Revista Lima Barreto #1 (out-2019)

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Oficina de Escrita CLZO

LIMA BARRETO Revista da Oficina de Escrita CLZO Número I Ano I Outubro — 2019

Participantes/Pág. Adeir Ribeiro Fábio Campelo Jeferson Corrêa Jéssica Lira Juliana Azevedo Luiza Lacaille Márcia Mynssen Melaine Machado Rafaela Cardoso Ruth Justiniano Thássio Ferreira Tudes Wagner Guimarães

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Cidinha Adeir Ribeiro* Era uma vez uma bela menina chamada Cidinha. Sua mãe morreu no parto e seu pai, sentindo-se muito sozinho, casou-se de novo pouco tempo depois. A madrasta fingia gostar dela, mas, após a morte do pai de Cidinha, atingido pela explosão de um bueiro no centro da cidade, se revelou uma verdadeira megera. Com o dinheiro da indenização, foi morar numa casa enorme na Zona Sul, próxima ao Morro do Castelo, tratando Cidinha como uma empregada, obrigando-a a limpar, lavar, passar, cozinhar. As meio-irmãs de Cidinha, duas patricinhas feias e arrogantes, sempre a tratavam mal e atrapalhavam todas as tarefas para que ela demorasse e não tivesse tempo para mais nada. Seus únicos amigos eram dois garotos que faziam malabarismos no semáforo em frente ao mercado em que Cidinha fazia as compras. Ela os dava alguns trocados escondida vez em quando. Um belo dia, Cidinha viu numa rede social que um funkeiro famoso, MC Princeso, faria um baile no Morro do Castelo, comunidade em que ele cresceu. Ela, que era fã, ouviu as irmãs comentarem com a mãe e disse que queria ir. As três riram de perder o fôlego. — Você nem tem roupa pra sair, menina — disse a madrasta. — Se arrumar uma roupa bonita e terminar todas as tarefas, deixo você ir — zombou. Cidinha abaixou a cabeça e voltou para as tarefas, chorando. Sabia que era impossível arrumar uma roupa para o baile. Naquele dia, ao ir ao mercado, seus amigos perguntaram o motivo dela estar tão triste e Cidinha os contou. Compassivos com a menina, eles pediram para que a mãe, costureira de mão cheia, fizesse um vestido bonito para a amiga ir ao baile. No dia do baile, ao ir ao mercado, os meninos entregaram o vestido à Cidinha. Não era muito requintado, mas era muito bonito, e eles também se ofereceram para ajudá-la nas tarefas de casa.

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Cidinha chorou de alegria. Agora poderia ir à matinê do MC Princeso. Aproveitando que as irmãs e a madrasta estavam no salão de beleza, deixou os meninos entrarem e, com a ajuda deles, terminou todas as tarefas bem cedinho. Os meninos se despediram e ela foi tomar um banho para experimentar o vestido. Estava se admirando no espelho quando as irmãs chegaram. O vestido era lindo e realçava toda a sua beleza. Isto despertou a inveja delas que, fingindo brigar uma com a outra, rolaram para cima de Cidinha e “acidentalmente” rasgaram seu vestido. Ela chorou de raiva e tristeza mais uma vez, convencida de que não iria ao baile. Pouco antes da hora da matinê, as irmãs e a mãe, devidamente arrumadas, deixando escapar risadinhas, se despediram e saíram. Cidinha iria recomeçar a chorar quando o telefone tocou. Era sua madrinha — não a via há um bom tempo. Ela percebeu a menina triste ao falar e perguntou o que houve. Cidinha contou sobre o baile, a roupa e tudo mais. A madrinha dela pediu que não saísse de casa e desligou. Alguns minutos depois ela chega até Cidinha com um vestido emprestado pela filha da patroa dela. Era bonito e caro. — Comprado em Nova Iorque — disse a madrinha. Ela ajudou a menina a se arrumar, pediu um Uber, deu algum dinheiro à sobrinha, mas, tudo isso com uma condição: Cidinha deveria voltar antes da meia-noite. A menina aceitou e partiu para o tão esperado baile. — Mando um carro te buscar! — gritou a madrinha enquanto ela saía. No baile, Cidinha logo encontrou seus amigos malabaristas do semáforo, mas agora muito bem arrumados. Ela contou sobre o vestido e pediu desculpas. Disseram estar tudo bem, felizes por ela ter ido. Eles dançavam muito e a beleza de Cidinha chamava a atenção de muitos rapazes, em especial do MC Princeso, que observava do camarote VIP do baile. Ele pediu que um de seus seguranças a chamasse até aquele espaço reservado.


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Quando o homem enorme contou para Cidinha que o MC estava chamando-a, seu coração disparou de empolgação. Chegou no camarote e foi recebida com dois beijinhos no rosto. — Você dança muito bem — disse Princeso. — Vem dançar comigo! E dançaram. E todos queriam saber quem era a menina bonita dançando com o MC. — É a Cidinha? — perguntou uma irmã. — É a Cidinha! — disse a outra. E fervilharam de inveja. Cidinha riu, dançou e se divertiu, mas, ao ver as horas, se assustou: era quase meia-noite! Disse que deveria ir e Princeso pediu que esperasse. — Tá quase na hora de eu cantar. Fica? — perguntou o rapaz. Cidinha apenas disse que não e saiu. Na correria, arrebentou uma das sandálias nas escadas, mas, com medo de perder a hora, deixou para lá e voltou a correr. Princeso percebeu que não havia perguntado o nome da menina e pediu que o segurança corresse e perguntasse, contudo, mesmo saindo logo após Cidinha, ele não encontrou nada além da sandália arrebentada. MC Princeso se apresentou naquele dia com a cabeça longe — na bela menina que o encantou. Cidinha voltou para casa extasiada. Foi ao baile e ainda conseguiu conhecer pessoalmente MC Princeso. Porém, sua alegria durou pouco. A madrasta a repreendeu por ter ido ao baile e, suas irmãs, com inveja, sugeriram que a menina fosse trancada no quarto, saindo apenas para as tarefas da casa. Princeso não conseguia parar de pensar na menina do baile do Morro do Castelo, contudo, não sabia como encontrá-la. Nem mesmo sabia seu nome. Resolveu postar nas redes sociais que estava procurando a garota que esteve com ele no camarote no dia do Baile. No post, a foto da sandália perdida por ela. Choveram meninas dizendo que eram ela, mas nenhuma realmente era.

O MC estava desiludido quando recebeu a mensagem de alguém dizendo que sabia quem era a dona da sandália e onde ela morava. Foi até o local indicado encontrar com o menino: um sinal de trânsito em frente ao mercado de um bairro nobre. O garoto e um irmão levaram-no até um casarão antigo. Princeso tocou a campainha e as irmãs de Cidinha ficaram sem reação ao atender a porta. A madrasta pediu que ele entrasse e as irmãs ficaram tentando roubar a atenção dele, mas Princeso estava determinado a encontrar a menina do baile. Quando perguntou se ela estava, uma das irmãs se preparava para dizer “não”, mas um grito veio de um dos cômodos: — Eu estou aqui! O MC foi em direção ao quarto e, disfarçadamente, a madrasta destrancou a porta. Cidinha saiu do quarto. Estava com roupas simples, mas não menos bonita por isso. Princeso e ela conversaram no sofá por quase uma hora sob o olhar incrédulo da madrasta e invejoso das irmãs. Ele a convidou para um final de semana numa casa de praia. A madrasta disse que iria como responsável, mas Cidinha disse que chamaria sua madrinha. Se conheceram. Se gostaram. Namoraram por seis meses. Terminaram após ele se envolver num escândalo com uma dançarina. Aproveitando os holofotes de subcelebridade, Cidinha criou um canal na internet, ganhou algum dinheiro com isso e foi morar com a madrinha. Não foi feliz para sempre, mas teve muitos bons momentos, pois é assim que a vida realmente é. *Adeir Ribeiro é estudante de Letras, musicista amador, fã de quadrinhos, cinema, jogos eletrônicos e RPG. Um leitor se aventurando nas terras da escrita.

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Colcha de retalhos Fábio Campelo* “Depois dos quarenta, se você acorda sem sentir nenhuma dor, é porque morreu”. Heráclito sempre dizia essa frase quando sentia o corpo dolorido, geralmente depois de um dia pesado de trabalho. Uma vez ele me disse que essa era uma das citações favoritas do seu pai, sempre que ouvia algum dos filhos reclamar de qualquer dor ou sofrimento. “Nunca soube se ele falava isso pra consolar a gente ou se era mais uma sacanagem do velho”, ponderava, ao terminar a história. Por vezes ele falava do pai com saudades, principalmente quando, diante da velha máquina de costura Singer, ouvia o familiar “tlec, tlec, tlec” da agulha perfurando o tecido — movimento impulsionado pelo antigo motor elétrico do aparelho. “Essa máquina tem mais de cem anos. A Singer tinha um pessoal para ir de oficina em oficina comprando essas maravilhas aqui, só pra destruir e forçar a gente a comprar essas porcarias que não aguentam costurar um courinho”. Repetia dia sim e outro também, sempre antes de usar a máquina. Conheci o Heráclito aos doze anos. Fui expulso da escola e ficava o dia inteiro vadiando na rua. De pé às seis e meia, vestia o uniforme e pegava a mochila para minha mãe pensar que eu ainda ia às aulas, mas, na verdade, preferia ficar o dia inteiro na rua, batendo carteiras e roubando celulares. Um dia, o medonho, um moleque de rua com quem eu andava, arrumou um trinta e oito e me convenceu

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a assaltar a capotaria do Heráclito. “Vai ser moleza! Um cara na feira em Campo Grande compra as ferramentas!”. O assalto, claro, deu errado. Medonho estava tão chapado que acabou atirando no próprio pé. Na época, o ajudante do Heráclito e uns dois fregueses que eram atendidos na hora do roubo, conseguiram nos desarmar e começaram a bater, bater muito na gente. “PARA COM ISSO PORRA! NUM TÃO VENDO QUE SÃO SÓ UNS MOLEQUES?” — Heráclito gritou, nos livrando da agressão. Mesmo com o tiro no pé e tendo tomado uma surra, Medonho conseguiu sair correndo. Eu, lerdo que sempre fui, acabei ficando. Nunca mais soube dele. Muito tempo depois, me disseram que tinha morrido em uma operação do BOPE em Vila Kenedy. Heráclito me levou pra casa naquele dia. Não quis dar queixa nem deixou os outros chamarem a Polícia, mas fez questão de falar com minha mãe pessoalmente. A surra que eu tomei da minha mãe naquele dia me fez arrepender de ter nascido. Felizmente, antes disso, o Heráclito tinha falado com ela: “Mente vazia é a oficina do capeta, minha senhora. Manda o moleque lá pra minha capotaria que ele me ajuda e aprende uma profissão, pelo menos”. Minha mãe agradeceu, me surrou naquela noite e, no dia seguinte, me acordou às cinco e meia. “Já que cê num presta pro estudo, vai trabalhar!” — ordenou, me tocando pra fora de casa — “Tô cum o telefone do seu Heraclio, ai di você se num tiver lá às sete, seu muleque!”. Quando ele chegou pra abrir a capotaria, eu estava lá, sentado na calçada. Odiava aquela merda do fundo da minha alma! O Heráclito me mandava arrancar grampo velho de estofado, tirar tachinha de poltrona, varrer a oficina, lavar banheiro, e


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por aí vai. Era ele me ver sentado que mandava fazer alguma porra chata. Mas também me levava pra tomar café às dez da manhã e às quatro da tarde, pagava meu almoço no botequim do galego e ficava horas e horas contando as mesmas piadas de papagaio, de português, de Jesus, que eram velhas quando ele tinha ouvido do pai dele. O tempo passou e eu fui ficando. Comecei ganhando um dinheirinho fixo pelos serviços gerais, depois ele começou a me mandar em Madureira e no Centro comprar material e me deixava ficar com o troco. Comecei a ajudar nas contas em casa e, minha mãe, sempre que fazia bolo de fubá, me obrigava a levar um pedaço pro Heráclito como agradecimento. Pela primeira vez em muito tempo, ela olhava pra mim com orgulho em vez de raiva e preocupação. Aos poucos, Heráclito foi me ensinando todo o serviço de capoteiro. Aprendi como desmontar banco, teto e lateral de Volkswagen, ouvindo o velho reclamar do pessoal que instalava som em carro e destruía o trabalho dele, arrancando sem cuidado o forro das portas pra por alto-falantes. Me ensinou a fazer encosto de cadeira, almofada de poltrona e drapeado em sofá, afinal, como dizia, com orgulho, “todo capoteiro faz trabalho de estofador, mas estofador não faz trabalho de capoteiro”. Um dia, estava varrendo a oficina (“Mantenha seu local de trabalho limpo! Não seja como esses porcalhões que tem por ai!”), e ele me chamou. Estava sentado na máquina, costurando a capota de um Jeep Wyllis. “Tá na hora de você aprender a costurar. Se não souber costurar direito, nunca vai ser um capoteiro, vai ser só mais um desses estofadores de merda que tem por aí”. Fiquei tenso. Ele levantou da cadeira velha e, apoiado na parede, me observou enquanto, lentamente, me colocava diante de seu maior tesouro. A velha máquina de costura era a coisa mais legal na capotaria e, claro, por isso mesmo ele nunca me deixava pôr a mão nela. “Pode tirando a patinha daí! Essa porra não é piru não, pra você ficar brincando!” — disse

na primeira vez que me pegou sentado na máquina. Olhei reverentemente para ela por um momento. A Singer emitia um zumbido baixo e ameaçador, como um bicho de ferro que só esperava eu me distrair pra dar o bote. “Essa máquina tem mais de cem anos, era do meu pai” — explicou com os olhos cheios d’água e um orgulho embargado na voz. “A Singer mandava um pessoal nas oficinas de capoteiro pra comprar essas máquinas pra destruir. Eles destroem ali mesmo, na frente do antigo dono” — me disse, pela enésima vez, com o tom de voz baixo e conspiratório enquanto eu me ajeitava para começar minha primeira costura de capota. Com o tempo, eu e a velha Singer nos tornamos amigos próximos. Quando não tinha serviço, costurava bolsas com restos de plástico, veludo de carro e couro sintético, e levava pra vender nas feiras de Bangu e Campo Grande. Oferecia metade do dinheiro das bolsas pro Heráclito, mas ele nunca aceitava. “Guarda, rapaz! Quem dá o que tem, a pedir vem!” O trabalho das bolsas deu certo e, mediante a recusa do velho teimoso, resolvi juntar a parte dele e não gastar nenhum tostão. Fiquei quatro anos juntando a metade do Heráclito no negócio das bolsas e, quando o dinheiro deu, resolvi retribuir um pouco de tudo que tinha recebido dele nos últimos anos. Fui na Intendente Magalhães e voltei dirigindo o objeto de desejo do velho capoteiro: um Puma Amarelo, brilhante e reluzente à luz da manhã. Quando dei as chaves pra ele, foi a primeira vez que o vi chorar de verdade. “Caiu cisco no olho!” — dizia enquanto tentava enxugar as lágrimas. Dez anos se foram e eu continuava na capotaria. Fazia meus próprios serviços há algum tempo e, modéstia à parte, tinha ficado tão bom quanto o velho. Continuava ajudando o Heráclito, principalmente naqueles serviços que ele não conseguia fazer tão bem devido à idade. Com o dinheiro da oficina e do negócio das bolsas, consegui comprar uma casa pra mim e minha mãe no Bairro Adriana e um gol bolinha, vermelho, pra mim. Um dia, estava costurando o estofado de um Chevro-

