Amazonia sudeste do Para

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Amazónia, sudeste do Pará

Majestade e violência José e Maria são baleados. Viviam com a floresta e morrem por isso. Acontece no sudeste do Pará, onde o dinheiro é mais rápido que a sua própria sombra. Minério, monoculturas, madeira e gado avançam pela Amazónia. Para onde quer ir o Brasil? A Pública percorreu os lugares de José e Maria, da cidade à floresta. Texto Alexandra Lucas Coelho Fotografia Jordi Burch/Kameraphoto


capa 1.Marabá, universidade “Na Amazónia, o crime compensa”, diz José Batista a uma plateia morena, cabelos luzidios, mistura de brancos com índios. Estamos em Marabá, cidade em expansão, 500 quilómetros a sul de Belém do Pará. Por estrada leva um dia inteiro, com risco de assalto. Voar pode custar 350 euros mas os voos estão lotados. Onde há cada vez mais gente, há dinheiro, ou a sua ilusão. De tudo isso está a falar Batista, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Fundada por católicos durante a ditadura militar, a CPT defende quem não tem poder nas zonas rurais: índios, lavradores, migrantes, sem-terra. O Brasil era o país do futuro, agora o futuro é o Brasil, mas que futuro?, questiona Batista. Floresta desmatada por madeireiros, plantadores de soja e criadores de gado? Mineradoras a escavarem os solos? Barragens para dar energia a tudo isto? Os grandes proprietários rurais contam com mais de 200 deputados e senadores no Congresso brasileiro, a chamada bancada ruralista. Em Maio fizeram aprovar um Código Florestal amnistiando crimes ambientais cometidos até 2008. Isso aconteceu horas depois de dois assassinatos na Amazónia, o de José Cláudio Ribeiro da Silva, 54 anos, e Maria do Espírito Santo, 53, um casal de extractivistas que vivia do que a floresta oferece. Por denunciarem cortes de árvores tornaram-se alvo de madeireiros. José Cláudio avisou em público que corriam risco. Ninguém os protegeu e foram mesmo mortos. E quando um deputado quis homenageá-los, a bancada ruralista vaiou. Brasil, 2011. “O cara não paga as multas ambientais e é amnistiado”, diz Batista à plateia na universidade. “O cara manda matar e não é punido. Na Amazónia, crime é investimento.” Os repórteres da Pública acabam de aterrar neste sudeste do Pará que muitos comparam a um faroeste. Vista do céu, Marabá é uma cidade rasa e dispersa, a crescer em todas as direcções, como um acampamento. Depois, andando pela rua, ruas à espera de asfalto, cimento à espera de tinta, promessas de fábricas, anúncios, improvisos. Os estados mais pobres do Brasil ficam aqui ao lado, Maranhão, Ceará, Piauí, o Nordeste das secas, dos retirantes que partiam para não morrer. Foram eles que abriram as estradas

À direita: Geraldo (em primeiro plano) e Rondon junto à castanheira a que José Cláudio chamava Majestade da Amazónia, que tiraram a borracha e a castanha, que escavaram ouro. E são eles que agora vêm escavar ferro. As maiores reservas do mundo estão no Pará. A Vale, que começou como empresa pública e hoje é uma mineradora multinacional gigantesca, tem projectos para décadas, aqui. “A siderúrgica da Vale vai criar 40 mil empregos, e já estão chegando famílias à Rodoviária”, diz Sávio Alves, o anfitrião da CPT que nos recebe, enquanto o debate com os estudantes está a ser preparado. É um índio de rabo-de-cavalo e olhar muito vivo. “Índio mesmo”, diz, sorrindo. “A minha avó foi pega a laço no Piauí.” E como é que a família chegou aqui? “O meu pai veio para o garimpo na Serra Pelada, mas não conseguiu pegar ouro, só muita malária...” Pouco a sul de Marabá, a Serra Pelada era a maior mina a céu aberto do mundo, no começo dos anos 1980. Desactivado o garimpo, muitos homens ficaram por aqui. O mesmo acontecerá a muitos dos que vão construir a nova fábrica da Vale. Na fase seguinte já não serão necessários. “O impacto social é enorme”, resume Sávio. Homens sem raiz, que podem ser mortos por nada, como antes eram mortos por um dente de ouro. Os estudantes enchem o auditório. Três velhos aparelhos de ar condicionado de cada lado, todo o mundo de chinelo, meio mundo de calção, calor equatorial. É um debate sobre as transformações em curso na Amazónia, sobretudo no Pará, segundo maior estado do Brasil depois do Amazonas. E rapidamente a imensidão territorial vem ao de cima, porque o Pará está a discutir a fractura em três estados. A 11 de Dezembro há um plebiscito. Antecedendo José Batista, um morenão de bigode, Raimundo Neto, agrónomo e activista nos movimentos sociais, projecta fotografias dos fornos de carvão onde o minério de ferro é transformado, céus poluídos com colunas de fumo, nuvens de fuligem levadas pelo vento. Cita o crescimento populacional na área da mineradora Vale, de 344 mil para 817 mil habitantes. “As estruturas são montadas e depois não há serviços. Um terço dessa população fica

