Embarcação _ Dissertação Kamilla Nunes

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EMBARCAÇÃO KAMILLA NUNES

Dissertação de mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Mestrado, Ceart/ Udesc, para obtenção do título de mestre em artes visuais. Orientadora: Profa. Dra. Regina Melim

Florianópolis, SC, 2017

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N972e

Nunes, Kamilla Embarcação / Kamilla Nunes. - 2017. 225 p. il. ; 23 cm Orientadora: Regina Melim Bibliografia: p. 223-225 Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes, Florianópolis, 2017. 1. Arte - Miscelânea. 2. Espaço (Arte). 3. Discussões e debates. I. Melim, Regina. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de PósGraduação em Artes. III. Título. CDD: 702 - 20.ed.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC 4


Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - Mestrado, Ceart/Udesc, para obtenção do título de mestre em artes visuais, na linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. REGINA MELIM CEART/UDESC

PROF. DR. FELIPE DE MELLO PRANDO DEARTES/UFPR

PROFA. DRA. RAQUEL STOLF CEART/UDESC

Florianópolis, 27 de julho de 2017 5


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Agradecimentos Agradeço a todxs aquelxs que tiveram coragem de enfrentar esse governo golpista, que renovaram nossa esperança e nos ensinaram a construir espaços de luta e resistência, de colaboração e de cooperação. Aos meus pais e meu irmão pelo incentivo e afeto; à Juliana Schmidt pelo amor; à Mônica Hoff pela parceria e conversas infindáveis; à orientadora Regina Melim, pela generosidade e pelas discussões que moveram esse trabalho; à Raquel Stolf e Felipe Prando pelas escutas, trocas e encontros; à Sandra Meyer e Pablo Paniagua pela amizade e as tantas contribuições durante o processo de criação da Embarcação; à Sandra Alves, Rosana Cacciatore, Chay Luge, Bianca Tomaselli, Luana Raiter, Pedro Bennaton, Alice Raiter Bennaton, Marta Martins, Marcio Fontoura, Leto Wiliam, Silfarlem Oliveira, Carolina Moraes, Marina Moros, Fernando Scheibe, Carmen Zaglul, Yazmín Trejos, Luciana Moraes, Marcelo Fialho, Marco D Julio, Adriana Maria dos Santos, Teresa Siewerdt, Lese Pierre, Fábio Tremonte, Gala Berger, Nadam Guerra, Ana Beise, Daniela Castro, Grupo de Estudos em Processos Curatoriais, Bar do Ivan, Erro Grupo, Jorge Bucksdricker, Jorge Menna Barreto, Joelson Bugila, Vitor Cesar, Rádio Desterro Cultural, Guilherme Zorato, Caetano Dias e todxs xs amigxs, artistas e pesquisadorxs que fizeram a Embarcação se tornar realidade.

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Resumo

A Embarcação, desenvolvida na linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos, é um espaço físico e editorial que começou a se configurar em 2016 em Florianópolis, aqui apresentada como uma plataforma discursiva e política de compartilhamento e debate. A estrutura editorial dessa dissertação se divide, sem nenhuma hierarquia, em três partes, cada qual subdividida por sessões polifônicas e processuais. A primeira parte, “Embarcação”, diz respeito aos aspectos teóricos, políticos, conceituais, críticos e poéticos da Embarcação, tanto de seu espaço físico quanto discursivo. A segunda parte, “Rotas”, é composta por trabalhos desenvolvidos nas páginas desta dissertação [in site], ou seja, não são trabalhos pré-existentes (registro das ações). Por último, na parte “Mapas de Navegação”, as sessões correspondem aos espaços de arte que atravessaram a pesquisa e, sobretudo, serviram de referência para a criação da Embarcação. Ocorre que os assuntos abordados (ou embarcados) estão diluídos em todo percurso proposto, seja nos relatos, nas conversas, nas abordagens teóricas, nos estudos de caso ou nas imagens e nos registros das ações desenvolvidas pela/na Embarcação.

Palavras-chave: Plataforma discursiva; prática colaborativa; debate público; espaços de arte.

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Abstract

Embarcação, developed in the academic line of research Contemporary Artistic Processes, is a physical and editorial space that began to be set up in Florianópolis in 2016, presented here as a discursive and political platform for sharing and debate.The editorial structure of this dissertation is divided, without any hierarchy, into three parts, each subdivided by polyphonic and procedural sessions. The first part, “Embarcação” [Vessel], concerns the theoretical, political, conceptual, critical and poetic aspects of the Embarcação, both its physical and discursive space. The second part, “Rotas” [“Rutes”], is composed of artworks developed in the pages of this dissertation [in site], that is, they are not pre-existing artworks (registration of actions). Finally, in the part “Mapas de Navegação” [“Navigation Maps”], the sessions correspond to the art spaces that went through the research and, above all, were references for the creation of the Embarcação. It happens that the issues addressed (or embarked) are diluted in all proposed process of Embarcação, be it in reports, conversations, theoretical approaches, case studies or in the images and recording of actions developed by/in the Embarcação.

Keywords: Discursive platform; colaborative practice; public debate; artist-run spaces.

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aqui é embarcação prefácio

Através da grade da janela é possível ver uma chaminé de tijolo aparente, coberta por uma telha brasilit. Por cima dela tem algumas pedras, que a impede de voar quando bate o vento sul. É a saída da churrasqueira do bar do Ivan. Entre 12h e 14h ele serve almoço com churrasco à quinze reais por pessoa. À noite o bar serve de abrigo para moradores de rua. No verão sempre aumenta o número de pessoas no bairro, o número de barracas, de hippies vendendo artesanato, de pequenos comércios e, mais recente, de food trucks. Vendem de tudo: acarajé, cerveja artesanal, churros, comida mexicana, hambúrguer vegano, pizza, tapioca, cachorro quente, lanches, wraps, espetinho, sorvete, caldo de cana. O bar do Ivan também tem samba aos domingos, é conhecido como “samba da pracinha”, porque fica bem em frente à “pracinha da lagoa”, um nome carinhoso que perdura por aqui desde o tempo dos meus avós. Depois que a pracinha foi “revitalizada” só sobrou umas poucas árvores e muito concreto, onde os moleques jogam bola. Aos domingos, além do samba, tem também uma feirinha que vende todo tipo de coisa, de tapete e potes de barro à mel, queijo e blusas de crochê. Aqui embaixo trabalha o Marquinhos, um tatuador bem relacionado, conhece todos os surfistas da região. Atrás vive a dona Marleci, uma senhora de pouca altura, cheinha, que cumprimenta a todos que passam na rua. Não apenas porque é simpática, mas porque mora aqui desde que nasceu e viu tudo que era criança virar adulto. A rua transversal, antes totalmente residencial, agora tem um hostel do lado do outro. Entre eles, um restaurante que serve PF também a 15 reais, concorrente do Ivan. Come-se à vontade, carne, peixe ou frango. O Bar do Betinho do Deca da Lina tem virado sensação na Lagoa. E não é só o nome que é maravilhoso, a comida também. Mané, como diz o outro. A poucos metros em direção à Avenida da Rendeiras fica o ponto de barco que vai pra uma comunidade de pescadores, a Costa da Lagoa. Chega-se nela apenas de barco, uma viagem que dura em torno de 40 mi11


nutos, ou por uma trilha que leva em média duas horas até o centrinho, que fica no Ponto 16 (cada ponto é um trapiche), o mais visado entre os turistas. É o ponto da igrejinha, da cachoeira, de algumas lojas que vendem souvenirs e cangas, mas é principalmente o ponto que possui a maior variedade de restaurantes na beira da lagoa. Um deles é o Jajá, que se destaca porque o chef, vestido todo de branco e com chapéu de marinheiro, prepara a anchova do lado de fora, na frente dos clientes. Jajá conversa tanto e tão rápido, que mal se entende o que diz. E sorri muito. Daqui dessa sala de quinze metros quadrados dá pra ver também o Casarão da Lagoa, uma das primeiras construções do bairro. Já foi um espaço importante pros moradores, principalmente porque organizava algumas das festas populares da região, como o boi-de-mamão. Hoje está em reforma. O casarão fica bem em frente ao Supermercado Chico, ou só Chico, pra quem é daqui. Não é grande nem barato, mas possui uma clientela fiel, por ser o mais antigo. É o único que possui gerador, também, pra quando falta luz, o que é muito frequente no verão. A Lagoa tem sua vida própria, já ouvi falar de pessoas que não saem daqui faz mais de um ano, resolvem tudo nas redondezas. Tem escolas públicas e privadas, bancos, posto de saúde, Prontomed, posto de gasolina, o Chico, muitos restaurantes e pizzarias, balada, farmácias, escolas de yoga, papelaria, sexy shop, sacolão, botecos como o do Renato, que fica na pracinha, também, e é o único que não aceita cartão. A dona Marleci conhece toda a minha família, ficamos íntimas desde a primeira conversa. Esses dias até lembrou que meu primo fazia aniversário. Por todos os cantos eu encontro alguém que me viu crescer, me chamam de Kamillinha. Quando surgiu a oportunidade de criar, nessa região, um espaço voltado pra práticas artísticas e curatoriais, não restou dúvidas de que seu nome seria Embarcação. Surgiu de uma conversa com a Mônica Hoff, com quem compartilho esse espaço, desde as contas até a concepção e organização das atividades. Os móveis eu construí junto com outro amigo e artista, o Pablo Paniagua. Fizemos tudo com refugo de embarcação. Alguns eu fui buscar de bateira junto com meu pai, pescador nato. Cortamos, parafusamos, colamos e furamos tudo no rancho de pesca da minha família. Fizemos dois cavaletes, um tampo de mesa, um banco de dois lugares e outro de um. Sozinho, o Pablo produziu uma luminária de chão e outra de teto.

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Bar do Betinho do Deca da Lina

Bar do Ivan Bar do Renato Casarão da Lagoa

Embarcação Marquinhos Casa da dona Marleci

Mercado do Chico

Cooperbarco Ponto de pesca (ponte)

Entre uma doação e outra, construímos um espaço de trabalho, mesmo sem uma noção clara do que ele poderia vir a ser. Foi rápido, foi urgente. E entendemos que estará continuamente em processo. Às vezes é difícil explicar o que é a Embarcação. O Ivan já me perguntou três ou quatro vezes. Primeiro queria saber o que eu faço, depois como ganho dinheiro. Também perguntou quem paga esse espaço e se não vamos vender arte. E a cada pergunta, formulo uma resposta diferente. Questiono sempre se existe uma maneira simples de definir um espaço como esse, e as dúvidas que surgem das pessoas que vivem aqui no entorno sempre ajudam a refletir sobre minha prática e os lugares de onde falo e escuto, de onde me movo. Essa dissertação é um esforço de contágio, de aproximar espaços, processos artísticos, pessoas e discursos. Por isso, também, a Embarcação não é propriamente um espaço físico, ela é antes um espaço conceitual, que está tanto aqui nessas páginas sequenciais, quanto aqui, onde estou sentada agora, rodeada de cartazes, livros, cigarros e água com gás, quanto lá, em algum lugar que ainda não definimos. 13


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SUMÁRIO

AQUI É EMBARCAÇÃO [PREFÁCIO] EMBARCAÇÃO 19 SESSÃO UM BARCO, UMA PESSOA, UM RIO E UM BALDE 35 SESSÃO ESCRITA COMO LUGAR 55 SESSÃO DIÁRIO DE BORDO ROTAS 67 SESSÃO RECOMEÇAR 75 O AMOR POR PRINCÍPIO E A ORDEM POR BASE; O PROGRESSO POR FIM 85 SESSÃO BIBLIOTECA MESMO: LUGAR DE LEITURA PARA DESOCUPADXS MAPAS DE NAVEGAÇÃO 109 143 159 185 203

SESSÃO ESCOLA DA FLORESTA SESSÃO CAPACETE ENTRETENIMENTOS SESSÃO TERRA UNA SESSÃO LA ENE SESSÃO PEDAÇO DE ESPAÇO FLUTUANTE

223 BIBLIOGRAFIA

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Embarcação

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SESSÃO UM BARCO, UMA PESSOA, UM RIO E UM BALDE

Esta sessão pretende situar todas as outras que a sucedem. Na prática, ela serve como uma apresentação, ou uma introdução composta de dois textos e uma imagem: o pós-roteiro do vídeo Águas, escrito pelo artista Caetano Dias; o texto/apresentação Um barco, uma pessoa, um rio e um balde e a fotografia de João Alberto Fonseca da Silva, feita no verão de 1955, no alto do morro da Lagoa da Conceição, que acompanhou todo meu processo de escrita e construção da Embarcação.

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PÓS-ROTEIRO ÁGUAS POR CAETANO DIAS, 2017

01 - EXTERNA. MAR. DIA Plano aberto. Foco instável. O mar, o barco e o horizonte são incertos. 02 - EXTERNA. BARCO. DIA Plano fechado. A focagem fica plena quando a proa da embarcação aparece rompendo o ecrã. 03 - EXTERNA. BARCO. DIA Plano fechado. Foco pleno. Uma das forquetas do barco em primeiríssimo plano mostra o movimento das ondas. Dá a sensação de estar à toa. 04 - EXTERNA. MAR. DIA Plano aberto. Foco pleno. Náufrago com sinais de queimaduras de sol, nada a braçadas e braçadas exaustivas. 05 - EXTERNA. MAR. DIA Plano aberto. Foco instável que dá a sensação de que o náufrago está perdido em meio à imensidão. 06 - EXTERNA. BARCO. DIA Barco em primeiro plano. Foco pleno. A embarcação mostra um certo abandono, nela há um balde que geralmente é usado para tirar a água do barco. Ele continua ao sabor das ondas. 07 - EXTERNA. MAR. DIA Plano aberto. Foco pleno. Náufrago atravessa o campo visual da câmera, ainda aparenta estar meio perdido. 08 - EXTERNA. MAR. DIA Plano aberto. Foco pleno. Náufrago nada com mais afinco.

09 - EXTERNA. MAR. DIA Barco em primeiro plano, foco pleno. Náufrago em segundo plano, nada em direção à embarcação. 10 - EXTERNA. BARCO. DIA Barco em primeiro plano. Foco pleno. Com água dentro do convés. O náufrago segura a lateral da embarcação que parece virar, ele entra no barco. 11 - EXTERNA. MAR. DIA Plano fechado. Foco pleno. Com o balde o náufrago colhe a água do mar. 12 - EXTERNA. BARCO. DIA Plano fechado. Foco no balde. Em atos repetitivos, o náufrago joga a água dentro do barco. 13 - EXTERNA. BARCO. DIA Plano fechado. Foco pleno. O convés do barco já com água na altura do tornozelo do náufrago. Ele continua a retirar a água do mar para encher a embarcação. 14 - EXTERNA. BARCO. DIA Plano fechado no rosto do Náufrago. Foco pleno. O náufrago continua no seu repetitivo labor de fazer água na embarcação. Ao fundo, as nuvens passam rápido, indicando que um outro tempo corre. 15 - EXTERNA. MAR. DIA Plano aberto. Foco pleno. Barco enquadrado no centro. As ondas balançam calmamente o barco. O náufrago, repetitivamente, põe o mar a dentro. O céu parece ter pressa, parece correr contra o tempo. 16 - EXTERNA. BARCO. DIA Plano fechado. Foco pleno. A água continua a subir, no barco há um mar interior. Repetindo sempre a mesma ação, o náufrago faz mar em si. 17 - EXTERNA. BARCO. DIA Plano médio. Foco pleno. O mar do náufrago dentro do barco é grande e seu ato corre contra a nau. 18 - EXTERNA. MAR. DIA Plano aberto. Foco pleno. Barco enquadrado no centro. As ondas de fora são as mesmas de dentro. A dança repetitiva do náufrago em fazer água no seu barco engole o oceano. O náufrago, o barco e o mar se fundem, são agora o mesmo corpo. O mar e o céu continuam a passar em seus próprios tempos. Não há mais repetição, só o pleno do eu sendo o mar. Fim. Recomeço. Começo. 21


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um barco, uma pessoa, um rio e um balde

A dois mil e setecentos quilômetros de Florianópolis, na Ilha de Maré em Salvador, o artista Caetano Dias concebeu e dirigiu o vídeo “Águas” (3’, 2010), um trabalho que pode ser considerado como uma das principais referências desta dissertação, sobretudo pela potência da imagem e dos acontecimentos ali imbricados. Ao som de Wilson Sukorski, um homem desaparece no meio de um rio, submerge. Não porque foi engolido por uma tempestade ou por qualquer outro tipo de acidente ou catástrofe, mas porque provocou o próprio naufrágio. É justamente nesse momento de choque, do dar-se conta da intencionalidade do personagem, que somos arrebatadas pelo acontecimento. Posicionamo-nos entre a perspectiva do fim iminente e do próprio fim. Ora, o que fazemos, quando fazemos arte, ou curadoria, ou crítica, ou pesquisa, senão submergir? Senão naufragar? Senão criar fenômenos improváveis? E que mares e rios são esses que nos impulsionam ao naufrágio? É o naufrágio uma condição sine qua non da navegação? O que proponho que se considere é que o naufrágio, quando intencional, sirva como metáfora da recusa. Não da recusa de viver, mas da recusa de viver como uma opção política. Para Raoul Vaneigem, “o ser humano da sobrevivência é também o ser humano unitário, o ser humano da recusa total”1. Esse vídeo é um estímulo importante, ainda que contingente, para a presente pesquisa, por ser a metáfora de um processo

1 VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Veneta (Coleção Baderna), 2016, p. 25. - É preciso considerar que esse texto foi escrito originalmente em 1967, e que devido a todas as lutas por igualdade de gênero que persistem até os dias atuais, alterei a citação trocando a palavra “homem” por “ser humano”. 25


inconcluso e descontínuo, como acredito que deva ser todo processo artístico e/ou curatorial. Por isso os naufrágios aqui são constantes, por isso a Embarcação emerge e submerge o tempo todo. Por isso também a Embarcação está aqui, nesse agrupamento de páginas, palavras e imagens. E lá também, num lugar que ainda desconheço, mas que nem por isso não existe ou não possa ser construído. Por acreditar que “a melhor ordem de um livro deveria ser a ausência de ordem, de modo que o leitor descubra a sua própria”2, proponho um formato em que os textos possam ser lidos tanto em sequência quanto individualmente – fora da ordem ditada pela paginação. O papel desempenhado pelo vídeo de Caetano Dias não é o de ilustrar um acontecimento, mas o de prolongá-lo através da cria2 VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Veneta (Coleção Baderna), 2016, p. 25.

ção de uma situação que extrapola a própria narrativa. Nesse sentido, para compreensão dos espaços de arte como prática artística e curatorial e, portanto, como lugares que organizam a experiência coletiva e a cooperação, há uma tentativa constante de mesclar vozes, de organizar encontros e de provocar aproximações entre a Embarcação e as pessoas e os espaços que contribuíram para sua criação, direta ou indiretamente. O desafio desta dissertação foi justamente criar uma situação que pudesse envolver essas pessoas, articular esses distintos esforços e desejos na construção de uma plataforma discursiva. Assim, esse texto foi organizado em três momentos, cada qual dividido por sessões: “Embarcação”, “Rotas” e “Mapas de navegação”. Ocorre que os assuntos abordados (ou embarcados), e dos quais falarei mais adiante, estão diluídos em todo percurso proposto, seja nos relatos, nas conversas, nas abordagens teóricas, nos estudos de caso ou nas imagens e nos registros das ações desenvolvidas pela/na Embarcação.

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Significa dizer que a Embarcação é um espaço físico, discursivo e editorial. É uma plataforma de trabalho, de formação e de discussão, que começou a se configurar a partir de diálogos ocorridos com a curadora Mônica Hoff, em 2016. Na ocasião, realizávamos juntas um percurso semanal, da nossa casa, ambas localizadas na mesma rua, até o Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, afim de cumprir as disciplinas obrigatórias do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Entre um percurso e outro, criamos escolas imaginárias, organizamos um grupo de estudos em processos curatoriais, discutimos sobre arte, educação e curadoria, e iniciamos a construção da Embarcação. Pode-se então dizer que ela é resultado de uma parceria que concatena tanto nossas práticas comuns, quanto individuais. O que tudo isso sugere a Embarcação vai se tornando coextensivo aos nossos interesses enquanto articuladoras, curadoras, pesquisadoras, artistas e gestoras. Durante a pesquisa, que foi permeada por muita conversa e pelo desenvolvimento de alguns projetos artísticos e curatoriais, compreendi que a noção de espaço de arte como prática artística e curatorial seria uma das questões fundamentais para a minha investigação, bem como a reflexão sobre a criação de linguagens a partir de outras produções de modos de organização. O objetivo da pesquisa passou a ser, então, a construção, física e conceitual, de um espaço atento à cena local e receptivo a procedimentos e a estratégias artísticas e curatoriais, afim de intensificar redes de colaboração e aprendizagem através de uma plataforma política de compartilhamento e debate. Se concordarmos que os espaços e as plataformas de arte são desviantes, que podem surgir a partir de um gesto, de um movimento que tem por finalidade o encontro com o outro, se isso for verdade, será, então, possível propor outras perspectivas, não mais 27


importantes, de olhar para esses lugares desde o ponto de vista da arte, e não apenas da gestão? O que sugiro é que possamos naufragar. E, para isso, alguns baldes estarão à disposição do leitor. Da organização A estrutura editorial desta dissertação se divide, sem nenhuma hierarquia, em três partes, cada qual subdividida por sessões polifônicas e processuais. Embora a etimologia da palavra sessão venha de sessio, que em latim significa “sentar-se”, o que proponho é, na realidade, que possamos navegar, imergir num “espaço outro”, numa escritura em deslocamento. Esta primeira parte, nomeada EMBARCAÇÃO diz respeito aos aspectos teóricos, políticos, conceituais, críticos e poéticos da Embarcação, tanto de seu espaço físico quanto conceitual. A primeira sessão Um barco, uma pessoa, um rio e um balde é composta de dois textos, este que você está lendo agora e o pós-roteiro do vídeo “Águas”, escrito pelo artista Caetano Dias. Em conversa com o artista, falei sobre a potência e a importância desse vídeo para a minha pesquisa, e a vontade de trazê-lo para dentro dela. O que pode ser lido é uma tentativa de imaginação, de tradução de um audiovisual para texto, a fim de nos aproximar dessa obra. Mesmo que ela escape pelos dedos, pelos olhos ou ouvidos, algo há de se prender. O que segue é a sessão Escrita como lugar, composta por três textos: “O que é a Embarcação?”, “Espaço de arte como prática artística e curatorial” e “O que são, o que não são, o que podem ser”. Neste último, sete situações são descritas, em sete espaços diferentes. Por não serem nominados, eles podem ser apenas sete, mas pelo contexto podem se tornar cem, ou mil. São modos de organizações presentes em muitos dos espaços de arte estudados e que refletem, de alguma maneira, seus modus operandi. Esses mi28


cro-acontecimentos sucedem o texto, “Espaço de arte como prática artística e curatorial”. Nesse momento apresento algumas reflexões teóricas e críticas sobre espaços de arte que considero referência para esta pesquisa. A última sessão dessa parte é o “Diário de Bordo”, um espaço documental que contém o registro de todas as ações e proposições que aconteceram entre os meses de março e maio de 2017 na Embarcação. A segunda parte, ROTAS, é composta por trabalhos desenvolvidos nas páginas desta dissertação [in site], ou seja, não são trabalhos pré-existentes (registro das ações). As três sessões dessa parte foram realizadas em parceria com os artistas e pesquisadores que participaram da construção e programação da Embarcação, e buscam estabelecer um desdobramento do espaço físico neste espaço impresso. Mais do que um núcleo desta dissertação, é um espaço que tenta propagar o espírito da Embarcação condensando diferentes momentos, pessoas, encontros, ideias e formatos. Entendo um espaço editorial como um espaço de trabalho e de acontecimento. Para o crítico de arte Justo Pastor Mellado, “depois da superação da síndrome modernista da sala-de-exposição, o que devemos fazer é promover os espaços editoriais como formato temporal expansivo da inscrição de iniciativas locais da arte contemporânea”3. Por último, na parte MAPAS DE NAVEGAÇÃO, as sessões correspondem aos espaços de arte que atravessaram a pesquisa e, sobretudo, serviram de referência para a criação da Embarcação. Para cada espaço, foi escolhida uma forma de abordagem e de diálogo, que varia de textos críticos, traduções, entrevistas, transcrições de conversas e relatos de experiência. O objetivo aqui foi escutar, foi criar um espaço dialógico que pudesse ir ao encontro com as práticas já existentes em cada um desses lugares. Assim, todos os espaços escolhidos permanecem em ati-

3 MELLADO, Justo Pastor. Escenas locales: ficción, historia y politica en la gestión de arte contemporâneo – 1a ed. Santa María de Punilla: Curatoría Forense, 2015. p. 92

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4 “E se considerarmos que o barco, o grande barco do século XIX, é um pedaço de espaço flutuante, lugar sem lugar, com vida própria, fechado em si, livre em certo sentido, mas fatalmente ligado ao infinito do mar e que, de porto em porto, de zona em zona, de costa a costa, vai até as colônias procurar o que de mais precioso elas escondem naqueles jardins orientais que evocávamos há pouco, compreenderemos porque o barco foi, para nossa civilização – pelo menos desde o século XVI – ao mesmo tempo, o maior instrumento econômico e nossa maior reserva de imaginação. O navio é a heterotopia por excelência. Civilizações sem barcos são como crianças cujos pais não tivessem uma grande cama na qual pudessem brincar; seus sonhos então se desvanecem, a espionagem substitui a aventura, e a truculência dos policiais, a beleza ensolarada dos corsários”. FOUCAULT, Michel. O corpo utópico; as heterotopias; pósfácio de Daniel Defert. São Paulo: n-1 Edições, 2013. p. 30

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vidade e possuem formatos distintos, tanto com relação às suas estruturas físicas/arquitetônicas, quando às suas concepções/organizações. São eles: Escola da Floresta, Capacete Entretenimentos, Terra UNA e La Ene. Mas os mapas de navegação também dizem respeito a artistas e suas respectivas embarcações. Por isso, também foi proposta a sessão Pedaço de espaço flutuante, um lugar que reúne pesquisas de artistas sobre navegação, barco, naufrágio e travessia. Essa sessão foi inspirada num fragmento do texto “O corpo utópico, as heterotopias”4, do filósofo Michel Foucault, que propõe novas bases para uma nova ciência, a heterotopologia. Foucault entende a embarcação como um “pedaço de espaço flutuante, lugar sem lugar, com vida própria, fechado em si, livre em certo sentido, mas fatalmente ligado ao infinito do mar”.


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SESSÃO ESCRITA COMO LUGAR

Esta sessão é um lugar de reflexão sobre a construção da Embarcação e, por consequência, sobre as questões teóricas e conceituais que envolveram esse processo. Inaugurada em 2016, a Embarcação é um espaço voltado à investigação e ao debate sobre espaços de arte como prática artística e curatorial. É, também, um projeto que busca discutir e articular novas formas de trabalho, pesquisa, colaboração e produção em/a partir/com/sobre arte. O que segue, então, são três textos: O que é a Embarcação?; Espaço de arte como prática artística e curatorial; e O que são, o que não são e o que podem ser. Todos os textos desta sessão procuram situar o contexto da criação da Embarcação, partindo do pressuposto de que o gesto fundador de um espaço de arte é, por definição, uma atitude política. E fundar um organismo político significa criar um lugar de alteridade, fortalecer e ampliar um sistema local e global, poder afetar e ser afetado.