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let Zafira quando ele veio falar comigo com uma cara tão feia que matava mosquito só de olhar. “Tudo muito bem, tudo muito bom. Mas quando é que o senhor vai voltar a estudar hein?”. Nos últimos tempos ele vivia me enchendo o saco com isso. Eu achava que estudar era perda de tempo, ainda mais agora que as coisas estavam indo bem na oficina. “Tá tudo bem hoje, mas e amanhã? Você vai continuar entrando embaixo de carro quando tiver com sessenta, setenta anos?” “Vou, você ainda entra e tá muito bem, seu ranzinza do caralho!” “Tenho que fazer isso porque fui burro e não estudei. Mas cada oficina de capoteiro só pode ter um burro. Então ou você estuda ou cai fora!” Podia muito bem abrir minha própria oficina e deixar aquele velho turrão dar com os burros n’água, mas amava demais aquele idoso ranzinza pra decepcioná-lo daquele jeito. Assim, acabei me matriculando em uma turma de Educação de Jovens e Adultos em uma escola municipal perto de casa, muito mais pra deixar ele feliz, do que por qualquer vontade de terminar os estudos. Para minha surpresa, gostei de voltar pra escola e comecei a estudar de verdade. Terminei a EJA, fiz o supletivo do Ensino Médio e, depois, o vestibular pra cursar Administração numa faculdade à distância. Quando mostrei pra ele o resultado do vestibular com minha aprovação, foi a segunda vez que ele chorou na minha frente. “Cisco brabo esse, hein” — falei com os olhos cheios de lágrimas também. “Pois é, filho da puta!” — respondeu, aos prantos. A vida seguiu seu rumo. Me formei com boas notas e logo apareceu um trabalho na minha área. Mesmo assim, ainda ia na oficina aos sábados pra ajudar o Heráclito. As coisas mudaram quando conheci a Hermengarda, e aí, entre trabalho, namoro e, finalmente, noivado, sobrou pouco tempo pro velho capoteiro. Mas ele não ficou ressentido, alegrava-se em ver que eu tinha encontrado um rumo. No dia do meu casamento, fiz questão que ele ficasse ao lado de minha mãe, ocupando o lugar

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do pai que nunca quis me conhecer. Essa foi a terceira vez que o vi com cisco nos olhos. O tempo passou, o tempo sempre passa, e eu só ficava sabendo dele através de terceiros. Soube que Heráclito tinha fechado a oficina e agora só pegava serviços pequenos em casa mesmo. Depois soube que ficou doente. Me contaram que a diabetes tinha levado as pernas e a visão dele. Um dia, me disseram que ele estava muito mal, internado no Rocha Faria. No dia seguinte à notícia, saí mais cedo do trabalho e fui ao hospital. Ele estava ocupando um leito individual em uma das Enfermarias (um amigo que trabalhava lá conseguiu esse pequeno conforto pra ele). Cheguei e me sentei ao lado da cama. Peguei em sua mão e esperei enquanto dormia tranquilamente. Acordou, sobressaltado, quando percebeu a minha presença. “Quem tá aí?” “Sou eu, seu velho rabugento” Ele ficou feliz, escancarando um sorriso franco naquela boca desdentada. Heráclito fez um gesto com a mão, pedindo para eu me aproximar, e falou bem perto do meu ouvido com a voz fraca e fanhosa. “Vai na minha casa e pega a máquina. Ela tem mais de cem anos e foi do meu pai. Quero que fique com você.” Fiquei um tempo em silêncio. O nó na garganta abafava as palavras e meus olhos cheios de lágrimas embaçavam o mundo. “Pode deixar, filho da puta nenhum da Singer vai pôr as mãos nela” — falei com a voz embargada. Foi a última vez que eu vi Heráclito chorar. *Fábio Campelo é historiador e estudante de Museologia. Atua como professor na rede municipal de Angra dos Reis e Estadual do RJ.


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O pecado da freira Jeferson Corrêa* Chovia e ventava lá fora quando mais uma vez irmã Mary mentiu para o padre Damien. Concentrou-se mentalmente em cada palavra para dar veracidade ao que contaria a ele no confessionário enquanto ouvia o som das janelas batendo. — Padre Damien — disse, fingindo preocupação — desculpe-me tomar teu tempo mais uma vez, senhor — articulou cada palavra minunciosamente. — Outra vez a irmã Deloris passeou os olhos dela com malícia sobre o meu corpo quando estávamos juntas no banheiro nos trocando. Essa atitude indecorosa tem me aborrecido. Padre Damien agradeceu a confiança nele. Respondeu à freira que rezaria por irmã Deloris e falaria a sós com ela, retirando-se do local.

Irmã Mary, uma mulher feita, como ela mesma se considerava, com quatro décadas de vida, não aceitava que, em seu íntimo, desejava tocar o corpo de outra mulher, pois o seu próprio nunca fora tocado. De forma alguma poderia beijar os lábios e descobrir o prazer carnal que lhe fora proibido. Por essa razão, mentia constantemente ao padre Damien, o padre mais antigo e respeitado da

igreja. Homossexualidade era pecado com dizia o Bom Livro. Lembrava-se sempre da passagem de Colossenses 3:5: “Façam morrer, portanto, os membros do seu corpo com respeito a imoralidade sexual, impureza, paixão desenfreada, desejos prejudiciais e ganância, que é idolatria.” Irmã Mary era uma das mais experientes freiras da Igreja Católica Apostólica Romana na cidade de Rockport, no estado do Texas, ao sul do Estados Unidos; um dos locais mais conservadores da América, conhecido, assim como o Kansas, por seu histórico de furacões. Irmã Mary pertencia a uma Congregação Religiosa e acreditava nos votos de castidade, pobreza e obediência; dedicava-se à oração e ao serviço aos necessitados. Irmã Mary era uma mulher querida por todos que a conheciam. Ninguém suspeitava que fosse mitomaníaca. Mentir tornou-se a única opção viável para lidar com o terrível fato de ser lésbica. Mitigava todas aquelas vontades que surgiam desde a adolescência: sonhos eróticos, impulsos incontroláveis e pensamentos impuros que não eram do Senhor. Desejar irmã Deloris, aquela jovem e bela freira, de apenas duas décadas de vida, por quem nutria forte atração desde que chegara na igreja, era a tentação que precisava enfrentar diuturnamente. Deloris estava em todos os lugares que ela frequentava.   O Inimigo era ardiloso, por isso Satanás, o caído, confundia a mente dos fiéis e tentava-os para que se afastassem de Deus. Fizera isso com Cristo no deserto havia milênios e agora fazia com ela. Irmã Mary já não aguentava mais aqueles desejos profanos. Cem Pai-Nossos e cem Ave-Marias por dia não lhe davam o acalento necessário quando rezava com os joelhos no chão e segurava firme o rosário em prantos. Os pensamentos não esvaneciam. Deloris com sua melíflua voz estava no lugar das orações à Virgem Maria. As curvas do corpo alvo e esguio no hábito que a jovem freira vestia

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tomavam o lugar do Pai Nosso. “Algo precisa ser feito”, repetia irmã Mary a si mesma enquanto observava os ventos aumentando junto com a chuva pela janela. Não conseguia mais ficar perto de Deloris. Desejava a expulsão da novata, todavia nada acontecia, pois padre Damien parecia convenientemente esquecer-se de seus relatos. Talvez ele soubesse que ela mentia, então restava à irmã Mary lidar com a tentação ou esquecê-la. Estava decidida a esquecer quando soube que a cidade de Rockport passaria por uma temporada de furacões da segunda categoria mais alta, de acordo com o Centro Nacional de Furacões dos EUA. O Furacão Harvey seria o primeiro a atingir o Texas desde o Carla, em 1961. Irmã Mary rezava na igreja pensando que a chegada do furacão era sua culpa pelos pensamentos pecaminosos. Deus estava punindo-a por desejar o indesejável. Pareceu o dia do Juízo Final quando o Furacão Harvey finalmente aterrissou no Texas e tocou o continente americano naquela sexta-feira chuvosa. Telhados voaram, casas balançavam, faltava energia elétrica. Algumas pessoas morreram e outras ficaram feridas e desalojadas. Pânico e correria era tudo que se via nas ruas. O governo americano pediu ajuda a quem possuísse um barco para que partisse ao resgate dos desalojados. Irmãs e padres evacuaram a Igreja Católica Apostólica Romana de Rockport para que se protegessem em abrigos, mas irmã Mary, convicta que precisava estar lá, se negava a ir, sendo a única a ficar na igreja. Era uma provação do Senhor. Só poderia ser. Irmã Mary estava disposta a se provar tal qual Jó com sua fé inabalável, contudo, o que a irmã não esperava era que Deloris também estava na igreja e que rezaria ao lado dela. Aquela presença a incomodara por refletir seu pecado, mas havia assuntos mais urgentes. Mary sabia disso. As duas freiras rezaram juntas com toda fé que possuíam em seus corações para que o furacão perdesse as forças e não machucasse ninguém. Rezavam com esperança. Era a única atitude que poderia

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tomar. Se a fé movia montanhas, a fé pararia furacões. Os ventos de 200 km/h deixavam pessoas feridas por onde passavam. Escolas, empresas, enfermarias eram danificadas. Chovia muito, enchentes fechavam lugares. Havia pessoas ilhadas em caminhonetes esperando que aquele desastre terminasse. Tudo que restava aos texanos era rezar para que o furacão não aumentasse para a última categoria. Irmã Mary rezava junto com irmã Deloris. Aquelas duas mulheres a sós na igreja acreditavam que suas orações chegariam aos céus, no entanto, Deus parecia ocupado, pois Rockport foi a cidade mais atingida. Se continuasse assim, o destino da cidade seria o mesmo de Galveston em 1900, quando um furacão matou mais de oito mil pessoas, incluindo as freiras, que usaram cordas para amarrar-se em filas de crianças nos orfanatos. Após o furação se dissipar, algumas pessoas encontraram as freiras ainda amarradas às crianças. Todos tinham se afogado em Galveston. Por mais que a fé de Mary fosse alta, ninguém era capaz de saber quais eram os planos de Deus. Irmã Mary rezava, Deloris acompanhava-a. Nas ruas, pessoas desafortunadas buscavam por abrigos e pediam a Deus por salvação. Irmã Mary continuava a rezar com Deloris e as duas mantinham-se firmes nas suas orações. A fé era tudo que tinham, tudo que precisavam. A previsão dos meteorologistas era que o Furacão Harvey continuaria despejando chuva pelos próximos cinco ou seis dias na região. Enquanto o mundo lá fora da igreja parecia ruir, o mundo dentro dela era coberto de crença. Teria Deus ouvido aquelas preces? Após seis horas de fortes chuvas, deslizamentos de terra e ventos perigosos, o Furacão Harvey diminuiu. Diminuía mais e mais, enfraquecia à medida que avançava em território americano. O furacão tornou-se uma tempestade tropical com ventos menores e girando em um ritmo mais lento.


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As duas irmãs sentiram a mudança, abraçaram-se em júbilo, celebraram com os olhos em lágrimas o milagre. O pior passou. Em breve Harvey desapareceria. As irmãs entreolharam-se em um longo silêncio. Irmã Mary pensava em tudo que aconteceu. “Poderia ter sido uma das vítimas de Harvey”, refletia, mas a Igreja Católica Apostólica Romana estava intacta, um dos poucos lugares de Rockport que resistiu à fúria da natureza. Deus não estava punindo-a. Deus não a odiava. Naquele momento de mutismo em que a chuva e o vento combaliam, observando os olhos marejados de Deloris, Mary sentiu vontade de desculpar-se pelas mentiras e de abraçá-la. Não sabia se algum dia teria o perdão da jovem freira, muito menos de padre Damien quando se confessasse da próxima vez e admitisse seus erros, mas irmã Mary sabia que o era o correto a ser feito. Estar sozinha com irmã Deloris fazia-a tremer e suar como nunca; a vontade profana aumentava, o coração queria fugir do peito de tanto acelerar. O furacão estava passando, mas o vulcão de hormônios nela estava acesso e queimava como nunca. Senão agora, quando?

graça daquela situação. “Provavelmente de nervoso”, irmã Mary cogitava com medo de ser denunciada, mas para surpresa da freira mais velha, Deloris tomou a iniciativa e beijou-a. Quando os lábios se encontraram, irmã Mary sentiu o divino gosto do pecado. Foi aos céus como ia em suas orações. O toque e o roçar das línguas era como falar em glossolalia. Irmã Mary aceitou qual era o seu maior pecado. Deloris a abraçou. Mary sentiu como se o peso do mundo saísse de suas costas. Ser abraçada por Deloris era sua epifania. — Não se preocupe porque ninguém saberá. Padre Demian é homossexual e está do nosso lado. Irmã Mary não precisava mais mentir. Após tantos anos lutando contra seus desejos mais íntimos, renegando a si mesma, Mary chorou de felicidade abraçada ao corpo de Deloris e finalmente entregou-se à carne. Estava feliz. Estava salva. *Jeferson Corrêa nasceu no Rio de Janeiro, em 1987. Desde que se entende por gente sempre gostou de criar. É autor do livro “Além do que os olhos podem ver” (2014). Apaixonado pela escrita e por cultura pop, trabalhou com eventos voltados ao público nerd/geek/gamer na Zona Oeste do Rio de Janeiro e palestrou no Sesc de Nova Iguaçu sobre a importância da Literatura e da Criatividade.

