Olรก livro. Permite que ao passar as tuas pรกginas, uma a uma, eu te habite.
Onde estão as mulheres?
Beatriz Lemos
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profissão da curadoria, que é o momento de revirar o arcabouço de artistas que conhecemos, acompanhamos e gostamos para dar corpo ao Congresso Extraordinário. Tínhamos uma variante que não era uma escolha apenas por obras, mas pela fala do artista que deveria ser dirigida a um público específico – pessoas ligadas à arte ou não, que viriam das cidades catarinenses contempladas com o projeto – e que pudesse reunir questões pertinentes dos universos de suas pesquisas artísticas com o nosso naquele então em que estávamos submersos entre ilhas. Éramos 10 curadores ativos, de diferentes cidades do país e uma lista de quase 20 nomes de artistas, onde a maioria esmagadora de nomes citados eram de homens. Nenhuma artista mulher. E por que isso acontece? Não conseguimos responder de imediato. Mesmo pausando o brainstorm de nomes e exemplos de trabalhos para questionarmo-nos sobre o fato e mesmo que chegássemos a uma definição final que não contemplasse as artistas foi frustrante e constrangedor não haver sequer uma sugestão feminina para as oratórias (1) que condissesse com nossas expectativas. Pelo menos naquele momento de urgência.
ou simplesmente passam desapercebidos por curadores – curadoras mulheres inclusive. Basta uma rápida pesquisa em artistas selecionados ou convidados para grandes ou médias exposições coletivas ou uma olhada no staff de galerias pelo mundo para ter uma ideia desta desproporção. Com certeza não é pela quantidade de mulheres artistas no meio da arte ou tão pouco pela qualidade de seus trabalhos. É notório exemplos de artistas que fizeram e fazem a história da arte recente e que se fazem presentes na arte contemporânea ativamente em suas múltiplas linguagens e reflexões. E se formos adentrar em expoentes da arte brasileira chegaremos na maioria à mulheres, curiosamente. Assim como, na música ou literatura. O que de fato acontece então?
Beatriz Lemos
Você acha curioso ou inusitado esta pergunta aparecer aqui, em uma publicação de um encontro de curadores? Pode ter certeza que nada tem a ver com o fato deste encontro ter sido organizado por três mulheres. Também nada tem a ver com o dado de que éramos 10, as vezes 12, as vezes 20 pessoas compartilhando processos e, independente das configurações, sempre estávamos em maioria de mulheres. Aliás, a população brasileira é composta de quase 4 mulheres para cada 1 homem (são 3,9 milhões de mulheres a mais que homens). Eu venho de uma cidade que para cada um são 10 mulheres. Mundialmente, a percentagem se equivale um pouco mais, ao ponto de quase chegar a 50% para cada (homens são mais numerosos em 1%). São 3.561.051.160 mulheres no mundo, mas, ainda assim, os homens ocupam um número significamente maior de cargos de poder e, em muitos casos, mesmo realizando as mesmas funções profissionais que uma colega mulher seus salários são mais altos. Apenas por serem homens. Sim, isso ainda é uma realidade em 2014.
Esta publicação foi idealizada coletivamente pelos 10 curadores residentes. Levantamos em lista os assuntos mais pertinentes que surgiram naquela semana entre as tardes na pousada, visitas a espaços de arte pela cidade, ateliês de artistas, falas na universidade, no passeio de barco, nos encontros com ilhas e nas noites de cantorias à beira-mar. A intensidade desta residência foi de tal tamanho inesperado, se mesclando maneiras pessoais de ser com práticas de como fazer/atuar profissionalmente. Ou seja, se a experiência coletiva de residência é confundir vivências e se deixar afetar pelo outro o Ações Curatoriais foi um bom trabalho para todos nós. Sim, we are just working now. Desta lista de aflições e instigações que nos arrebatou durante aqueles dias, cada um escolheu o assunto que, por afinidade, gostaria de escrever, pensando em qual poderíamos dar o melhor de si em poucas páginas. E eu fiquei com a frase que dá o título desse texto. Estávamos todos reunidos na varanda da pousada para uma das tarefas mais prazerosas desta
Por incrível que pareça, esta constatação se repete com frequência em muitos momentos como este, decisivos na curadoria. Contudo, raramente são expostos a público
Vivemos e somos todos parte de uma estrutura cultural patriarcal. E o meio da arte apenas reproduz o que acontece em todos os demais meios profissionais. São muitas as mulheres trabalhando nas mais diferentes áreas, cada vez mais assumindo ofícios antes ditos masculinos, liderando equipes, chefiando empresas, tocando instrumentos musicais. Muitas cientistas, engenheiras, astronautas, policiais, políticas, motoristas. Porém, ainda são raros os empregados domésticos, cozinheiros (quando não chefs de cozinha), cuidadores de crianças, bordadeiros. A luta pela inclusão
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da mulher no mercado de trabalho não se deu no episódio histórico há mais de 100 anos atrás. Acontece desde então, diariamente. Segundo dados do IBGE, em 2010, o percentual de mulheres no Brasil com curso superior é maior 16,3% em relação aos homens, porém já para o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) os dados de 2011 indicam que a participação das mulheres no mercado de trabalho é inferior 21,3%. Ou seja, as desigualdades de gênero existente na sociedade brasileira (que não se difere muito da realidade mundial) são relacionadas mais a questões culturais e sociais do que econômicas, constituindo assim, a representação social da mulher no trabalho, na família e nas relações de afeto.
em 13%, sendo que a mulher negra tem uma taxa 71% superior à dos homens brancos (2).
O maior contingente de mulheres no mercado de trabalho é composto pelo serviço doméstico remunerado, sendo no geral mulheres negras, com baixo nível de escolaridade e com os menores rendimentos da sociedade brasileira. As carreiras que seguem em maior número são professoras, cabeleireiras, manicures, funcionárias públicas ou trabalhadoras em serviços de saúde. Apenas 20% de mulheres empregadas ocupam as demais áreas profissionais existentes no país e, ao exercerem suas ocupações, são corriqueiros os casos de opressão e machismo. No que diz respeito ao mercado informal, a presença da mulher é superior a do homem
Estas estatísticas são atuais e nada mais comprovam que para uma análise crítica da situação da mulher no mundo do trabalho é necessário o entendimento de convenções arraigadas em nossa sociedade e a reformulação deste quadro passa pela revisão das funções sociais da mulher, além da noção convencional do que seja trabalho e suas formas de avaliação/validação. A divisão do tempo entre trabalho e vida pessoal no mundo contemporâneo é para homens e mulheres uma tarefa cada vez mais etérea. No universo das artes, muitos de nós (e aqui relembro as conversas exaustivas sobre o tema entre os curadores residentes na varanda da pousada em Santo Antônio), vivemos a angústia de não alcançar o tempo eficiente para as demandas da vida e passamos dia a dia acelerados em busca de solicitações inerentes à nossa profissão. Apesar de a curadoria ser uma prática deveras exigente na atualização de visões de mundo, esta exigência de “ter que dar conta” pertence a toda população economicamente ativa, mas também para a mulher que trabalha em âmbito familiar não remunerado. Esta função, embora contribua para a renda familiar, não entra em análises estatísticas no contexto brasileiro e tão pouco possui valorização social, o que
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constata que a dupla jornada feminina (trabalho e casa) ou a dedicação ao lar (donas de casa) são ofícios incorporados como naturais à nossa cultura, tendo arcaicas conjunturas para quebras de paradigmas. Em paralelo, os impedimentos de ascensão profissional da mulher recaem, quando não se tratando somente de estruturas organizacionais de trabalho machistas ou misóginas, na condição da maternidade. O pânico vigente instaurado em grandes corporações de que uma profissional competente tenha que se ausentar para ter filhos, beira a estupidez humana, mas causa a inevitável desistência de muitas mulheres do direito de serem mães.
feministas que colocassem em xeque a dualidade de poder social entre gêneros. Esta escolha de não confrontação com a realidade patriarcal e falocêntrica do mundo condiz com o perfil de nossa sociedade, visto o histórico de luta por inserção, absorção e compreensão do próprio movimento feminista no país. Contudo, não há como negar presenças referenciais de artistas como Tarsila do Amaral, Lygia Clark, Márcia X, Letícia Parente que, independentemente de posicionamentos pró ou contra as diretrizes do movimento político, inauguram na arte brasileira o discurso crítico da mulher e sobre a mulher como representação na sociedade. São as obras dessas artistas que abrem caminho para uma produção atual de jovens artistas que ativam uma maior consciência política da condição feminina no mercado de trabalho, como Graziela Kunsch, Cristina Ribas, Denise Alves-Rodrigues, ou do direito da mulher na gerência do próprio corpo, como Sara Panamby, Michelle Matiuzzi, Cíntia
Voltando ao contexto da arte, a condição de trabalho da mulher ainda encontra uma tímida reflexão em pesquisas artísticas no Brasil. Em um panorama geral, a produção brasileira com interesse em políticas da mulher, voltou-se para abordagens acerca do universo subjetivo feminino, negando ou até mesmo rechaçando discursos
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Guedes, Fabiana Faleiros e algumas ações ativistas-performáticas como o trabalho Xereca Satânica, do coletivo Coiote, ocorrida este ano no Campus da UFF - RJ, que gerou polêmica abissal, chegando à ameaças de estupro corretivo (visto que o sexo sem consentimento é uma arma de poder do homem sobre a mulher) nos meios sensacionalistas de comunicação de massa (3).
E onde mesmo estão as mulheres? Estão aqui, ali e lá, todas em ação, atentas às micropolíticas do cotidiano.
Enfim, somos apresentados ao mundo através do olhar da mulher (mãe), contudo a um mundo construído por homens. Da linguagem aos códigos sociais. Uma base estrutural que vai muito além da classificação de gênero entre masculino e feminino. O que ficou claro para nós, curadores em residência, lá, naquele momento descrito no início do texto, é que, se por uma especificidade do meio, são os curadores que detêm o aval de escolha e seleção e, assim, legitimação da/ do artista, a verdadeira inserção e não apenas tolerância da mulher na arte também depende de nossas decisões políticas enquanto profissionais. É necessário fugir do receio de que o assunto se trata de medidas sociais de cotas – ponto de vista muito característico da elite – e ampliar a reflexão sobre a real presença em números, não só de mulheres, mas também de negros, pobres ou representantes LGBTT. Redesenhar mundos é um dos ofícios mais potentes de um curador.
(3) Para saber mais sobre este trabalho, sugiro o texto “O caso das xerecas satânicas contra as boas almas inquisidoras”, escrito por Sara Panamby para a revista virtual Pulso, n.1 (http:// www.plataformapulso.com)
(1) A artista Raquel Stoff participou do Congresso Extraordinário com um trabalho de intervenção, intitulado “Abafador de ruídos”. (2) Dados de pesquisa do BNDES e PNUD.
O extraordinário do congresso da fortaleza sem ilha de Anhato-Mirim, descrito obsessivamente. Paulo Miyada
Foi para isso que fomos para a ilha, aquela que ocupa posição estratégica para defesa do território ainda que tendo sido tão facilmente driblada; para a ilha, a mesma que abriga uma fortaleza virgem de disparos de canhões e lasciva na prática de assassinatos em nome da recém-instaurada república e do truculento que acabou dando nome à outra ilha, maior, nas proximidades; enfim, para a ilha, que recebeu o dia de lazer e descanso dos curadores convidados pelo projeto Ações Curatoriais depois de dias de debates e conversas; ilha que fica a quase uma hora de escuna desde Florianópolis e é muito bonita em dias de Sol; ilha que revela o rigor despojado do terraplano português na implantação de seus edifícios militares; ilha que também recebe certo número de marcos orientalistas trazidos por um construtor viajado em escala global (precursor dos star-architects do século XXI); finalmente, para a ilha em que deveríamos descansar mas acabamos trabalhando fingindo que descansáva-
mos (“Nós estamos apenas trabalhando agora”). Foi para descobrir que não sabíamos para que ir que fomos para a ilha. Por isso quisemos levar para a ilha nossos convidados, aqueles que vinham de quatro cidades muito diferentes, nem sempre aquosas, por vezes aquosas em demasia nos dias de chuva forte e longa. Aqueles que poderiam ter os mais variados repertórios e posturas no campo da arte, artistas mais e menos apaixonados, gerentes mais e menos esclarecidos, cabeças mais e menos permeáveis. Aquele muito magro e com os olhos saltados, aquela muito larga e de risada exagerada, o outro mediano e muito parecido com o rapaz do outro ônibus, alguém mais disposto a se deixar levar pela fala mansa dos artistas, outrem mais preocupado em entender o que ali era curadoria e o que coreografia. Foi, portanto, para ter chance de compartilhar algo de bom com essas pessoas que as convidamos para ir conosco para a ilha.
