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O LIVRO DAS DESCOBERTAS
Kaio Moreira Veloso
LIVRO ELABORADO PARA A DISCIPLINA DE PLANEJAMENTO VISUAL, SOB ORIENTAÇÃO DA PROFA. MARIA LUCÍLIA BORGES. TEXTOS PRODUZIDOS NA DISCIPLINA DE REDAÇÃO EM JORNALISMO, SOB ORIENTAÇÃO DO PROF. FELIPE VIERO K. M. MENDONÇA. JORNALISMO - UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO EDITORA UFOP CAMPUS UNIVERSITÁRIO MORRO DO CRUZEIRO, 20 ANDAR OURO PRETO - MG 35400-000 EDITORA@UFOP.EDU.BR
SUMÁRIO
thema ommagio a joyce,
de luciano berio 6
primeira experiência 8 perfil: alfedo, O ESCRITOR QUE VOCÊ NÃO VÊ 10 o nascimento de joIcY,
de fabiana morais 13
crônica: museu de arte moderna 14 reportagem: NO MEIO DO CAMINHO, HAVIA UMA PEDRA... 15
thema omaggio a jo
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oyce, de LUCIANO BERIO
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Primeira Experiência
H
á quem diga: tem uma primeira vez para tudo. Mal pude imaginar que a minha chegaria após dois semestres morando longe de casa. Sempre quiser morar em outra cidade, longe da segurança anestesiante da família, mas nunca havia sequer pago uma conta. Minha falta de conhecimento quanto aos meios de sobrevivência no mundo real não foi, no entanto, suficiente para impedir-me de sonhar e concretizar meu desejo. Apenas uma coisa ainda estava no meu caminho: não sabia cozinhar. Esse pequeno - porém grande - detalhe sempre esteve ali na espreita da sonhada independência. Sem mãe que acuda e muito menos empregados que sirvam-me – coisa que, aliás, nunca tive – teria que virar-me pelo pão de cada dia, ou melhor, o arroz com feijão do fim de semana (O restaurante universitário salva desse trabalho entre segunda e sexta-feira). Pois bem, dois períodos se passaram e ainda estava na mesma: nada de panelas, nada de cozinha. Acontece que, ao invés de dedicar-me a aprender algo novo e de suma importância, escorei-me 8 em comodismos e em espertices para fugir do desafio. Minha tática? Aproximar-me de seja lá quem estivesse cozinhando ou com pretensões de fazer tal atividade e propor o (ir)recusável, dividir os custos dos ingredientes em troca de um bom prato de comida. Se não tivesse ninguém por perto, ou mesmo se a iguaria não agradasse, partia para o plano B: ir em direção ao restaurante mais próximo e retornar minutos depois com um marmitex pronto para ter seu conteúdo devorado. Já estava ficando cansado disso e decidi dar um basta em tal prática preguiçosa. Sempre achei incrível quem cozinha. Parece haver algo de mágico ou alquímico em colocar elementos juntos em uma panela e transformá-los em outra coisa. Algo com aroma realçado, textura modificada, aparência muitas vezes melhorada e sabores encantados. O medo de errar,queimando-me, cortando-me ou de alguma forma, dando brecha para o riso de terceiros me mantinha longe dessa atividade milagrosa com resultados tão apetitosos, mas por fim, decidi que era a oportunidade perfeita para tentar oficialmente, sem apenas assistir, mas agora, tomando para mim tais poderes. Claro que não iria partir do nada. Apesar de ter uma ideia vaga dos efeitos do óleo, do tempero e da fervura da água, não sabia ao certo como fazer, e nem mesmo o que queria fazer. Com o auxílio de um dos meus colegas de casa, optei por algo fácil. Uma omelete. Porém, percebi que aquele indivíduo talvez estivesse quase tão perdido quanto eu, preparando a comida de uma forma que considerei no mínimo inusitada, para não dizer estranha. Misturando tudo de uma vez só, ovo, presunto, cebola e queijo.