Irmã Mary queria. Precisava. Aproximou-se lentamente dos lábios de Deloris, enfim sucumbiria ao desejo pelo menos uma vez. Ansiava beijá-la, senti-la igual nos sonhos, mas conteve-se. O medo de pecar ainda existia. Deloris riu parecendo achar

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Uma carta indesejada Jéssica Lira* O fato de não acreditar em nada místico tornava Jonas um chato. Ter de relatar isso é até irônico porque acredito em horóscopo e dedico bastante tempo a ler meu signo no jornal; mas a história não é sobre mim, e sim, sobre ele. Jonas era medroso e por isso não procurava saber sobre as coisas astrológicas. Ele era muito metódico. diferente de mim, que era bem mais sonhadora e não pensava quando agia. Jonas era o ideal, ele reluzia, tinha uma luz própria, focado, calmo e paciente. Tínhamos um bom senso de humor, vivíamos rindo e contando piadas. Ele fazia graça relacionada ao fato de eu ser solteira e acreditar nos astros. Convenci ele a ir à Madame Creusa, cartomante que frequento para saber como será meu ano seguinte. Jonas, muito debochado, foi conhecê-la. Primeiro reclamou que o local era longe, e era mesmo, era terrível ir a Zona Sul carioca; depois reclamou do alto preço do

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estacionamento e por fim não gostou do cheiro e da quentura do apartamento de Madame — era como ela gostava de ser chamada. O apartamento de Madame, no Largo do Machado, era de um vermelho carmim, pequeno, estreito, com uma luz vacilante e um ventilador que não ventava para não apagar as dezenas de velas do local. O cheiro e a fumaça dos incensos não se dissipavam e o apartamento de Madame ficava extremamente quente. Ao vê-la, Jonas revirou os olhos e olhou para minha cara, duvidando em como eu poderia acreditar em uma mulher que não manca, usa bengala, veste um vestido vermelho do modelo ciganinha, com tantos brincos e pulseiras que não ouvimos ela falar “boa tarde”, e uma maquiagem muito marcada e forte. Entramos no tal apartamento e Madame deu o valor a ser pago. Ouvi mais uma reclamação vindo do Jonas, que pagou no débito, parcelei em duas vezes. Ele, apesar de corpulento, ao sentar-se na cadeira de ráfia, foi engolid. Madame, de um jeito teatral, sentou-se à frente de meu amigo, pegou sua mão e disse: “Regido pelo primeiro dia de Leão, signo esse que ocupa a quinta casa, o leão, nada modesto, deixa sua toca para caçar”. Jonas revira novamente os olhos. Madame embaralha as cartas de olhos fechados, mas não sem antes dizer que Jonas está à procura de um amor e um bom cargo no trabalho. O meu amigo repele dizendo que “isso todos querem”. Madame apenas solta uma gargalhada de virar o pescoço para trás. Jonas treme e enxuga o suor de sua testa. Com as cartas separadas, meu amigo tira as três primeiras que a Madame pediu, sendo estas O sol, O Louco e A Morte. As duas primeiras representando renovação, novos ciclos, sucesso financeiro, luz e calor; Jonas fez uma piada sobre a quentura do apartamen-


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to, mas somente eu ri, ele estava preocupado em relação a carta A Morte. A resposta de Madame foi vaga ao dizer apenas uma palavra: mudanças. Creusa não tinha boas previsões para mim, apenas disse que ficaria tudo bem no final. Ao sair de lá, Jonas estava diferente, pensativo e até um pouco arrogante. Eu, chateada pelo que ouvi, queria uma reviravolta em minha vida. Ele estava com uma aura de O Escolhido, dizendo para não ficar com inveja dele. Ao pegar o carro, Jonas meio que foi profetizando sobre o que iria fazer, como trabalhar mais, ficar mais perto dos amigos (na verdade ele só tinha eu como amiga mais próxima e de longa data), e até cogitou voltar com o ex-namorado. Ao me deixar em casa, ele agradeceu e foi a última vez que Jonas me chamou de amiga. Começamos um novo ano. As férias, passamos longe. Jonas foi para o estado do ex–atual-namorado, cumprimentei-o, mas ele estava meio aturdido, parecia bêbado. Me olhou e disse que o cargo sênior seria dele. Sem entender, vi que nossos nomes estavam competindo por uma promoção. Eu queria o cargo, porém não era questão de vida ou morte. No caso do Jonas, foi isso o catalizador da morte dele, e eu saí da empresa. Jonas procurou Madame e preparou os banhos que ela passou. Ele não falava mais comigo. Madame contou que ele estava esquisito e que as cartas poderiam se virar contra meu ex-amigo. Tentei contato, mas não atendia meus telefonemas e minhas mensagens. Jonas era outro, vivia cochichando, fazendo intriga. O senso de humor sumiu, fumava muito e virou um completo imbecil. Passei a pensar que o brilho que via em meu amigo não era de luz ou sorte, e sim de oleosidade e suor. Bom... ele conseguiu o cargo. Madame disse que o que vem fácil, vai fácil, e que nada produzido por efeitos de feitiços perdura. Ao alertá-lo sobre isso, Jonas me chamou de fracassada, solitária, chata e invejosa. Ele soltou uma baforada de cigarro em minha cara. Todos que ele tinha ao seu lado, eu e o namorado dele, não aguentávamos mais.

Questionei Madame sobre como fazer Jonas parar e ela foi categórica dizendo que só faltava apenas uma carta, e é inevitável fugir dela. Jonas era o verdadeiro algoz de sua própria história. Quando percebeu que não tinha competência para o cargo (seu namorado não aguentava mais ele querendo foder as pessoas), começou a perder dinheiro. Foi o ápice. Ele não aguentou. Me chamou de mentirosa e me levou à força até Madame Creusa para desfazer o suposto feitiço que armei contra ele. Chegando lá, Jonas me joga no apartamento. Ele nos acusa de ter feito algo — o apartamento parece mais quente que o normal —, ele não acredita em minha palavras e Madame diz que o único feitiço feito está ligado ao destino dele. Jonas esbraveja e nos chama de loucas, aquele cara do início, descrente, reaparece dizendo que é impossível as cartas traçarem nosso destino. Daí em diante tudo começa a sair do controle. Ele vira a mesa de cartas falando que nunca irá cair nesse tipo de armação, que, como a Madame tinha dito, ele era de Leão, um grande caçador, esbravejava em tom de deboche. Estava tão suado como da última vez que estivemos aqui juntos. Ao tentar apaziguá-lo, botando a mão em seu ombro, Jonas, furioso, empurra-me contra a mesa de velas, que caem perto das cortinas sintéticas. Mesmo sem notar, o fogo começa deixando aquele apartamento como se fosse um inferno. Tentei sair com a Madame Creusa, porém Jonas, sem controle, empurra-a. Acerto ele na cabeça com a bengala inútil de Madame, e saímos do apartamento, que queimava lentamente. Essa foi a última vez que vi alguém cumprir o destino das cartas, afinal a terceira sempre é inevitável. *Jéssica Lira, 28 anos, moradora de Santa Cruz, Graduada em Letras pela FEUC, professora. Acredita que o mundo se transforma através da educação e que a leitura abre portas para outros mundos.

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a.m.i.g.o.s. Juliana Azevedo* Fiz as contas aqui e descobri que gastei 5 dias, 16 horas e 32 minutos assistindo às 10 temporadas de Friends. Já vi tudo onze vezes, faça as contas agora. Chorei todas as vezes no último episódio. Comecei a acompanhar a série aos treze anos, quando acordava de madrugada com insônia e ia escondida pra sala. Ligava a TV bem baixinho, não entendia muito bem algumas piadas, só sabia que queria ser como eles. Imagine: morar em New York aos 24 anos, em um apartamento colorido e decorado, ser chefe em um restaurante? O sonho americano! Naquela época, parecia que seria fácil. Aos treze, imaginava o meu eu de 24 morando com as amigas que eu tinha na 7º série, uma sendo madrinha de casamento da outra. Hoje ninguém se fala mais. Aos dezesseis, jurava de pé junto que as amigas do Ensino Médio seriam pra sempre. Bom... Não foram. Hoje ninguém se fala mais também. Aos 20, me contentei com o namoro, as madrinhas do casamento a gente vê depois. Bom... É. Não rolou. Calma, ainda dá tempo. Ainda dá tempo de conhecer o grande amor da minha vida, os amigos pra dividir um apartamento, seguir a carreira dos meus sonhos e viver saltitando pelas ruas nova-iorquinas cobertas de neve. Ou talvez eu já tenha conhecido o grande amor da minha vida e nunca divida um apartamento com minhas amigas (honestamente, a cada ano essa ideia me agrada menos). Já sei que quando neva, as ruas ficam imundas e faz mais frio do que eu possa aguentar. Quanto pessimismo, não é mesmo? Pode ser que os anos projetando The American Way of Life na minha própria vida enquanto assistia Friends tenham me deixado deslumbrada demais, aí já sabe, né? A queda é grande quando a gente volta pra realidade. Monica diz pra Rachel após a coitada cortar todos seus cartões de crédito: “Bem-vinda ao mundo real! É uma merda, você vai adorar!” Talvez essa seja a maior lição que a série me deixou (e logo no primeiro episódio!): a realidade pode ser bem merda mesmo, sem graça,

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monótona, sem risadas ao fundo. As coisas não vão ser como na ficção e tudo bem. Mas, quando a realidade pesa, posso continuar sonhando com a vida que meus seis amigos levam na TV.

Ninha —Vó, vó! O que é isso na sua mão? Ela me ignorava. —Vó! Chamo mais uma vez, ela continua andando em direção ao quintal. Fico observando de longe, pois sei que se eu me aproximar ela vai ficar irritada. Lentamente ela se abaixa e joga restos de comida, que catou do ralo da pia, dentro do pote de comida do cachorro. Eu já sei que não devo confrontá-la, mas não consigo deixar de ficar irritada. Respiro fundo e jogo fora a comida do cachorro. Não é a primeira vez que coisas assim acontecem. Semana passada, ela pegou os panos de prato do varal e botou todos no armário dos panos de chão. O feijão sempre acabava queimando e o arroz ficava sem sal. Quando a vó percebia os descuidos, pedia desculpas em meio às lágrimas e soluços. Prometia prestar mais atenção nas próximas vezes. Conto à minha mãe o que aconteceu e sobre como aquela situação estava começando a ficar estranha. Não poderia ser só coisa da idade, como meus tios falavam. Mamãe escolheu acreditar neles, mas eu fazia questão de reforçar que já era hora de procurar alguma ajuda


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médica. Ela dizia que esses momentos eram pequenos e a vó logo recobrava a consciência. — Já é a segunda vez essa semana, né? Respondi que sim enquanto observava minha vó regando de novo as plantas do quintal. Hoje a memória demorou um pouco para voltar. Doía ver a vó daquele jeito, a mulher que me criou junto da minha mãe, depois do papai falecer. Agora ela mal lembra meu nome ou me confunde com uma das suas 3 filhas. “Helena? Esther? Não, não, você é a Lúcia!” “Não, vó. Sou filha da Lúcia” “Mas a Lúcia ainda é tão nova, já tem filha grande assim?” Esse era um diálogo recorrente. Às vezes eu perdia a paciência, confesso. Me sentia menos amada, menos importante, porque sempre fui a princesinha da vovó, a única neta. Mas aí ela se lembrava. Me chamava de “minha Ninha”, apelido que ela mesma inventou quando eu nasci. Eu não deixava mais ninguém me chamar assim, nem mesmo minha mãe. Dizia que iria pra cozinha preparar um bolo de milho cremoso, meu favorito. Despertei das memórias e percebi que ela tinha esquecido a mangueira ligada e quase afogado o pé de acerola. Desliguei a água e fui para a cozinha. Preparei o feijão, o arroz e o angu. Vovó não gostava de bolo de milho, então preparei um de fubá. Entendi que era minha vez de cuidar dela.

Cala a boca, Estela! “Oi, meu nome é Estela, tenho dezoito anos e essa é minha primeira vez na reunião dos Faladores Anônimos.” Não, mentira, essa instituição não existe. Mas eu sou uma Fala-

dora Anônima oficial. Amo falar. Falo pelos cotovelos, sem vírgulas e pontos finais. Adoro jogar conversa fora com desconhecidos na rua sobre coisas banais, tipo a vida e morte da minha samambaia Belô. Foi em uma dessas conversas que descobri como fazer para minhas plantas durarem mais! Sou assim desde que me conheço por gente. Mamãe conta que comecei a falar cedo e não parei mais. Conversava com qualquer um na rua, mesmo que minhas palavras não fizessem sentido. Ela era chamada pela direção do colégio desde a pré-escola porque eu nunca calava a boca nas aulas. Fui obrigada a pedir desculpas a todos os meus professores na cerimônia de formatura do Ensino Fundamental. Segui falante inclusive quando fui morar sozinha em outra cidade. Adotei três gatos e algumas dezenas de plantas. Conversava com eles todos os dias, contava as coisas que aconteciam na faculdade enquanto tomava um café ou regava as plantas. Adorava as aulas. Na faculdade a gente pode falar mais e eu era o tipo de aluna que movimentava debates sempre que possível, adorava um trabalho em grupo e apresentações para a turma toda. Mas o mundo pré-adulto não é tão receptivo com pessoas falantes. Estava estudando na biblioteca um dia quando escutei um grupo de alunos cochichando na sala ao lado. —Ela não para um segundo. Tão metida... —Toda vez que ela começa a falar, sinto vontade de gritar “Cala a boca, Estela!”. Ninguém liga para o que ela está falando mesmo... Naquele momento, fiquei em silêncio. Até então nunca havia parado para pensar que ninguém ligava para o que eu falava. Não digo isso de forma prepotente, ao contrário. Gostava de pensar nas trocas que aconteciam, nas pessoas que entraram na minha vida depois de uma simples conversa na fila do mercado, nas coisas que aprendi com gente aleatória na rua. Eu não falava só para mim porque adorava escutar o que os outros tinham a dizer. No final de semana seguinte, voltei para minha casa antiga. Não cheguei feliz, agitada, contando todas as novidades. Fui uma pessoa

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monossilábica. Passei a maior parte do tempo na varanda do meu quarto, um lugar tão familiar e que, ironicamente, já foi palco de muitas conversas e monólogos. Mas nunca tinha guardado tanto silêncio. Acho que parei para escutar o silêncio pela primeira vez ali. O barulho do vento balançando as árvores e o meu cabelo, o ronronar do gato idoso da minha mãe, alguma criança correndo para voltar para casa antes de escurecer. Sentia o vento tocando meu rosto, a temperatura caindo levemente. Fechei os olhos e respirei fundo. Conversei com a pessoa que mais se importa com o que estou falando: eu mesma. Antes, havia decidido ser mais calada e con-

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tida, mas esta não sou eu. A Estela não cala a boca. Mas o silêncio daquele fim de tarde me ensinou a apreciar o meu próprio vento balançando dentro de mim — a escutar o que eu tenho a dizer antes de falar com qualquer pessoa. Despertei da reflexão com o som de batidas na porta. Eram meus pais: — Você anda tão quieta, Estela. Quer conversar? — Preciso! *Juliana Azevedo é uma campo-grandense de 24 anos, formada em Letras pela FEUC. P ro f e s s o ra de Português e Inglês, redescobriu na Oficina de Escrita Criativa ZO o prazer pela escrita e pela Literatura.