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Foi com isso que nós, curadores, pesquisadores, escritores e críticos de ocasião, artistas em pontuação, quisemos trabalhar. Isso: a capacidade poética de – ou melhor, a coreografia espontânea entre – discursos inacadêmicos, caymicizados. i.e. feitos por evocação, sem pressa e enxugados de adjetivos, verbos e preposições: presenças substanciadas. Um congresso de coisas elas mesmas, no lugar da fala sobre as coisas. Uma extraordinária demonstração performática do que pode ser dito na margem do discurso associado à prática curatorial. Ao invés da estrutura hierárquica em que os artistas fazem coisas e nós fazermos elaborações retóricas para adjetivar as coisas, nós faríamos (um convite) e iríamos nós, artistas e público negociar suas próprias coisas, deixando o discurso como efeito colateral final indeterminado. Foi para experimentar outro jeito de estar juntos e junto com a arte que chamamos os artistas e as pessoas que fizeram o extraordinário do congresso da fortaleza, ainda que sem Anhato-Mirim (já que a ilha entendeu que nos receber uma vez tinha sido suficiente).
têm hora para acontecer é que eles podem ser enxutos, dotados da fragilidade poderosa das coisas que não são ditas com todas as letras. Vamos apelar para uma metáfora parabólica adolescente. Quem é o conquistador mais eficiente: aquele que redige uma carta de muitas laudas para sua pretendente, estabelecendo uma competente explanação sobre os motivos e intenções de sua paixão e garantindo que há mais em seu desejo do que o apelo irresistível de conhecer-lhe a carne, podendo até mesmo adiantar quais o benefícios de um eventual matrimônio para ambas as partes; ou o que orquestra um dia de convívio repleto de pequenas e grandes surpresas, coreografando o vento para que sopre delicado no momento do encontro, e muito forte lá pelo entardecer, forçando um abraço e, talvez, um algo mais que manifeste, por metonímia, uma paixão nunca dita diretamente? Ora, talvez o primeiro tenha mais segurança de ser claro, mas ao segundo é reservada a virtude de se esquivar de recusas - quando seu recado é compreendido é porque provavelmente foi aceito.
Vamos tentar de novo. O problema dos discursos a priori é que eles podem acabar se reduzindo a apologias muito bem articuladas. O problema dos discursos a posteriori é que podem acabar se reduzindo a apologias muito bem arquitetadas. A graça dos discursos que não
Ou, digamos de outra forma. Consagrou-se, desde meados da década de 1990, que o trabalho curatorial deveria ser praticado como uma tarefa de demonstração de capacidade teórica, vocabulário filosófico atualizado e organização visual e temática coerente, clara e sintética. Isto – essa convenção sobre a “boa
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curadoria” – foi um acidente de percurso. Por que é que a curadoria tem que ser um alinhavo legível e elegante de obras, sob a proteção por vezes hermética de uma capa discursiva semi-filosófica, um pouco erudita nas suas referências e outro tanto acadêmica na sua sintaxe? Esta é a iniciativa adequada para se ter um determinado tipo de exposição, com certo tipo de obras e contando com uma postura específica do público. Seria natural que outras posturas e habilidades curatoriais estivessem em jogo quando outros tipos de exposição/obra/público estivessem no campo. Pode-se imaginar, por exemplo, a curadoria como convite construído coletivamente para artistas proporem espontaneamente formas de ocupar o tempo e o espaço de um público reunido por novos convites feitos em rede, para produzir discursos abertos e atravessados por poéticas não lineares. Neste caso, a curadoria seria uma tarefa de comunicação e agenciamento, sobre o alicerce da confiança na arte e nas pessoas e instigada a condensar ideias e discursos casuais em cadeias de reflexão que gerarão novos convites e parcerias.
de presentes inesperados e sem tantas justificativas ou promessas de casamento ou instruções para apertar a pasta de dente começando pela ponta. E as obras? Pode ser preferível falar de arte e deixar que as obras sejam um modo circunstancial de sua manifestação no mundo. No frigir dos ovos, ninguém precisa de arte - quer dizer, ninguém sabe de que arte precisa até encontrá-la. Por isso, é melhor fazê-la porque se acredita que não há nada de melhor que se possa dar para o mundo e, por analogia, é melhor produzir situações de mostração de arte (como exposições, mas não apenas) porque se acredita que é a melhor forma de alguém receber algo e então ter chance de retribuir esse recebimento com uma ideia, uma sensação, ou uma irritação violenta e inexpugnável, se necessário.
se não fosse a impossibilidade de definir um ideal comum… se não fosse o fascínio pelos ônibus, pelos circos e pelos festivais temporários… se não fosse a tendência a pensar residências como chance de fugir de si mesmo… se não fosse a verdade de que independência é uma circunstância e não uma divisa ideológica…se não fosse o nosso Sol em Aquário… se não fosse a necessidade de seguir juntos… se não fosse o aceite dos convidados…
de escala. Areia de Itapuã, Areia - e agora já temos um lugar, a praia, e podemos sentir seu calor. Morena de Itapuã, Morena - sobe o calor, sugere-se a iminência do encontro, desejo e prazer. Saudade de Itapuã, Saudade - e vai tudo embora para o passado: praia, calor e desejo passam a estar presentes como lembrança e falta, aí aí. E tudo sem conectores. Se pudéssemos fazer curadorias e encontros assim.
E a filosofia? Pode ser preferível procurar a literatura e deixar a filosofia conviver com a química, o urbanismo e a mecânica dos fluídos no cabedal de referências que artistas, curadores e públicos podem evocar ad hoc para melhor estar junto com a arte e com o mundo. E as cartas de amor de muitas laudas? Podem ser preferíveis as trocas
Mas, se não fosse pelo ideal da ilha e da viagem… se não fosse pela experiência da residência vivida pelos curadores… se não fosse a brisa do dia ensolarado em um dia de lazer… se não fosse o desejo de descobrir algo novo, no lugar da necessidade de legitimar o já feito… se não fosse a atitude obsessiva praticada por tantas pessoas que conhecemos em Florianópolis… se não fosse o jeito de falar através da repetição… se não fosse a insistência das metáforas de isolamento e solidão… se não fossem as histórias dos viajantes bem e mal sucedidos… se não fosse a preocupação de empoderar redes de encontro… se não fosse a falta de espaços institucionais ideais…
Por isso saíram todos com a sensação de que a ilha, aquela, não quis nos receber de novo e mandou avisar com frio, neblina e chuva – mas que, ainda assim, os que caíram cedo da cama em um domingo frio encontraram uma ilha feita de gente, um pouco paz e amor, um pouco experimento de linguagem, e muita disponibilidade de pensar junto. Vai ver existe mesmo uma disposição ao obsessivo nesse povo de um estado cuja capital é uma ilha. Essas pessoas cujo eixo compartilhado é a arte, ela mesma um aglomerado de ilhas em arquipélagos provisórios. Se assim for, haverá quem tenha tido paciência de acompanhar este texto em sua escrita sincopada, compulsivamente aderida aos apostos e às substantivações das coisas. José Miguel Wisnik chamou atenção ao modo como Caymmi construía histórias sem precisar de verbos e adjetivos. Coqueiro de Itapuã, Coqueiro - e assim se evoca um marco, uma referência
“Eu preferiria não fazer” (I would prefer not to) Correspondência entre Kamilla Nunes e Júlio Martins
Kamilla Nunes e Júlio Martins
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contigo, ou com Santi, Fernando, Andreza, Bia, Gabi, Paulo, Marta ou Maria, tive essa impressão chocante que certas epifanias nos geram. Sensação de que as palavras compartilhadas nos movimentam. Além disso, a arquitetura de pedras exibe a palavra “sonho”. A imagem mental que guardo da fortaleza de Anhatomirim, que me vem como num sonho, preserva essa escala dupla, que oscila entre o monumental, inalcansável (que pode ser também pensado como uma imagem do próprio tempo) e a escala do afeto, da conversa próxima... Um bjo, Júlio Martins
Nova Lima, junho de 2014
Querida Kamilla, espero que tudo siga bem. Te escrevo para compartilhar e fazer prolongar alguns dos sentimentos e aprendizagens que nasceram da nossa convivência diária aí na Ilha de Santa Catarina. Impossível voltar o mesmo depois de dias pensando, falando e discutindo na primeira pessoa do plural. Intensidade de convívio. Saudades, já, de todos do nosso grupo... Mas há uma urgência em mim que me persegue desde que nos encontramos previamente em São Paulo, participando do seminário Longitudes, por um acaso que nos levou a um dia inteiro de conversas, aguardando amigos e aviões entre trânsitos e imaginando como seria a residência dali algumas semanas em Floripa. Foi depois de nos encontrarmos em São Paulo e conversarmos muito que “Bartleby, o escrivão” de Herman Melville, se tornou um emblema no horizonte da minha viagem. A resistência passiva que ele oferece a sistemas normativos e consolidados me inspirou a questionamentos de natureza institucional e sobre nosso ofício de jovens curadores frente a um sistema de arte já “dominado”, digamos, ou simplesmente ao estado das coisas. Bartleby é “um destroço de naufrágio em pleno Atlântico”, “levemente arrumado, lamentavelmente respeitável, extremamente desamparado”, “ele era uma pessoa mais de preferências do que suposições.” Fico encantado com essas descrições, são incríveis! Você ficou de me contar mais detalhadamente sobre um trabalho da Graziela Kunsch a respeito disso, fiquei curioso, o Bartleby nos oferece muitas possibilidades críticas... Envio novamente o Magritte que é para mim uma “imagem de recordação do C.E.F.A.”, ainda que tenha sido impossível estar presente, o que, aliás, é muito frustrante. Esse é o cenário em que na minha mente imagino o reencontro com todos. Visitar a Fortaleza de Anhatomirim me levou pra este lugar aí da pintura. Chama-se “A arte da conversação”. Por vezes, conversando
Florianópolis, junho de 2014
Ei Júlio, bom dia! Querido, também sinto falta da primeira pessoa do plural, tão marcante durante nossa convivência na residência. “NÓS” colabora, irreparavelmente, para não virmos a nos tornar, tão e somente, seres humanos inqualificáveis e supérfluos. Talvez Eu esteja sendo um pouco radical e hipócrita, dadas as condições que nos são oferecidas: somos protagonistas fadados a serem esquecidos pelo narrador no final da história. Acredito no “NÓS” como uma possibilidade de construção de uma humanidade emancipada. Nossa conversa amparada pelo acaso aconteceu em meio a dois momentos ainda latentes para mim: o passado coberto por uma discussão sobre disparidades regionais oriunda de um seminário do qual participamos na mesma mesa (não posso aqui deixar de lembrar as duas colocações do Armando Queiroz que nos fizeram pensar por um bom tempo: 1) entender a Amazônia como centro do mundo e 2) a afirmação de que seu interesse por arte fez com que cruzasse
Kamilla Nunes e Júlio Martins
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as fronteiras sem precisar sair de seu lugar de origem, o Norte do Brasil) e o futuro completamente tomado pela ansiedade das possibilidades de convivência, presença e abolição do tempo corrente para imersão no registro do “NÓS”, que rompe com a pretensão do Eu de bastar-se a si mesmo. Entre uma coisa e outra, Bartleby aparece como protagonista da nossa conversa. Isso explica precisamente que o lugar que ficou vazio, esse vazio do vivido, é a chave de leitura do Bartleby em relação a nós, “jovens curadores frente a um sistema de arte já ‘dominado’”, como você mesmo colocou. Respondendo à sua pergunta, passei a conhecer o trabalho da Graziela a partir de uma fala do público no seminário Longitudes. Acho que 2 ou 3 dias depois, ainda em São Paulo, fui jantar com a Bia em um restaurante vegetariano ali no começo da Augusta e a encontrei: nós sentadas, ela de pé com a comida esfriando nas mãos. A obra chama-se “Sem título (Prefiro não fazer)”. Não que eu me lembre de memória tantos detalhes, mas é que recuperei uma conversa de facebook de alguns dias depois do meu aniversário: “ei Kamilla, tudo bem? feliz aniversário atrasado!!! de presente te envio uma imagem que você me pediu da obra ‘Sem título (Prefiro não fazer)’, 2011. beijo! (se der um zoom acho que dá para ver bem as letrinhas)”. E me mandou junto a foto do trabalho:
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São Paulo, junho de 2014
Ei, Kamilla, sua reposta me instiga muito pois ensaiei te escrever, no último email/carta, sobre uma confusão de pessoas em mim, sobre minha dificuldade em encontrar aqui, em casa, no meu cômodo isolamento, o mesmo Júlio (eu?) que eu experimentei por aí, diante de tantas vozes, reagindo a elas, me identificando, discordando, sendo afetado por elas... Me explico melhor. É que em grupo, o solilóquio povoado do nosso universo psicológico, sobretudo o meu, que sou uma pessoa mais reclusa, é provocado e certamente somos transformados pela convivência e oportunidades de encontro com o outro. Deixamos momentaneamente de responder por aquele ‘eu’ e passamos a pensar a partir da consciência de um “nós”. É um esforço, é novamente parte dessa abertura que propomos. Por outro lado, essa noção vaga que temos do eu às vezes se torna mais tangível quando instável... Viu que é mesmo uma confusão de vozes? Eu estava aqui tentando encontrar o Júlio que conheci, junto com tantas pessoas que conheci por aí, mas me parecia desativado. É mesmo essa troca de escritos que relampeja uma faísca por aqui e me move a te escrever, ainda que com a consciência de que muito do que me inquieta permanece e resiste a se transformar em palavras compreensíveis, apaziguadas. Concordo com o que você diz sobre a primeira pessoa do plural. Penso mesmo que a ideia de indivíduo e da ênfase no ‘eu’ teve sua importância histórica e encontra importância também nas nossas trajetórias pessoais, como processo de individuação, correlato ao processo de constituição da ideia de cidadão na história, por exemplo. Mas seu excesso é uma traição que chega ao individualismo exacerbado, esse do capitalismo, que não prevê abertura para relações sociais emancipadoras, e termina por condicionar e interditar o “nós”.