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o que é a embarcação? A Embarcação é um espaço nômade e temporário, voltado à investigação e ao debate sobre espaços de arte criados por artistas. É, também, um projeto que busca discutir e articular novas formas de trabalho, pesquisa, colaboração e produção em/a partir/com/sobre arte. Organiza-se por meio de programas realizados em terra firme e em alto mar, que visam colocar em diálogo o debate artístico contemporâneo com as especificidades locais e contextuais dos espaços em que aporta (tem-se em vista tipologias como: instituições pública ou privadas, espaços autônomos, praças, praias, parques, acampamentos, comunidades, museus, institutos, centros culturais, bibliotecas, escolas etc.). Desde outubro de 2016, a Embarcação está aportada na Ilha de Santa Catarina, no bairro Lagoa da Conceição. Como um espaço físico-flutuante, ela se dedica ao intercâmbio artístico e de ideias, aos estudos curatoriais, às conversas informais regadas a café e cerveja, à curiosidades compartilháveis e à colaborações locais, nacionais e internacionais. Pode-se dizer que ela é resultado de uma parceria que concatena tanto práticas comuns, quanto individuais. Acreditamos que um espaço de arte pode se conformar enquanto esfera pública, no sentido de que podemos tanto criar lugares onde indivíduos se engajam para realizar um debate crítico, quanto provocar um debate crítico para criação de lugares. Por isso criamos a Embarcação como um “pedaço de espaço flutuante” e desviante, que pode surgir a partir de um gesto com finalidade de criar relações de sociabilidade e diferença entre a sociedade e o indivíduo, o conjunto e a unidade. E é por conta dessa característica que propomos outras perspectivas, nem mais nem menos importantes, de olhar para esses lugares a partir do ponto de vista da prática artística e curatorial, e não apenas da gestão. 37


1 MAIA, Ana Maria; CARVALHO, Ananda (org). Sobre Artistas como Intelectuais Públicos: respostas a Simon Sheikh. São paulo : Selo Prólogo e Casa Tomada, 2012. p. 6

2 ALYS, Francis. Numa Dada Situação / In a Given Situation. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2010. p. 42

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Nos interessa, também, a reflexão sobre a criação de linguagens através de outras formas de organização da arte e da prática artística e curatorial, bem como da relação dos artistas, curadores, historiadores, pesquisadores, educadores, críticos etc., com seus espaços de circulação. Esse interesse manifesta-se a partir da nossa prática curatorial, que compreende a invenção de lugares de encontro e debate – encontrar para debater / debater para encontrar -, e é por isso que discutir “sobre a concepção de ferramentas e políticas de representação; o papel ou função do artista/autor na construção de outros espaços e subjetividades, ou seja, redes alternativas e contra-públicos”1 é parte fundamental das estratégias da Embarcação. Atribuir a estabilidade de um espaço de arte à sua permanência no tempo e no espaço significa desconsiderar o próprio conceito termodinâmico de “Entropia”, tão necessários pra compreendermos o mundo em que vivemos. Na publicação organizada pelo artista Francis Alys, “Numa dada situação”, há uma definição de entropia, nessa circunstância associada à sua incessante pesquisa sobre tornados, que diz o seguinte: “o grau de desordem num sistema fechado e sua tendência para a desordem crescente são irreversíveis. A ação de uma praga de tomates pode transformar uma horta extremamente ordenada em um espaço de desordem. Mas, quando a horta tem uma grande variedade de plantas, a estabilidade é maior. Menos ordem implica maior estabilidade; mais ordem implica maior instabilidade”2. Desse ponto de vista, do ponto de vista da entropia, quanto mais diverso for o sistema da arte, quanto mais espaços e formatos possíveis pudermos inventar, maior será sua estabilidade. Talvez seja esse o maior desafio e, por consequência, a mais importante contribuição dos espaços “alternativos” para construção e a transformação desse campo artístico, político, econômico, social. E então podemos considerar que o “alternativo” não é aquilo que está fora do sistema, mas é precisamente por estar dentro que ele é capaz de operar por oposição, por dissenso.


Das estratégias que consideramos mais importantes para a constituição da Embarcação, encontram-se a cooperatividade, o engajamento com os contextos dos espaços em que aporta e a criação de metodologias que visam compreender, analisar e expandir as relações entre arte, curadoria e autogestão no contexto artístico contemporâneo. A Embarcação, assim como a Z.A.T.3, possui uma localização temporária mas real no tempo, e uma localização temporária mas real no espaço. Toda sua programação é desenvolvida em parceria com profissionais atuantes no campo das artes, seja nas visuais, música, teatro, cinema, dança etc., e tem como princípio promover debates críticos e políticos a partir de dispositivos artísticos. Em “Biblioteca Mesmo: Lugar de leitura para desocupadxs”4, o artista Silfarlen Oliveira propôs que encapássemos toda a minha biblioteca, que contém cerca de mil volumes de livros, com o “livrocapa”, afim de disponibilizá-la para leitura e conversa na Embarcação. O “livrocapa” passou a ser um dispositivo de encontro que desencadeou outros projetos, como o “Cinema Embarcado: A mulher com a câmera” e “Conversas Entremarés”, ambos com quatro edições. Perguntar-nos sobre o que significa criar um espaço de arte, sobre que sentidos se produz num espaço de arte, para que eles servem ou como podemos problematizá-los, amplificá-los e refazê-los desde o campo da arte e da educação foi essencial para construirmos a Embarcação. É importante dizer que a Embarcação se funda em questões observadas tanto nos contextos locais quanto globais da arte e da educação. No que diz respeito ao contexto mais global, verifica-se, desde os anos iniciais da década de 1990, uma emergência de práticas artísticas voltadas à criação de espaços de arte, plataformas e escolas experimentais. Ao criar a Embarcação, objetivamos amplificar as relações possíveis entre as metodologias artísticas/curatoriais e as especificidades do contexto local, e entender como elas juntas podem se constituir em processos experimentais, tanto para o contexto da arte como da educação, favorecendo um deslocamento de narrativas, costumes e preconcepções.

3 Z.A.T. é a abreviação em protuguês (T.A.Z. em inglês) de “Zona Autônoma Temporária”, definida por Peter Lamborn Wilson, conhecido pelo pseudônimo de Hakim Bey, um historiador, escritor, poeta e teórico libertário, cujos escritos causaram grande impacto no movimento anarquista das últimas décadas do século XX e XXI. Seu livro T.A.Z.: Zona Autônoma Temporária foi escrito em 1985 e publicado em 2011 no Brasil pela editora Baderna, no qual ele fala da criação e da propagação de espaços autônomos temporários como tática de resistência e esvaziamento do poder.

4 Na “sessão diário de bordo” desta dissertação pode-se encontrar informações e imagens de cada um desses projetos citados.

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espaço de arte como prática artística e curatorial Para o artista e crítico Luis Camnitzer, “a arte é um campo do conhecimento onde se colocam e resolvem problemas, é o lugar onde se pode especular sobre temas e relações que não são possíveis noutras áreas do conhecimento”1. E é aí, sem dúvida, que encontramos o que de mais essencial existe nos espaços de arte dedicados ao intercâmbio artístico e de ideias. Eles são a recusa de um formato institucional normativo e ideológico, estabelecido e organizado no modernismo, para a apresentação da arte. Entretanto, considerar que um espaço dito “alternativo” é a recusa de um formato institucional estabelecido supõe, ou pressupõe, que há um nível de diferenciação entre eles. E talvez esse nível de diferenciação não esteja no formato, no que diz respeito à escala, à precariedade, ao “faça você mesmo”, ou à incidência desses espaços na comunidade, mas no fetiche que se agrega a eles. Para a artista Gala Berger, por exemplo, responsável pela criação do Nuevo Museo Energía de Arte Contemporáneo (La Ene) de Buenos Aires, inaugurado em 2010, por ela e a historiadora Marina Reyes Franco, não há diferença entre um espaço dito “alternativo”, “independente” e “institucional”, pois as considerações sobre o “alternativo” de um espaço foram desmontados com a crítica institucional. Para Gala Berger, há uma impossibilidade de afirmar a diferença como uma oposição radical ao anti-institucional, justamente porque a diferença faz parte do sistema. O fetiche, nesse caso, para ela, não é outra coisa senão a construção de poder, de modo que “o alternativo é só uma versão mais além do oficial”2.

1 CAMNITZER, Luis. O artista, o cientista e o mágico, 2011. Disponível em: http://www.goethe.de/ wis/bib/prj/hmb/the/156/ pt8622845.htm. Acesso em: 09 de jun. 2017.

2 A entrevista completa com Gala Berger pode ser lida na “sessão La Ene”, localizada na parte “Mapas de Navegação” desta dissertação.

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No entanto, gostaria de propor que olhássemos para alguns espaços de arte não como instituições que ainda têm dificuldade em lidar com a experimentalidade das práticas artísticas, mas como espaços capazes de inventar estruturas de linguagem, por possuírem um sistema de abertura e fechamento que não apenas organiza a experiência coletiva, num constante mesclar de vozes, mas é a própria experiência coletiva, advinda de uma prática artística e/ou curatorial. Como exemplo de espaços em atividade, podemos considerar a Escola da Floresta (São Paulo), o La Ene (Buenos Aires), a Escuela de Garaje (Colômbia), a Casa Selvática (Curitiba), o Saracura (Rio de Janeiro), o JACA (Minas Gerais), o Solar do Abacaxis (Rio de Janeiro), o Jardim Miriam Arte Clube - JAMAC (São Paulo), Vila Itororó (São Paulo), o Chão SLZ (São Luís) entre tantos outros. Por uma característica de sua própria natureza - uma natureza precária, poderíamos dizer-, esses espaços “alternativos” fazem uso de qualquer meio disponível para concretizarem-se. Podem acontecer numa garagem, numa Kombi, numa praça, numa bicicleta, num barco, numa cozinha, numa árvore, num espaço abandonado, numa ocupação, numa calçada e até mesmo dentro de instituições oficiais – mas, acima de tudo, são espaços que criam coletivamente suas próprias ferramentas e metodologias de trabalho. Nesse sentido, eles não são apenas espaços abertos à experimentação, o experimental está no seu próprio formato, na constituição de rotas de fuga. Em entrevista concedida ao crítico de arte Luiz Camillo Osório, Tunga comentou que não possuía o sonho que queria, assim como não fazia o poema que queria. Mas que precisava, ainda assim, estar à disposição do seu sonho e poema, porque ao contrário estaríamos nos instalando nos mecanismos de recalque3. E complementou dizendo que “é preciso que a poética esteja à disposição de uma política, num sentido muito mais amplo do que a prática política institucional. É uma política que passa pela política do sujeito, na busca pela liberdade, na procura dessa liberdade, e que ela seja, de algum modo, um modelo para se procurar a liberdade em outro território”. Certamente, os espaços de arte criados por artistas passam pela política do sujeito e por essa busca pela liberdade. Por 42


3 “(...) acho que a resposta viria mais da obra do que de um depoimento meu. Acho que a obra carrega em si a indicação de que a partir da radicalidade de uma experiência, é que se constrói uma poética. Isso vai encontrar uma certa tradição na arte brasileira, ao colocar o artista como propositor de experiências. Mas não se trata de resgatar para o artista a inocência de uma certa idéia de criatividade, que terá sido provavelmente uma idéia dos anos 1970 para dissolver a radicalidade da poética enquanto política. Quer dizer, essa idéia de criatividade seria mais ou menos a de que todos podem fazer alguma coisa. Sim, todos devem e podem fazer alguma coisa, mas existe um certo rigor neste fazer, ou seja, esse fazer é uma construção, não é uma coisa espontânea. Evidentemente, essa construção é permeada por uma experiência radical. Seria a possibilidade de você descobrir um sentido novo numa experiência, seja ela qual for. Isso seria tomado então, de algum modo, como sendo a herança da coisa moderna, da dissolução das questões das técnicas específicas, ou seja do artesanato ligado à arte. A arte não seria mais artesania, mas construção. Essa construção pode ser mediada por qualquer forma técnica. Lógico que não se trata de abrir mão da técnica, mas se trata de abrir mão do artista como especialista de um único fazer e passando a ser um especialista numa série de proposições que vão construir um universo poético. Quanto a essa conjunção de arte e vida, trata-se da expansão das linguagens, da possibilidade das linguagens, e de uma demonstração de que a cada momento você é capaz de viver uma experiência, transformá-la, ou melhor, sair da banalidade dessa experiência. Desde tomar um copo d`água a fazer qualquer outro gesto, alimentar-se, fazer comida, até realizar aquilo que chamam convencionalmente de uma obra de arte escultórica ou pictórica. É preciso que haja esta intencionalidade, essa radicalidade, ou seja, essa concisão da linguagem e essa vontade de nela descobrir, na linguagem, um outro sentido. A frase clara e clássica sobre isso é: “a verdadeira vida está ausente”. Então eu costumo dizer, lembrando Michaux, eu não tenho o sonho que quero, assim como não faço o poema que quero. Mas é preciso, ainda assim, estar à disposição do seu sonho e poema, ao contrário estaremos nos instalando nos mecanismos de recalque. Recalques estes que podem ser os que a sociedade hoje estabelece para inviabilizar uma vida mais densa e mais profunda, ou os recalques das chamadas estruturas do inconsciente freudiano, que Freud tão bem nos mostra como atuam. Quer dizer, expandindo esta ideia, é preciso que a poética esteja à disposição de uma política, num sentido muito mais amplo do que a prática política institucional. É uma política que passa pela política do sujeito, na busca pela liberdade, na procura desta liberdade, e que ela seja, de algum modo, um modelo para se procurar a liberdade em outro território. E aí sim com inscrição no campo social, etc. etc.” MOURÃO, Gerardo Mello (2001) “Teresa”. In: Assalto. Catálogo da exposição. Brasília: Centro Cultural do Banco do Brasil.

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4 INVISÍVEL, Comitê. Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: n-1 edições, 2016, p. 94.

5 “A arte como produção de modos de organização” foi título de uma palestra de Marcelo Expósito no Musac – Museu de Arte Contemporânea de Castilla y León, em 2014, sobre ferramentas que auxiliam na construção de um discurso contra-hegemônico. 6 FRASER, Andrea. (2008, dezembro). Da crítica às instituições a uma instituição da crítica. Revista Concinnitas, ano 9, vol 2. nº13. Rio de Janeiro. p. 187.

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uma tentativa de abandonar os termos advindos e intensificados pelo neoliberalismo e propor outras formas de vida, por construir uma poética que esteja à disposição de uma política. Esses espaços tendem a refutar as noções de individualismo, competitividade, lucro, gentrificação, privatização, limpeza e homogeneização, para mencionar apenas alguns termos tão caros ao século XXI, pois, para criar uma instituição flexível, capaz de uma radicalização da experiência, na arte e na vida, é preciso elaborar estratégias de colaboração, de cooperação, de afirmação, de escuta. Estratégias de sobrevivência e, portanto, de resistência. No texto “Aos nossos amigos”, o Comitê Invisível coloca que sair do paradigma do governo é partir politicamente da hipótese inversa de que o poder cria o vazio e o vazio invoca o poder, uma vez que “não existe vazio, tudo é habitado, nós somos, cada um de nós, o local de passagem e de articulação de uma quantidade de afetos, de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais que nos excedem. O mundo não nos rodeia, ele nos atravessa. O que nós habitamos nos habita. O que nos cerca nos constitui. Nós não nos pertencemos. Nós estamos agora e sempre disseminados por tudo aquilo a que nos ligamos”4. E se é a arte o que nos cerca, é também ela que nos constitui. Esse tipo de relação implica, fatalmente, na compreensão da “arte como produção de modos de organização”5 no interior de um campo social. Não, portanto, uma questão de dentro e fora, diz a artista Andrea Fraser, “ou de número e escala dos vários sites organizados para a produção, apresentação e distribuição da arte. Não é uma questão de ser contra a instituição: Nós somos a instituição. É uma questão de que tipo de instituição somos, que tipo de valores institucionalizamos, que formas de práticas remuneramos, e a que tipos de recompensas aspiramos”6. Essas questões implicam o COMO fazer ou o “COMO não”7, mas jamais o COMO se. Não mais a discussão entre ser ou não ser instituição, entre ser ou não ser uma resistência, mas como ser instituição, como ser resistência, como criar espaços que produzem as condições para a elaboração e a veiculação de um trabalho capaz de estabelecer outras formas de pensar - comprometidas com o desenvolvimento de um sistema de


7 Na entrevista “Uma biopolítica menor”, Giorgio Agamben fala subjetividade e dessubjetividade, entendo a identidade como um risco, como um erro do sujeito: “O senhor apresenta a identidade como um risco, um erro do sujeito. Entretanto, não haveria uma profundidade material das identidades que se dá na medida em que o adversário nos confia a elas, seja pela lei (como as leis sobre imigração) ou pelo insulto (como as injúrias homofóbicas), que as torna como que objetivas? Em outros termos, qual margem de dessubjetivação nossas condições sociais nos deixam? Neste momento, trabalho em cima das cartas de Paulo, e lá ele coloca o problema: “O que é a vida messiânica? O que faremos agora que estamos no tempo messiânico? O que faremos em relação ao Estado?” Há aí esse duplo movimento, que sempre foi um problema e que me parece muito interessante. Paulo diz: “Permaneça na condição social, jurídica ou identitária, na qual tu te encontras. Tu és escravo? Permaneça escravo. Tu és médico? Permaneça médico. Tu és mulher, tu és casado? Permaneça na vocação para a qual tu foste chamado”. Porém, ao mesmo tempo, diz: “Tu és escravo? Não te preocupes com isso, antes, faça uso dessa condição, aproveite-a”. Isto é, não se trata de uma mudança de estatuto jurídico ou de mudança de vida, mas que se faça uso desta. Em seguida, ele especifica o que quer dizer com esta bela imagem: “como se não” ou “como não”. Isto é: “Choras? Como se não chorasse. Tu te alegras? Como se tu não te alegrasses. És casado? Como não casado. Compraste algo? Como não comprado” etc. Há esse tema do “como não”. Não é “como se”, mas “como não”. Literalmente, consiste em: “Chorando como não chorando; casado como não casado; escravo como não escravo”. É muito interessante, porque seria possível dizer que ele chama de usos condutas de vida que, ao mesmo tempo, não colidem frontalmente com o poder – permaneça em tua condição jurídica, em tua vocação social -, mas as transforma completamente nessa forma do “como não”. Parece-me que a noção de uso, nesse sentido, é muito interessante: é uma prática na qual não podemos designar o sujeito. Tu permaneces escravo mas, uma vez que faço uso dessa condição, no modo de como não, tu não és mais escravo.” AGAMBEN, Giorgio. Uma biopolítica menor. PANDEMIA. São Paulo: n-1 edições, 2016, p. 10.

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8 FRASER, Andrea. p. 185.

9 BEY, Hakim. Taz: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2011. p. 64.

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conhecimentos e experiências capazes de questionar as limitações sociais e psicológicas impostas pelas ideias políticas e econômicas capitalistas - e, sobretudo, de questionar a nós próprios, “por que a instituição está dentro de nós, e não podemos estar fora de nós mesmos”. Construir rotas de fuga significa, portanto, criar espaços afirmativos. Sim, espaços “alternativos”, “independentes”, “autogestionado”, “autônomos” são instituições de arte. Não são espaços que aparentam sê-la: um espaço alternativo não é como se fosse uma instituição, ele é uma instituição que reivindica a prática do “como não”. Na visão do filósofo Giorgio Agamben, essa é uma prática na qual não podemos designar o sujeito. A instituição “como não” instituição não é uma prática que visa o anti-institucional, mas que faz uso dessa condição a fim de expandir sua própria moldura e “trazer mais do mundo para dentro desse enquadramento”8. Enquanto Fraser afirma que a instituição está dentro de nós, e não podemos estar fora de nós mesmos, com Agamben podemos alcançar um ponto de vista complementar, no sentido de que nós somos a instituição mas, uma vez que fazemos uso da condição “como não”, nós deixamos de sê-la. Quando um espaço de arte propõe a invenção de outros formatos possíveis, artísticos e, portanto, institucionais, podemos entender que ele permanece na mesma condição de vida, mas que a transforma completamente nessa forma do “como não”. Ora, essa é uma tática de desaparecimento. Para Hakim Bey, “o desaparecimento parece ser uma opção bastante lógica para o nosso tempo, de forma alguma um desastre ou uma declaração de morte do projeto radical”9. O que declaramos, portanto, não é a guerra às instituições de arte - o que significaria dizer guerra a nós mesmxs -, mas considerar que cada gesto negativo “também sugere uma tática ‘positiva’ para substituir, em vez de simplesmente refutar, a instituição desprezada”. Se, para Hakim Bey, o gesto negativo contra o ensino é o “analfabetismo voluntário”, podemos, por analogia, argumentar que o gesto negativo contra a instituição é sua afirmação “como não” instituição.


Ainda que um espaço seja relutante à produção da arte como mercadoria, ao aprisionamento do gesto radical e ao adestramento dos corpos sociais, ele possui um corpo institucional. Por isso, a tática do desaparecimento só faz sentido com a simples ação de sempre retornar. De emergir e submergir. Naufragar. A instituição precisa existir para além de sua definição, precisa fundar táticas “positivas” e um constante processo de autocrítica, assumir os riscos de se tornar “um aparato de reificação cultural que tudo engloba” para lutar contra essa alienação. De fato, o “alternativo” há muito foi cooptado pelo mercado e muitos espaços antes marginalizados, precários e independentes passaram a contribuir para a gentrificação de bairros inteiros, por exemplo. O fato é que qualquer esforço de disciplinar ou definir esses espaços de maneira hegemônica reprime sua vitalidade e, portanto, reprime também a criação de dispositivos orientados para produção de subjetividade. Por isso a importância desses processos de afirmação. Talvez a instituição que gostaríamos de construir esteja além de sua definição, mas, assim como Tunga, embora não tenhamos o sonho que queremos, precisamos, do mesmo modo, estar à sua disposição - navegar. Do contrário, estaríamos inviabilizando nossa própria vida, nosso próprio corpo social. Inviabilizando, inclusive, a construção de esferas públicas, afetivas e políticas, tão necessárias e fundamentais na nossa sociedade. Estar à disposição é, para mim, um exercício de escuta e alteridade. Artistas como Fabio Tremonte, com a criação da Escola da Floresta10, Parágrafo Único e Propriedade de Uso Comum, para citar alguns trabalhos, oferecem uma forma de pensar, ao propor a criação de espaços de arte como prática artística. E talvez essa colocação seja importante para considerarmos que uma prática artística não necessariamente está vinculada a um fazer manual, mas à construção de um universo poético, à expansão das linguagens. Assim como a prática curatorial não está vinculada apenas à organização de exposições, mas à expansão de seus métodos de organização, à pesquisa, à conexões entre trabalhos de arte, artistas, instituições, contextos sociais e culturais, discursivos e políticos, à

10 Mais informações sobre o trabalho de Fabio Tremonte podem ser encontradas na “sessão escola da floresta” localizada na parte “Mapas de Navegação” desta dissertação.

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11 EXPÓSITO, Marcelo. A arte como produção de modos de organização. In: FRANKOWICZ, Marco (org). Sí, tiene en portugués!. Trad. Milla Jung. Curitiba, 2015. p. 82. 12 EXPÓSITO, Marcelo. p. 82.

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criação de espaços, ao papel multidimensional que inclui uma variedade de atividades que ora se somam ora atuam sozinhas, tais como: crítica, edição, educação, financiamento, programas públicos etc. Nesse contexto, é importante considerar o que o artista e ativista Marcelo Expósito propõe na conversa “A arte como invenção e como produção de modos de organização”, realizada no Museu de Arte Contemporânea de Castilla y León – Musac, em 2014. Para Expósito, a prática artística já não se limita à produção de objetos, mas em produzir tangíveis e intangíveis: “um tangível é um dispositivo para poder cooperar, para poder produzir conhecimento cooperativamente. E estamos produzindo um intangível, que é o próprio fato de cooperar produzindo conhecimento, o conhecimento que se produz cooperativamente”11. O que temos aqui é um grau de desordem que implica a própria concepção do que é arte, do que é um processo artístico/ curatorial/editorial e, sobretudo, do que é um artista/curador hoje e quais seus espaços de atuação. O que Expósito se pergunta é: “como pode alguém apresentar-se como artista quando em realidade, dentro de sua prática, coloca em primeiro plano tarefas como a docência, o ativismo social, a tradução, a edição de materiais? [...] Se pensarmos justamente a prática da arte como a invenção de modos de organização, de modos de organizar a produção e a cooperação social... Aí temos uma chave”.12 Ao longo da conversa, no entanto, fica claro o que o artista entende por cooperação social, ou seja, que é o poder de se fazer algo que possa ser reapropriável e transformável por outros. De acordo com Expósito, “se um quadro que eu pintei vale mais que um quadro que você pintou é porque só eu posso fazer. Mas qual o valor de uma produção visual quando estamos falando de ativismo artístico ou quando estamos falando de arte como produtora de modos de organização? Seu valor justamente é o de poder ser reapropriável e transformável por outros. Se eu produzo algo que só eu posso colocar em prática, então não tem nenhum valor para os demais”. O que interessa aos espaços de arte é justamente a possibilidade de ser reapropriável e transformável por outrxs, é a criação de lugares de dissenso, bem como de mecanismos de trocas entre esses corpos sociais.


Os espaços criados por artistas podem adquirir infindáveis formatos e temporalidades. São, em alguma medida, respostas críticas à escassez de políticas públicas, à academicização da formação artística e à ausência de lugares de debate. Por isso o gesto fundador de um espaço de arte é, por definição, uma atitude política. E fundar um organismo político significa fortalecer e ampliar um sistema local e global, poder afetar e ser afetado, “ajudar a despertar na paisagem social seu sentido latente de lugar”13. Se considerarmos, então, que a invenção e produção de modos de organização é uma chave para pensar a prática artística nos dias de hoje, então é preciso estar atento ao contexto dessas práticas, suas relações com o local e, principalmente, com as relações afetivas que aí se estabelecem. E talvez seja apenas a partir dessas redes de afeto que seremos capazes de estabelecer outros modos de produção e convívio. Em uma conversa com o artista Jorge Menna Barreto em 2015, ele lembrou de uma fala da artista Louise Bourgeois sobre gostar de esculpir em pedras pelo que a pedra não dá, pelo que ela resiste, pelo que a pedra insiste. E a pedra, na sua insistência, acabava por alterar o gesto da artista. Uma luta na qual Bourgeois já sabia quem sairia vencedora. Isso tudo me faz acreditar que nossa insistência em criar espaços de arte se dá por que, ao fazê-lo, criamos oportunidades de viver mais intensamente o inexistente, recorrendo sempre àquilo que ele não dá.

13 BLANCO, Paloma. Mirando alrededor: dónde estamos y dónde podríamos estar? In: BLANCO, Paloma; CARRILLO, Jesús; CLARAMONTE, Jordi; EXPÓSITO, Marcelo. (Orgs.). Modos de Hacer: Arte crítico, esfera pública y acción directa. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2001. p. 7.

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o que são, o que não são, o que podem ser

A festa acontece no quintal de uma casa cujo limite é a beira de um rio que corta a cidade. A casa mesmo é pequena, mas possui uma edícula e uma vasta área externa. Na cozinha, alguém prepara a comida, que varia entre lanches e petiscos. Por toda parte, fotografias, objetos antigos, cartõespostais, ossos de animais e brinquedos clássicos dividem o espaço com livros e cadernos de desenho. Na área externa ficam pendurados alguns panos brancos que, esticados, transformam-se em telas de projeção. Pornografia, vídeoarte e clipes são os mais frequentes. Na edícula, uma artista corta o cabelo das pessoas a um preço simbólico. Corta, dança, fuma e bebe ao mesmo tempo.

