de A educação pela pedra e, juntamente com A escola das facas (1980), representam a passagem, e não a defasagem, do lúcido ao lúdico, segundo Barbosa. “A insidiosa, persistente e vitoriosa lucidez de seu projeto que vai até A educação pela pedra não deixa de ser o substrato desses numerosos poemas que reuniu em livros. Por outro lado, no entanto, é evidente (...) que agora a poesia não é mais um objeto que se constrói em termos de repetitivas variações, o que dava aos livros anteriores aquele sentido espiralado de um fazer perseguido. Logrado o projeto, pode-se deixar que a poesia se represente em poemas que já passaram pelo crivo de uma longa e conquistada poética: a do rigor, com 1 Barbosa, 1996, p. 79-80.

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que o nome de João Cabral passou a identificar-se na literatura brasileira pós-modernista”2. Assim, o universo ordenado e geométrico do poeta atinge tamanho grau de coesão que, a partir de então, João Cabral passa a descobrir o que de lúdico há nas palavras, em seus significados, em seus agrupamentos, na poesia. Os poemas se transformam em jogos, ainda que extremamente racionais e controlados. O poeta se propunha problemas, falava da “necessidade que sempre experimentou de criar dificuldades para escrever”3, pois, segundo o próprio João Cabral, “os poetas que escrevem por escassez de ser, como eu, planejam os livros, têm um vazio a preencher. Os outros transbordam.”4 Por isso, segundo ele, um poema poderia levar anos para ser feito. “Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada - de fora para dentro. (...) Eu só entendo o poético neste sentido. Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas que eu vou colocando como se fossem tijolos. É por isso que eu posso gastar anos fazendo um poema: porque existe planejamento.”5

2 Idem, p. 87. 3 Oliveira, 1994, p. 21. 4 Trecho extraído da entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira. p. 21. 5 Idem. 66



Conceito e abordagem expográfica

Multiplicação dos pilares existentes para propor uma estrutura arquitetônica que ressalta a ordem e a geometria espacial. Todos os 20 são idênticos, reafirmando o espaço perfeitamente ordenado em que se adentrou. Porém, à medida em que se aproxima de cada coluna, o visitante descobre que, nesse universo ordenado, há poesia que emerge escrita em luz em alguns dos grandes totens. Ou seja, os pilares feitos ou recobertos por chapa metálica pintada de branco, recebem recorte para deixar as letras retroiluminadas, permitindo a leitura de uma distância um pouco menor que se se houvesse um contraste maior. Em outros pontos, pode-se ouvir poemas ou trechos falados, por meio de placas sonoras delgadas (panphonic) embutidas nos pilares. A posição dessas placas sonoras são marcadas por linhas horizontais retroiluminadas, acima e embaixo das placas, porque pedem uma aproximação do visitante devido à sua potência sonora.

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Texto introdutório da instalação

João Cabral de Melo Neto alcança na década de 1960 tamanho domínio de sua linguagem tão particular que, a partir de certo momento dessa maturidade poética, passa a inserir o lúdico em seus poemas. A racionalidade, o controle e a secura de sua poesia começam a caminhar lado a lado com brincadeiras semânticas. A memória do menino criado no engenho e a admiração do poeta pela arquitetura aparecem de formas impensadas até então, mas que consolidam uma incansável pesquisa poética que João Cabral manifesta desde sua primeira obra. Este é o momento de desbravar a poesia, palavra por palavra.

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Conteúdo

Poesia: Quaderna (1956-1959), A educação pela pedra (1962-1965), Museu de tudo (1966-1974) e A escola das facas (1975-1980). Quaderna (1956-1959)

A mulher e a casa Tua sedução é menos de mulher do que de casa: pois vem de como é por dentro ou por detrás da fachada. Mesmo quando ela possui tua plácida elegância, esse teu reboco claro, riso franco de varandas, uma casa não é nunca só para ser contemplada; melhor: somente por dentro é possível contemplá-la.

pelos espaços de dentro, não pelo que dentro guarda; pelos espaços de dentro: seus recintos, suas áreas, organizando-se dentro em corredores e salas, os quais sugerindo ao homem estâncias aconchegadas, paredes bem revestidas ou recessos bons de cavas, exercem sobre esse homem efeito igual ao que causas: a vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la.

A palavra seda

Seduz pelo que é dentro, ou será, quando se abra; pelo que pode ser dentro de suas paredes fechadas;

A atmosfera que te envolve atinge tais atmosferas que transforma muitas coisas que te concernem, ou cercam.

pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada;

E como as coisas, palavras impossíveis de poema:

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exemplo, a palavra ouro, e até este poema, seda. É certo que tua pessoa não faz dormir, mas desperta; nem é sedante, palavra derivada da de seda.

de animal, de animalmente, de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta persiste na coisa seda.

A palo seco E é certo que a superfície de tua pessoa externa, de tua pele e de tudo isso que em ti se tateia, nada tem da superfície luxuosa, falsa, acadêmica, de uma superfície quando se diz que ela é “como seda”. Mas em ti, em algum ponto, talvez fora de ti mesma, talvez mesmo no ambiente que retesas quando chegas

1.1 Se diz a palo seco o cante sem guitarra; o cante sem; o cante; o cante sem mais nada; se diz a palo seco a esse cante despido: ao cante que se canta sob o silêncio a pino.

1.2 há algo de muscular, de animal, carnal, pantera, de felino, da substância felina, ou sua maneira,

O cante a palo seco é o cante mais só: é cantar num deserto devassado de sol; 75


é o mesmo que cantar num deserto sem sombra em que a voz só dispõe do que ela mesma ponha.

que é quando a sombra foge e não medra a magia.