Talvez você também tenha que dar zoom para ver bem as letrinhas, mas parecem escritas à mão, como fazia Bartleby, o escrivão. Talvez, ainda, a gente possa falar mais sobre essa obra em outro momento. Acordei muito cedo e ainda não coloquei nada no estômago. Me lembra de te contar sobre uma conversa que tive essa semana com o Jorge Menna Barreto a respeito do Bartleby? Um beijo e boa semana! Ká
Mas por que será que tudo isso me faz lembrar e relembrar de Bartleby? Fiquei tentando levantar no texto possibilidades de ler a personalidade dele, mas é mesmo impenetrável. Ele é um mistério, e seus gestos não são somente descompromissados, eles revelam um pensamento singular que desarma a lógica dominante, a deixam sem resposta. Também me chama atenção que o comportamento de resistência dele, censurado por todos, passa, no entanto, a inspirar e a legitimar os colegas para também agir guiados por suas preferências... Sorrateiramente a ética de resistência de Bartleby provoca um efeito no grupo. É assim que passei a interpretar a passagem do Melville que diz que Bartleby “projeta uma melancolia no ambiente”.
Kamilla Nunes e Júlio Martins
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Me conta mais do trabalho da Graziela Kunsch? Gostei da fragilidade do escrito dela frente à imensidão alva da página, um vazio eloquente ao redor e entre as palavras, a alvura da página que assustou Mallarmé... Me conta sim do Jorge Menna Barreto, queria tambem ouvir suas leituras do Bartleby. Seguimos nos falando, um bjo, JM
Kamilla Nunes e Júlio Martins
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artista. Travava-se uma luta, na qual a artista, a Bourgeois, já sabia quem sairia vencedora. Isso tudo me faz pensar que nossa insistência em trabalhar frente a um sistema de arte já “dominado” se dá por que, ao fazer esta escolha, criam-se oportunidades de viver mais intensamente o inexistente, recorrendo sempre àquilo que ele não dá. Se por qualquer circunstância diminuir de tal modo a vontade de esculpir pelo viés da subtração e do embate, então já não será Bartleby o protagonista de nossas trocas. Ainda na conversa com o Jorge, veio à tona um poema do João Cabral de Melo Neto, “Uma faca só lâmina”, onde tudo (a linguagem, o substantivo, o adjetivo e o predicado) é mutável. E apenas no final, depois de toda a luta com a matéria (a pedra, o livro, a página em branco, a linguagem), João Cabral finalmente revela:
Ilha de santa Catarina, julho de 2014
Júlio querido, Desculpa a demora do retorno. “Querido”, aliás, é uma palavra que tenho utilizado com muita frequência no dia-a-dia, nos e-mails e ao atender o telefone. Estou aqui pensando se Ela, a Palavra, tornou-se um amuleto de entrada nas proposições dialógicas através da escrita ou é mesmo parte de um sentimento que me faz refutar um “prezado”, “estimado”, “caro”, embora eu pudesse substituí-la por “amado”, “apreciado”, “rico”. Muito raramente você vai ouvir de mim, presencialmente, um “Querido” em começo de frase. No predicado é possível. Mas como viver no modo “NÓS” sem “Querido”, não é mesmo? E de “Querido”, convenhamos, Bartleby passa longe. Querido ele é por nós, críticos, curadores, artistas e amantes da literatura, pelo que ele nos faz ver, sentir e pensar. Mas jamais poderia, jamais e em hipótese alguma eu conseguiria, em nenhum tipo de ocasião, escrever uma carta ao Bartleby referindome a ele como “Querido”. A distância provocada por Bartleby rebate em nós, ao mesmo tempo em que nos fascina. Sua vida é, aparentemente, tão bem organizada e governada que encontrar um ponto de fuga para a intimidade é um privilégio que nem mesmo a Melville foi concedido. Mas o que me deixou fascinada foi você ter apontado que ele, o Bartleby, inspira e legitima os colegas para também agir guiados por suas preferências. Foi exatamente esse o assunto da conversa que tivemos, eu e Jorge, na semana passada. Ele lembrou uma fala da Louise Bourgeois que gostava de esculpir em pedras pelo que a pedra não dá, pelo que ela resiste, pelo que a pedra insiste. E a pedra, na sua insistência, acabava por alterar o gesto da
“e daí a lembrança que vestiu tais imagens e é muito mais intensa do que pôde a linguagem, e afinal à presença da realidade, prima, que gerou a lembrança e ainda a gera, ainda. Por fim à realidade, Prima e tão violenta Que ao tentar apreendê-la toda imagem rebenta.” Me diga você se Bartleby não é exatamente isso, uma realidade prima e tão violenta que ao tentar apreendê-lo, toda imagem rebenta? Bartleby é só lâmina. Um beijo, e até logo. Vejo você no lançamento dessa publicação em São Paulo! Ká
Kamilla Nunes e Júlio Martins
Ações Curatoriais — 24
Kamilla Nunes e Júlio Martins
Ações Curatoriais — 25
Brasília, julho 2014
São Paulo, agosto de 2014
Ká, querida,
Oi Júlio, boa noite!
Sim, vc tem razão, “nós” implica em gente que se interessa em ter o outro como querido. É uma abertura que se propõe, um oferecimento de mutualidade, enfim as relações são feitas desses vínculos, né?... ‘Querer’ também me diz sobre partilhar visões em comum, estar em debate com comprometimento. Mas ultimamente tenho a sensação de escrever frases cujo significado vai se perdendo antes de alcançar o papel, fica retido lá só um subproduto informe. E sim, fiquei pensando na vida privada e especulando sobre a possível consciência de Bartleby, o que podemos inferir de seu linguajar, de seus gestos, de suas incontinências... Tudo isso também revela um pensamento, nem tanto uma pedagogia a partir de Bartleby. Me interessa mesmo Bartleby como modo de aprender, de se aproximar do mundo, de responder, mas sobretudo de reagir com um não –um não que desestrutura os pilares do pensamento e do comportamento de todos ali no escritório. E ainda mais curioso é que ele estende sem cerimônia estes limites para em seguida os ocupar também. Entre o comovente e o incoveniente, Bartleby traça um posicionamento, constrói um lugar. E o domina ao ponto de acreditar ter posse dele. Sabe? Ele toma uma posição. Acho que é uma invasão também, é furtar uma possibilidade. Isso fica mais claro, por exemplo, nos diálogos em que ele constrange o patrão.
Ou bom dia, não sei exatamente como se comportam os tempos na madrugada... Gosto mais de pensar o agora como amanhã, porque já passou da meia noite, mas ainda não dormi. Em todo caso, ainda está escuro.
De fato, Bartleby é impenetrável. Numa leitura possível, nem tanto prioritária, ele poderia ser aquele território selvagem de diferença e singularidade, da consciência de ser eu um indivíduo, de me reconhecer, mas isso diante da falha e do total desconcerto e susto de também perceber-se deslocado dessa noção, por vezes frágil, mesmo incompreensível... Volto a perseguir e te escrever sobre o ‘eu’ (motivado por um convívio que estabelecemos), sobre vozes da subjetividade... E Bartleby fala muito pouco e em tons um tanto indecifráveis.
Um beijo, meu querido. Espero que estejas bem!
Amanhã (ou hoje) será o lançamento do livro que contém esse texto, já não temos mais tanto tempo de conversas e, além disso, estou me esforçando para escrever sem erros porque o texto já foi revisado. Uma pena que não poderemos nos ver e continuar essa conversa pessoalmente. Tem algumas peculiaridades do Bartleby que vez ou outra podem passar desapercebidas. Você lembra que ele passava horas olhando através de uma janela branca atrás do biombo, para uma parede cega de tijolos? Sempre me pego pensando nessa imagem e no quanto ela me afeta pela semelhança. Não que eu tenha uma janela branca, mas tenho a página. A Graziela, em letras miúdas que até com o zoom é difícil de ler, nos deu um retrato fiel do Bartleby. Uma página tão branca quanto a janela branca atrás do biombo emoldurando sua mais significante expressão, também branca: “preferiria não fazer”. Estou um pouco cansada da viagem, mas gostaria de continuar essa conversa, para que surjam outras oportunidades de não fazê-la.
Ká
Vitória, outubro 2014
Querida Ká, Fico pensando, enquanto escrevo, em nossas dinâmicas de grupo, mas prefiro nem tentar escrever sobre isso. Fico ruminando por aqui entre as linhas desse poema lindo do João Cabral de Melo Neto. Obrigado pelo envio! Um bjo, J
Te agradeço, pois foi você quem me indicou Bartleby, naquele seminário que participamos em São Paulo, e agradeço novamente por trazer à memória esse dado fabuloso! Sim, Bartebly tem o olhar anestesiado pela paisagem, passa horas a fio à janela, posso vê-lo frente à mesa ociosa, poucos papéis. Fico tentando pensar algo que crie correspondência – como uma qualidade ou intensidade do olhar reconhecível por nós, que escrevemos sobre e a partir da arte –, com um olhar que experimente e desvende essa visualidade estática, contemplativa,
Kamilla Nunes e Júlio Martins
Ações Curatoriais — 26
manipulação temporal que põe o tempo pra dormir em nós. Desaceleração do tempo. É uma pausa que está plena de atividade psicológica, como quando nos perdemos num pensamento que nos leva pra longe de onde estamos. Conheci um rio numa cidadezinha norueguesa e passei uma tarde inteira lá tentando ficar encharcado do rio, de fora dele. Consegui no máximo suar o colarinho da camisa... Você sabia que depois de nadar determinada quantidade de km, o corpo entra num estado de transe e nada novamente aquela distância sob uma percepção alterada do tempo? Lembrei que em minhas notas durante a viagem à ilha de Anhatomirim está registrado que viajar é desacelerar o tempo. Lembrei que Deleuze era uma pessoa que não gostava de viajar, pois preferia “não retardar a chegada dos devires”, ou “não interferir muito na vinda dos devires”, ou algo parecido... O fato é que ficava em casa, esperando. Certamente a visualidade estática de Bartleby opera nessa intensidade. Determinados textos que escrevemos parecem ir se escondendo no tempo e relê-los, anos depois, é redescobri-los, é tambem lê-los pela primeira vez... Tudo se passa no tempo. Já faz um tempo que olhava pra esta página esperando mais palavras. Ainda sob efeito da experiencia aí em Floripa, temo que a fala sobre tudo o que vivenciamos, discutimos, aprendemos e compartilhamos seja sempre empobrecida. Lendo agora nossas últimas correspondências, de meses e meses atrás, um sentimento me vêm, sem nome e sem genealogia. Fico imaginando que o tempo é mesmo algo que se percebe em silêncio, as palavras quase nunca dão conta. (Ainda que o fraseado longo de Proust seja lindo e influencie nosso ritmo respiratório de imediato, ao ler). Mas queria insitir contigo sobre o trabalho da Graziela Kunsch, a página em branco, parece mesmo jogar com a oficiaidade de um lema, marca uma posição... Este trabalho tem a força de uma barreira de interdição, de área envolvida por faixas de isolamento. Me fala mais desse trabalho, sigo curioso a respeito. Queria te contar uma coisa, sem contexto mesmo: depois de conhecer o trabalho do Bill Lühmann, me pego em manhãs livres andando pela rua e recolhendo pequenos objetos para uma coleção de achados. Determinados trabalhos que vemos parecem definir estratégias de olhar, que se utilizarmos ou replicarmos na vida nos oferecem o horizonte alargado da experiência estética. Um beijo pra você, saudades
Kamilla Nunes e Júlio Martins
Ações Curatoriais — 27
Sorocaba, outubro de 2014
Oi Júlio, como você está? Saudades também! Há tanto tempo que não conversamos sobre o Bartleby, que também dele fiquei com saudade. Relendo nossas trocas de palavras revestidas de sentimento e memórias, dei-me conta que, por fim, pouco falei do trabalho da Graziela, que provocou em você tanta curiosidade. Linda a imagem que você trouxe do Bartleby, no sentido de que ele opera na intensidade de não interferir na vinda dos devires. Ele sequer sai do escritório para comer ou dormir, e descobrimos isso apenas no final do livro. Mesmo curtos, os deslocamentos parecem impraticáveis. Fico me lembrando do pensamento de Walter Benjamin acerca da imagem. De algum modo, o Bartleby, sendo “só lâmina”, é primeiro um cristal de tempo, a forma construída de um choque onde o outrora encontra o agora em um relâmpago para formar uma constelação. Estou conversando com o Jorge Mena Barreto no “WatsApp” enquanto te escrevo e, por coincidência, ele me mandou uma mensagem há 2 minutos que diz assim: “Acordei pensando no Bartleby, que ele renuncia a tudo, mas não à fala. Se ele preferisse não, ele calaria. Dizer “eu preferiria não” é um fio que escapa à completa negatividade”. Não havia pensado sobre isso, o Bartleby para mim sempre foi a imagem da resistência, essa mesma que perdemos, talvez nos anos 70, depois que o mundo se transformou em imagem. Já não temos a força poética e profética dos “Provos”, embora continuemos lutamos por direitos emancipatórios, igualmente políticos, mas provavelmente mais mascarados. Quando falamos em resistência, pensamos sempre no macro, no sistema capitalista, nas zonas de guerra, nas doenças devastadoras, na luta dos sem terra. Mas a resistência também está no micro, do dia-a-dia, no nosso processo vital e nossa função de resgatar os mundos que se perderam nesse regime vertiginoso da globalização. Lembro uma fala da Marisa Flórido em Recife: “Não temos mais como construir um mundo em comum, então nós vivemos a catástrofe em comum”. Mas o Bartleby, Júlio, o Bartleby nem a catástrofe, ele vive em comum. E aí, talvez o Jorge tenha razão, ele só não resiste à fala. Talvez porque, ao se escutar, ele lembre que é humano. Tem uma parte do livro que me comove muito, uma pequena conversa em que seu chefe tenta, apela, implora para que o Bartleby se abra com ele, converse. Chega ao ponto de dizer “Eu sou seu amigo, eu gosto de você”. E ele estava sendo sincero, tenho certeza. Hoje acordei confusa, acho que essa carta demonstra um pouco desses conflitos. Talvez eu tenha nadado muitos km e minha percepção da vida e do tempo
Kamilla Nunes e Júlio Martins
Ações Curatoriais — 28
esteja alterada. É como se o Bartleby me impedisse de agir como de costume. Sempre fico em estado de suspensão quando escrevo para você. Quando falo sobre ele. Seria inveja? Você percebe a força que tem essa personagem, para repetir, repetidamente, a palavra “não”? Dizemos sim a tudo, Júlio. Até àquilo que sabemos que irá nos machucar e, mais do que isso, machucar o outro. Acho que tenho inveja do Bartleby.