Deu certo, mas ainda não estava satisfeito com tal tática. Queria um pouco mais de trabalho, mesmo que fosse um prato tão simples de fazer. À noite, parti para mais uma tentativa (Sim, omelete de novo, pela falta de ingredientes e, sobretudo, criatividade). Seja por memória afetiva, seja por instinto, preparei meu jantar como acreditei que a minha mãe faria, – ou próximo a isso – primeiro, a base com os ovos mexidos, depois o recheio. Além disso, com a dica de outra colega de residência, aprendi a virar a omelete com o uso de duas frigideiras. Agora sim, jantar servido! Apesar de simples, fiz minha estréia na cozinha, e para falar a verdade, não foi tão difícil quanto imaginei. Para o próximo almoço, pretendo fazer algo mais variado. Arroz, salada... Quem sabe em algum momento não preparo um banquete como aqueles que os reis e rainhas europeus ostentam? Tudo bem que estou exagerando, mas já me sinto parte mago e parte químico, treinando a mágica prática e necessária de preparar a minha própria comida.
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Alfredo,
o escritor que você não vê
A
lfredo nasceu na noite de natal. Não poderia ter nascido em noite mais feliz. Não poderia ter nascido em noite mais triste. Diferente de demais recém-nascidos, que vêm ao mundo sem muito compreender deste novo lugar, Alfredo compreendia até demais. Diferente de outros recém-nascidos, que sequer tem seus olhos abertos ao chegar neste plano,
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Alfredo via além do que todos à sua volta. Alfredo nasceu vendo; Alfredo nasceu pensando. Alfredo, desde seus primórdios já era mais que uma promessa de vida, e diferente de quem acabou de chegar, tendo apenas o choro como ensaio para uma futura fala, Alfredo nasceu voz. Não uma voz balbuciante e estridente, mas uma voz calma, suave, derramando palavras até que uma mão as conduzisse para um bloco de notas digital, alternativa moderna para as folhas de papel. Assim como muitos recém-nascidos, Alfredo mal nasceu e já foi resmungando. Mas, para contradizer quem pensa que um ser tão jovem não é capaz de muito, Alfredo estreou não com resmungos de fome ou sono, mas sim, da situação na qual nascera, em meio a uma festa tradicional, na qual se espera gratidão e fraternidade, mas se obtém hipocrisia e ganância. Alfredo, para o terror dos conservadores de plantão, já nasceu problematizando. Mais tarde diriam até que tem jeito para filósofo, embora tenha na verdade encarnado no corpo de um historiador. Na verdade, Alfredo nasceu como todos nós nascemos: puros de coração e inimaginavelmente autênticos, sem freios na língua e nem por isso, envenenados por discursos sarcásticos ou preconceituosos.
Apesar de ser voz, Alfredo não era capaz de falar a todos, mesmo os que estavam muito próximos. Apesar de ver o mundo, Alfredo não era visto por ninguém. Alfredo tampouco era capaz de caminhar. Flutuava como nuvem a ser soprada pelo vento, e apesar de ter pensamentos, Alfredo não tinha a capacidade mágica de se infiltrar nas mentes de alheios. Pôde apenas contagiar uma única pessoa. Um menino. Um homem. Um jovem graduando em História. Quando Alfredo se encontrou com esse menino, era como se já até se conhecessem. Mais tarde, o jovem reconheceu Alfredo, embora não tivesse tanta certeza se Alfredo também o reconhecia. Era como se tudo já estivesse ali, esperando um momento para acontecer; desabrochar; florescer, até que as flores caídas germinassem novamente em forma de palavras – as palavras que Alfredo (assim como os demais recém-nascidos) era incapaz de falar por si próprio. “O coração de Alfredo partiu-se às treze em ponto. Azar. Alfredo azarou-se por amar as cores que lhe deram na Primavera. Vieram e lhe foram tiradas; Nasceram e foram pisadas” Trecho de Flores Caídas, por Alfredo O futuro historiador então deixou-se conduzir por Alfredo, e permitiu-lhe trazer à luz os seus primeiros pensamentos sobre a festa natalina. O registro reflexivo daquela noite foi apenas o começo de uma atividade que passaria a ser constante e a união entre aqueles dois tornou-se mais intensa a cada dia. A escrita alfrediana é marcada pelo uso de jogos de palavras, com algumas sendo colocadas entre parênteses de modo a permitir mais de uma leitura possível, sempre com um pé no sentimentalismo e outro da realidade. O processo, descrito como muitas vezes doloroso, ocorre primeiro em fluxo de pensamento, e depois, são feitas revisões quanto a