nas cidades sem ter o que fazer. E aí temos um aumento da prostituição, da criminalidade, do número de alunos por sala de aula. Em Marabá, há 27 ocupações urbanas sem energia, sem segurança, sem escola. O índice de roubo é muito maior que no resto do país, tal como a taxa de homicídio. Num final de semana chegou a 19 assassinatos.” Raimundo mostra crateras de mineração antigas, imagem de como poderão acabar os actuais projectos. “Daqui a 40 anos vamos estar só olhando para as crateras.” “A Vale faz 400 anos em 40”, remata Batista, quando lhe passam a palavra. E então evoca a morte de José Cláudio e Maria, “lideranças muito conhecidas” na região que se tornaram um caso nacional. Marina Silva — ex-candidata à presidência, ex-ministra do Ambiente de Lula da Silva, e também ela uma filha pobre da Amazónia — comparou a execução do casal aos assassinatos do seringueiro Chico Mendes, em 1988, e da irmã Dorothy Stang, em 2005. E a presidente Dilma Rousseff enviou a Polícia Federal investigar o crime, para que não ficasse só nas mãos da polícia local. “Mineradoras e madeireiras vão dizer que a morte de José Cláudio e Maria não tem nada a ver com o modelo de desenvolvimento que nos está a ser imposto”, sublinha Batista. “Nós dizemos que tem tudo a ver. Este modelo é o da rápida e violenta exploração das riquezas, e nos últimos anos está a ir com muita velocidade em direcção à floresta amazónica, porque é a região do planeta que concentra mais riquezas minerais, hídricas e de biodiversidade. Há uma corrida do grande capital para se apropriar dessas riquezas.” Um processo esboçado nos anos 1950 de Juscelino Kubitschek, “materializado a partir do regime militar” nos anos 1960, e que assenta em três pilares. “Primeiro, a exploração da madeira.” A tal ponto que hoje, aqui, “é mais barato construir em alvenaria porque dificilmente se encontra madeira”. Segundo, “a apropriação de terra para pecuária extensiva, porque outras regiões passaram a ser ocupadas por soja, laranja, cana e eucalipto”. E terceiro, “a exploração mineira”. Resultado: uma “região habitada há mi- c

José Cláudio avisou em público que corriam risco. Ninguém os protegeu e foram mesmo mortos. E quando um deputado quis homenageá-los, a bancada ruralista vaiou. Brasil, 2011.


capa “A sociedade não está preparada para esse enfrentamento”, avisa um rapaz pálido de cabelo comprido, Frederico Drummond. Enquanto analista ambiental do Instituto Chico Mendes esteve a fazer contas: nos últimos anos surgiram nada menos que 15 projectos de mineração na região. “Aproveitam uma janela económica e a vulnerabilidade local. Nas universidades o conhecimento ainda é tímido, as secretarias de ambiente têm má preparação, ninguém está fazendo uma interpretação de todos os impactos ao mesmo tempo e se todos os projectos forem licenciados a mudança da paisagem será radical.” Uma pergunta da plateia sobre a divisão do Pará. Depois outra sobre o que a Igreja Católica está a fazer. “Nos anos 1960 se deslocou do centro para a periferia”, responde José Batista. “Com o papado de João Paulo II, voltou para o centro, distanciando-se dos problemas sociais. Mas muitos orgãos da igreja mantêm a opção pelos empobrecidos, aqueles que alguém tornou pobres.” Quanto à divisão do Pará, “não resolve o problema da concentração de ganhos, é dividir para alguns poderem dominar melhor”. E ainda da plateia, este desafio. “Quem é que aqui é filho de emigrante?”, pergunta uma moreníssima Naélia Lopes. “Meu pai veio garimpar. Sou filha de dois analfabetos. Só esse factor já explica a escravidão. Como justificar que no século XXI ainda tenha essa população escrava? Onde é que nós, universitários, podemos avançar?”

lhares de anos por populações tradicionais, indígenas, pescadores, extractivistas”, transformou-se “na campeã do trabalho escravo”. Que fez o estado? “Criou todas as condições para a exploração.” Batista enumera chacinas e assassinatos selectivos, centenas de mortos antes de José Cláudio e Maria. “O problema não é a ausência do estado, é a presença do estado sempre do outro lado.” Com Fernando Henrique Cardoso, houve uma “entrega dos meios de controle”, por exemplo, a privatização de empresas como a Vale. “Na era Lula, o papel do estado mudou, mas o modelo não. Agora o estado é o indutor do crescimento.

Vai alavancar as grandes obras.” As maiores apostas do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento, lançado por Lula) estão na Amazónia. Barragens como a discutidíssima Belo Monte, no Norte do Pará, que será a terceira maior do mundo. Marabá também tem uma no horizonte. “E não pensem que é para resolver o problema da energia nas nossas casas.” Os ambientalistas insistem que estas barragens servem as grandes empresas à custa de populações ribeirinhas e indígenas, forçadas a mudar de vida. “O nosso grande desafio é enfrentar esse

Acima: Marabá, uma cidade em expansão, um faroeste

modelo de desenvolvimento para poucos”, diz Batista. “Eles deixam dois reais de cada 100 que exploram. E a bancada ruralista tem 220 deputados e senadores, passa o que quer no Congresso.” Depois do Código Florestal (que após aprovação na câmara de deputados está agora nas comissões do senado, para análise), a ambição dos ruralistas será “barrar as Unidades de Conservação”, mais de 300 reservas geridas pelo Instituto Chico Mendes. E ainda querem “rever a legislação trabalhista, porque muitos foram pegos praticando trabalho escravo”. Não é “um momento favorável para os movimentos sociais”, conclui José Batista. “Temos de ter uma união muito forte para enfrentar o bicho.”

Na Serra Pelada, a sul de Marabá, trabalham homens sem raiz, que podem ser mortos por nada, como antes eram mortos por um dente de ouro.

2. A família de José “Essa cidade está pipocando de loteamentos”, diz Sávio, ao volante por Marabá. “Esse terreno vai ser uma grande rede de supermercado....” Aponta para a esquerda. “E ainda não tem shopping mas tem projectos para três shoppings...” Os bairros multiplicam-se. Há a Velha Marabá, ou Marabá Pioneira, a Nova Marabá, a Morada Nova, a Cidade Nova, e entre elas a ponte sobre o rio Itacaiúnas. Ao anoitecer estamos diante de uma tal Igreja Getsmani, toda iluminada e vazia, à excepção da mulher que brada lá dentro. Os irmãos de José Cláudio estão a viver ao lado. Dia e noite ouvem a mulher. “Aqui foi para onde veio a família quando aquilo aconteceu”, diz Claudenice, 29 anos, a irmã caçula, levando os repórteres entre duas paredes exteriores onde alguém escreveu: “A floresta chora.” Entramos pela cozinha, aberta para uma sala. Grade na janela, reboco precário, cortina rasgada. Paletes de Coca-Cola entre a televisão e a ventoinha. Luz crua no tecto. Claudenice senta-se numa cadeira. Cabelo negro, alças negras, jeans. “Somos 11 irmãos.” Pausa. “Agora somos 10 porque o Zé Cláudio infelizmente está noutro plano. Eu sou a ponta do ramo, como o Zé Cláudio me chamava. Sempre vivi em Marabá. Todos nós. As nossas origens indígenas são daqui, dos índios caiapós. Pelas nossas origens, meu irmão sempre se soube parte da floresta. Apanhava castanha desde os sete anos. Meu avó já era castanheiro, de terra

