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Ao lado das crianças: a escuta como criação de verbos - Loide Pereira Trois

AO LADO DAS CRIANÇAS:

A ESCUTA COMO CRIAÇÃO DE VERBOS

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Loide Pereira Trois 8

O que se pode fazer escutando as crianças...ser mais infantis sendo mais sérios e comprometidos com uma criança que brinca. Ser capaz de entender o quanto foi importante para uma criança ter conseguido apresentar sua ideia. Ser mais infantil quer dizer aprender a compreender as crianças para além da aparente simplicidade daquilo que elas dizem, porque quem diz coisas simples quase sempre diz coisas importantes. (Tonucci, 2005, p.171)

A escuta é um verbo em ação. É uma atitude de entrega na interação com as crianças com disponibilidade de não julgar, não corrigir comportamentos, não ensinar os modos como devem ou podem brincar e explorar e, sobretudo, desejar compreender como decifram o mundo, como constituem seus signi cados. Essas são ações que efetivam e conferem visibilidade ao que as crianças sabem fazer. Colocar-se junto com as crianças exige esforço, engajamento e comprometimento. Um esforço poético. Um esforço de criar novos modos de se relacionar com o outro.

A sociologia da infância nos ajuda a colocar o olhar sobre o modo como as crianças vivem suas infâncias, não para o que os adultos querem que as crianças façam, mas o que elas fazem por si próprias. Ser sensível à infância é não a infantilizar, mas assumir uma atitude de con ança em seu poder de enfrentar a vida.

Colocar-se junto com as crianças exige esforço, engajamento e comprometimento. Um esforço poético. Um esforço de criar novos modos de se relacionar com o outro.

Escutar envolve a compreensão da comunicação feita pelo outro, compreendendo-a como algo que não é linear e nem completo. Essa escuta envolve uma interpretação que não pode ser apressada e abrupta, não pode impor um ritmo ou uma concepção previamente formulada. No gesto de escuta, não se trata de constatar ou con rmar, mas de se colocar perguntas, deixar que as incoerências, os tropeços, as inquietações dos sujeitos tomem lugar.

A escuta é um gesto que envolve estranhamento e relativização, sem tentar buscar um sentido único e absoluto. É uma escuta comprometida com o outro, uma escuta que reconhece e con a no outro. Busca-se, nessa escuta, conhecer um ponto de vista diferente daquele que seríamos capazes de ver no âmbito do mundo social de pertença dos adultos.

A escuta é potencializada pelo desejo, pelo movimento, pela ação. O corpo da criança fala, silencia, desenha caminhos, cria coreogra as. Para compreender, agimos, reestruturamos o fazer, reinventamos gestos, readaptamos modos de fazer.

O corpo efetua uma espécie de re exão. Escutar os movimentos e os corpos que se acomodam a cada nova ação, um espaço de re namento da escuta, de recriação, mas também um lugar de colisão, de confronto e de tensão. A escuta orienta-se pela especi cidade de cada sujeito, possibilitando que o mesmo se expresse, fale e implique seu desejo. Acolhe, indaga, contempla os modos distintos de expressar e usar as linguagens.

Segundo Ferreira (2002), a ausência de escuta tem custado às crianças um lugar de subordinação, constituindo-as como “estrangeiras”. Estrangeiras porque distantes das lógicas dos adultos que governam o mundo que elas habitam, estrangeiras com relação aos contextos sociais mais amplos que são regulados por um poder social e simbólico que as exclui e as desquali ca.

Os sentidos atribuídos ou construídos pelas crianças não se reduzem e nem se confundem àqueles elaborados pelos adultos. As crianças têm autonomia cultural em relação aos adultos. Uma autonomia cultural

relativa, justamente porque os sentidos que elaboram partem do sistema simbólico que é compartilhado com os adultos. As crianças atuam na con guração e na recon guração dessas diversidades, constituem novos modos de se relacionar com as outras crianças e com os adultos, criando sentidos particulares.

As crianças não têm um de nitivo: elas são, sobretudo, possibilidade, potencialidade. As infâncias são a rmadas como acontecimentos e experiências, como revolução e como criação.

O que nos caracteriza como humanos é a nossa incompletude, que é também a invenção do possível que há em nós. Não somos absolutos em nossos saberes e fazeres: nos constituímos no contínuo devir que é o viver. É o devir humano que produz diferenças e nos constitui. Aprendemos com outros a imaginar, a perceber e a agir, a nos tornarmos capazes de escolher e tomar decisões no convívio social e cultural. Tal compreensão, comprometida com o devir humano, permite a rmar que viver de uma outra maneira produz diferenças em nosso cotidiano. As decisões, e também as hesitações, são formuladas no devir do agir sobre o mundo.

Estar junto com crianças é prestar atenção em outros tempos. Tempos simultâneos que se entrelaçam e se confrontam. Infâncias e tempos se mesclam. Tempo de engajar-se, tempo de esquecer de si mesmo, de entregar-se na ação. Uma experiência de intimidade com as coisas, intimidade com as outras crianças e com os adultos. Estar ao lado das crianças é rmar cumplicidades, deixar-se afetar pelo que elas nos ensinam e nos interpelam. É um caminho que vai sendo construído, sem pressa de chegar, no percurso e no encontro com as crianças.

Referências

FERREIRA, M. A gente gosta de brincar com os outros meninos! Relações sociais entre crianças num jardim de infância. Porto:Edições Afrontamento, 2004, 440p.

TONUCCI, F. Quando as crianças dizem: agora chega! Porto Alegre: Artmed, 2005, 243p.

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