ortografia e organização de ideias a fim de criar uma escrita que seja estética. Cuidadoso, o estudante mantêm todos os escritos de Alfredo salvos em uma nuvem digital. Não pode arriscar perder os textos em prosa e poemas. Deseja um dia reuni-los em formato físico, através de um livro, para que sejam devidamente registrados. Mas enquanto tal materialidade não é alcançada, o perfil de Alfredo no Instagram é mantido com publicações constantes. Tal perfil virtual foi promovido com uma pequena quantia de dinheiro com o objetivo de levar o conteúdo a mais pessoas. O quase-historiador ficou surpreso ao descobrir que o Nordeste é a região do Brasil que mais acessa a página. Também tem publicado em outra página de poesia, chamada No Interior, após ser selecionado para colaborar durante alguns meses. Contudo, diz não se deslumbrar com números de curtidas e seguidores, e que gosta mesmo são das interações reais com pessoas que leram os textos de Alfredo e contam-lhe sobre suas 11 impressões e interpretações. Além da linguagem verbal, o escritor também encontrou mecanismos visuais para se comunicar. Através das fotografias publicadas no Instagram, as mensagens de Alfredo são ampliadas através de representações e símbolos. Velas, casas, portas, árvores, um trem de ferro e um sino de igreja figuram entre os objetos mostrados. As cores predominantes são neutras e terrosas; cores que o em-brevehistoriador percebe com maior intensidade na cidade onde mora durante a maior parte do tempo, Mariana, a mais antiga de Minas Gerais, com seus ares barrocos; resquícios do século XVIII que atraem gente de todo lugar para visitá-la. Mas há também uma presença marcante do azul e do amarelo, seja natural, vindo do céu e das flores, seja artificial, adicionado com edições fotográficas. Trata-se de uma inspiração na obra de Vincent Van Gogh, o pintor holandês famoso por seus quadros vibrantes e expressivos. Além disso, há a preferência por uma tipografia que imita as antigas máquinas de escrever.
Quem também surge nas fotos é o estudante que, na maioria das vezes, mostra apenas partes de seu corpo. Primeiros planos e planos detalhe (ângulos da fotografia para destaque a partes específicas de um objeto) destacam seus pés, mãos, olhos, boca... Um verdadeiro jogo de mostra e esconde, para que haja resquícios de humanidade, mas não confusão por parte dos leitores. Quem escreve não é aquele que aparece. Na verdade, quem escreve nem é gente. Como assim? Tentar definir Alfredo é tão confuso e complexo quanto propor um sentido para a vida, mas, após muito discutir com seu escrivão, temos um veredicto: Alfredo é uma consciência. E assim como o tempo, que sabe-se que existe, é sentido e medido, mas jamais visto, Alfredo permanece imperceptível por si só, mas estabelece sua comunicação através da poesia, o que de mais belo a humanidade foi capaz de fazer com a língua idiomática. A quem ainda está tentando compreender, desista. Não adianta 12 que querer forçar uma científica no que só pode ser entendido através dos sentimentos. Não há teoria que dê conta de explicar Alfredo. Alfredo é. “Se espero, me agonizo em ter Se tenho, me proponho a ser Se sinto, me conduzo aos sinos me torno aqueles velhos hinos” Trecho de Beijo, por Alfredo
Alfredo é criação, consciência, eu-lírico ou, se preferir, alter-ego de Isaías dos Anjos Borja. 21 anos, mineiro original de Viçosa, fã da cantora Adele e graduando em História da Universidade Federal de Ouro Preto. Em uma de nossas conversas para este perfil, no “Machu Picchu”, uma área verde do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, o universitário de voz suave e sorriso gentil explicou (em meio a divagações sobre a natureza ao redor e outras aleatoriedades interessantíssimas) sobre seu encontro com um lado poético que estava adormecido há vários anos e (re)nasceu à época do natal de 2018. Apaixonado pelo curso, assim como por Alfredo, diz que seu maior foco é a formação acadêmica, mas pretender seguir alfrediando o que há de bom e belo nos trilhos da vida e do tempo.