2.1 1.3 O cante a palo seco é um cante desarmado: só a lâmina da voz sem a arma do braço; que o cante a palo seco sem tempero ou ajuda tem de abrir o silêncio com sua chama nua.

O silêncio é um metal de epiderme gelada, sempre incapaz das ondas imediatas da água; a pele do silêncio pouca coisa arrepia: o cante a palo seco de diamante precisa.

2.2 1.4 O cante a palo seco não é um cante a esmo: exige ser cantado com todo o ser aberto; é um cante que exige o ser-se ao meio-dia, 76

Ou o silêncio é pesado, é um líquido denso, que jamais colabora nem ajuda com ecos; mais bem, esmaga o cante e afoga-o, se indefeso: a palo seco é um cante submarino ao silêncio.


2.3 Ou o silêncio é levíssimo, é líquido sutil que se ecoa nas frestas que no cante sentiu; o silêncio paciente vagaroso se infiltra, apodrecendo o cante de dentro, pela espinha.

A palo seco é o cante de todos mais lacônico, mesmo quando pareça estirar-se um quilômetro: enfrentar o silêncio assim despido e pouco tem de forçosamente deixar mais curto o fôlego.

3.2 2.4 Ou o silêncio é uma tela que difícil se rasga e que quando se rasga não demora rasgada; quando a voz cessa, a tela se apressa em se emendar: tela que fosse de água, ou como tela de ar.

A palo seco é o cante de grito mais extremo: tem de subir mais alto que onde sobe o silêncio; é cantar contra a queda, é um cante para cima, em que se há de subir cortando, e contra a fibra.

3.3 3.1

A palo seco é o cante de caminhar mais lento: 77


por ser a contrapelo, por ser a contravento; é cante que caminha com passo paciente: o vento do silêncio tem a fibra de dente.

3.4 A palo seco é o cante que mostra mais soberba; e que não se oferece: que se toma ou se deixa; cante que não se enfeita, que tanto se lhe dá; é cante que não canta, cante que aí está.

4.1 A palo seco canta o pássaro sem bosque, por exemplo: pousado sobre um fio de cobre; 78

a palo seco canta ainda melhor esse fio quando sem qualquer pássaro dá o seu assovio.

4.2 A palo seco cantam a bigorna e o martelo, o ferro sobre a pedra, o ferro contra o ferro; a palo seco canta aquele outro ferreiro: o pássaro araponga que inventa o próprio ferro.

4.3 A palo seco existem situações e objetos: Graciliano Ramos, desenho de arquiteto, as paredes caiadas, a elegância dos pregos,


a cidade de Córdoba, o arame dos insetos.

4.4 Eis uns poucos exemplos de ser a palo seco, dos quais se retirar higiene ou conselho: não o de aceitar o seco por resignadamente, mas de empregar o seco porque é mais contundente.

(pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la. Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma.

Tecendo a manhã

A educação pela pedra (1962-1965)

A educação pela pedra Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. 79


E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Catar feijão

Catar feijão se limita com escrever: jogam-se os grãos na água do alguidar e as palavras na da folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar esse feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. Ora, nesse catar feijão entra um risco: o de que entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: 80

obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a com o risco.

Num monumento à aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis, o sol de um comprimido de aspirina: de emprego fácil, portátil e barato, compacto de sol na lápide sucinta. Principalmente porque, sol artificial, que nada limita funcionar de dia, que a noite não expulsa, cada noite, sol imune às leis de meteorologia, a toda hora em que se necessita dele levanta e vem (sempre num claro dia): acende, para secar a aniagem da alma, quará-la, em linhos de um meio-dia. Convergem: a aparência e os efeitos da lente do comprimido de aspirina: o acabamento esmerado desse cristal, polido a esmeril e repolido a lima, prefigura o clima onde ele faz viver e o cartesiano de tudo nesse clima. De outro lado, porque lente interna,


de uso interno, por detrás da retina, não serve exclusivamente para o olho a lente, ou o comprimido de aspirina: ela reenfoca, para o corpo inteiro, o borroso de ao redor, e o reafina.

como se à luz ou se de dia; e que, quando de noite, acende detrás das pálpebras o dente de uma luz ardida, sem pele, extrema, e que de nada serve: porém luz de uma tal lucidez que mente que tudo podeis.

Museu de tudo (1966-1974) Retrato de poeta

O museu de tudo Este museu de tudo é museu como qualquer outro reunido; como museu, tanto pode ser caixão de lixo ou de arquivo. Assim, não chega ao vertebrado que deve entranhar qualquer livro: é depósito do que aí está, se fez sem risca ou risco.

A insônia de Monsieur Teste Uma lucidez que tudo via,

O poeta de que contou Burgess, que só escrevia na latrina, quando sua obra lhe saía por debaixo como por cima, volta sempre à lembrança quando em frente à poesia meditabunda que se quer filosofia, mas que sem a coragem e o rigor de ser uma ou outra, joga e hesita, ou não hesita e apenas joga com o fácil, como vigarista. Pois tal meditabúndia certo há de ser escrita a partir de latrinas e diarréias propícias. 81


A escultura de Mary Vieira dar a qualquer matéria a aritmética do metal dar lâmina ao metal e à lâmina alumínio dar ao número ímpar o acabamento do par então ao número par o assentamento do quatro dar a qualquer linha projeto a pino de reta dar ao círculo sua reta sua racional de quadrado dar à escultura o limpo de uma máquina de arte por sua vez capaz da arte de dar-se um espaço explícito