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A fazenda dos dias Luiza Lacaille* Há seis meses não chovia na fazenda Mato Alto. A pequena horta de alfaces estava completamente seca, nada crescia. Apesar da falta d’água, o céu estava sempre encoberto por uma espessa camada de nuvens negras. Os dias e as noites estavam cada vez mais indistinguíveis, mas o calor sufocante nunca abandonou a região. Mato Alto ficava no fundo de um vale rodeado de montanhas tão altas que o vento passava por cima das terras da fazenda. O que antes protegia quem ali morava do mundo agitado de fora, se tornou uma fortaleza claustrofóbica e abafada. Diana acordava todos os dias às sete horas da manhã. Só sabia precisar a hora porque deixava seu relógio de corda religiosamente calibrado. A rotina antes tão massacrante naquele vale isolado, agora a mantinha com um pé na realidade. Tomava uma xícara de café preto e saía pelas terras verificando se ainda conseguia algum tipo de comida para as poucas cabras que sobreviviam. Caminhava devagar os dois quilômetros de chão de terra entre a casa principal e o casebre onde Tadeu se refugiara nos últimos meses. A comida era racionada, mas Diana nunca se poupou o esforço de visitá-lo. Batia a porta por educação, pois ele nunca atendia. Diana tinha certeza de que o homem estava quase surdo, mas Tadeu se recusava a admitir para ela, e para si mesmo. — Volte para casa, anda. Pare com essa bobagem. — Você não me quis mais, Diana. Não vou voltar para um lar onde não sou bem-vindo. — Somos só nós dois... se não tivermos um ao outro, teremos quem? — Se quer minha presença por piedade, prefiro não voltar. Que as coisas permaneçam como estão. Há três meses Diana fazia esse caminho na mesma hora, todos os dias. Ela alimentava a esperança que um dia a comida iria acabar, a solidão iria apertar, e Tadeu iria voltar para a casa principal da fazenda. Ao encontrá-lo, contudo, o diálogo se repetia. Ela pedia para

ele voltar. Ele recusava. A troca de palavras parecia ensaiada e, no dia seguinte, era como se tudo voltasse ao zero. Diana voltou os dois quilômetros a pé, guiando as cabras para o estábulo. Subiu as escadas da frente da casa grande, sentou-se em uma cadeira de balanço na varanda e ligou um rádio velho, também à corda. O som era o mesmo de sempre, chiado e com estática. Procurou, estação por estação, e não conseguiu identificar uma voz humana. — Essas malditas montanhas — ela pensou. — Nada penetra esse vale. Diana recostou a cabeça na cadeira e desistiu do rádio, caiu em um sono profundo e só foi acordada pelo rugir de seu estômago vazio. Na cozinha, as últimas sacas de milho e arroz foram trazidas da dispensa. Fazia sempre a mesma papa doce. Açúcar ela tinha de sobra; é engraçado como um alimento tão calórico pode ser inútil num momento de fome. Preferiria trocar os trinta quilos de açúcar acumulados por alguns de vegetais frescos e ovos. Um raio cortou o céu acima de Mato Alto e o estrondo assustou Finho, seu gato magrelo. Diana não teve medo, pelo contrário, sentiu esperança. Será que chove? – pensou ela. Colocou a cabeça para fora da janela, mas não sentiu nenhum vento correr. Não quis abandonar a ilusão de que a água finalmente voltaria a cair sobre a fazenda. Foi até o armário velho da dispensa e pegou algumas sementes, pensou em colocá-las na terra. Contudo, lembrou-se das últimas chuvas, no ano anterior; com as primeiras gotas caindo, pôs-se a adubar e preparar a terra para as hortaliças. A chuva veio e continuou regularmente por alguns meses, permitindo que as alfaces crescessem verdes e fortes. Antes que ela pudesse chamar Tadeu para ajudá-la com a colheita, um mistério: deparou-se com coelhos mortos, depois foram os esquilos, e alguns pássaros que ousavam se aventurar pelo vale. Concluiu que não poderia comer aquelas alfaces. Nada mais cresceu, nem as cenouras ou batatas. Depois disso a chuva nunca mais voltou.

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— Se chover, será veneno como da última vez — falou para si mesma. Com as sementes ainda em mãos, deitou na cama, olhou para a janela acima da cabeceira, e ficou observando os raios cortarem o céu escuro. Finho veio se aconchegar em seus braços e ela novamente adormeceu. Acordou com o barulho dos passos de Tadeu entrando pela sala. — Se assustou com os raios? — perguntou Diana. —Você acha que volta a chover? — desconversou Tadeu. — Pode ser que sim, mas não vai adiantar — ela respondeu em um tom de desesperança. Os dois não trocaram mais nenhuma palavra. Sentaram-se no sofá da sala, olhando pela janela afora. Permaneceram em silêncio por uma hora, apenas apreciando a presença um do outro. Não havia o que falar, guardavam os mesmos assuntos insípidos e ordinários para seus infatigáveis diálogos matinais. Comentavam as mesmas coisas, sem se importar com a repetição um do outro. Era um protocolo seguido fielmente talvez porque não quisessem expor o que estavam realmente pensando, talvez nem soubessem o que se passava dentro das próprias cabeças. O silêncio era tão contumaz que invadiu a existência dos dois e calou seus próprios pensamentos. Diana ainda lutava para manter os ruídos da sua mente, lia livros, buscava inutilmente alguma voz no rádio velho. Alguns dias apareciam pássaros e a jovem ficava na varanda escutando os pios e inventando conversas imaginárias. Acreditava que eram sempre os mesmos pássaros que visitavam a árvore em frente a janela do quarto, e compreendia cada pio como um contar de histórias elaboradas sobre o mundo que ela tinha abandonado fora do vale. Conversava com seu gato Finho,

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contava a ele sobre a infância, e escutava suas peripécias de caçador. Ao Tadeu restou um silêncio mais cruel. Como ele não reagia, Diana achava que ele ensurdecera. Passava por longos períodos de catatonia e, quando recobrava a lucidez, permanecia mudo, o único som que emitia eram os choros soluçantes que extravasava quando Diana ia embora. Tadeu queria falar, mas não conseguia. Não tinha forças para articular as palavras. *** Sete horas da manhã, Diana despertou e deu corda no relógio. Os raios ainda cortavam os céus. Ela achou estranho. Não sabia mais como as coisas funcionavam. Nuvens negras que não choviam, ventos que não sopravam. Um calor insuportável. Dia e noite sob trevas. Tudo estava de ponta-cabeça há tanto tempo que ela desistiu de entender a natureza.


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Entrou na casa de Tadeu sem bater e encontrou o ex-marido trocando de roupa, com o torso nu, de costas. Ficou admirada com sua boa forma, estava sadio e forte. Mais do que ela, que andava muito magra e mal nutrida. Se deu conta que as cabras sumidas não foram morrer longe do rebanho. Tadeu estava comendo a carne delas. Ela não julgou. Não falou nada. Continuou observando o lento desenrolar dos músculos de Tadeu, contemplando a plasticidade dos movimentos. Antes que ele pudesse colocar camisa, ela abraçou-o por trás. Os dois não disseram nada, ficaram ali sentindo a batida do coração um do outro, e mais uma vez o vazio penetrou seus ouvidos. Um aperto subiu pelo peito de Diana e ela chorou, soluçou copiosamente com o rosto afundado nas costas de Tadeu, que também cedeu às lágrimas. — Volta pra casa. — Só quando você me amar de novo – respondeu Tadeu. — Eu te amo. — Prova. — Provo. *** Acordou, tomou café. Fez uma papa de arroz e milho e levou para as cabras. Foi até o casebre. Encontrou Tadeu remexendo a lenha no quintal atrás. Sem falar nada, ajudou-o a levar os pequenos troncos de madeira para dentro da casa. — Levamos esses para a casa grande. Essas sacas também — indicou Tadeu. — Tenho sacas suficientes — respondeu Diana. — Vai chover em breve. Tadeu não precisou dizer mais nada. Diana foi até o quarto dele e juntou as poucas mudas de roupa em um saco. O rapaz arrumou tudo em um carrinho de mão. Diana levou as roupas de Tadeu em suas costas. Demoraram mais tempo que o normal para percorrer o caminho. Foram parando e descansando. Notavam as árvores que se apressavam e morriam antes que a chuva chegasse. Passaram pelos buracos que borbulha-

vam uma água espumante. Sentiram um vento correr, se entreolharam e apertaram o passo. Ajeitaram os mantimentos na cozinha, colocaram os troncos secos do lado do fogão a lenha. Diana foi procurar Finho para se assegurar que ele estivesse abrigado da chuva. Tadeu inspecionou cada cômodo da casa, trancou portas e janelas. Sentou-se no sofá da sala escura. Diana desceu as escadas com o gato em uma mão e uma vela na outra. Os dois se acomodaram no sofá enquanto a chuva caía com a ferocidade de uma tempestade de verão. Diana falou, Tadeu falou. Recordaram a vida de casados. Relembraram como era o mundo antes de todas aquelas nuvens negras. — Eu te amo — disse Diana. — Eu te amo — respondeu Tadeu. — O que será que aconteceu? — Com a gente ou com o resto do mundo? Diana permaneceu calada, as duas coisas a intrigavam. Lembrou–se do casamento, das brigas, das acusações, da fuga. Ela não perdoou Tadeu por sua traição, se afastou durante anos, retornou a fazenda apenas quando seu pai deixou o mundo dos vivos. Tadeu cedeu a casa principal à ela e isolou-se no casebre. Quando Diana percebeu-se disposta a perdoar, foi Tadeu quem não quis voltar. O céu do dia virou noite e o jovem alegre se tornou distante e obscuro. Não era orgulho que o acometia, não queria ser perdoado. Queria ser desejado novamente. —Acho que acabou — respondeu Tadeu. *Luiza Lacaille é nascida e criada em Campo Grande, Rio de Janeiro. Formada em Relações Internacionais, ama escrever, cantar, atuar e tocar maracatu no Baque Mulher ZO. É professora, tradutora e intéprete nas horas vagas.

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Azul Tiffany Marcia Mynssen* A vida anda mesmo complicada para quem não fala uma língua estrangeira. Hoje em dia, as pessoas não estabelecem mais uma conexão; elas linkam. Se você quiser encomendar seu almoço, esqueça a entrega em domicílio: agora você pede um delivery, de preferência pelo portal — quero dizer, site — do estabelecimento. E por aí vai. What ever. Se a coisa está difícil para quem é descolado, imagina para aquela senhorinha do interior, que deixou seu torrão natal a pedido da irmã viúva que precisava de companhia. Costureira de ofício, na sua cidadezinha era bastante requisitada pelos moradores. Seu estoque de tecidos era suprido por um mascate que aparecia regularmente na cidade, e dessa forma ia dando conta das encomendas dos clientes. Assim que chegou à cidade, a senhora pendurou no portão a sua antiga placa onde se lia a palavra costureira, sem entender a insistência da irmã em substituir por ateliê, se ela nem sabia o que isso significava. Aquela rua de passagem cruzando o bairro de subúrbio prometia uma boa clientela. Passo seguinte, dirigiu-se à loja de tecidos mais próxima para adquirir alguns tecidos. — Moço, o senhor tem musseline vinho? — Não, senhora. — Mas aquele ali não é vinho? — Não, senhora. Aquele é marsala. — Marsala? Onde já se viu um nome desses... Tá bom, me veja um metro e cinquenta, por favor. E popeline azul turquesa, você tem? — Tenho não. Mas tenho um bem chegado, azul Tiffany. Esse aqui. — Ahn? Azul o quê? Meu rapaz, essa cor se chama turquesa desde que você usava fralda! Mas vá lá, corta dois e vinte desse tal de tífane mesmo. Pra terminar, me veja por favor dois metros de tecido pra forro num tom de bege. — Bege, senhora? A senhora quer dizer nude? — Que isso, moleque! Quem está nua aqui? Você me respeita, viu, que eu tenho idade pra ser sua avó! O vendedor, encabulado com o pequeno

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público que se formou em volta da cena, terminou de cortar os tecidos e entregou a nota à estranha cliente. A senhorinha, indignada, saiu da loja com seu embrulho debaixo do braço e seguiu pensativa rua afora. Talvez fosse a hora de aceitar a sugestão de seu neto e abrir uma conta nesse tal de Pinterest.