Kamilla Nunes e Júlio Martins
Ações Curatoriais — 29
população por causa das férias de verão. Se pudesse ser um pouco de Bartleby, eu preferiria não estar aqui. Ká PS: envio anexo uma imagem do momento da queda.
Estou no meio de uma montagem de exposição, exausta, mas achei que deveria parar e te responder imediatamente. Me parece que chegou o momento, não de consolidar o que se estabiliza, mas de mostrar a crise, quebrar o que chamamos de realidade por meio de alucinações não adaptadas, a fim de trocar os valores do real. Um beijo, querido. Espero que estejas bem em Vitória. Acho uma cidade com paisagens lindas.

Ká Nova Lima, março de 2031
Ei Kamilla, tudo bem? Ilha de Santa Catarina, fevereiro de 2031
Querido Júlio, Estive buscando por Bartleby na prateleira de cima, onde alcanço apenas quando fico na ponta dos pés. Não que seja alta, mas como você sabe, eu não passo de um metro e meio de altura. O livro, já empoeirado, caiu no chão com as páginas abertas, mas a imagem que apareceu foi justamente a de Bartleby, uma parede cinza. A edição é aquela da Cosac, lembra? Costurada nas bordas… A supresa é que guardei as nossas correspondências dentro do livro, deixei dormir junto com Bartleby todos esses anos. E agora, relendo, fui tomada por uma vontade enorme de poder, novamente, ser contaminada pelas nossas conversas, pelos nossos desejos. Depois de ver uma entrevista ontem com o Frederico de Morais no Art1, gravada em 2014, resolvi reler Bartleby. Ele diz que a velhice nos dá o privilégio de reencontro com nossos mais estimados escritores. E liberdade também, de não se deixar contaminar pelo turbilhão de informações e autores contemporâneos, guardando o tempo, tão escasso, para reler os da juventude. Um beijo desde a ilha, que está com cinco vezes o número de sua
Que felicidade o acaso não! Os acidentes, por vezes, se passam por providência. Eu precisava mesmo reler Bartleby, fui até meu livro assim que te li. Essa edição era daquelas páginas que se abriam com um rasgo, cada página era descoberta... Bons tempos, bom reler as notas que escrevi no canto das páginas. Veja essa polaroid que te envio em anexo. Encontrei visitando arquivos daquela época. Como é misterioso o que tempo provoca na gente, não? Volto a ter saudades de você, um bjo, j
Dez minutos, uma semana, um ano.
Maria Monteiro
Ações Curatoriais — 33
O cada um tornou-se um corpo único de trabalho.
de ser, pensar, viver e articular o pensamento.
A vida em comum nos atravessou momentaneamente: o dia começava com muitos bons dias e terminava com muitos boas noites.
Não parece possível tudo aquilo ter acontecido no espaço banal de uma semana. Dividida assim: dia 1 na universidade; dias 2 e 3 visitando locais da cidade onde a arte acontece de modos diversos, dos institucionais aos marginais; dia 4 e 5 recebendo artistas que nos apresentaram generosamente suas produções, um bando de curadores de pijama, largados em almofadas, vivendo um labirinto de novas informações por minuto, na tentativa de incorporar as diversas camadas daquele acontecimento.
Maria Monteiro
Foi pouco mais de uma semana, uma breve fração de ano, o equivalente a 10.080 minutos, o tempo que passamos juntos na ilha de Florianópolis. A simpática pousada tinha vista para o mar. Os quartos aconchegantes rodeavam uma piscina onde apareceu “dez minutos, uma semana, um ano”. A brincadeira era para espairecer as nossas tão ocupadas mentes. O trabalho disfarçava-se sorrateiramente de lazer. Passatempo. Sabemos das naturezas misteriosas do tempo, que quando sagrado ou festivo assume outras formas, um corpo contínuo, infinito. Se expande ou contrai de acordo com certas intensidades de experiências vividas. Os sábios gregos possuíam duas palavras para designar a noção de tempo: chronos, Deus das estações, aquele que se mede, portanto sequencial, e kairós, tempo existencial, indeterminado, a experiência do momento oportuno. O mapa astral desenhando pelo artista Carlos Asp confirmou a profecia: o momento era nitidamente oportuno.
Devíamos, portanto, aproveitar a oportunidade daquilo que nos foi oferecido: o encontro entre curadores de diferentes partes do Brasil, o pouso, a comida, a convivência, e a Ilha. Aquilo estava dado. O resto haveria que inventar. Não parecia complicado já que as cabeças ali reunidas eram extra inventivas, e por certo, muito comprometidas. Uma compilação de multifacetadas possibilidades de interpretações poéticas do mundo. Era o primeiro dia. Ainda não estávamos inventando nada de novo: uma fala aberta no ambiente da universidade. Ficamos nervosos com as falas públicas. Unanimidade: vinte minutos para cada um não é nada. Mas foi. Mas já? Exclamávamos frustrados ao final de cada fala. Os minutos foram severamente limitados, mas há no tempo, inevitavelmente, sua serventia: nós, estranhos, estrangeiros na ilha, tivemos a chance de escutar o outro no seu espremido instante cronológico.
Quem são essas pessoas todas? Marta Mestre; a curadora brasileira, era portuguesa (ou vice-versa). Tinha pois, outra noção sobre embarcações, sobre alteridade. Kamilla Nunes era a potência local, de uma energia insular. Paulo Miyada nos perseguiu com a tal ideia contagiante de dar o melhor de si. Santiago Navarro era o argentino, de Mar del Plata, que não é Punta de Leste, escritor , deixou o mar de lá e vive cá no mar do Rio de Janeiro. Júlio Leite parecia o mais silencioso, nos seus 20 minutos, porém, dizem que falou 60, e o fez de modo tão calado que ninguém se deu conta, falava muito bem com livros e páginas. Gabriela Motta foi minha amiga de quarto, não sei quanta intimidade se pode trocar com uma pessoa estranha e para aproveitar fizemos o possível para usufruir cada segundo de assuntos densos, íntimos, desses que não se compartilha com estranhos. Andreza Gomes veio através de um edital aberto, foi doce, amável e inspiradora sua companhia. Beatriz Lemos sabia bem sobre redes e lastros, muito pertinente. e Fernando Boppré deu o prumo. Comigo eram dez. Dez jeitos
O dia 6 era lazer: o barco, claro, uma sutileza da ilha. A música era alta. Pedimos silêncio, o mar precisava falar conosco. A ilha de Anhato-mirim era um presente, o céu estava de um azul indescritível, o sol brilhava e a Fortaleza firme e sólida era banhada pela lua semi-transparente. Caminhávamos explorando o novo território: a ilha noutra ilha. Os 2 dias que seguiam eram àqueles de definição sobre as ações que teríamos que articular em 4 cidades diferentes de Santa Catarina. O tempo novamente se espremia. Mas o balançar do barco já havia ocupado nossos imaginários, assim como a experiência de não apenas estar juntos, mas pensar juntos a noção de deslocamento em grupo, síndrome da trupe.
Maria Monteiro
Ações Curatoriais — 34
Assim aconteceu: vamos trazer as 4 cidades para a ilha dentro da ilha.
teriormente aos outros, poucos recordavam suas respostas, que foram dadas com tanto entusiasmo.
Nasceu o Congresso Extraordinário da Fortaleza de Anhato-mirim. No dia propício, a ilha encantada fez a chuva cair forte no mar.
Penso que esse fenômeno é como a ilha (a outra). São meros recursos que usamos para enfrentar o outro e seus desejos.
Antes disso voltamos cada um para suas solitárias casas, ligados por um laço que o tempo não explica, esperando a hora de regressar.
No fim, nada resta além da esfumaçada memória dos momentos compartilhados, do tempo poético que adquiriu forma elástica e infinita.
Chegou o dia do Congresso e nosso encontro com mais uma dezena de participantes, foi no “restaurante de tainha”. Extraordinário?
Sem dúvida, escolheríamos todos novamente uma semana, dez minutos, um ano juntos refletidos no espelho do outro, sem esperar nenhuma espécie tangível de retorno.
Como chovia, todos vestiam capas de chuva, sacos plásticos nos pés e abafadores de ruído nos ouvidos. Que imagem inesquecível. Tudo de uma estranheza confortavelmente familiar. O resto é história. Durante nossos 10.080 minutos totais de vivência, falamos muito sobre modos de agir e pensar: traços de personalidade, infância e mapa astral pareciam ser determinantes. A brincadeira era assim: se pudéssemos escolher qualquer pessoa, de qualquer tempo, com quem passar dez minutos, uma semana, um ano, quem seria? Não consigo agora lembrar de nenhuma das respostas. Nem da minha. Curioso que ao perguntar pos-
Era véspera de não partir nunca.
Fernando Boppré
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Da Barra do Sambaqui à Ilha de Anhatomirim nas frias águas do Canal Norte da Ilha de Santa Catarina A partida – Baía que é canal – Barra norte – Felicíssima posição hidrográfica – Sistema triangular de defesa – Porto seguro – Agrofloresta por George Anson – Baterias, trincheiras, fortes e fortalezas – Sobre o fascínio rodoviário e aéreo – A disputa entre portugueses e espanhóis – Anhato-mirim por Virgilio Varzea – A imagem de Duperrey – Muito mar
A Congregação zarparia por volta das 11h da manhã em três escunas. Com o sol a estibordo, o vento, provavelmente, sopraria em quadrante nordeste, o mais comum nessa época do ano, o outono austral. O ponto de partida, a Barra do Sambaqui, na Ilha de Santa Catarina1. Destino: Ilha de Anhato-mirim, pertencente ao município de Governador Celso Ramos. A distância percorrida, cerca de 2,5 milhas náuticas; a velocidade de cruzeiro, 9 nós. A paisagem seria avistada com o corpo e os olhos a aproximadamente 17 km/h. Um cinema às avessas: corpo movente, imagens cadentes. Costuma-se chamar, ordinariamente, a porção de água que corre, em paralelo, a separar a Ilha de Santa Catarina do continente, de baías norte e sul. Preciso seria denominálas canais. Baías são fechadas, possuindo apenas uma entrada por mar. Canais são abertos nas extremidades. No caso da Ilha de Santa Catarina, as barras2 que desenham as entradas para os canais norte e sul são generosas à marujada. Sobretudo a
setentrional3 onde se situa a Ilha de Anhato-mirim. A barra norte, fácil de fundear, tem “grande número de ancoradouros abrigados e fundos, oferecendo entrada absolutamente franca a todos os navios, ainda os de mais alto bordo, mesmo de noite e com as maiores borrascas”, escreveu em 1900 o marinheiro e marinhista Virgilio Varzea, o dito “Herman Melville tropical”, em seu livro “Santa Catarina – A Ilha”. Nela, José da Silva Paes fez construir três fortalezas e desenhou assim o sistema triangular de defesa marítima da Ilha de Santa Catarina, atuante até a Segunda Guerra Mundial. Compunham-no a Fortaleza de Santa Cruz de Anhato-mirim e a de São José da Ponta Grossa (na atual praia do Forte) que tinham à retaguarda a de Santo Antônio (na ilhota de Ratones Grande). Importante ressaltar a função estratégica da Ilha de Santa Catarina em tempos das grandes navega-
Fernando Boppré
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Fernando Boppré
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ções. Encontrá-la era, bem dizer, uma graça de Nossa Senhora dos Navegantes. É o que diz, implicitamente, o Almirante Proença, em idos do século 19: “Todas as embarcações, pois, mesmo as que se acham em grande distância, correm a abrigar-se no ancoradouro da barra do norte de Santa Catarina, sempre pronto a recebê-las, debaixo de qualquer tempo, a qualquer hora, e em quaisquer circunstâncias que sejam. Que sensação agradável, que prazer compensador não é aquele que sente o coração do marinheiro, quando, tendo consumido dias e noites na luta titânica dos elementos desencadeados, avista aquele alteroso Arvoredo, as altas cumiadas do Ribeirão e do Cambirela, e, fazendo direta rota, com suma confiança, para o imenso claro que se lhe apresenta, vai vendo aquelas montanhas se lhe crescerem, aquelas ilhotas se lhe aproximarem, aquele mar encravado substituindo o mar tempestuoso, e depois, os habitantes pelas praias, as plantações espalhadas pelos morros, e afinal, o abrigo, o ambicionado abrigo, sonho do seu navio já meio desmantelado, da sua equipagem já meio morta de fadiga! Nos ancoradouros dos Ratones, de Sambaqui, das Caieiras, do Saco de São Miguel, da Praia de Fora, dos Barreiros, da Ponta do Leal, enfim, do Desterro, tudo sorri ao marinheiro! Uma vez reconhecida a terra, pelo alteroso da Ilha, pela posição do Arvoredo e seu farol, o ingresso em Santa Catarina é infalível, completamente
infalível.... Inúmeros são os navios, e inúmeras as vidas que têm sido salvas, mediante a felicíssima posição hidrográfica de Santa Catarina, sem dúvida admissível uma das melhores do mundo”.