devoluta, mata que não tinha dono. E meu avó criou o Zé Cláudio desde pequeno.” Depois José Cláudio criou parte dos irmãos. “Meu pai abandonou a família quando eu tinha cinco anos. Então para mim, Zé Cláudio era o pai. Não tenho outro exemplo de homem. Ele era o forte da família, o esteio. Em qualquer tomada de decisão ele tinha de ser consultado, a opinião dele é que valia para nós. Até minha filha chama Zé Cláudio de pai.” Claudenice ainda fala dele no presente. “Tenho duas filhas e as duas são afilhadas dele. Ele era uma segurança. Por isso digo que em parte a família acabou. É muito difícil a gente aceitar que ele morreu. Eu não aceito. Não aceito.” Ao mesmo tempo, ajuda a polícia. “Na linha das investigações, estou na frente, vou na delegacia. Prometi que não ia deixar ficar barato se ele morresse. Mas jamais pensei que fosse ter de cumprir a palavra. Porque ele era muito forte, muito, muito. Muito seguro dos ideais dele.” A mulher da igreja grita pela salvação das almas. De vez em quando um dos irmãos de José Cláudio passa pela cozinha. “A vida é louca”, diz Claudenice. “Ao mesmo tempo que a gente tem, já não tem mais. Some como areia nas mãos.” Ela não pode dizer, mas diz que sabe quem foi. “Desde o momento em que vi meu irmão todo furado de chumbo lá no chão, eu já sabia quem tinha mandado. Para a família não era segredo. Quem matou, quem esquematizou e quem financiou. É um consórcio, não uma c




capa Fotoa anteriores: Claudenice, a irmã caçula de José Cláudio; o gado onde antes era floresta pessoa só. E se não aparecer na investigação é porque um está escondendo o outro.” Na verdade há duas investigações, a da Polícia Federal, de fora, e a da Polícia Civil, local. “Quanto à Federal, a família acredita totalmente. Eles estão sendo imparciais. Estão trabalhando muito bem.” Já a Polícia Civil, critica Claudenice, deu importância a um elemento entretanto posto a circular: a existência de um inquérito a José Cláudio por um assassinato há anos. “É fácil acusar uma pessoa que está morta. Agricultor que morre às mãos de pistoleiro de fazendeiro é desvalorizado aqui no Pará. Mas isso não vai acontecer com meu irmão. Ele não vai ter a história suja por homicídio. Essa ideia nem foi cogitada pela Polícia Federal.” E não resiste a ir um pouco mais longe para defender José Cláudio: “Ele organizou um grupo de agricultores que teve a casa queimada no final do ano passado. O fazendeiro que queimou as casas e os expulsou foi o mesmo que abriu inquérito contra o meu irmão antes dele morrer. Ele é o principal suspeito. O único entrave é a prova. Foi pistoleiro que fez.” Emboscando José Cláudio e Maria num caminho de terra do assentamento extractivista onde viviam, a duas horas daqui, no município de Nova Ipixuna, no meio da floresta. Muitos moradores do assentamento já não se dedicavam ao extractivismo. Faziam desmatamentos e tinham fornos de carvão, ou seja, trabalhavam para madeireiros e mineradoras. Depois da morte de José Cláudio, o Ibama (Instituto do Ambiente) foi lá, apreendeu material, fechou serrarias. O ambiente em Nova Ipixuna ficou de cortar à faca, diz-se em Marabá. A economia local sofreu um golpe. Há ressentimento. José e Maria não viviam propriamente entre amigos. Num testemunho comovente durante as palestras TED/Amazónia (www.tedxamazonia.com.br/tedtalk/ze-claudio) José Cláudio contou como tinha a vida em risco: “Vivo com a bala na cabeça a qualquer hora.” E viveu assim muito tempo. “Meu irmão não ficava com o mesmo visual e mudava a rotina”, diz Claudenice. “Há 10 anos que fazia isso. O assentamento foi criado em 1997 e desde 2002 que ele recebia ameaças. Às

vezes deixava o cabelo crescer, pintava-o. Ia por uma estrada e vinha por outra.” Entra agora Claudenir, 35 anos, professora, e senta-se. Os nomes dos irmãos têm uma sequência. As irmãs enumeram: Cláudio, Claudenor, Claudecir, Cláudia, Claudina, Claudemir, Claudenir, Claudenice. “Cláudio era o nome de um médico e minha mãe achou bonito”, explica Claudenir. Só três irmãos fugiram à regra: Edivaldo, Carlinda e Isabel. Amanhã, a Pública vai viajar até ao assentamento de José Cláudio. Quererá alguma das irmãs vir? Entreolham-se. A caçula explica: “O Zé Cláudio teve a casa dele praticamente queimada. Só não morreu porque Deus existe. Eu não posso ir, de jeito nenhum. Depois que o Ibama levou maquinaria, veículos, toda a madeira e derrubou os barracões das madeireiras, os trabalhadores em Nova Ipixuna falam que a culpada sou eu, porque fui em Brasília, no governo.” Contaram-lhe de uma conversa em que era ameaçada como a próxima a morrer. “A família toda, mas principalmente eu. E que se tivesse um papagaio na família até ele ia morrer. Eu estou com a minha vida virada, e não só eu. Minha irmã não tem estrutura para dar aula, minha mãe está totalmente fragilizada, o pai da Maria enlouqueceu, está lá amarrado. Por isso te falo que acabou com a minha família, e que a gente não sabe o que vai fazer. Não pode voltar para aquele assentamento onde estão as pessoas que mataram o meu irmão. Estou falando de quem ajudou e está rindo da nossa cara, dando entrevista, dizendo que era amicíssimo. Você podem ir lá e estar falando com quem ajudou, ou quem sabia de tudo e não fez nada para ajudar o meu irmão, sem dúvida porque queria a morte dele, porque era carvoeiro, ou vendia castanheira para as madeireiras.” Nos últimos meses, diz Claudenice, José Cláudio “foi tocaiado várias vezes”, emboscadas de que conseguiu livrar-se. “Ele e Maria não foram mortos antes por pura falta de oportunidade.” Claudenice está a estudar engenharia ambiental a sudoeste de Marabá, mas desde que o irmão