Quando soa a campainha, alguém abre a porta. O corredor de aproximadamente um metro de largura e três de comprimento se abre para outro de aproximadamente três metros de largura e seis de comprimento. No fundo, uma série de vídeos é projetada sobre uma porta que, quando aberta, revela um espaço de exposição. As pessoas ficam sentadas no chão ou em cadeiras de plástico, ocupando todo o espaço disponível. Algumas ficam de pé ao lado do bar, que vende cerveja e cachaça. Outras procuram algum souvenir na lojinha, que é também uma biblioteca. Quando acaba a sessão, todos se levantam, a porta dos fundos se abre, as cadeiras são recolhidas e um DJ inicia seu set. 51


Quando sentadas, uma pessoa fica virada para frente e a outra para trás. Mas não de costas, lado a lado. Entre elas e embaixo delas, ficam disponíveis alguns livros e revistas. Algo como uma minibiblioteca. É móvel, é de sentar, de tocar, de pegar, de encontrar. O que importa nessa poltrona é o que ela não diz. O que ela não pode dizer. Talvez até, o que ela não é. Pois aí a experiência acontece em um tipo de jornada ao silêncio. 52

Cercada por morros e cachoeiras, a oito horas da capital mais próxima, a duas da comunidade mais próxima, a uma da benzedeira mais próxima, foi construída uma ecovila. Entre um verão e outro, artistas de diversos lugares do mundo desenvolvem projetos que incluem performances, instalações, vídeos, fotografias, objetos, publicações, desenhos, rituais, cantorias, mágicas, danças, curas e escrituras.

Bem ao fundo, dava pra ouvir alguém pronunciando em voz alta alguns nomes e valores em meio a risos e muita conversa. As pessoas se amontoavam para dar lances cada vez maiores em obras de diversos artistas da região. Durante a semana, eventos de culinária, oficinas de arte, mostras de performance, debates sobre a melhoria da bicicleta como veículo urbano e aulas de biodiversidade vegetal dividem espaço com aluguéis e consertos de bicicleta.


Por um período de um mês, dez pessoas desconhecidas, selecionadas por um júri, sairão de suas casas para desenvolver uma pesquisa, uma obra, um filme, uma música. Ficarão juntas, compartilhando a cozinha, a varanda, a lareira, o jardim. Não é apenas uma questão de deslocamento, ou de viagem de negócios, já que não é simplesmente fazer algo para algum lugar, executar, aplicar uma teoria. É, antes, encontrar, alinhar uma pesquisa individual à percepção do coletivo, construir métodos, criar para cada nova ideia uma linguagem para expressá-la.

Alguns vestiam uma camiseta vermelha escrito “EU”, outros uma camiseta amarela escrito “VOCÊ”. No decorrer do percurso, algumas instruções foram executadas. O grupo, com cerca de dez pessoas, caminhava com movimentos pouco convencionais pelas ruas de um bairro universitário. Retornaram juntos em direção à garagem de uma casa. Dentro dela, podia-se ver uma fotografia, um vídeo, uma tesoura ao lado de um pote de vidro e uns adesivos, mas nenhum carro. No jardim em frente, muitas pessoas conversavam, bebiam e petiscavam. O dia a dia da casa não diferia de nenhuma outra, mas regularmente a garagem se abria para receber eventos efêmeros de performance que continham desde ações ao vivo, até possíveis prolongamentos dessa prática artística.

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SESSÃO DIÁRIO DE BORDO

A sessão “Diário de Bordo” é um espaço documental. Aqui você irá encontrar o registro de todas as ações e proposições que aconteceram entre os meses de março e maio de 2017 na Embarcação:

≥ Biblioteca Mesmo: Lugar de leitura para desocupadxs ≥ 23º. Debate Público (nome artístico) / Jogo Ágora (nome completo) ≥ A felicidade é um compromisso político ≥ Cinema Embarcado: A mulher com a câmera ≥ Conversas Entremarés: Rádio Desterro Cultural ≥ A sensibilidade nas práticas instalativas ≥ Grupo de estudos em processos curatoriais ≥ Tornar Público: Arquivo Abreviado

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BIBLIOTECA MESMO Lugar de leitura para desocupadxs

BIBLIOTECA MESMO: lugar de leitura para desocupadxs foi uma repartição-instalação-biblioteca-ação proposta em parceria com o artista Silfarlem Oliveira. Formada a partir de livros que são cobertos (sinalizados) pelo livrocapa, a BIBLIOTECA MESMO possui uma natureza avessa, é uma biblioteca invertida, e o livrocapa um “abrigo”. A Embarcação esteve aberta das 16h às 20h para conversas, leituras, cafés e cervejas. Na Biblioteca Mesmo, todos os livros possuem a mesma capa, e cada capa possui as mesmas letras: “livrocapa”. A Biblioteca Mesmo não confina seu livros em estantes, tampouco possui um método de organização (por tema, cor, assunto, autor etc.). Há apenas o registro: a cada livro encapado com o “livrocapa”, Silfarlem Oliveira anota em um caderno, também encapado com o “livrocapa”, a primeira letra de cada título encapado. Durante sete dias, foram encapados cerca de mil volumes de livros pertencentes ao meu acervo particular que ficaram disponíveis para leitura de 25 de março a 01 de abril de 2017.

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23º DEBATE PÚBLICO (NOME ARTÍSTICO) / JOGO ÁGORA (NOME COMPLETO)

O 23º Debate Público (nome artístico) / Jogo Ágora (nome completo), do ERRO Grupo aconteceu na Praça da Lagoa da Conceição, localizada em frente à Embarcação. Trata-se de uma peça ou debate, peça-debate ou debate-peça, dependendo do posicionamento das pessoas em jogo ou de sua preferência de posição, até, nesse jogo de palavras (e representação). A obra é fruto da pesquisa do ERRO Grupo, que envolve performance, teatro de rua e intervenção urbana. Para o grupo, “esta obra situa uma manifestação estética de um evento político real-ficcional — um debate — com representantes, antirrepresentantes, contrarrepresentantes e representantes, dos mais diversos ideais, opiniões e movimentos. 23º Debate Público (nome artístico) / Jogo Ágora (nome completo) sublinha um gesto constante nos trabalhos do grupo: o objetivo de trazer uma assembleia política diretamente em contato com o espaço público, operando através de uma poética entre a interação e a intervenção, uma poética do ERRO.”

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A FELICIDADE DA ARTE É UM COMPROMISSO POLÍTICO

‘A felicidade da arte é um compromisso político’ foi uma ação proposta pela artista argentina Claudia del Río para a Embarcação. Consistiu em uma oficina-performance realizada coletivamente e “a las espaldas” ao redor do tema-título da ação, seguida de uma ‘conversa de bar’ na qual fomos convidados por Claudia a estabelecer uma comunicação (contra-colonialista!) em ‘argeleño’ e “brasitino’.

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CINEMA EMBARCADO A mulher com a câmera

Cinema Embarcado surgiu de uma parceria com a cineasta e pesquisadora Rosana Cacciatore e propôs um espaço de aglutinação e de reflexão a partir do encontro entre pessoas para exibição de filmes de cineastas mulheres, a fim de apreciar e discutir o cinema de forma coletiva, tendo sempre algum pesquisador colaborando com os debates. A informalidade e despojamento da Embarcação proporcionaram uma espectorialidade diversa das salas comerciais ou das telas individuais das nossas casas. Hoje, as novas tecnologias e a proliferação das imagens tornam esse tipo de atividade fundamental à formação do senso crítico e à democratização das imagens. Iniciamos com um ciclo de cinema feitos por mulheres, essa categoria inexistente, mas que já produziu obras fundamentais no cinema. 1ª edição: “La chambre” [Bélgica, 1972, 11`] e “News from home” [Bélgica/França, 1975, 90`]. Direção Chantal Akerman. Conversa com Rosana Cacciatore; 2ª edição: “Mar de rosas” [Brasil, 1977, 91`]. Direção Ana Carolina. Conversa com Ana Maria Veiga; 3ª edição: “Le Moindre geste” [França, 1971, 1`45”]. Direção Josée Manenti, Fernand Deligny e Jean-Pierre Daniel. Conversa com Bianca Tomaselli 4ª edição: “A cidade onde envelheço” [Brasil, 2016, 99`]. Direção Marilia Rocha. Conversa com Jose Geraldo Couto. 59


CONVERSAS ENTREMARÉS Rádio Desterro Cultural

“Conversas Entremarés” foi um programa realizado em parceria com a Rádio Desterro Cultural, do Coletivo Desterro de Comunicação. A rádio foi deslocada para a Embarcação, onde foram realizadas conversas e escutas com artistas, dançaarinas, dançarinos, musicistas e músicos. A proposta de que as conversas pudessem acontecer em zonas entremarés foi com o intuito de ver/ouvir o que comumente fica submerso ou nãoexposto ao público, ou seja, a pesquisa e o próprio processo artístico. Todas as conversas foram transmitidas ao vivo pelo site da Rádio. 1ª edição: Conversa com Raquel Stolf e lançamento da publicação sonora Mar Paradoxo. 2ª edição: Conversa com a TAO Orquestra, representada por Fabio Mello, Ivan Vendemiatti, Juliana Schmidt e Eduardo Vidili. 3ª edição: Conversa Marcelo Fialho, Marco D Julio e Mônica Hoff sobre o projeto Encontros Entropicais. 4ª edição: Conversa com Anderson do Carmo sobre Como bichar o pensamento e apresentação da performance Ensaio sobre a retórica. 60


A SENSIBILIDADE SONORA NAS PRÁTICAS INSTALATIVAS

O workshop: "A sensibilidade sonora nas práticas instalativas", foi proposto pelos artistas O Grivo (coletivo formado pelos artistas Nelson Soares e Marcos Moreira de MG), Marcelo Comparini (SP) e Roberto Freitas (SC) na Embarcação. O workshop fez parte da residência Máquina Orquestra realizada pelo Programa Rede Funarte Artes Visuais 10ª Edição e do Prêmio Elisabete Anderle 2014, que possibilitou que artistas de três Estados do Brasil se encontrassem e produzissem um trabalho coletivo. Esse workshop ofereceu um espaço aberto e horizontal de discussão entre os artistas e os interessados, baseado numa série de materiais audiovisuais e referências sensíveis que dialogam com as instalações sonoras dos artistas proponentes.

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GRUPO DE ESTUDOS EM PROCESSOS CURATORIAIS

O Grupo de Estudos em Processos Curatoriais foi criado em parceria com a curadora Mônica Hoff em 2016 no Instituto Arco-Íris, em Florianópolis. Atualmente poderíamos dizer que a linha entre o que é e o que não é curadoria tem se tornado cada vez mais tênue, quando não vaga, e uma questão completamente em aberto. Diante disso, propomos com o Grupo de Estudos abordar a ideia de curadoria como um campo expandido, e em constante desdobramento a partir de quatro eixos que consideramos fundamentais para a construção de um pensamento curatorial na contemporaneidade: curadoria e pesquisa, curadoria e prática artística e curadoria e educação. Isso posto, realizá-lo na Embarcação foi condição fundamental para sua plena ocorrência, pois proporcionou uma série de debates, ações e oficinas em torno dos três eixos elencados acima através da constituição de diferentes esferas públicas, recorrentes tanto dos desejos e intenções individuais dos participantes quanto do contexto que envolve a Embarcação.

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TORNAR PÚBLICO Arquivo Abreviado

Tornar Público foi um programa proposto pelo Arquivo Abreviado, do artista Jorge Bucksdricker em parceria com a Embarcação. Uma parte do arquivo ocupou as dependências do espaço, dando lugar também a uma conversa-oficina sobre práticas de arquivo contemporâneas. Constituído por publicações de artistas das décadas de 1970 e 80, o arquivo abreviado é um espécie de plataforma para proposições artísticas e performações de diversas naturezas.

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Rotas

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SESSÃO RECOMEÇAR

Esta sessão é composta por um verbete e um múltiplo: Golpe e Jogue em caso de emergência. O verbete golpe foi elaborado em 2016 após o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff. Pode ser lido também na publicação coletiva Anecoica, desenvolvida no Seminário Especial Investigações sob(re) proposições sonoras, do PPGAV Udesc, com coordenação da artista Raquel Stolf: https://issuu.com/anecoica. Jogue em caso de emergência, por sua vez, foi desenvolvido no verão de 2017, durante o governo golpista do presidente ilegítimo (Fora) Temer, em colaboração com o artista Pablo Paniagua, após discussão e leitura do texto “Como fazer?” do grupo anarquista francês Tiqqun, traduzido e disponibilizado na sessão “Escola da Floresta” desta dissertação. O que segue são instruções de como fazer um coquetel para tempos sombrios.

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gol·pe (latim colaphus, -i, bofetada, murro, do grego kólafos, -ou, pancada na face) 1. Golpe mesmo só de bicada, de pinga, daquelas amortecidas em barril de jequitibá rosa. E o consumo só aumenta, depois da pancada que esses 8.516.000 km² levaram em 2016. Forte a tal ponto que todo o sistema auditivo do país sofreu um traumatismo. Um silêncio-rumor se instalou por aqui, um efeito-golpe. Tudo que é sinônimo de golpe é dolorido, menos a pinga. Porque esse tipo de golpe, o de estado, incide diretamente nos direitos do povo. É imoral e marca um dos momentos políticos mais desgraçados desde sessenta e quatro. 2. Golpes são arquitetados aos sussurros [em voz baixa], de forma inaudível e [in]compreensível. Em silêncio o soco se faz ferida, depois apenas infortúnio e choque. Corrente de rombo, roubo e desfalque. 3. A lufada do golpe e a precariedade política levaram à revolta todos aqueles que não cederam ao murro e que acreditam que a democracia radical pode derrotar o neoliberalismo. 4. Bombas de efeito moral? Aqui a justiça finge que não vê. Ela trama, é ardil, é truculenta, é seletiva. 5. Os golpistas lançaram rajadas sobre panelas, acreditando que o panelaço os salvaria da corrupção. Nem panelaço, nem buzinaço: hipocrisia. O som do golpe foi derramado por vazamentos tortuosos e escutas sigilosas, coroado por ênclases, mesóclises e citações em latim: — “Vocês sabem que religião vem do latim religio, religare, portanto, você, quando é religioso, você está fazendo uma religação. E o que nós [o governo golpista] queremos fazer agora, com o Brasil, é um ato religioso, é um ato de religação”. 6. A história atesta uma realidade feita em linguagem teológica semierudita, que é a linguagem oficial do golpe. Uma tragédia sucedida pelo drama - corrosiva. 7. Um estado de exceção e degradação que preza somente pela destruição e alienação, uma fonte de angústia. 8. [a galope, o tempo é emergencial]. 9. Tensões e distensões se mantém permanentemente ao som de enfrentamento, resistência e luta. O gozo é possível ainda, em momentos de CONTRA-golpe.

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jogue em caso de emergência KAMILLA NUNES E PABLO PANIAGUA

JOGUE EM CASO D E EMERG ÊNCIA

EM TEMPOS SOMBRIOS preencha a garrafa com o combustível desejado; introduza o pano na garrafa, deixando a parte que será acesa para fora; com os elásticos, firme o pano no gargalo para impedir a passagem de ar; jogue em caso de emergência.

Tiragem ilimitada 2017 Conteúdo ingerível NENHUM DIREITO RESERVADO

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SESSÃO O AMOR POR PRINCÍPIO E A ORDEM POR BASE; O PROGRESSO POR FIM Esta sessão é composta por seis anexos correspondentes às normas para utilização dos símbolos nacionais, a partir das doze frases eleitas no 23º Debate Público (nome artístico) / Jogo Ágora (nome completo). Trata-se de substituir a frase “Ordem e Progresso” por outra que represente o Brasil em sua bandeira, a fim criar desdobramentos capazes de estabelecer outras perspectivas políticas e artísticas para o lema formulado pelo filósofo Augusto Comte: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”. As apresentações da peça 23º Debate Público (nome artístico) / Jogo Ágora (nome completo), do ERRO Grupo teve início em setembro de 2016 em Florianópolis. As frases escolhidas e estampadas nas bandeiras do Brasil são deixadas no espaço público ao final de cada apresentação. Como uma obra pública e política, na visão do ERRO Grupo, o que entra em jogo é o encontro de pontos de vistas e o surgimento de descrenças assim como das utopias, traspassadas por fim pela limitação de um sistema de representatividades, pela crise e necessidade da democracia. Em março de 2016, o ERRO apresentou o 23º Debate na Praça da Lagoa, em parceria com a Embarcação, momento em que foi escolhida a frase “SEM BANDEIRA RELAXA E GOZA”. 75


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ANEXO Nยบ 1

DESENHO DA BANDEIRA NACIONAL

SE REDUZ A CONVENC ER O TUDO

OUT RO

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ANEXO Nยบ 2

DESENHO MODULAR DA BANDEIRA NACIONAL

TUDO SE REDUZ A CON VEN CER

OO UT R O

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ANEXO Nยบ 9 DESENHO DO SELO NACIONAL

TUDO SE REDUZ A

CONV ENC ER

OO UT RO

SELO NACIONAL

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ANEXO Nยบ 14

Mร LTIPLO DA BANDEIRA NACIONAL

REDUZ A CONVENCER E S O O OU TUD TRO

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ANEXO Nยบ 16 LAMBE DA BANDEIRA NACIONAL

MINHA BUCETA ร O PODER

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ANEXO Nº 17

FRASES DA BANDEIRA NACIONAL

QUEIMEM ESTA BANDEIRA ESTOU ATÉ NERVOSA O TOLO É O ÚLTIMO A SABER É CHIQUE SER DO BEM MINHA BUCETA É O PODER A TONGA DA MILONGA DO KABULETÊ SEM BANDEIRA RELAXA E GOZA NÃO É A CRISE É O CAPITALISMO WORKING PROGRESS SE A GLOBO É A FAVOR SOMOS CONTRA TUDO SE REDUZ A CONVENCER O OUTRO TAMU CAGADO

Todas as frases eleitas no 23º Debate Público (nome artístico) / Jogo Ágora (nome completo) podem oficialmente ser utilizadas, desde que os termos da LEI 5.700 de 01/09/1971 sejam respeitados.

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SESSÃO BIBLIOTECA MESMO: LUGAR DE LEITURA PARA DESOCUPADXS 2ª edição

Nesta sessão será apresentada a segunda edição do projeto “Biblioteca Mesmo: Lugar de leitura para desocupadxs” realizada em parceria com o artista Silfarlem Oliveira. A primeira edição ocorreu em março de 2017, na Embarcação, Lagoa da Conceição e teve duração de uma semana. A segunda edição, por sua vez, foi desenvolvida considerando o contexto desta dissertação e foi composta pela introdução não julque um livro por sua capa, por quatro cartazes: livrocapa, recomeçar, repartição e a meta é dobrar a meta, e por dez palavras-ações de importante significado para a construção deste projeto. Cada uma das palavras contém uma nota ou uma instrução que, juntas, conformam esta sessão.

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não julgue um livro por sua capa1 KAMILLA NUNES E SILFARLEM OLIVEIRA 1 Esta edição é um corpo que ocupa dois lugares no espaço. Simultaneamente, faz parte de duas publicações: a “Embarcação” e “O mesmo desafia o mesmo” de Silfarlem Oliveira. Aqui ela se apresenta como uma sessão, lá, com o mesmo corpo, mas com outra aparência, se apresenta como uma “variação mesmo”.

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Biblioteca Mesmo: lugar de leitura para desocupadxs é uma repartição-instalação-biblioteca-ação proposta em parceria com o artista Silfarlem Oliveira. Formada a partir de livros que são cobertos (sinalizados) pelo “livrocapa”, a Biblioteca Mesmo possui uma natureza avessa, é uma biblioteca invertida, e o “livrocapa” um “abrigo”. Décadas antes da criação dessa repartição-ação, Borges havia se perguntado o que contém os livros, e respondeu: “todos os livros, por mais diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as 23 letras do alfabeto”. Para ele, afinal, “falar é incorrer em tautologias”. Paralelamente, Ray Bradbury, em Fahrenheit 451, aconselha não julgarmos um livro por sua capa. Os livros, segundo ele, são como os indigentes, “vagabundos em seu exterior e bibliotecas no seu interior”. Mas o que acontece com um livro que é apenas capa? Um “livrocapa”, como um casaco, veste outros livros ou coisas que podem se tornar livros (é sempre um bom abrigo, protege e transforma). Na Biblioteca Mesmo, todos os livros possuem a mesma capa, e cada capa possui as mesmas letras: “livrocapa”. A Biblioteca Mesmo não confina seu livros em estantes, tampouco possui um método de organização (por tema, cor, assunto, autor etc.). Há apenas o registro: a cada livro encapado com o “livrocapa”, Silfarlem Oliveira anota em um caderno, também encapado com o “livrocapa”, a primeira letra de cada título encapado.


Entre 25 de março e 01 de abril de 2017, na Embarcação (Lagoa da Conceição), ocorreu a primeira edição desse projeto, com duração de 14 dias. Sete deles foram utilizados para encapar cerca de mil volumes de livros sobre arte, literatura, curadoria, publicações de artista, teoria e crítica. Nos outros sete, a Embarcação esteve aberta ao público e os “livroscapa” ficaram disponíveis para leitura. Durante o processo, quatro cartazes foram produzidos, dois filmes foram exibidos continuamente, e o público levou seus livros para serem encapados com o “livrocapa”, passando, então, a pertencer à Biblioteca Mesmo. Propusemos também um jogo no qual a metodologia se assemelhava à do “amigo invisível”. Cada visitante, às cegas, escolhia uma palavra que deflagrava uma ação: escutar uma música, ler um texto, assistir um filme, encapar um livro etc. E foi a partir desse jogo que criamos 2ª edição da Biblioteca Mesmo: lugar de leitura para desocupadxs. Dessa vez, as palavras estão em sequência e foram organizada nas páginas que seguem este texto. Há uma série de instruções/situações construídas a partir das referências que atravessaram esse projeto. Referências compartilhadas de textos, filmes, livros, músicas e objetos capazes de transformar esse lugar de leitura num espaço nômade e temporário, que está aqui, mas que pode se abrir para outros encontros e vivências. Essas palavras-ação estão antecedidas por quatro cartazes desenvolvidos durante a 1ª edição dessa repartição-ação. Todos eles foram feitos de forma colaborativa e passaram a integrar a Biblioteca Mesmo: lugar de leitura para desocupadxs. Na 1º edição, eles foram criados com o mesmo material utilizado para encapar os livros, papel craft, e ficaram expostos nas paredes. O primeiro cartaz foi construído a partir dos títulos dos livros encapados (uma palavra por título escolhida ao acaso). Poderíamos considerar que ele é o catálogo desse projeto. Os três que seguem são palavras/ frases que imprimem um significado poético e político à biblioteca. Repartição pela noção de partilha, Recomeçar por restabelecer o contato entre nossos devires e A meta é dobrar a meta pelo duplo significado que essa frase pode conter: dobra-se tantas vezes que a meta desaparece: metáfora.

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ESCRITOS HISTÓRIA DO MAL O LIVRO INSUSTENTÁVEL ESCRIVÃO ÁLVARO POETA DO INTERLÚDIO SILÊNCIOS DE CÓLERA INVENÇÃO FLORES MADEMOISELLE MARINHAS HISTÓRIAS PARTICULAR MORTE FILHO DESAFORADAS POLÍTICA ESPAÇO INTERVALO TATUÍ VENDA TATUÍ POLÍTICA ARTE REX ALEPH GOZO BANDOLEIROS INVISÍVEIS VERBO CABARET COMO NADJA CORPO DE VIVER PROVOS EMERGÊNCIA REAL ASSIMILADO VOCABULÁRIO DOR EROTISMO CANIBAIS ARTE ALTERADOS FUTURO VEM LOCALES AGORA PANDEMIA CIVIL ABERTO SUL CORPO TRANSTEMPORAIS ENTREVISTAS WOTAN HISTÓRIA MULHERES POLÍTICA ARTISTA PEQUENO CONTRASSEXUAL RADICANTE MUNDO CONTEMPORÂNEO ATELIÊ COTIDIANO ESPAÇO LÉXICO TIENE NUVEM AMIGOS MANIFESTO PERSISTÊNCIA TEMPORÁRIA RESIDÊNCIA INTERAÇÕES REGISTRO EXPOSIÇÕES AMOSTRAS FÁBRICA CONOCIMIENTO FREMEESTRATÉGIAS READY EMBARCAÇÃO EMBARCAÇÃO IMPOSSÍVEL CONVERSA VOCABULÁRIO RUMOR VELOCIDADE PRENSA RECREATIVA SEM FLORESTAL DIALETOS CULTURA PRODUCCIÓN ACCIÓN POÉTICAS ART DESENHOS ARTCONCEITO OCUPAÇÃO SER SITUAÇÕES INVEJA MEYER CRÍTICAS ABRAMOVIC ARQUIPÉLAGO PASTORE COSMORELIEF COSMORELIEF EXPANSÃO ÓVULOS SP SALÃO CENTRO SHOW CARIOCA SENTIDOS DARK HUMANO BRANCO FOTOGRAFIA MUSEU NACIONAL ESPECTADOR SENSÍVEL ESTÉTICA DESTINO REX AUTÔNOMOS ESTADO OS CONTEÚDO X MESTIÇAS ENSAIOS PINTURA DANÇAR TÉCNICA SEDUTOR CADERNO MALDITOS OLHOS IMAGINAÇÃO ITALIANA CARTAS HOMEM COLIBRI TEMPOS LEITOR O PALÁCIO VOLTA CANCIONEIRO SUJO NADA QUANDO ENSAIOS BORGES SEXTETO ESTORVO SANGUE CRÍTICA BUFÓLICAS SERTÃO PRIMEIRAS EDUCAÇÃO INICIAÇÃO VENTO BIENAL INTERNACIONAL URBÂNIA REFLEXÕES GUIA AMOR BELEZA FRESTAS CIRCUITOS PRÊMIO SUBTERRÂNEA ESTADO INCIDENTE TUNGUSKA HEIL BINÔMIOS EDITADO OBJETOS FUNARTE TEORIAS SAMBA FERNANDO RECIBO PERFORMANCE POEMAS INDIVÍDUO INSPIRAÇÃO MITOLOGIA HERÓIS VISUAIS PENSAMENTO ASSASSINAS BIFURCA CRIATURAS IMAGINÁRIAS TÊMPERAS DITADURAS JOGO STIGGER EITA SECRETA PAPEL CROSTÁCEA SEU MANUAIS CANÇÕES CARTOGRAFIAS ECKENBERGER BOLSA BAHIA ORGÂNICO CIDADE MEIRELLES OFÍCIOS BRASILEIRA MORTA CICLOTRAMAORANGEMORIVOARVASOSTEIAFORMAINVISÍVELCONCEITUALDESENVOLVIMENTO ANAPOLINO VOGUE LOUNGE MERCOSUL DOCUMENTA INDIVIDUELLE CURADOR PRACTICE ÁREA CUBO INSTALAÇÃO DESERTO EXPOSIÇÕES EITA MAGRITTE ABSTRATA ENSOR ROCKWELL DÜRER BRUEGEL FANTÁSTICA NUMA INVENÇÃO EITA LATINA INCERTEZA THINKING IMAGINÁRIO DUCHAMP CUBISMO MINK ARCIMBOLDO VIÉS PANORAMA EXTREMOS EMERGÊNCIAS MATERIAL MODERNO BRASIL CIÊNCIA TEIA VERDE TAMBÉM PAMPULHA OCUPAÇÃO CÍRCULO MODERNA MISTÉRIO ILHA PARIS ACADEMIA DESASSOSSEGO COMPLETOS PERCURSO APROXIMAÇÕES PROSTITUTA METAMORFOSES NEUTRAL CULTURAIS ZOOLÓGICO LIBERDADE RODAPÉ EXPOSTO AHN CONVERSAS ULISSES ANEKDOTA EITA ENCONTRO EITA MUROS PRODUÇÃO MUSEU COMPARTILHADOS CIGARRA PREPARAÇÕES ESTACIONAMENTO TERRITÓRIOS EXHIBIONIST CABEÇA INDÚSTRIA QUESTÃO MUROS FIRME ESTADO IMAGEMPENSAMENTO TATUÍ