Além disto, há aqui em grande abundância duas outras produções de um uso infinito nos navios, a saber, as cebolas e as batatas”.
na caiu após a investida da esquadra (a maior que já se viu cruzar o Atlântico Sul desde então) comandada por D. Pedro de Cevallos, na ocasião, governador de Buenos Aires...
O intenso fluxo de estrangeiros que atingiam suas praias fez com que a Ilha de Santa Catarina fosse guarnecida desde as bordas. Havia uma quantidade considerável de baterias, trincheiras, fortes e fortalezas: aproximadamente trinta. A maioria delas desapareceram ante ao fascínio rodoviário e aéreo que tomou conta da gente moderna e dos estados nacionais4. Em Florianópolis, ao mar restou o extrativismo (a pesca, a maricultura), o lazer e o turismo. O porto há muito mudou de endereço. Nem posta restante chega aqui.
Nessa invasão não houve morte, drama algum. Os portugueses que guarneciam a Ilha de Santa Catarina debandaram continente afora. Ou se entregaram sem disparar tiro sequer. As ações militares navais daqueles tempos tinham algo de cena teatral – o que nos causa certa inveja, sem dúvida.
Além disso, a Ilha de Santa Catarina é um dos últimos portos seguros entre o Rio de Janeiro e o Rio da Prata, caminho quase obrigatório para descanso, aguada e reabastecimento de víveres. Sobre este último quesito, a fertilidade da terra e a quantidade de alimentos (sobretudo a laranja que, em tempos de escorbuto, servia de comida e remédio) era sempre anotada com certo espanto pelos viajantes que nela aportavam, como o inglês George Anson, em 1740-41. Observe-se a descrição muito próxima ao que hoje se chama de agrofloresta: “A terra de Santa Catarina é muito fértil e produz quase por si mesma variadas espécies de frutos. Está coberta de uma floresta de árvores sempre verdes, que, pela fertilidade do solo, são de tal maneira entremeadas de sarças, espinheiros e arbustos, que o todo forma um conjunto impossível de atravessar, a menos que se torne algum caminho que os habitantes fizeram para sua comodidade. Os frutos e as plantas próprias de outros países crescem aqui quase que sem cultura, e em grande quantidade, de maneira que não faltam nunca os abacaxis, os pêssegos, as uvas, as laranjas, os limões, as limas, os melões, os abricós, nem as bananas.
Mas, voltando ao canal norte, rota que a Congregação cobriria no sentido sudeste-noroeste. Ele é tão aberto que por ali mesmo, há 237 anos, os espanhóis tomaram de assalto a Ilha de Santa Catarina. Razões eles tinham: o Tratado de Tordesilhas (1494), aquele que dividiu o Novo Mundo entre lusos e hispânicos, havia sido atropelado primeiro pelos portugueses. Eles tiveram a petulância de fundarem a Colônia do Sacramento em meio ao território espanhol, bem nas entranhas do rico Rio da Prata, em frente a Buenos Aires... Vai saber se desejoso de vingança ou apenas soldado leal à Corte Espanhola, o fato é que a Ilha de Santa Catari-
A coisa seria decidida, menos de um ano depois, no tapetão. Melhor dizendo, nas salas atapetadas, mobiliadas com homens brancos e bem alimentados do corpo diplomático ibérico. O Tratado de Santo Ildelfonso, em 1778, devolveria a Ilha aos portugueses que, por sua vez, devolveriam a Colônia do Sacramento aos espanhóis. Realmente, ambos os lados tinham razão: o que estava em jogo não merecia tiro, facada ou impropério qualquer. Era troca de figurinhas ou coisa assim. Meninos medindo o tamanho de seus respectivos pintos. Que o valham! Por fim, cabe descrever o destino da Congregação, a Fortaleza de Santa Cruz da Ilha de Anhato-mirim. Para tanto, tomemos de empréstimo novamente os olhos costeiros de Virgílio Várzea: “A ilhota é alta e rochosa, coberta aqui e ali de curta vegetação. O forte tem as suas muralhas voltadas para a barra e ocupa
Fernando Boppré
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Fernando Boppré
a bem dizer o perímetro inteiro da ilhota, com os seus quartéis, casa do comando, caso dos oficiais e outras, todas encerradas na parte inacessível das rochas e tendo somente um grande portão de entrada, que desce por uma ampla escadaria de pedra até a pequenina praia ao sul, onde há um cais de desembarque”.
próxima àquela que o comandante da corveta Coquille, Louis-Isidore Duperrey, registrou em seu diário em 1822: “Penetra-se nesse forte por um pórtico notável pelo seu estilo gótico e pela sua antiguidade, depois de haver subido uma centena de degraus onde enormes barbatanas de baleias estão postas à guisa de corrimão”.
destino do Congresso... Alguns movimentos reivindicam
Em tempos da disputa entre portugueses e espanhóis, era a maior e mais bem guarnecida do Sul do Brasil. A construção se iniciara em 1739, servindo de sede e casa para o primeiro governador da Província de Santa Catarina, o engenheiro militar Brigadeiro José da Silva Paes. O fato de estarem preservadas quase todas as edificações, incluindo o quartel da tropa, a casa da farinha, o paiol, as escadarias, os canhões, dentre outros, faz ver que ali a engenharia militar lusitana atingia um de seus pontos áureos. Cada construção assentada sobre a topografia natural do terreno numa distribuição assimétrica e arritmíca que respeita às contingências geológicas e faz dela sua verdadeira força. A Congregação acessaria Anhatomirim pela face sul ao desembarcar em seu pequeno ancoradouro. Haveria de subir altos e numerosos degraus, estrategicamente construídos para dificultarem a chegada ao local, afinal, tratava-se de uma fortaleza. A vista que se teria, ao sopé da montanha de degraus – exceto as barbatanas de baleia, já consumidas pelo tempo – seria bem
a mudança de nome da cidade de Florianópolis. Dentre as sugestões se encontra o nome “Ondina”, a deusa dos mares, como Cruz e Sousa e Virgilio Várzea, escritores cá nascidos, faziam grafar a cidade em seus escritos.
2. Cabe dizer, nauticamente, que a barra, de modo geral, é realmente uma barra. Muitas delas, como a Barra Diabólica, entrada e saída da Lagoa dos Patos, entre Rio Grande e São José do Norte, no Rio Grande do Sul, eram conhecidas até o século 20 pelas impetuosas dificuldades
Seguindo o caminho até o local onde ocorreria a maior parte das atividades do Congresso, é possível que capivaras dessem o ar da graça. Esses grandes roedores (ratones?) abundam por ali. Ao observá-las, com o mar ao fundo, talvez alguém lembrasse verso italiano, de poeta que à beiramar viveu: “Muito mar. Nossos olhos já viram bastante de mar” (Cesare Pavese).
que inflingiam aos capitães e mesmo aos práticos mais experimentados.
3. A barra meridional é mais estreita, de mares revoltos. Não por acaso, lá, apenas uma Fortaleza, a de Nossa Senhora da Conceição de Araçatuba, vigia o oceano que se estende em direção ao Cabo Horn, esse sim violento e dificultoso à navegação.
4. Talvez a hipótese mais plausível para a explicação do abandono das fortalezas seja militar: quando os Estados Nacionais decidiram por bem guerrear mais por terra e por ar, as fortalezas da Ilha de Santa Catarina (e tantas
Notas
outras litorâneas) caíram em desuso. A prova disso é que hoje servem, majoritariamente, aos turistas. Nem a Mari-
** De acordo com Virgílio Varzea, pampeiro sujo é “como
nha as quer mais...
dizem os marítimos, trovoada e relâmpagos terríveis, chuva grossa, açoitadora, incessante e de alargar tudo”.
5. O mesmo fundara a Vila de São Pedro (atual cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul). E concebeu a vinda de
1. A Ilha de Santa Catarina é mais conhecida como Flo-
imigrantes açoreanos e madeirenses para a Ilha de Santa
rianópolis. Até 1894 a cidade tinha o nome de Desterro.
Catarina.
Chegado o republicanismo e o seu regime de violência instituída, passou a se chamar Florianópolis em homenagem a Floriano Peixoto, primeiro vice-presidente (1889-1891) e segundo presidente (1891-1894) da República Federativa do Brasil. O fato é que Floriano não desperta boas lembranças aos ditos florianopolitanos. Em 1894, durante a Revolta Federalista, o “Marechal de Ferro” autorizou o massacre de dezenas de pessoas, consideradas contrárias ao regime. A chacina promovida pelo Estado Brasileiro (mais uma...) ocorreu na Fortaleza de Santa Cruz do Anhatomirim,
Afinal, quando vamos ser sul-americanos?
Santiago G. Navarro
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de los modos colectivos de pensar y de ser hablados por esa lengua.
hecho de que para un brasileño no existe lengua más fácil de aprender que el español. Y sin embargo, un brasileño ilustrado nunca encontrará dificultades para aprender francés o inglés, ni para circunscribir su área de acción intelectual a un triángulo formado por Francia (ocasionalmente algún otro país europeo), Estados Unidos y el propio Brasil, cuya cultura, según el imaginario local, es tan rica que parecería poder autoabastecerse durante siglos sin precisar de otros intercambios.
Santiago G. Navarro
Cuando me vine a vivir a Brasil, a principios de 2011, traía un plan: difundir la cultura del resto de Latinoamérica. Tuve varias ideas al respecto, traté de ponerlas en práctica también como modo de ganar un dinero y empezar a instalarme en el país, pero fue más difícil de lo que me imaginaba. En parte, supuse, porque llevaría tiempo conocer a las personas que podrían ayudarme. La urgencia de conseguir trabajo y el laberinto burocrático en el que un residente extranjero está obligado a perderse al menos durante los primeros años, hicieron el resto. Y así, abandoné el plan. Temporariamente. Entre tanto, escuchaba a las personas hablar. Prestaba atención a las construcciones gramaticales, a los giros del lenguaje, a las entonaciones, a los acentos, y los memorizaba y reproducía a la primera ocasión. Además, leía. Leía y leo mucho en portugués. Al principio, sólo a autores brasileños, porque quería conocer tanto como me fuera posible la literatura que me acogía. Pero además, en ese momento, leer a Kawabata o a Dostoiesvsky
en una traducción que no fuese al español me hubiera parecido cómico, porque el portugués, para el restringido repertorio cultural con el que yo estaba condenado a enfrentar la diferencia local hasta tanto no la hiciera propia, me sonaba demasiado dulce o demasiado blando para el universo de problemas y de aspiraciones en el que podía estar sumido un personaje japonés o uno ruso. Sin embargo, en algún momento, leer rusos y japoneses en portugués empezó a no parecerme forzado. Como si las formalidades de la lengua se hubieran retraído del primer plano y les hubieran dejado lugar a las sensaciones de las que los textos se alimentaban. Como dejar de leer con las orejas. También escuchaba a las personas por lo que decían. Y al final, entre lo que decían y la manera en que lo decían, algo inesperado empezó a revelárseme: que podía oír también cómo el portugués de Brasil y su Weltanschauung hablaba a través de las personas. El privilegio de la extranjería, en estos casos, es poder reconocer lo que para un local es la parte invisible e inaudible de la estructura de la propia lengua y
Entre otras cosas, se hizo cada vez más evidente para mí que en la conversación de los brasileños todo lo más que se puede llegar a decir del resto de Latinoamérica son tres o cuatro clichés generales, y otros tres o cuatro especialmente dedicados a los “hermanos”, como si los únicos que pudiésemos aspirar a ese título fuéramos los argentinos. (Término, por otra parte, que nunca se pronuncia sin un dejo de ironía y una involuntaria sonrisa: hasta el tono de voz decae). Siempre que le preguntaba a mi interlocutor ocasional por qué creía que en Brasil no había interés por el otro lado de la frontera, saltaba automáticamente alguna de estas dos respuestas: el problema es la diferencia lingüística, el problema es la dimensión continental de Brasil. (Es verdad que también llegué a escuchar, de un aspirante fracasado a Itamaraty, una interminable exposición sobre la formación del Brasil moderno, que si bien explicaba por qué históricamente se había tendido a fortalecer la endogamia, por el otro sonaba también a una justificación, en el mismo to no de las dos respuestas estándar). En efecto, estas dos frases, lejos de explicar algo, reafirmaban inconscientemente el problema. Porque cae por su propio peso el
El latiguillo de la dimensión continental de Brasil, por su parte, siempre suena más a una negación del resto del continente real (aquello que en Brasil se conoce, justamente, como “Latinoamérica”) que a una afirmación de las propias riquezas y posibilidades del país. Del mismo modo que el elogio a la heterogeneidad brasileña siempre es un poco la manera que tiene el Sudeste de disculparse de su predominio sobre el “interior”, él sí heterogéneo respecto del eje cosmopolita Rio-San Pablo. El problema, como por fin empecé a entender gracias a una crónica de Paulo Mendes Campos, era más profundo que la habitual indiferencia del colonizado frente a lo que no proviniese de las fuentes del colonizador. (Condición que, desde luego, compartimos todos de México para el Sur). El problema era el desprecio activo de Brasil por lo latinoamericano.