foi assassinado não voltou às aulas. Claudenir fez o curso para professora com Maria, a cunhada assassinada. “Era uma amigona, uma companheira. Ajudava todo o mundo, pensava nela por último.” Como se conhecerem, José e Maria? “Numa eleição”, conta Claudenice. “Ele era mesário e aí começou o tcham.” Claudenir acrescenta: “Ela recém-separada e ele também.” Não tiveram filhos, Maria já não podia. “Mas criaram um menino que biologicamente era neto dela.” Até à morte de José Cláudio e Maria, cada irmão estava na sua casa lá no assentamento. “Mas a gente sabe demais, e somos todos ambientalistas”, diz Claudenir. Que pensam da reação de Dilma? Fez o que devia? “Num primeiro momento me senti muito acompanhada”, diz Claudenice. “Foi uma imposição dela que a Federal viesse. Na assistência à família o governo do estado também esteve bem. Estão providenciando duas casas mais seguras, uma para a família da Maria, outra para a nossa família. Agora, em Nova Ipixunas foi o descaso total. Não queriam nem ajudar. Nem um ónibus o prefeito cedeu para os professores virem ao velório. Pergunta para ele porque nunca foi na imprensa falar algo do Zé Cláudio. Nunca falou do que é feio ou bonito. Ele está do lado dos madeireiros. E está organizando uma comissão para ir a Belém e a Brasília reabrir as madeireiras de Nova Ipixuna, porque a economia de lá é a extracção de madeira ilegal. Zé Claúdio e Maria ficaram sozinhos na luta, nas denúncias.” O assentamento tem hoje 450 famílias em 22 mil hectares. “No começo era só extractivismo, mas ao longo dos anos foram-se inserindo as madeireiras”, conta Claudenice.” Houve um assédio muito grande e as pessoas foram cedendo. Enquanto Zé Cláudio e Maria estiveram à frente, não caiu uma árvore, mas depois liberou geral.” E agora, “60 por cento dos moradores tinha um ou dois fornos para fazer carvão”. Em suma: “Queriam ver-se livres do Zé Cláudio porque ele ia contra os interesses deles. Aqui é o arco do desmatamento, o epicentro. Estamos no olho do furacão do conflito agrário.”

3. Nova Ipixuna e a floresta Nuvens como algodão num céu azul, um cavalo no horizonte, um cavaleiro de chapéu branco. Caminhos de cowboy, mesmo que até Nova Ipixuna seja estrada de asfalto. Quem vai ao volante é Geraldo, filho de católicos ligados à Teologia da Libertação. c

“Nós sabe quem foi. A polícia sabe. Não tem só uma pessoa envolvida, tem várias. Os pistoleiros são de fora, mas os mandantes são daqui.”

Manuel, ex-escravo de fazenda É um refúgio à beira de um canal, em Marabá. Para aqui vêm os escravos que a polícia resgata nas fazendas. Além de desmatarem a floresta, muitos fazendeiros usam trabalho forçado. Então com o dinheiro de uma grande multa a uma fazenda criou-se o Centro Cabanagem, parceria do Ministério do Trabalho e dos movimentos sociais (Comissão Pastoral da Terra-CPT, Movimento dos Sem-Terra, sindicatos). O mais recente resgatado é Manuel Carlos de Barros, maranhense de 36 anos com ar exausto. E para além de exausto, imobilizado na mão esquerda. Viveu sempre em Peri-Mirim, lá no alto do Maranhão. Até decidir fazer os 800 quilómetros para Marabá. “No Maranhão o ganho era muito pouquinho, só negócio de roça [horta], milho, abóbora, arroz, feijão. Aí falei para a mulher: ‘Vou dar uma volta no Pará, para fazer um pirão [comida] melhor para os meninos.” Apanhou dois autocarros, dois dias de viagem, e de Marabá foi um pouco para sul, à feira de Parauapebas, onde ouvira dizer que podia conseguir trabalho. “Encontrei um senhor que procurou se eu não queria trabalhar, me prometeu diária de 25 reais [10 euros] arranchada [com alimentação]. Era para cortar mato e fazer cerca numa fazenda de gado.” Manuel foi. “Dormia numa barraca com mais quatro. Não tinha energia, não tinha banheiro, era água do rio, e quando chove a água do curral desce toda para o rio, que era a água de beber.” O patrão afinal era uma patroa, Dona Sónia, como lhe chama Manuel. “Trabalhei durante seis meses e nunca recebi. Aí ela botou um deficiente mental para trabalhar. Um dia ele pegou na minha foice, quando eu ia pegar dele fez cara de sorrir e me cortou

