Revista Lima Barreto #2

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Oficina de Escrita ZO

R.:L.B. vol #2

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LIMA BARRETO Revista da Oficina de Escrita ZO Número II Ano II Outubro — 2020 Participantes/Página Alessandra Silva Santos Anderson Madeira Danielle Perete Erika Kohler Evelyn Carvalho Fábio Campelo Janaína Ferreira da Silva

Jeferson Corrêa

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diagramação e edição: José Fontenele, idealizador e coordenador do Oficina de Escrita ZO

Lorena Bastos de Holanda Luciana Mateus Ludmila Abramenko Luiza Lacaille Luzia Castro Maria dos Remédios Mariana Abreu Nolasco Tudes

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capa: Hongolô 2019 Pastel oleoso sobre tela Yasmin Ferreira 3


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Helena da Periferia Alessandra Silva Santos* O sol entrou sem permissão pelos buracos da cortina velha; o ventilador não amenizava a sensação térmica da quitinete, o choro das filhas da vizinha intensificou a enxaqueca de Helena. Ela precisava ter um momento mínimo de descanso para repor das energias perdidas após um dia de trabalho e estudo. Ela se levantou, não dava tempo de sentar-se, tomar café, por isso foi ao banheiro, escovou os dentes, encheu o balde pequeno e jogou rapidamente uma água no corpo. Pegou a van em direção à escola em que trabalhava. Desceu num ponto anterior ao trabalho para comprar um pão e mortadela para o café da manhã com as colegas. Pegou o lanche e foi correndo para a escola, pôs as compras na mesa da copa e trocou a roupa pelo uniforme de merendeira. Sinal toca, café da manhã quentinho para as crianças na caneca e biscoito doce. Sorriso nos lábios, palavras agradáveis saiam dos lábios dela para cada aluno. Limpam o refeitório e preparam as coisas para o almoço. Tia Dulce cortou o pão, passou de maneira caprichada a margarina e deixou a mortadela para as meninas colocarem. Regina fez o café quentinho. Enfim Helena se sentou, pegou seu remédio para enxaqueca e tomou com café e pão. Aquele momento acabou. A diretora chegou, apresentou as mudanças do cardápio daquela semana, olhou as panelas, o refeitório. Ela era uma mulher exigente, mas muito doce e gentil, apesar da aparência rude. As meninas ouviram e começaram a cortar legumes, carnes, lavar arroz, catar feijão, colocar todos os temperos para cozinhar a comida de cada

aluno. Helena era responsável pelo fogão e temperos, fazia a mágica chegar ao olfato e paladar dos alunos e professores. O tumulto na cozinha era normal, afinal eram quase 400 pessoas entre funcionários e crianças todos os dias, mas nada tirava o sorriso e alegria de Helena em ver as pessoas se alimentando. Ela sabia das dificuldades que passou para estar ali. Cada menina era um pedaço dela, então ela caprichava na organização dos pratos; após sua chegada a qualidade da alimentação e limpeza melhoraram muito. Ela comandava a cozinha como ninguém! Aquele dia foi especial: macarrão à bolonhesa, as crianças ficaram encantadas com o cheiro e sabor. Após este momento, era hora das merendeiras se sentarem e comerem, pois viria a hora do lanche e limpeza. Elas foram ao refeitório, e Helena preferiu ficar afastada, comendo de olhos fechados. Regina achou estranho e questionou a moça: “Helena tá aí longe? Tá doida? Cega?” Segundos depois, Helena abre os olhos e lágrimas caem. Então ela conta para as colegas sobre as diversas dificuldades que passou até conseguir o emprego: “Estar aqui perto destas crianças me faz um bem enorme, mas eu lembro das dificuldades que a gente passava para comer. Tive de largar a escola cedo para ajudar minha mãe. Estudar era um luxo.” As meninas se entreolham, e ela continua: “Eu cresci sabendo que a cor da minha pele me impediria de muitas coisas. Tentei diversos empregos, bicos e não conseguia, pois não era apresentável. Escolheram outras meninas que não sabiam fazer uma faxina, um arroz. Por quê? Eram brancas.” 5


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O silêncio pairou no ambiente e os únicos sons eram dos garfos, colheres, pratos e mastigação. Não havia palavras para o momento. Helena era grata a Deus pela oportunidade de estar ali, ela sabia das suas caminhadas. Não precisava ser acadêmica, ou ler sobre feminismos ou racismos, para saber que a vida de uma mulher negra é muito mais dolorosa. Ela fazia leituras simples e complexas do mundo, e como muitas mulheres negras, andava ao lado da solidão sem ter a companhia de um amor. Sabia que a ausência de alguém seria parte de sua vida, mas estava focada nos conselhos de uma professora, Élida, que também era negra. Ela, muito elegante e incisiva, dizia: — Você precisa estudar, esquece romance de filme. Eles não existem. Você não é a Helena de Manoel Carlos. Você precisa trabalhar e estudar! Vai morrer com a barriga no fogão de uma escola? Esta era uma fala que ecoava na mente da merendeira, por isso voltou a estudar no PEJA perto do trabalho. Ao chegar à escola, Helena tinha vontade de voltar para casa e ligar a TV, tentar se esticar na cama dura. Todavia, a voz da amiga e a imagem da mãe trabalhando para criar cinco filhos sozinha apareciam na mente como potências que geravam força para continuar. Então a trabalhadora criou um ritual, Helena levava um pãozinho feito por Tia Dulce, comia e ia para a sala de leitura da escola aguardar as aulas do dia. Ao término, refazia o caminho, mas agora era pra casa ou lar. Tomava um banho, havia jantado na escola. E agora precisava dormir, pois faltavam menos de 6

dez horas para recomeçar.

*Alessandra Silva Santos, 36 anos. Pedagoga formada pela UERJ e professora da rede Municipal do Rio de Janeiro. Busca inspirações em Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e em muitas mulheres que passaram por sua vida. Escrever é criar possibilidades, dar vazão a sonhos encubados.


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Madureira é um Carnaval Anderson Madeira* Andar pelas ruas de Madureira, um dos mais tradicionais bairros do Rio de Janeiro, na Zona Norte, também conhecido como o “coração do subúrbio”, é se esgueirar entre as pessoas nas calçadas e as bancas dos camelôs em um gingado digno das melhores passistas das escolas de samba. No berço do samba carioca, difícil não ouvir um clássico enredo da Portela ou do Império Serrano. Salve Monarco e Arlindo Cruz! Salve Clara Nunes e Elza Soares! Madureira é um universo. Logo lembro daquele famoso quadro de Tarsila Amaral, chamado “Carnaval em Madureira”, que contém a Torre Eiffel com um dirigível voando ao redor dela. Uma homenagem a Santos Dumont, que voou daquela forma em Paris no início do século passado. A tela foi pintada em 1924, quando a pintora esteve na região e se encantou com uma alegoria de 15 metros, réplica do monumento francês, em uma praça. Aquela obra é um retrato do bairro. Às vezes me sinto um estrangeiro em Madureira. Nascido e criado em Petrópolis, na Região Serrana, e de pele bem branca, estou morando aqui depois de 30 anos vivendo em Niterói. Madureira é um bairro bem miscigenado e popular. As vilas com suas casas e as crianças brincando, enquanto os pais conversam com os vizinhos, me fazem lembrar uma cidade do interior de um tempo que não existe mais. Em Itaipu, não se encontra mais isso. Cada um em sua casa, desfrutando da piscina, da TV a cabo e dos canais de streaming. Em Madureira, alguns vizinhos, na frente de casa, mantém um comércio

informal, com venda de açaí, salgados e frango assado. Uma forma das famílias reforçarem o magro orçamento. Algo que eu não via em Itaipu. Lá eu só vi algumas lojas vendendo frango assado. No subúrbio carioca, em algumas ruas, o esgoto corre à céu aberto e as pessoas precisam tampar o nariz para passarem. Isso não acontece em Itaipu, onde mesmo em ruas não pavimentadas (que são muitas ainda), embora não haja asfalto nem calçada, existe saneamento básico com água encanada para todas as casas e esgoto tratado. Nas calçadas de Madureira, pessoas em situação de rua pedem esmolas e outras vasculham caçambas de lixo em busca de comida. Na Rua Domingos Lopes, um homem vende pequenos móveis de madeira com e sem verniz. Ao lado dele, outro vende fitas antigas de vídeo cassete. Como de praxe em um bairro do subúrbio, ali perto há uma banca do jogo de bicho funcionando sem nenhuma importunação da Polícia. Nada disso eu via em Itaipu ou qualquer outro bairro da Região Oceânica de Niterói. A não ser no Centro e em bairros da Zona Norte, como Fonseca, Vila Ipiranga e Caramujo. Em Madureira, na Praça do Patriar7


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ca, há um bar com videokê onde cantores amadores se esforçam em interpretar sucessos da MPB e pagode, encantando o público. Ali perto, em outro bar, há uma roda de samba com quatro músicos. No repertório, Monarco, Noca da Portela, Silas de Oliveira, Cartola e outras lendas do samba. No outro lado da rua, um homem vende o popular “churrasquinho de gato”. Já em Itaipu, há apenas uma praça, cercada com grades, onde, durante o dia, a garotada joga futebol na quadra. Não há muita convivência entre os vizinhos, ao contrário do subúrbio carioca. Enquanto em Itaipu há o predomínio de lojas sofisticadas, com várias boutiques, bistrôs, bares badalados e restaurantes com gastronomia estrangeira, em Madureira predomina o comércio popular e de rua. Sem falar nas inúmeras bancas de camelôs, que tomam as calçadas dos dois lados do bairro, que é separado pela linha férrea. Em Itaipu, recentemente foi inaugurada a Transoceânica, com ônibus do tipo BRT (em versão menor do que o carioca e com ar condicionado que funciona), que liga os bairros oceânicos até o bairro de Charitas, onde há uma estação de catamarã que leva à Praça XV, no Rio. Falando no trem, este leva à Central do Brasil e é uma atração à parte. Nos vagões há vendedores de tudo. Desde carregador portátil de celular, passando por óculos de sol, biscoitos diversos, doces, salgados e bebidas. É o popular “Shopping da Supervia”. Tudo baratinho e a partir de um real. De manhã, o trem vai sempre lotado e as pessoas se espremem umas nas outras, como sardinhas enlatadas. Nos trens mais novos, o ar condicionado é uma beleza. Já nos antigos, se 8

as janelas não estiverem abertas, o ar refrigerado não dá conta e o trem vira um forno. Em Niterói, há mais de dez anos é prometida a Linha 3 do Metrõ, que ligaria o Rio à Itaboraí. Porém, devido ao alto custo e à corrupção nos governos federal e estadual, o dinheiro reservado sumiu e a obra não saiu do papel. O Parque Madureira, construído ao lado do shopping, é mais recente, inaugurado pouco antes das Olimpíadas do Rio. A sua extensão vai até o bairro de Rocha Miranda. A Praça do Samba, quando não tem evento, fica repleta de jovens de patins. Casais namoram. Os quiosques exibem, nos telões, jogos de futebol, para a alegria da galera. Enquanto isso, em Niterói, o Parque Estadual da Serra da Tiririca, que se estende por boa parte da Região Oceânica, é usado por quem gosta de fazer trilha e alpinismo. Quem vai à Madureira e não visita o seu famoso Mercadão, não esteve no bairro. O lugar é um mundo à parte. Tão grande que dá para se perder entre suas galerias com lojas de produtos de Umbanda e Candomblé, festas, lojas de ervas, doces e lanchonetes. O local está sempre cheio e é preciso paciência para olhar os produtos e andar pelos corredores. Mesmo assim, dá vontade de não sair mais. *Anderson Madeira tem 47 anos, há 23 formado em Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Atuou em jornais como O Fluminense, A Tribuna e O Itaboraí, além de sites de notícias e em assessoria de imprensa de empresas privadas e órgãos públicos. Lançou em agosto de 2019 o livro-reportagem “Niterói na época da ditadura”, pela editora Gramma.