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MODERNIDADE DIÁRIO ÁREA INIMIGOS COLETIVA GUERRA REGIONAIS BAHIA ORGANIZAÇÕES SEVERINA ALFABETO BIENALI VIVA AFRICANA AÇÕES GRIEGA LONGITUDES SANTIAGO COLLECTION TEXTOS ESSENCIAIS PINTURA MITO TEOLOGIA EXPRESSÃO FUNDAMENTAIS BOOK CONCISA ESCULTURA UMA TENDA MANOEL ANIMATTACK VELHO BARTLEBY CAMINHOS ÓPIO GRAÇA ARTES INDEPENDENTES GALAN SEBO GALAN ROUBADA MANO GALAN MEIO SODOMA MAFALDA MAFALDA MAFALDA SERES BELO NOIVA MUROS PESSOA CAROÇO PASSADO INDIFERENTE PROCESSO ÍMPAR MIRRORS ORQUESTRA SANTIAGO LUME LOUCURA FEMINISTAS QUINTO PAÇO TRAJETÓRIAS INSTAMBUL VALOR REVISTA SAÍDO DIÁLOGOS DOM DICK MOBY SOBREVIVENTE ERRO POÉTICA INDICADOR PERSISTÊNCIA TRABALHO PELE REVISTA AQUI FRACASSO NOVOS PERFORMANCE AMOR ESCREVE GEOGRÁFICO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEO ARTES BRASIL ARTECONHECIMENTO HEARTBEAT SALÃO ANAPOLINO DE ARTE MAM VOMITANDO FLÁVIO PARAÍSO VIVA RUBENS SOLAR SEIO CHINA PRÁXIS CONSTRUTORES APROFUNDAMENTO COLEÇÃO CATARINA POESIA SURREALISMO PLATÔS RISOMA IMÁGENES ESCRITOS MIL PLATÔS SEMINÁRIO SUJEITO PSICANÁLISE ALGUM BUDAPESTE ÉCRIRE GABINETES EXPIRAÇÃO REPETIÇÃO PLURAL RAMOS DIA PUTAS BOA GERAÇÃO DIÁRIOS ESPAÇO TATUÍ HORA NEUTRAL HISTÓRIA SEXUALIDADE HISTERIA ILUSÃO INSTANTE IMPOSSIBILIDADE VONTADE CARTA MESMO MORAL TRAGÉDIA ANGÚSTIA OLHA TATUÍ TATUÍ CONVERSA INFINITA SADE MAGIA RETA ESTRELA MÃO ATO SERTÕES COMIGO INFORME EX-TRANHO ALICE MEMÓRIA INVISÍVEL ESCRITURA PAIXÃO TRUQUES EXPERIÊNCIA CILDO TÍTULO FRATURAS POEMAS PAGES ESPAÇOS MEO PODE PAÍS LINGUAGEM CORPO CONCEITUAL MEIO COLETIVOS FICCIÓN INVISÍVEL PÚBLICA CADERNOS HISTÓRIAS SOFRIMENTOS ETERNIDAD RESSACA DIAMANTE DEPOIMENTO ÓCIO PORNOGRAFIA CONTRAFOGOS DESTRUIÇÕES PÚBLICO OBJETOS AMANTE ANOS BARBA ESTRANGEIRA ESPERANDO ALICE METAMORFOSE QUINQUILHARIAS BOLOR 25 POEMAS ABC IMPRESSO LADO INTERMINÁVEL SÓTÃO TATUÍ BRANCO VAZIO CONVIVÊNCIAS ERRO OCCUPY DIÁLOGOS TRANSITIVA MÃE COMUNAL MULHER LIVROS AMANTES TRANSIT UTOPIA LATINA CHEGUEI SOBRE LATINOAMERICANOS VÊNUS KANT CIEGOS VISUAIS MÚSICA LUME REVOLUÇÃO TRÓPICO SUBLIME VAZ MAPEAMENTO TATUÍ BACON PORTO TUBO TATUÍ SINÔNIMO EXPANSÃO ROMANCE EXPERIMENTAL DEBATE SPA ALÉM MESTRE SCHWANKE 2013 ARQUEOLOGIA VERDADE IGNORADA RODAPÉ AS RECIFE PARÁGRAFO TATUÍ DEVANEIOS PF CONVERSAS VOCÊ ICONOGRÁFICAS TATUÍ GHOST END STÉPHANE ENTRE LIBERDADE MÁRIO PARASITA REPOSICIONAMENTO RASTROS COMUNISTA SÓ FELICIDADE ABERTA ENSAIO MÉTODO ITINERANTES VALE LINGUAGEM TEATRO ESCRITA TUNGA NECESSARY ARQUIVO JOSÉ ANIMAL ARTE DESTINO CASTELO TRANSPARÊNCIA VEIAS CEGO AI CONVIVÊNCIAS AMBULANTE PARQUE SALTO OLHEIRO ILUMINURAS RENDAS FRAGMENTO EFÊMERO CRÍTICA CONCEPÇÃO CONVERSAS IMPOSSÍVEL SISTEMA PRAZER ESOPO FLORESCENTIST EXERCÍCIO FUTURO GENTE REMBRANDT ÉDIPO READ TEIMOSA LIVRO NEGRA SOMBRA SUPERLOQUIOS FILOSOFIA SALA STORYBOARD TÍTULO RUÍDO CRÍTICA ELOGIO DESTERRO PUERTO DIAS MUNDO REFIL RETICÊNCIAS LIMITES OPINIONES SÓS PROPRIEDADE ESPESSURA VERME RECIBO REFIL E.I DORMIR RECIBO NÚMERO QUATRO NOVE TRÊS OITO 88 RECIBO 10 PORTÁTIL BABEL EMOÇÕES TIEMPO SIMBÓLICA

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re·co·me·çar

(voc comp de re+começar, como fr recommencer) verbo transitivo direto e verbo transitivo indireto TIQQUN 2, “Como Fazer?”, 2001.

Recomeçar nunca é recomeçar alguma coisa. Nem retomar um assunto ali onde a gente o tinha deixado. O que a gente recomeça é sempre outra coisa. É sempre inaudito. Porque não é o passado que nos impele a isso, mas precisamente o que nele não adveio. E porque somos também nós mesmos, então, que recomeçamos. Recomeçar quer dizer: sair da suspensão. Restabelecer o contato entre nossos devires. Partir, de novo, dali onde estamos, agora.

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re·par·ti·ção

(der de repartir+ção, como esp repartición) substantivo feminino

Em número muito desproporcional ao tamanho das seções, com suas incontáveis combinações de letras, as inexistentes janelas da repartição estão fechadas. Dentro, há um risco eminente de tudo ruir com o peso dos volumes. Milhares e milhares de livros com milhares de páginas, todos eles fechados cuidadosamente, esperam pelo leitor, como prisioneiros que esperam pelas visitas. As semelhanças entre uma biblioteca, uma prisão e o “serviço de inteligência” são notáveis: ambos separam, classificam, domiciliam e guardam. Arquivam corpos. Há quem diga que no confinamento os livros, talvez por solidão, conversam entre si. Afetados que estão com os murmúrios do arquivo, quando postos em liberdade perdem o traquejo social com os leitores. Um adjunto da repartição, preocupado com as aparentes afinidades da biblioteca com as estruturas de isolamento e controle – concomitantemente, com o mal do arquivo –, solicita uma janela, uma abertura, afinal, “mesmo a inteligência precisa de ar”. Dirigido ao leitor e à biblioteca, que agora se faz invertida, o caminho para o pedido, em ato de fala, segue seu curso. Primeiro, pragmaticamente, recue seus pensamentos. Segundo, abra espaço, leve seu corpo para longe das ocupações inventariadas. Terceiro, ultrapasse a barreira das imposições do real e não volte mais. Quarto, leve com você o maior número de corpos que sua estrutura incorpórea permitir. Quinto, retire do confinamento involuntário todas as peças a “serviço da inteligência”. Recomeçar, vagando pelo ainda desconhecido “haverá então tanto mais ar e luz do sol em seus pensamentos”.

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me·ta

(lat meta) substantivo femino Gilberto Gil, “Metáfora”, 1982

Uma lata existe para conter algo Mas quando o poeta diz: “Lata” Pode estar querendo dizer o incontível Uma meta existe para ser um alvo Mas quando o poeta diz: “Meta” Pode estar querendo dizer o inatingível Por isso, não se meta a exigir do poeta Que determine o conteúdo em sua lata Na lata do poeta tudonada cabe Pois ao poeta cabe fazer Com que na lata venha caber O incabível Deixe a meta do poeta, não discuta Deixe a sua meta fora da disputa Meta dentro e fora, lata absoluta Deixe-a simplesmente metáfora

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me·mó·ri·a

(lat memoria) substantivo feminino Alain Resnais, “Toute la mémoire du monde”, 1956.

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es·ti·le·te

(der de estilo+ete, como fr stylet.) substantivo marculino

O popular objeto sustenta o posto de ferramenta mais utilizada na repartição Recomeçar. São inferidos diariamente inúmeros cortes. A cada corte um livrocapa. A cada livrocapa um número equivalente de dobras. Com esses pequenos gestos repetidos, infinitamente, reatalhamos o acaso. Periodicamente, por correspondência, oferecemos treinamento aos interessados na nova arte à mão armada. Agora mesmo iniciaremos uma pequena demonstração. Dado o grau de perigo, não do talho, mas da dobra, pedimos cautela. Faça um corte do tamanho do livro. Calcule uma sobra para as orelhas. Dobre. Recubra o corpo com o livrocapa que acaba de publicar. Os benefícios da intervenção são incontáveis. Não se esqueça “o instrumento adequado para a escrita é o mesmo da incisão: o estilete”. Afinal, o pensamento age como um cutelo que rasga seu caminho. Abre novos espaços e, ao mesmo tempo, com seu rastro, cria bifurcações inconciliáveis.

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en·ca·par

(der do voc comp do lat in-+capa+ar1, como esp.) verbo transitivo direto

Como você que está lendo agora mesmo este texto, uma pessoa, talvez a mesma, leu anteontem o seguinte anúncio: Encapo Livros. Ligou, prontamente, para o número de contato que aparece no reclame e uma voz, como aquelas de gravação telefônica, atendeu a chamada se identificando pelo vulgo Adjunto. Contou para voz, de forma pueril, que estava interessada nos serviços, pois desde criança protegia muito bem seus livros. No entanto, o Adjunto a alertou do possível engano. Não que esteja de toda equivocada, pessoa ouvinte e leitora, de fato encapamos livros, mas nossa capa não apenas protege. Ela protege e transforma. Somos discretamente responsáveis pela distribuição, por encomenda, de informações em ato que permitem que um mesmo seja outro. Caso queira aderir ao programa acompanhe, passo a passo, os procedimentos. Relembrando: um livrocapa é um abrigo (um casaco) e um disfarce (dupla identidade). Como casaco, vista com o livrocapa outros livros ou coisas que possam assumir o lugar dos livros. Casacos pequenos, casacos médios, casacos grandes. Formatos quadrados, formatos irregulares. Abrigos opacos, abrigos semiopacos, abrigos translúcidos, abrigos semitranslúcidos. Escolha uma vestimenta e com ela incorpore o outro revestido pelo mesmo. Assim os corpos indiscerníveis em categorias dominantes trilharam desocupados como pessoas-livro, fulana, sicrana e beltrana. Essa ação/intervenção poderá acontecer de assalto ou programada, em caráter unitário ou coletivo.

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bor·ges Jorge Luis Borges,”La Biblioteca de Babel”, Ficciones, 1944

Na repartição, a cada vez que cobre um livro ou a cada vez que distribui um livrocapa (um pedaço de papel carimbado com a palavra “livrocapa”), registra as medidas do livro encapado ou do livrocapa distribuído e, depois, acrescenta, cuidadosamente, nos seus registros uma letra. Cada livro uma letra. A biblioteca que trabalha Borges possui apenas um livro com vários exemplares. Em cada parte, em cada canto, volumes e mais volumes do mesmo livrocapa. Todos eles empacotados, embrulhados, numa cor parda que impregna o ambiente como a noite das gatas e dos gatos. Conhecida popularmente como lugar de leitura para desocupadas e desocupados, não há em toda biblioteca mesmo, em toda sua vastidão, um único livro idêntico. Borges, não faz muito tempo, escreveu para repartição um pequeno relato que chamou de “A biblioteca de Babel”, lendo esse documento saberá que essas coisas ali aparecem em exemplos de variações com repetição ilimitada. Na próxima vez que visitar qualquer biblioteca (outros chamam de universo), experimente, todos os membros adjuntos da repartição – inclusive Borges – recomenda, procurar pelo disparate visto que o razoável é uma quase milagrosa exceção.

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ar·tis·ta (der de arte arte+ista, como ital artista) Augusto dos Anjos,”O martírio do artista”, 1944.

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tí·tu·lo

(lat titulum) substantivo masculino

ENCAPE SUA BIBLIOTECA, ANOTE UMA PALAVRA DE CADA TÍTULO ENCAPADO, EMPILHE SEU TEXTO.

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em·bar·ca·ção

(der de embarcar+ção, como fr embarcation) substantivo feminino François Truffaut , “Fahrenheit 451”, 1966. Adaptação do romance de Ray Bradbury.

MEMORIZE ESTA PUBLICAÇÃO E QUEIME EM SEGUIDA. COM ESSE ATO VOCÊ PASSARÁ A SE CHAMAR “EMBARCAÇÃO”. PASSE ADIANTE.

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Mapas de Navegação

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SESSÃO ESCOLA DA FLORESTA

Esta sessão possui três momentos distintos. O primeiro, sair da suspensão, é uma reflexão sobre a Escola da Floresta, projeto criado em 2016 pelo artista Fabio Tremonte. Trata-se de um projeto que lida, sobretudo, com a noção de desmaterialização do objeto artístico, afim de criar espaços de encontro para a materialização da linguagem. Ademais, é um lugar que manifesta a necessidade de se falar sobre os povos latino-americanos desde uma intensidade corpórea, que inclui a alimentação e a política do “estar junto”. O segundo, si ustedes no saben lo que es el sur, es porque son del norte é um texto transcrito a partir de uma conversa com Fabio Tremonte em setembro de 2016. Dentre outros assuntos, falamos do mapeamento que ele vêm realizando sobre os povos indígenas, ribeirinhos, quilombola, andinos, etc., que deu origem à Escola da Floresta. O terceiro momento é uma tentativa de ir mais além de um texto sobre a Escola da Floresta. Para tanto, propusemos uma parceria que culminou na tradução do texto Como Fazer? do grupo anarquista francês TIQQUN, autodenominado como “Órgão Consciente do Partido Imaginário”. Este é o último texto reproduzido na revista TIQQUN 2, e sugere que pensemos não mais no QUE fazer, mas em COMO fazer o que devemos fazer. A tradução contou também com a revisão de Fernando Scheibe e está disponível na web. No contexto dessa dissertação, ela foi inserida com marcas de corte e sem paginação, para que possa ser destacada e repassada.

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sair da suspensão

Para falar sobre e com a Escola da Floresta, é preciso antes fazer algumas considerações sobre os espaços físicos e conceituais que ela ocupa. Lucy R. Lippard, no texto “Mirando alrededor: dónde estamos y dónde podríamos estar?” aponta para uma questão que parece ser a base dessa escola: só pertenceremos realmente a um lugar se o ‘conhecermos’ no seu sentido histórico e experiencial1. Além disso, resulta de sua natureza própria, o fato de que é, em primeira instância, um trabalho de arte em processo, fluxo ou desenvolvimento. Criada pelo artista Fabio Tremonte em São Paulo, a Escola da Floresta não possui uma sede fixa, não tem paredes, cadeiras, mesas ou projetores, não tem refeitório nem banheiros, professores nem alunos, provas nem conteúdo programado. Em se tratando de forma, inclusive, ela é mutante. Ela borra as linhas distintivas entre autoridade e liberdade, entre escola e processo artístico, entre artista e educador, entre aluno e professor. A ausência de uma forma física, ou de um programa permanente implica, em alguma medida, em uma desobediência. Para Fabio Tremonte, o encontro e a construção de esferas públicas são de grande importância para a constituição da Escola da Floresta, para além de seu conteúdo, que é calcado e baseado nos povos latino-americanos. Desse modo, Tremonte provoca uma relação entre a forma e aquilo que é ensinado, apresentado ou, simplesmente, posto à vista. Politicamente, seu conteúdo lida com questões que dificilmente são abordadas em escolas primárias, secundárias e universidades, além de serem pouco debatidas, também, no meio artístico.

1 LIPPARD, Lucy R.. Mirando alrededor: dónde estamos y dónde podríamos estar? In: BLANCO, Paloma; CARRILLO, Jesús; CLARAMONTE, Jordi; EXPÓSITO, Marcelo. (Orgs.). Modos de Hacer: Arte crítico, esfera pública y acción directa. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2001. p. 51

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Conversa de Junho, Marta Ramos-Yzquierdo, Artistas trabalhando + Deriva culinária [mandioca]. Quinta da casa do artista, junho 2016.

Conversa de Junho, Sofia Olascoaga, Entre utopia y desencanto + Deriva culinária [ceviche]. Quinta da casa do artista, junho 2016.

2 “Comment faire?” foi publicado originalmente na revista francesa Tiqqun 2, em outubro de 2001, p. 279. 112

Esses encontros, de acordo com o artista, podem se configurar de diferentes maneiras, como viagens, passeios, caminhadas, culinária, projeção de filmes, contação de histórias, leituras de textos, produções gráficas, conversas e, principalmente, através de colaborações com outros artistas e coletivos. É perceptível o desejo da Escola da Floresta em se desdobrar, expandir-se em uma multiplicidade de sei-lá-o-quê, formular problemas e construir lugares de fala horizontalizados. A Escola da Floresta está comprometida com um lugar de formação mais amplo, mais calcado nas questões próprias da nossa cultura. Paralelamente, é um espaço de fusão entre projetos que a antecederam, de fusão de desejos e pesquisas que, organizadas, recebem contornos históricos e de significação política indissociáveis da prática artística e ativista de Tremonte. Além disso, ao fragmentar-se, há uma quebra de autoria, uma inversão de papéis que a torna mais acessível ao público, mesmo que ela não seja de imediato compreendida enquanto “trabalho de arte”. Talvez não seja, tampouco, compreendida enquanto “escola”. Ela opera no meio, no entre, no “e se”. Radicalizando, a Escola da Floresta é um pensamento, uma consciência do gesto radical, imprescindível ao nosso tempo. Tempo de golpe, de esquecimento, de repressão, de ingerência, de contrarrevoluções. E se for assim, ela é claramente uma atitude política calcada na ideia de recomeçar. E recomeçar nunca é recomeçar alguma coisa. Nem retomar um assunto ali onde a gente o tinha deixado. O que a gente recomeça é sempre outra coisa. É sempre inaudito. Porque não é o passado que nos impele a isso, mas precisamente o que nele não adveio.
E porque somos também nós mesmos, então, que recomeçamos. Recomeçar quer dizer: sair da suspensão. Restabelecer o contato entre nossos devires.
Partir,
de novo,
dali onde estamos,
agora2. É precisamente porque o que recomeçamos é sempre outra coisa, que falar sobre a Floresta faz dela uma experiência política do presente. Talvez uma das mais urgentes e necessárias. A floresta é, aqui, a metáfora da insurreição. É o ecossistema que insiste em se


rebelar contra as transformações impostas pelo poder constituído do capital. A Escola da Floresta é como uma PLANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais), que cresce espontaneamente na natureza e que (ainda) não é comercializada. Por serem pouco conhecidas nos dias de hoje, elas são também pouco consumidas, mesmo que estejam por aí, crescendo pelos terrenos baldios da cidade, à disposição de qualquer passante. É assim o microfone aberto deixado pelo artista na Oficina Cultural Oswald de Andrade para leitura das mais de sete mil páginas referentes ao Relatório Figueiredo, relatório este que foi supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, e que foi encontrado depois de 45 anos no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Come-se a fala. Engole-se à seco. Fabio Tremonte se serve muito do que há ao seu redor. Da sua casa, da sua cidade, do seu ateliê, dos seus amigos, dos seus conhecidos e desconhecidos, dos espaços de arte, dos espaços públicos, dos públicos. Se serve também do que está acontecendo no domínio das políticas públicas, do que foi esquecido pelo sistema que rege essas políticas, joga com a profundidade de campo – se interessa “pelas formas de vida comunais que vêm, insistente e corajosamente, resistindo e recriando modos de viver ao longo dos séculos” (TIQQUN). E “se servir” diz respeito a uma relação de interdependência e de cooperação. Todas essas considerações também nos fazem refletir sobre o rumo que pode tomar essa escola, sobre quais tipos de ações e desdobramentos ela pode ter, os espaços que pode ocupar, os textos que pode compartilhar, as lutas que pode se envolver. Por ser inseparável do eu (do artista) e do mundo, ela pode estabelecer zonas de indistinção, de intensidade e de fracasso. Lacunas de tempo também, entre uma aparição e outra. A Escola da Floresta é um pensamento porque ela pode ou não se materializar, ela pode ou não se infiltrar no cotidiano anestesiado das pessoas, ela pode ou não continuar existindo. E aí reside a sua força.

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si ustedes no saben lo que es el sur, es porque son del norte FABIO TREMONTE

Texto transcrito a partir de conversa sobre a Escola da Floresta com o artista Fabio Tremonte em setembro de 2016. O título faz referência ao filme argentino-francês “Sur” de Fernando Solanas, 1988.

Minha atuação sempre foi como professor educador e artista, e sempre levei essas duas atividades em paralelo. Mas sabia que a minha atuação como professor educador acontecia porque eu também era artista, embora eu não conseguisse, ou não tentasse, ou não pensasse em relacionar essas duas atividades. Com o tempo percebi que isso era possível, e que na verdade isso já acontecia quando fui dar aulas no ensino fundamental. O contato com crianças me fez perceber que o trabalho de professor educador acontecia de forma muito parecida com o processo artístico. Por mais que você tenha um programa para dar aulas para crianças, ele pode ser transformado a qualquer momento. As crianças tem uma outra relação com o programa, na verdade elas sequer sabem que existe um programa e por isso são muito permeáveis à mudanças no processo, elas solicitam essas mudanças.

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Em 2014, eu desenvolvi um projeto - e foi a primeira vez que essas atuações se cruzaram -, que se chamava “Quando o percurso torna-se destino”. Consistia em quatro viagens pelo interior do Brasil, no qual eu convidava um artista para viajar comigo e tínhamos como mote inicial, a cada viagem, explorar um elemento da natureza. O título já indicava que se tratava de um processo aberto, de exploração da terra, da água etc., mas no percurso nós não tínhamos uma programação científica ou geológica pra explorar esses elementos. Foi mesmo como uma exploração em dupla, física e corporal. Esse projeto desencadeou alguns processos que deram origem à Escola da Floresta, devido às viagens para o interior, à descoberta de um Brasil que eu desconhecia, suas culturas, pessoas e histórias. Em seguida, participei da residência “Barda del Desierto”, na Patagônia, onde desenvolvi o trabalho “Deriva Culinária”. Durante esse período pesquisei receitas locais que tivessem alguma relação histórica, afetiva e comemorativa vinculada àquele lugar. Na sequência, desenvolvi as receitas e as cozinhei em espaços públicos. Inicialmente, o projeto deveria ser uma continuação de “Quando o percurso torna-se destino”. Mas quando cheguei na Patagônia percebi que outras coisas poderiam acontecer para além de caminhadas e derivas, já que o percurso deixou de ser o principal elemento do projeto. Foi então que comecei a perceber que minhas atividades como educador e artista estavam totalmente interligadas, que comecei a pensar no processo educativo como processo artístico, no sentido de que ele é experimental, criativo, e que acontece sem uma programação fixa. Antes da Escola da Floresta, realizei outros projetos, como Parágrafo Único e Propriedade de uso comum. Esse último foi um convite pra ocupar o corredor do Ateliê 397, em São Paulo. Tal corredor tem pra mim uma importância, pois eu tive um ateliê nesse espaço por cerca de três meses em 2008, antes mesmo de o Ateliê 397 se tornar um espaço de exposições. Como esse corredor tinha para mim um dado do encontro, de ficar sentado conversando, tomando uma cerveja e cozinhando, resolvi propor um programa que pudesse lidar com essa memória, composto por rodas de conversas nas quais eu convidava uma ou duas pessoas 116 Intervenção de Fabio Tremonte ≥


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para falar sobre determinado assunto. O formato não era de um seminário, nem de uma palestra, mas de uma conversa informal iniciada a partir de um tema propositor. Depois das conversas havia uma apresentação sonora, sempre com um convidado para, junto comigo, pensar um set list ou produzir algumas músicas específicas para aquela situação. Realizei também uma exposição chamada “Paragrafo único”, na Pivô, localizada no centro de São Paulo. Foi uma exposição individual, que continha alguns trabalhos de instalação e um ateliê de impressão de estêncil e serigrafia que funcionou durante todo o período da exposição. As pessoas podiam participar com acompanhamento de um educador, que auxiliava na produção gráfica. Nos finais de semana, a meu convite, alguns artistas propuseram oficinas para produção de estêncil e serigrafia. Esse projeto remetia às gráficas populares da Argentina, principalmente as surgidas nos anos 2000, que eram utilizadas para produção gráfica de materiais de protestos e outros atos políticos no País. Em 2015, eu comecei a pensar em um projeto que trouxesse todos os trabalhos que realizei anteriormente para um só lugar, para um espaço em que as coisas pudessem acontecer dentro de uma grade, de um programa, mas que não fosse formalizado. Foi aí que surgiu a Escola da Floresta. Essa escola é um espaço nômade, temporário e experimental, sem um lugar fixo. Ela acontece a partir das possibilidades de parcerias, de encontros e de desejos. Não há um programa pré-definido, e tampouco uma grade curricular. Trata-se de pensar a escola como um espaço de compartilhamento, de encontro e de aprendizagem coletiva. É importante usar o nome “escola” para esse projeto porque em tempos em que a educação no Brasil vêm sendo sucateada, palavras como “educação” e “escola” se tornam lugares de resistência. Já a “floresta” entra por dois motivos, primeiro porque nos últimos dois ou três anos eu comecei a me interessar muito pela vida dos povos originários da América Latina no momento de pré-chegada dos europeus. Me interessei pelo modo como esses vão sistematicamente se reorganizando a partir das intervenções dos europeus ao longo desses 500 anos. Escolhi a floresta, também, porque ela tem um ecossistema rico, tal como é a formação de seus povos originários. 118


A Escola da Floresta é, inicialmente, um lugar de autoformação, sou seu primeiro e provavelmente único aluno fixo. E é a partir dessa autformação que eu concebo os projetos e programas que, de alguma maneira, disseminam esses conhecimentos. A Escola já contou com dois programas, um que aconteceu em junho, que eu intitulei Conversas de junho, e que aconteceu no quintal da minha casa. Para essa primeira edição eu convidei duas pessoas diferentes para apresentar suas pesquisas com relação a temas que envolvem a América Latina. Primeiro foi a curadora Marta Ramos-Izquierdo, para falar sobre as condições de trabalho do artista, principalmente no Brasil, e depois Sofía Olascoaga, para falar sobre as comunidades que tinham foco em educação, surgidas no México, nos anos 1970 e 1980. O programa da Escola da Floresta aconteceu também na Oficina Cultural Oswald de Andrade. O programa inicial que propus foi a leitura do Relatório Figueiredo, criado em função de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), que aconteceu em 1967 sobre o SPI (Sistema de Proteção ao Índio), e que depois de extinto deu origem à Funai (Fundação Nacional do Índio). Esse relatório, além de tratar sobre a corrupção dentro do SPI, de venda de território indígena e de casos envolvendo funcionários, também tratou, em grade parte, sobre o genocídio indígena nesse período inicial da ditadura no Brasil. O Relatório Figueiredo ficou desaparecido por 45 anos e, depois de encontrado, foi digitalizado e está disponível na rede. Mas, por ser muito pouco acessado, até mesmo pela comunidade indígena, achei que seria importante torná-lo mais público, sem necessariamente replicá-lo. Propus, então, uma leitura pública na Oficina Cultural Oswald de Andrade, durante todo o período de funcionamento do espaço. A leitura pública remete a uma prática escolar, é uma leitura em voz alta e serve para que todos possam seguir juntos em um mesmo texto. É também uma forma de transformar essas palavras escritas em um outro meio, um meio sonoro. Durante esse período, propus também alguns encontros. Na primeira semana aconteceram os encontros gráficos, que foram uma nova leitura da gráfica proposta na exposição “Paragrafo Único”. Realizei 119


também uma conversa sobre o Relatório Figueiredo com Marcelo Zelic, pesquisador que encontrou o relatório em 2013. Houve, ainda, mais dois encontros, nos quais propus temas que acredito serem necessários e urgentes na América Latina, como a leitura coletiva e conversa sobre o texto “Como fazer?”, de Tiqqun, um grupo anarquista francês. Não se trata de um texto escrito por um coletivo latino-americano, mas acredito que na atual conjuntura política ele é necessário. Precisamos pensar em perguntas diferentes para lidar com o momento político atual que o País vêm enfrentando. Ao invés de perguntar “o que fazer?”, podemos nos perguntar “como fazer?”. A segunda conversa da Escola da Floresta foi com o Salvador Schavelzon, um antropólogo argentino que falou sobre Cosmopolítica e Viver Bem / Bem Viver. Ambos são termos indígenas da Bolívia e do Equador, associados à constituição desses países. Considero que a Escola da Floresta é um processo artístico, ela vai acontecendo de maneira experimental. Como a escola é, também, um lugar de autoformação, ela depende muito dos assuntos e questões que vou tomando contato e lançando como um programa em processo. A escola também está aberta, e a ideia é que funcione, no futuro, a partir de propostas e interações de outras pessoas e outros coletivos.