O nascimento de joIcY, de fabiana morais
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MUSEU DE ARTE MODERNA - NÃO TEM NADA!
Minha irmã, no auge da espontaneidade de seus 12 anos, exclamou com uma mistura de surpresa e deboche ao chegarmos na galeria. Tivemos que andar muito até a parte mais alta do museu e reserva ambiental. Montada diante de um pedregulho, a galeria de formato cilíndrico brilhava sob a luz do sol. A construção branca, de aparência futurista, havia de comportar a mais bela das obras. Algo que compensasse a caminhada. Algo que as humildes cabeças torradas pelo calor da tarde fossem incapazes de imaginar. Ao entrar, como dito pela minha irmã, nada. Exatamente isso. Uma sala vazia. Chão de madeira e teto branco; paredes de acrílico transparente e grosso. Confesso que até eu, que me considero sensível para as maluquices da modernidade, fiquei decepcionado. Não dava pra acreditar que andamos tanto para aquilo. Depois de encantar-me pela sala monocromática, tomada pelo vermelho; correr, pular e cair em meio à viagem psicodélica de terceiros; passear em meio a vidrinhos, cordas e esqueletos e até encarar uma gradil incrustado em paredes de gesso sendo protegida por um intrincado sistema de controle de temperatura ( “É para não oxidar”, havia explicado uma guia), aquilo era quase ofensivo. Como iria gastar meus recém adquiridos conhecimentos em estética e filosofia da arte em uma sala vazia com vista para o nada? Ríamos ao mesmo tempo em que ficávamos incrédulos. Mas os demais presentes não estavam vendo graça. Também não estavam conversando sobre a obra (ou a ausência dela) e muito menos recla14 mando da falta de criatividade, ou maldizendo os artistas contemporâneos (bando de gente doida). Tinha ouvido mais cedo, ao sair da sala psicodélica, um pai explicando ao filho: “É arte moderna , e na arte moderna as coisas são estranhas”. Só não imaginava que chegaria a tal nível de abstração. Havia um som contínuo, como um coro abafado. Levamos um susto ao ouvir um barulho alto, grave e repentino. De onde tinha vindo aquilo? O som reverberou no espaço circular da galeria. Foi aí que percebi que aquelas pessoas estavam prestando atenção nos ruídos que tomavam a sala. Havia gente deitada no chão e com os olhos fechados. Sem aviso, o som alto voltava, emergindo do centro da sala de um buraco redondo. Semanas depois, deparei-me com um depoimento online de uma visitante. Ficou emocionada com a obra Sonic Pavilion, de Doug Aitken, montada de forma permanente no Instituto Inhotim. Os sons vinham diretamente do interior do solo, captados por microfones instalados no fundo do tal buraco, que possui 300 metros de profundidade. Minha irmã e eu não tivemos a experiência etérea de ouvir os sons das entranhas da terra como os demais visitantes. Mas, também, ninguém nos avisou que ela falaria com tamanha exclusividade, no topo de uma colina no maior museu a céu aberto do mundo.
“No meio do caminho, havia uma pedra…’ Reportagem: Cintia Soares de Freitas, Cristina Trindade, Kaio Moreira Veloso Fotos: C. S. F. , K. M. V.
Entre ruas de pedra fria e antigos prédios históricos, há vida dentro das casas de Mariana. Dentro dessas casas, pessoas que enfrentam diversos obstáculos em seus caminhos todos os dias. Dentro de várias dessas casas, pessoas que enfrentam, de forma bastante literal, diversos obstáculos em seus caminhos todos os dias. Obstáculos que dificultam sua locomoção pela cidade e sua participação na vida pública. Obstáculos que, por muitas vezes, os fizeram considerar sequer sair de casa. Os pensamentos que atormentam tantos são somados ao pensamento sobre o simples trajeto para aqueles que possuem mobilidade reduzida e outros tipos de deficiência na primaz de Minas, mas, em lugar da prostração frente às pedras no caminho, um grupo de moradores escolheu agir.