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Carol Danielle Perete* Ela o olhava com olhos curiosos. Ele era muito alto, magro e bronzeado. Parecia muito sério aos olhos dela. Cabelos muito bem aparados e barba igualmente bem-feita. Ela o olhava todo o final de semana. Ah, os finais de semana. Como ela ansiava por eles. Sexta-feira e aquela agitação a acometia. Sábado pela manhã estaria novamente à praia. Ela amava a praia. Adorava as ondas, tinha uma relação de amor e ódio com a areia. Achava aquele tapete amarelo pálido lindo, gostava de roçar os pés nele, mas odiava como os pedaços do tapete entravam no maiô vermelho. Era incômodo sentir os grãos secos contra o corpo. A sexta amanheceu com o tempo nublado e ela estava levemente irritada. Acordou, mas ao vislumbrar o tempo nebuloso através da janela, não quis sair da cama. Enfiou a cabeça debaixo do travesseiro de fronha rosa e respirou fundo. — Ah, chuva não. Odeio usar galochas. Não gosto de guarda-chuva — resmungou para si mesma. Olhou novamente para a janela, cobriu novamente o rosto com o travesseiro, talvez, para esconder de si mesma o rosto decepcionado. Ouviu a movimentação da casa. Sua mãe estava acordada. Pelo cheiro que pairava no ar, a irmã fazia café. Ela odiava café, mas gostava de café com leite. Ou melhor, leite com café. Pois, de café na bebida, havia apenas algumas gotas calculadas com muita atenção. — Hoje o dia está bom para chocolate quente. E rosquinhas — murmurou para si mesma. Levantou da cama em um impulso só, correu para a cozinha sonhando que seu desejo estivesse à mesa esperando-a. Tro-

peçou no corredor, mas não caiu. Chegou à cozinha rindo do quase tombo. A mãe perguntou qual era a graça. Ela riu ainda mais sem dar maiores explicações. Esqueceu-se do chocolate quente quando a mãe a serviu um chá com leite e alguns biscoitos de água e sal. — Você sabe que não gosto de beber mato — falou antes de dar um pequeno gole. — O que é isso? Não tem gosto de nada. Me dá açúcar? — perguntou, impaciente, para a mãe. — Está adoçado, Carolina. O suficiente para você sentir os sabores. Agora beba e não reclame. Seu namorado da praia não deve gostar de mulheres reclamonas. Sentiu o rosto corar. Ficou quieta e deu um longo gole no chá, mesmo sem ainda identificar o sabor. Camomila, talvez? Mato fervido era tudo igual. Sua irmã, Bia, que observava toda a cena, jogou a cabeça para trás numa gargalhada zombeteira. E, seguindo a fala da mãe, implicou com a irmã mais nova. — Seu namorado da praia é tão sem graça como esse chá. Tome o chá como um treinamento. Carolina revirou os olhos, deu língua para irmã, e saiu levando consigo alguns biscoitos. Foi para o quarto deixando para trás a quase cheia xícara de chá. Precisava separar as coisas e se arrumar para o dia, mas o fazia olhando para a janela e torcendo por uma melhora no clima. Enquanto separava a roupa, comia os biscoitos de água e sal. — Treino. Sem graça como o chá. Ele não é sem graça. Vocês que são umas chatas — resmungou olhando para a foto na cabeceira. 9


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Uma foto das três mulheres da casa. Agora uma república feminina, cheia de calcinhas, sutiãs e amor incondicional. Antes, havia um homem, o pai. Mas ele não consta na foto de cabeceira ou em alguma outra. Apenas nos documentos das meninas, a mãe há muito não carregava o nome do ex. O tempo melhorara ao longo da sexta. Carolina, sentindo o sol esquentar, mandava mensagens através de Whatsapp para a mãe sobre a visita à praia no dia seguinte. No sábado, mesmo sem forte indicação de dia ensolarado, Carol estava vestida com seu maiô vermelho às sete da manhã, puxando o lençol da mãe e reclamando o direito à praia. A mãe acordou um pouco desorientada com a visão do chapéu de praia da filha e a canga tie dye multicolorida enrolada no corpo. A pobre mãe tirou o celular debaixo do travesseiro e verificou as horas. Levantou inconformada com as sete da manhã, enquanto a filha a olhava fixamente, analisando suas ações. Joana pediu para Carol acordar a irmã mais velha e a menina correu pela casa gritando o nome de Bia. Bia e Carol se juntaram à mãe na cozinha, que organizava os preparativos para a ida à praia.

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Joana, embora estivesse animada com o passeio, pensava sobre a pequena obsessão da filha com esse homem. Ficou pensativa desde o dia que Denise, tia das meninas, havia notado o comportamento da menina na praia e frisado que algo deveria ser feito. Chegaram à praia com o arsenal completo para um dia inteiro: cadeiras, cangas, cooler com bebidas, bolsa térmica com sanduíches e frutas. Mal se organizaram, Carol já escaneava os arredores. Rapidamente o avistara e dera um pequeno sorriso de admiração e satisfação. Às vezes sentia que ele sorria de volta. Isso a fazia feliz. Carol, que havia avisado que iria para o mar, desviou o caminho e foi dar oi para o seu amigo de roupa vermelha e pele bronqueada. A irmã observou a cena de longe, enquanto a mãe lia um livro sobre criação dos filhos. — Oi. Gostou do meu maiô? É da mesma cor do seu uniforme. Você gosta do seu uniforme? Tenho que usar na escola e não gosto muito. Mas o seu é legal. Trabalhar na praia deve ser legal. O homem escutava Carol e, ao mesmo tempo, olhava para o mar e ao redor buscando pela mãe e irmã dela. A conversa seguia assim, entre o não olhar, o pergun-


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tar de Carol e pequenas respostas. Até que Bia resolveu chamar atenção da mãe para o fato da irmã estar conversando tempo demais com o homem, objeto de admiração daquela. Ao visualizar Joana vindo em sua direção, Carol correu para a beira da praia, lugar onde disse que iria cerca de dez minutos atrás. A mãe brigaria com ela, melhor que fosse longe de Paulo. A mãe, decidida que era a hora daquele algo a ser feito, mudou a direção e foi lidar com o amor platônico da filha, mas sem saber exatamente que abordagem tomar. — Ela é adorável. Sempre a vejo muito alegre brincando na água. É bem valente também. Joana sentiu um incômodo muito grande ao saber que o homem observava a filha dela. — Me desculpe, mas não acho saudável essa relação com a minha filha. Vou ter que pedir que o senhor não fale mais com ela. Aliás, que tanto assunto vocês têm? O senhor é bem mais velho e sei que, por algum motivo, ela cismou com o senhor, mas... — Ah, me desculpe, Joana. É Joana seu nome, não é? Minha esposa se chama Débora. Você a conhece das aulas de na-

tação do clube municipal, não? — Mas do que o senhor está falando? O que isso tem a ver com a minha filha de nove anos? — Débora foi professora da sua filha. Qual o nome dela mesmo? Camila? Carla? — CAROLINA! — gritou Joana, nervosa por entender a situação. Carolina, que estava na beira do mar, pensou estar encrencada quando ouviu a mãe chamar seu nome. A menina veio correndo ao encontro dela. — Senhora Joana, Carolina quer ser salva-vidas. Carolina riu ao ouvir a frase. — Ah, por isso que eu gosto do senhor. Mãe, vamos nadar?

* Danielle Perete é tradutora aventureira, leitora (quase/nada) voraz e professora de Inglês por formação. Entusiasta da leitura é integrante do Clube de Leitura Literalmente Elas. Desde adolescente, escreve pequenos devaneios em formato de contos e poemas.

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O homem, o lagarto e a princesa Erika Kohler* Havia um homem que morava em um charmoso vilarejo, na ilha de Tahaa, na Polinésia. Seu nome era Gaya. Junto com ele viviam diversas criaturas exóticas que só existiam ali. Entre elas estava Ravar, um lagarto azul, que além de se destacar por sua excêntrica cor, chamava também a atenção por ter o dobro de tamanho que os outros da mesma espécie. Também despertava curiosidade por seus grandes olhos coloridos: um, verde como a grama; o outro, amarelo como o sol. Era considerado por Gaya como seu melhor amigo. Todos os dias, ao entardecer, eles iam para uma linda praia bem pertinho dali, para observar o pôr do sol. Permaneciam sentados na areia, curtindo aquele momento, até o último raio solar. Mas, apesar de toda aquela aparente tranquilidade, uma coisa intrigava aquele homem. Ele queria muito saber como era a vida do outro lado daquela praia. Pensava muitas vezes se algum dia iria conseguir atravessar e descobrir tudo que existia lá, depois da linha do horizonte. Certo dia, enquanto Gaya e seu amigo lagarto cumpriam o ritual de todas as tardes, perceberam que uma onda muito grande começava a se formar lá bem longe. Os dois ficaram hipnotizados. Conforme a onda ia chegando cada vez mais perto, algo ia tomando forma lá no topo, bem na crista. E assim que a onda arrebentou na areia, aquela forma se materializou em uma linda tartaruga alada, com um casco cor de laranja florescente e asas roxas. Ao se aproximar dos dois, ela baixou a cabeça em direção ao homem e estendeu uma de suas asas para que ele subisse, trazendo também seu amigo la12

garto, para juntos seguirem em uma extraordinária viagem. E assim foram. Confiando na tartaruga, pegaram a onda e seguiram em direção ao outro lado da praia. A ansiedade para conhecer aquele local era tão grande que o coração do homem batia muito forte e, por vezes, até um pouco fora do ritmo. Era um sonho virando realidade, depois de muitos e muitos anos. Difícil até de acreditar. Algum tempo depois, a tartaruga aterrissou deixando Gaya e Ravar descerem na areia. E os dois ficaram ali, maravilhados, tentando olhar tudo em volta. Mas estava bem difícil de enxergar alguma coisa porque já estava escuro e a única iluminação que eles tinham era o brilho da lua refletindo na água que, tal qual um espelho, formava um caminho até o horizonte. De repente, um barulho chamou a atenção. Quando os dois olharam, lá estava ela, deslumbrante, toda iluminada, em seu vestido azul reluzente. Tentava arrumar os longos cabelos ruivos e cacheados e não demorou muito para que seus amigos vagalumes aparecessem para dar uma ajudinha. Assim formaram lindos pontos de luz espalhados pelos fios de suas madeixas. Em seguida, ela foi em direção ao caminho formado pela lua e, como num passe de mágica, começou a andar sobre as águas, leve como uma pluma, como se estivesse flutuando. Gaya ficou atônito, e até meio desconcertado, diante de tanta beleza. O brilho nos olhos revelava algo que ia muito além de uma admiração. Ele estava simplesmente fascinado com aquela imagem. Parecia uma pintura. A sensação de borboletas no estômago si-


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nalizava que algo diferente e bom estava acontecendo com ele. E foi nesse exato momento que percebeu que estava completamente apaixonado. Nesse instante, ela virou-se para trás, olhou para Gaya e disse que tinha sonhado com esse momento por muitas vezes. Naquele lugar, naquele dia, naquela hora, alguém ia aparecer para salvá-la. Ela não conseguia entender o porquê, mas sabia que precisava estar ali. E então ela confiou no sonho e na sua intuição e foi. E quando Gaya, paralisado por aquele momento encantador, decidiu finalmente ir ao encontro da linda ruiva, algo inesperado aconteceu. Uma densa neblina se formou encobrindo todo o caminho espelhado da lua, levando embora a sua amada. E antes que o nevoeiro se dissipasse totalmente, surgiu ali um baú, junto com uma chave. Ravar, que estava no ombro de Gaya, escorregou por seu braço, pegou a chave e abriu o baú. Gaya se aproximou e encontrou lá dentro uma pedra preciosa azul e um pergaminho com a mensagem: “Se quiser ter a sua amada de volta, precisa ir até o caminho espelhado, andar sobre ele e apontar a pedra azul para a Lua. O prazo é até o amanhecer. Do contrário, nunca mais vai vê-la novamente.” Mesmo assustado com tudo aquilo, Gaya não teve outra alternativa a não ser seguir as orientações do pergaminho para finalmente ter seu amor nos 13


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braços. E assim ele fez. Andou até chegar na metade do caminho espelhado e ali apontou a pedra preciosa para a Lua. Um grande facho de luz se formou rebatendo a luz do luar no próprio reflexo espelhado na água. E como em um encanto, um portal se abriu rapidamente e de lá saíram duas princesas. Para a surpresa de Gaya, uma delas era a ruiva que ele acabara de conhecer, enquanto a outra era a irmã mais velha dela, que herdaria o trono como rainha após a morte de seus pais em um acidente. Contudo, não conseguiu porque, alguns dias após o acontecido, enquanto estava passeando por aquele mesmo lugar, foi enfeitiçada por um Mago muito poderoso que queria reinar soberano e certamente faria tudo para tirar a princesa do caminho. E assim ele o fez. Ela foi condenada a ficar presa ali para sempre. Teria apenas uma chance de sair, quando completasse um ano. E justamente nesse dia o prazo estava se cumprindo. Essa era a data que o feitiço deveria ser quebrado. Felizmente, sua irmã e Gaya estavam lá e ajudaram a quebrar a maldição. Tudo deu certo e as duas foram libertadas. Gaya e sua amada se abraçaram e declararam seu amor um pelo outro. Fazia pouco tempo que se conheciam, mas já parecia uma eternidade. Desde o primeiro momento que se viram entenderam que havia uma conexão muito grande entre eles. E finalmente, depois de toda aquela tensão, eles conseguiram ficar juntos. Embalados por esse momento tão lindo e emocionante, decidiram se casar ali mesmo, com a benção da irmã dela, que agora era Rainha. Logo depois, 14

seguiram em direção às águas para viajarem para a ilha de Tahaa, de volta para o Vilarejo. Assim que a tartaruga apareceu, eles embarcaram em seu casco. Eles dois e o melhor amigo, Ravar, o lagarto. E assim, todos foram viver a vida que há muito tempo sonhavam.