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TIQ 122


QUN Órgão consciente do Partido Imaginário

Para esse espaço - o espaço desta dissertação -, a Escola da Floresta adquiriu um formato específico. Em conversa com o artista Fabio Tremonte, decidimos traduzir o texto “Comment faire?”, publicado na revista TIQQUN 2, na primavera de 2001. Escrito por um grupo anônimo de anarquistas franceses, esse texto foi escolhido por Tremonte para ser lido, na íntegra, durante a permanência da Escola da Floresta na Oficina Cultural Oswald de Andrade. O conteúdo desse texto revela um modo de pensar e agir da Escola da Floresta, e também da Embarcação. É, portanto, de fundamental importância para nossas práticas enquanto artistas, curadores, organizadores, professores e ativistas. Não se trata de falar, aqui, sobre a Escola da Floresta, mas de construir, junto com ela, um espaço de reflexão e discussão, que ultrapassa nossas próprias práticas, desdobrando-se em um arquivo online e autônomo, distribuído gratuitamente através da web. Agora em português, o que pode ser lido a seguir é uma obra literária sobre “Como fazer?”, sobre o que é preciso fazer estrategicamente e taticamente, para se opor às forças do Império, sobre como podemos ser, nós mesmos, “singularidades quaisquer”. Aqui ela foi diagramada com o intuito de ser recortada, a fim de se aproximar de outros livros, de encontrar outros leitores e espaços possíveis, para além dessas páginas contínuas e numeradas.

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COMO FAZER?

Don’t know what I want, but I know how to get it. -Sex Pistols, Anarchy in the UK

I Vinte anos. Vinte anos de contrarrevolução. De contrarrevolução preventiva. Na Itália1. E fora dela. Vinte anos de um sono eriçado de cercas de arame farpado, povoado de vigias. De um sono dos corpos, imposto pelo toque de recolher. Vinte anos. O passado não passa. Porque a guerra continua. Se ramifica. Se prolonga. Numa reticulação mundial de dispositivos locais. Numa calibragem inédita das subjetividades. Numa nova paz superficial. Uma paz armada feita sob medida para cobrir o desenvolvimento de uma imperceptível guerra civil. Há vinte anos, era o punk, o movimento de 77, a área da Autonomia, os índios metropolitanos e a guerrilha difusa. De repente surgia, como saído de alguma região subterrânea da civilização, todo um contra-mundo de subjetividades que não queriam mais consumir, que não queriam mais produzir. que já não queriam nem mesmo ser subjetividades. A revolução era molecular, a contrarrevolução não o foi menos.

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N. do A.: Este texto foi escrito para ser publicado na Itália, na primavera de 2001.

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ELES2 dispuseram ofensivamente, depois duradouramente, toda uma complexa máquina de neutralizar o que é portador de intensidade. Uma máquina de desativar tudo o que poderia explodir. Todos os divíduos de risco, os corpos indóceis, as agregações humanas autônomas. E então foram vinte anos de estupidez, de vulgaridade, de isolamento e de desolação. Como fazer? Se reerguer. Reerguer a cabeça. Por escolha ou por necessidade. Pouco importa, na verdade, de agora em diante. Se olhar nos olhos e se dizer que a gente tá recomeçando. Que todos saibam, o quanto antes. A gente tá recomeçando. Acabou-se a resistência passiva, o exílio interior, o conflito por subtração, a sobrevivência. A gente tá recomeçando. Em vinte anos, a gente teve tempo pra ver. A gente entendeu direitinho. A demokracia para todos, a luta “antiterrorista”, os massacres de Estado, a reestruturação capitalista e sua Grande Obra de depuração social, por seleção, por precarização, por normalização, por ”modernização”. A gente viu, entendeu. Os métodos e os objetivos. O destino que ELES reservam para nós. E o que ELES nos negam. O estado de exceção. As leis que colocam a polícia, a administração, a magistratura acima das leis. A judicialização, a psiquiatrização, a medicalização de tudo o que sai do quadro. De tudo o que escapa. A gente viu, entendeu direitinho. Os métodos e os objetivos. Quando o poder estabelece em tempo real sua própria legitimidade, quando sua violência se torna preventiva e seu direito é um “direito de ingerência”, então já de nada serve ter razão. Ter razão contra ele. 2 N. do T.: Em francês ON, com letra maiúscula, que no jogo do texto se opõe a on, com letra minúscula, que traduzimos por “a gente” (mas é importante lembrar sempre que on é um pronome pessoal indefinido). 126


É preciso ser mais forte, ou mais astuto. É por isso também que a gente recomeça. Recomeçar nunca é recomeçar alguma coisa. Nem retomar um assunto ali onde a gente o tinha deixado. O que a gente recomeça é sempre outra coisa. É sempre inaudito. Porque não é o passado que nos impele a isso, mas precisamente o que nele não adveio. E porque somos também nós mesmos, então, que recomeçamos. Recomeçar quer dizer: sair da suspensão. Restabelecer o contato entre nossos devires. Partir, de novo, dali onde estamos, agora. Por exemplo, há golpes que ELES já não nos darão mais. O golpe da “sociedade”. A transformar. A destruir. A tornar melhor. O golpe do pacto social. Que alguns quebrariam enquanto outros podem fingir “restaurá-lo”. Esses golpes, ELES já não nos darão mais. É preciso ser um elemento militante da pequena-burguesia planetária, um verdadeiro cidadão para não ver que ela já não existe mais, a sociedade. Que ela implodiu. Que já não é mais que um argumento para o terror infligido por aqueles que dizem a re/presentar. A ela que se ausentou. Tudo o que é social se tornou alheio a nós. Nos consideramos absolutamente livres de qualquer obrigação, de qualquer prerrogativa, de qualquer pertencimento sociais. “A sociedade”, é o nome que recebeu muitas vezes o Irreparável, entre aqueles que queriam também fazer dele o Inassumível. 127


Quem rejeita esse engodo deverá tomar um passo de distância. Operar um ligeiro deslocamento em relação à lógica comum ao Império e à sua contestação, a lógica da mobilização, em relação a sua comum temporalidade, a da urgência. Recomeçar quer dizer: habitar essa distância. Assumir a esquizofrenia capitalista no sentido de uma crescente faculdade de dessubjetivação. Desertar mas guardando as armas. Fugir, imperceptivelmente. Recomeçar quer dizer: juntar-se à secessão social, à opacidade, entrar em desmobilização, subtraindo hoje da tal ou tal rede imperial de produção-consumo os meios de viver e de lutar para, no momento escolhido, afundá-la. Falamos de uma nova guerra, de uma nova guerra de resistentes. Sem front nem uniforme, sem exército nem batalha decisiva. Uma guerra cujos focos se desdobrem à distância dos fluxos mercantis ainda que conectados a eles. Falamos de uma guerra latente. Que tem o tempo. De uma guerra de posição. Que se trava ali onde estamos. Em nome de ninguém. Em nome de nossa própria existência, que não tem nome. Operar esse ligeiro deslocamento. Já não temer seu tempo. “Não temer seu tempo é uma questão de espaço”. Na okupa. Na orgia. Na revolta. No trem ou na cidadezinha ocupada. Na busca, em meio a desconhecidos, de uma free party inencontrável. Faço a experiência desse ligeiro deslocamento. A experiência de minha dessubjetivação. Devenho uma singularidade qualquer. Um jogo se insinua entre minha presença e todo o aparato de qualidades que estão ordinariamente vinculadas a mim. 128


Nos olhos de um ser que, presente, quer me estimar pelo que eu sou, saboreio a decepção, sua decepção por ver que me tornei tão comum, tão perfeitamente acessível. Nos gestos de outro, uma inesperada cumplicidade. Tudo o que me isola como sujeito, como corpo dotado de uma configuração pública de atributos, sinto que se derrete. Os corpos se desfiam em seus limites. Em seus limites, se indistinguem. Bairro após bairro, o qualquer arruína a equivalência. E alcanço uma nudez nova, uma nudez imprópria, como que vestida de amor. E lá se pode escapar sozinho da prisão do Eu? Na okupa, na orgia, na revolta, no trem ou na cidadezinha ocupada. Nos encontramos. Nos encontramos como singularidades quaisquer. Isto é, não sobre a base de um pertencimento comum, mas de uma comum presença. É essa nossa necessidade de comunismo. A necessidade de espaços de noite, onde possamos nos encontrar para além de nossos predicados. Para além da tirania do reconhecimento. Que impõe o re/conhecimento como distância final entre os corpos. Como inelutável separação. Tudo o que ELES – o noivo, a família, o entorno, a empresa, o Estado, a opinião – reconhecem em mim, é por aí que acreditam me pegar. Pelo recordar constante do que sou, de minhas qualidades, ELES gostariam de me abstrair de cada situação. Querem extorquir de mim em toda e qualquer circunstância uma fidelidade a mim mesmo que é uma fidelidade aos meus predicados. ELES esperam de mim que me comporte como homem, empregado, desempregado, mãe, militante ou filósofo. ELES querem conter entre os marcos de uma identidade o curso imprevisível de meus devires. ELES querem me converter à religião de uma coerência que ELES escolheram para mim. Quanto mais sou reconhecida, mais meus gestos se encontram travados, interiormente travados. Eis-me capturada na malha ultrafina do novo poder. Nas redes impalpáveis da nova polícia: A POLÍCIA IMPERIAL DAS QUALIDADES. 129


Há toda uma rede de dispositivos em que me moldo para me “integrar”, e que incorporam em mim essas qualidades. Todo um pequeno sistema de fichamento, de identificação e de “policiamento” mútuos. Toda uma prescrição difusa da ausência. Todo um aparato de controle comporta/mental, que visa ao panoptismo, à privatização transparencial, à atomização. E no qual me debato. Preciso me tornar anônima. Para estar presente. Quanto mais anônima sou, mais estou presente. Preciso de zonas de indistinção para acessar o Comum. Para já não me reconhecer em meu nome. Para já não escutar em meu nome senão a voz que o chama. Para fazer consistir o como dos seres, não o que são, mas como são o que são. Sua forma-de-vida. Preciso de zonas de opacidade onde os atributos, mesmo criminais, mesmo geniais, já não separam dos corpos. Devir qualquer. Devir uma singularidade qualquer, não está dado. Sempre possível, mas nunca dado. Há uma política da singularidade qualquer. Que consiste em arrancar do Império as condições e os meios, mesmo intersticiais, de se experimentar como tal. É uma política, porque supõe uma capacidade de enfrentamento, e porque uma nova agregação humana lhe corresponde. Política da singularidade qualquer: liberar esses espaços nos quais já nenhum ato é atribuível a qualquer corpo dado. Onde os corpos reencontram a aptidão ao gesto que a engenhosa distribuição dos dispositivos metropolitanos – computadores, automóveis, escolas, câmeras, celulares, academias, hospitais, televisões, cinemas, etc. – tinha roubado deles. Reconhecendo-os. Imobilizando-os. Fazendo com que girem no vazio. Fazendo a cabeça existir separada do corpo. 130


Política da singularidade qualquer. Um devir-qualquer é mais revolucionário que qualquer ser-qualquer. Liberar espaços nos libera cem vezes mais que qualquer “espaço liberado”. Mais que de colocar em ato um poder, gozo de colocar em circulação minha potência. A política da singularidade qualquer reside na ofensiva. Nas circunstâncias, nos momentos e nos lugares em que serão arrancados as circunstâncias, os momentos e os lugares desse anonimato, de uma parada momentânea em estado de simplicidade, a ocasião de extrair de todas as nossas formas a pura adequação à presença, a ocasião de estar e ser, enfim, aí.

II COMO FAZER? Não O que fazer? Como fazer? A questão dos meios. Não a dos fins, a dos objetivos, do que é preciso fazer, estrategicamente, no absoluto. A questão do que a gente pode fazer, taticamente, em situação, e da aquisição dessa potência. Como fazer? Como desertar? Como isso funciona? Como conjugar minhas feridas e o comunismo? Como permanecer em guerra sem perder a ternura? A questão é técnica. Não um problema. Os problemas são rentáveis. Alimentam os experts. Uma questão. Técnica. Que se desdobra em questão das técnicas de transmissão dessas técnicas. Como fazer? O resultado sempre contradiz a meta. Porque postular uma meta ainda é um meio, outro meio. O que fazer? Babeuf, Tchernychevski, Lenin. A virilidade clássica reivindica um analgésico, uma miragem, alguma coisa. Um meio para se ignorar ainda mais um pouco. Enquanto presença. Enquanto forma-de-vida. Enquanto ser em situação, dotado de inclinações. 131


De inclinações determinadas. O que fazer? O voluntarismo como derradeiro niilismo. Como niilismo próprio à virilidade clássica. O que fazer? A resposta é simples: submeter-se uma vez mais à lógica da mobilização, à temporalidade da urgência. Sob pretexto de rebelião. Postular fins, palavras. Tender à sua realização. À realização das palavras. Enquanto isso, deixar a existência para mais tarde. Colocar-se entre parêntesis. Alojar-se na exceção de si. À distância do tempo. Que passa. Que não passa. Que para. Até… Até a próxima. Meta. O que fazer? Dito de outra maneira: inútil viver. Tudo o que você não viveu, a História devolverá pra você. O que fazer? É o esquecimento de si que se projeta sobre o mundo. Como esquecimento do mundo. Como fazer? A questão do como. Não do que um ser, um gesto ou uma coisa é, mas de como ele é isso que ele é. De como seus predicados se relacionam com ele. E ele com eles. Deixar ser. Deixar ser a hiância entre o sujeito e seus predicados. O abismo da presença. Um homem não é “um homem”. “Cavalo branco” não é “cavalo”. A questão do como. A atenção ao como. A atenção à maneira como uma mulher é, e não é, uma mulher – são necessários dispositivos para fazer de um ser de sexo feminino “uma mulher”, ou de um homem de pele negra “um negro”. A atenção à diferença ética. Ao elemento ético. Às irredutibilidades que o atravessam. O que se passa entre os corpos numa ocupação é mais interessante que a própria ocupação. Como fazer? quer dizer que o enfrentamento militar com o Império deve ser subordinado à intensificação das relações no interior do nosso partido. Que o político não é mais que um certo grau de intensidade no seio do elemento ético. Que a guerra revolucionária não deve mais ser confundida com sua representação: o momento bruto do combate. A questão do como. Devir atento ao ter-lugar das coisas, dos seres. Ao seu acontecimento. À obstinada e silenciosa saliência de sua temporalidade própria sob o esmagamento planetário de todas as temporalidades pela da urgência. 132


O O que fazer? como ignorância programática disso. Como fórmula inaugural do desamor atarefado. O O que fazer? volta. Há alguns anos. Desde a metade dos anos 90 mais do que desde Seattle. Um revival da crítica finge enfrentar o Império com os slogans, com as receitas dos anos 60. Salvo que, desta vez, se simula. Se simula a inocência, a indignação, a boa consciência e a necessidade de sociedade. Volta-se a colocar em circulação toda a velha gama dos afetos socialdemocratas. Dos afetos cristãos. E, de novo, temos manifestações. As manifestações mata-desejo. Em que não se passa nada. E que já não manifestam senão a ausência coletiva. Para sempre. Para os que têm nostalgia de Woodstock, da maconha, de maio de 68 e do militantismo, aí estão as contra-cúpulas. ELES reconstruíram o cenário, mas sem o possível. Eis o que o O que fazer? prescreve hoje: ir ao outro lado do mundo contestar a mercadoria global para voltar, depois de um grande banho de unanimidade e de separação mediatizada, a se submeter à mercadoria local. Na volta, está a foto no jornal… Todos sozinhos juntos! Era uma vez... Que juventude!... Pena para os poucos corpos vivos perdidos ali, buscando em vão um espaço para seu desejo. Voltam um pouco mais entediados. Um pouco mais esvaziados. Reduzidos. De contra-cúpula em contra-cúpula, acabarão por fim compreendendo. Ou não. A gente não contesta o Império a respeito de sua gestão. A gente não critica o Império. A gente se opõe às forças dele. Ali onde a gente tá. Dizer sua opinião sobre tal ou tal alternativa, ir lá onde ELES nos chamam, tudo isso já não faz sentido. Não existe projeto global alternativo ao projeto global do Império. Porque não existe projeto global do Império. Existe uma gestão imperial. Toda gestão é ruim. Os que reivindicam outra sociedade fariam melhor começando por ver que já não existe sociedade. E talvez cessassem então de ser aprendizes de gestores. Cidadãos. Cidadãos indignados. 133


A ordem global não pode ser tomada por inimiga. Diretamente. Pois a ordem global não tem lugar. Pelo contrário. É, antes, a ordem dos não-lugares. Sua perfeição não é ser global, mas ser globalmente local. A ordem global é o esconjuro de todo e qualquer acontecimento porque é a ocupação acabada, autoritária, do local. A gente só pode se opor à ordem global localmente. Por meio da extensão das zonas de sombra sobre os mapas do Império. Colocando-as em contato progressivamente. Subterraneamente. A política que vem. Política da insurreição local contra a gestão global. Da presença recuperada sobre a ausência de si. Sobre a alienação cidadã, imperial. Recuperada pelo roubo, a fraude, o crime, a amizade, a inimizade, a conspiração. Pela elaboração de modos de vida que sejam também modos de luta. Política do ter-lugar. O Império não tem lugar. Administra a ausência fazendo pairar por toda a parte a ameaça palpável da intervenção policial. Quem procura no Império um adversário contra o qual se medir encontrará o aniquilamento preventivo. Ser percebido, daqui em diante, é ser vencido. Aprender a devir indiscerníveis. A nos confundir. Voltar a ter gosto pelo anonimato, pela promiscuidade. Renunciar à distinção, Para desarticular a repressão: propiciar ao enfrentamento as condições mais favoráveis. Devir astutos. Devir impiedosos. E para isso devir quaisquer. Como fazer? é a pergunta das crianças perdidas. Aquelas a quem não se disse. Que têm os gestos inseguros. A quem nada foi dado. Cuja criaturalidade, cuja errância, não cessa de se manifestar. A revolta que vem é a revolta das crianças perdidas. O fio da transmissão histórica foi cortado. Até mesmo a tradição revolucionária nos deixa órfãos. O movimento operário, sobretudo. O movimento operário que se transformou em instrumento de uma integração superior no Processo. No novo Processo, cibernético, de valorização social. 134


Em 1978, foi em seu nome que o PCI, o “partido de mãos limpas”, lançou a caça aos Autônomos. Em nome de sua concepção classista do proletariado, de sua mística da sociedade, do respeito ao trabalho, ao útil e à decência. Em nome da defesa dos “avanços democráticos” e do Estado de direito. O movimento operário que terá sobrevivido a si mesmo no operaísmo. Única crítica existente do capitalismo do ponto de vista da Mobilização Total. Doutrina temível e paradoxal, que terá salvado o objetivismo marxista não falando mais senão de “subjetividade”. Que terá levado a um refinamento inédito a denegação do como. A reabsorção do gesto em seu produto. A urticária do futuro anterior. Do que cada coisa terá sido. A crítica se tornou vã. A crítica se tornou vã porque equivale a uma ausência. Quanto à ordem dominante, todo o mundo sabe a que se ater. Já não temos necessidade de teoria crítica. Já não temos necessidade de professores. A crítica gira a favor da dominação, de agora em diante. Até mesmo a crítica da dominação. Ela reproduz a ausência. Fala-nos dali onde não estamos. Nos impulsiona para outro lugar. Nos consome. É covarde. E fica ali bem protegidinha quando nos manda para a carnificina. Secretamente enamorada de seu objeto, não para de mentir para nós. Daí a brevidade dos idílios entre proletários e intelectuais engajados. Esses casamentos de conveniência em que não se tem a mesma ideia nem do prazer nem da liberdade. Mais que de novas críticas, é de novas cartografias que necessitamos. Cartografias não do Império, mas das linhas de fuga para fora dele. Como fazer? Precisamos de mapas. Não de mapas do que está fora do mapa. Mas mapas de navegação. Mapas marítimos. Ferramentas de orientação. Que não procuram dizer, representar o que existe no interior dos diferentes arquipélagos da deserção, mas nos indicam como chegar até eles. Portulanos.

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III Terça-feira, 17 de setembro de 1996, pouco antes do amanhecer. O ROS (Reagrupamento Operacional eSpecial) coordena em toda a península a detenção de 70 anarquistas italianos. Trata-se de pôr um fim a 15 anos de investigações infrutíferas a respeito dos anarquistas insurrecionalistas. A técnica é conhecida: fabricar um “arrependido” e fazê-lo denunciar a existência de uma vasta organização subversiva hierarquizada. Depois, com base nessa criação quimérica, acusar todos aqueles a que se quer neutralizar de fazerem parte dela. Ainda uma vez, secar o mar para pegar os peixes. Mesmo quando se trata apenas de um tanque minúsculo. E de uns poucos lambaris. Uma “nota informativa de serviço” escapou ao ROS em relação a este assunto. Ele aí expõe sua estratégia. Fundado nos princípios do general Dalla Chiesa, o ROS é o protótipo do serviço imperial de contrainsurreição. Ele trabalha sobre a população. Alí onde uma intensidade se produziu, ali onde algo se passou, ele é o french doctor da situação. Aquele que instala, sob o pretexto de profilaxia, os cordões sanitários cujo objetivo é isolar o contágio. O que ele teme, ele diz. Nesse documento, ele escreve. O que ele teme é “o pântano do anonimato político”. O Império tem medo. O Império tem medo de que nos tornemos quaisquer. Um meio delimitado, uma organização combatente. Ele não os teme. Mas uma constelação expansiva de okupas, de fazendas autogeridas, de moradias coletivas, de ajuntamentos fine a se stesso, de rádios, de técnicas e de ideias. O conjunto conectado por uma intensa circulação dos corpos e dos afetos entre os corpos. Aí são outros quinhentos.

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A conspiração dos corpos. Não dos espíritos críticos, mas das corporeidades críticas. Eis o que o Império teme. Eis o que lentamente advém. com o aumento dos fluxos, da deserção social. Há uma opacidade inerente ao contato dos corpos. E que não é compatível com o reinado imperial de uma luz que já não ilumina as coisas senão para desintegrá-las. As Zonas de Opacidade Ofensiva não estão por ser criadas. Já estão aí, em todas as relações em que ocorre uma verdadeira colocação em jogo dos corpos. O que é preciso é assumir que fazemos parte dessa opacidade. E se apropriar dos meios de estendê-la, de defendê-la. Por toda parte onde se consegue desarticular os dispositivos imperiais, arruinar todo o trabalho cotidiano do Biopoder e do Espetáculo para excepcionar da população uma fração de cidadãos. Para isolar novos untorelli. Nessa indistinção reconquistada forma-se espontaneamente um tecido ético autônomo, um plano de consistência separatista. Os corpos se unem. Recuperam o fôlego. Conspiram. Que tais zonas estejam condenadas ao esmagamento militar pouco importa. O que importa,é, a cada vez, preparar uma via de retirada segura o bastante. Para voltar a se juntar em outra parte. Mais tarde. O que servia de base ao problema do O que fazer? era o mito da greve geral. O que responde à pergunta Como fazer? é a prática da GREVE HUMANA. A greve geral dava a entender que havia uma exploração limitada no tempo e no espaço, uma alienação parcial, devida a um inimigo reconhecível, portanto derrotável. A greve humana responde a uma época em que os limites entre trabalho e vida esmaecem completamente Em que consumir e sobreviver, produzir “textos subversivos” e precaver-se dos efeitos mais nocivos da civilização industrial, 137


praticar esportes, fazer amor, ser pai ou tomar Prozac. Tudo é trabalho. Pois o Império gere, digere, absorve e reintegra tudo o que vive. Mesmo “o que eu sou”, a subjetivação que não desminto hic et nunc, tudo é produtivo. O Império pôs tudo para trabalhar. Idealmente, meu perfil profissional coincidirá com meu próprio rosto. Mesmo que não sorria. Afinal, as caretas do rebelde vendem muito bem. Império, quer dizer que os meios de produção se converteram em meios de controle ao mesmo tempo que o inverso ocorria. Império significa que de agora em diante o momento político domina o momento econômico. E contra isso, a greve geral já não pode nada. O que é preciso opor ao Império é a greve humana. Que nunca ataca as relações de produção sem atacar ao mesmo tempo as relações afetivas que as sustentam. Que mina a economia libidinal inconfessável, restitui o elemento ético - o como - reprimido em cada contato entre os corpos neutralizados. A greve humana é a greve que, ali onde ELES esperavam tal ou qual reação previsível, tal ou qual tom contrito ou indignado, PREFERE NÃO. Se esquiva ao dispositivo. Satura-o, ou o explode. Se recobra, preferindo outra coisa. Outra coisa que não está circunscrita nos possíveis autorizados pelo dispositivo. No guichê de tal ou tal serviço social, nos caixas de tal ou tal supermercado, numa conversa polida, durante uma intervenção da polícia, de acordo com a relação de forças, a greve humana faz o espaço entre os corpos consistir, pulveriza o double bind em que estão presos, acua-os à presença. Existe todo um luddismo por inventar, um luddismo das engrenagens humanas que fazem girar o Capital.

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Na Itália, o feminismo radical foi uma forma embrionária da greve humana. “Basta de mães, de mulheres e de filhas, destruamos as famílias!” era um convite ao gesto de romper os encadeamentos previstos, de liberar os possíveis comprimidos. Era um atentado aos comércios afetivos escrotos, à prostituição ordinária. Era um apelo à superação do casal, como unidade elementar de gestão da alienação. Apelo a uma cumplicidade, pois. Prática insustentável sem circulação, sem contágio. A greve das mulheres convocava implicitamente a dos homens e das crianças, convidava a esvaziar as fábricas, as escolas, os escritórios e as prisões, a reinventar para cada situação outra maneira de ser, outro como. A Itália dos anos 70 era uma gigantesca zona de greve humana. As autorreduções, os assaltos, os bairros okupados, as manifestações armadas, as rádios livres, os inumeráveis casos de “Síndrome de Estocolmo”, inclusive as famosas cartas de Aldo Moro preso, já perto do final, eram práticas de greve humana. Os stalinistas falavam então de “irracionalidade difusa”, só pra ter uma ideia. Há escritores também nos quais se está o tempo todo em greve humana. Em Kafka, em Walser, ou em Michaux, por exemplo. Adquirir coletivamente essa faculdade de sacudir as familiaridades. Essa arte de frequentar em si mesmo o hóspede mais inquietante. Na guerra presente, Em que o reformismo de urgência do Capital deve vestir os hábitos do revolucionário para se fazer ouvir, em que os combates mais demokratas, os das contra-cúpulas, recorrem à ação direta, um papel está reservado a nós. O papel de mártires da ordem democrática, que golpeia preventivamente todo corpo que poderia golpear. Eu deveria me deixar imobilizar diante de um computador enquanto as centrais nucleares explodem, enquanto ELES brincam com meus 139


hormônios ou de me envenenar. Deveria entoar a retórica da vítima. Já que, é bem sabido, todo o mundo é vítima, até os próprios opressores. E saborear que uma discreta circulação do masoquismo volte a dar encanto à situação. A greve humana, hoje, é recusar assumir o papel da vítima. Atacar esse papel. Se reapropriar da violência. Arrogar-se a impunidade. Fazer os cidadãos petrificados compreenderem que mesmo que não entrem em guerra, já estão nela de qualquer jeito. Que ali onde ELES dizem que é isso ou morrer, é sempre, na realidade, isso e morrer. Assim, de greve humana em greve humana, propagar a insurreição, onde já não há senão, onde somos todos, singularidades quaisquer.