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Mendes Campos escribe “Afinal somos sul-americanos” como muy temprano en 1969. Ninguna de las ediciones que conozco aportan la fecha de publicación de esa crónica, pero ella misma da una pista: el autor inicialmente se había propuesto hablar de “o excelente romance que é Cem anos de solidão” (publicada por primera vez en Buenos Aires en 1969), pero había terminado refiriéndose a la negación de la América hispanohablante en Brasil. ¿Por qué? Se desprende del propio texto que, para poder elogiar a un autor hispanoamericano en Brasil, antes hacía falta superar una no despreciable barrera de prejuicios.
de su dependencia de los ciclos económicos sostenidos por la producción exhaustiva de materias primas requeridas por los países que controlaban el mercado mundial, de sus poblaciones mestizas (¿Brasil más mestizo que Colombia, que Cuba, que Venezuela?) y de su diferente posición relativa frente a la modernidad y la posmodernidad europeas. ¿Quién sabe, en Brasil, que el ensayo de Borges “El escritor argentino y la tradición” contiene, en esencia, el mismo planteo del Manifesto Antropófago, y que le es contemporáneo?
simplemente consolida circuitos de recepción distanciados de los parámetros de sofisticación de las elites. ¿Y cuál podría ser el círculo al que alude Mendes Campos sino el de la modernidad ipanemense?). Mucho más exquisito hubiera sido leer –y esto teniendo en cuenta apenas a los escritores chilenos– a Augusto D’Halmar (autor de Pasión y muerte del Cura Deusto, la primera novela de asunto homosexual del continente), José Donoso o Braulio Arenas.
mericanas. Sólo me pregunto si han sido recibidas de otra manera que como buenas mercancías de la oferta global, con el mismo mérito deslocalizado y neoexótico que las películas de Abbas Kiarostami o las novelas de Sandor Márai. (Roberto Bolaño, que inventó una épica contemporánea para el imaginario cultural latinoamericano y la transformó en eje de su obra, tal vez constituya una excepción). Pienso, entre tanto, que la lección geopolítica que podría comportar una recepción madura de la increíble película paraguaya 7 cajas, es que para muchos actuales aspirantes a realizadores, mejor opción que Rio o San Pablo para estudiar cine podría ser Asunción.
Si después del modernismo, Brasil por fin había aceptado ser brasileño y no una extensión del parnasianismo (francés) en literatura y del academicismo (también francés) en pintura, después del disco de João Gilberto con Stan Getz, del de Tom Jobim con Frank Sinatra y, sobre todo, del tricampeonato mundial de fútbol, Brasil estaba a la altura de las grandes potencias y, como dice Mendes Campos, “prontinho para embasbacar o mundo com o Brazilian Way of Life”. Pero para poder despegar mejor, Brasil creyó necesario olvidarse de su matriz latinoamericana. No digo de su identidad, sino de su matriz. De su matriz colonial, de sus núcleos de poder reconcentrado y de su pobreza dilatada,
Dice Mendes Campos: “Na literatura, a esnobação brasileira chegou à sublimidade do grotesco. Para desprezar melhor e com mais força os escritores hispano-americanos, deixávamos de lê-los, não lhe decorávamos os nomes. [...] Quem lia escritores sul-americanos passava por picareta, chato ou maníaco. Sei por experiência. Como, através de meu pai, acabei me interessando um pouco pelas obras deles, fiquei suspeito entre amigos e companheiros. Era indício de mau gosto ou birutice gostar dos sul-americanos, a não ser Pablo Neruda”. La mención a Neruda no deja de ser curiosa, si se tiene en cuenta que varios de sus poemas ocupan desde hace décadas un puesto meritorio dentro del repertorio kitsch latinoamericano. (Desde luego, la apropiación pop de su obra no implica el rebajamiento de su calidad:
Quizás el texto de Mendes Campos era importante para mí por la fuerza del testimonio. Llegué a preguntarme, de cualquier manera, qué método de relevamiento crearía o aplicaría un estudio sociológico que se propusiese analizar la extensión territorial de esa actitud despectiva dentro del campo cultural brasileño; por qué vías se reproduciría, por qué no generaría resistencias (¿o las generó?). Al final, si “um professor de literatura hispano-americana nos parecia sempre o primo pobre do corpo docente”, no había nada que hacer: quien pensase lo contrario se quedaba hablando solo. Es esa la sensación que tengo en Brasil. Con la diferencia a favor de que el desprecio activo de los años sesenta perdió asidero conceptual y consenso afectivo, reduciéndose a simple apatía. No obstante, esa indiferencia parecería haber sido sacudida recientemente, con la distribución local de buenas obras hispanoa-
Yo me acuerdo bien de cuándo fue que caí de rodillas ante la cultura brasileña. La primera vez, durante los tres días que pasé estudiando, supongo que hipnotizado, las claves del sistema que aplicaba un historiador del arte brasileño para interpretar obras de épocas y regiones del mundo muy diversas (Paulo Herkenhoff apud Oswald de Andrade en la primera Bienal de San Pablo –fue en 1998– a la que asistí en mi vida); y la segunda, la noche de lluvia torrencial de 2004 que pasé en vela en una casa en el morro de Santa Teresa, en Rio de Janeiro, leyendo Dom Casmurro. Que la historia del arte pudiera ser reescrita en Brasil y que en Brasil pudiese escribirse un clásico de tamaña modernidad, redefinieron mi manera no sólo de entender Brasil, sino de
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posicionarme como latinoamericano. ¿Pero cómo hablarle a un brasileño de todo lo que se pierde por no ver más allá de las fronteras del sub continente Brasil, y de todo lo que podría hacer y de todo en lo que podría transformarse si las atravesara? ¿Contándole, por ejemplo, que no existe en todo el imaginario brasileño nada comparable al horror y la fascinación que transmite la selva amazónica de La vorágine, del colombiano José Eustaquio Rivera, una de las mayores novelas de la literatura latinoamericana (incluyendo, desde luego, la brasileña); y que tendría más sentido, para poder pensar lo amazónico, poner en primer lugar precisamente lo amazónico, de manera de reconocer las realidades comunes y las diferencias entre Belém e Iquitos antes que la genérica y antepuesta realidad abstracta de un Brasil percibido como sinónimo excluyente de amazoneidad?
tanto habérselos repetido? ¿O informándole de la existencia de una historia del conceptualismo latinoamericano que comienza con los poemas gráficos del tutor de Simón Bolívar y posible precursor de Mallarmé, Simón Rodríguez, y que afirma que la performatividad de los operativos del grupo guerrillero Tupamaros inspiró a los conceptualistas uruguayos, entre ellos el propio Luis Camnitzer, autor del libro referido, Didáctica de la liberación? ¿O que el modelo museológico más osado, complejo y de mayor virulencia crítica del planeta probablemente se encuentre en Lima, aunque lo de “encontrarse” sea un decir, porque una de las características del Micromuseo de Gustavo Buntinx y colectivo es que, por propia decisión, carece de sede fija, porque la propia creación carece de ella?
partimos a bordo de balões imaginários. Estamos aprendendo a nossa geografia continental: assombrados com a semelhança fraterna que antes não queríamos ver”. Cerca de cuarenta años después, ese final, ya que no se hizo realidad, podría servir como materia de meditación. Al final, quizás no se trate de torcer el rumbo, sino de suscitar un sutil pero indispensable movimiento triple: 1) reconsiderar los lugares comunes de la diferencia lingüística y la dimensión continental de un país en realidad subcontinental; 2) revisar los parámetros culturales que uno utiliza normalmente y cuestionarlos con material proveniente del resto de Latinoamérica y, desde luego, también del resto del mundo; y 3) atravesar físicamente la frontera, con frecuencia y con sed.
¿O que la idea de ready made fue definitivamente afectada por la observación circunspecta que hizo su autor de las aguas del Río de la Plata y de las técnicas de preparación de un asado, así como por la conversación erótica que mantuvo con la artista brasileña Maria Martins, según el libro (Maria con Marcel. Duchamp en los trópicos) de un argentino-catarinense llamado Raúl Antelo?
Porque ni el Rey Salomón dejó en herencia riquezas como las que en la América llamada hispana les aguardan a los brasileños de buena voluntad.
¿Proponiéndole la lectura de la tetralogía del chileno Manuel Rojas que comienza con Hijo de ladrón, cuyos honrados vagabundos anarquistas recorren la faja costera chilena, borrachos y hambrientos, solidarizándose con el cosmos y con los hombres; y que serían justamente esos olvidados del mundo quienes podrían permitir al lector brasileño contemporáneo ampliar y cuestionar su visión del nomadismo, ahora que la filosofía de Deleuze y Guattari se redujo a un repertorio de palabras gastadas y gestos automáticos de
Mendes Campos terminaba su crónica así: “Pois é. De repente, estamos descobrindo que somos sul-americanos. Estamos caindo onde sempre estivemos, de onde só
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Prólogo — Sobre caminhos enviesados no qual cruzamse experiências andantes e sentantes Gabriela Motta
O que o Salão de Abril, o projeto Ações Curatoriais e o livro Dom Quixote de La Mancha tem em comum? Mesmo quem nunca leu as aventuras do destemido cavaleiro de Cervantes, sabe de sua “loucura”. Capaz de confundir moinhos de vento com gigantes, Dom Quixote é incansável na sua missão e conta sempre com o apoio do fiel Sancho Pança, que entra na aventura por acreditar que será recompensado com o título de Governador da primeira ilha que conquistarem. Entre o idealismo de um e o pragmatismo do outro, constrói-se a história na qual ambos partilham o que cada um tem de melhor, sonhos e tenência. É por essa leitura sobre competências, compromissos e liberdade que insisto em entrelaçar o romance com os projetos citados.
Parte I — no qual apresento a desventura do Salão de Abril e aponto a permanente reincidência de equívocos institucionais em relação a pagamento de artistas e clareza de editais. Em janeiro de 2014 fui convidada para assumir a seleção e curadoria da 65a edição do Salão de Abril. Aceitei o convite ainda antes de ler o edital, por considerar uma boa possibilidade de trabalho e um bom cachê tanto para mim quanto para os artistas. Os valores combinados foram: R$10.000,00 para seleção e curadoria do salão e R$3.000,00 para cada artista selecionado, mais três prêmios de R$15.000,00 para três artistas premiados. O salão, como explícito no edital, não custeava o transporte de obras nem viagem dos artistas para a exposição e pedia muitos documentos daqueles selecionados. Tudo bem, aqueles que se inscreveram estavam cientes disso e, ao inscreverem-se, indicavam aceitar estas condições. A reunião de seleção aconteceu em março de 2014 em dois dias de trabalho insano, pois o Salão recebeu mais de 600 inscrições. O edital tinha vários problemas, como todos, normal. Junto com a comissão de seleção, formada por Ana Cecília Soares e Herbert Rolim, redigi um documento e encaminhei a Secultfor com sugestões e propostas para os
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próximos editais. A montagem do Salão de Abril correu muito bem, com uma excelente equipe do CCBNB, local da exposição. Na ocasião, ainda não havíamos recebido nossos cachês, artistas e curadoria. Mesmo assim, alguns artistas viajaram a Fortaleza para montagem de suas obras ou para realizar a performance com a qual haviam sido selecionados. O processo todo, desde o lançamento do edital até a abertura de exposição, foi bastante rápido – as inscrições abriram dia 20/02/2014 e dia 15/04/2014 a exposição estava aberta ao público. Ou seja, atribuíamos a isso, a rapidez de todo o processo do Salão, a lentidão do pagamento de cachês. Okey. Chato, mas okey.
advogado para tratar legalmente do assunto. Foi aí que novamente vimos o quanto ainda existem instituições que alegam a suposta visibilidade que os artistas teriam ao participarem de suas programações como algo com o qual deveriam se satisfazer, contentar. Recebemos como resposta a frase sinto muito pelo fato desse atraso financeiro ter apagado o significado e a importância do fato de jovens artistas terem sido selecionados p/ participar de uma dos salões de arte mais tradicionais do país.