Fé Próxima partida para Santa Cruz às 17:22. Dá licença, senhor, esse vagão é o feminino. Não, não sou idosa. Como quiser. Desculpe incomodar o silêncio da sua viagem. Salaminho, iogurte, torcida, vai água, vai água. Senhores, há um ano atrás eu não estaria aqui falando com vocês. Não dá pra sair daqui não. Calma, calma. Cinquenteum. Verdade, esse ano passou voando. Dezembro não, tem mais assalto. Claro, claro, entendo. Pra você também. De novo a mesma coisa, mas tudo bem, se não for é pior. Fogos. Neste momento a Avenida Brasil encontra-se parada sentido Zona Oeste. O tarifa é mais rápido. Perdeu, perdeu. Todo mundo no chão agora. Cinquentedois. Inhoaíba, Inhoaíba, não, Inhoaíba, Inhoaíba, não, pô, já falei. Almuoço, almuoço. Casa Azul, Casa Amarela. Vai ótica, vai exame de vista. Dentista, senhora, orçamento grátis. Paçuoca, paçuoca. Volta, volta que é arrastão. Cinquen-


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três. Sim, mais uma noite sem dormir. Fazer o quê. Já, já pedi mas não adianta. Abaixa o volume uma porra, os incomodados que se mudem. Anota meu novo endereço. Menos, mas tem barulho também, só nos dias em que tem baile, chão, chão, chão. Cinquentequatro. Eu já falei quantas vezes, será que estou falando russo. Queria muito ir mas já tenho duas festas nesse dia. Eu sei, eu sei. Não, ainda não terminei de ler, é muito compromisso pra dar conta. Como um malabarista equilibrando pratos. Ou como Tom, a gente vai levando, a gente vai levando. Cinquentecinco. Setor de pensão e aposentadoria, terceiro andar. Não tem problema, eu volto na semana que vem. Uma passagem, por favor. Não, só de ida mesmo. Sim, já cruzei a divisa. Daqui a pouco tem montanha, o sinal vai cair. Previsão do tempo céu claro a parcialmente nublado. A época é boa para o plantio de milho e quiabo. Na próxima semana tem início a vacinação contra aftosa. Quem vai descer em Santa Fé, é a próxima parada. C_h_e_ g_a_n_d_o, C_h_e_g_a_n_d_o, Chegou. Silêncio. Terra. Silêncio. Chão. Silêncio. Fé. Ali. Cidade. *Marcia Mynssen é formada em Serviço Social com Especialização em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes. Participante da Oficina de Escrita Criativa ZO. Apaixonada por ler desde criança. Continua tentando entender o mundo através dos livros.

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Vida que segue Melaine Machado* Terceiro furo, sacanagem. Mia ficou tão decepciona com Fred que partilhou com Fabi seu descontentamento. A amiga fiel ficou impressionada com o comportamento dele e a orientou a se posicionar. Mia tinha dificuldade de se impor, mas estava evoluindo. Até deu esporro no motorista do Uber quando errou o trajeto; outra vez ameaçou um sujeito que lhe deve dinheiro dizendo que entraria na justiça contra ele. Fabi a fez pensar no assunto Fred com clareza. Ele não respondeu à mensagem de Mia, e se ficasse esperando-o, teria perdido um sábado à noite maravilhoso com as amigas. Na madruga, quando religou o celular para verificar a hora, visualizou a mensagem dele no grupo de trabalho e não respondeu. Lá ele justificava sua ausência. Mia considerou imaturo o comportamento dele. Uma e meia da manhã e Fred estava online. Mia enviou a seguinte mensagem: Bom dia, Fred, estou decepcionada com você e é a terceira vez que fura comigo. Você sabe que tenho que me organizar para passar a noite fora, poderia ter me avisado. Vida que segue. Há uns quatro meses Mia conheceu Fred

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em um almoço de trabalho. Mia gostou de conversar com ele porque encontraram muitas afinidades. Após o almoço, foi para uma reunião e o perdeu de vista. Algumas semanas depois encontraram-se. Ela necessitava resolver uma questão com urgência e pediu ajuda a Fred, que prontamente a orientou e deu seu contato para saber se tudo correu bem. Deu tudo certo e ela nem se deu ao trabalho de informar. Na mesma semana tiveram uma


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reunião sobre um evento de trabalho juntos. Conversaram bastante, deram muitas risadas e o assunto sexo caiu em pauta. Mia está separada há dois anos e divorciada há um. Sua vida sexual é secretíssima, todos que gostam dela querem que ela saia com alguém e pensam que ela e Fred têm tudo haver. Mia, por sua vez, saiu com o cara que a deve dinheiro e se decepcionou. Fred é muito interessante aos olhos de Mia, um homem admirável, muito culto, viajado, solicito, sedutor, divertido e às vezes egocêntrico e pernóstico. Ela é inteligente, gosta de arte e cultura, igualmente viajada, muito séria, simpática, calma, amorosa com todos e um tanto tímida. Um dia Mia enviou um vídeo para Fred e de lá para cá não pararam de se falar via WhatsApp. Ele gostou do vídeo e a respondeu dizendo que não tinha o contato dela, e enviou uma sutil cantada. Ela descartou. Isso mexeu com ela. Mia ficou lembrando os momentos lúdicos da última reunião juntos. Falou para ele que estava lembrando dos lugares incomuns que conheceram e que não existiam mais. Ele enviou uma música para ela e a convidou para ir à um clube de Jazz. Ela aceitou, mas nunca foram. Falavam de política, religião, filosofia, economia, artes plásticas e literatura. Passavam horas papeando quase todos os dias. Ele tinha como objetivo seduzi-la e ela já estava aos pés dele, mas como não queria se enganar mais uma vez, se fazia de desentendida. Mia pensava nos colegas de trabalho e na reputação, no filho, família, e que estava amando a vida livre sem ter que dar satisfação a ninguém. Outro dia ela estava entrando no banho. O celular tocou e Mia atendeu correndo pensando ser sua mãe, que a guardava para almoçar, porque todo fim de semana o filho de Mia fica na casa do pai em outro bairro. Ela fica livre leve e solta aos fins de semana, sai com as amigas para dançar, vai ao cinema, exposição, teatro, faz bolo de fubá, recebe as amigas para um cappuccino, são suas especialidades. Dizem que ela cozinha muito bem e o Fred sabe disso. Ela vive, se diverte, dá curso, faz curso, faz evento, só não gosta muito de festa e ficar

quarando na praia. Na praia ela prefere surfar, andar de Stand Up Paddle ou mergulhar. Alô, Fred, tudo bem com você?, ele havia ligado para falar de um artigo que ela não comentou. Ele adora cobrar coisas dela e ela tem muita paciência com ele porque às vezes fala demais e cansa os ouvintes. Ela confessou não ter lido e pediu para falar sobre. Fred, como sempre, deu uma aula. De repente ela se toca do almoço com a mãe, fala para ele que está nua na cama porque estava entrando no chuveiro quando recebeu a ligação, aí desliga o telefone. Quando saiu do banho viu um texto dele. Ele falava da nudez, do kundalide, do sexo tântrico. Ela deu gargalhadas e enviou esses ícones de risada do WhatsApp. Ele respondeu sério. Mia falou que praticava yoga e conhecia o kundaline. Ela disse que através da kundaline descobriu o verdadeiro significado da prática sexual. Ao se despedir, disse que iria pesquisar sobre sexo tântrico ou massagem tântrica e foi almoçar com a mãe. No dia seguinte, mais um texto enorme dele. Esse era uma aula sobre sexo ou massagem tântrica e, no final, um convite para praticarem juntos. Ela realmente ficou impactada com tamanha ousadia. Fabi foi a primeira e única a saber da proposta. A amiga disse que outra amiga havia feito a massagem tântrica e a experiência foi sublime. Mia leu uma duzentas vezes o texto. Pensou um milhão de coisas e tomou a decisão às dez da manhã após por seu filho ir para a escola, pois precisava estar sozinha. Ela diz que funciona melhor sozinha, que muita gente a atrapalha. Seu filho sai de casa geralmente às nove da manhã porque estuda em regime integral no colégio pré-militar. Mia é supermãe, se dedica na educação, na boa alimentação, incentiva seu filho a ter autonomia e ao empreendedorismo. Sempre que chega do treino prepara o café da manhã dele e o ajuda a se arrumar. Mas, naquele dia, ela estava meio confusa e irritada que nem o levou à portaria para pegar o transporte escolar, brigou com o menino sem motivos. Enfim sozinha, pegou o celular e ligou para Fred. Deu bom dia e marcou no sábado à noite. Ele a pediu para não comer nada

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pesado antes. Ela propôs ficarem de quinta-feira até sábado sem comer carne vermelha; ela meditou três vezes ao dia e ficou sem comer carne de qualquer cor daquela terça-feira até o dia marcado. Só a Fabi sabia. Ela pediu que ele a surpreendesse, depois se sentiu muito insana. Conversava sozinha, diariamente, no espelho do corredor dizendo você não paga para fazerem massagem em você para relaxar, então pensa que esse é um presente e que o massagista é um homem e ponto final. Sábado pela manhã fez as unhas, os cabelos, e se depilou. Fez tudo em casa. Preferiu não investir um puto nessa maluquice. Vai que dá merda. Se ele fura, saio linda com as amigas, ela pensou. Se falaram a semana toda. Ela sentia que ele estava bem preocupado e Mia foi ficando mais tranquila e preferiu se divertir, aliás quem não se arrisca não petisca. Sempre teve vontade de usar um vestido lindo branco e uma lingerie branca de renda italiana para um encontro. Usou óleo essencial de lavanda e jasmim indicado por sua aromoterapeuta, fez uma maquiagem básica, trocou de bolsa para combinar com leveza da roupa e pois tudo que precisava ali dentro. Fred ligou quando chegou na portaria. Mia desceu, encontrou-o, entrou no carro e seguiram conversando sobre coisas íntimas, particularidades que ainda não conheciam um do outro. Ela gosta do cheiro dele misturado com charuto, ela não tem tatuagem, ele tem várias, ela só tem um furinho básico nas orelhas, está na menopausa há cinco anos e descobriu o prazer sexual agora. Antes tarde do que nunca. Ele não gosta de Motel, por isso reservou um Hotel na Barra. Estacionaram o carro. Ele deu a mão à ela e entraram como um casal. Ela achou curioso e gostou da atitude. Ao entrarem no quarto, gostaram do que viram. Ela sentiu-se tranquila, acendeu o incenso de jasmim, bebeu água e ele ajustou a música, passou as instruções do que iria acontecer. Ainda vestidos, ficaram um de frente ao outro, olhos nos olhos, um sentindo a respiração do outro, seria o dia do tudo ao mesmo tempo agora, primeiro beijo e etc... Foi uma experiência fantástica para ambos,

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dormiram abraçados e extasiados. Após o café da manhã, antes de irem embora, repetiram a experiência. Depois tiveram uma outra oportunidade promovida por ela. Ele dá satisfação de tudo que faz para ela. Diz que quer de novo, mas marcou três vezes e furou. Ela se posicionou: gosta de fazer sexo com ele e só quer curtir, não quer se relacionar de forma convencional agora. Ele se diz canalha e não quer magoá-la, mas nas últimas semanas se declarou após ela não dar importância ao que viveram. Na real, ela quer repetir a dose e ele fica de mimimi. Que venha o próximo. *Melaine Machado é Profissional de Educação Física, Psicomotricista, Psicopedagoga e Especialistas em Atividade física para Pessoa com deficiência. Presidente da Comissão CREF1 Regional Campo Grande. Foi professora universitária por 12 anos, Coordenadora da Educação Física Adaptada do Centro Esportivo Miecimo da Silva e desenvolvedora do Brincar Sensorial. Escreveu para o Coletivo Pitacaria sobre desenvolvimento da criança (2017/2018) e para o Conecta CG (2018/2019), na coluna Mulher.


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Sonhos incessantes Rafaela Cardoso* Me chamo Flora e vivo com meu namorado em uma pequena casa alugada no subúrbio da cidade grande. Sou professora, e o Samir, artista plástico. Tenho 34 anos, enquanto ele, com seus cabelos grisalhos, ostenta as marcas da idade e em duas semanas completa 42. Nesse espaço que dividimos a vida, também dividimos sonhos, esses disputados diariamente com a rotina — que na maioria das vezes os ganha. Samir, contudo, sai em vantagem. Por ter menos trabalho, ele consegue voltar para casa mais cedo e se debruçar sobre seu sonho. Eu, por outro lado, tenho os finais de semana todos para mim, quando sobra tempo depois dos inúmeros trabalhos que levo para corrigir em casa. Ontem, quarta-feira, foi um desses dias em que Samir passou a noite insistindo em produzir mais artes. Por isso, hoje muito cedo, quando a luz invadiu nosso quarto, abri os olhos preguiçosamente e acordei com ele debruçado na escrivaninha sobre uma folha e várias canetas. Gostaria que hoje fosse feriado, assim ele poderia descansar um pouco mais, e eu, quem sabe, conseguiria transformar o branco da folha de papel em algo que fizesse sentido, mas, como diz o ditado “o dever chama”. Então, mesmo hesitando por alguns minutos, enquanto curti o tempo a olhá-lo ali, obstinado, vestido como eu gosto, com aquela camisa velha, vermelha xadrez que deixa os braços à mostra, vencido pelo cansaço, tive que acordá-lo porque a hora não perdoa nem o cansaço. Sono pesado, mesmo chamando-o insistentemente, ele apenas movimentou as mãos, marcando com tinta nanquim os papéis que ele se debruçava desde que pegou no sono. Insisti em chamá-lo, até que, assustado, levantou-se perguntando sobre a hora. Para meu deleite, a manhã era o momento do dia em que eu tinha mais prazer em admira-lo, cabelos despenteado, cueca box branca e a mesma barba mantida desde que nos conhecemos, há cinco anos. Sorrindo, percebeu que eu o observava, mirando especialmente todas as partes do corpo dele que estavam nuas, pescoço, braços e pernas.