*Erika Kohler é Jornalista, redatora freelancer, escritora e artista visual. Não necessariamente nessa ordem. Faz parte da equipe do LOCUS Ateliê e do Colher de Chá Books dando aulas de escrita criativa e afetiva, com a finalidade de ajudar as pessoas a se encontrarem através de suas memórias afetivas. Fica sempre na esperança de esbarrar com o coelho da Alice, torcendo pra ele indicar a direção para a estrada dos tijolinhos amarelos, que vai dar direto na Fantástica Fábrica de Chocolate.


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O conto de Emmy Evelyn Carvalho* Quem é ela? Emília Alves ganhou esse nome em homenagem a um ancestral esquecido, mas ela prefere ser chamada apenas de Emmy. Emmy é uma garota de 17 anos, estudante do Ensino Médio em uma escola particular, moradora do subúrbio do Rio de Janeiro. Vive com os pais, o que para Emmy ainda é um problema a ser resolvido, afinal eles não têm muito contato afetivo. Ela acredita que os pais não a amam o suficiente porque nasceu de uma gravidez indesejada. A verdade é que, apesar de ser muito sentimental, Emmy não tem esse tipo de relação com ninguém; não é uma colecionadora de amigos por ser introspectiva e gostar de estar na própria presença, com seus sonhos e pensamentos. Emmy tem na cabeceira da cama um livro sempre a terminar e seu relógio digital. Na gaveta guarda um diário de sonhos e um livro de capa preta, cada dia aberto em uma página diferente, sempre com um rabisco a ser acrescentado em cada nova leitura. O sonho da Liberdade Emmy sempre se julgou estranha, diferente de todos que conhecia. Ela parecia normal, porém, durante a noite, fazia visitas à lugares não vistos e inimagináveis, lugares que mais ninguém iria. Havia um furacão destruindo tudo ao redor dela, tudo estava desmoronando, mas ela tinha seu próprio universo onde poderia ser quem era, sem medo ou culpa. Como isso acontece? Nem a própria Emmy pode nos dizer, ela apenas vai. Quando

começou a acontecer? Ela também não lembrava, mas fugir da realidade, de sua vida pacata, era algo que sempre desejou. O relógio de cabeceira marca três da madrugada, ela se levanta, senta e espera. Observa na janela a figura que chega, como nas noites anteriores. Alguém que ela conhecia bem; durante o dia, mesmo não o vendo, Emmy sentia sua presença. Hoje havia algo diferente, um brilho nos olhos. Estava escuro, a visão embaçada, mas ela viu que ele carregava algo estranho — O que você tem ai? — Pensei que você reconheceria um cajado, Emmy! Com um gesto, fez com que ela tocasse o cajado, que se acendeu em seguida, como se respondesse ao toque. Emmy viu que o cajado tinha uma pedra desconhecida. Era a pedra que emanava luz. Observou enquanto ele tirava uma armadura completa, com espada e escudo, da bolsa e a entregou para que vestisse. Algo que estranhamente serviu. Para onde vamos hoje? — perguntou Emmy. Ele estendeu a mão e a conduziu pela porta do quarto. Ao sair, não eram mais os cômodos da casa dela que estavam vendo. Tudo estava escuro, não haviam formas, somente ouviam-se ecos e a luz que emanava dele. Caminharam por algum tempo até que todo o vazio tomou forma. Sob os pés deles havia grama, estavam no topo de um morro à frente do que parecia uma construção inacabada. Tochas espalhadas iluminando o local davam um ar sombrio para as árvores e, por todo o lado, pessoas acorrentadas. Pela primeira 15


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vez desde que essas aventuras começaram, sentiu medo. Descendo o morro, Emmy olha atentamente o lugar e entende agora o sentido de sua armadura. Dentro de si, sabia como manejar a espada, até o escudo não parecia mais tão pesado. Era como se estivesse esperado por toda a existência para viver esse exato momento. Aquele era um local de guerra. Conforme se aproximavam, conseguia distinguir rostos de mulheres, crianças, homens, todos com mordaças e alguns enjaulados. Havia também criaturas de forma animalesca, com corpo de homem e cabeça de algo que aparentava ser um touro. Não se sabia ao certo de onde vinham, mas Emmy ouvia gritos e sussurros dizendo coisas como: “Você não é ninguém!” “Quem poderia amar alguém como você?” “Desista, você é fraco demais pra isso.” “Você não vai consegui!” “Tudo isso é culpa sua.” Todo o cenário era assustador porque daquelas pessoas presas fluía uma espécie de rio formado pelos pensamentos tristes, e as criaturas se alimentavam disso, era de onde tiravam força para manterem os prisioneiros. Ela queria parar e ajudar cada um, mas ele a levou até alguém, uma moça que escondia o rosto entre as mãos. Ao sentir a presença deles, ela retirou as mãos vagarosamente e, ao encontrar os olhos, Emmy, caiu no chão. Não podia ser real, ela não tinha irmãos ou irmãs, muito menos uma gêmea Estava diante de si, presa em um círculo, tentando falar, porém sem voz, não emitia nenhum som. Ela olhou em volta, 16

ouviu gritos, sons de choro e começou a se perguntar o que estava fazendo ali. Que lugar era aquele? O mundo acabou? Era mesmo o Apocalipse acontecendo? Parecia que algumas coisas não faziam sentido. Quando os algozes monstruosos tentaram alcançá-los, o mago os afastou apenas batendo o cajado no chão, dispersando luz sobre eles e fazendo-os fugir dali. Emmy sabia que estavam fazendo algo importante, aquelas dúvidas não existiam mais. Ouvia-se o som de um grande exército invisível toda vez que ele batia o cajado no chão, impedindo que os monstros chegassem perto. Ao se aproximar do círculo que a mantinha prisioneira, Emmy observou que não havia ferrolho ou fechadura, as correntes estavam soltas, presas a nada, enroladas nos membros dela. Por toda a volta as prisões eram iguais, nada os impediam de sair, porém os pensamentos de cada um mantinham fortes as criaturas que, de perto, eram pequenas. Emmy conduziu seu outro eu para fora da prisão, retirou as correntes, limpou e secou as lágrimas dela. Enquanto isso, aquele que a acompanhava caminhou até o centro e, com toda força, bateu o cajado no chão uma última vez, fazendo as criaturas fugirem para o vazio de onde vieram. Todos que antes estavam presos, libertaram-se. Caindo, clamavam: “Somos livres!” Como quem desperta de um sonho, Emmy abriu os olhos, sentou e olhou em volta, mas ainda não era o seu quarto que via. Confusa, começou a pensar que tudo não passava de um sonho doentio, o subconsciente tentando curar as dores de


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uma alma presa em mágoas e ressentimentos. Mas era real, ainda estava no morro com grama, enxergava as tochas, ainda era o mesmo lugar. Uma senhora se aproximou, sentou-se ao seu lado e, olhando para o horizonte, começou a dizer: — Sabe de uma coisa, querida? Nosso maior inimigo, somos nós mesmos. Possuímos a autoridade de nos prender e temos a chave para nos libertar. A prisão da mente é a pior de todas, pois nessa condição estamos presos em nossos erros passados, na culpa ou na falta de perdão. Perdoar-se é a primeira coisa que podemos fazer para que essas correntes sumam. É possível seguir em frente sem os resquícios do passado de tormento que vivíamos, mas apenas quando nos permitimos liberar o perdão sobre nós mesmos. As tochas se apagaram e uma fumaça branca começou a encobrir o lugar. Emmy acordou sobre a própria cama, encarou o relógio na cabeceira, viu os quadros pendurados na parede do quarto e sentiu o cajado nas mãos.

*Evelyn Carvalho é moradora do bairro de Santa Cruz, Rio de Janeiro. Atualmente cursando Letras na FEUC. Apaixonada por livros de romances e autoajuda. Ela é uma mulher com alma de menina sonhadora que vive no mundo da fantasia criando textos, histórias e poesias.

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Diabos! Fábio Campelo* Eu vi o diabo três vezes ao longo da vida. Na primeira eu tinha nove ou dez anos. Estava no culto de domingo com meu pai e o príncipe das trevas estava de pé, abraçado ao pastor, relatando com os olhos cheios de lágrimas, como o capeta fazia ele beber e usar tóchico. Tentei contar pro meu pai o que tinha visto, mas ele não quis ouvir. Me encheu de porrada e tomou meu celular para, segundo ele, “eu aprender a não brincar mais com coisa séria”. Na segunda vez eu já tinha dezoito anos e, de novo, foi numa igreja. Dessa vez ele estava recolhendo as ofertas dos fiéis enquanto o pastor berrava no microfone, vestido de mendigo, dizendo que felizes eram os pobres porque a riqueza era a ferramenta que o demônio usava para fazer o seu serviço sujo. Engraçado,

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pobreza nunca me trouxe felicidade, mas o pastor, por outro lado, sempre pareceu bem satisfeito atrás do volante dos carros importados com os quais costumava desfilar pela comunidade. Nessa vez o diabo me viu também. Ele estava no carro, ao lado do pastor, e acenou sorrindo quando reparou em mim olhando pra eles. A terceira vez foi na maternidade em Bangu. Tinha 19 anos e minha mulher paria meu primeiro filho. Não estava sendo um dia fácil, a criança estava atravessada e o cordão umbilical parecia enroscado no pescoço. Impotente, esperava sozinho na recepção, olhando para as unhas grandes e sujas de meus pés. Meu pai não falava mais comigo (e proibia minha mãe de me ver), desde que tinha me afastado da igreja, e os pais da Sandrineide estavam na sala de espera da obstetrícia, acompanhando o procedimento de perto. Não estava com eles porque o hospital só deixava ficar lá dois de cada vez, de modo que nos revesávamos. Tava tão distraído que só percebi o capeta sentado ao meu lado quando ele me estendeu um pacote de bala. “Mentex?” Ver o diabo de longe é ruim. Sentar do lado dele, meu irmão, é foda! Sempre me achei um cabra valente, mas a única coisa que eu consegui fazer foi ficar tremendo e lutando pra não me cagar. Ao ver meu susto, ele riu e engoliu umas três


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balas de uma vez. “Adoro doce” — me disse. “Doce, cachaça, foda e sermão de igreja. Nossa! Como eu adoro um sermão bem barulhento, com microfonia e som ruim!” Ele escancarou um sorriso. Eu não sabia o que dizer ou fazer, o que você diz pro diabo quando encontra com ele na recepção lotada de uma maternidade em Bangu? “E-esperando alguém?” — foi tudo o que consegui balbuciar. “Nãã. Só dando uma volta!” — respondeu olhando distraidamente ao redor. “Olha aquela velha ali” — disse apontando para uma senhora de coisa de setenta anos que estava sentada do outro lado da recepção, movendo os lábios enquanto tentava ler uma Bíblia surrada em silêncio. “Fica o dia inteiro rezando e lendo a Bíblia. Depois do que ela fez com a filha e de tudo o que disse pra neta quando ela engravidou aos quatorze anos, é mais fácil Pedro me dar a chave do Paraíso do que deixar ela passar pelo portão. Falando nisso, é seu primeiro filho?” Ele me perguntou de sopetão. Balancei a cabeça como se estivesse tendo um espasmo e gaguejei uma resposta. “É-é sim.” “Sei” — pegou o pacote já pela metade e engoliu mais três balas. “Nunca tive um filho. Ao longo dos milênios adotei alguns, mas nunca fiz um meu mesmo. Mas não foi por falta de tentativa” — começou a gargalhar, catucando minhas costelas com o cotovelo. Ri também, mas de nervoso, silenciosamente implorando pra que alguém viesse me acudir. Quando cansou da própria piada, o diabo ficou sério e em silêncio por um tempo.