Abril seguiu seu curso, emails foram mandados, recebemos respostas, ninguém sabia dizer quando o pagamento seria feito, devíamos esperar. No dia 07/05 enviei nova mensagem cobrando o pagamento de todos e indicando que a situação urgia ser resolvida, que o próximo passo seria fazermos deste um debate público. Logo recebi a feliz (?) resposta de que sim, a Secultfor havia conseguido a liberação apenas do meu pagamento, através da empresa VC Eventos. Mandei documentos, dados, e finalmente recebi no dia 26/05. A exposição terminou dia 31/05, quando outra vez enviei uma mensagem para a secretaria de cultura de Fortaleza cobrando o pagamento dos artistas. Nesta ocasião, expus que pretendíamos consultar algum
Por favor, alguém me diga qual o significado, qual a importância de participarmos como curadores ou como artistas de qualquer exposição? Muitos, certamente, mas todos significados possíveis estarão condicionados a qualidade do nosso trabalho, do quanto dermos o melhor de nós mesmos ao nos envolvermos com a instituição A, B ou C. As instituições em si, obviamente, tem a sua importância, mas esta é incapaz de validar por muito tempo um artista ou um curador se este não for em si comprometido com o seu fazer. Ou seja, a questão é complexa, cada caso é um caso, mas o certo é que a relação não é unilateral e sim uma via dupla em que artistas e instituições precisam um do outro e se beneficiam mutuamente através da qualidade e seriedade que investem em si mesmos. Bem, depois de todo esse blá, blá, blá extremamente desgastante, os artistas receberam um email avi-
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sando-os que a partir do dia 11/06 a Secultfor iniciaria os pagamentos. Me pergunto por quê tudo isso foi necessário? Por quê precisamos nos expor com mensagens nada gentis, com exigências tão elementares como ser pago pelo trabalho? Se de fato o pagamento sair nesta data, não terá sido mesmo um tempo muito longo de espera, três meses. Mas será que teria saído sem a pressão que fizemos? Será que ao alegarmos consulta jurídica conseguimos acelerar um processo sem data para ser concluído? Não sei. O fato é que tudo isso poderia ser evitado de pelo menos duas formas: constando no edital que a prefeitura poderia levar meses para pagar, com emails explicando detalhadamente o processo de liberação de verba e assumindo a responsabilidade e desconforto da situação ou remunerando os envolvidos durante o período de exposição.
é de R$135.000,00. Quanto vale o salão de abril? Entender-se como valor em si é o primeiro equívoco que qualquer instituição ou pessoa pode cometer ao relacionar-se com o outro. Valemos o quanto nos envolvemos em sanar as arestas de qualquer processo, em darmos o nosso melhor de acordo com o que tratamos fazer. E isso nem quer dizer conseguir fazer, mas tentar com todas as forças, sendo claros e explícitos quanto às adversidades inerentes aos diferentes papéis.
envolvidos no projeto. E posso dizer, parafraseando um dos bordões da Kamilla, foi incrível. Nesse período, discutimos práticas curatoriais, conhecemos artistas e instituições locais, relatamos experiências individuais, trocamos muito, falamos quase sem parar, ouvimos o tempo todo e ainda planejamos uma atividade, o Congresso Extraordinário da Fortaleza de Anhato-Mirim. Chegamos nessa proposta do Congresso depois de muito debatermos sobre o que gostaríamos de compartilhar? Como poderíamos nos relacionar com pessoas de outras cidades de Santa Catarina? O que seria interessante propor como “ação” resultante desse encontro?
velmente estas questões.
Penso que uma das razões disso ainda ocorrer envolve justamente a noção de valor, normalmente reduzida a ideia de custo. Porque valor e custo são tidos como sinônimos no âmbito burocrático que engolfa essas instituições. Custo é o que todos temos para sobreviver, valor é o quanto somos engajados e respeitamos aquilo que escolhemos fazer para viver e para oferecer ao outro. Seja como artistas, curadores, mecânicos, diaristas, palhaços, políticos. Quanto custa o salão de Abril? Na internet somos informados que o orçamento desta edição
Parte II — em que narro os momentos que antecedem a aventura do Ações Curatoriais e seus desdobramentos alucinantes Em abril, enquanto me preparava para a montagem deste Salão – exposição que chamei de Alerta Laranja! enfatizando o caráter explicitamente político de boa parte dos trabalhos selecionados – imaginava também como seria a minha participação no projeto Ações Curatoriais. Este programa, idealizado pelas curadoras Bia Lemos, Kamilla Nunes e Marta Mestre, propunha que dez curadores participassem de uma residência de oito dias em Florianópolis, no final de abril. Viajei bastante apreensiva para a imersão, pois conhecia apenas dois dos outros nove curadores
Assim, a partir dessas e de outras perguntas e da certeza de que queríamos trabalhar juntos, sem nos dividirmos em pequenos grupos, decidimos todos que não faríamos nem exposição, nem debate, nem palestra, nem relato, nem perguntas. A nossa proposta era organizar um encontro reunindo pessoas de quatro cidades de Santa Catarina na Fortaleza de Anhato-Mirim, uma das ilhas que visitamos no período da residência. Este encontro seria basicamente vivenciarmos juntos, curadores e convidados, deslocamentos literais – vir por terra ou pelo ar até Florianópolis e depois todos pelo mar até a ilha – e deslocamentos metafóricos – através de propostas de cinco artistas cujas pesquisas e práticas discutem sensi-
Durante o mês de maio produzimos este encontro – convites aos artistas e às pessoas das cidades, locação de ônibus para o transporte dessas pessoas, locação da escuna, taxa de uso da ilha, reserva de hotéis, compra de passagens aéreas, capas de chuva, alimentação, produção das propostas dos artistas e, inclusive, plano B, caso o tempo meteorológico nos impedisse de navegar. Dia 08/06 estávamos todos, curadores, artistas e cerca de 100 pessoas trazidas das cidades de Joinville, Criciúma, Itajaí e Jaraguá do Sul, reunidos na beira da praia da Joaquina para o início do congresso. Choveu, choveu muito durante todo aquele final de semana. O plano B foi acionado, as capas de chuva foram totalmente usadas e o Congresso Extraordinário da Fortaleza de Anhato-Mirim aconteceu na capital-ilha de Santa Catarina. Não sangramos o mar, mas fomos encharcados pela chuva e pela certeza de que estávamos fazendo o que de melhor poderíamos fazer. Carlos Asp, Jorge Menna Barreto, Nelson Felix, Rafael RG e Raquel Stolff foram os artistas que participaram desta ação. Foram convidados porque estavam conosco durante o período da residência, através das conversas e discussões que tivemos sobre arte e sobre o que acreditamos. E juntos, artistas, curadores e nosso público
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carinhosamente convidado, passamos um dia inteiro convivendo, trocando experiências. Provamos os sucos feitos pelo Jorge a partir de plantas comestíveis colhidas na Fortaleza de Anhato-Mirim, caminhamos sob a chuva na areia da Joaquina com os abafadores de ruídos da Raquel, ouvimos o Asp ler o mapa astral do encontro, assistimos o Rafael contracenar com o seu passado, acompanhamos o Nelson derivando sobre ilhas Caymmianas. Cada curador recebeu R$ 2.700,00 reais, estadia e alimentação no período em que ficamos em Santa Catarina. Cada artista que participou do Congresso, recebeu R$1.000,00, estadia e alimentação. Produtores, colaboradores, artistas, restaurantes, hotéis, esta publicação, os curadores, viagens, locação de espaço, produção de sucos específicos do artista Jorge Menna Barreto, performance do artista Rafael RG, absolutamente tudo que envolveu este projeto foi pago pelo, claro, próprio projeto. Custo total do Ações Curatorias: R$100.000,00. Valor? Incalculável.
Epílogo — uma conclusão que reitera a apresentação sobre partilhas, compromisso e sonho de todos os cavaleiros e escudeiros Quixote cai no mundo de tanto ler romances de cavalaria. A arte o inebria a tal ponto de sandice. Sancho não sabe ler, mas é inebriado também pela eloquência do cavaleiro e suas promessas de recompensas. Ambos são leais aos seus propósitos e vivem intensamente as aventuras e desventuras que se lhes apresentam. Mesmo movidos por propósitos diferentes, entendem-se dependentes de suas capacidades complementares. Assim, Sancho transforma-se também em um sonhador, ao mesmo tempo fiel e desconfiado do seu materialismo. O encanto, a magia das coisas, não são planejadas ou construídas, acontecem surpreendendo-nos. Claro que é preciso preparar o terreno, estar atento para criar as condições para que isso ocorra. Creio – e uso este verbo de fé – que arte é isto, a razão e a loucura abraçadas, uma alimentando-se da outra, já que isoladas não conseguem a fricção que produz a faísca da epifania. E se é sobre, com, através da arte que queremos viver – artistas, curadores, produtores, instituições – que a gente diariamente possa dar o melhor de nos mesmos.
A.G. x A.V. – Je avec Agnès Varda
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deixam um pouco cansada... voltando ao que eu estava falando; foi neste passeio com curadores, artistas e amigos que tivemos as principais ideias para o que chamamos de congresso extraordinário da fortaleza de anhato-mirim. como vivemos uma experiência incrível durante o passeio, ficamos pensando nas ampliações disso: e se isso acontecesse durante um dia assim, com mais de cem pessoas, dois barcos (...) A.V.: e porque não me convidaram?! A.G.: não foi por falta de vontade, mas de tempo e orçamento... enfim, mas agora você está aqui... A.V.: oui, oui... e como foi este congress extraordinaire ? A.G.: inusitado, eu diria... você já morou em ilhas e sabe que existem coisas que vão além do que se programa e a natureza é quem acaba batendo o martelo para sim e para não... no fim de semana que seria o congresso o tempo estava bastante nebuloso e não fosse só isso, o “vento da terra” resolveu mostrar as suas forças nos impedindo de retornar a esta ilha. acabamos fazendo o evento na ilha primeira, aquela que inclusive já recebeu o nome de desterro. A.V.: parece-me interessante todo este evento, mas confesso que não compreendo bem onde eu entro nessa história... A.G.: pelo começo Agnès, pelo começo... A.V.: e onde é o começo? como designá-lo ?
A.G.: não consigo designá-lo,
Andreza Gomes
“ela está atrasada, deve ser o mar agitado” suponho eu enquanto a espero na marina do sambaqui, conforme combinamos para pegar o barco e irmos em direção a outra ilha. ela chega depois de meia hora, já a bordo do barco e diz: como sou mais velha, pedi para que viessem me buscar onde eu estava. cogitei a possibilidade do barco ter atravessado o atlântico para buscá-la na bélgica, um tanto imprevisível e irreal, mas se tratando de Agnès varda, pode ser que sim. eu entro a bordo do pequeno barco de pescador, o capitão é um manezinho, um nativo fidedigno da ilha que escuta no seu radinho as notícias locais e resmunga qualquer coisa que não consigo entender bem algo sobre o avaí ( time de futebol local). Agnès me olha e movimenta a cabeça para frente como quem quer dizer “ o que ele está falando” e eu respondo levantando os ombros como quem dá a entender “je ne sais pas”. saímos de florianópolis e agora estamos em direção a ilha de anhato-mirim. Agnès concordou em fazer esta entrevista se, no entanto, esta ocorresse em movimento, entre-lugares, des-locando-(de)si; então eu su-
geri o mar, ela disse “incroyable”. “podemos continuar conversando quando estamos em terra, porém tais informações não poderão ser registradas” - d’accord, eu digo. como eu teria alguns minutos somente, peguei em seguida meu caderno com anotações e comecei a disparar as perguntas: (A.V.: Agnès Varda / A.G.: Andreza Gomes)
A.G: talvez você não saiba muito
bem porque está aqui, ou qual o motivo que a fez estar agora neste barco comigo; foi em uma residência de curadores que participei no outono deste ano. eu, juntamente com outros nove curadores ficamos 8 dias em imersão ali na praia de santo antônio, perto de onde tomamos o barco. nós fizemos este mesmo passeio que estamos fazendo agora... A.V.: oun, très bien, você é curadora? A.G.: sim, quero dizer, je ne sais... A.V.: artiste? A.G.: ...pas, aussi, est complexe... A.V.: mm, nem que sim nem não... entendo o que você quer dizer, na verdade ainda hoje me descubro tantas outras coisas A.G.: justamente, adjetivos me
ele é móvel, agora pare de fazer perguntas, porque senão isso vai se tornar uma entrevista as avessas... A.V.: (risos) A.G.: diante da dificuldade de demarcar um começo, nós o criamos, como estamos fazendo agora... e foi ali que nos encontramos, quando nós, os dez curadores, queríamos construir um começo de algo em comum, que não sabíamos bem ao certo o que, mas era uma vontade pulsante coletiva... A.V.: isso não é comum... A.G.: sim, é raro e delicado, porém é daí que surge o encontro A.V.: então foi no encontro de vocês de uma vontade comum -e (in)comum- que vocês me encontraram e foi de onde tudo começo... muito bem, já consigo dar partida a minha imaginação.... A.G.: é engraçado você falar de imaginação, porque se podemos falar do lugar que foi este encontro com você, seria ali... A.V.: na ilha? A.G.: na ilha dentro de nós A.V.: este barco está tomando um rumo interessante A.G.: é que vamos começar a entrar agora em mar aberto A.G.: qual é a diferença entre paisagem e praias para você? A.V.: não são uma mesma coisa? A.G.: eu não sei, mas em as praias de Agnes você diz que se abríssemos as pessoas encontraríamos paisagens, mas se abrissem você , encontrariam
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praias...