Quando a alma já se dói do muito corpo a corpo com o sem volta confuso, sempre demais, amorfo, se dói de lutar contra o que é inerte e a luta, coisas que lhe resistem e estão vivas, se mudas, para chegar ao pouco em que umas poucas coisas revelem-se, compactas, recortadas e todas, e chegar entre as poucas à coisa coisa e ao miolo dessa coisa, onde fica seu esqueleto ou caroço, que então tem de arear ao mais limpo, ao perfil asséptico e preciso do extremo do polir,

No centenário de Mondrian

1 ou 2 82

ou senão despolir até o texto da estopa ou até o grão grosseiro da matéria de escolha;


pois quando a alma já arde da afta ou da azia que dá a lucidez brasa, a atenção carne viva,

que é atingir teu extremo.

quando essa alma já tem por sobre e sob a pele queimaduras do sol que teve de incender-se

Quando a alma se dispersa em todas as mil coisas do enredado e prolixo do mundo à sua volta,

e começa a ter cãibras pelo esforço de dentro de manter esse sol que mantém o incêndio,

ou quando se dissolve nas modorras da música, no invertebrado vago, sem ossos, de água em fuga,

centrada na ideia fixa de chegar ao que quer para o quê que ela faz seja o que deve ser:

ou quando se empantana num alcalino demais que adorme o ácido vivo que rói porém que faz,

então só essa pintura de que foste capaz apaga as equimoses que a carne da alma traz

ou quando a alma borracha tem os músculos lassos e é incapaz de molas para atirar-se ao faço:

e apaga na alma a luz, ácida, do sol de dentro, ao mostrar-lhe o impossível

então, só essa pintura de que foste capaz, de que excluíste até

2 ou 1

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o nada, por demais, e onde só conservaste o léxico conciso de teus perfis quadrados a fio, e também fios, pois que, por bem cortados, ficam cortantes ainda e herdam a agudeza dos fios que os confinam, então, só essa pintura de cores em voz alta, cores em linha reta, despidas, cores brasa, só tua pintura clara, de clara construção, desse construir claro feito a partir do não, pintura em que ensinaste a moral pela vista (deixando o pulso manso dar mais tensão à vida), só essa pintura pode, som sua explosão fria, 84

incitar a alma murcha, de indiferença ou acídia, e lançar ao fazer a alma de mãos caídas, e ao fazer-se, fazendo coisas que a desafiam.

O artista incofessável

Fazer o que seja é inútil. Não fazer nada é inútil. Mas entre fazer e não fazer mais vale o inútil do fazer. Mas não, fazer para esquecer que é inútil: nunca o esquecer. Mas fazer o inútil sabendo que ele é inútil, e bem sabendo que é inútil e que seu sentido não será sequer pressentido, fazer: porque ele é mais difícil do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer com mais desdém, ou então dizer mais direto ao leitor Ninguém que o feito o foi para ninguém.


Catecismo de Berceo 1 Fazer com que a palavra leve pese como a coisa que diga, para o que isolá-la de entre o folhudo em que se perdia. 2 Fazer com que a palavra frouxa ao corpo de sua coisa adira: fundi-la em coisa, espessa, sólida, capaz de chocar com a contígua. 3 Não deixar que saliente fale: sim, obrigá-la à disciplina de proferir a fala anônima, comum a todas de uma linha. 4 Nem deixar que a palavra flua como rio que cresce sempre: canalizar a água sem fim noutras paralelas, latente.

Não sou um diamante nato nem consegui cristalizá-lo: se ele te surge no que faço será um diamante opaco de quem por incapaz do vago quer de toda forma evitá-lo, se não com o melhor, o claro, do diamante, com o impacto: com a pedra, a aresta, com o aço do diamante industrial, barato, que incapaz de ser cristal raro vale pelo que tem de cacto.

A Quevedo Hoje que o engenho não tem praça, que a poesia se quer mais que arte e se denega a parte do engenho em sua traça, nos mostra teu travejamento que é possível abolir o lance, o que é acaso, chance, mais: que o fazer é engenho.

Resposta a Vinicius de Moraes 85


O número quatro

Os pólos do branco (ou do negro)

O número quatro feito coisa ou a coisa pelo quatro quadrada, seja espaço, quadrúpede, mesa, está racional em suas patas; está plantada, à margem e acima de tudo o que tentar abalá-la, imóvel ao vento, terremotos, no mar maré ou no mar ressaca. Só o tempo que ama o ímpar instável pode contra essa coisa ao passá-la: mas a roda, criatura do tempo, é uma coisa em quatro, desgastada.

Anti-Char

O branco não é uma cor: é o que o carvão revela, o carvão tão branco, apesar do negro com que opera. Talvez o branco seja apenas forma de ser, ou seja a forma de ser que só o pode na mais dura pureza. E embora negro e branco sempre nos opostos se vejam, a instabilidade dos dois é de igual natureza: ambos têm a limitação (se pólos na aparência) glandular, de só conseguirem viver na intransigência.

Poesia intransitiva, sem mira e pontaria: sua luta com a língua acaba dizendo que a língua diz nada.

Metadicionário

É uma luta fantasma, vazia, contra nada; não diz a coisa, diz vazio; nem diz coisas, é balbucio.

Em qualquer idioma ela tem mesmo e só nome que chamar-se, incapaz de não decifrar-se lida ou entendida por ninguém.

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Nem mesmo Deus tem a faculdade de se chamar em qualquer língua: só a aspirina existe acima da geografia e seus sotaques.

qualquer geometria fecunda a pura flora que o pensamento cria.

Proust e seu livro

Mas à floresta de gestos que nos povoa o dia, esse sol de palavra é natureza fria.