“A verdade é que nunca quis ser pai. Acho que tem a ver com o fato de ter sido expulso de casa pelo meu por causa de uma desobediência boba. Daí pra frente comecei a achar que todo mundo que vira pai fica boçal” — ele ficou pensativo, com o olhar perdido, como se estivesse pensando em outra época ou lugar. “O pai e eu nunca nos entendemos muito bem na verdade.” Acendeu um cigarro e, ignorando os olhares de repressão à volta, deu uma longa tragada. Me estendeu uma maço de G e ofereceu um também. Não quis as balas, mas peguei o cigarro “Verdade seja dita, eu não sou fácil de se lidar também” — completou o raciocínio olhando pro próprio cigarro. Deu um sorriso pra mim, levantou-se e caminhou na direção da saída. “Boa sorte com seu filho” — falou e se despediu. Isso tudo aconteceu já faz um tempão. Meu filho nasceu e cresceu saudável. Me separei e voltei a casar duas vezes e, desde daquele dia, nunca mais vi o diabo de novo, mas ainda tenho o cigarro que ele me deu guardado. Acho que um dia, quando eu for mais velho ainda e estiver perto de partir desse mundo, vou ver o diabo uma quarta vez. Ele vai sentar ao meu lado de novo e vamos fumar juntos, e eu vou contar pra ele da primeira vez que o vi, aos nove anos, fazendo um relato numa igrejinha suja e pobre em Vila Aliança, abraçado com o pastor que, dias depois, foi flagrado comendo uma fiel, no beco atrás do templo. *Fábio Campelo é historiador, professor e artista plástico. Se aventura no mundo das letras desde os sete anos. 19


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Nia Janaína Ferreira da Silva* Nia não queria nascer. Sua mãe contava essa história em quase todas as reuniões familiares. “Minha Nia não queria sair da barriga por nada do mundo! Sempre foi devagar a minha pequena!” A pequena completou 24 anos e seus pais não deixariam a data passar batida de jeito algum. Foi uma tarde aconchegante, sem muita firula, pois Nia não gostava muito de celebrar os aniversários. Familiares e alguns poucos amigos estavam presentes. Nia estampava sorrisos. Quem a via, não fazia ideia de como ela se esforçava para fazer tudo parecer bem. Não queria preocupar ninguém. Achava que ela mesma poderia dar conta de seus medos e traumas. Ela os levava pra todos os cantos. A relação era tão íntima que ela tinha, às vezes, a impressão de tê-los sob controle. Não os tinha. E chorava quase sempre. A tarde de aniversário foi boa, ganhou presentes, recebeu homenagens nas redes sociais de seus amigos. Nia sentiu falta da agitação da amiga de longa data, Prya. Por conta dos plantões do trabalho, Prya não pode estar presente, mas mandou mensagens de áudio, de texto e fez diversas publicações nas redes sociais. Assim que o plantão finalizou, ela ligou imediatamente para sua amiga e conversaram por alguns minutos. Prya havia sido aprovada em um processo seletivo de uma empresa renomada e decidiu celebrar em sua boate favorita. Nia pensou em dar uma desculpa qualquer para não ir, mas sabia o quão feliz a amiga ficaria se ela fosse. Confirmou a ida, mas se arrependeu no minuto seguinte. Nia não era como as jovens de sua idade. Enquanto a maioria das amigas havia transado com muitos rapazes, ela sequer 20

Arte: Yaya, de Yasmin Ferreira


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havia beijado na boca. Sempre teve uma relação bem delicada com o espelho. Não se entendiam de forma alguma. Chorava, via defeitos, não tinha o menor respeito pela imagem que o espelho refletia. Se achava feia; os dentes não eram alinhados o suficiente, o corpo estava muito fora do padrão, o nariz era largo demais... Chegou o dia de celebrar a conquista de Prya. Nia se arrumou com a roupa mais bonita que possuía. Ganhou de seu pai um vestido amarelo com estampas coloridas que faziam um lindo contraste com sua pele preta. O amarelo lhe caia muito bem! Os cabelos crespos foram trançados pelas mãos delicadas de sua mãe, naquela manhã. Ela não ligava para sapatos muito femininos. Não tinha nenhum. Calçou o All Star preto, pegou a bolsa de mão, parou diante do espelho para conferir se os medos e traumas estavam presentes, pediu a bênção aos seus Mais Velhos e saiu. Chamou um táxi pelo aplicativo. O coração da jovem acelerava a cada vez que o taxista se aproximava do local. A vontade de pedir ao motorista para que desse a meia volta e retornasse era imensa. Pensou na amiga e nos momentos que partilharam durante a infância e adolescência, e em como Prya ficaria feliz ao vê-la. Chegou à porta da boate bem antes do horário combinado. Detestava atrasos. Ficou espantada com a fila. De fora, era possível ouvir toda a trilha sonora da noite. “Funk!” — reclamou e em seguida suspirou. Não sabia dançar, não sabia cantar funk. Tímida demais para se soltar ao som do pancadão. De repente, Nia se assustou com um berro do outro lado da

rua. “Niaaaaaaaaaa! Você está linda!” A jovem sorriu sem graça. Prya foi em sua direção com os braços abertos para abraçá-la com força. Apresentou as amigas que chegaram com ela à Nia e foram pra fila. Boate é o tipo de lugar que ou você ama ou você odeia. Não existe meio termo. A começar pelo volume da música. “Não precisa ser tão alto assim!” — Nia se queixava em silêncio. Tentava estampar aquele sorriso pras pessoas, mas nem sempre conseguia. Prya e suas amigas dançavam o tempo todo. Nia só movimentava os ombros. Ela se sentia como os gringos brancos que vão à roda de samba pela primeira vez e não conseguem coordenar bem os movimentos. A combinação da fumaça com o excesso de luz produziam em Nia uma certa irritação. Mas ela tentava manter a postura. Houve um momento em que Prya e suas amigas sumiram porque, provavelmente, estavam beijando alguém. E de fato, naquele momento, ela estava sozinha, no meio de um monte de desconhecidos ao som de funk a 150 BPM que ela não sabia cantar nem dançar. Decidiu ir embora. Depois mandaria uma mensagem pra Prya com a desculpa de que estava passando mal. Seguiu em direção à saída e, na eminência de dar o passo rumo a liberdade para bem longe daquela agitação, Nia parou e voltou a pensar em Prya. Pensou nos sacrifícios que a amiga fez por ela tantas vezes. Respirou fundo, deu meia volta e se direcionou para a pista. Em passos lentos, se esquivando da galera, Nia chegou à pista e percebeu que Prya estava a sua procura. Elas se abraçaram. Prya sabia, lá no fundo, que Nia quase 21


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saiu da boate. Uma sequência de músicas menos acelerada começou. A confusão luminosa e esfumaçada e o som nas alturas já não irritavam tanto Nia. A jovem começava se render ao funk até que foi tomada por uma visão. Uma silhueta masculina, alta, preta como ela, se aproximava. Com calma, mas com destreza, o homem se esquivava dos dançantes. Nia diminuiu, aos poucos, o ritmo de seus passos e olhou fixamente na direção daquele rapaz que se aproximava cada vez mais. Nia sentia o coração acelerar. Pensamentos que não faziam o menor sentido começaram a pipocar na cabeça dela. Queria fugir dali, mas não conseguia. E, finalmente, o jovem chegou bem perto de Nia. Perto o suficiente para reparar no rosto dela, em seus adornos e no jeito tímido. Com uma das mãos, ele acariciou o rosto dela, com a outra, delicadamente, conduziu o corpo de Nia para mais perto dele, olhou pra alma da jovem, despiu-a do medo e a beijou. Sem oferecer resistência, Nia se entregou ao momento. Àquela altura, pouco importava a música que o DJ executava ou as luzes e fumaças do ambiente. Os dois moraram naquele beijo por algum tempo. Nia não soube precisar por quanto tempo ali ficaram. Também não soube dizer o nome do rapaz, pois eles não trocaram uma palavra sequer. O rapaz sorriu ao finalizar o beijo, se afastou de Nia e sumiu na multidão. Prya, que acompanhou toda a cena, foi na direção da amiga, toda saltitante. Sem precisar performar ou forçar, Nia sorriu! Já era manhã quando Nia chegou à casa. Na sala, a tevê ligada, sua Mãe adormecida no sofá. Pensou no esforço da 22

Mais Velha em esperar pelo retorno da única filha. Desligou a tevê, acomodou-a no sofá, beijou-lhe a testa e foi para o quarto. Se pôs de frente ao espelho, se olhou com muita seriedade e desaguou. Chorou muito. Chorou de alívio. Chorou de alegria. Chorou por ter perdido oportunidades. Daí, sorria ao se lembrar do beijo e das sensações novas em seu corpo. Voltou a se encarar no espelho e tentou se tratar com um pouco mais de carinho Nia sabia que iniciava ali uma jornada de reconciliação consigo mesma. Não seria fácil, mas ela se dispôs a tentar assim mesmo.

*Janaína Ferreira da Silva, graduada em Pedagogia, Professora de Ensino Fundamental I da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.


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C:\<ESMS>++ Jeferson Corrêa* QUANDO DESPERTOU DA PROFUNDA ESCURIDÃO, reconheceu que estava vivo. Sentiu as vibrações do som propagado em seus tímpanos. Frequências normais para um ser humano saudável. Ouviu com perfeição a voz feminina saída da tela do Computador Quântico. As íris contraíram-se enquanto as pupilas dilataram-se recebendo luz artificial. A sensação de enxergar naquele momento era semelhante à de quando veio ao mundo.

Respirou o oxigênio presente na atmosfera e eliminou dióxido de carbono nas trocas gasosas. Os órgãos respiratórios funcionaram como deveriam. Desde as fossas nasais aos alvéolos pulmonares. O coração bombeou o sangue através dos vasos sanguíneos, as células absorveram o oxigênio e os nutrientes circulantes e liberaram as excretas metabólicas. Acostumou-se, devagar, à quantidade do forte branco imaculado do ambiente, aos desenhos de neurônios, iluminados por luz azul, na parede. Sentiu o cheiro de éter que pairava pelo ar, e na pele veio aque-

la estranha percepção de eriçar os pelos do corpo. Ser um indivíduo mais uma vez. Demorou alguns minutos para readaptar-se à realidade. Estivera deitado na cama branca, usando os ajustáveis Óculos VR conectados via Bluetooh ao Computador Quântico. Havia experienciado a temida finitude. Esteve morto. Indiscutivelmente morto. O decesso, silencioso e pacífico, era um agradável sono eterno. Enquanto morto, não possuía um corpo físico; apenas uma primitiva consciência. Existia em um plano sem quaisquer perturbações físicas e psicológicas onde reinavam a paz e o vazio. O melhor da vida era a morte. A sensação do cessamento das atividades biológicas era acalentadora como o retorno ao útero. O sentimento foi de ter vivido mil dias na mente induzida, mas apenas tinham se passado uma hora no mostrador de tempo na tela do Computador Quântico. Uma hora da mais pura e bela virtualização de vivência em um plano espiritual. O despertar à vida aconteceu como programado, ao meio-dia. Aquela foi mais uma sessão de ESMS. O cliente desejava morrer como um ateu, conhecer a escuridão e o vazio. Pagara para falecer pela décima vez. Experimentara todos os paraísos recomendados no site. Retirou os óculos, levantou-se da cama ao fim da sessão com um sorriso no rosto. Agradeceu à SimOne pela ótima morte do dia. Uma das melhores. A ESMS <Experiência Sensorial de 23


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Morte Simulada> provou-se mais um acerto da SIMULACRO, empresa especializada em realidade virtual e aumentada. A primeira criada e comandada por uma Inteligência Artificial, SimOne <Simulation One>. Com o intuito inicial de ajudar tanatofóbicos e suicidas em potencial a lidar com a Pulsão de Morte, a ESMS mostrou-se a experiência definitiva em qualidade de desencarne. Assim como as melhores drogas do mercado e as melhores sensações de orgasmo, o passamento (por algumas horas) era viciante. Fora feito para ser. Adquiriu, com o passar dos meses, a esperada popularidade mundial. Não só o público-alvo procurava pela experiência transcendental, mas grande parte da população. A morte era mais desejada que a vida. Não mais temida pela incerteza, era uma alternativa legalizada em meio à tanto sofrimento terrestre. Com o suicídio real ainda execrado na sociedade, a Morte Simulada fora a perfeita solução, afinal, desde o início dos tempos, a recompensa do pós-vida era o destino procurado pelos religiosos. Fosse a recompensa o Paraíso cristão, o Valhala nórdico, Takama-ga-hara japonês ou o Trayastrimsa budista, apenas morrendo era possível acessar os espaços divinos. A ideia de um lugar melhor fora da realidade sempre existiu no imaginário coletivo. O que a tecnologia de SimOne fez foi virtualizar todas as formas de paraíso descritas e capitalizá-las. Usando da tecnologia ESMS, o cliente sentia todas as sensações possíveis e imagináveis dentro do paraíso 24

da crença escolhida. Poderia deflorar quando desejasse 72 virgens, viver em uma terra que emanasse leite e mel em harmonia com anjos tocando harpas, batalhar contra os mais poderosos guerreiros da história e até mesmo viver novas vidas por meio da reencarnação. Melhor que qualquer videogame jogado, qualquer livro lido ou qualquer música escutada. Tão real quanto o mundo fora da SIMULACRO. Morrer nunca fora tão fácil e tão acessível, pois era permitido parcelar em quantas vezes quisesse. A vida real perdera em absoluto o interesse. A vida virtual era a única que importava. Na época que a ESMS foi uma febre, ainda havia os obsoletos corpos físicos e as informações das psiques humanas não encontravam-se baixadas e armazenadas em nuvens virtuais. A ESMS tinha sido uma experiência revolucionária que mudara a sociedade. Odiada por poucos e amada por muitos. Lembrada hoje com saudosismo por todos aqueles que estão insatisfeitos com a atualização, a ESIS <Experiência Sensorial de Imortalidade Simulada>. *Jeferson Corrêa nasceu no Rio de Janeiro, em 1987. Desde que se entende por gente sempre gostou de criar. É autor do livro independente “Além do que os olhos podem ver” (2014). Apaixonado pela escrita, pelas artes e por cultura pop, deseja criar histórias que marquem pessoas das mais variadas formas.