A.V.: quem ?! a Zgougou?! A.G.: não, outro, que sempre
não, mas podemos dizer que existe o semelhante, como duas esferas que se interceptam entre si- há o que se compartilha, que é de ambos, e há o que é individual, que os diferencia. A.G.: o que é semelhante é o que nos faz gerar encontros, e o que nos diferencia é o que nos faz gerar o começo, ou melhor, os começos A.V.: é por isso que é tão difícil marcar um começo A.G.: sem falar que geramos começos e encontros diversos e, porque não, simultâneos... A.V.: est complexe... A.G.: por isso para mim é difícil dizer que sou artista ou que sou curadora... A.V.: artista E curadora? A.G.: é um modo de ver, o modo do comum, compartilhado, interseccionado entre as duas esferas, mas e o restante que as diferenciam? A.V.: é importante que exista A.G.: ah sim, mas é difícil dizer as duas coisas ao mesmo tempo sem entrar numa fórmula matemática A.V.: do ponto de vista da razão, da lógica, quase impossível não chegar a esta equação de conjuntos... mas a imaginação pode ser um bom caminho A.G.: como uma outra grande esfera que engloba essas duas? A.V.: que por sua vez se encontra e se separa com outras esferas A.G.: não parece que estamos falando sempre de ilhas? A.V. ri: ilhas sempre me inspiram
entender apenas algumas palavras: ilha, abarcando, doze reais. olho para frente e lá se encontra o belo forte em ruínas. Agnès é a primeira a saltar do barco e segue na frente ansiosa para desbravar o lugar. de longe grita para mim: “se apresse que não temos todo tempo do mundo” ! logo eu que ficava contando as passadas do ponteiro, como o coelho da Alice, torcendo para que o relógio esquecesse das horas e que pudéssemos ficar ali até todas as perguntas se esgotarem. o que começa, termina alguma hora sem que nem um milésimo das perguntas tenham sido mencionadas. a memória ainda guarda os cheiros, as cores e som do mar com as gaivotas daquela tarde de sol. foi deste lugar da memória que comecei estas palavras. eu ainda não conheço Agnès varda pessoalmente, embora já a tenha encontrado inúmeras vezes nos meus pensamentos, na minha imaginação. consigo imaginar os seus trejeitos ao falar, o sotaque belga francês, até a sua pele um pouco enrugada. Agnès varda certamente esteve neste nosso encontro entre os curadores e com cada um inaugurou um começo de fantasias que nos moveu com nossas diferenças e semelhanças a criar um outro encontro, com mais pessoas, que por sua vez continua a encontrar com outros e porque não, talvez, com Agnès varda novamente.
A.V.: bem, é porque vivi grandes
memórias da minha vida em praias A.G.: eu sei, mas da maneira
que você disse parece ter uma diferença entre praias e paisagem... A.V.: tem para você? A.G.: o horizonte A.V. sorri: pode ser que dentro de você haja também praias A.G. sorri de volta: acho que sim... mas enfim, as suas praias ou as praias de Agnès, nos encantou; casava muito bem com a atmosfera em que estávamos... éramos quase uma trupe circense, só que de curadores, e tudo que queríamos era sair em caravana, num barco ou em um caminhão... A.V.: um caminhão? A.G.: é, mas isso requer mais tempo porque envolve outra situação, outros artistas e imaginários e isso me tomaria um tempo que não tenho... posso falar disso enquanto estivermos visitando anhatomirim... A.V.: você parece o coelho da Alice falando A.G.: prefiro ser uma raposa A.V.: mas porque uma raposa? A.G.: assunto número dois para ilha, tenho muitas coisas para perguntar e falar com você antes de falar do caminhão e da raposa... A.V.: mm...pode se tornar uma fábula isso A.G.: ou um roteiro, mas já que você está falando de animais tenho a dizer que tenho um gato igual ao seu...
aparece junto, preto com branco.. A.V.: sim ! sei, sei... qual era mesmo o nome dele? A.G.: tanto faz o nome, o gato que me interessa perguntar na verdade, é aquele que Chris marker representa, Guillaume en égypte ... eu o acho fantástico e se pudesse gostaria de sê-lo nesta entrevista, que na verdade está se tornando uma conversa... A.V.: não sei se entendi A.G.: bem, assim como Chris marker era o grande gato amarelo que a entrevistava, gostaria que eu fosse agora ele A.V.: você gostaria de ser Chris Marker? A.G.: não, queria ser o gato. A.V.: mas você não é uma raposa? A.G.: sou mas queria ser agora o gato amarelo que sempre a entrevista A.V.: e porquê? A.G.: porque isso me faz lembrar vários diálogos importantes entre um gato e um humano, como Alice através do espelho, assim como Derrida e o gato que o vê nu em o animal que logo sou A.V.: mas são encontros diferentes, um é a figura de uma menina com a figura de um gato e outro é Derrida, um ser, com seu gato, outro ser. A.G.: sim, eu sei da diferença, mas há algo em comum, não? ou Chris marker e o gato Guillaume en égypte não são um mesmo? A.V.: um mesmo todo possivelmente
terminando de dizer isso, o capitão nos interrompe e de novo resmunga algo no seu dialeto que me faz
Visto Bueno 2010 — 2014
Marta Mestre
Ações Curatoriais — 67
Marta Mestre
DELEGACIA DE POLÍCIA DE IMIGRAÇÃO/ Núcleo de Registro de Estrangeiros
Marta A. Teixeira Mestre, Portuguesa, curadora, registrado(A) como LEGAL/ ILEGAL sob o nr. 1/75876XF de acordo com o Art. 58 do Dec. 85.715/81. Chegada: 18/07/10 Permanência: Rio de Janeiro, cidade Maravilhosa Brasil, país do Futuro
Apêndice
Ações Curatoriais — 68
Apêndice
Ações Curatoriais — 69
Um projeto, uma discussão e um futuro. As sistemáticas por parte do Congresso Extraordinário da Fortaleza de Anhato-mirim – CEFA –, onde a presença da curadoria sem a ausência dos artistas em uma conversa direta. Um experimento de diálogo em dois sentidos às duas principais partes do sistema da arte. No encontro de 8 de junho, o domingo molhado e frio de formatação com importância seca e quente aos interessados de uma possibilidade real a um sentimento comum, único onde emissor e receptor, com o processo expositivo a criadores e cuidadores das poéticas de um todo pronto a uma tradução.
to aplicado, no planejamento dos trabalhos em arte contemporânea, e assim comprometidos com a constituição de suas poéticas. Assim, na continuidade do projeto proposto pelo instituto Meyer Filho, o CEFA, uma outra etapa acontece, quando a noite ainda se impõe, na madrugada de 8 de junho, enquanto artistas se preparam para ganhar estrada por entre algumas cidades. Somos então uma curiosidade a iniciar o trajeto de sentires do CEFA. Com a situação climática do dia, o percurso se altera quando o mar ganha o filtro cerrado da chuva forte, que recepciona as cabeças prontas a dividir o contato pessoal e as perspectivas de um grupo anunciado como seleto. Uma seleção, que me permitem, necessitar de alguns urgentes ajustes. Afinal, o universo da produção simbólica é complexo e a sua ampliação precisa de uma atenção especial por várias das instituições comprometidas no processo como um todo. Aqui considero instituição: o artista, o curador, o investidor, os profissionais da imprensa, os gestores de espaços expositivos, sejam eles alternativos, oficiais públicos ou particulares.
corpo e batidas como única de chão e coração na introdução da importante temática que é organizar um processo cultural. Por mim, suficiente como a justificar o dia proposto a reflexões. O Museu da Escola Catarinense oferece ao espaço uma simbologia forte, e a ação de Rafael RG promove outra discussão importante: o erro, o que poderá ser e em qual nível se trata, na arte, o acerto ou o engano. Um artista narra e interpreta, seja qual a postura oferece a poesia e nos apresenta a tão discutida linguagem, esta caminha sobre nossas cabeças, altiva e irônica. Outro discurso afirma ao ritual da arte um postulado sempre presente ao lado do artista locutor. Nelson Félix menciona e traz para a sua fala Caymmi, porém com um discurso duro se posiciona em sua própria trajetória, numa consciência da geografia da arte em que se basta por sua palavra, sem o ouvir de outrem. Mas, podemos adocicar o paladar ao saborear uma das partes propostas do trajeto, Jorge Menna deposita em nossas gargantas o verde composto pela receita líquida e permite uma troca cromática, do visual ao paladar de uma vegetação, como nas ações de nossas propostas simbólicas. O guru, Carlos Asp, nos confere uma outra atividade, que por sua ação de que não estamos soltos em nossas investigações poéticas, ele reforça um pensamento mapeado do universo como força de sua vigilância ao recado dos cosmos em nossas vidas, estão ali como um viver pela e na arte.
gresso”, momento em que as falas se dirigiam da pronta sensação aos pensamentos já trazidos. A trajetória de um artista recebe, antes de se constituir, um cuidado pessoal que transpassa o emocional para ganhar a razão de um mercado de arte, de uma estrutura inquieta e na busca de um espaço, por pequeno que seja, apresentar uma que seja a razão da arte. Outros eventos devem acontecer, seja na estrutura planejada ou não, pelos atores de um processo de construção estético/curada. Afinal, se curadoria é um cuidar do processo, quem cuida do que? A palavra está posta, que o congresso continue sem se pautar isoladamente em ações, créditos ou qualidades. Na espera de outro momento em juntar os cacos e as reflexões do CEFA, a minha conclusão é reconhecer o silêncio de nosso entorno para chamar a linguagem ao erro no diálogo, ou descrever o postulado da geografia de uma arte suficiente a transpor os sentidos, ao transformar o gosto da garganta à paisagem recortada pela sensibilidade de um universo maior que o nosso umbigo.
A introdução neutraliza verbos [sintaxe de ações nominadas] e adjetivos [posicionamentos elogiosos] para representar um possível e real caminho na relação entre artistas e curadores. Conhecemos, das manifestações artísticas, as suas características dinâmicas e variáveis presentes em seu processo de criação. Uma participação direta de artistas que junto aos curadores promovem a fruição da arte dirigida a possíveis visitantes e, todos, em busca de uma experiência estética. O mundo contemporâneo em sua dinâmica requer a atualidade sempre presente a atender as reações, do sentir às reflexões propostas presentes nas exposições de arte. Ouvir, refletir, manifestar e compartilhar são comandos importantes para ampliar o convívio entre os atores principais de tudo o que diz respeito à formatação e ao concei-
No evento previsto para analisar os caminhos da arte de Santa Catarina, os convidados são recebidos por Raquel Stolf, sempre pautada na segurança de sua trajetória poética, e nos convida a ouvir o silêncio, ouvir sim, mas com um banho de júbilo no misto de ver amigos artistas a participarem de uma ação performática num caminhar com sentidos mais aguçados à compensar o sentido auditivo, os passos marcados em
Na etapa final, todos os seletos convidados podiam manifestar as suas considerações sobre o “con-
TiroTTi artista visual 30jun2014
Peço de volta toda porção que me pertence. Mas que a memória permaneça, para aqueles depois de mim.
Ações Curatoriais Organização
Beatriz Lemos Kamilla Nunes Marta Mestre
Som
Rodrigo Ramos Assessoria de Imprensa
Luciana de Moraes Programação visual do catálogo
Estúdio Drüm
Curadores
Andreza Gomes Beatriz Lemos Fernando Boppré Gabriela Motta Júlio Martins Kamilla Nunes Maria Montero Marta Mestre Paulo Miyada Santiago Garcia Navarro Artistas
Bernando Zabalaga Carlos ASP Jorge Menna Barreto Nelson Félix Rafael RG Raquel Stolf Colaboração
Karina Zen Cláudia Cárdenas Bil Luhmann Gregori Homa Design Gráfico
Leandro Pitz Produção
Elisa Schmidt Sarah Pusch Fotografia
Giba Duarte Sarah Push Elisa Schmidt Filmagem e edição
Rosana Cacciatori
Abertura/Fechamento
Bernardo Zabalaga Realização
Instituto Meyer Filho Patrocínio
Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura Apoio
Universidade do Estado de Santa Catarina, Museu da Escola Catarinense, Universidade Federal de Santa Catarina Agradecimentos
Sandra Meyer, Sandra Makowiecky, Joi, Pousada Mar de Dentro, Fred Gorsky, Juliana Schmidt, Nilton Santo Tirotti, Carlos Franzoi, Ane Fernandes, Mery Nunes, Josué Mattos, Daniele Zacarão, Fabíola Scaranto, Karina Zen, Roberta Tassinari, Fê Luz, Diego de los Campos, Bill Luhmann, Joelson Bugila e Bianca Tomaselli.
Sumário
02 Mapa Astral do Congresso Extraordinário da Fortaleza de Anhato-Mirim 04 Beatriz Lemos – Onde estão as mulheres? 10 Paulo Miyada – O extraordinário do congresso da fortaleza sem ilha de Anhato-Mirim, descrito obsessivamente. 14 Raquel Stolf – Abafador de ruídos. 18 Kamilla Nunes e Júlio Martins – Eu preferiria não fazer (I would prefer not to). 32 Maria Montero – Dez minutos, uma semana, um ano. 35 Rafael RG – Tudo poderia ter sido diferente do que foi da forma que conhecemos. 36 Fernando Boppré – Se caso não houvesse rompido o pampeiro sujo na ilha de Santa Catarina aos oito de junho do ano da graça de dois mil e quattorze, dia da realização do congresso Extraordinário da Fortaleza de Anhato-Mirim, ter-se-ia avistado e tomado ciência das seguintes notícias: 42 Nelson Félix – Concerto para encanto e anel. 44 Jorge Menna Barreto – Anotações sobre suco específico. 50 Santiago G. Navarro – Afinal, quando vamos ser sul-americanos? 56 Gabriela Motta – Prólogo — Sobre caminhos enviesados no qual cruzam-se experiências andantes e sentantes. 62 Andreza Gomes – A.G. x A.V. – Je avec Agnès Varda. 66 Marta Mestre – Visto bueno. 68 TiroTTi – Apêndice. Legendas 07 Do Women Have to be Naked to Get Into the Met. Museum? Cartaz de Guerrillas Girls, 2012. 12 Performance de Rafael RG 12 Curadores residentes em visita à Ilha de Anhato-mirim 12 Abafador de ruídos de Raquel Stolf. Ação na praia da Joaquina.