Persegui o contorno de cima até a ponta dos pés, que tocavam nosso chão de taco. Em cima da hora, trocamos sorrisos e alguns beijos e voltamos à rotina matinal. Ainda não havia comido nada e ele precisava tomar banho. Diferente dele, eu não tinha carro, por isso, precisava sempre sair antes de casa. Durante o percurso, percebi que o tempo estava virando. O céu nublado anunciava uma chuva forte. Desejei naquele instante que eu e os alunos conseguíssemos chegar na escola antes do temporal desabar sobre nossas cabeças. Como de costume, vinte minutos antes da aula começar, estou na escola, em minha sala, cheia de tudo que me lembrava trabalho, contudo, um único objeto destoa dos demais naquele espaço: o quadro que Samir pintou para mim dizendo que era para quebrar a rotina e a falta de vida daquele ambiente com aparência quase hospitalar. Ele conseguiu, porque aquela pintura, cheia de cores, símbolos e vida, era como um convite a não se perder em meio à rotina. Sempre que me faltava esperança e alegria, aquela imagem me resgatava para um local cheio de árvores frutíferas, uma praia calma na hora do pôr do sol e uma rotina leve quase desconhecida de quem vive na cidade. Ele era um ótimo artista e sonhava em ser reconhecido, mas não apenas por mim, que o amava. Por isso, todos os dias, penso como poderia ajudá-lo a realizar esse sonho. Meu artista queria ir além do convencional, e para isso, precisava aparecer mais, sair do lugar comum, se arriscar em outros lugares, para outras pessoas, assim como eu. No mesmo instante que o sinal bateu, me trazendo à realidade, a chuva caiu, majestosa sobre tudo que estava descoberto. Alguns alunos atrasados foram pegos sorrateiramente pela chuva; o aguaceiro deixou sua marca em tudo que conseguiu tocar, cabelos, roupas, plantas e no chão formando grandes poças de lama. Os dias em que a natureza pega as pessoas de surpresa costumam ser mais lentos, longos. Posso ver isso nos olhos de cada aluno sentado à minha frente, eles anseiam pelo final

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da aula ou, quem sabe, até do dia. Quando a hora mais esperada chega, não são apenas os estudantes que vibram, admito que as horas vagas são necessárias, principalmente para quem está em busca de uma boa história para contar. No caminho de volta para casa, mesmo percurso de trem lotado, contudo, uma surpresa: recebo uma ligação de uma amiga querida convidando eu e Samir para um festival no próximo final de semana. Na mesma mensagem ela diz que não tem desculpas, de jeito nenhum aceitará um não como resposta porque era um evento com a nossa cara. Não teve como dizer não, e para ser sincera, a gente está mesmo precisando relaxar, sair da rotina de verdade. Tudo planejado, final de semana chegou para nossa alegria e desespero. Uma mistura de emoções e energia nos envolvia naquele instante em que trancávamos a porta de casa. O céu convidativo, na hora mais linda do dia, ostentava o crepúsculo que abria nossa aventura. Deveríamos estar felizes porque precisávamos daquele momento, mas eu estava tensa, cheia de trabalhos para corrigir para próxima semana, e Samir não queria perder nenhuma possibilidade de inspiração; decidiu ir preparado, viajou com todo seu material de arte. Carro na estrada, fomos para o festival que nem havíamos pesquisado sobre o que era, afinal como fomos silenciados em nosso direito de escolha, preferimos nem investigar. Seriam duas horas e meia de viagem e o destino era Mariana, aquela cidadezinha que mais parece poesia do que cidade de fato. Eu não conhecia o lugar, na verdade, com tão pouco dinheiro e sem tempo, quase não conheço nada. Então, se o festival não render, tenho certeza que a cidade não nos desapontará. Eram nove e meia da noite quando chegamos e a cidade estava lotada. De longe ouvíamos a música alta e logo deduzimos ser um festival de música. Rapidamente nos olhamos e, sorrindo em movimento positivo com a cabeça, festejamos a imposição da minha amiga para estarmos ali. Ansiosos para aproveitar cada segundo daquele festival, corremos até a casa dos amigos da minha amiga, deixamos nossas coisas, e fomos depressa na direção das músicas que toca-

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vam na praça. Ao nos aproximarmos do local onde todo evento estava organizado, haviam artes e poesias espalhados por todos os lados. Arrebatados, ficamos divididos entre pousar em cada parte de todo aquele festival ou seguir até o palco onde tocava uma infinidade de ritmos da musicalidade popular brasileira. Tudo estava tão perfeito que mais parecia um sonho, desses que nos faz menos humano e mais espírito. Olhamos um para o outro e nos perguntamos como podíamos não saber que algo tão incrível como aquele evento estava acontecendo? Vai ver tem coisa que não é mesmo pra gente saber, disse eu querendo fugir da realidade, da rotina dura que roubava nossos sonhos. Quando cansamos, bem tarde da noite, Samir havia apreciado a delicadeza da maioria dos quadros que os artistas expuseram, enquanto eu viajei de uma leitura a outra trocando sorrisos e gratidão com cada pessoa que abriu sua alma, despida de medos e preconceitos, e deixou a voz interior falar palavras que fizessem sentido nos outros. Caminhamos em silêncio ao alojamento e, quando chegamos, nos deparamos com a galera ainda conversando. Enfim pude abraçar forte minha amiga Elis e agradecê-la por ter decidido aquele final de semana por nós. Mais do que isso, ela nos apresentou ao organizador do evento, que havia ouvido sobre mim e Samir, e ele nos desafiou a produzir algo para expor no próximo ano. Sem reação durante alguns minutos, Samir e eu não queríamos acordar daquele dia, daquela vida, daquela escolha que, ao fazerem por nós, quebraram a verdadeira rotina que nos impedia de realizar nossos sonhos. *Rafaela Cardoso é de Santa Cruz e atualmente estuda na UFRRJ. É resiliente e atenta aos problemas sociais e ambientais. Gosta de fotografia, séries, natureza, crianças e por último mas não menos importante, ler e escrever, um gostar que tem reconstruído com afeto e novas leituras junto à oficina.


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Passagem Ruth Justiniano* Mais um dia amanhece e começa a minha jornada. Meu nome é Rita, sou bancária e estudante da Universidade Federal Fluminense. São quatro da madrugada. Acordo com o sussurro do meu nome na porta do quarto que divido com Laura, minha irmã mais velha. Minha mãe volta pra cama, mas antes havia preparado o café. Tomo banho, tomo o café, e parto com o dia ainda escuro e o frio da madrugada. Consigo embarcar no ônibus 390 — Passeio/Sepetiba, lotado, às seis e cinco. A Avenida Brasil com o trânsito intenso pela manhã e o motorista correndo como um piloto de fuga na faixa expressa. Ele cantava e batucava no painel como se estivesse na mesa de bar, contudo, acima dos 80km/h. Ufaaaa!! Cheguei são e salva na agência bancária onde trabalho, no Centro, às 7:40h. O trabalho transcorria bem. A secretária do Gerente Geral da agência, chamada Vera, pediu para eu levar umas fichas de clientes no terceiro andar. Lá vou eu de novo para o terceiro andar. En-

quanto conversávamos detalhes do trabalho, ocorria um assalto no subsolo da agência onde ficava o meu setor. Desci as escadas correndo. Cheguei ao subsolo ofegante e curiosa. Notei o nervosismo e até choro de alguns colegas. Peguei um copo d’água para a Glorinha, que estava transtornada, e ela me falou com detalhes do ocorrido. Agradeci a Deus pelo livramento. Terminou o expediente à uma da tarde e parti para a estação das barcas na Praça VX de Novembro. A embarcação, repleta, seguiu viagem rumo à Niterói. Era um lindo dia de sol e éramos acompanhados por um cardume de golfinhos no meio do caminho. Fiquei no vão no meio da barca, fechado somente por uma corrente, em pé com o vento batendo no rosto. Que gostoso sentir o vento observando a paisagem do Rio se afastando, o cardume e o cheiro do mar. *** A barca mal encosta na cabeceira e as pessoas pulam até ao píer e andam apressadamente. Corro com elas segurando nas alças da minha mochila. Logo na saída do terminal das barcas avistei uma confusão na frente de uma lanchonete. Havia um falatório e uma mulher, inconformada, bravejando ao policial. — É só uma criança! Olhando com mais atenção avistei um menino pretinho, franzino, aparentando ter oito anos. Semblante triste. Cabeça baixa e olhos negros

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fitos no chão. Nesse momento o policial segurava-o pelo braço. A mulher falava que ele tinha fome. — Quem rouba um galeto rouba muito mais! — Disse em alto tom o funcionário da lanchonete, furioso. A multidão se aglomerava curiosa. A mulher, indignada, bradou: — Eu pago!!! E embrulha para presente!!! A multidão aplaudiu e apoiou a atitude. Eu fiz o mesmo. O funcionário da lanchonete embrulhou o galeto e entregou para a mulher, que presenteou o menino. O povo comemorava o desfecho do acontecimento pegando o garoto e levantando nos braços. Muitos aplausos na entrega. O menino, com um sorriso enorme, agradeceu, colocou o embrulho embaixo do braço e saiu correndo para o seu destino. A multidão se dissipou e eu segui meu rumo, com a alma lavada, ao campus da UFF no Valonguinho. *** O relógio marcava 14:15h quando cheguei ao prédio de Química, que fica numa ladeira, para mais um dia de aula. Estava tensa porque teria uma prova de Química Inorgânica. Tinha passado a noite sem dormir estudando para essa prova — bebi guaraná com ginseng para me manter ligada. Tive aula de Química Orgânica e Geral. Às dezoito horas a Polícia chegou e mandou evacuar o prédio porque a delegacia tinha recebido uma ligação de que havia uma bomba escondida e ela iria explodir. Desci correndo as escadas. Ficamos aguardando os policiais, mas foi confirmado de que se tratava de um trote. A Polícia disse que iria a fundo na investigação do caso e que o autor seria punido nos rigores da lei e liberou o prédio da interdição. O coordenador foi levado para a Delegacia para prestar depoimento. Acho que vamos sofrer retaliação, pensei. Minha prova estava marcada para oito da noite. Entrei no prédio com colegas até à sala, no terceiro andar. Começou a prova. Qua-

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renta minutos depois, quando muitos alunos haviam entregue as provas, ouvi muitos apitos de navio vindos do meio da baía da Guanabara. Achei estranho, mas continuei meu teste. Como fui a antepenúltima, tive que ficar e aguardar os outros dois alunos. Saímos juntos em direção às barcas para retornarmos ao Rio de Janeiro. *** Passamos pela praça do Valonguinho e avistamos uma barca tombada de lado, iluminada pelos holofotes da orla. Parei um homem vindo do terminal e perguntei o que tinha acontecido. Ele informou que um navio cargueiro bateu na barca no meio da baía. Agora entendi o motivo dos apitos insistentes durante a prova, eram pedidos de socorro do navio ou da barca. Seguindo para os guichês de embarque, encontramos pessoas chorando ou em abraços solidários. Outros, apressados, furtavam coletes salva-vidas abóbora da barca que resgatou os náufragos. Os demais colegas seguiram para os seus ônibus e eu fui para o terminal de embarque. Ambulâncias estavam paradas ao redor com luzes frenéticas. Peguei a última barca rumo ao Rio de Janeiro. A rampa metálica da entrada estava molhada, assim como o piso de madeira. Haviam boias penduradas e os nichos onde eram guardadas, estavam abertos. A desordem denunciava o resgate das vítimas. Sentei no banco em frente a uma senhora morena e obesa que estava abraçada à um rapaz loiro de, no máximo, trinta anos. Ambos choravam. Perguntei se eram parentes e eles negaram, apenas se conheceram no acidente e resolveram voltar ao Rio. No meio da baía, bem tarde da noite, eis que se ouve um grito. — Homem ao mar!!! Homem ao mar!!! Homem ao mar!!! Era o marinheiro da barca correndo para frente. O capitão anunciou no alto-falante que retornaríamos para buscar o homem que acabara de se jogar nas águas. A barca ligou o farol dianteiro e começou a fazer a manobra de retorno.


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Os passageiros e a tripulação procuravam pelo homem até que um passageiro avistou braços desesperados batendo na água — a espuma branca sobressaia no rastro de luzes da Ponte Rio-Niterói. A barca seguiu até o homem. Um passageiro tirou o paletó preto, o sapato, gravata, deixou tudo junto com sua maleta preta no banco, pegou uma bóia de emergência e se jogou no mar. Nadou e resgatou o homem. O marinheiro e o passageiro fizeram o primeiro socorro retirando água dos pulmões e virando o homem de lado. O homem retomou as forças enquanto as pessoas em volta suspiravam aliviadas. Quando o passageiro retornou ao banco onde tinha colocado seus objetos e paletó, percebeu que a sua maleta tinha sido furtada. — Meu Deus!!! — Surpreendeu-se o marinheiro que estava perto. Todos, indignados, começaram a procurar pelos cantos da barca, mas infelizmente não encontramos nada. Chegamos no terminal da Praça XV de Novembro com atraso de trinta minutos. Os passageiros foram apressados para seus ônibus. Eu perdi o meu. O medo tomou conta de mim e andei, mais rápido que pude, meio quilômetro até o terminal da Coderte e peguei um ônibus mais caro com ar condicionado. Era a única opção após as onze da noite.

minutos depois reconheci a fachada do Clube dos Aliados. — E agora? — Imediatamente pensei em descer, mas estava tudo deserto. Resolvi seguir para o centro do bairro. Peguei uma kombi de volta que fazia o trajeto Campo Grande-Mendanha. No ponto final, pessoas esperavam impacientes a saída do transporte alternativo. Um vigia, duas enfermeiras, um garçom, três músicos de um grupo de pagode que tocava num barzinho da esquina e eu, éramos o elenco de passageiros. Voltei. Avistei o meu pai em pé na esquina da Av. Brasil com o Rex me esperando. —Tudo bem? — perguntou meu pai. —Tuuudo bem! — respondi. Segui o caminho de casa em passos mais calmos e cansados, ouvindo os sapos, grilos e galos cantando na madrugada fria de céu estrelado. Comentava com papai sobre o inusitado dia. Finalmente em casa, tomei banho morno. Fiz um lanche. Acordei. *Ruth Cristina Justiniano de Araujo é Pedagoga e Professora de Educação Infantil no Espaço de Desenvolvimento Infantil Professora Enyr Portilho de Avellar.