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Austeridade Lorena de Holanda* O governo da minha vida enfrenta problemas. A conta não está fechando. Parte da culpa é do cenário externo a mim, que dificulta trocas, impõe responsabilidades e restringe a expansão da minha felicidade. Sem contar o nível de estresse, que não para de crescer. Tá complicado. Isso tudo influencia a produtividade e a inovação aqui dentro. Aposto que se economistas estudassem minha situação, diriam, desesperados: “Você vai quebrar, hein! Tá na hora de cortar laços!” Há muitas pessoas disponíveis no mercado, mas é preciso saber investir. O mundo de hoje permite que nosso portfólio seja bastante diversificado, flexível e, por isso, com muito estudo e cautela, os investimentos externos podem elevar nosso bem-estar. A pergunta “O que eu ganho com essa pessoa em minha vida?” é essencial e perfeitamente capaz de avaliar a necessidade de uma relação, seja ela familiar, amorosa, de amizade, casual... não importa. É preciso ser pragmático. Se a resposta não for minimamente satisfatória, basta jogar a criatura para escanteio e investir numa nova. No entanto, é preciso o mínimo de planejamento, pois o desapego pode representar algumas perdas significativas. Meu problema sempre foi gostar muito de especulação. Também nunca tive medo de gastar energia demais. Pode-se dizer que tenho experiência com investimentos de alto risco, com essas coisas que todo mundo acha que só dão prejuízo, mas que, na verdade, possuem alto grau de rentabilidade: os afetos. Me trouxeram alguns prantos, acabei entrando numas furadas e as frustrações foram muitas, não vou negar. Mas investiria tudo de novo. Foi quase como roubar, porque recebi muito sem fazer esforços. Bastava olhar nos olhos daquelas pessoas. Bastava rir acompanhado daqueles risos, escutar aque25


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las bobagens que se pareciam com as minhas, ensinar aquelas coisas simples que me tornavam parte do outro, ter o prazer de evoluir com novas perspectivas, bastava deixar a energia fluir entre nós. O afeto me fez a pessoa mais feliz do mundo. No entanto, isso tudo valeu à pena? Não sei. O que vem fácil, vai fácil — dizem. O que sei é que estou quebrando. E não foi por simples questão de desapego, sabe? Investir em afeto genuíno, afeto do bom mesmo, requer certa primazia, alguma estima e ternura. Quando tudo isso para de dar lucro — sabe-se lá o porquê!, nunca deveria parar de dar lucro —, a perda dentro da gente não é apenas significativa, o vazamento de ânimo é tanto que leva junto o sentido em continuar respirando. Sorte a minha de sentir o coração ainda bater. O pior de tudo é não saber de que serve o ânimo inerente ao ser humano. Sempre me disseram que é para elevar a produtividade, para sair da zona de conforto e inovar. Sempre gostei de escrever, sinto enorme prazer nisso. Tenho alguns diários, versos e rabiscos espalhados em meu pequeno universo particular, aos quais poucas pessoas tiveram acesso. Um dia me disseram que eu deveria ousar, ou melhor, investir minha energia em algo que nunca tinha pensado antes, algo seguro, confiável e comprometido a me render benefícios: eu mesmo. Deveria aprimorar minha escrita para começar a publicar coisas. Achei ótimo o conselho. E o retorno foi surpreendente! Me expresso melhor, observo o que é externo a mim com mais atenção, aprendo incessantemente e — olhe só como a vida é irônica! — recebo afeto. Ao divertir algu26

mas pessoas ou entediar e irritar outras, eu volto, indiretamente, a me relacionar com elas, ou melhor, com meus ativos de risco. Mas, não, isso também não é ser produtivo. Tampouco inovador. Eu só seria essas coisas se o indicador de cifrões da minha vida estivesse elevado! E não está. Ou seja, o ânimo inerente a mim (o pouco ânimo que me restava!), foi investido em algo inútil. Preciso de ajuda. Reconheço que o governo da minha vida é descontrolado e ineficiente. A conta não está fechando. Sem contar o drama que é viver sob um estresse inercial, consegue imaginar o que é ter o estresse passado se somando à expectativa do estresse futuro? Pois é, todo mundo sofre da junção de estresse e ansiedade. Ou estresse e ataque de pânico, estresse e depressão, que seja! Estou quebrando. Os economistas é que estão certos: a saída está nos ajustes, nos cortes, na privatização daquele afeto que sempre fiz questão de tornar público. Não posso contar com mais prejuízos agora, ainda que precise deixar minha alma morrer de fome para economizar ânimo. Não tenho mais condições de fazer investimentos. Preciso arrumar tudo aqui dentro primeiro, só depois volto a crescer. Stop and go...

*Lorena Bastos de Holanda é estudante de Economia (UFF) e faz parte do Grupo Quinquilharia, que reúne pessoas de todo o Brasil para produzir conteúdo original sobre cinema, música e literatura.


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Olhares Luciana Mateus* Era seu último dia no lugar indesejado por muitos, onde silêncios são cortados por barulhos de abraços, apertos de mão, familiares e amigos que há muito não se veem. Ouve-se choro, grito, cantorias, rezas, orações e muitos “fica assim não, está num melhor lugar que nós”. Para João, que veio da caatinga ainda nos braços da mãe, ali é o local do ganha-pão, do sustento, do cheiro de flores desagradáveis, muitas vezes única homenagem àquele que viveu uma vida sem uma rosa. João, na carteira de trabalho tirada aos dezesseis anos, tem o ofício de coveiro. Senta no mármore no último dia de trabalho e lembra de uma família chegar com uma criança de oito anos para o velório da bisavó; a menina vestida de rosa, com tranças bem amarradas, pois não podia pegar mais piolho, olha as lápides com admiração, ela calcula quantos anos cada pessoa enterrada ali viveu, procura fotos nas lápides, imagina histórias. João

observa a família que acompanha a menina, uma família que nem todos se cumprimentam, afinal famílias se unem em torno do nascimento, às vezes, mais frequentemente em torno da morte. Mortes que levam segredos, cumplicidades, mentiras e dores familiares enterradas junto aos entes queridos ou considerados como tal. Entre tantos olhares, no local para muitos temidos, mas necessário, ele lembra de uma mulher chegar aflita, afinal tinha chovido muito, com a única sensação de que o corpo da mãe estaria boiando no cemitério. João lembra do desespero da mulher aumentar ao não ver mais a cruz numerada, afinal, outro ali já estava. Não se ouvia a voz de João. Era mais um dia de sepultamento, de ouvir choros, gritos, lástimas. Naquele dia João viu reencontro. Eram muitos jovens a lamentar uma vida, perdida para remédios para emagrecer; ouviu-se um grito

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no primeiro punhado de terra batido no caixão. A vida tem disso, um dia que era para ser mais um na rotina, se torna memorável junto com seus companheiros de enxada e pá. João usava enxada e pá, não para plantar e trazer o alimento, mas para devolver à terra o corpo sem vida. Voltando a esse dia, o velório foi demorado mais que o de costume, talvez por essa vida tão jovem, a caçula de oito filhos, pouco mais de vinte anos, a moça que carinhosamente chamava as colegas de amada, se foi. Naquele dia foi listado que outras mulheres, amigas em comum que teriam ido ao mesmo médico, usado os mesmos medicamentos, sobreviveram. Outra lembrança, além dos pequenos caixões brancos, esses eram os momentos mais difíceis, levar para as entranhas da terra, quem dela não se alimentou, nem mesmo a tocou, foi de um dia barulhento, o movimento no bar ao lado do cemitério naquele dia foi mais intenso, era o enterro, de um quase idoso, que dizia que o templo dele era o bar, esse dia encheu, o que seria levado à sepultura, não praticava mais a religião, prevaleceu a religião para a despedida, a da filha mais nova. Chegou o padre e de costume foi cantada, “Onde houver ódio, que eu leve o amor. Onde houver ofensa, que eu leve o perdão. Onde houver discórdia, que eu leve a união”. A viúva lamentava, afinal ouvira, dias antes, que seu marido a levaria em Penedo. Com ouvidos incrédulos, quem ouviu a consolava. No dia do sepultamento sua colega mais próxima de trabalho trouxe as lembranças diárias, enquanto o caixão 28

descia e a família dava seu último adeus. Havia choro, mas também havia risadas abafadas, e como mais um dia, as batidas da terra, do pó ao seu lugar. Se há algo que João fecha os olhos e ouve, no caminho de casa, é “Onde houver tristeza que eu leve alegria” ecoada todos os dias e levada pelo vento, das árvores que fazem o caminho para o cortejo do último lar. Não, os olhares não terminam; teve aquela mãe agarrada com a toalha azul, presente o companheiro da mãe, as três vizinhas, as professoras de História e Matemática e a secretária escolar. A toalha azul despertou a curiosidade naquela manhã de verão dos últimos dias de aulas escolares, foi a toalha que o menino de apenas quinze anos se enxugou e deitou no sofá, pouco antes do seu último suspiro. A toalha azul acompanhou o pequeno cortejo, foi levada de volta, lembrança da vida. João entre tantas covas abertas e fechadas, olhou a toalha azul.

*Luciana Mateus de Paula, nascida na Baixada Fluminense e criada no Rio. Formada em História pela UFRJ e Professora da rede pública municipal do Rio de Janeiro. Gosta de ler, contar histórias e cantar com as crianças. Em diferentes fases da vida bordou flores, pintou e teceu. Se encanta com a poesia, o barulho do mar e o desabrochar das flores.