aqui…” Manuel passa o dedo na mão esquerda, entortada, com uma cicatriz. Perdeu o movimento em três dedos, incluindo o polegar. Pelo trabalho de seis meses, mais dois à espera que lhe pagassem, tudo o que a fazendeira pagou foram 300 reais (130 euros) mais 200 de indemnização pela mão (87 euros). Quando, só de salário, teria que ter recebido 6000 reais, fora indemnização. Manuel foi resgatado depois de ter insistido junto da Polícia Federal, que por sua vez contactou a CPT. “Lá na fazenda da Dona Sónia ninguém recebe não. Todo o mundo está pagando para trabalhar. Não tínhamos dia santo, nem feriado. O gado que morria, urubu não comia, dava para a gente. Os vaqueiros levantam três horas da manhã para tirar leite, param para almoçar duas, três horas e vai até à noite, todo o santo dia.” Entretanto, a mulher de Manuel vai esperando. “Ela está na nossa casinha. Não está passando bem. Ela quebra coco, pesca, vende no comércio, mas troca quatro quilos de coco por farinha e arroz e ainda fica devendo directo. Falou para eu voltar, mas não tem condição de voltar aleijado e dar de comer aos meninos.” O que o faz continuar aqui é a esperança da multa à fazenda, de ser pago pelo trabalho que teve. “Depois volto para casa a ver o que dá para mim fazer.” a A.L.C. Manuel trabalhou seis meses, ficou com uma mão imobilizada e continua à espera de receber os seus salários


andiroba, que dá um óleo medicinal. Geraldo tem de manobrar entre buracões e camiões de carvão, de minério. De um lado e do outro, cabanas de trabalhadores, maranhenses vindos para as fazendas, para a mineração. “Estes capinzais eram mato. Os fazendeiros tiraram as árvores.” Entramos em Nova Ipixuna, e o cenário fica puro faroeste dos trópicos. Isso ou aquela América do fotógrafo Walker Evans, com barracas de madeira e vidas batidas. Ruas de barracas por pintar, o horizonte ao fundo da rua, crianças penduradas nas janelas, carrinhas de caixa aberta, gente de cara fechada.

Em cima: Eduardo, o líder do sindicato em Nova Ipixuna

José e Maria iam de moto quando foram surpreendidos pelos pistoleiros. Balearam-nos e cortaram um pedaço da orelha dele, como comprovante. Agora tudo é natureza, o som incrível de um pássaro, chuva que começa ligeira, uma borboleta laranja e verde-ácido.

Cresceu em Nova Ipixuna, onde um irmão chegou a ser prefeito, e acompanhou a instalação do assentamento extractivista, então como representante da CPT. Hoje está fora da comissão, mas por conhecer tão bem o lugar fará parte de um grupo para rever o assentamento. Se tantos moradores se viraram para madeireiras e mineradoras, terá havido falta de acompanhamento dos incentivadores do projecto, CPT e Conselho Nacional de Seringueiros. “Temos de assumir as culpas.” E ver o que pode ser feito. Antes mesmo da fundação do assentamento já havia famílias a viver no terreno, propriedade do governo federal. “A família do Zé Cláudio já lá estava. Ele foi uma peça fundamental na criação do projecto. Fizemos reuniões na casa dele.” O carro segue paralelo ao rio Tocantins, entre açaizeiros e palmeiras. É disso que vivem as populações ribeirinhas, da pesca, do açaí, da

A prefeitura funciona numa casa térrea de alvenaria, duas cores meio descascadas, uma mesa de fórmica a fazer de recepção. A moça vai ver se o prefeito recebe, volta para nos buscar. É uma sala encardida, ar condicionado com fita-cola, reposteiros demasiado vermelhos e franzidos para a pobreza de tudo o resto. Em cima da secretária, uma garrafa térmica com café, nenhum computador, nem pilhas de papéis. Na parede, grande fotografia de uma barragem. E Lula à espera de ser actualizado. “Ainda não me mandaram o retrato de Dilma...”, diz o prefeito, Edson Alvarenga, 61 anos, um homem careca, de camiseta desportiva e sorriso oblíquo. Nascido em Minas Gerais, veio para o Pará em 1976. Foi comerciante de arroz, depois de madeira. Entre a barragem e a madeira, dificilmente pode ser descrito como ambientalista. Senta-se à secretária. “Nova Ipixuna está passando por um momento turbulento por causa do governo federal.” Início de um lamento que passará ao ataque, quando chegar a José Cláudio. “A reforma agrária aqui não é solução, é problema. Eles colocam os assentados, mas não dão sustentação, escola, água, saneamento. Desde 2006 que o Incra [Instituto da Reforma Agrária] não manda um tostão para recuperar estradas. Aí é que vem o desmatamento.” Sorri. “As pessoas não têm com o que se virar, então vendem madeira, vendem carvão. Quando acaba a madeira vão invadir outro campo. É a indústria da invasão financiada pelo governo federal.” Foi o que aconteceu no assentamento de José Cláudio, entende o prefeito. “Os moradores vendiam madeira para sobreviver, por falta de apoio. Havia fornos, tudo. Mais de 150 fornos.” Por esta e por outras é que o prefeito quer a divisão do Pará. “Pela distância a que o governo nos separa. Os países de vocês são desse tamanho [mostra a cabeça do dedo] e são muito melhores do que aqui. Tamanho não é documento.” E porque morreu José Cláudio? “Desentendimentos entre eles. Quando era presidente do assentamento, ele mesmo vendia madeira, depois é que começou a perseguir os madeireiros.” Tem provas? “Não. Mas é informação das pessoas que lá moram. E também é informação que nos últimos dois anos ele matou três pessoas, uma em Morada Nova, outra em Jacundá, outra perto do assentamento, para dar a terra ao irmão.” Sorri. “As pessoas não gostam de dar essa informação porque têm medo das represálias.”