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Membros da ADEM reunidos: À frente: Rosemery Santos, Carlos Simim, Maria Aparecida dos Santos. Atrás: Efigênia Geruza e sua filha, Isadora.
É o começo de uma nova reunião da ADEM, a Associação dos Deficientes Físicos de Mariana. Os membros se reúnem na casa de Carlos Marques Simim, apelidado de Quincas, 65 anos, um dos primeiros a se unirem ao projeto. O espaço demonstra simplicidade e principalmente, acolhimento. O projeto começou a partir do encontro entre Rosemery Aparecida dos Santos, 43 anos e Maria Aparecida Tavares dos Santos, 55 anos, em uma situação bastante descontraída. Conheceram-se em um forró, ao que Aparecida, que é assistente social e já atuava com uma associação em Ouro Preto, a ACODOP (Associação Comunitária dos Deficientes de Ouro Preto), questionou Rosemery sobre o interesse de formar uma associação em Mariana. A resposta foi positiva e logo começou-se a busca por pessoas que pudessem participar e contribuir com o projeto, com o qual Rosemery já sonhava: “Uma pessoa sozinha não tem voz para correr atrás dos direitos que realmente a gente precisa e necessita, e Mariana é uma cidade que tem muitas barreiras que precisam ser quebradas. Então, eu sonhava com uma associação aqui em Mariana pra gente realmente ter voz e ser realmente escutados”.
Foi feita uma convocação, divulgação em rádios e o lançamento de um edital para a formação do restante do grupo e a associação foi logo registrada. Com o objetivo de buscar melhorias na qualidade de vida das pessoas com deficiência na cidade, como acesso a transporte, educação, lazer, cultura e a garantia de seus direitos por parte dos órgãos públicos. A ADEM conta com o apoio da prefeitura de Mariana e das pessoas com deficiência próximas da associação. Rosemery explicou na reunião que muitas dessas pessoas sequer saem de casa e por isso, é necessário que haja uma busca ativa por elas, e ainda aponta a falta de sensibilidade dos moradores da cidade que não são participativos com a causa.
16 Rosemery e ‘Quincas’, membros da ADEM, têm mobilidade reduzida.
O Conselho Municipal das Pessoas com Deficiência foi uma das conquistas da associação, que também é responsável pelo Setembro Verde, incluído no calendário oficial da cidade para ser utilizado a cada ano como meio de promover ações em busca de conscientização da cidade e inclusão. Carlos Simim enumerou as conquistas do grupo, como cadeiras no Conselho de Esporte, para garantir que haja acesso à atividade física para estas pessoas, além de projetos como um brechó de moda inclusiva e programas de empregabilidade em parceria com a Samarco, que irá promover cursos de capacitação de pessoas para que as vagas que são garantidas a elas dentro da empresa sejam de fato preenchidas, o que não acontecia antes. Um ponto destacado é a necessidade de uma sede, algo que espera-se que seja providenciado pela prefeitura. Rosemery afirma que sem pre que possível esta necessidade é comentada
na câmara dos vereadores, ao que usualmente é respondido com o fato de diversas entidades também cobrarem suas próprias sedes. A ideia é que este seja um local construído com um projeto arquitetônico inclusivo, contando com estrutura para a prática de exercícios e fisioterapia continuada. Hoje, são garantidas sessões de fisioterapia limitadas a 10 sessões, sendo necessário passar por outro processo de pedido para consegui-las novamente, atrapalhando a continuidade do desenvolvimento físico. Além disso, são ofertadas em Itabirito, gerando custos de transporte para quem usufrui do serviço. Mesmo já tendo estes feitos, os