*** Aliviada da tensão das ruas desertas do Centro, embarquei no ônibus que seguiu pela Avenida Brasil, na linha expressa, até ao bairro de Campo Grande. Com o corpo cansado, encostei a cabeça na poltrona, lembrei dos momentos que passei durante o dia, e cochilei. Meu pai, sempre companheiro, estava preocupado com a hora porque eu não chegava. Botou a corrente na coleira do Rex — um vira-lata pequeno de pelagem curta e amarela — e foi me esperar com o cão na Avenida Brasil. Ambos viram meu ônibus fazer a curva para pegar a estrada do Mendanha. Eu estava dormindo perto da janela. Acordei com a curva, mas não reconhecia o local. Estava atordoada,

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Recorte de uma espera Thássio Ferreira* Soube que vais voltar. E poderia mesmo não escrever mais nada. Declarar, apenas: vais voltar. Sem nem ao menos a honestidade de explicar-me. Pois quando compreendi a notícia, foi como se nada mais eu processasse: nem como soubera; nem o que pretendia com esse sol que me luzia ardentemente, ofuscando tudo o mais. Declarava-se em mim, apenas: vais voltar. Era tudo, e não havia o que mais dizer por instantes incontáveis. Porém mesmo sem que eu os contasse, passaram esses instantes em que havia tão somente aquela compreensão nua e pura de um fato. Então, como se os raios desse sol — vais voltar! — alcançassem e energizassem ao mesmo tempo inúmeras partículas do que sou, transbordei-me em movimento turbulento de ti em mim, rodopiando, em vagas: tu em mim. Fragmentou-se em implicações infindas a força daquele sol que durante imprecisos momentos estancara a contagem do tempo, e agora eu queria, ainda que tremendo: tentar descrever a agitação em que eu me pusera. Porque me encontro quando (d)escrevo-me. E transbordando como eu estava do que em mim reflete a ti, corria o risco de me perder indefinidamente. Passei, pois, a tentar identificar e organizar o tanto que em mim se agitava. Respirei fundo e repeti com lentidão, como ponto de partida, dando a cada fonema o peso de uma certeza: vais voltar. E daí? Primeiramente, instintivamente, pensei assim: tu, com quem sonhei tanto, vais voltar. Não uma consequência, mas uma memória. Sorri. Porque ter sonhado contigo, assim tanto tanto tanto, me fazia tão feliz e era de grandeza tal que se agregava ao conhecimento da tua volta antes de qualquer outro pensamento. Voltará alguém com quem sonhei: era morno isso. Ainda saboreando essa memória, tanto e tanto, lembrei-me porém que não fizera planos desde a última vez em que te vira. Concretos. Com a calma possível, naquela agitação que em mim fremia, procurei dissipar

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o sobressalto desta aparente contradição, re reconciliei, com inocente dignidade, as duas constatações que ora se chocavam, ora se encadeavam: sonhei tanto! E não planejei nada! Tudo bem. Não era tempo, ainda. Era tempo dos sonhos, antes: devaneios, apenas, imaginares. Mas agora! Agora... E agora? É importante manter a clareza e exatidão das coisas, eu me disse, ou toda esta dança de ti em mim vai me enlouquecer. Não há projetos a retomar, certifiquei-me. Muito bem: apertei o maxilar para me concentrar. Podia avançar outro passo na construção que eu tentava do discurso da tua volta, alinhando, com a dificuldade de quem se contém, toda aquela desordem que latejava em minha carne. Eu tentava estabelecer com sólida racionalidade em que posição tinha mantido a ti no horizonte do que me ocupa: desde quando nos conhecêramos até aquele momento. Para reposicionar-me perante o deslocamento que tu, aqui!, representava nesse horizonte. Isso? Isso. Mas enquanto essa parte de mim que é a necessidade de manter-me lúcido buscava construir uma arquitetura de lógica e solidez em torno desse sol que todo me desordenava, irradiou-se no meu corpo um arrepio de ânsia por aquilo que de incerto (e talvez feliz!) temos à frente, quando uma mudança qualquer se encaminha, e cortou-se o discurso linear que eu tentava, como numa explosão: VAIS VOLTAR! (— vinha-me novamente). E pouco importava então a conciliação que eu pudesse conseguir das forças que eram tu-em-movimento-em-mim: turbilhonavas-me vez mais. Caoticamente assim o conhecimento da tua volta me remexia. E feito essa quebra brusca (como todas as quebras) da linearidade que eu a custo ensaiava tivesse rompido o início de um fluxo direcionado, e acelerado em muito o convulsionar em que eu me debatia, e ainda além: feito me impedisse de retomar qualquer lógica que me salvasse de um afogamento em sensações e pensamentos fora de controle, eu me perdi.


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Sem mais o poder de enlaçar e organizar o tanto que em mim ebulia; sem mais tempo para contornar as ideias e espantos que me ocorriam e corriam, e analisá-los de outra perspectiva até compreendê-los em si mesmos, e não só como seu alvo; sem forças que dobrassem a força maior e mais veloz das vagas enormes de excitamentos vários que em mim se criavam e me atingiam, por todos os lados de dentro, sem qualquer aviso, eu me perdi. Novamente, por instantes incontáveis. Talvez a intensidade desse transe fosse grande demais para ser registrada. Dele restaram apenas digressões e fragmentos desconexos, desimportantes. Embora eu saiba que verdades se revelaram a meus olhos e minha carne, as cicatrizes, sem que eu conseguisse resguardá-las da tormenta, foram distorcidas e escondidas por imagens outras, pequenas muitas bobagens que se geram em nós quando assim: indefesos contra o que nos consome. Embora eu saiba que respostas cruzaram

meu ser em brasa e se aninharam sorridentes em recônditos onde eu poderia tê-las preservado em outras circunstâncias, para que não fugissem, expulsas pelas não-respostas e não-verdades, eu não tinha elaborado as perguntas, e apenas o que não pesava, justamente por superficial, é que se fixava em mim. Lembro-me de ter pensado que voltarás ao mar que te embalaste quando eu nem sonhava em te encontrar, e beijar-te, e perder-me em ti, como me perdi, e tocar-te, e afastar-me, como me afastei, porque era preciso, muito embora eu não quisesse. Lembro-me de ter pensado que podes não gostar do meu novo corte de cabelo. E que adoro tua marca de nascença no ombro esquerdo. Que provavelmente teu voo deve chegar à noite. Tantas leviandades lembro, e fragmentos que não chegam a ser nem mesmo leviandades inteiras: pequeninas asas translúcidas de insetos, desgarradas após o vendaval. Mas nada do que seria importante. Talvez não seja bem que a intensidade daquele rebuliço me tenha impedido de manter em nitidez o que de importante me atingiu. Não exatamente. Talvez tenha sido o que seguiu que tenha reavivado meu senso de autopreservação, e esse instinto, tão mais forte quando acossado, tenha varrido de mim tudo o que, por sua gravidade, pudesse me estilhaçar: irreparavelmente. O que seguiu foi que, do meio de toda a balbúrdia e toda a ventania, certa inflexão do fato que iniciara este fragor — vais voltar! — subitamente fez cessar o convulsionamento em que eu me encontrava. Tu vais voltar! Tu! Como eu podia me alvoroçar tanto por tua volta sem saber o que em ti vai se passar, quando vieres? Não, não, vinte vezes não! Entregar-me assim era perder-me demais. Vivenciar sozinho tantas possibilidades de interação, fosse ela qual fosse, era absurdo de-

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mais, e injusto demais comigo mesmo. Estúpido demais. Congelou-se em mim o torvelinho de conjecturas, lembranças, emocionamentos do qual tu eras a causa, mas que também era essencialmente um desenrolar-me de mim mesmo. Um desenrolar-me de mim em mim. Congelou-se numa expectativa que vibrava imóvel, cheia de uma inquietude que desejava gritar, mas não sabia: o quê. Porque a expectativa era por algo fora de mim: tu. Assim boquiaberto e imerso em uma claridade oca de qualquer conhecimento — do que tu queres, sentes, pretendes! — foi que consegui, ao fim de uma incompreensão tão vasta que parecia eterna, articular a pergunta que agora parecia óbvia: tu, que me atiraste neste redemoinho de sorrir ao antegozar irrealidades, pensas em mim? E porque a imobilidade que se fizera enquanto eu criava aquela pergunta não mais se pudesse conter, agora que a pergunta escapara de mim, a expectativa desenhada no ar vibrou mais forte e mais forte até disparar em ânsia cega, galopante, por uma resposta. Eu e meu alvoroço nos mantínhamos ainda latentes: sob a lâmina daquele instinto de autopreservação que deslocara de mim para ti toda a fúria que a tua volta me causava. Mas novamente algo se debatia. Não dentro: fora, nos espaços onde voava a indagação que eu formulara. Debatia-se no vazio essa dúvida, desesperada por algo sólido em que pousar. Mas não: minha dúvida ansiosa não achou pouso. Apenas um silêncio: tão pesado e vasto como um mar imensamente fundo. Mar de estranhas águas paradas, que eu não poderia saber se eram silenciosas porque — turvas feito um céu noturno — me impedissem de nelas enxergar qualquer resposta; ou se porque tão transparentes que através delas eu visse que a resposta simplesmente não estava lá: no mar que a minha pergunta criara. A resposta estava em ti. A resposta está em ti, e não alcanço. E agora é onde me encontro: nesse mudo mar cujo único som é o eco do meu desejo de saber se pensas em mim. Sou todo um mar

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que te aguarda. Um mar que congelou suas próprias vozes — minhas próprias vozes — e agora existe como incessante febre que queima sem ondas, sem movimento, sem ruído, sem cais onde bater ou praia onde dar. Tu és o que virás dar sentido a este mar que eu sou, e por enquanto a espera e a febre de esperar são tão enormes que não deixam sequer espaço para especulações sobre como tudo vai se resolver. Isso: todo o resto congelado, aguardo. Ardo, enquanto isso. Tu não tardas: vais voltar. Porém, durante a espera, que me resta?: Ardo em água, aguardo. *Thássio Ferreira é escritor radicado no Rio de Janeiro. Publicou os livros de poesia (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018), bem como poemas e contos em revistas e antologias, como a Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto e Mallarmargens. Seu conto “Tetris” foi vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito “Cartografias”, finalista do Prêmio Sesc 2017. Participou da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) em 2017, 2018 e 2019. Seu próximo livro de poemas, agora (depois), será lançado pela Autografia em dezembro de 2019. Mantém a página facebook.com/thassioescritor e o instagram @thassiof.


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Encontro Tudes* É de ferro quem ama o que o outro abandona Spinoza Essa história é da época em que as primeiras vezes me enchiam de borboletas no estômago e lágrimas nos olhos. Talvez você saiba alguma coisa sobre esses momentos. Eles ficam gravadas como um ferro quente inesperado na pele incauta. A primeira vez em que meus lábios tocaram os de outra pessoa — acreditem, uma experiência esdrúxula —, a primeira vez em que toquei um corpo morto, meu avô, velado em casa, ou a primeira vez em que falei para um grande público. Depois a gente se acostuma e se torna indiferente para não desertar da vida. Essa história é sobre minha primeira vez como professora. Sim, sou professora. Dessas que alfabetizam, sabe? Nos primeiros anos de exercício eu ia aonde me mandavam e trabalhava com o resto. Assim como eu, você não deve entender a lógica disso, mas quando você começa, e é obviamente inábil no que faz, reservam para você, pasmem, as turmas mais intratáveis. Eu preciso dizer que não é sobre malquerer os alunos, a questão é a frustração de expectativas. Me deixe explicar. Quando terminei o Ensino Fundamental fui para o Curso de Formação de Professores. Tinha quinze anos e havia lido um cara chamado Paulo Freire, um outro conhecido como Marx e declamava todos os dias as poesias engajadas do Ferreira Gullar. Beleza. Mas, no curso, me tratavam como idiota. Começou com o uniforme de normalista. Não sei se você sabe, mas o fetiche que os homens têm nessa roupa é de fazer corar qualquer Nelson Rodrigues. Você pode não saber quem ele foi, mas, com certeza, sabe daquela saia pregueada kitsch fazendo companhia à blusa branca. Agora, pega a visão: devidamente uniformizada eu aprendia a fazer quadros de pregas, enfeites para a sala de aula e cadernos com atividades para efemérides. O que so-

brou dos quatro anos foi uma ilusão de escola e aluno cuja existência era uma impossibilidade. Entendeu agora? Na época em que tudo aconteceu, enfrentava uma puta ladeira longa e íngreme para chegar à escola. O ônibus me deixava no ponto por volta de meio-dia. Na subida, o asfalto era quente como a superfície do sol, como se eu fosse personagem de uma fotografia com todas as cores estouradas. Podia sentir gotículas de suor germinando de cada poro na minha pele e o sutiã se encharcando embaixo dos meus seios. Eu já disse que essa é uma história de amor? O Drummond disse que todos os amores são iguais. Bobagem. Nada é mais exótico, singular e deliciosamente humano que uma história de amor. Era o primeiro dia de aula em uma classe de aceleração. Já ouviu falar? É o seguinte: a função da escola é ensinar. Os meninos e meninas entram aos seis e saem aos catorze com o Ensino Fundamental completo. Acontece que nem todo mundo aprende. Tais alunos são reunidos em classes de aceleração para recuperar o tempo perdido. Minha turma era um grupo pequeno, uns doze, e eu lembro até hoje o nome de todos eles. Só havia duas meninas. Todos pretos, com exceção de uma das meninas. Como expliquei, eles eram os meninos velhos, os renitentes, os repetentes, os distorcidos. Ele estava lá no primeiro dia. Havia um menino que destoava dos demais. Ele era o menor de todos. Achei que o garoto não devia estar ali e eu tinha razão. Me explicaram que ele ia com os primos e que, embora não fosse selecionado para a turma, como não podia ir sozinho, precisava estar junto dos outros. Pensei no absurdo da ideia: um menino de oito anos com uma turma na faixa dos doze e sem cumprir nenhum critério para aquela aula. Precisei de muitos anos para entender o motivo: o garoto estava ali porque tinha um comportamento inadequado para os padrões da escola.