NENHUM DIREITO RESERVADO

Tradução colaborativa: Fabio Tremonte, Fernando Scheibe e Kamilla Nunes Florianópolis e São Paulo, dezembro de 2016. 140


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SESSÃO CAPACETE ENTRETENIMENTOS Em 2012, iniciei uma pesquisa sobre o Capacete Entretenimentos, um espaço de interlocução e intermediação, criado por Helmut Batista, na cidade do Rio de Janeiro, em 1998. Desde então venho acompanhando os projetos e programas do Capacete a distância e, em 2016, durante a disciplina “Outros espaço da arte”, ministrada por Regina Melim no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Ceart/Udesc, mergulhei no “microestado Capacete” com os pesquisadores Ana Camorlinga, Gabi Bresola, Marcos Walickosky e Patrícia D’Aquino, pesquisa esta que culminou no conteúdo sobre esse espaço para a revista ¿Hay en portugués? 5, disponível em http://www.plataformaparentesis.com/site/hay_en_portugues/ Para esta sessão, proponho o texto meu e/ou nosso, uma reflexão sobre o Capacete Entretenimentos a partir de uma perspectiva crítica e histórica. O que o Capacete se propõe a realizar, suas articulações, o seu por-em-contato - as proposições dos artistas para com a cidade, os deslocamentos, os programas de residência e de formação -, implica toda uma teoria. Uma teoria que diz respeito ao viver junto, aos acercamentos.

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Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. NĂŁo importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor. Samuel Beckett


meu e/ou nosso capacete é algo que começou em 1998. capacete foi um programa de residência para artistas e agora é um programa educativo [...] indefinido. capacete não é uma galeria, não é um centro cultural, não é um museu. capacete não é parede, capacete não é limite, capacete não é fronteira. capacete não é um território de submissão ao sistema da arte, é um território que não nega a existência desse sistema, mas que pensa os efeitos tóxicos desse sistema. brasil, de algum modo, não é o capacete. não é a suécia. não é organizado. nunca é completamente formalizado. não é programado. isto não é uma pergunta muito simples. não tenho ideia. eu não consigo dizer o que não é porque poderia ser qualquer coisa. é a arte no rio. é uma companhia de entretenimentos. capacete é um objeto que a gente usa pra proteger a cabeça. capacete é uma ópera situada no rio. é que nem uma porta, ou uma janela. é um trator, um ímã. um lugar para pensar. é um lugar que a gente faz artes e desenha. tem o potencial de ser o paraíso, mas também tem o potencial de ser um desastre. a vida pós-apocalíptica, pós-antropocena, depois do fim da eletricidade, da internet, da água. Transcrição de fragmentos do vídeo de campanha de financiamento coletivo para o programa artístico e educacional de 2016, do Capacete Entretenimentos. Disponível em: https:// www.kickstarter.com/projects/2058335054/ brazilian-artists-at-capacete?lang=de. Acesso em 14 de junho de 2016.

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1 COTRIM, Cecilia; FERREIRE, Glória. Escritos de artistas: anos 60/70. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 205. 2 Helmut Batista (Rio de Janeiro, 1964) estudou ópera na ESAT e trabalhou na Ópera de Vienna. Em 1998 fundou o CAPACETE ENTRETENIMENTOS. Como artista, até 1997, expôs na Gallery Schipper, Air de Paris, Massimo de Carlo, Von Senger entre outras. Em 2013 curou e organizou uma mostra no Portikus em Frankfurt.

3 AGORA – Agência de Organismos Artísticos (Rio de Janeiro, RJ, 1999 a 2003). Em agosto de 1999, Eduardo Coimbra, Raul Mourão e Ricardo Basbaum se uniram para criar o AGORA, cujas atividades envolveram colóquios, seminários e exposições. As atividades da agência foram precedidas por uma série de realizações coletivas, iniciadas em 1988, com a criação do Visorama, grupo de discussão em torno das questões modernas e contemporâneas em arte.

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Pensamentos irracionais deveriam ser seguidos absoluta e logicamente – essa é a quinta Sentença sobre Arte Conceitual de Sol LeWitt1, publicada pela primeira vez em 1969 e que poderia, deslocada de seu contexto, ser a primeira Sentença sobre Capacete Entretenimentos, um espaço movente criado em 1998, no Rio de Janeiro por Helmut Batista2. Se há algo que pode ser dito sobre o Capacete, é que ele pôde inventar sua própria maneira de organização, criando condições mais fluidas de veiculação da arte e de artistas e propondo uma mudança de paradigma e de estrutura político-econômica no circuito artístico local e nacional. O Capacete surgiu como “ESPAÇO P”, no apartamento 904, no Flamengo, onde aconteceram duas exposições individuais. No ano seguinte, seu nome foi alterado para “Espaço Purplex”, momento em que foi realizada a instalação “White Cue”, do artista Rubens Mano, no subsolo desocupado de um restaurante em Santa Teresa. Nesse momento, o Capacete já vinha desenhando o que se tornou, mais tarde, uma constante em seus projetos e também um meio de sobrevivência: a parceria com instituições e o deslocamento de suas atividades para lugares pouco convencionais, no que diz respeito ao desenvolvimento de projetos artísticos e curatoriais. No mesmo ano, em setembro de 1999, o “Espaço Purplex” passou a se chamar CAPACETE ENTRETENIMENTOS. Com esse nome, o Capacete realizou projetos individuais de artistas como Marssares, no Aterro do Flamengo, e Tiago Carneiro da Cunha, na Fundição Progresso. Em 2000, o CAPACETE ENTRETENIMENTOS, junto com o AGORA: Agência de Organismos Artísticos3, inaugurou o espaço AGORA/CAPACETE, localizado na Lapa, com a participação do grupo Chelpa Ferro, que apresentou a performance “A garagem do gabinete de Chico”. Durante um período de dois anos, foram realizadas diversas ações, como mesas-redondas, exposições, shows, projeções de filmes, lançamentos de publicações etc., além do de-


senvolvimento de dois números da Revista ítem e da construção de um website. Desfeita a parceria, o Capacete continuou como CAPACETE ENTRETENIMENTOS, nome que mantém até os dias atuais. A insistência do Capacete em existir sem abrir mão de uma política do corpo, da hospitalidade4 e do agenciamento como seu próprio conteúdo, é uma qualidade que implica transmutações. A questão que surge é como o Capacete desloca sua atenção para o processo artístico e para o contexto social, político, econômico e afetivo do País. É só a partir do “como” que poderemos observar o sistema circulatório desse espaço, sua proximidade com a cidade e seu foco em organizar, dinamizar e documentar a produção individual dos artistas. O Capacete, nesse esquema, é uma das mais notáveis experiências do tipo no Brasil. Do ponto de vista do estudo sobre espaços autônomos, além de ser o mais antigo ainda em atividade, foi também uma referência para a criação de diversos outros espaços e projetos, de artistas, críticos, curadores etc., interessados em outros tipos de organização da arte e seus agentes. Certamente o Capacete abriu um leque de questões que não se referem apenas ao ambiente do Rio de Janeiro, mas da América Latina e mundo. Se a questão não é a “obra de arte”, mas o processo artístico, se não é o local ou o global, mas o pensamento global em prol de uma atuação local, se não é a “exposição” mas o café da manhã como fórum central de convergências de ideias e trocas, se não é o ateliê, mas a praia, então podemos considerar que a proposição do Capacete é a de constituir uma diversidade de proposições não centralizadas ou hierarquizadas. Brutal ou gradativo, esse movimento (que não é apenas de deslocamento físico, mas intelectual e artístico) coloca em debate tanto os modelos de gestão dos espaços de arte, quanto a precariedade de um sistema que subvaloriza o artista e seus processos de investigação e supervaloriza a “obra de arte” e as grandes exposições.

4 No texto “Entre fronteiras impingidas e cidades afet(u)adas”, publicado em “Livro para ler: 10 anos de Capacete”, Marcia Ferran discorre sobre a noção de “hospitalidade” e o Capacete Entretenimentos.

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5 BATISTA, Helmut (org.). Livro para ler: 10 anos de capacete. RJ: Capacete Entretenimentos, 2008, p. 36

6 Disponível em: http://capacete.org/. Acessado em: em 09 de janeiro de 2017.

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Por isso, está em jogo a micropolítica. Ela irrompe entre nós. Nesses termos, a curadora argentina Teresa Riccardi compreende o Capacete como um microestado, um espaço que existe fisicamente, mas que, como uma Fita de Moebius, possui um desdobramento temporal e pode estar em qualquer lugar do mundo. Reconhece que a política desse microestado como movimento, multiplicado, oscilante dos serviços e do ócio em sua radicalidade mais extrema tem um objetivo: aproximar os corpos uns dos outros5. A produção artística convencional não é o que interessa ao Capacete, o ponto em questão é o seu funcionamento num contexto social. É o tempo de estabelecer conexões e desvios, de caminhar por uma trilha, de conhecer a cidade para além do cartão postal, da superfície, da aparência. Por isso seus programas de residência são desenhados para refletir o caráter interdisciplinar das práticas estéticas contemporâneas, trabalhando com artistas e pensadores cujos esforços articulam o mundo teórico com apresentações artísticas em diversos formatos e dinâmicas, e para diferentes públicos6. A noção de “residência” para o Capacete não se dá, portanto, em torno de um tempo de produção de algo para algum lugar (museus, galerias, instituições de arte), mas de um tempo de reflexão sobre o lugar de atuação do artista e as infinitas possibilidades de reação que se pode estabelecer a partir do contexto em que se está inserido. O que se encontra em toda parte nas publicações do Capacete, é que o processo não é o caminho pelo qual se chega a algum lugar, é o próprio lugar. A partir disso, é fácil perceber como se dá a construção de seus programas, seja os de residência, as escolas, as universidades de verão, o jornal, as unidades móveis, as festas, os almoços, as clínicas, entre outros tantos. Para Helmut Batista, as questões conceituais surgem à medida que as condições do entorno são aprimoradas, tomando


como base uma vivência real, e não o contrário. Por isso os programas e projetos do Capacete acabam por surgir através do corpo a corpo, do tête à tête. Por isso também o Capacete não pode ser desvinculado da figura do seu gestor, um personagem que se apresenta sempre como alguém que gostava de ópera. Mas talvez a melhor definição já feita sobre o Helmut/Capacete seja do artista Jorge Menna Barreto, em forma de pergunta ao próprio Helmut, no “livro para responder”7, ao fazer uma analogia entre Helmut e Helmet: quando um motoboy veste seu capacete, por exemplo, oculta-se a face e ele se dilui em uma identidade que é coletiva, em que predomina a voz do bando. Como você entende a pulsão por estar “por trás da cena”, gozando de certa invisibilidade, na posição de um diretor de cena, talvez, ou na de um autor que esvazia de sentido uma face individual autoral e coletiviza o seu gesto? O título deste texto, Meu e/ou nosso, coloca em contexto a concepção do Capacete, na qual a atenção ao coletivo e à compreensão concomitante aos processos artísticos individuais configuram um modo de estar no mundo, de se relacionar com o meio. Não parece haver necessidade de formalidades, de institucionalização do gesto ou da arte, embora ambas estejam, sempre, implicadas no fazer artístico ou na gestão de um espaço de arte. Ocultar, nesse caso, não significa neutralizar, e por isso a importância da aproximação entre Helmut e o Capacete: um é reflexo do outro. E por isso, também, con(fundem-se). Em seu 10º aniversário, o Capacete lançou o livro “livro para ler – 10 anos de Capacete”8. Logo no início do prólogo, Helmut diz o seguinte: Sempre me perguntei se catálogos, impressos para diferentes eventos da esfera da arte/cultura, despertam sincera curiosidade e são realmente lidos, se realmente há algum interesse do leitor e se há outra necessidade além da simples produção, documentação, legitimação e projeção de atividades e carreiras. Essa pergunta, em-

7 AYERBE, Julia; BARRETO, Jorge Menna; BATISTA, Helmut; LANARI, Mariana; SCHWAFATY, Beto; (Org.). Livro para Responder. São Paulo: Capacete Entretenimentos, 2012.

8 BATISTA, Helmut (org.). Livro para ler: 10 anos de capacete. RJ: Capacete Entretenimentos, 2008, p. 11.

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bora pareça simples e ingênua, reflete o modo de agir e pensar do Helmut/Capacete. Um problema que diz respeito a todos nós e que, pelas circunstâncias, mostra perfeitamente as implicações do Capacete na sociedade, no que diz respeito à sua constante expansão enquanto plataforma de troca, produção, formação e veiculação da/ em arte. Se há uma real preocupação em organizar, dinamizar e documentar a produção individual dos artistas, perguntar-se como essa produção poderá chegar até a sociedade, poderá ser vista e/ou lida, é uma questão fundamental. O Capacete é movente porque suas proposições não se dão apenas num espaço físico determinado, mas porque a ingerência de outros tipos de deslocamentos sempre foram seu lugar de ação e reflexão. Um problema próximo diz respeito também ao conteúdo: é o lugar atribuído à percepção do entorno, às relações que se estabelecem no encontro, na escrita, no constante compartilhamento de experiências e nas colaborações estabelecidas com outros espaços, projetos e instituições. Em outras palavras, agenciar significa friccionar, tencionar e criar lugares de embate para que se possa admitir a pluralidade de grupos e interesses. O Capacete parte do princípio que os momentos mais importantes acontecem nos “entre-espaços” e “entre-tempos” e de forma flutuante e instável e, portanto, de forma imprevisível e incontrolável9. Tocamos no ponto que me parece cada vez mais im-

9 Texto de Helmut Batista “quem-somos-2010. pdf ” enviado por e-mail em 2013.

portante: delinear, a partir de um espaço autônomo - e portanto não governamental e sem fins lucrativos -, uma organização política real e afetiva. A razão de ser dessa reação aos formatos dominantes de espaços de/para arte, é permanecer em constante processo de construção e invenção, processos estes que implicam um olhar mais atento e contestatório para o estado das coisas, a fim de conciliar o poder criativo do indivíduo com o impulso imaginativo da sociedade. Essa questão requer considerar a análise da organização 151


10 FRANKOWICZ, Marcos. (Org.). Si, tiene en portugués. 1ed. São Paulo: FUNARTE, 2015, v. 1, p. 42.

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interna do Capacete. Contraditoriamente, se por um lado Helmut é Capacete, e Capacete é Helmut, por outro, o Capacete foi construído a partir de uma rede de profissionais que participaram ativamente da elaboração e realização de seus programas. Essa informação se intensifica na medida em que o próprio site do espaço apresenta, no link “Quem somos”, uma lista de pouco mais de cem nomes, localizados logo abaixo da frase: O CAPACETE existe através de todos profissionais que por ele passaram nos 16 anos de existência entre 1998 a 2014. A organização do Capacete se pretende móvel, e sua mobilidade está ligada aos esforços da classe artística em manter ativo um espaço para criação e dispersão. Para Marcelo Expósito, artista e ativista político espanhol, é preciso haver uma flexibilização do entendimento da prática artística e, por conseguinte, da prática de arte. Pode-se dizer, por exemplo, que o Capacete Entretenimentos, considerando todo o dito, assimila a prática artística em seus modos de organização. Para usar uma fala de Expósito, se pensarmos justamente a prática da arte como a invenção de modos de organização, de modos de organizar a produção e a cooperação social... Aí temos uma chave10. Ainda de acordo com ele, não estamos produzindo um objeto, não estamos produzindo uma coisa tangível, estamos produzindo tangíveis e intangíveis. Há uma certa dificuldade em juntar as peças do quebra cabeça que conforma o Capacete Entretenimentos, quando não se está participando ativamente do espaço. E há razões para isso. Uma delas é que o Capacete, por priorizar a documentação do trabalho dos artistas que por ali passam, acaba por deixar de lado a sistematização de sua própria história. Significa dizer que sua história, como a da maioria dos artistas e instituições do País, exercita-se no dinamismo da oralidade, longe da sistematização linear da escrita. Outra, é que talvez sequer haja interesse para isso, pelo simples fato


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11 A Merzbau (Coluna Merz) teve início em 1920 e durou treze anos, até ser destruída durante a guerra, em 1943. A Merzbau foi criada pelo escritor, poeta, performer e tipógrafo Kurt Schwitters, um artista refugiado que se autonominava “Merz”. Schwitters se apropriava de coisas encontradas para construir a Merzbau, sempre de dentro para fora. Composta por grutas, vales, depressões e superfícies justapostas, havia na Merzbau uma noção de casa dentro da casa, de psicoarquitetura – reconstruir através dos cacos (dadaísmo), onde estão presentes lembranças de toda a vida do artista. O espaço se tornou o trabalho e, o artista, o espaço. Schwiters era a parte mais importante da Merzbau: seu conceito de obra não incluía apenas todos os tipos de arte que deviam ser reunidos na “obra de arte Merz completa”, mas também sua própria pessoa.

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de que o Capacete é um espaço in progress e que, e isso é apenas uma hipótese, ele seja para Helmut o que a Merzbau foi para Kurt Schwitters11. Para o Capacete, a espontaneidade constitui uma experiência imediata, para em seguida ser adquirida enquanto consciência da experiência vivida. Ele se encontra nesse “espaço-tempo” construído a partir das relações afetivas e políticas que se travam entre um país e outro, uma cultura e outra, um artista e outro, uma praia e outra, uma caipirinha e outra. De certa maneira, o Capacete não tem lugar próprio, ele é o próprio lugar que se move pelo mundo. É como uma embarcação mesmo, que de porto em porto vai recebendo novos tripulantes e deixando com que outros possam pisar em terra firme. Se é que podemos chamar de “firme” essa terra, já tão movediça e inconstante. Quanto mais se esgotam os dispositivos que tem por função “organizar” a produção artística e intelectual, e estou falando de um esgotamento de formatos e padrões (bienais, cubo branco, feiras, universidades etc.), maior é a necessidade de quebrar a forma, ou a fôrma, e escapar ao movimento. E para isso é imprescindível que se esteja em constante diálogo com as necessidades dos artistas e da sociedade. Talvez por isso, para quebrar a rigidez do sistema que o circunda, o Capacete confunde espaços e funções: o artista se confunde com o editor, o cozinheiro com o visitante, o gestor com o curador, o interlocutor com o copropositor, o performer com o turista; a escola com o ateliê, a cozinha com o home office, a praia com o escritório, a festa com reunião de trabalho, o processo artístico com lazer, o banho de cachoeira com a pesquisa de campo. Compreender o Capacete como prática artística é considerar que grande parte de suas ações são construídas e realizadas por artistas. Isso faz com que um programa não seja só um programa, ou uma viagem uma viagem, ou um livro um livro, ou uma festa uma festa (é muito importante fazer festas12). Há uma inversão de perspec-


tiva, um modo de elaborar e compartilhar que se assemelha mais a um trabalho de arte, do que a uma organização institucional propriamente dita. Se considerarmos cada uma das edições do Jornal Capacete13, ou a participação do Capacete Entretenimentos nas 28º e 29º Bienais de São Paulo, ou o projeto ROAD: residência móvel, ou ainda as Bancas nº1 e nº214, fica fácil constatar a hibridização entre “espaço autônomo”, “trabalho de arte”, “prática artística”, “espaço editorial” etc. Isso se dá porque Helmut trabalha não apenas em parceria, mas em coautoria com outros artistas. O meu e/ou nosso, aqui, mais uma vez. Uma das características de espaços como o Capacete, é que são provisórios. Mas não o são apenas porque possuem uma curta existência temporal, e sim porque estão constantemente se reinventando. Por serem mais fluidos, sem tantas amarras institucionais e burocráticas, eles conseguem seguir com mais agilidade o fluxo de transformação do meio artístico, atendendo de pronto projetos e artistas cuja obra é o próprio processo de investigação, dentro das arestas que delimitam seus interesses, linguagens e desejos. Como exemplo, o “espaço editorial” do Capacete, nesse caso o Jornal Capacete, os catálogos, livros e múltiplos são meios de veiculação de arte, seja como registro da produção dos artistas, críticos e pesquisadores envolvidos nos programas do Capacete ou como trabalhos de artistas que compreendem este suporte como um espaço de exposição.15 No texto “¿Puede todo ser provisorio?”, transcrito a partir de uma palestra a convite do Proyecto Trama em 2001, o curador Charles Esche pergunta ao público: quando dizemos provisório nos referimos a um tipo de resistência ou de diferença ao desenvolvimento institucional atual, ou a uma maneira mais rápida de distribuir e de discutir a arte? Pode o provisório fornecer o princípio alternativo estrutural através do qual as coisas se modifiquem?16. Pode ser que certas instituições tenham se tornado ferros-velhos exatamente porque ignoraram que o provisório é permanente. Ou deveria ser. Já não há

12 NAVARRO, Santiago García. (Org). El pez, la bibiceta y la maquina de escribir: un libro sobre el encuentro de espacios y grupos de arte independientes de América Latina y Caribe. 1ª ed. – Buenos Aires: Fund. Proa, 2005, p. 33. 13 “O Jornal Capacete nasceu em 2001, denominado Planeta Capacete. Com tiragem de 5.000 exemplares, distribuído gratuitamente para várias regiões do país, o Planeta Capacete, em todo o seu período de existência (20012004), teve sempre como norma convidar artistas para projetar cada número publicado. Cada artista convidado tinha, portanto, a liberdade de criar o periódico da forma que melhor lhe conviesse: o formato e até mesmo, se assim o desejasse, interferir no corpo editorial. A única limitação era o material, que deveria ser de baixo custo, possibilitando uma grande tiragem, assegurando dessa forma uma maior distribuição no processo de sua circulação”. MELIM, Regina. In: Revista: Estudio, Artistas Sobre outras Obras, Ano 1, Número 1, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes, Lisboa, 2010. 14 Em 2002, convidado a participar da edição da 25ª Bienal de São Paulo, Helmut Batista convidou dois artistas para dividirem essa experiência com a galeria ou escritório móvel A Banca: a francesa Marie-Ange Guilleminot e o brasileiro Marssares.

15 MELIM, Regina. (Org). ¿Hay en portugués? 5. Florianópolis: Editora par(ent)esis, 2016. 155


16 BANCHERO, Irene; FONTES Claudia; ZICCARELLO, Pablo. (Org.). La sociedade imaginada: desde el arte contemporâneo en Argentina. Buenos Aires: Proyecto Trama, 2002, p. 84.

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como ignorar a velocidade das mudanças de paradigmas que estamos vivendo, de paradigmas políticos, sobretudo. Para Esche, pensar o termo “provisório” como uma ferramenta, possibilita uma “autocrítica institucional”. E é útil porque se refere ao tempo mais que ao espaço e à contínua divisão do tempo em unidades não específicas durante às quais as instituições podem adotar diferentes personalidades, diferentes identidades para artistas e para seu público. Esse é o desafio que o Capacete vêm enfrentando há 19 anos: manter-se provisório e contestatório, sem se conformar em um estereótipo, ou se tornar um modelo de espaço viciado e petrificado. Em seus esforços por encontrar esse lugar de “autocrítica institucional”, o Capacete passou a incorporar a comunidade que o circunda, a artística e a do bairro, criando projetos que combinam formas experimentais de ensino, e incluindo a educação como eixo fundamental de seus programas. Se o espaço editorial do Capacete é organizado em colaboração com artistas e outros agentes do pensamento crítico, e expressa seu engajamento a médio e longo prazo com os profissionais residentes, seus projetos de pesquisa e a produção de conhecimento, seu espaço educacional aponta para a criação de um espaço de reinvenção da vida cotidiana. Ainda que possua escolas e universidades de verão, o Capacete não responde a um modelo acadêmico, mas antes a um espaço laboral de investigação e desenvolvimento de projetos individuais e coletivos, artísticos e/ou comunitários. Esses três espaços portanto, o educacional, o de residência e o editorial são as principais artérias do Capacete, são elas que se ramificam e consolidam redes de conexão entre artistas de diversas regiões do mundo e, destes, com o público. O ponto em questão é que nenhum desses “espaços” existem separadamente. Quando observados atentamente, percebe-se que estão totalmente embebidos uns nos outros. Para entendermos


o Capacete Entretenimentos, precisamos tomar como ponto de partida o meu e/ou nosso sempre presente na fala de Helmut, e que implica em uma atividade mais política que meramente teórica, e baseia-se na necessidade de ver as coisas não apenas de próprio ponto de vista mas na perspectiva de todos aqueles que porventura estejam presentes.

NOTA como NOTA Por Daniela Castro A nota de rodapé não pertence a uma estrutura hierárquica de um corpo de texto principal e um secundário. Ela embasa ao mesmo tempo que é independente do texto que a tornou necessária. O leitor, em seu livre-arbítrio, pode conferi-la ou não, fica a seu critério. Esse é, portanto, o espaço ideal para se traçar algumas breves linhas sobre o programa do Capacete que compõe o projeto da 29ª Bienal de São Paulo. O programa do Capacete, no Teatro de Arena, com sua escala arquitetônica reduzida em oposição à sua escala histórica, promoveu encontros entre artistas, teóricos, músicos, arquitetos e acadêmicos de toda parte. Com microfone, quibe ou um copo de cerveja na mão, agenciou um estado de vizinhança entre indivíduos, instituições, bairros. Entre. Entre sujeitos, coisas e “Entre, fique à vontade”. Nas palavras de Marta Bogea -arquiteta responsável pela brilhante tradução das questões curatoriais que lhe foram pautadas em expografia da presente edição do maior evento de arte contemporânea no país- um vizinho em ativo convívio, que não somente reitera, mas que estranha seu próprio anfitrião. Lembro-me no dia da abertura antecipada da Bienal, logo após a apresentação lotada do artista albanês Anri Sala, no dia 10 de março: estávamos todos no bar em frente ao teatro (um epicentro de vértices formando uma espécie de triângulo isósceles; situação geográfica em perfeita consonância com a intenção do Capacete de promover encontros dos mais diversos, comuns, no tecido da cidade). O bar, que hoje está sendo reformado para se tornar uma agência do Banco do Brasil, acomodava imigrantes nigerianos, a elite intelectual paulistana e de outras capacidades, artistas e curadores nacionais e internacionais, putas e garçons. Em dado momento –como dita a tradição nesta cidade– o diretor do programa foi abordado na eminência da estratificação do grupo para que fossem jantar num lugar “mais apropriado para os convidados VIPS e internacionais”. A resposta veio pronta e imediata: “Mas nem todos presentes podem pagar 100 paus por um jantar... Vamos aqui mesmo no restaurante da Praça Roosevelt que deu a todos um voucher com desconto de 20%. E olhe para os artistas, para as pessoas: estão todos felizes!”. Estávamos felizes, e isso bastava. Qualquer baliza que ultrapassasse o paradigma da troca horizontal e fácil, do inusitado e do bem-estar comum entre todos os presentes –não-importasse-quem- era naturalmente alienígena àquela situação. O grande lance é o encontro, o contato, a conversa. Sem hierarquias; ou com elas, para aqueles que escolhessem adotá-las numa escala pessoal, contanto que fosse naquele lugar. Tudo bem. Somos só seres humanos, recortados e limitados; ambiciosos para o bem ou para o mal (quando é que conseguiremos sair do binário católico-digital, ex-dicotomia, ex-dialética? A matemática, há milênios, nos mostra o padrão do infinito, a curva do π (pi), apenas o provável da probabilidade quântica, o caos, mas, no entanto, nas humanidades, ainda adotamos a “arte e política”, “a riqueza e a oportunidade”, a direita e a esquerda, o passado e o futuro... e o presente? O presente, acredito, está na escala pontual e diminuta das conversas no café da manhã na Casa da Denise; na fazenda dos meninos; no sabático; no assistir canais de TV aberta; na busca por um coco gelado no Parque do Ibirapuera e, de repente, perceber que a 29ª Bienal está em cartaz, adentrá-la e, ignorantes de sua proposta curatorial, percorrê-la sem um objetivo definido, apenas senti-la, gozá-la, sem ter a demanda de olhá-la com uma defesa crítica para depois cumprir o dever de escrever um texto a seu respeito...). [...] A Alegria é, por definição, sempre política. Daniela CASTRO, “Um loop perfeito”. In Revista Trópico (jornal online), Lisette Lagnado (ed.). revistatropico.com.br/tropico/html/textos/3218,2.shl. Publicado em 3/11/2010

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SESSÃO TERRA UNA Esta sessão é composta por duas partes, a primeira, da possibilidade que temos de fazer coisas e deixá-las para os outros, é um relato de experiência sobre minha participação como curadora, em 2013, da residência Prêmio TAC Terra UNA, que contou com oito artistas: Denise Alves-Rodrigues (SP), Kaloan (SP), Lucas Sargentelli (RJ), Louise Botkay (RJ), Pedro Victor Brandão (RJ), Bartolo (RJ), Yosman Botero Gómez (Colômbia) e Elena Landínez (Colômbia). Ao todo, somaram-se vinte dias de intenso convívio. Terra UNA é uma floresta, é um modo de descolonizar a mente, é uma residência artística, é uma ecovila, é precária, é abundante, é autosuficiente, é dependente, é um estado selvagem, é organizada. O ponto é que Terra UNA é um projeto de vida de um grupo de pessoas, mas é também um espaço de recepção para outras, que porventura queiram abrir em seus cotidianos um espaço-tempo de vivência deslocada da cidade. A segunta parte, quando o artista está ao lado, é a publicação integral, até então inédita, realizada no período da residência. Os textos beiram a realidade tanto quanto beiram a crítica de arte, mas instauram um tipo de atitude artística e literária que equipara crítica e obra.