membros da ADEM reconhecem que ainda há muito a ser conquistado. No dia 25 de Novembro, estiveram na trigésima oitava reunião ordinária de 2019 da câmara municipal de Mariana para discutir, dentre outros assuntos, as reformas no local para que o prédio se torne mais acessível à pessoas com mobilidade reduzida e assim, estimule a participação delas nas discussões políticas da cidade. Utilizando fotos e vídeos como amostras da dificuldade de acesso ao prédio, Rosemery e Carlos deram seus depoimentos. Maria Aparecida destacou o direito à acessibilidade de local apoiandose no inciso VI da lei 13.146, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que diz sobre adaptações razoáveis, e declarou que conhece pessoas que gostariam de participar das reuniões na câmara, mas não se sentem motivadas devido a essa dificuldade de acesso, e propôs que fosse pensada uma maneira de tornar essa acessibilidade estrutural possível sem que haja necessidade de prejudicar a identidade histórica da construção. O projeto foi feito em 2011 e passa por processo de liberação de recursos, já tendo sido aprovado pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). As ações do instituto costumam dividir opiniões na cidade, afinal, costuma-se barrar diversas obras como reformas e revitalizações em busca de manter a identidade das construções históricas da cidade. Na ocasião da reunião na câmara, o vereador Cristiano Vilas Boas declarou que defende o patrimônio histórico, mas vê como prioridade a dignidade
das pessoas: “Se os dois puderem andar juntos, muito bom, se não puderem, a pessoa tem que ser valorizada”. A afirmação representa os pensamentos daqueles que defendem a modernização da cidade em prol do bem estar e acessibilidade que costumam entrar em conflito àqueles que veem o patrimônio histórico como intocável, independente dos ganhos para a população.
sair de casa por medo de ser maltratado ou por pensar nas dificuldades do trajeto. Uma cidade que serve à suas pedras, não a seus habitantes. A associação segue seu trabalho, orientando pessoas com deficiência e lutando por seus direitos. O caminho possui pedras, mas é através do trabalho de Rosemerys, Quincas e Aparecidas que ele pode tornar-se menos tortuoso.
A ADEM marcando presença em seção da Câmara Municial de Mariana.
Assim como a câmara, com seu grande número de escadas de pedra que dificultam o acesso, há outros lugares bastante frequentados na cidade que acabam não sendo tão convidativos à quem tem mobilidade reduzida. Em entrevista concedida na Praça Gomes Freire, Rosemery apontou a dificuldade de acessar o espaço devido às pedras das ruas, conhecidas coloquialmente como “pésde-moleque”, que dificultam a passagem para o “jardim”, como a praça é apelidada. Há um projeto de revitalização, mas como apontaram na mesma ocasião Maria Aparecida e Neuzeth Pedrosa da Silva, 56 anos, que também participa da associação, há muito que poderia ser feito para que tal projeto fosse de fato inclusivo, como a criação de uma faixa de pedestres de alto relevo para que a passagem para a praça fosse mais fácil, acesso ao coreto para que deficientes pudessem conhecêlo por dentro e instalação de totens eletrônicos com áudio descrição para que deficientes visuais possam saber sobre o local em que estão.
Rosemery diante do que deveria ser um ponto de acesso à Praça Gomes Freire. As pedras da rua, conhecidas como “Pé-de-moleque” dificultam a locomoção para quem usa cadeiras de rodas. Na ocasião, havia resquícios de uma obra ocupando a passagem.
Rosemery diante das escadas de acesso ao coreto da Praça Gomes Freire. Falta acessibilidade.