De certo modo o sabia, quem viveu com a vida e a obra emaranhadas, que viveu fazendo-as, refazendo-as, elastecendo-a em tempo e páginas,

Ora, no rosto que, grave, riso súbito abria, no andar decidido que os longes media,

que vestiu sua obra, por dentro, percorrendo-a, viajando em seu barco, decerto viu que um dia acabá-la era matar-se em livro, suicidá-lo.

na calma segurança de quem tudo sabia, no contato das coisas que apenas coisas via,

Poema

nova espécie de sol eu, sem contar, descobria: não a claridade imóvel da praia ao meio-dia,

Trouxe o sol à poesia mas como trazê-lo ao dia? No papel mineral

de aérea arquitetura ou de pura poesia: mas o oculto calor que as coisas todas cria. 87


A escola das facas (1975-1980)

Menino de engenho A cana cortada é uma foice. Cortada num ângulo agudo, ganha o gume afiado da foice que a corta em foice, em dar-se mútuo. Menino, o gume de uma cana cortou-me ao quase de cegar-me, e uma cicatriz, que não guardo, soube dentro de mim guardar-se. A cicatriz não tenho mais; o inoculado, tenho ainda; nunca soube é se o inoculado (então) é vírus ou vacina.

Horácio O bêbado cabal. Quando nós, de meninos, 88

vivemos a doença de criar passarinhos, e as férias acabadas o horrível outra-vez do colégio nos pôs na rotina de rês, deixamos com Horácio um dinheiro menino que pudesse manter em vida os passarinhos. Poucos dias depois as gaiolas sem língua eram tumbas aéreas de morte nordestina. Horácio não comprara alpiste; e tocar na água gratuita, para os cochos, certo lhe repugnava. Gastou o que do alpiste com o alpiste-cachaça, alma do passarinho que em suas veias cantava.


O fogo no canavial A imagem mais viva do inferno. Eis o fogo em todos seus vícios: eis a ópera, o ódio, o energúmeno, a voz rouca de fera em cio.

o Pernambuco de onde veio e o aonde foi, a Andaluzia. Um, o vacinou do falar rico e deu-lhe a outra, fêmea e viva, desafio demente: em verso dar a ver Sertão e Sevilha.

E contagioso, como outrora foi, e hoje não é mais, o inferno: ele se catapulta, exporta, em brulotes de curso aéreo, em petardos que se disparam sem pontaria, intransitivos; mas que queimada a palha dormem, bêbados, curtindo seu litro. (O inferno foi fogo de vista, ou de palha, queimou as saias: deixou nua a perna da cana, despiu-a, mas sem deflorá-la.)

Autocrítica Só duas coisas conseguiram (des)feri-lo até a poesia: 89



Instalação SEVILHIZAR O MUNDO

Nunca foi segredo a admiração que João Cabral nutria pela Espanha, em especial pela cidade de Sevilha. Em sua primeira temporada no país, entre 1947 e 1952, leu toda literatura espanhola a que teve contato, desde os medievais a seus contemporâneos, e confirmou que ela teve reflexo em sua obra a partir do longo poema O rio (1953). Em Paisagens com figuras (1954-1955), homenageia paisagens pernambucanas e espanholas, e, a partir daí, essas duas localidades sempre estiveram presentes na poesia cabralina. Além da literatura, que o poeta afirmava ser “a mais concreta do mundo”, João Cabral apreciava el arte del toreo e os bailes flamencos. O que atraía o pernambucano a esses espetáculos era o “fazer no extremo”: cantar no extremo da voz, dançar no extremo do sentimento, colocar a si mesmo em um momento decisivo. Expor-se. João Cabral escreveu poemas dedicados às figuras do toureiro, da bailadora, e mesmo do ferreiro, identificando nesses fazeres o seu próprio fazer poético. O mesmo ocorreu quando escreveu o ensaio Joan Miró, sobre o artista plástico catalão, de quem foi amigo pessoal. O poeta enxergava convergências com sua poética na relação entre toureiro e touro, entre ferreiro e ferro, entre a bailadora e ela mesma. Para José Castello, biógrafo de Cabral, o poeta via nessas artes o embate com a realidade, que ele mesmo procurava: trabalhava a palavra à exaustão para alcançar a palavra última, insubstituível. Assim, a poesia dedicada aos elementos espanhois, com exceção das paisagens, é quase sempre metalinguística. Ou seja, João Cabral via, principalmente nos motivos tipicamente andaluzes, motes ricos para falar de seu fazer poético, para fazer metapoesia. 91


Conceito e abordagem expográfica

O visitante sai da sala branca com os pilares multiplicados e entra na sala cujas dimensões maiores estão revestidas por espelhos. O espelho é o elemento da reflexão: o visitante vê sua imagem ali, como parte da expografia. Para além do espelho, ou por trás deles, há vários videowalls formados por monitores LED sem bordas que apresentam bailes flamencos e touradas. Os poemas que João Cabral escreveu sobre as figuras da bailadora, do toureiro, do ferreiro e sobre Sevilha estão em monitores também. Esse artifício de colocar monitores atrás de espelhos, que na verdade são placas de vidro cinza com uma película espelhada, é utilizado para que, quando acesos, os monitores revelem seu conteúdo. Além, é claro, de refletir o ambiente à frente. Por outro lado, se não há luz vinda de trás da placa de vidro espelhada, o que se vê é somente a imagem refletida de si mesmo. Desde o teto, pendem tecidos coloridos translúcidos, que remetem às saias das bailadoras e os panos com que os toureiros atiçam e desviam seus oponentes. A maioria fica somente sobre os visitantes, mas algumas dessas tiras de tecido descem e convidam o visitante a circundá-los, causando um movimento meio serpentiante pelo espaço. O som ambiente é o do baile flamenco que estiver sendo apresentado em algum canto da sala nos videowalls. Depois de assistir a touradas e bailes, o visitante chega novamente ao sertão da instalação inicial, Morte e vida severina.