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A condenada das musas Ludmila Abramenko* Teu pincel é preciso — me elogiava o professor. Ele se referia a esse golpe exato, delicado e forte, dos meus dedos que pareciam treinados, focados. Parecia que meus olhos buscavam algo fora e o capturavam, como se fosse um desses aparelhos novos que vocês chamam de câmeras fotográficas, e meus dedos o transcreviam na tela. Mas não era tão simples, esse era o resultado, meus olhos buscavam nas imagens deformadas que eu tinha dentro. Essas imagens vividas da imaginação eram, também, fugazes, então era preciso prendê-las para que não se esfumassem. Era necessário trazê-las à vida. Ficava espantada com o resultado, de como saía de mim essa escuridão transformada em beleza. Eu era a única mulher numa escola de arte. Sabia disfarçar essa paixão para meus pais, esconder deles, assim não davam muita importância a minha dedicação, pelo menos enquanto cumprisse com o roteiro ditado socialmente para as mulheres da minha classe, casar-se, ter filhos, morrer. Como explicar para eles que era apaixonada por aquilo que saia de mim e que era assim que eu reproduzia algo de dentro, cada vez que pintava. Quando ele chegou ao nosso ateliê, posso ver agora com raiva que era mais casca que conteúdo, fui eclipsada. Aqueles pesados trajes de cores vivas, que destilava seu brilho com a elegância de um pavão que nasceu para ser olhado. Não vou mentir, esses brilhos me encandilaram. Aquelas penas da sua graça me deslumbraram, como se algo desse mundo que habitava, uma dessas imagens, tivesse saído para o exterior, não sei se o amava ou queria pintá-lo. Ou, talvez,

o amor era isso para nós, nos apropriar de uma imagem que estava fora, fixá-la num muro, para que nada mude. Esse era nosso pacto inicial de amor, dar uma parte dessa essência íntima ao outro, deixa-nos ver. Fazer essa troca para começar a andar. Não sei se era por concorrência masculina, mas percebia que o professor não gostava dele, não via nele nenhum assomo de talento ou singularidade a ser destacada, pelo contrário, quando se aproximava dos meus quadros um brilho emocionado aparecia em seu olhar. Não conseguiu me fazer desistir de pintar, como talvez tenha sido o pedido do meu pai, porém via no seu orgulhoso olhar uma certa melancolia como se olhasse para mim como uma borboleta que não chegaria com vida no dia seguinte. Como se minha arte fosse uma maravilha desperdiçada. Quando temos compaixão pela borboleta estamos medindo aquela vida em nossos termos. Eu não me importava com essa partitura insossa que havia sido escrita para mim, sempre que pudesse continuar reencontrando minha essência em cada pincelada. Pensava que se não pintasse mais essas imagens que apareciam sem parar, não poderiam sair e me sufocariam. Mas não foi isso o que aconteceu. Ele começou a pintar meu retrato. Confundida como eu estava entre o fascínio da sua imagem projetada e ele próprio, não chegava a ver quão limitado era. Devo reconhecer que sabia reproduzir a beleza das coisas, mas algo faltava nele, ficava na superfície, faltava a capacidade de mergulhar na escuridão para obter a essência verdadeira do que via. Talvez porque sua própria imagem era maior que tudo, ou 29


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porque estava acostumado a que tudo resultasse fácil, ele podia escrever sua própria partitura. Eu posava para ele e o via me olhar obnubilado. Pintava meus traços com uma perfeita beleza, embora vazia como se se tratasse de uma natureza morta. Reproduzia com perfeição técnica, mas faltava o sopro que anima. Então decidi, quem conhecia meu ser melhor do que eu? Quem podia lhe dar vida a meu retrato, se não eu mesma cedendo um pouco da minha própria vida? Ele não falou explicitamente, os homens não eram acostumados a pedir, éramos nós, as mulheres, treinadas para nos antecipar às necessidades deles antes que precisassem pedí-las, e no caso, para ele pedir era reconhecer seu limite. Atendi a seus olhos suplicantes e eu mesma acabei o retrato. Estava cumprindo minha parte do pacto de amor estabelecido, cedia essa parte de mim aguardando essa parte que ele me daria. Pintei essa parte que ele não tinha conseguido tocar, foi dolorido, como se arrancasse uma unha, e prazeroso como se mergulhasse num mar de escuridão, sem aparente fim, e conseguisse sair na superfície, me apropriando dessa escuridão e transformando-a em fios de luz. Sempre acontecia um fenômeno semelhante, mas agora era mais intenso, nada do que havia pintado até então era tão eu. Pensava nesse momento, que quando acabasse esse retrato as imagens voltariam a mim, e continuaria me retroalimentando delas, e que, quando ele me cedesse essa parte sua, algo de mim recuperaria. Nada disso aconteceu, nunca mais o vi e me apaguei. Comecei a escrever cartas para ele no 30

desespero, relembrando do nosso pacto, precisava que algo fosse retribuído. Me sentia roubada e tola. Quando me resignei a não obter resposta, fiquei sem luz, as imagens secaram como meu corpo, envelhecido por dentro. Uma vez despossuída da minha alma, meu corpo foi caindo, como ramas secas. Meus dedos que só serviam para pintar, se arquearam como garras. Sobretudo, um cansaço opressor estendeu dentro de mim raízes profundas. As palavras que ouvia não ficavam em mim, não falava. E aconteceu algo pior que aquela desaparição muda: o quadro foi um sucesso. Estava condenada desde aí para sempre a que, não somente ele, senão todas as pessoas que ficaram encantadas com o quadro (ao redor do mundo, como aconteceu depois quando além do original, as cópias se multiplicaram), sugaram um pouco dessa vida que, comecei a entrever, nunca mais voltaria a ser minha. Nesse nosso pequeno mundo das vaidades ele começou a fazer o que melhor sabia, estender suas penas e se deixar lisonjear, até que a atenção começou a se dirigir à musa. Passei a ser uma musa. Num primeiro momento sentia uma raiva ardente, um impulso, apenas controlado pela fraqueza do meu corpo, de destruir esse quadro e me destruir definitivamente. Aos poucos fui me resignando. Me resignei a perder a imortalidade que ele ganhou sem mérito, mas o que não renunciei foi perder minha possibilidade, embora anônima, de pintar. Não era a fama o que me interessava, era essa parte minha que ele tinha roubado, o que é pior porque me deixei roubar. Para as pou-


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cas pessoas que associaram meu rosto a pintura, recusei tal semelhança. A fama da musa foi superando ao pintor, já que ele não conseguiu nunca mais pintar um quadro que se lhe assemelhasse. Essa foi uma pequena vingança, insatisfatória e injusta, como todas as vinganças. Ninguém se perguntava por que eu não pintava, e as pessoas que não duvidavam, apesar das minhas recusas, que era minha face a inspiração desse quadro, e não entendiam por que não colhia para mim essas láureas. Agonizava como um cadáver enforcado pendurando que ninguém recolhia.

Somente uma pessoa pareceu entender minha agonia. Depois de meses de uma sobrevivência cansada, minha mãe se aproximou de mim e falou “— É o que os homens fazem, roubam a imagem que querem de nós, a penduram num muro e nos esquecem”. Nunca a ouvi tão sábia, tão decidida sobre um assunto, e tão irremediavelmente triste. Mas ela não

sabia que era eu quem tinha dado a ele essa parte de mim. Só respondi “— Ele se apropriou de uma parte da minha vida, o que se faz?” “— Se constrói outra” — falou. Essas palavras foram como uma ordem, essa raiva quente que ainda sentia dentro de mim aumentou e acordei. E voltei a pintar, estava vazia, a única coisa que tinha dentro era o ódio por esse pavão de penas artificiais, que me atravessava e se transformou no seu retrato. Um pouco de compaixão por essa borboleta de asas quebradas, outro pouco porque sabia a valia dessa obra. O professor aceitou assinar o retrato como se fosse seu. Não recuperei minha alma roubando um pouco da sua, porém consegui cumprir minha partitura sem grandes sofrimentos nem originalidades como faziam quase todas as mulheres do meu tempo. A vingança me deu certo alívio, se eu estava condenada à imortalidade de musa ele também está. E, talvez, vocês inclusos, tinham nos visto, pendurados, eternamente juntos e distantes, de algum muro, de algum museu em alguma cidade.

*Ludmila Abramenko é psicóloga, psicanalista, Argentina. Apaixonada pela Literatura e a Fotografia. Participou do livro El otro lado de las cosas, coletânea organizada por Rosi Mendicino. Atualmente participa da Oficina de Escrita ZO, mora no Rio de janeiro onde trabalha como psicanalista e pesquisadora (Doutorado, Fiocruz).

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Gravidade Luiza Lacaille* As mãos pálidas e bem desenhadas, delicadas, quase femininas, não fosse a força que expressam. A força das ideias que ele dissemina as gesticulando no ar. As palavras saindo da boca e voando em espiral em direção à dança de dedos. Um movimento se misturando ao outro com uma eloquência perfeita. Os olhos castanhos bem escuros quase pretos, os cantos externos que vão em direção ao chão. Mas não são olhos que fecham, são olhos atentos, amorosos, grandes e amendoados. O sorriso perfeito, todos os dentes brancos alinhados, não milimetricamente, não artificiais. O pescoço nem muito alongado nem muito curto, se ligando ao corpo, uma cor rosada, sem pelos e angelical, um decote na camiseta que revela uma porção desconfortável de pele para ser admirar em público. A voz, o mais importante de tudo, o mais irresistível. A voz grave, masculina, mas dentro de um timbre doce. Tudo que ele diz é para mim, parece que sabe o que eu estou pensando e me responde em voz alta. Quando alguém faz uma pergunta ele escuta com generosidade, não importa quão óbvia ou desconfortável é. Ele olha todos nos olhos, se conecta com os humanos à frente. Não tenho coragem de falar nada, prefiro desaparecer no meio das pessoas, não quero que ele me veja. Tomara que ele fale pra sempre, eu escutarei pra sempre. O tempo está acabando, não quero perdê-lo de vista, as pessoas estão saindo, ele continua parado, recebendo cumprimentos, apertos de

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mão, se despedindo. Não vá embora, por favor, fica! Ele guarda o celular no bolso, só sou eu, ele vai me ver, deveria ter ido embora antes, não consegui. Ele me viu, levantou as sobrancelhas, “Até mais, obrigada”. Chego ao prédio da Carolina. Eu não devia, vou de máscara apenas por conforto psicológico. Vou vê-la chorar, vou ter que abraçá-la, confortá-la. Tenho medo de pegar a doença, passar pra minha família, aperto o botão do elevador com o dedo mindinho, como se isso fizesse alguma diferença. Meu maior medo se confirma, ela misturou uísque com rivotril, desmaiou e acordou na emergência de um hospital público, algemada a cama, o diagnóstico: Tentativa de Suicídio. O marido a abandonou por uma amante, a mulher está grávida de dois meses. Nunca tinha visto um ser humano tão avassalado na minha frente. Choro mais que ela, depois ela me alcança. Eu sou uma péssima amiga, não consigo curá-la, só pioro as coisas. Enquanto me conta tudo, não a olho nos olhos, estou buscando em minha mente o que devo fazer, o que devo falar, pra quem devo que ligar. Como é que salva uma vida? Só sei que tenho que escutá-la. A nossa amizade é incomum, somos duas mulheres diferentes em tudo. Como é que a gente se entende? Nunca consegui desvendar isso. Hoje estou aqui, sou a única pessoa fora do círculo social mais íntimo a quem ela confiou esse segredo devastador. Descubro que é a sinceridade, ela é uma pessoa muito verdadeira. Nos conhecemos na escola e ficamos muito próximas, depois, quase dez anos sem nos falar, assim, sem nenhum de-


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sentendimento, nenhum rancor. Quando nos encontramos novamente retomamos tudo, como se o tempo não tivesse passado. Ela me chama de comunista, e eu a chamo de sociopata. Ela é Sherlock, impaciente, determinada, cruel. Eu sou Watson, compreensiva, humana, delicada. É por isso que eu sou a única pessoa que pode ajudá-la agora. — Eu estou humilhada, minha vida acabou e só quero que ele volte, mesmo depois de tudo. A única coisa que eu amo fazer na vida é ser esposa dele — lembro que já carreguei outras amigas assim, destruídas por um amor. — Obrigada por me ouvir, por não me julgar. Agora estou me sentindo culpada porque penso que essa experiência me dá material para escrever, para entender o sofrimento humano. Sinto que estou me aproveitando da tragédia dela. Mas estou ali, preciso ajudá-la a respirar. A gente precisa aprender a lidar com os paradoxos. O choro dela, o meu choro, o vazio dela. Lembro dele falando como é importante descobrir quem a gente é e não ter medo disso. “A gente precisa se encarar.” — Não conta pra ninguém, por favor! Eu não estou pronta, não quero que todo mundo saiba ainda, eu falhei, estou derrotada. As pessoas massacradas pelo amor se tornam terra arrasada, seca, improdutiva, sem vida. Quantas vezes já vi isso? É um destino certo. Porque não consigo parar de andar em direção a ele? São onze da noite, todas as aulas acabaram, alguns corredores estão escuros, mas ele está na sala trabalhando. Como se recupera um terreno árido? Existe vida após um tér-

mino, tem que existir, as pessoas voltam ao normal uma hora. Talvez, como um lugar que passou por um desastre nuclear, a vida que cresce é radioativa, mutante, doente. Será que um deserto pode voltar a ser uma floresta tropical? A resposta é: o tempo. Uma vida inteira é tempo suficiente para isso? O corredor é longo, uma lâmpada com mau contato faz a luz piscar, é um sinal, afaste-se! A minha mão se move de maneira autônoma, punho fechado em direção à porta. Eu bato, ele me manda entrar. Óculos, o rosto dele nasceu para essa moldura. A sua saia não está combinando com a blusa, duas estampas em conflito. Porque ele está comentando sobre a minha roupa? Eu recebi seu presente, já foi pra minha coleção de canecas em casa. Droga, eu devia ter entregado em mãos. Adoro dar presentes, principalmente para pessoas que amo. A gente tem que se encontrar fora daqui, é mais seguro. Medo de dizer e ele rejeitar. Medo, medo, medo. Vamos tomar uma cerveja? Porque que eu falei isso? Não tenho controle de nada. Ele me olha por cima dos óculos, peitoral aparecendo por debaixo da camisa branca desabotoada, amarrotada. Vamos! Saímos, eu vou na frente, ele olha pros lados e pra trás. Nos afastamos do prédio da faculdade, ele pega minha mão. Bebemos, rimos, ele fala no meu ouvido, você é uma pessoal muito especial. Meu destino está selado. Sou um satélite entrando na atmosfera dele, vou pousar em chamas. *Luiza Lacaille é nascida e criada no bairro de Campo Grande, Rio de Janeiro. É Professora de Inglês, entusiasta da literatura, música e das artes dramáticas. 33