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Composteira. Fotografia Pedro Vitor BrandĂŁo.

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da possibilidade que temos de fazer coisas e deixá-las para os outros UM RELATO

A consciência da possibilidade que temos de fazer coisas e deixá-las para os outros, no contexto de uma residência de artistas, pode significar uma simples mudança na paisagem, no curso de um rio, no gesto de plantar uma árvore, de identificar espaços extra-terrenos, de compartilhar um processo de pesquisa. Coisas que só podem ser criadas quando em contato com as políticas do meio, das relações entre os corpos, do conjunto de regras pré-determinadas de um lugar, ou de um projeto. Pontualmente, refiro-me ao programa de Residência Artística Terra UNA, localizado na Ecovila Terra UNA, numa terra de 48 hectares dentro da APA da Serra da Mantiqueira, município de Liberdade, em Minas Gerais. Fui curadora, em 2013, da residência TAC Terra Una, realizada entre os meses de fevereiro e março, na qual desenvolvi o projeto “quando o artista está ao lado”, que consistiu na elaboração de ficções sobre o processo artístico de cada um dos oito artistas residentes. As questões de coletividade e redesenho social constituem a preocupação fundamental de Terra UNA, que se consolidou como 161


1 A composteira é, para mim, o lugar que simboliza Terra UNA, é precisamente ali que a convivência, nas condições adequadas, é transformada em material orgânico capaz de alimentar outras formas de vida.

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um centro educacional transdisciplinar de integração rural-urbana. O programa de residência artística, especificamente, foi criado em 2007 e se modificou a cada edição, tanto com relação ao formato quanto à duração. Como em todo processo artístico e em toda gestão de um espaço de arte, nessa residência também existem elementos importantes a serem observados, e que não aparecem de imediato na apresentação do projeto, ou seja, no momento em que ele se torna público. Um deles, por exemplo, diz respeito à transparência no processos de seleção dos artistas (são os próprios artistas, numa plataforma web, que selecionam uns aos outros). Outros elementos fundamentais são a diminuição das hierarquias e a sustentabilidade ecológica. A sentença “faça você mesmo” parece simples quando absorvida enquanto teoria, mas na prática diária de convívio com pessoas até então desconhecidas, ela se torna espessa, não possui um lugar preciso ou real, até que se crie uma grupalidade. Fazer você mesmo remete, então, a fazer “coisas” e deixá-las para os outros. Organizar a cozinha, limpar o banheiro seco, alimentar a composteira1, fazer o almoço e o café da manhã, preparar a massa do pão, arear a terra, oferecer uma oficina, propor uma caminhada, um jogo, uma festa, participar da “partilha”, responder, aquietar, evitar o conflito e a “triangulação”, colaborar com a pesquisa do outro. Todas essas situações levam, inevitavelmente, a um comportamento distinto daqueles aos quais estamos habituados nas zonas urbanas. Levam, inclusive, a outra lógica de produção em arte, comprometida sobretudo com suas implicações no contexto local. Essa realidade faz com que grande parte dos processos desenvolvidos pelos artistas assumam formas pouco convencionais e objetuais. Nessa residência, a experiência é seu próprio conteúdo. E como propor um projeto curatorial, considerando todas as características já expostas, além do fato de que não se sabe o que


será produzido pelos artistas selecionados? Quando não se sabe, sequer, quem serão os artistas selecionados? Essas foram as perguntas que moveram meu projeto curatorial. Passei a considerar, então, os elementos que estariam à minha disposição nesses vinte dias. E o afeto, o encontro e as possibilidades de trocas com os artistas passou a ser o objeto da proposta “quando o artista está ao lado”. Desenvolver um texto fictício sobre o processo artístico dos artistas residentes sugeria um sistema de abertura e fechamento que isolava meu trabalho em relação ao espaço circundante. Significa dizer que não havia ali um compromisso com a verdade ou com qualquer hierarquia entre crítica, curadoria e literatura. Desse modo, o envolvimento com os artistas em seus processos de trabalho acarretou em uma experiência na qual foi possível vislumbrar estados de impermanência. A escrita passou a ser um espaço que oscilava da generalidade ao singular, da presença concreta do artista à radicalidade de sua ausência. E esse movimento, que foi da ficção à hiper-realidade, do acerto ao fracasso, só aconteceu e pôde acontecer pela dimensão da opacidade dos sujeitos que ali conviviam. Os textos beiram a realidade tanto quanto beiram a crítica de 163 Fotografia Pedro Vitor Brandão


arte, mas instauram um tipo de atitude artística e literária que equipara crítica e obra. Escrevi ao lado dos artistas, tendo acesso aos seus modos de articular o pensamento. Essa proximidade permitiu que se criassem movimentos de tensões e torções - ponto onde a escrita pôde encontrar novas formas de existência. Assim, esse projeto contém dois aspectos entrelaçados entre si: o primeiro é designado por uma escrita ficcional em relação ao mundo referencial de obras em processo; o segundo se configura no modo como a escrita é apropriada enquanto linguagem plástica para expandir suas práticas através da literatura, da crítica e da teoria. Trata-se de como pensar as possibilidades que a escrita empreende na/enquanto arte quando a ficção está encadeada no interior de uma situação real. Ou em como articular essa dobra empreendida por um sujeito que, ao significar a si mesmo enquanto outro, escapa da sujeição e faz da ficção uma estratégia de encontro. Ainda que os artistas estivessem preocupados com um resultado final de seus trabalhos, ou uma estética final, a intensidade dos seus processos, das colaborações e dos frequentes escambos, constituiu o ápice dessa residência. A preocupação de saber se uma ação é arte ou não-arte, se é falsa-arte ou verdadeira-arte foi irrelevante. Havia em todo o grupo um estado de alerta e vigília, exatamente porque todos sabiam que a arte responde a estímulos sutis e efêmeros, não necessariamente vinculados a um juízo estético, ao apreço pelo objeto ou à necessidade de registro de uma ação. A constante coleta de materiais perecíveis; a catalogação de pedras pela cor e pela forma; a experimentação diária das texturas, formatos e sabores de folhas comestíveis; o olhar apurado para a arte enquanto trabalho e para o trabalho enquanto arte; a observação dos sons da natureza e da movimentação dos vaga-lumes; a espera como condutora do desenho; as tentativas de provar os fundamentos da pseudociência e a construção imagética das formas de exportação da cultura e opulência do Brasil, são algumas das 164


inquietações que movimentaram esse grupo de artistas. De modo geral, a experiência dessa residência levantou uma série de questões teóricas e práticas. No texto “Dependência táticas”, o curador Benjamin Seroussi propõe um quadro de reflexões contendo perguntas como: “Em que medida um trabalho de arte se daria de forma diferente em espaços ditos independentes? O trabalho do curador independente - fora da instituição - pode ser visto como um espaço independente mínimo? O curador pode criar ‘espaços independentes’ em espaços ‘não independentes’ ou, para facilitar a terminologia, ‘institucionais’?”2 Essas são algumas das questões que interessam a esta pesquisa. Perguntas que ocorrem no plano de confronto de ideias e ideais, que conferem visibilidade a outras possibilidades de atuação e gestão no campo da arte, maneiras de dar continuidade a uma reflexão e de retroalimentar um debate que já existe, mas que continua sendo necessário para que ele se mantenha aberto ao leitor. Proponho, antes de irmos para o texto “quando o artista está ao lado”, que repensemos as questões de Seroussi desde um ponto de vista afirmativo: um trabalho de arte pode se dar de forma diferente em “espaços independentes” devido a um foco maior no processo (prática artística) e menor no produto (obra de arte); o trabalho do curador independente pode ser visto como um espaço independente mínimo, pois ele instaura outros modos de estar junto, como uma instituição que tem por base a economia da amizade e a constituição de esferas políticas e afetivas.

2 SEROUSSI, Benjamin. Dependências táticas, in: LUKAS, Henrique; ENDO, Maíra; MOREIRA, Samantha; MORETTI, Ruli. Metadados / Ateliê Aberto. Campinas, SP: Ateliê Aberto Produções Contemporâneas, 2016, p. 192.

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Fotografia Pedro Vitor BrandĂŁo.

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quando o artista está ao lado Quinta-feira dia 21, 09:30 a.m. A possibilidade de encontrar energias desconhecidas nas redondezas com engenhocas eletrônicas que tendem a funcionar é desconcertante. 10:47 a.m. Durante o preparo do almoço, fui solicitada a colher as folhas da horta para a salada; todos comeram folhas de abóbora acreditando ser couve. 12:56 p.m. Lá embaixo deram as mãos e entoaram cantos de amor à vida, escutei de longe, esperei o silêncio pleno e desci. 14:37 p.m. Durante a caminhada, um artista se perdeu por cerca de 40 min., quando voltou ninguém se deu conta (ele ofegava e cheirava a suor).

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Seis meses depois avistei-a sentada na frente de uma queda d`água, o corpo coberto de barro vermelho, o olhar voltado para o chão. Em suas mãos um caderno, uma caneta e, na beirada do joelho, uma fita adesiva e uma tesoura. Ela possuía uma coleção de folhas, parecia uma catalogação, do tipo que os biólogos fazem. Não parecia estar preocupada com as características das espécies, mas com os desenhos que se formavam a partir de seus sulcos. Desenhava-os com precisão no caderno de anotações, escrevia qualquer coisa ao lado, que não pude ler pela distância física que havia entre nós. As folhas das árvores ela colava com pedaços minúsculos de fita, exatamente ao lado do desenho. Era comum, em algumas épocas do ano, pessoas andarem por essas terras com objetos curiosos e até mesmo obsoletos em mãos, no corpo, na cabeça. Isso quando não despejavam batatas boas para consumo em buracos que não davam em lugar algum. Ainda falavam coisas sem nexo sob as araucárias da região, aos gritos. Talvez por medo, talvez por timidez, nunca me atrevi a chegar perto deles; olho sempre de longe, exatamente como fazem as águias antes do salto. Não tenho muita expectativa com relação a eles, aquelas pessoas que colocam madeiras cortadas em formato de casinhas nos cupinzeiros para desaparecer; o que há de extraordinário no desaparecimento? Apesar de não ter esperanças com relação a elas, às vezes gosto de vê-las andando pra um lado e para outro dentro de um buraco (não fazem nada além de ficar olhando o mundo pelo nível da terra). Mas isso tudo foi há meses atrás, agora não sei muito bem o que irão fazer por aqui, mas já limpei as lentes do telescópio.

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Minha avó costumava ir à cidade fotografar as famílias na praça. Lembrei dela por causa da câmera 4x5 que avistei hoje pela manhã na sacada do alojamento. É daquelas que as pessoas precisam ficar vários minutos paradas para serem capturadas e virarem imagem. Nesta ocasião ela estava apontada para a floresta, que muda mais de luz do que de posição. Não tenho nenhuma imagem, minha avó morreu quando eu era criança. Não entendo o cultivo de imagens. É como adestrar animais silvestres para servirem ao circo. Não tem outro sentido além do espetáculo.

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O alojamento feito de tijolos prensados já apresenta diversas rachaduras. Os banheiros secos, limpos diariamente por um voluntário, servem também de abrigo às aranhas que comumente esticam suas teias nos cantos superiores, entre a parede e o teto, aguardando a farta alimentação que sai de dentro do balde: pequenos insetos voadores que se alimentam de fezes. Diariamente alguém assopra uma concha, avisando a todos os moradores da região que algo está prestes a acontecer, geralmente ligado às refeições diárias. A concha é tocada apenas em caso de sinalização, nunca como instrumento musical. Ora ou outra serve de enfeite na sala que antecede a cozinha. Esta serve não apenas como espaço de festa, reunião e local propício para cozinhar, como também para depositar calcinhas sujas. Tal ação seria considerável, não fosse o fato de que volta e meia ela se repete – basta agora saber se é terrorismo cultural ou descuido.

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1. Cada pessoa chegou ao ritual com duas pedras. Em silêncio, empilharam-nas. Do suporte de uma à outra, uma torre. Em silêncio, todos se dispersaram. A torre subiu equilibrada até sentir que se perdera e que já não tinha mais como mover-se. 2. Naquela cozinha compartilhada, três pessoas preparavam o almoço. Uma parte era a sobra do dia anterior, outra era fresca. Uma pessoa insistiu em fazer pouca comida. Sua intenção era que não houvesse sobra. As outras duas concordaram e, com a mesa posta, sobraram sete pessoas sem comer. 3. Fiquei horas lá no alto, um salão. As janelas abertas facilitavam apenas a entrada dos sons, mas não das correntes de ar, já no estupor dos 30 graus. Três artistas conversam lá embaixo, um dorme na minha frente e outros três estão encarregados de fazer comida para as sete pessoas que sobraram do texto anterior. 4. Alguém derrubou a torre do primeiro texto. Perguntei ao caseiro que motivos o levaram a destruir a construção de um coletivo. Ele disse que isso não é coletivo coisa alguma e que aquilo tampouco era uma torre. Olhei lá para dentro de um buraco e avistei as pedras sobre a terra avermelhada.

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Em cada bifurcação da estreita estrada de chão, há um conjunto de indumentárias precárias, construídas com materiais despregados das árvores e do solo: cascas metálicas de bambu, um amontoado de folhas de cana e de capim limão, galhos secos de araucária. Dispostas no chão, as peças que compõe aquele corpo esvaído não tardarão também a desaparecer. Decidi seguir o caminho oposto ao de costume até o ponto mais alto da montanha, onde se pode ver a bifurcação. Duas horas de espera sob a chuva foram o suficiente para avistar, ao longe, um homem completamente nu. Seus braços caminhavam pelo ar com gestos serpentinos contínuos, a face impávida revelava uma dimensão subjetiva. Seu corpo avançou paulatinamente em direção às indumentárias. Uma a uma, vestiu-as até o torpor. Num dado momento ele abaixou, cavou superficialmente a terra, retirou dela um pêndulo e deixou a gravidade agir sobre ele. Eu continuava sentada, só fazendo observar. O pêndulo apontou o caminho em cujo fim estava meu corpo. Já na escuridão da floresta, esperei o encontro com a ansiedade de quem precisa desfazer uma atadura para olhar a profundidade do corte. Durante a espera pensava em como poderia incidir objetivamente na realidade, mudá-la, apagá-la, estancá-la. Ele estava muito próximo da árvore de copa perfumada quando me avistou. Foi seu último olhar, antes que fosse tragado por um raio, já em catastrófica palidez.

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Notas duvidosas ou três vacas escalando uma montanha Antes de mais nada é preciso que saibam que eu só posso ser eu mesma, inteiramente, apenas pelo tempo em que estou sozinha com meus objetos. Narro-me não como uma aventura, mas como a própria experiência ignorada pela ciência. Reportome à Moisés e seu cajado, aos mineradores alemães no século XVII com suas varas advinhatórias, aos soldados no Vietnã usando Dual Rod’s para não pisar em bombas, aos Yankes céticos com seus pêndulos e seu sonhado petróleo, aos padres pervertendo os princípios de tesla com suas bobinas de cristais revestidas de cobre. A maneira que encontrei para zerar a energia desses pêndulos, forquilhas, dual rod’s e aurímetros foi enterrandoos em bifurcações e, posteriormente, deixando-os descansar no ponto mais alto da montanha, entre uma araucária morta e outra viva. Parte deles desapareceram das bifurcações, talvez tenham sido levados pelas entidades que circundam a região. A geometria acamada do qual são feitos converte o sensível na razão que espera por confirmação. Se tal sensibilidade me fosse concedida, poderia fazer de meu corpo um condutor de energia e, de minhas crenças, a padronização de métodos científicos. Eu acho que a pseudociência é como a arte de escalar montanhas sem equipamentos e que as duas desgraças do homem são a má-vontade e o capital.

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Parte I Qual seja a dimensão do abandono, raramente sou eu esse algo esquecido, perdido ou decomposto em alguma parte do universo, absolutamente disperso de juízos estéticos ou morais. Guardo-me para garantir que o desaparecimento seja tão real quanto a existência. Para que a imagem em negativo de um esqueleto entoe não apenas a desfiguração física de um espaço que guarda em si a memória do corpo, mas também a lembrança de seu estado histórico. Se o conteúdo da aparição evoca seu contrário é porque a desaparição não é um fim em si, não tem em si mesma o seu limite. De resto, sinto-me como a água que não cessa de escorregar pelas pedras escuras da cachoeira. Sigo o fluxo contínuo do processo, imerso no ruído branco exalado pelo meu próprio corpo. E no caminho inverso ao da queda, esforço-me para mudar a direção das correntes. No lugar dos pés, apoio minha cabeça até a inversão completa do plano ou até a completude da obra. E desse jogo de complexidades, de dualidades litigiosas, de inversões de planos, construo a solidão que concede ao homem a derrota da própria indigência.

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Havia nela uma inquietação estranha, intensa. Movia-se lentamente com o cair do orvalho, sem deixar-se encharcar. Ainda que desagradavelmente áspera e insolente, para mim era uma sorte tê-la encontrado. Não recordo seu nome, mas deve ter em torno de vinte centímetros, sustentada por um tronco fino e esbranquiçado. Deveria ter dito antes que suas folhas são largas e que causam má digestão. É claro que elas são parte indispensável do meu trabalho, do contrário não estaria preocupado em descrevê-las com tanta minúcia. Colhi, lavei e recortei todas em silêncio, pensando em como meu corpo poderia dissolvê-las sem conflito. Mas sob tais circunstâncias - o prazo sendo esgotado, pressão da organização do evento, o grupo ansioso por visualizar a obra – a decisão de utilizá-las passou a ser irreversível. Organizei sequências formais com as folhas dessa mesma árvore, que todos engoliram a contragosto. Pela arte, as pessoas dissolvem com saliva até superfícies ásperas. Não tardou até que um dos integrantes desenvolvesse uma alergia que tomou todo o seu corpo. Passaram algumas horas e todos estavam com os mesmo sintomas: manchas vermelhas na parte interna da coxa e dos braços, inchaço nos olhos e muita coceira. A única forma de resolver a situação que poderia vir a se tornar uma catástrofe seria visitar uma benzedeira que morava a trinta minutos do vale. Dona Florência entoou alguns cantos, tocou com uma vara aromática em cada um dos corpos e entregou um punhado de folhas com propriedades curativas para serem utilizadas no banho. Descobrimos, dias depois, que essa árvore foi plantada sobre uma placenta que estava guardada há dois anos e meio no freezer de um dos moradores da região.

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um dado importante, quatro ĂĄrvores nasceram de placentas congeladas: jacarandĂĄ mimoso, pitangueira, quaresmeira e copaĂ­ba

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Último dia da colheita de mel. Estou bem consciente de que a Arte em si é irrelevante. Na caminhonete Bandeirante há um ventiladorzinho que corta as abelhas pela metade. Não é difícil notar a sujeira das tripas quando espatifadas no vidro. Hoje em dia poucos de nós tem qualquer ilusão a respeito da existência da arte verdadeiramente política. A roupa é dividida em duas partes, uma interna e outra externa. Sobre a cabeça, coloquei uma máscara com grades em 360º. Fechei todas as aberturas com fitas de borracha, vesti as luvas e liguei a câmera. Mas considerando o destino dos artistas nas sociedades totalitárias, suponho que eles deveriam empregar o seu tempo mais sabiamente. Esperei o Zé e o seu Tunico se vestirem. A sujeira do vidro da camionete não era muito diferente do encardido das roupas. Talvez os artistas sejam mais culpados do que os não artistas do crime da ingenuidade política da qual todos nós sofremos. Seu Tunico fez um elogio à minha coragem, passou a mão no meu ombro, deu um sorriso para a câmera e me mandou seguir em frente. A estrutura-acontecimento de tal trabalho está em tremenda vantagem sobre o sistema dos contatos dinheiro-poder social que alimenta a imagem do artista e da arte mundial. Das oito caixas abertas, em apenas duas havia mel. O negro da câmera em contraste com o suposto branco das roupas causava atração e comoção nas abelhas. A única coisa certa é que os artistas continuarão a fazer arte, as abelhas a fazer mel. E parte dessa arte não será sempre reconhecida como “arte”, parte dela pode mesmo ser chamada de “trabalho”.

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a) É um dissenso. Curiosíssimas pessoas essas que conservam apanhados pontos de vista coloniais sobre as relações mútuas de servos e senhores. O contrabando de órgãos vitais, além de gerar uma situação econômica estável na cidade, apresenta um nível de complexidade similar ao processo importador nos demais países do mundo. Todos os procedimentos estão informatizados em um Sistema Integrado de Comércio Exterior Ilegal, no qual os órgãos governamentais estão interligados a todos os agentes que, de alguma forma, têm participação ativa nos processos de exportação e importação. b) É um consenso. A CNV - comunicação não violenta – é uma prática para a resolução de relações penosas diretamente ligada a uma filosofia que busca resolver conflitos internos e externos. Todos os procedimentos estão interligados com um olhar político de descolonizar os hábitos e as relações mútuas de servos e senhores. Na construção de um território compartilhado há uma forte predominância da escuta e do silêncio que, de alguma forma, têm participação ativa nos processos sociais. a+b) Procuro verter tempos e espaços para confundir a pura objetividade fotográfica e apontar a desconstrução do instante. Comporto a autoria pelo discurso, exporto cultura e opulência pela permanência no circuito. A vontade da arte é o artista. Parte deles são exportados ou importados por processos de despacho aduaneiro comum. Em algumas situações, no entanto, eles podem optar pelo despacho aduaneiro simplificado. O presente de barbárie não está dissociado do mercado de arte, nem do contrabando de órgãos vitais, nem da posse de territórios não conflituosos. E aí tem um certo egoísmo de creditar ao mundo todas essas mazelas do homem.

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Parte II Sexta-feira dia 01, 09:30 a.m. Depois de uma caminhada de vinte minutos, cheguei à casa abandonada. 11:00. Chegaram duas caminhonetes com dez pessoas dentro para limpar a casa. 11:01. O primeiro impulso foi o de aproveitar os batimentos cardíacos acelerados para começar a correr e fugir do local. 11:02. A casa ficou completamente cercada por homens furiosos impondo armas brancas nas mãos. 11:03. Um dos artistas que estava na casa não compreendia o idioma local e começou a amontoar seu corpo junto ao esqueleto que estava desenhando no chão. 11:04. Descobrimos que a casa não era abandonada e que os homens armados eram seus proprietários. 11:05. Quem são vocês?. 11:05. Dúvida. 11:05. Quem são vocês?. 11:05. Insegurança. 11:06. Começaram a limpeza do local. 11:07. Tentamos responder à pergunta das 11:05. 11:08. Retornei à vila e deixei o artista amontoado com sua obra na casa que, até outrora, estava abandonada. 12:08. O artista chegou à vila desolado, sua obra foi completamente destruída por remeter à bruxaria. Desde então passa os dias cabisbaixo, olhando fixamente a cachoeira à sua frente.

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Não preciso de uma ideologia revolucionária para fazer revolução. O movimento do lápis sobre a superfície branca do papel supre qualquer necessidade de afiliação a um partido comunista. Eu desenho e existo na fugacidade interminável do tempo. Passo os dias coletando as coisas caídas, deslocadas, informes e desprezíveis da natureza e do homem. Talvez porque não acredite em grandes conquistas, em gênios ou em relações estáveis. Prefiro devolver ao mundo o que por ele é ignorado. Afinal, imaginar é a única forma de comunicação viável na escuridão quase negra para onde dirijo minha atenção. lista de coisas ignoradas clip enferrujado pedregulho horas telepáticas folhas mortas besouros vícios rotinas cera de ouvido roteiros de viagens não realizadas mapas de lugares que não existem cílios cerâmica quebrada mofos fio dental usado palitos de fósforo queimados medo feijão deformado mosca morta

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o tempo ĂŠ uma demĂŞncia

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SESSÃO LAENE A sessão LaEne está dividida em três partes. A primera, a quem convém a despolitização e o silêncio?, é um breve texto sobre o Nuevo Museo Energía de Arte Contemporáneo, mais conhecido como La Ene, criado em 2010 na cidade de Buenos Aires pela artista Gala Berger e a historiadora Marina Reyes Franco com o intuito de provocar uma crítica ao sistema institucional, aos modos de circulação, legitimação e produção da arte. Trata-se, portanto, do primeiro museu de arte contemporânea da cidade e, mais que isso, de um espaço que possui todos os dispositivos necessários a qualquer museu, da Argentina ou do mundo. A segunda parte, ser más amables entre nosotras para ser peligrosas juntas é uma entrevista com a artista Gala Berger sobre o LaEne. Essa conversa foi realizada em parceria com a curadora Mônica Hoff em 2017 e versa sobre a construção de formatos capazes de renovar as maneiras de pensar o museu e de questionar as supostas oposições entre o “alternativo” e o “institucional”. Essa entrevista está sucedida pela tradução do texto Manual para realizar exposições no trópico do curador Pablo León de la Barra, originalmente publicada no catálogo “C–32 Sucursal. La Ene en MALBA” em 2014.

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a quem convém a despolitização e o silêncio?

No decorrer do projeto “Não sou daqui, nem sou de lá: gestão, curadoria e residência artística em rede”, a artista argentina Gala Berger realizou uma residência na Galeria Península, localizada no centro de Porto Alegre. A prática artística de Gala Berger inclui procedimentos próprios do campo curatorial, histórico, antropológico e sociológico. Os projetos organizados por ela rondam questões como a transcrítica institucional, a criação de espaços de arte, a politização da escuta, a reflexão sobre o papel dos museus na sociedade contemporânea, entre outras mais específicas, tais quais: “como entender que a rebelião não se produz?”, “por que as mulheres participam com cumplicidade das estruturas do patriarcado?”, “como se tem criado um mito da eterna felicidade e de um futuro que nunca chega?”, “a quem convém a despolitização e o silêncio?”.