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Texto introdutório da instalação

João Cabral de Melo Neto se sentia em casa em duas terras: Pernambuco e Andaluzia (sul da Espanha). Como diplomata, passou algumas temporadas no país ibérico, tratando de conhecer bem suas paisagens, seus costumes, suas artes. Conhecia profundamente a literatura espanhola, já que leu tudo que chegou às suas mãos. Além da literatura, João Cabral era fascinado pelos bailes flamencos e touradas. Também admirava o trabalho de artistas plásticos como Pablo Picasso e do amigo Joan Miró, a quem dedicou um respeitado ensaio de estética. Todas essas figuras espanholas eram interessantes por seus fazeres: o toureiro, a bailadora, o ferreiro chamavam a atenção do poeta porque dominavam artes que, em essência, eram como a dele. Isto é, João Cabral via que o toureiro combatia diretamente o touro, o ferreiro entrava em luta com o ferro para forjá-lo, a bailadora travava um duelo com ela mesma no baile. E se passava o mesmo com o poeta, mas a batalha dele era com a palavra, aquela a que não se poderia substituir, a palavra última. João Cabral retratou as paisagens de Sevilha e da Andaluzia em alguns poemas, mas foi através da metalinguagem que verdadeiramente retratou o que admirava em terras espanholas.

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Conteúdo

Poesia: “Alguns toureiros” (Paisagens com figuras), “Estudos para uma bailadora andaluza” (Quaderna), “O ferrageiro de Carmona” (Crime na Calle Relator), Sevilha andando (1987-1993) e Andando Sevilha (1987-1989). Paisagens com figuras (1954-1955)

Alguns toureiros Eu vi Manolo González E Pepe Luís, de Sevilha: precisão doce de flor, graciosa, porém precisa. Vi também Julio Aparicio, de Madrid, como Parrita: ciência fácil de flor, espontânea, porém estrita. Vi Miguel Báez, Litri, dos confins da Andaluzia, que cultiva uma outra flor: angustiosa de explosiva. E também Antonio Ordóñez, que cultiva flor antiga: perfume de renda velha, de flor em livro dormida. Mas eu vi Manuel Rodríguez, Manolete, o mais deserto, 98

o toureiro mais agudo, mais mineral e desperto, o de nervos de madeira, de punhos secos de fibra, o de figura de lenha, lenha seca de caatinga, o que melhor calculava o fluido aceiro da vida, o que com mais precisão roçava a morte em sua fímbria, o que à tragédia deu número, à vertigem, geometria, decimais à emoção e ao susto, peso e medida, sim, eu vi Manuel Rodríguez, Manolete, o mais asceta, não só cultivar sua flor mas demonstrar aos poetas: como domar a explosão com mão serena e contida, sem deixar que se derrame a flor que traz escondida,


e como, então, trabalhá-la com mão certa, pouca e extrema: sem perfumar sua flor, sem poetizar seu poema.

carne de fogo, só nervos, carne toda em carne viva. Então, o caráter do fogo nela também se adivinha: mesmo gosto dos extremos, de natureza faminta,

Quaderna (1956-1959)

Estudos para uma bailadora andaluza

1 Dir-se-ia, quando aparece dançando por siquiriyas, que com a imagem do fogo inteira se identifica. Todos os gestos do fogo que então possui dir-se-ia: gestos das folhas do fogo, de seu cabelo, de sua língua; gestos do corpo do fogo, de sua carne em agonia.

gosto de chegar ao fim do que dele se aproxima, gosto de chegar-se ao fim, de atingir a própria cinza. Porém a imagem do fogo é num ponto desmentida: que o fogo não é capaz como ela é, nas siguiriyas, de arrancar-se de si mesmo numa primeira faísca, nessa que, quando ela quer, vem e acende-a fibra a fibra, que somente ela é capaz de acender-se estando fria, de incendiar-se com nada, de incendiar-se sozinha. 99


2 Subida ao dorso da dança (vai carregada ou a carrega?) é impossível se dizer se é a cavaleira ou a égua. Ela tem na sua dança toda a energia retesa e todo o nervo de quando algum cavalo se encrespa. Isto é: tanto a tensão de quem vai montado na sela, de quem monta um animal e só a custo o debela,

e a parte que se rebela, entre o que nela cavalga e o que é cavalgado nela, que o melhor será dizer de ambas, cavaleira e égua, que são de uma mesma coisa e que um só nervo as inerva, e que é impossível traçar nenhuma linha fronteira entre ela e a montaria: ela é a égua e a cavaleira.

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como a tensão do animal dominado sob a rédea, que ressente ser mandado e obedecendo protesta.

Quando está taconeando a cabeça, atenta, inclina, como se buscasse ouvir alguma voz indistinta.

Então, como declarar se ela é égua ou cavaleira: há uma tal conformidade entre o que é animal e é ela,

Há nessa atenção curvada muito de telegrafista, atento para não perder a mensagem transmitida.

entre a parte que domina

Mas o que faz duvidar

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possa ser telegrafia aquelas respostas que suas pernas pronunciam é que a mensagem de quem lá do outro lado da linha ela responde tão séria nos passa despercebida. Mas depois já não há dúvida: é mesmo telegrafia: mesmo que não se perceba a mensagem recebida, se vem de um ponto do fundo do tablado ou de sua vida, se a linguagem do diálogo é em código ou ostensiva, já não cabe duvidar: deve ser telegrafia: basta escutar a dicção tão Morse e tão desflorida, linear, numa só corda, em ponto e traço, concisa, a dicção em preto e branco de sua perna polida.