Rosemery destacou o problema estrutural da cidade e declarou: “Se não tiver isso tudo [problemas estruturais] e Mariana estiver funcionando perfeitamente, a deficiência zera; não tem mais deficiência”. Afinal, para que serve uma cida- Rosemery e as colegas da associação, Maria Aparecida dos de que não pode ser de todos? Enquanto a frie- Santos e Neuzeth Pedrosa da Silva. za impermeável é tombada, há quem deixe de
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miniperfil: Rosemery Santos
C13H10N2O4. A fórmula química do medicamento Talidomida, desenvolvido na Alemanha em 1954 e comercializado no Brasil desde 1958. Usado no tratamento de estados reacionais da Hanseníase, mostrou-se de alta periculosidade para mulheres grávidas, que o utilizavam como alívio para náuseas. O medicamento causa um tipo de deformação nos fetos conhecido como focomelia devido ao encurtamento dos membros, assemelhando-se à figura das focas. Hoje, seu uso é estritamente proibido por mulheres em idade reprodutiva. Antes da publicação da Portaria 63 de 04 de Julho de 1994, no entanto, diversas crianças nasceram com má formação de braços e pernas. Rosemery Santos foi uma delas. Original de João Monlevade, morou em Nova Era antes de passar a morar em Mariana aos oito anos de idade devido a transferência do pai, Milton Geraldo Santos, que trabalhava na empresa mineradora Vale. Sua mãe, Maria Paulo Santos, é empregada doméstica. Apesar da deficiência, diz que teve uma infância normal e tranquila. Nunca foi tratada como “coitadinha” pelos pais, tanto que, em casa, dispensa o uso de cadeira de rodas e usa chinelos para caminhar com os membros inferiores não desenvolvidos. Lembra-se que logo que a família se mudou para a cidade, sua mãe começou a correr atrás de direitos, o que lhe rendeu uma cerimônia para entrega de sua cadeira de rodas (na época, não era comum conseguir uma sem passar por burocracias). Seus 11 irmãos (7 homens, 3 mulheres, 1 falecido, sendo 8 biológicos e 3 adotivos) sempre foram próximos e a apoiaram, como quando um deles brigou com a porteira de uma das escolas em que estudou por deixar a jovem, que sempre chegava muito cedo para as aulas, esperando, com frio, do lado de fora até dar um certo horário. “Se coloque no lugar dela, se fosse você, gostaria de ficar em pé aqui até abrir o portão?”. Durante a infância, frequentou a Escola Estadual Gomes Freire, onde teve uma boa relação com os colegas. Porém, eram os professores que não sabiam como lidar com suas diferenças, como 18 quando a deixavam muito tempo em pé em uma fila para cantar o hino nacional e o hino de Mariana. Isso fazia com que sua mãe tivesse que intervir constantemente. Quando passou a estudar no Centro de Educação Municipal Padre Avelar (CEMPA) aos 12 anos de idade, os problemas na relação com colegas tornou-se parte de seu cotidiano. Sua teoria para explicar essa mudança seria que enquanto a infância equivale à inocência, a adolescência é marcada pelo deboche e a zombaria. Destaca um episódio em que o motorista do ônibus não estacionou próximo à escola, e devido ao fato de o caminho ser de barro, chegou enlameada para a aula, gerando risos dos colegas e a revolta da mãe que brigou com o motorista quando soube do acontecido. Destaca essa como a fase de sua vida em que mais sofreu devido ao preconceito das pessoas à sua volta. Quanto aos professores, não guarda experiências negativas, até guarda com carinho a lembrança de uma delas, a “Tia Eunice”. O que acontecia é que, por muitas vezes, eles não sabiam tão bem como incluí-la, como quando a mandavam ir para a biblioteca durante as aulas de educação física. Mal sabiam eles que hoje, seria tão ativa fisicamente: faz natação, halterofilismo, tai chi... até capoeira, que começou a praticar a poucas semanas. O esporte tomou lugar de destaque na sua vida. Vê a atividades física e as massagens como importantes para quem tem mobilidade reduzida. Quanto à última, pretende fazer um curso de massoterapia em breve. Sobre o fato de ser uma pessoa com deficiência, declara: “Deus tira algo de você para te capacitar ainda mais. O que eu não vejo nas minhas pernas eu vejo mais nos meus braços e na minha mente.” Gosta de dizer que suas pernas podem ter sido tiradas, mas Deus não tirou as suas asas. Vê como seu grande objetivo de vida a luta por direitos, dedicando atualmente todo o seu tempo à associação. Diz querer deixar um legado, preparando a cidade para aqueles que assim como ela, possuem, ou irão um dia possuir mobilidade reduzida.
resultado de um perĂodo de (re)descobertas...