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Revista Lima Barreto

No primeiro dia ninguém faltou. Eles eram um grupo, se conheciam por morar todos ali no entorno da escola. Eu ouvia as conversas com atenção, os relatos das aventuras, fragmentos da vida impiedosa que se tecia todos os dias fora dos muros da sala de aula. Todo usavam uniforme, mas podia ver cada um por trás daquelas roupas. Menos ele, que se vestia diferente de todos. No primeiro dia o garoto usou camisa de botão. Uma camisa com um estampado azul suave que tranquilizava o olhar. Na minha família, sempre via os adultos usando camisa de botão em ocasiões especiais. Agora eu tinha na minha frente um moleque de oito anos e camisa de botão por dentro de uma calça jeans com cinto. E ele era marrento, com um olhar de quem acha que causa medo ao mundo. Todos da turma gostavam e o protegiam. A verdade é que eu tinha inveja deles porque sempre me senti muito solitária. Contudo, acho que, no fundo, todos somos. Foi assim até o dia em que passei muito mal. Febre, dor de garganta, vômito, o corpo dolorido como se tivesse apanhado e perdido uma briga. Não havia condições de trabalhar e não fui. A manhã foi tranquila e silenciosa. Estava na cama após o almoço e um longo banho. Acreditava que uma ducha era o início promissor de qualquer cura. Seja gripe ou sarampo, comece sempre com água e sabão. Era uma segunda-feira e parecia que eu estava desfrutando de um feriado prolongado, ganho

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secundário da minha doença. Quando ouvi as vozes me chamando no portão pensei que estava tendo uma síncope, tão inacreditável era aquilo. Mas o pior estava por vir: minha mãe confirmou que eu morava ali, disse que eu estava em casa e os convidou para entrar! Nem sabia o que pensar. Não ouvia vozes adultas. De onde eles saíram? Por que estavam ali? Me explicaram que a diretora os recebeu e falou que não haveria aula porque a professora deles estava doente. Eles vieram me visitar porque eu era a professora deles e estava doente. Não foi difícil encontrar, porque um deles havia me visto naquela rua e foram perguntando por mim. Eram oito e ele foi também. Eles lancharam comigo e viram minha casa. Conversamos e eles tinham um encanto contagioso e pueril por tudo o que viam. A situação me deu medo e pareceu errada, mas, de repente, me senti aliviada. Aquilo me tornou importante como se eu fizesse, de alguma forma, parte das vidas deles. Quando foram embora, me senti vazia. Acontece que gostava muito deles. Fiquei uma semana em casa e, quando voltei, parecia jogador de futebol quando chega na sua cidade natal depois de conquistar título importante. Ganhei balas, pirulitos e figurinhas. Eles descobriram que eu tinha um álbum do Flamengo e começaram a me ajudar a completar. A partir daí, subia a ladeira e esquecia das maldições. Não tinha mais tempo porque eles


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preenchiam meus pensamentos como luz acesa em quarto escuro. Às vezes, eles desciam só pra poder subir comigo levando minhas bolsas e nós nos divertíamos contando os fuscas que encontrávamos no caminho. Até comecei a levar minha máquina para fotografar todos eles. Eu amava fotografias. Comecei a assistir tevê para conhecer os assuntos dos quais eles falavam. Era importante ter algo em comum, tentava impressionar, fazer rir. De alguma maneira, me sentia excluída do sistema como eles. A inadequação daqueles alunos era a minha. Subitamente, deixaram de ser estranhos e passaram a ser como espelhos. Quando nossos olhos se encontravam, tinha vontade de confessar todos os meus segredos e chorar com a cabeça no colo deles. Eles me fizeram professora. Era assim. Passava a maior parte do meu tempo pensando neles. Sofria as dores da expectativa de cada encontro; inventava mundos, jogos e objetos só para eles, e somente nós compreendíamos essa devoção e enlevo. Eu escolhia o que vestir para eles. Depois era consumida pelo que não funcionava e recebia, como dádivas, o que causava empolgação até sair com as novas descobertas. Todos os dias era como se o mundo começasse pra nós. Líamos juntos todos os dias. Uma poesia. Uma notícia. Um conto. Uma piada. Uma carta. Tantos livros, tantas histórias. Juntos lemos as primeiras palavras e escrevemos os primeiros textos. Você tem noção do que significa ensinar alguém a ler e escrever? No dia que ele leu a primeira palavra, dei um cheiro nele. Ele não sabia o que fazer. Nessa época aprendi a cultivar cumplicidades e nós tínhamos pactos. Eles queriam assistir Titanic. Sabe, aquele filme do navio que afunda e tinha o Di Caprio e eu sei que eles queriam também ver a Kate Winslet linda, nua posando no sofá enquanto ele a desenhava. Eu levei o filme e nós vimos. Sentei perto da porta, pronta para me justificar porque tinha certeza que seria pega e já estava pensando nos argumentos para o processo administrativo que sofreria. As músicas eram

tão lindas que comprei o CD e as utilizei como fundo musical durante as aulas. Em nossa lista, os próximos filmes eram Rambo e Hellraiser: renascido do inferno. Sorte minha que terminou o ano e não deu tempo de assistirmos. Depois dos filmes e de recitar poesias, o que mais nos mobilizava era a praia. Tenho uma foto em que estamos na água, num dia de céu limpo e azul. Parecíamos flutuar livres, como se pudéssemos escolher nossos destinos e nele estaríamos sempre juntos. Descobri que os amava, um amor de confiança, de cumplicidade, um amor de gratidão. Eles fingiam que eu era a melhor professora do mundo e que sempre sabia o que estava fazendo, mas eles sabiam que nunca ensinei nada. Aprendi tudo com eles. Disfarçava que não sabia o que acontecia longe daquele espaço criado por nós. Tudo era pleno na sala. Lá fora, faltava mãe e pai, comida, afeto. Eles furtavam, precisavam se virar e sofriam muito, sofriam todos os dias daquele ano que chegava ao fim e encerrava nosso encontro. Nós nos perdemos. Sete anos depois, ele foi o primeiro a morrer. O jornal publicou uma foto do seu corpo devassado, profanado, conspurcado. A matéria explicava que ele foi morto porque era envolvido com o tráfico. Não tinha nenhuma imagem daquelas que fizemos juntos, não tinha poesia, não tinha nada do que um dia fomos. Ali não havia nada daquele menino que tanto amei e que foi a minha possibilidade de redenção. Todos os dias sou assombrada por ele com sua camisa de botão e o rosto de quem me desafia. Isso me consola porque ele não me deixa só, e me alenta em um mundo onde é cada dia mais difícil viver e amar. Não tenho mais borboletas no estômago, nem primeiras vezes, todos os dias parecem uma prisão. *Tudes é pedagoga, pesquisadora, leitora compulsiva e escritora aventureira.

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Revista Lima Barreto

De dentro pra fora Wagner Guimarães* abro os olhos. o gosto da noite insiste na saliva. cuspo. é viscoso o desprendimento do corpo. a bochecha grudada no vômito seco, no chão gelado, a um palmo do vaso sanitário. sou braços e pernas encolhidas debaixo da pia. os peitos ardem. levanto o vestido e observo entre as pernas. fecho os olhos. Noite. O corpo dele debaixo das minhas coxas, da minha bunda. Ele me chupa os peitos e sinto seus dentes. A voz parece de outro. Um beijo na boca, puxo os cabelos dele enquanto ele me fode. Os olhos parecem de outro. pisco. Um estalo na cara. Uma explosão no olho direito. Estalos na boca no lado esquerdo. abro os olhos. a parede é cinza, ou verde-musgo. observo a sequência de azulejos portugueses. tusso! engasgo. a massa amarela gruda no queixo e o nojo me traz de volta à vida. me viro. as costas no chão e fico ali, estatelada. frio, muito frio. arrasto os pés para dobrar os joelhos: posição ginecológica. pisco. abro os braços. as palmas das mãos empurram o piso amarelado e as costas se desprendem do chão. os braços tremem e o corpo desaba: um impacto: a dor na omoplata também é sinal de vida. caralho!!! penso que grito. O beijo dele me deixa molhada muito rápido. Rápido demais, mais do que eu queria. Sorrio. Busco os olhos dele, mas ele só olha pros meus peitos. Ele lambe e morde os meus peitos. Ai! Puta! Calma, gato. Estalo na cara. pisco. me viro de lado. um cotovelo e a mão

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no chão. um impulso. a mão alcança a pia. os pés se firmam e fico em pé. espelho. o sangue pisado no nariz, o inchaço na sobrancelha. o pedaço de lábio pendurado, a cuspida é lenta e viscosa até o ralo da pia. abro a boca, disfarço a dor e puxo o lábio inferior. caralho! caralho, falta um dente! falta um dente, caralho! outra cuspida. abro a torneira e os pontinhos pretos giram até o ralo. mãos no rosto. não dá pra esfregar, dói muito. fecho a torneira. com o dedo indicador esquerdo texto a sensibilidade do negrume da crosta embaixo do olho direito. porra! Me fode, vai! Vai, me fode gostoso! Vai! Vai! ... Eu sorrio pra ele. ... Gato, olha pra mim. Olha pra mim, vai. ... Ai! Sua puta! Calma, gato. Um estalo na cara. o nariz arde, o sangue pisado descascando até a boca. tusso e o corpo se dobra. a língua partida aponta o chão e dela se desprendem uma ponta de dor e um fio escuro que se estica até manchar o piso. tusso: mais gosma, mais vida. Pois é, também sou designer. Você curte Afrika Bambaataa? Meu apê é aqui na Benjamin Constant, pertinho do metrô. filho da puta! Shake it now, go ladies, it’s a livin’ dream Love life live Come play the game, our world is free Nosso mundo é livre. Meu corpo é elétrico e eu danço na velocidade que eu quero. Ele está olhando pra minha bunda. Pode olhar. Nosso mundo é livre. As mãos dele na minha


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cintura, deslizo entre os braços dele. Love life live. O beijo é rápido, desvio a boca. Ele sorri. Meu nome é Fábio e o seu? Meu nome é pouco, muito pouco, e eu não caibo nele. Me beija! esfrego os braços. as casquinhas ardem em pontinhos vermelhos. esfrego as mãos, os dedos roxos, os pedaços de pele, os inchaços. a dor é constante; será que algum dedo quebrou? claro que não, sua burra, ainda dá pra mexer. mas dói pra caralho. Me movo na cama de joelhos, meu mundo é livre. Tiro meu vestido. Ele aperta meus peitos. Passo as mãos pelo pescoço dele. Essa barba desleixada fica bem em você. A mordida nos lábios. O puxão na minha calcinha, ele agarra meu quadril. Desabotoo a calça dele. Ele também quer ficar comigo. Você tem camisinha? Não. Então não vai rolar, gato.

Levo as mãos sobre o rosto, mas não adianta. O mundo é livre, mas não é meu. Do what you want but scream as mãos apoiadas na pia. no espelho, o que sobrou do corpo. fecho os olhos. Espelho. Passo batom, amo esse tom nude. Rímel azul pra dar um contraste. Com as pontas dos dedos, dou volume ao meu cabelo. Me viro no espelho e ajeito meu vestido. Será que ele vai gostar? *Wagner Guimarães é Professor de Espanhol e Tradutor. Participou de oficinas literárias em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, como a da Flup. Coordena o Clube de Leitura Leia Latinoamérica e um tango argentino lhe vai bem melhor que um blues.

abaixo a cabeça e afasto as pernas. levanto o vestido e me toco. arde. definitivamente estou viva. Sem camisinha, não. ... Beijo. Os lábios úmidos. Mãos na nuca. Fico molhada muito rápido. Rápido demais, mais do que eu queria. Ele me puxa pra cima dele. Sorrio. Busco cruzar nossos olhares, mas ele só olha pros meus peitos. Ele lambe e morde os meus peitos. Não, gato, não! Ele entra e meu rosto se contrai. Não, porra, esse é o meu mundo, só meu! Shake it now Do what you want but scream Estalo na cara. Não! Assim, não! Agora, tudo o que sinto é o meu rosto ardendo cada vez mais. E o corpo dele estraçalha meu corpo de dentro pra fora. Ele não me olha nos olhos e eu também não, porque a mão dele agora vem fechada.

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Revista Lima Barreto

Seja qual for o seu sonho, comece. Ousadia tem genialidade, poder e magia Johann Goethe

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ão estava pensando exatamente em Goethe quando a primeira turma da Oficina de Escrita CLZO, em agosto de 2018, abriu as portas. Essa história começa antes. Em outubro de 2017, eu, Wagner Guimarães, Paula Xisto e Márwio Câmara iniciamos as atividades do coletivo literário Clube de Leitura ZO com um propósito simples: criar um espaço para discutir livros e a leitura na Zona Oeste. A ideia não é nova, os clubes literários têm raízes do século XVIII e atualmente encontramos até reuniões online ou através de grupos de WhatsApp. O nosso diferencial era/ainda é, o fato de as atividades acontecerem na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro (principalmente Campo Grande) — e isso representa muito. Região mais extensa da cidade do Rio de Janeiro, perde em quantidade populacional apenas para a Zona Norte, contudo, é na Zona Oeste que encontramos a menor quantidade de livrarias em toda a cidade, apenas 24, segundo o Guia de Livrarias da Cidade do Rio de Janeiro de 2017 (o mais recente). Menos livrarias, menos espaços culturais, menos ocasião para a leitura. O Clube de Leitura ZO cresceu nesse vácuo cultural e, também por seus méritos, completa 2 anos de atividades em 2019. Seguindo esse impulso, a Oficina de Escrita CLZO abre as portas também em uma área inexistente na

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região: cursos de escrita criativa. Aspirantes a escritores ou escritores da Zona Oeste têm que se deslocar até o centro da cidade ou a Zona Sul para frequentar aulas caras que os ajudem a melhorar a escrita. Percebendo a carência de tais oficinas na região (e, claro, depois de frequentar algumas), resolvi abrir as portas da Oficina de Escrita CLZO em Campo Grande porque sabia, intimamente, que não era apenas eu que sofria com o deslocamento ou valor de uma oficina de escrita na Zona Sul. A ideia encontrou adeptos nas redes sociais do Clube de Leitura ZO e entre amigos. Desde agosto de 2018 a semente germinou e a árvore cresce por meio de trabalho e dedicação. Esta revista Lima Barreto é o primeiro fruto físico de exercícios de escrita tanto de alunos passados quanto atuais da Oficina de Escrita CLZO (o amigo e poeta Thássio Ferreira é uma exceção, participa por conta do apoio na campanha de financiamento coletivo da I FLICAMP — inclusão das mais especiais). Essa era a história resumida. O resto é conto. E não poderia finalizar sem agradecer a todos os antigos e atuais alunos da oficina, mesmo os que não puderam estar nessa coletânea, foi/é realmente um privilégio aprender com todos vocês. Boa leitura a todos! José Fontenele – Jornalista, Escritor e Coordenador da Oficina de Escrita CLZO jwfontenele@gmail.com


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