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Gala questiona os tempos sombrios em que vivemos, de selvageria, de golpe, de repressão, de controle de informações, de despolitização e, sobretudo, do triunfo dessa nova forma de vida, o neoliberalismo. Para Antonio Negri e Michael Hardt em “Isto não é um manifesto”, são nesses tempos que novas figuras da subjetividade política podem descobrir formas de participação que excedem as divisões corporativas e individualistas, e isso dá substância e conteúdo às formas genéricas e abstratas da atividade política. Inaugurado em 2010 por Gala Berger e a historiadora Marina Reyes Franco o Nuevo Museo Energía de Arte Contemporáneo surgiu como um ato político que questionava a ausência de um museu de arte contemporânea na cidade de Buenos Aires, propondo, portanto, uma resposta crítica a um vazio museal. E essa resposta surge com a criação de espaços de arte que buscam questionar essa falta através de sua própria materialização, física e conceitual. Uma resposta que não está encarregada de apresentar uma verdade, mas de entender o que os espaços de arte não estão escutando. Propor um lugar de escuta num tempo que a cegueira é generalizada é uma maneira de concatenar as diferenças, de vincular desejos distintos, de operar por dissenso, de contar outras versões de uma mesma história, versões complexas e, por isso, atentas às vozes daqueles que foram, e continuam sendo, historicamente oprimidos. A estrutura do La Ene segue ao máximo as normativas de um museu, exatamente para que possa enfrentá-las, para que possa criar um espaço de espelhamento e tensão, um espaço de trans-formação. Para seus gestores, o La Ene é a versão de um museu “claramente imperfeita e arbitrária, egocêntrica e egoísta” por ser organizado por um grupo pequeno de profissionais que fazem o que acreditam que deva ser feito. Fazem o que os museus que os cercam não fazem, não olham, não escutam. A crítica surge do gesto. Por 188


isso a programação do espaço é abertamente política e comprometida com as pesquisas de seus próprios gestores e dos artistas e profissionais que os cercam. E talvez o La Ene só possa existir, só possa gerar um processo constituinte à parte da visão do patriarcado, só possa desmistificar a noção de museu, por não estar subordinado ao controle privado ou do estado. E talvez more aí a potência do precário, da coletividade e da prática artística que conforma um espaço de arte. A entrevista que segue foi construída em dois momentos distintos. Um primeiro presencial, no jardim da Galeria Península, no dia 17 de abril de 2017, no qual participaram, além de mim e de Gala, os gestores da Galeria Península: Andressa Cantergiani, Leonardo Remor e Denis Rodriguez. O segundo momento foi movido pelo desejo de continuar essa primeira conversa, dessa vez a distância e com a participação da curadora Mônica Hoff, também coordenadora desse projeto de residência. O que segue aqui é, portanto, um pedaço de espaço flutuante, ora em forma de pergunta, ora em forma de resposta, ora sem forma, ora falado, ora escrito, ora transcrito.

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ser más amables entre nosotras para ser peligrosas juntas UMA CONVERSA ENTRE GALA BERGER, KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF

KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF Gala, gostaríamos de saber como foi sua rotina de investigação e trabalho durante a residência “Não sou daqui, nem sou de lá: gestão, curadoria e residência artística em rede”. Você tinha um plano de trabalho? GALA BERGER Mi plan para la residencia, era continuar con un trabajo que estaba realizando sobre la inmigración y sus sistemas de representación en los espacios de exhibición (de nuestros contextos siempre coloniales), que era lo que estaba en juego en La Montaña que come hombres una video performance que exhibí en febrero en un viejo museo alemán de mi pueblo natal en Argentina. La pieza aludía a una montaña-mina boliviana conocida por devorar a sus trabajadores, reemplazando la montaña por la historia y su capacidad de apropiación. La idea era básicamente hacer una extensión de estas investigaciones en Porto Alegre. Pero al rato de llegar vi el tambor enfrente de la galería y el proyecto cambió. Me obsesionó la realidad histórica detrás de este monumento y así comenzó este proceso de investigación consultando los archivos históricos, buscando precisamente información

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sobre la esclavitud en la región de Río Grande del Sur, que es a lo que hace referencia el tambor ubicado en el parque Brigaderio Sampaio. La escultura fue realizada por el Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre que a través de piezas en espacios públicos busca visibilizar a la comunidad Afrobrasilera en la ciudad. Entonces, claro, la sola idea de un museo a cielo abierto recorriendo espacios de uso común y activando pequeños encuentros de resistencia y memoria, me parecía de una perfección conceptual tal que me transformó profundamente. Y ahí fue que caí en cuenta de casualidad, buscando textos sobre el tema, de la falta de articulaciones entre estas acciones y las investigaciones del arte local, el vacío es tan grande y el silencio tan profundo que ni siquiera en la biblioteca de la universidad de arte se puede encontrar información temática relacionada a representaciones de ningún tipo. No hay ni siquiera información sobre feminismo o temáticas LGTBI, es como si no hubiera links o alianzas entre estas diferentes luchas, lo cual es verdaderamente imposible. Ahí nació la idea de una especie de archivo mutante, incluso su nombre Arquivo Vivo do Passado Presente es un juego de palabras entre diferentes textos históricos. No obstante, el mismo día que nació el Arquivo, también lo hizo la exhibición Á Sombra da Cruz. Que también se relaciona con la esclavitud en la región, con la políticas higienistas forzadas sobre la población indígena, sobre la construcción de la iglesia Nossa Senhora das Dores y también porque no, con los siete canales evangélicos que existen en la actualidad. Es una crítica al dogma y a sus imágenes, dejando por completo de lado la fe o encontrando fe en otros espacios. Es una idea que me acompañaba desde hace tiempo, pero para poder probarla necesitaba de un contexto que incluyera un profundo compromiso con estás imágenes religiosas, y la inmediata insistencia relacionada con la presencia de la iglesia cristiana y su correlato es inmensa en la producción artística local que existe en Porto Alegre. El último proyecto Casa W, (qué es la Casa M al revés)* era el cascarón perfecto para contener los otros dos proyectos. Era al mismo tiempo un link directo a la memoria institucional de la ciudad, y a la pregunta: ¿cómo es que un proyecto nunca muere y puede ser agenciado en el futuro por cualquiera que lo reclame? Incluso intentamos alquilar el antiguo espacio de Casa M para realizar la exhibición, lo que no se consiguió, abriendo la posibilidad de construir otro concepto en otro espacio. Con el simple acto de renombrar se pueden activar múltiples memorias, relocalizaciones, mi trabajo se basa bastante en este proceso de fundación de nue192


vos espacios. O nuevos nombres, o viejos nombres subvertidos. No sé si el término transcrítica ya existe, seguramente sí, pero lo utilizo para describir estas acciones de travestismo institucional. KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF Você poderia falar um pouco mais sobre a ideia de “transcrítica institucional”, por favor, e como ela aparece na Casa W? GALA BERGER Es una invención, que utiliza el prefijo Trans (que asiduamente se utiliza para describir a personas sin género binario). Y en este caso es para polarizar o contrastar entre una crítica de carácter negativo destructiva y una crítica positiva constructiva. Por un lado una crítica que propone un espacio frente a otra que alude a un final o a un pasado. Casa W es al mismo tiempo las dos cosas. También puede decirse que es un espacio sobre otro espacio, Casa W sobre galería Península, un plotter sobre un cartel de néon y así. Pero a donde verdaderamente quiere llegar es a la creación de una transintitución o al transmuseo, pero para eso falta un tiempo. KAMILLA NUNES Gostaria de saber como você percebe as relações entre crítica institucional em contextos institucionais precários. GALA BERGER En un contexto con instituciones precarias es mucho más importante establecer una dimensión crítica. Lo que generalmente se deja de lado al hablar de crítica institucional, es que se pretende que es únicamente crítica a las instituciones artísticas y es mucho más amplio que eso, las instituciones para criticar no son solo relacionadas al arte, se puede hacer una crítica hacia el estado nación, hacia la policía, hacia una determinada política, etc. La idea es sobre todo visibilizar los nexos y los compromisos entre múltiples sistemas, como el sistema financiero y corporativo puede ser rastreado en el caso de instituciones “no-precarizadas” y como la corrupción y la incompetencia pueden ser encontradas en instituciones precarizadas. Ambos estados son permeables a una crítica, pero en el caso de los precarizados es mucho más urgente. Solamente para dar un ejemplo podríamos mencionar a la artista referente en estos procesos Andrea Fraser, uno de sus últimos trabajos es sobre el sistema penitenciario en Estados Unidos, ocurre en un espacio artístico institucional “no-precarizado” pero fundamentalmente habla de otra problemática.

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KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF Com relação ao La Ene, você pode contar um pouco sobre como ele surgiu e que papel ele desempenha nos contextos artístico e político de Buenos Aires? GALA BERGER La Ene, Nuevo Museo Energía de Arte Contemporáneo, surgió a modo de crítica al sistema institucional y a los modos de circulación, legitimación y producción del arte. Nacido en agosto de 2010, es el primer museo de arte contemporáneo de la ciudad de Buenos Aires. Nuestro Museo es una intervención crítica sobre su entorno, una manera de construir formatos que renueven las maneras de pensar el museo y de cuestionar la supuesta oposición entre lo alternativo y lo institucional. Es un espacio para la promoción de la experimentación y el desarrollo del pensamiento crítico sobre el arte; un museo abierto, flexible, dinámico, cambiante, expansivo y chévere. La Ene es la posibilidad de crear un museo que responda a las necesidades de una comunidad específica. Es una institución que surge porque hay una comunidad que la reclama, no porque haya una colección preexistente que necesite guarida o quien la administre. Una herramienta contra la instrumentalización del arte en función del mainstream, la banalización y la globalización corporativa del museo como marca. La Ene se afirma sobre la filosofía del “hágalo usted mismo” y la nueva museología; es un organismo dinámico y amorfo, inclusivo y agitador. Es un espacio para la cooperación y la comunicación, un espacio de encuentro, receptor de prácticas alternativas de investigación y producción cultural. KAMILLA NUNES Considerando sua experiência com a criação e organização de espaços de arte, gostaria que você falasse um pouco da relação entre sua prática artística e sua experiência como gestora. Deve existir uma fronteira nítida entre uma coisa e outra? GALA BERGER Entiendo que mi trabajo esta intrínsecamente ligado al desarrollo de proyectos independientes de autoorganización cultural. Cómo un reflejo ante la evidente decadencia de las estructuras existentes, desde una perspectiva crítica de la crítica, es decir la acción en contra de la mera denuncia. Estos proyectos en los que trabajo tratan de proponer no solo la construcción de un espacio, sino también repensar las raíces que dichas instituciones tienen y su problemática actual. La historia hablándole al presente y el presente hablándole a la historia. Haciendo planes, hipótesis, discusiones y conspiraciones para rehacer los espacios culturales y reformularlos 194


en contra de la renormalización institucional. Este plano de trabajo implica colaboraciones y el establecimiento de redes sociales extra estatales y micro-políticas, para producir la coordinación de luchas e intervenir sobre un terreno concreto. Algunas ideas, como por ejemplo la feria de publicaciones Paraguay, autonomizan un intercambio para generar una forma de distribución que es en realidad una herramienta política, dejando en mano de los productores todas las decisiones con respecto a la circulación de su material. O en el caso de La Ene, proponen una revisión general de los estatutos que sostienen la nueva museología como tal, en pos de un esfuerzo dinámico que formule no solo una postura hacia la descolonización sino también una acción constante sobre el contexto local. Y los espacios exhibitivos Inmigrante y Urgente, que funcionaron como centros de reunión de prácticas huérfanas. Estas experiencias son traducidas y trasladadas a mis trabajos en maneras diferentes, algunas imágenes vienen directamente de allí y otras son producidas para luego integrar los proyectos, en la forma de una cadena de nutrición reciproca. Para ensayar un vinculo que permita reconstruir sobre el tejido social resquebrajado una confianza capaz de sostener, difundir y constituir directamente un contraespacio público. Cuando el mundo parece que empuja a la aniquilación, a la deuda, al endurecimiento de fronteras, es preciso generar situaciones que ayuden a vivir después de la perdida, que puedan reactivar la memoria y funcionar como refugio. Como una reacción al racismo y a la violencia estructural de la sociedad blanca-patriarcal y heteronormativa, originando estrategias identitarias con fuerza y energía. La conexión entre todas estas cosas diferentes, como todas estas fronteras se exacerban y se amplifican la una a la otra. KAMILLA NUNES Significa dizer que o La Ene é, para você, também uma prática artística? GALA BERGER Sí y no. Es una práctica artística porque responde a una organización creativa. No es una práctica artística porque el nivel de responsabilidad implícito no corresponde a una experiencia relacional sino a una cooperativa o de co-autoría. KAMILLA NUNES Essa noções de cooperatividade e coautoria me parecem muito desafiadoras em propostas como as que você lançou durante a residência, já que elas funcionam segundo uma lógica de partilha (de ideias, angústias, reivindicações, posicionamentos críticos, políticos etc.). 195


GALA BERGER La colaboración es muy importante, sobre todo en asuntos en los que no me siento autorizada a hablar. Siendo una extranjera, blanca de clase media, no tengo voz en asuntos en lo que mi experiencia no participa. Mi cuerpo no es racializado día a día, cómo es que yo puedo hablar de eso? No puedo. Puedo hablar desde mi perspectiva de mujer en una región claramente machista, pero de ninguna manera puedo hablar y someter nuevamente con mi discurso otras narrativas. Por eso la colaboración se torna una herramienta vital, una llave que enriquece varias perspectivas. El Arquivo Vivo del Passado Presente no es una idea que surge realmente de mi, sino una idea que surge de un vacío, el archivo no existe en las universidades, no existe en las bibliotecas. Por eso está vivo, y reúne información de un pasado que siempre está presente. El archivo radica en las actividades de todos aquellos activistas que día a día forman una resistencia, el vacío a ser llenado es la unión de todas sus energías. Ser más amables entre nosotros para ser peligrosos juntos. KAMILLA NUNES Sua última frase me fez lembrar de uma aula do Marcelo Expósito no MUSAC, em 2014, intitulada ‘’El arte como producción de modos de organización” no qual, aos 41’, ele diz: “se um quadro que eu pintei vale mais do que um quadro que você pintou é porque só eu posso fazer. Qual é o valor de uma produção visual quando estamos falando de ativismo artístico ou quando estamos falando de arte como produtora de modos de organização? Seu valor é justamente o de poder ser reapropriável e transformável por outros. Se eu produzo algo que só eu posso colocar em prática, então não tem nenhum valor para os demais”. Fico curiosa para saber como você está produzindo os modos de organização necessários para que esse arquivo se torne independente de você. GALA BERGER Hay muchas formas de organización, algunas más horizontales y otras puramente jerárquicas. El asunto con el Arquivo radica en la imposibilidad, no sólo de hablar de algunos temas, sino de realización de planes organizativos-prácticos. Podemos claramente objetar que no vivo en Porto Alegre y que no puedo encargarme del día a día del proyecto. Para algunas perspectivas esto puede ser visto como una manera de lavarse las manos, es decir de generar una distancia tal en la que ya no tenga ninguna responsabilidad. En mi manera de verlo, tiene más que ver con tirar semillas no hacia el suelo, sino hacia al aire y que algunos pájaros que pasen volando las lleven a su nido para la cena. 196


KAMILLA NUNES Em uma de nossas conversas, você colocou que, para vocês, gestores do La Ene, não há diferença entre um espaço dito “alternativo”, “independente” e “institucional”. Nesse sentido, para vocês o nível de diferenciação está no fetiche que se agrega ao espaço. Você poderia nos contar um pouco mais sobre essa afirmação? GALA BERGER Las consideraciones sobre lo alternativo de un espacio, han sido desmontadas desde el ocaso de la crítica institucional, porque algo que no mencionamos anteriormente es que claramente ha entrado en decadencia - una vez que se hizo evidente que todas las críticas realizadas hacia las instituciones eran absorbidas - los espacios alternativos incluidos, ya que como dice Daniel Montero en el Cubo de Rubrik donde analiza el arte mexicano en los años 90: “La alternatividad tiene una relación directa con la institucionalidad por oposición: alternativo no es algo que está por fuera del sistema del arte, sino que más bien es algo difícil de describir en relación con formas que se pueden explicar bajo parámetros establecidos de forma y contenido”. Y va un poco más allá al emplear el término “institucionalización de la diferencia”, el cual refiere a esta imposibilidad de plantear la diferencia como una opción radical o antiinstitucional, porque la diferencia hace parte del sistema. En la misma publicación Mónica Mayer habla de cómo el concepto alternativo es parte del discurso demagógico y paternalista de las instituciones culturales establecidas, para situarse por encima de las producciones contemporáneas. Y ahí, entra el fetiche, que no es otra cosa que una construcción de poder, cuál es la verdadera diferencia entre la Tate y nuestro museo de La Ene? es el espacio? es lo privado vs. lo público? es la cantidad de $$? es la incidencia en una comunidad? Este proceso de autolegitimación solo demuestra - y de nuevo volvemos a la publicación de Montero – “que lo alternativo es solo una versión más de lo oficial”. Desde La Ene, justamente, nuestra idea ha sido siempre ser lo más institucionales posible, comprometidos con un programa público con gran responsabilidad social. Nuestro espacio es pequeño y no cobramos salarios, pero puedes apostar que es el museo más interesante del país. ;) KAMILLA NUNES O La Ene já surgiu como uma provocação política/social/artística em BsAs, pela ausência de um museu de arte contemporânea. Pergunto se, depois de sete anos, ele segue com sua proposta inicial. 197


GALA BERGER Lamentablemente, nada se transformó ni un día. El estado de los museos sigue siendo lamentable. Salvo algunos esfuerzos privados, los museos públicos continúan naufragando. Así que todo sigue más o menos igual, nuestra propuesta inicial sigue intacta, un museo hecho por su misma comunidad para su comunidad. Lo que sí ha cambiado son las temáticas y sus contribuidorxs, ahora estamos concentrados en cuestiones de género y representación, algo que no nos habíamos preguntado años anteriores por estar pensando en otros asuntos. MÔNICA HOFF Crees que estas “nuevas” temáticas pueden cambiar los museos? Como? GALA BERGER Aquí, hay un punto curioso, los museos son estos monstruos que tienen miles de fallas y temores, pero en alguna medida no me parece lo más urgente a cambiar, tal vez sea cierto cuando se afirma que son los únicos bastiones de resistencia y reflexión filosófica que quedan…De todas maneras, los problemas más importantes de nuestro tiempo no se definen en los museos, salvo que desde sus ventanas podamos armas las granadas para arrojar en contra del estado nación. Los museos van a cambiar naturalmente, porque precisamente la transformación y la apropiación de nuevas temáticas es el core mismo de su existencia burguesa y colonial. Pero para atacar el racismo intrínseco de nuestros contextos, o la exclusión de individuos o la injusticia hacia las mujeres, hay que ir mucho más allá. KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF Acreditamos que os museus precisam se repensar desde uma questão aparentemente muito simples: não mais o que eles gostariam de ensinar, mas o eles gostariam de aprender. No caso do La Ene, o que você acredita que ele gostaria de aprender (ainda e/ou neste momento)? GALA BERGER Esa es una pregunta bastante difícil de responder para La Ene, porque somos muchos, en un momento creo que lo que necesitábamos aprender era cómo articular los recursos para subsistir, pero lo hemos aprendido, no fue fácil ni de la noche a la mañana pero lo conseguimos. Ahora, como este año cumplimos siete años, creo que lo que deberíamos aprender es como dejar todo lo construido en otras manos, como volver al proyecto menos dependiente de nosotros mismos y convertirlo poco a poco en una estructura autónoma. Hora de tirar las semillas. 198


MÔNICA HOFF Qué es innegociable para La Ene? O sea, qué uds no hacen por nada. GALA BERGER Me gustaría creer que hay algo, pero las negociaciones por las subsistencia son difíciles, las opciones éticas son para quienes tiene una moneda en el bolsillo. Al menos por ahora, no hemos vendido ninguna pieza de arte ni archivo, no hemos apoyado la gentrificación de la ciudad ni hecho solo exposiciones de artistas hombres en nuestro cronograma anual. Grandes victorias para un pequeño espacio independiente. MÔNICA HOFF Una más sobre La Ene y te juro que no vuelvo más al tema. Si La Ene fuese un animal, que animal sería? Por qué? ;) GALA BERGER Una mólecula en el ojo de un chanchito, o tal vez una pulga en la cola de un perro? porque podemos ir saltando de un lugar a otro. KAMILLA NUNES Agora, uma curiosidade de outra ordem: como você percebe os contextos artístico e político brasileiro atual e que reflexões eles geraram em você? GALA BERGER Desde Argentina - suponiendo que el estado nación es eso que se traduce en espacios limitados en un mapa - con muchos de mis amigxs nos preguntamos cómo la rebelión no se produce en Brasil? Cómo se ha creado el mito de la eterna felicidad y de un futuro que nunca llega? A quiénes les conviene la despolitización y el silencio? Cómo se desarticula esta dialéctica de la inmovilidad que impide construir una resistencia real y colectiva? Creo que las manifestaciones en Brasil no han sido suficientes, cuáles han sido los resultados tangibles de esas movilizaciones? aparte de la visualización, y las sobre-publicitadas heridas de los manifestantes en manos de las policía y los militares, lo cual va a producir miedo para enfrentar las próximas protestas. Y cuál es la alternativa? manifestarse tiene que tener detrás algún plan político, sino es Temer quién es? y no llega tarde la organización? no está ya demostrado que pueden hacer lo que quieran porque la capital está en Brasilia? Era una buena excusa en el siglo XX, las distancias ya no pueden ser un excusa de la protesta social.

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MANUAL PARA REALIZAR EXPOSIÇÕES NO TRÓPICO1 Pablo León de la Barra

1 A primeira versão deste texto foi incluída em COOOOOOP FANZINE 01, um fanzine de fanzines editado por Dominique González - Foerster e publicado por Kunsthalle Zürich em 2011. A pedido do La Ene, o autor ampliou o manifesto que, se por um lado parte da ideia de realizar exposições no trópico, por outros é também metafórico e de acordo com a forma de atuar do Nuevo Museo. Essa segunda versão foi publicada no catálogo “C–32 Sucursal. La Ene en MALBA” em 2014 e pode ser lida aqui na Embarcação, dessa vez traduzida para o português.

O trópico é um estado mental. Uma percepção diferente do espaço, do tempo e da geografia que resiste à eficiência, à superprodução, ao excesso de consumo e à sobreacumulação do neoliberalismo. / Realizar exposições em qualquer lugar, em cubos brancos, em cubos pretos, em cubos de madeira e em cubos verdes, na selva e flutuando no rio, em espaços abandonados e em espaços por construir, na internet e em páginas de livros ou revistas ou dentro de um filme, na rua ou em terrenos baldios, ou exposições invisíveis... / Aprender com museus não artísticos; ir a museus da comunidade, museus inativos, museus etnográficos, museus folclóricos, museus minerais, jardins botânicos... / Pensar a exposição como um processo, não como um resultado acabado, perfeito, estático. / Criar exposições flexíveis nas quais as coisas sempre possam se transformar. / Pensar a exposição não como uma acumulação de objetos, mas como um modo de investigar histórias, ideias e contextos. Pensar a exposição como um ensaio escrito com obras no lugar de palavras. / Exibir “obras de arte”, bem como coisas que não são obras de arte; incluir investigação e documentos e fotocópias. / Integrar novas obras durante a exposição. Desaparecer outras. / Eu aprendi com dois curadores pioneiros que trabalhavam nos anos 50 e 70 (antes que a profissão existisse como tal) que

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fazer uma exposição é como armar um presépio: é preciso colocar as distintas figuras para dialogar entre si. / Permitir que ocorram erros, surpresas e colaborações dentro da exposição. / Permitir que os espectadores se tornem parte da exposição, que a ativem e se convertam em participantes, ou inclusive em expositores. / Pensar a exposição como um lugar (ou um não lugar), um cenário, uma paisagem, um parque, uma biblioteca, um fórum de debate, uma festa, um clube social. / As plantas e as redes e os ventiladores e as cadeiras de plástico e os mosqueteiros sempre fazem da exposição um lugar melhor. / Construir estruturas e gaveteiros e mesas e paredes móveis para exibir coisas. / Desenhar a exposição sem especificar todos os detalhes; em troca, des-desenhar; sugerir o que possa acontecer. / Buscar inspiração nas soluções de desenho das pessoas. Aprender como as pessoas exibem informação e produtos na vida real, aprender com anúncios e vendedores ambulantes. / Usar cópias, reproduções, jpg impressos e fotocópias coladas na parede caso não se tenha acesso à obra “original”. / Fazer cartazes, folhetos, pdfs, fotocopiar catálogos ou blogs ou sites da internet. Favorecer a circulação de ideias, inclusive quando não se está de acordo com elas. / Quando não houver orçamento, confiar na economia da amizade. / Usar o que se tenha à mão. / Deixar que ocorra o inesperado.

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SESSÃO PEDAÇO DE ESPAÇO FLUTUANTE

Esta sessão reúne trabalhos e pesquisas de artistas sobre embarcação e navegação. Foi inspirada num fragmento do texto “O corpo utópico, as heterotopias”, do filósofo Michel Foucault, que propõe novas bases para uma nova ciência, a heterotopologia. Foucault entende a embarcação como um “pedaço de espaço flutuante, lugar sem lugar, com vida própria, fechado em si, livre em certo sentido, mas fatalmente ligado ao infinito do mar”. Para o autor, a embarcação é a heterotopia por excelência, pois ela foi, para a nossa civilização, o maior instrumento econômico e nossa maior reserva de imaginação. Importante considerar que esta sessão não intenciona ser um mapeamento de artistas e seus respectivos trabalhos, mas um mapa como paradoxo, já que os lugares não precisam de mapas para existir e os mapas dos lugares, por sua vez, não são os lugares. Aqui, o mapa nos ajuda a estabelecer ligação com um imaginário possível da embarcação e seus espaços circundantes. Espaços políticos, econômicos, sociais. Espaços de memória, espaços biográficos, espaços de insurgência ou ainda, para usar a definição de Foucault, “heterotopias que tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis”.

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Raquel Stolf Mar paradoxo (100 silĂŞncios costeiros + 100 silĂŞncios empilhados) 2013-2016 204


Luisa Nรณbrega Jonah number one 2008 205


Caetano Dias Ă guas 2010 206


Simon Starling Autoxylopyrocycloboros 2006 207


Laura BelĂŠm Lugar em fuga 2009 208


Renata De Bonis Broken Wave Concha preenchida com cimento - ou tentativa de silenciar o mar 2017 209


Laura BelĂŠm Enamorados 2004-2005 210


Carla Zaccagnini Duas margens (Ă­ndico) 2012 211


Laura Gorski Repouso 2016 212


HĂŠctor Zamora Ordem e progresso 2012/2017 213


NADJA ABT The authors as cargo vessels Produced as stamps in various sizes 2016 214


Francis Alys Puente 2006 215


Martha Niklaus Horizonte Negro 2015 216


Thais Graciotti Deriva 2015 217


Kenneth Josephson New York State 1970 218


Bas Jan Ader 1975 219


Pablo Paniagua Ensaios de argonáutica para transposição de naufrágios 2016 220


Anônimo Buque Yapeyú (1ª embarcação de bandeira argentina a dar a volta ao mundo e espaço onde se realizou a Exposição flutuante de 50 pintores argentinos, 1ª mostra do Museu de Arte Moderna de Buenos Aires), 1956.

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FILMES E VÍDEOS Águas, Caetano Dias, 2010, Limite, Mário Peixoto, 1930 La chambre, Chantal Akerman, 1972 News from home, Chantal Akerman, 1975 Fahrenheit 451, François Truffaut, 1966 Toute la mémoire du monde, Alain Resnais, 1956

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