4 Ela não pisa na terra como quem a propicia para que lhe seja leve quando se enterre, num dia. Ela a trata com a dura e muscular energia do camponês que cavando sabe que a terra amacia. Do camponês de quem tem sotaque andaluz caipira e o tornozelo robusto que mais se planta que pisa. Assim, em vez dessa ave assexuada e mofina, coisa a que parece sempre aspirar a bailarina, esta se quer uma árvore firme na terra, nativa, que não quer negar a terra nem, como ave, fugi-la. Árvore que estima a terra 101


de que se sabe família e por isso trata a terra com tanta dureza íntima.

mesma atitude observam, aquilo que desafiam parece coisas diversas.

Mais: que ao se saber da terra não só na terra se afinca pelos troncos dessas pernas fortes, terrenas, maciças,

A primeira das estátuas que ela é, quando começa, parece desafiar alguma presença interna

mas se orgulha de ser terra e dela se reafirma, batendo-a enquanto dança, para vencer quem duvida.

que no fundo dela própria, fluindo, informe e sem regra, por sua vez a desafia a ver quem é que a modela.

5 Sua dança sempre acaba igual que como começa, tal esses livros de iguais coberta e contra-coberta: com a mesma posição como que talhada em pedra: um momento está estátua, desafiante, à espera. Mas se essas duas estátuas 102

Enquanto a estátua final, por igual que ela pareça, que ela é, quando um estilo já impôs à íntima presa, parece mais desafio a quem está na assistência, como para indagar quem a mesma façanha tenta. O livro de sua dança capas iguais o encerram: com a figura desafiante de suas estátuas acesas.


6 Na sua dança se assiste como ao processo da espiga: verde, envolvida de palha; madura, quase despida. Parece que sua dança ao ser dançada, à medida que avança, a vai despojando da folhagem que a vestia. Não só da vegetação de que ela dança vestida (saias folhudas e crespas do que no Brasil é chita) mas também dessa outra flora a que seus braços dão vida, densa floresta de gestos a que dão vida e agonia.

a opacidade que tinha e, como a palha que seca, vai aos poucos entreabrindo-a. Ou então é que essa folhagem vai ficando impercebida: porque, terminada a dança embora a roupa persista, a imagem que a memória conservará em sua vista é a espiga, nua e espigada, rompente e esbelta, em espiga.

Crime na Calle Relator (1985-1987)

O ferrageiro de Carmona Na verdade, embora tudo aquilo que ela leva em cima, embora, de fato, sempre, continue nela a vesti-la, parece que vai perdendo

Um ferrageiro de Carmona que me informava de um balcão: “Aquilo? É de ferro fundido, foi a forma que fez, não a mão. 103


Só trabalho em ferro forjado que é quando se trabalha a ferro; então, corpo a corpo com ele; domo-o, dobro-o, até o onde quero. O ferro fundido é sem luta, é só derramá-lo na forma. Não há nele a queda-de-braço e o cara-a-cara de uma forja.

nem deve a voz ter diarreia. Forjar: domar o ferro à força, não até uma flor já sabida, mas ao que pode até ser flor se flor parece a quem o diga.”

Sevilha andando (1987-1993) Existe uma grande diferença do ferro forjado ao fundido; é uma distância tão enorme que não pode medir-se a gritos. Conhece a Giralda em Sevilha? Decerto subiu lá em cima. Reparou nas flores de ferro dos quatro jarros das esquinas? Pois aquilo é ferro forjado. Flores criadas numa outra língua. Nada têm das flores de forma moldadas pelas das campinas. Dou-lhe aqui humilde receita, ao senhor que dizem ser poeta: o ferro não deve fundir-se 104

Verão de Sevilha Verão, o centro de Sevilha se cobre de toldos de lona, para que a aguda luz sevilha seja mais amável nas pontas, e nele possa o sevilhano, coado a sol cru, ter a sombra onde conversar de flamenco, de olivais, de touros, donas, e encontra a atmosfera de pátio, o fresco interior de concha, todo o aconchego e acolhimento das praças fêmeas e recônditas.


Comigo tenho agora o abrigo, a sombra fresca dessas lonas: eu os reencontrei, esses toldos, nos lençóis que hoje nos enfronham.

Andando Sevilha (1987-1989)

Sevilhizar o mundo Cidade de nervos

Qual o segredo de Sevilha? Saber existir nos extremos como levando dentro a brasa que se reacende a qualquer tempo. Tem a tessitura da carne na matéria de suas paredes, boa ao corpo que a acaricia: que é feminina sua epiderme.

Como é impossível, por enquanto, civilizar toda a terra, o que não veremos, verão, de certo, nossas tetranetas, infundir na terra esse alerta, fazê-la uma enorme Sevilha, que é a contra-pelo, onde uma viva guerrilha do ser, pode a guerra.

Manolo González E tem o esqueleto, essencial a um poema ou um corpo elegante, sem o qual sempre se deforma tudo o que é só de carne e sangue. Mas o esqueleto não pode, ele que é rígido e de gesso, reacender a brasa que tem dentro: Sevilha é mais que tudo, nervo.