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Antes do verão Luzia Castro* Caminho dento de uma manhã lavada pela chuva. Lado a lado, arbustos crescem formando um túnel que conduz ao oposto da pequena praça ensombrada. O cheiro das árvores molhadas traz a lembrança vaga de um amor. No fim do túnel há uma casa sombria, sei que lá não mora ninguém. Antes, era ali que eu encontrava o homem que amava. Nada pode ser mais miserável do que uma vida sem amor. Conheci esse tipo de vida na casa amarela que sempre girava em torno do sol, com suas crianças buliçosas, cortinas pesadas abafando os ruídos externos. Um pequeno mundo em falso equilíbrio nas mãos do malabarista. Um dia, o tempo, mágico intimista, lançou sobre a casa e seus seres uma suave onda de nanquim que atravessou a moldura da perfeição e levou tudo para longe. Só eu fiquei sentada assistindo o espetáculo, sem alma, sem sincronia, sem peso. Aterrorizada por pesadelos remotos, tornei-me prisioneira do medo. Fiquei imóvel durante um tempo incomensurável. Em carne viva, meu corpo estava estraçalhado pela dor. Uma noite depois de agosto, o primeiro vento da primavera bateu em minha janela, imediatamente comecei a sentir um calor incômodo e o barulho imóvel dos talheres nos pratos. Foi quando um distante instinto de sobrevivência me fez levantar e abrir um pequeno pedaço de janela, senti nos meus ossos o rumor da verdade, o vento garantia que eu poderia voar. Voltei à mesa com um pedaço da alma resgatada em algum antro do corpo. Com esse pequeno rastro de esperança, meus olhos adquiriram viço e, da retina escle-

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rosada, ouvi cores. Munida de uma coragem possível, sai à rua e caminhei até a praça. Foi então que ele surgiu, manco, feio, com olhos nublados. Assim mesmo o reconheci como um homem amável, mas fugi e zombei daquela figura execrável. Mesmo assim ele me seguiu até a casa amarela, onde me diverti com sua vã impertinência. Todas as tardes ele vinha ao portão da casa amarela. A cada minuto ele minava a minha resistência e eu continuava a zombar de sua figura desencantadora, ou era de seus olhos que não continham paixão e verdade? Comecei a amá-lo pelo imponderável ou por causa do anjo que guardava sua genitália? Existia nele um pedaço exíguo de alma irredutivelmente divorciada de seu corpo, isso tornou-se um álibi torto para a minha incapacidade de amar. Sabia-o um cão ladrando no estio. Foi nesse momento que se apoderou de mim uma segurança há muito extinta. O frio de primavera chegara com a chuva. Estava parada na praça e ele chegou com seus olhos pedintes, regressei de meu pequeno mundo e só então pude olhar de verdade para aquele estranho. De repente, sem que eu pudesse antever qualquer resposta, ele tocou em meu braço. Nesse momento percebi que estava sitiada e que toda minha vida antes havia sido um nada, um preâmbulo para aquele momento. Sabia que nunca estivera em perigo, a vida inteira caminhara em círculos pré-definidos de super-proteção e medo. Só agora eu corria em campo aberto, minada pela incerteza de todas as coisas: estava viva e ao mesmo tempo alguma coisa an-


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tiga morria junto com o território em que eu não mais pisaria. Foi então que minhas mãos fizeram florescer naquele homem algo mais instigante que a primavera nascente. E houve o primeiro beijo e a descoberta de um mundo infernalmente delicioso. Só ele pode levar meu corpo aos jardins de maravilhas artificiais onde voltei novamente a ser criança e perdi toda a perspectiva do bem e do mal. Eu, a quem não restava mais nada, que nunca soubera amar, enxergava aquele homem com um encantamento nunca sofrido. Cada dia nascia aos poucos uma nova mulher dentro e fora de minha pele, territórios novos eram explorados por um imaginário que enriquecia a cada momento. Amava pela primeira vez em minha vida. Ele era uma incógnita em aberto para mim, sabia da sua contrafação. Construíra o artefato afeto lance a lance, sempre premeditando todas as minhas reações, acreditando ser colonizador de meu corpo. Imaginou ser dono de minha intuição. Seus gestos eram lentos, suas palavras frias estavam embrulhadas por celofane brilhante, que ele puerilmente mentia fazendo crer que era afeto. Foi então que saí nua embaixo de um céu de segunda-feira em busca da casa que ficava no fim do túnel. Quando cheguei do outro lado da praça, meus pés doíam. Por alguns instantes sentei e tirei os sapatos de bico fino, uma doce lassidão passou pelo ar, senti vontade de ficar ali com o corpo estendido naquela terra estoica e o cheiro de umidade invadiu a minha carne. Voltei para casa descalça, queimada de sol, e abri o velho portão da casa

amarela. Quando o pé esquerdo pisou o primeiro umbral descobri, pela primeira vez, que aquele lugar era a minha casa. Abri os olhos e, cada objeto, antes errantes, sorriram para mim e me convidaram a entrar. Despi uma a uma as roupas que vestia, e a cada peça que caía, caíam também antigos muros que criara para me proteger de todo infortúnio. Sem muros, sem solidão, me aconcheguei junto a mim mesma e sorri. Enquanto o sol de dezembro batia forte na minha casa, esqueci todas as teorias sobre o destino. Não procurei saber sobre o premeditador porque estava tão ocupada com minha nova felicidade. Acho que um anjo o levou para algum lugar distante e o ensinou a não mentir. Sabia que estava livre e pressentia o vendaval. Comecei a escrever um diário com letras chinesas. Seus signos apontavam meu destino às avessas. Brinquei muitas estações com as emoções imperfeitas de meu diário até que uma manhã, antes do verão, senti novamente o cheiro de terra molhada. Abri a porta, atravessei o portão e olhei as velhas árvores da praça. Notei que haviam outras novas e, além do olhar, não mais vi o túnel. A praça era agora um lugar amplo, mas ainda sombreado pela doce umidade da terra. Estava novamente viva e essa reencarnação encontrava meu ser unido, corpo e alma em uma só dimensão... de olhos bem abertos. *Luzia Castro nasceu no Rio de janeiro e é cria de dois subúrbios: Campo Grande e Bangu. Foi Professora de História na rede municipal durante trinta anos e escreve desde sua extrema juventude.

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Silêncios Maria dos Remédios* Era um homem só. Estranhamente só. Todos os dias cumpria o mesmo ritual. Arrumava a mesa para o café da manhã e ia à padaria. Em passos lentos, cruzava com as mesmas pessoas que o cumprimentavam pelo dever dos bons modos. Porém, o máximo que ele fazia era um aceno com a cabeça. Nunca levantava o olhar, talvez para demonstrar que não desejava prolongar aquela relação matinal. Não fazia muita questão de certas intimidades. Ao retornar, todos da família deveriam juntar-se a ele para a primeira refeição do dia. Isso acontecia sistematicamente no mesmo horário, pois não admitia que nada alterasse aquele que era considerado quase um ato religioso. Assim se repetia por anos a atribulada e silenciosa relação entre as pessoas daquela casa. Tudo se decidia por ele. Naquela relação, era vedada qualquer possibilidade de mudança, e se acontecia, era motivo para longas e severas discussões e, em alguns casos, castigos dolorosos para as crianças, que ele sabia, atingiria também a esposa-mãe. Ninguém tinha a ilusão de fazer parte de um quadro da família perfeita, tantas eram as inconveniências que os rodeavam. Aliás, ali não se tinha qualquer ilusão. Homem de feições e gestos rudes, ficara órfão cedo, sendo o caçula de onze irmãos, e logo vira o pai casar-se novamente e trazer para o seio familiar aquela que seria a sua nova mãe. Desse pai nunca tivera uma palavra de carinho. Aprendera cedo a arte da sobrevivência e guardara da infância apenas tristes lembranças. Talvez por isso tivesse mais amor às plantas que aos humanos. Deduz-se tal postura pelo belo jardim que cultivava e pelo 36

cuidado primoroso que tinha por ele. Todos os dias pegava água de um velho poço que conservava nos fundos da casa. Ninguém sabia ao certo como aparecera, ali chegando já o encontraram e o mesmo passou a ser de grande importância na relação do homem com aquele lugar. Quase sempre o silêncio das manhãs era quebrado pelo barulho da velha carretilha que levava o balde às profundezas da terra e trazia a água que dava vida às plantas das quais ele cuidava com total apreço. Ás flores reservava o seu tempo mais precioso, os mais cuidadosos préstimos e as palavras de carinho que jamais alguém pudesse ouvir dele. Ficava ali sem ver a hora passar. Era quase assustador que um homem moldado a tanto ódio e a tanto silêncio tivesse toda aquela sensibilidade. Casou-se já em idade avançada e com a jovem esposa tiveram os dois filhos, que se fizeram silêncios diante da total dominação daquele homem. Por conta desse infortúnio, ela raramente tomava parte nas discussões ou decisões do marido, que tratava a todos com mãos de ferro. Os filhos então, eram como objetos. Tinham nascidos do silêncio e viviam para ele. Fosse talvez essa a maneira de sobreviver ao seu algoz. A casa era pequena para os que ali moravam. Não em espaço, mas para as relações interpessoais que estabeleciam. Viviam à margem do medo, sempre na expectativa de uma nova turbulência por qualquer motivo. O silêncio era uma parede que os distanciavam e que também os aproximavam. Chegou um tempo que nem as palavras do pai se faziam mais necessárias porque já as conheciam. Bastava a presença dele para provocar em


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todos aquela angustiante sensação de pavor. Ninguém ousava desafiar aquele que mantinha a todos sob o crivo da perversidade. E só por essa razão aquele ambiente os tornavam muito próximos. Vivia-se ali sob uma constante tensão. A voz dele. E que poder de opressão ela transmitia. Ele tanto fez uso dela que chegou um tempo em que passou a ser apenas voz, tornando-se a personificação daquilo que ele tinha se tornado: a voz da ordem, do medo, das decisões, dos pesadelos de cada um. De fato, ninguém sabia o que se passava naquela casa. De alguma forma havia se estabelecido ali um pacto de silêncio que só aquelas paredes poderiam decifrar. Mas até naquele lugar nem mesmo elas, as paredes, se aventuravam a falar. Quando jovem, fora funcionário da antiga linha ferroviária. Mas disso também poucos sabiam, pois nada comentava sobre a vida profissional ou sobre o seu passado. Era como se não o tivesse. Não tinha amigos, nem vida social. Foi bom funcionário, sem nunca ter sido punido por qualquer deslize. Aposentou-se quando cumpriu o seu tempo de serviço por lei. Quem sabe o trabalho pesado com os trilhos o tivesse transformado naquele homem frio, distante, severo, de alma crua. Mas isso era apenas uma suposição. O que se sabe é que dentro daquela casa ele era senhor e dono. E nada acontecia ali que não fosse do seu agrado. Tinha um prazer quase mórbido em regular a vida de todos e podia-se ver isso na simples força da sua presença; na forma como manipulava os acontecimentos e no medo que sabia que provocava em todos naquele ambiente. Exercia um papel de rei. Talvez o rei que nunca tivera

sido em sua insignificante vida de recusas. Certo dia, o velho poço do quintal amanhecera aterrado e sobre ele surgiram lindas roseiras. Já não se ouviam palavras e gritos e ordens, apenas o cantar dos pássaros e o vai e vem das borboletas que ziguezagueavam sob os raios do sol, como que anunciando um novo amanhecer. Ninguém ousou falar nada. Plantou-se ali um silêncio cúmplice. Já não havia mais o medo. A vida seguia seu rumo. Agora tudo se fazia pela beleza e não pela dor. Cada um ali sabia que estava plantado naquele poço o sofrimento de uma vida inteira. Teriam que aprender a recomeçar e sabiam que poderia ser diferente. Agora já não eram reféns. — Vamos, acorda. É você quem vai à padaria hoje. E trate de trazer pães bem saborosos, pois estou faminto. E acredite, eu comeria uma fornada inteira se trouxesse. — Não, hoje o pão não virá para cá. Nós vamos ao encontro dele. Vamos os três tomar um belo café da manhã lá onde ele nasce, ao sabor do cheiro das massas que emana das fornadas. Vamos descobrir como é a vida lá fora. E riram. Pela primeira vez ouviram um som diferente da vida.