E engrena por aí fora: “Todo o mundo tinha medo de José Cláudio, andava armado. Era um fanfarrão.” Mas conheciam-se bem? “A gente só se falava de ‘oi, oi’, mas todo o mundo tinha medo dele.” Viu alguma vez José Cláudio armado? “Não. Os moradores da região é que dizem que ele andava armado. Inclusive há relatos de que atirava contra caminhões de madeireiros.” Alguma vez teve um problema com José Cláudio? “Não. É de ouvir dizer. A gente já ouvia histórias antes dele ser morto. Mas nunca recebi uma queixa contra ele.” E sobre Maria, que ideia tem? “Era boa pessoa. Inclusive tinha umas boas irmãs que eram professoras.” O mais grave, para o prefeito, é que agora o nome de Nova Ipixuna está manchado, e isso, diz, é culpa do governo federal. “Se o governo tivesse vindo quando ele disse que estava ameaçado de morte, não teria essa mancha negra. Já não chega o Rio de Janeiro, que não sai das manchetes negras, vai colocar também o Pará?” Ele próprio já correu riscos. “Me ameaçaram de morte por telefone.” Acha que foram retaliações pela disciplina que impôs como prefeito. “Tomei medidas duras para vigiar os funcionários que dormem, comprei relógios de ponto...” E volta a bater no governo federal, que “prefere dar o caixão que o remédio”, que age tarde e de repente, como aconteceu com a inspecção do Ibama. “Podiam ter vindo com mais calma, dar um prazo às pessoas. Deixaram o povo todo desempregado. As pessoas não estão satisfeitas. Umas 500 famílias dependiam do comércio de madeira. Não têm alternativa.” Nova Ipixuna está com 14.600 habitantes e 11 assentamentos, ou seja, a maioria dos habitantes é gente que veio ocupar terras federais, com o compromisso de não as vender. Eis o ponto, insiste o prefeito: “O motivo de tantos problemas é que o Pará tem 40 por cento dos assentamentos do Brasil.” Homem miúdo, bigodinho, boné, Eduardo Rodrigues da Silva é o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais, em Nova Ipixuna, onde a esta hora aliás não há mais ninguém. Porque morreram José Cláudio e Maria? “Por causa das denúncias que faziam. Eu achava que estavam certos, achava eles boas pessoas. Mas muita gente que queria tirar madeira e carvão acha que estavam errados.” Alguma vez viu José Cláudio armado? “Nunca.” Conheciam-se desde 1996. “Ele não era de briga, não. Tinha um jeito explosivo de falar mas era o jeito dele. A floresta era seu amor. A floresta do lote dele está toda em pé, só derrubou a abertura para fazer a casa, enquanto os outros lotes estão bastante derrubados.” O prefeito acusa José Cláudio de ter vendido madeira. Eduardo abana a cabeça, sorrindo. “O prefeito é um madeireiro. Já teve serraria aqui em Nova Ipixuna, tem fazenda, o genro dele é madeireiro. Então fica difícil ele falar bem de quem defende a floresta.” E os alegados três crimes de que o prefeito acusa José Cláudio, de ter ouvido dizer? “Os comentários rodam aí, mas eu não tenho conhecimento de nenhuma dessas mortes.” Alguma vez viu gente com medo de José Cláudio? “Rapaz! Eu acho que não!” c


Que achou da acção do Ibama? “Achei bom, tinha de acontecer. Já tinha de ter acontecido faz muitos anos. Mas multar os agricultores porque fazem roça [horta], achei arbitrário. As pessoas plantam mandioca, feijão, milho, banana, arroz. O Ibama diz que não pode, mas não há nenhuma política de incentivo do governo para sobreviver sem roça.” Eduardo tem seis alqueires, quatro de mato e dois de roça, e vive da roça. “Abacaxi, banana, mandioca... Estou fazendo reflorestação com cupuaçu [uma fruta muito comum na Amazónia] e açaí.” Quando o Ibama chegou, multou-o em 85 mil reais (37 mil euros). “Não vou pagar, não tenho”, diz, encolhendo os ombros. “Mas tenho 25 castanheiras em pé, nunca derrubei nenhuma.” Só colhe a castanha, 30 hectolitros por ano, e vende em Marabá. Não há propriamente restaurantes em Nova Ipixuna. Geraldo sugere uma churrascaria aberta para a estrada. Chama-se Espetinho do Bin Laden. Muitas placas de “Vende-se” ou “Troca-se por gado”, penduradas nas casas. Nova Ipixuna não está em expansão. A partir daqui e até ao assentamento de José Cláudio é caminho de terra, ondulando

ao longo da floresta. Geraldo aponta a primeira castanheira, fina e altiva, com a sua copa no céu. “É a coisa mais linda do mundo. Um crime derrubar uma árvore dessas. Tem uma lá no terreno do José Cláudio, tu vai ver que coisa mais linda...” Entre castanheiras aparecem capinzais com vacas. “Isso tudo era mato, foi cortado....” Pontezinhas de madeira, riachos, mais castanheiras. Tem onça, tem jacaré, tem piranha, floresta mesmo. E nuvens escuras que se formam de repente, chuva chegando. “Estamos quase no ponto onde o José Cláudio foi assassinado...”. A estrada desce suavemente depois de uma curva. Paramos, saímos do carro. Do lado esquerdo há cajueiro, andiroba, açaízeiros, por baixo uma placa de pedra gravada: “A mesma coisa que fizeram no Acre com Chico Mendes e em Anapu com a irmã Dorothy querem fazer com a gente... E realmente fizeram... Mas a luta e o exemplo em defesa pela vida na floresta permanessem [sic] José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, 24 de Maio de 2011, PAE Praia AltaPiranheira.” O nome do assentamento. José e Maria iam de moto neste exacto ponto quando foram surpreendidos pelos pistoleiros. Balearam-nos e cortaram um pedaço

Acima: A cabana de José Cláudio no meio da floresta; o prefeito Edson Alvarenga

da orelha dele, como comprovante. Agora tudo é natureza, o som incrível de um pássaro, chuva que começa ligeira, uma borboleta laranja e verde-ácido. E este ruído lá ao fundo, mais próximo, cada vez mais, nas nossas costas? Voltamo-nos. Uma moto desce a lomba, dois homens na garupa. Assim terão aparecido os pistoleiros. Geraldo franze a testa. Depois sorri, porque reconhece um dos homens. Eles param, cumprimentam, a tensão passa. Voltará quando retormarmos caminho. Pode sentir-se, desde Nova Ipixuna, densa, no ar. A chuva desaba. Rapidamente o caminho fica lama entre castanheiras fustigadas, lá no alto. Geraldo para junto ao terreno de José Cláudio. Um barracão de madeira com uma faixa a dizer: “A Majestade ficou orfã — justiça”. Do outro lado da estrada avista-se a cabana de um vizinho e Geraldo resolve ir até lá, perguntar como se chega a casa de José Cláudio, mais para dentro da mata. Estaciona o carro frente à cabana, corremos para o alpendre, cheio de meninos espantados, em escadinha. Também há uma moto, e um homem que Geraldo conhece, José Rondon, 38 anos. Foi apanhado pela chuva em cima da moto e refugiou-se no alpendre até poder chegar à sua prória casa. Era o vizinho mais próximo de José Cláudio.