Perguntavam muitos: “Por que tu toureias no extremo do ser, no limite entre a vida e a morte, como faz o toureiro pobre? Não podes fingir o perigo, tourear buscando-se o tranquilo? 105


Por que tourear como toureias, como se fosse a vez primeira?”

que tem consigo toda de dia e ele nem mesmo localiza:

Se calava, quase menino, de cabelo louro de gringo,

Canta a partir de íntima fenda e sempre pensa que uma fêmea

menino vestindo ouro e prata, cores da morte celebrada.

que com a navalha dos olhos abriu-lhe fundo com seu ódio ferida que de dia esconde para que de noite ele sonde

Manolo Caracol onde é que se localiza (mas não quer curá-la, é seu guia). Cada cantador andaluz cantando trás a plena luz uma ferida de nascença, como dentro de um ovo a gema.

Niña de los peines

Com a boca o cante pouco diz, é uma curada cicatriz,

Uma música, indago sempre a quem de ouvido musical: pode uma música ser nítida sem fazer uso do metal? Se canta o flamenco quase sempre ao som da guitarra, que é líquido, que é um líquido pingando no poço um líquido do mesmo líquido.

curada só na superfície e que quando quer pode abrir-se para sangrar funda ferida (uma que nunca cicatriza) 106


wSe faz sem metais o flamenco (exceção: o do martinete que se acompanha com martelo e bigorna, é seco e sem sede).

nesse canteiro cresce sempre.

Se faz sem metal o flamenco. Há só uma garganta esfolada nesse cantar cru. Poderá ser de metal essa garganta?

O flamenco quer intimidade, assim no cante que no baile.

Se metal, não está em lingote: é um metal rouco, como roto, metal que dói, dilacerado, como um metal de nervo exposto. Raro ele canta de punhais. Foge-os cantando flores vivas. Há muitas flores no que canta como em Frederico Garcia, ou Lorca, que escreve do amor e das mil flores que sabia. Mas no flamenco o amor aponta como punhal entre margaridas.

Intimidade do Flamenco

Aquele fazer de mais dentro, se quer de quem faz pôr-se ao centro, centrarse, viver seu caroço, e a partir dele dar-se todo, esse cante ou baile é monólogo que se funciona para o próximo, quer um próximo conivente capaz de centrar-se igualmente. Não quer um palco que o dissolva, seu fazer se faz boca a boca.

O flamenco fala do amor como ele, também floralmente, mas no flamenco um punhal oculto 107


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Obras referenciais

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 34 ed. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CASTELLO, José. João Cabral de Melo Neto: O homem sem alma. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. CASTILLO, Sonia Salcedo del. Cenário da arquitetura da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ERBEN, Walter. Miró. Colônia: Taschen, 2004. GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Entre cenografias: O museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2004. HUGHES, Philip. Exhibition design. Londres: Laurence King, 2010. LEÓN, Aurora. El museo: Teoría, praxis y utopía. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995. LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

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LUPTON, Ellen; PHILLIPS, Jennifer C. Novos fundamen109


RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina [org.]. Lina por escrito: Textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009. SEGRE, Roberto. Museus brasileiros. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2010. UNESCO. L´organisation des musées: Conseils pratiques. Paris: Septiéme Imprimerie Union, 1959.

Teses, dissertações e trabalhos finais de graduação CARDOSO, Helânia Cunha de Sousa. A poesia de João Cabral de Melo Neto e as artes espanholas. 2007. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. MATOS, Diego Moreira. Curador e arquiteto em diálogo: Os casos das Bienais Internacionais de Arte de São Paulo de 1981 e 1985. 2009. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. RODRIGUES, Mayra. Exposições de Lina Bo Bardi. 2008. Trabalho Final de Graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. 110

Revistas e periódicos AGUIAR, Claudio. A Espanha e a poesia de João Cabral. Diário de Pernambuco, Recife, Caderno Especial dedicado a João Cabral de Melo Neto, 15 jun. 1994. BERTUSSI, Lisana. João Cabral de Melo Neto: do regional ao universal, do Nordeste brasileiro à Espanha, da miséria à vitalidade. Revista Antares: Letras e Humanidades, Caxias do Sul, n. 1, jan./jun. 2009. Programa de Pós-Graduação em Letras e Cultura Regional da Universidade Caxias do Sul. FREITAS FILHO, Armando. “Compreende?”. In: Revista Serrote, São Paulo, n. 6, nov 2010. pp. 120-123. João Cabral de Melo Neto. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, São Paulo, n. 1, mar. 1996. JORGE, Luís Antônio. Dois Joões, duas juntas de bois, e um carro. Revista Entretrópicos. No prelo.

Catálogos de exposições As construções de Brasília. Catálogo da exposição realizada no Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. Curadoria de Heloísa Espada. Abril a junho 2010.


Grande sertão: Veredas. Catálogo da exposição realizada no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo. Curadoria de Monica Gama e Victor Borysow. Março a dezembro 2006. Machado de Assis: Mas este capítulo não é sério. Catálogo da exposição realizada no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo. Curadoria de Cacá Machado e Vadim Nikitin. Julho 2008 a março 2009.

Morte e vida severina. Especial para televisão. Direção e roteiro: Walter Avancini. Realização: Globo Vídeo. Recife / Sevilha: João Cabral de Melo Neto. Documentário. Brasil, 2003. Direção e roteiro de Bebeto Abrantes. Cor / NTSC. 52 min. Som mono. Realização: Giros Produções.

Menas: O certo do errado, o errado do certo. Catálogo da exposição realizada no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo. Curadoria de Ataliba de Castilho e Eduardo Calbucci. Março a julho 2010. Stockinger: O descanso do guerreiro. Catálogo da exposição realizada no MASP, São Paulo. Curadoria de Maria Alice Milliet. Junho a agosto 2010.