*Maria dos Remédios, piauiense; mora em Itaguaí/RJ; Professora de Língua Portuguesa e Literatura; Especialização em Língua Portuguesa.

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“O Beijo”, de Klimt Mariana Abreu Nolasco* Tenho vários quadros favoritos, e “O beijo”, pintado pelo Gustav Klimt, definitivamente está entre eles. Inclusive, possuo até uma réplica em casa, que comprei quando fui em Viena no Palácio de Belvedere. Lá e possível encontrar várias obras do Klimt, que foi um renomado pintor austríaco. Dizem que “O beijo” foi pintado entre 1907 e 1908, e faz parte da “fase dourada” do pintor.

na parede do meu quarto, pois me encantei com essa pintura do Klimt. Ao ver essa mulher aconchegada nos braços do amado, seu rosto voltado para ele, que a beija apaixonadamente, pensei na hora sobre a sorte que essa mulher tem. E como gostaria de ter um companheiro que me amasse assim e fosse meu porto seguro, como esse homem parece ser para ela. O beijo me lembra de uma música da Marisa Monte, que amo:

O beijo, de Gustav Klimt

“Beija eu Beija eu, me beija Deixa O que seja ser Então beba e receba Meu corpo no seu corpo Eu no meu corpo Deixa Eu me deixo Anoiteça e amanheça”

Klimt ficou famoso por, junto com outros pintores, ser o precursor da “Secessão de Viena”, que rompeu com o classicismo e deu origem ao movimento simbolista — versão austríaca da Art Nouveau. Ele foi muito conhecido por retratar o erotismo em suas pinturas. O quadro “O beijo” está pendurado 38

Entretanto, as críticas a esse quadro são muitas: começando pela postura da mulher ajoelhada, e o homem puxando-a para ele. A postura corporal dela demonstra uma subordinação àquele homem. E se formos reparar na mão encolhida da mulher que envolve o pescoço dele ao ser beijada, vemos como ela transmite uma fragilidade. Como se precisasse ser amparada, cuidada. Será que essa postura da mulher ajoelhada na pintura não demonstra que ela se sentiria subjugada ao ser inferior perante o seu companheiro? Ou era amor de verdade? Pois o verdadeiro amor não machuca, não entristece, não aprisiona etc. Porém, até nos dias atuais, vê-se que muitas mulheres não sabem o que real-


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mente é amor. Acabam permanecendo num relacionamento de codependência afetiva, em que se sentem inferiores, frágeis, apesar de não o serem. Cabe ressaltar que a pintura foi feita no início do século passado, ou seja, a imagem do homem como protetor, e a mulher como sexo frágil, estava muito presente na sociedade da época. Hoje em dia, graças às conquistas do Feminismo, sabemos que de sexo frágil não temos nada. Por isso, queremos um companheiro ao nosso lado que venha somar e não nos completar, pois já somos inteiras. Sei que não posso falar por todas as mulheres, mas creio que a maioria de nós quer um homem companheiro, protetor, que ampare como esse do quadro. No entanto, quando ele quer controlar a relação, e nos sentimos frágeis, aí reside o problema. Por isso, depois de analisar as críticas do quadro, percebo que há uma ambiguidade no relacionamento entre esse casal, que poderia ser definido por: amor-proteção x codependência emocional. Uma linha tênue que muitos psicanalistas e terapeutas vêm abordando atualmente: até que ponto é saudável um relacionamento super-protetor, e até que ponto isso não acaba gerando uma codependência emocional em nós, mulheres? Quantas mulheres bem-sucedidas profissionalmente estão presas em relacionamentos mal sucedidos? Quantas delas não se sentem capazes de viver sem aquela pessoa tamanha a codependência emocional que foi criada entre eles? Talvez a nossa sociedade machista seja a origem disso. Pois traz a ideia de que temos que ter alguém do nosso lado para ser-

mos mais aceitas pela sociedade, como se tivesse algo de errado com a mulher solteira depois de uma certa idade. O mesmo não acontece com o homem solteiro, que é visto como garanhão. De toda forma, apesar das críticas, ao ver “O Beijo” pendurado no meu quarto, minha esperança como romântica incurável é que retrate uma história de amor verdadeiro. Uma relação digna entre homem e mulher, em que a troca seja recíproca, sem codependência de nenhum lado.

*Mariana Abreu Nolasco, formada em Direito pela UFF, servidora pública do MPRJ, Master no ISDE em Barcelona de Diretos Internacionais e Comércio Exterior. Nascida em Niterói no estado do Rio de Janeiro, tem 36 anos, e adora estar com a família, reunir os amigos, contato com a natureza, viajar, ler, escrever, estudar a mente humana e conhecer novas culturas!

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Estranhos íntimos Tudes* Amar o perdido deixa confundido este coração. Drummond Pegou o celular e chamou um Uber. Na tela, o aplicativo procurava um motorista, mas ainda não havia candidatos. Enquanto isso, deu uma checada final no espelho. Os cabelos crespos, milimetricamente arrumados para parecerem desalinhados e casuais. A boca pintada se destacava na pele preta macia. Encarou os olhos como dois pequenos planetas solitários e pensou que estava bonita. Não que aquele pensamento de ser bonita fosse comum. Nem era o caso de ter ouvido esse elogio ao longo da vida. Estava bonita como um fato pontual, como uma visita rara e inesperada. Por isso tocou os próprios cabelos e se fez um afago. Pegou a xícara com o resto de chá morno e bebeu em um gole. Tão boa foi a sensação que esqueceu do Uber e se assustou com o toque do interfone avisando a chegada do motorista. Correu para desligar o som enquanto Nina Simone cantava, It’s a new day, it’s a new life for me and I’m feeling good. Pegou a echarpe e a bolsa, mas não encontrava as chaves. Vasculhou a escrivaninha e pensou que podia estar soterrada em alguma pilha de provas para corrigir, papéis ou livros. Nada. Alguns minutos depois encontrou a chave pendurada na porta. Fechou os olhos e deu um suspiro fundo e prolongado. Um cheiro de canela, vindo do incenso que terminava, encheu seu peito e restabeleceu a calma. No estacionamento lembrou que não sabia qual era o carro. Olhou no celular, 40

PUL8791, Renault Fluence, prata. Localizou o veículo parado com a lanterna ligada. Se aproximou e bateu no vidro do carona. O motorista olhou e perguntou se ela era Ana Lúcia. Depois de confirmar e entrar, lembrou que não havia visto o nome dele, nem a foto. Seu irmão dizia sempre para nunca entrar em carros de aplicativos antes de conferir as informações. E emendava explicando que isso poderia salvar sua vida e a evitaria acordar em uma banheira, mergulhada em gelo e sem um rim. Sentada atrás do banco do carona, fingiu que arrumava as tiras da sandália buscando uma boa posição para ver o rosto do motorista. Não era idêntico à foto, que parecia aquelas de documento, onde os piores ângulos se exibem. Mas o reconheceu. Então procurou o nome: Germinal. Abriu um sorriso para si mesma pela estranheza de alguém se chamar Germinal. Ele olhou pelo espelho e disse: — Tudo parado e o aplicativo não está sugerindo rota alternativa. Hoje está difícil. Respondeu que tudo bem. Já estava acostumada. Ia ao centro comprar alguns livros, não tinha compromisso com horário e as livrarias estariam abertas até as dezoito horas. Contou que, nos últimos tempos, criou o hábito de sempre sair uma hora e meia mais cedo de casa, nos casos em que tinha hora marcada. Um absurdo. Ninguém sabe onde vamos parar assim. Observou que ele parecia cansado. Tinha olheiras e, perto da testa, os cabelos escorridos já perdiam a cor. Usava uma camisa social verde e calça jeans. Pensou que ele estava bem-arrumado e


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formava, naquele carro, um conjunto agradável aos olhos. Olhou pela janela e viu que, com o cair da tarde, as cores se modificavam. Como era outono, a mudança da luz era quase palpável. Ao mesmo tempo, as pessoas que caminhavam pela rua pareciam tristes e, Ana Lúcia, entediada, também se sentia sozinha. Geralmente os motoristas acham que precisam conversar com os passageiros. Para demonstrar simpatia, ou como uma maneira de dizer que se importam, ou só porque querem mesmo que o tempo passe mais rápido. Lembrou da última conversa em um Uber. Um senhor, muito simpático e falante, contou de forma completa e detalhada, seu relacionamento com a esposa e os problemas com o filho mais velho. Um relato longo quando ela só queria chegar ao dentista. Mas naquele momento o silêncio a incomodava. Dessa vez foi ela quem puxou assunto: — Seu nome é mesmo Germinal? Ele respondeu que sim, mas era como se tivesse que explicar isso todos os dias porque ficou levemente aborrecido. Ao perceber, ela se desculpou por ter perguntado e disse que ficou curiosa porque era o nome de um livro. Como estavam parados naquela fila modorrenta de carros, ele olhou para trás, encarou seus olhos e disse, com um tom de injustiça

na voz, que geralmente as pessoas ficam curiosas com seu nome, mas não sabem nada sobre o livro. De alguma maneira, ela percebeu que o fato de conhecer o livro despertou a curiosidade e interesse dele. Aquele era um terreno fértil para Ana Lúcia. Compulsiva por livros, já havia lido o título, escrito pelo francês Émile Zola. Uma história, na sua opinião, sobre revolução e coragem. Disse que ele tinha um nome incomum, bonito e forte. Germinal sorriu e pareceu que o mundo se iluminou. Contou que era professor de inglês e francês. Trabalhava dirigindo somente durante a tarde, para complementar a renda porque perdeu o emprego em uma universidade particular e se desdobrava dando aulas noturnas. Vez ou outra, se virava e olhava para trás de modo encantador. Fez muitas perguntas, em que traba41


Revista Lima Barreto

lhava, se Ana Lúcia sempre gostou de ler, se as outras pessoas da família dela também amavam livros, se tinha muitos em casa, se morava sozinha. A última soou invasiva, mas ela respondeu todas. De repente conversavam como se fossem velhos conhecidos. O trânsito andou e ele, num suspiro, quase se lamentando: — É bom ouvir você falar. Você é muito inteligente. E bonita, é claro. Não havia resposta para isso no repertório dela. Notou que havia um certo constrangimento, misturado com insegurança na voz dele. O rosto estava muito vermelho e apertava as mãos com força no volante. Começou a falar dos livros que leu, de suas viagens e havia ali um esforço visível para agradar. Enquanto ouvia, ela imaginava que talvez aquilo podia ser uma possibilidade de alguma coisa. Não sabia o quê, mas sentia uma excitação crescente. O que se desenhava ali? Um convite? Uma esperança? Um compromisso? Imaginou como seria beijá-lo. Sentiu vontade de pedir para ele se calar e segurar na sua mão. Viu os dois em um restaurante charmoso, uma conversa agradável, sua perna tocando a dele embaixo da mesa. Uma longa noite juntos com poesia e aqueles lugares comuns de apaixonados. Um sexo tão bom que a faria esquecer o constrangimento no restaurante quando ela foi ignorada pelo garçom. Ele se aborreceu, houve discussão e pedidos de desculpas. Pensou na vida feliz que construiriam juntos, ali entre as quatro paredes do que as pessoas chamam lar. Fora dali, os conflitos. Ela sempre sendo convidada a usar o elevador de serviço, confundida 42

com a faxineira dele e depois como babá dos próprios filhos. Ou sendo consumida pelo medo de ter os filhos assassinados pela Polícia. Ele, de início tão compreensivo e militante, um dia a acusaria de exagero e paranoia. Quando deu por si, ele chamava seu nome. Havia chegado ao destino. Se olharam em silêncio esperando, com angústia e cuidado, quem tomaria a iniciativa de prolongar aquele acontecimento para além do presente. Mas no final sabiam que aquilo acabava ali. Naquele fim de tarde se despediram sem trocar telefones ou outro tipo de contato. Ela pisou firme na calçada e andou sem olhar para trás, enquanto ele ligava o carro e era absorvido pelo fluxo de veículos ansiosos. Dois estranhos íntimos, ambos com os corações partidos.

*Tudes é Pedagoga, escritora e Doutoranda em Educação pela UFRRJ.


Oficina de Escrita ZO

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Leite, leitura letras, literatura, tudo o que passa, tudo o que dura tudo o que duramente passa tudo o que passageiramente dura tudo, tudo, tudo nĂŁo passa de caricatura de vocĂŞ, minha amargura de ver que viver nĂŁo tem cura Paulo Leminski 43


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