Sorriso tímido, tacteante. Não, a atmosfera por aqui não está das melhores. “Todo o medo sou eu”, diz. “Não quero largar a terra, mas a gente queria segurança, porque os criminosos estão aí. A gente sabe das ameaças. Nós sabe quem foi. A polícia sabe. Não tem só uma pessoa envolvida, tem várias. Os pistoleiros são de fora, mas os mandantes são daqui.” Do assentamento, mesmo. Porque mataram José Cláudio? “Por causa da extracção ilegal de madeira.” O prefeito diz que José Cláudio andava armado e toda a gente tinha medo dele. “O prefeito não gostava do Zé Cláudio. Nós somos do PT [Partido dos Trabalhadores], e ele não gostava, todo o mundo sabe. O Zé Cláudio era de temperamento, falava alterado, mas nunca bateu em ninguém. Vivi 10 anos com ele e quem tinha raiva dele era só madeireiro e fazendeiro, porque ele tentava agasalhar os pobres. Quem faz isso e diz a verdade sempre é morto.” Todo o mundo aqui tem uma espingarda para matar cobra ou gavião, mas Rondon nunca viu José Cláudio com arma. “No dia em que morreu nem arma tinha. E a Polícia Federal revirou tudo e não encontrou nada.” E quanto às mortes de que José Cláudio é acusado? “É melhor incriminar uma pessoa que já morreu e não se pode defender.” A chuva pára. Rondon vai à frente de moto,

mostrar o caminho até à casa de José Cláudio. Moto e carro ficam na berma e seguimos pela lama a pé, entre cupuaçu, banana e castanheiras. “A Majestade é uma árvore que ele tinha orgulho dela”, desvenda Rondon. “Ele dizia que era a mãe das castanheiras, e que enquanto ele tivesse vida não iria ser derrubada. Ele brigava por extracção ilegal, brigava com madeireiro, e D. Maria tirava fotos dos carros. Tudo contra os interesses económicos deles.” Cá está a casa de José Cláudio. Cabana de tábua sem pintura, porta e duas janelas, bancos velhos no alpendre. Dando a volta, o quintal é de trabalho, máquina para quebrar a casca da castanha, prensa para tirar o óleo, pilão, sacas. Rondon parte uma castanha oferece. “Duas valem por um bife de cem gramas.” Nem vestígio de um conforto, tudo pobre e gasto. E à volta a majestade da Amazónia. Papagaios, araras, árvores que não deixam ver o céu. A árvore a que José Cláudio chamava mesmo Majestade fica a uma caminhada dentro da floresta. A isso vamos agora, apesar da chuva ter deixado tudo escorregadio. Entramos entre os troncos, afundando os pés naquele tapete de folhas, fibras e húmus. A sensação é a de ter uma floresta morta debaixo dos pés, além da floresta que cobre o céu. E é exactamente assim que a Amazónia vive. O solo não é especialmente fértil. A exuberância acima do solo alimenta-se da

exuberância que vai morrendo e se acumula no chão. Por isso as raízes das árvores não são fundas, muitas estão mesmo à superfície, em emaranhados fabulosos como polvos, ou aranhas. “Essa é que é a Majestade!”, diz Rondon, alcançando um tronco larguíssimo. Os quatro não lhe dávamos a volta, e dobrando o pescoço para trás, a copa perde-se de vista. É junto a esta árvore que José Cláudio aparece de braços abertos numa das suas fotografias mais conhecidas. “Ele dizia que tinha uns 600 anos, mas a gente acredita que uns 900 ou 1000.” Aqui estamos, sozinhos no meio da floresta. Por momentos, Rondon até se esquece do medo. Depois, à conversa com Geraldo, tudo volta. “Eu vou dormir e acabo lembrando desse crime. ‘Tá ruim, Geraldo. O povo me diz: tu toma cuidado. Em Nova Ipixuna não fico. Lá vivem os madeireiros, os fazendeiros que a gente já sabe que ajudaram no dinheiro para o crime. O povo lá de Nova Ipixuna não gostava de José Cláudio, ainda para mais agora, que pararam as madeireiras.” Não conta com nenhuma protecção? “Quando a gente fala para a Força Nacional, eles nos acompanham. Mas eu quero uma segurança, mas no lote da gente. Não quero sair daqui porque aqui é que escolhi viver para o resto da minha vida. É o meu sonho e o da minha companheira Laisa. Só vamos ter sossego quando virmos eles presos.” c