Filmes e shows Brasileirinho Ao Vivo. Show de Maria Bethânia disponível em DVD. Direção geral: Maria Bethânia e Kati Almeida Braga. Direção do show: Bia Lessa. Cenografia: Gringo Cardia. Direção artística e de fotografia: André Horta. Realização: Quitanda Produções Artísticas, Biscoito Fino e Multishow (Globosat). Áudio Dolby 2.0 / Dolby 5.1 / DTS. 111


Dizem que não se pode fugir de quem se é. Eu comecei este trabalho de outro modo, que não este, analisando museus e não projetando exposições, estudando uma arquiteta-escritora e não um poeta-arquiteto. Mas, a certa altura, lá pelo meio do caminho, houve uma bifurcação. Fico feliz de ter escolhido outro percurso. Neste, reconheço não só a mim mesma, mas cada pessoa que ouviu, que opinou, que discutiu, que corrigiu, que sugeriu. Em cada pedacinho. Fui apresentada a João Cabral de Melo Neto pelo meu pai, Arnaldo, um filho de baiano que admira os escritores nordestinos sobremaneira. A edição de Morte e vida severina pertencia à minha mãe, Vera, professora de Língua Portuguesa na escola onde estudei. Minha irmã, Renata, é a terceira que confirma a aparente sina das caçulas na minha família: estuda Letras. Crescendo cercada de livros e leitores, não consegui fugir da Literatura. Mas decidi frequentar a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e, a certo tempo, trabalhar num escritório especializado em exposições e museus, meio que por acaso. Acho que foi assim que, depois da bifurcação, este trabalho se tornou um estudo da obra poética de um dos meus escritores preferidos e, a partir dela, um exercício de tradução dessa obra, sob meu recorte temático, para expografia, para espaço. 112

Agradeço ao professor Luís Antônio Jorge por me apoiar na mudança de tema e, creio eu, ter gostado da troca. Ninguém melhor para ser o orientador de uma empreitada dessas. Digo isso porque não é um tema de TFG comum na FAU e, felizmente, tive mais professores que foram muito importantes no processo de desenvolvimento. Artur Rozestraten e Marcelo Bicudo concordaram em conhecer o trabalho, e acabaram contribuindo enormemente com ideias, com alternativas, com decisões, com conclusões, e mesmo com empolgação. Fico feliz de ter havido essa troca, obrigada aos dois. Agradeço também ao professor Agnaldo Farias, pela presença em vários momentos da minha vida acadêmica. É alguém de quem pode se aprender sempre. Preciso agradecer ao professor Chico Homem de Mello também porque, apesar de ter sido duro com meu trabalho, muitas das decisões que tomei depois de nossa conversa foram pautadas em observações dele. “Ficou mais João Cabral”, como disse o Luís num dos atendimentos a respeito do meu projeto expográfico. Ficou mais sintético, mais deserto. E nada como ter um “grupo de estudos” de TFG. Pude conhecer uma pessoa fantástica e me reaproximar de uma pessoa querida presente em toda a jornada FAU. A primeira, Sandra Javera, foi minha companheira de Literatura e de Joões, estudando comigo João Cabral


e eu estudando com ela João Guimarães Rosa, falando de poesia prosaica e de prosa poética, de palavras, de universos. A segunda, Iara Pimenta, a companheira de projeto expográfico, discutindo espaços, técnicas, materiais, intenções, subversões. Vocês foram fundamentais tanto para as coisas diretamente ligadas ao trabalho quanto para as que não eram dele, obrigada por tudo. Mas não foi propriamente na FAU que aprendi a projetar exposições e onde me apaixonei por elas. Aqui, o membro da banca de avaliação que não era docente, foi o mais professor de todos. Agradeço enormemente ao Vasco Caldeira por todos os ensinamentos e oportunidades, bem como toda a equipe da Artifício: Flavia D’Amico, Claudia Afonso, Natalia Matos, Mariana Terra, Elaine Terrin, Rafaela Silva. E também aos ex-artífices Paulo Ayres, Valquiria Reducino, Mariana Chaves, e, em especial, Ana Lucia Filomeno Bortoletto. Vocês todos contribuíram muito para minha formação e ajudaram a trasformar trabalho em prazer. Mas nada seria igual sem os colegas de turma (ou não) que se tornaram amigos ao longo do caminho. Compartilhando a experiência do TFG ou não. Aqui, Julia Caio, Marilia Almeida e a já mencionada Iara Pimenta foram companhias fundamentais. Só posso agradecer a enormidade das sensações que me vêm quando penso no que já vivemos.

Amigos como Priscyla Gomes e Rafael Craice são imprescindíveis, pois, além de darem suas contribuições para o trabalho, como empréstimos de câmeras, produção de vídeos ou gravações de voz, não se pode viver sem o carinho sincero, sem a sinceridade carinhosa. Agradeço os companheiros de TFG que compartilharam angústias, alegrias, pré-bancas e informações sobre gráficas, prazos e formatos. E várias outras pessoas que estiveram perto durante a graduação, igualmente dividindo alegrias e aflições. A Turma 58 e mais os inúmeros agregados foram incríveis, agradeço a todos. Minha família também merece agradecimentos, já que foi paciente e compreensiva com as ausências de final de TFG ou mesmo de fim cada semestre: minhas avós, meus tios, meus primos. Agradeço em especial minhas tias Telma e Ligia Fernandes, seja por ceder computador para a produção deste trabalho, ou por comprar guloseimas para adoçar as longas horas de trabalho. Sobretudo, agradeço ao meu Vladimir Iszlaji, por estar sempre lá, não importando nada mais.

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Tecendo a manhã Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol que seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.


Este trabalho utilizou as famílias tipográficas Frutiger e Bodoni, tanto nas instalações expográficas quanto neste caderno.


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