capa Ao lado: Majestade, castanheira talvez com 600 anos, talvez com 1000

3. Velha Marabá, com arte “Marabá é um pequeno Brasil”, diz o desenvolto Marcone Moreira, 29 anos, artista plástico. Estamos a ir da Marabá Nova para a Marabá Velha, onde ele trabalha num atelier colectivo, e de caminho conta a sua história: “Meus pais são do Ceará. Iam para a Amazónia mas ficaram a meio do caminho, no Maranhão. Nasci lá no interior.” Quando os pais se separaram, a mãe veio para Marabá onde tinha irmãos. Marcone (na foto de capa da Pública) é o mais novo de oito filhos, aqui fez o ensino médio, começou a desenhar, aos 15 já pintava. Depois fez ateliers, viu e leu. Nunca estudou arte na faculdade. Talvez ainda faça arquitectura. Se Marabá tem beleza, será neste casario à beira Tocantins, quase antigo comparado com o resto da cidade. À noite, a gente vem comer pirarucú e outros peixes da Amazónia. De dia, passeia, bebe água de coco, pega um barquinho para a praia do outro lado. E o atelier colectivo de Marcone é uma antiga oficina de alto pé-direito, vasta e com quintal. Um grupo de artistas juntou-se e recuperou-a em 1998. “Eu tinha 15, 16 anos. Sempre trabalhei aqui.” Inspirado pelo que o rodeia. Por exemplo, esta instalação de caixas de esferovite vem das caixas que os ambulantes usam aqui na orla para vender bebidas. A particularidade é que estão cobertas de fitas coloridas. “Têm um apelo visual muito forte. Você vai para a beira do rio e percebe a preocupação estética, de adorno. Essa necessidade que temos, estes ambulantes também têm.” Marcone apresentará este trabalho no bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro, em breve. “Gosto da ideia da memória, da pintura como memória. E hoje a gente é amigo, visitei as famílias deles, ia lá trocar isopores [esferovite]. Foi um trabalho muito rico, esse envolvimento. Sempre gostei de me apropriar de objectos anónimos, e neste projecto comecei a perceber como construir essa relação com quem está por trás do objecto. Eu dava um novo e pegava um velho.” Como ele, os ambulantes são de fora. “A maioria veio do Nordeste, maranhenses, sobretudo. São eles que formam essa cidade. E a maioria, mulheres, solteiras, com vários filhos.” Marabá não é o menos violento dos lugares. “É, chamam-lhe Marabala, Marabagunça... A violência é um facto real, mas o Rio tam-

bém não é só o tráfico. A imagem que tem de começar a ser percebida é de efervescência. Essa poeira, que já foi de descaso, é porque estão acontecendo coisas. Tem uma praia maravilhosa, tem um rio maravilhoso, tem pessoas...” O problema é que “educação, segurança, saúde não aumentam na mesma proporção e tudo fica desfasado”. Para além dos constantes conflitos de terra. “Então a gente pergunta para que tudo isso, todo esse dinheiro, as construções, se não é para a gente, se para o povo só ficam as consequências.” Ainda assim, o poder de compra é maior, e há emprego, ressalva Marcone. “Só fica sem emprego quem não quer trabalhar. O poder público, da prefeitura, está caótico, mas a cidade continua.” Nada é preto e branco, tudo é contraditório. Aqui está Marcone, cheio de energia e projectos. E quantos amigos com quem cresceu já não estão cá. “Morreram ou entraram na bandidagem. Você abre o jornal e uma das palavras que mais vê é ‘execução’. Duas pessoas na mata, o de trás atira, é um clássico.” Aliás, a associação de artistas deste atelier chama-se ARMA. “Para que um dia em Marabá você pense em algo mais poético quando ouvir falar em arma.” Evandro Medeiros tem uma t-shirt com uma frase do músico pernambucano Chico Science: “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar.” Aos 38 anos, é ele quem mexe a cena musical e documental de Marabá. Nasceu perto de Belém, foi educador de rua, alfabetizador, trabalhou com adolescentes de periferia, fez concurso para Marabá, e agora dá aulas a professores na universidade. Esta noite tem sessão de documentários, e depois música para dançar. Evandro vai ser projeccionista e DJ. Está aqui vai para nove anos. Mulatão imponente, trancinhas, saudado por toda a gente que o vê aqui sentado, a conversar. “O Pará não conhece esta região. Belém não tem ideia, muito menos o Brasil, que não conhece a Amazónia. Mas é uma região que a gente diz que é um símbolo da Amazónia ou até do Brasil. E eu aprendi que está dentro de uma perspectiva de desenvolvimento capitalista que começou nos anos 1960. Até agora a exploração de minério foi muito básica, mas

está a tornar-se generalizada.” A privatização da Vale foi decisiva. “As coisas começaram a ganhar o rumo da exploração intensiva, com tecnologia pesada e investimento pesado. E no meio de tudo isso colocavam-se as populações pobres. Era o que não estava planeado, e criou todos esses conflitos. Os sem-terra que vieram à procura do El Dorado prometido são hoje o principal entrave ao modelo de exploração intensiva.” Apesar de tudo, diz Evandro, uma execução como a de José Cláudio não parecia possível — e foi. “A morte dele mostra que o estado não tem controle sobre os acontecimentos, sobre as relações sociais. Há uma racionalidade violenta aqui e a ficha ainda não caiu. As crises vão agudizar-se muito. O estado não terá resposta para os sem-terra e para os fazendeiros. A mineração precisa de terra e poderá negociar com os fazendeiros, o que significa empurrar os sem-terra para dentro da Amazónia. Só que agora tem a hidreléctrica de Belo Monte para oeste, a pecuária para sul, a soja para norte...” Dias depois da Pública partir de Marabá, a Polícia Federal anuncia resultados sobre a morte de José e Maria. O mandante terá sido um fazendeiro chamado José Rodrigues Moreira, dono de uma propriedade nos limites do assentamento. Precisava de a expandir para gado, comprou lotes a assentados, e José Cláudio interveio, porque os assentados têm direito à terra mas não a vendê-la. Quanto aos executantes, terão sido o próprio irmão do fazendeiro, Lindonjonson Silva Rocha, e um amigo, Alberto Lopes do Nascimento, já acusado de assaltos no Pará. O Ministério Público pediu a prisão preventivo dos acusados. O juiz Murilo Lemos Simão, de Marabá, recusou, defendendo um julgamento local e não federal. A família de José Cláudio e várias organizações de direitos humanos querem o afastamento do juiz. Os três acusados estão foragidos. A alc.atlanticosul@gmail.com Esta reportagem é financiada no âmbito do projecto PÚBICO+ e é a primeira de uma série que continua amanhã no P2 com “Belém do Pará: A amazónia no cais”

A árvore a que José Cláudio chamava Majestade fica a uma caminhada dentro da floresta. Entramos entre os troncos, afundando os pés naquele tapete de folhas, fibras e húmus. A sensação é a de ter uma floresta morta debaixo dos pés.


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