Coletânea Dramaturgias Encenadas

Page 1

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

1


COLETÂNEA DRAMATURGIA ENCENADA

Edward Fão Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

2


BR FELICIDADE João Maria e o lobo Mau – uma estória idiota de bêbados drogados e filhos da puta

Personagens João, Maria, Lobo Mau

Cenário espaços públicos das grandes cidades

Espaço sonoro vento uivante e chuva constante com trovoadas intermitentes O som do espaço é gerado por equipamento alojado no carrinho de recolha de material reciclável e é composto por duas caixas acústicas e um leitor mp3, o ritmo do espetáculo está alicerçado numa paisagem sonora controlada pelas personagens.

Iluminação: luzes da noite com o brilho da lua e durante o dia um sol apagado e pálido. O dispositivo de luz está instalado no carrinho de recolha de material reciclável e é controlado pelas personagens. É composto por uma mesa de luz caseira, 01 lanterna e 01 foco de luz.

Contexto brasil do século XXI à procura do seu caminho e do seu papel nessa nova ordem mundial. João e Maria são dois vagabundos das grandes cidades, sem teto e já sem qualquer dignidade. Ele bêbado, ela submissa e toxicodependente, incapaz de resistir às vontades e decisões do seu ébrio companheiro. Vagam com seu velho carrinho/casa de compras pelas ruas das grandes cidades, mendigando e revirando caixotes de lixo em busca de restos comestíveis, beatas de cigarros e outro qualquer desperdício que possa ser reaproveitado. Vagam de terra em terra, por caminhos incertos à procura de felicidade, dia após dia caminham incessantemente sem nunca encontrar o caminho que vai dar a “felicidade”, acabam sempre voltando ao mesmo lugar, como se de lá nunca tivessem partida.

Começa afinal…

Quadro I

Unidade 1

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

3


É final de tarde, chove a cântaros, João carrega Maria, que é paralítica, no seu carrinho de recolha de material reciclável, dá voltas circulares pelo espaço, empurra o carrinho com muito esforço, Maria dormita. Por fora do carrinho de reciclagem amarrados com cordas, há uma variedade de objetos: um tambor, uma coberta enrolada, um cão de pelúcia velho, uma lanterna, uma vara de pescar, mantimentos, água, uma bola de couro, uma caçarola, um guarda- chuva e outros tantos objetos utilitários. O som de trovoadas e de ventos uivantes do Norte preenchem o espaço sonoro. O carrinho tem uma placa com a seguinte inscrição

O lobo mau segue-os como se de um cortejo se tratasse. O lobo mau enquanto discursa usando um megafone, vez por outra pendura-se no carrinho e vai a reboque de João. O lobo mau é o abrealas do cortejo. Ao fundo pode-se ouvir o guarani ato 1 de Carlos Gomes. Lobo mau: a independência. A proclamação da república. A abolição da escravatura. São conquistas do nosso povo. E por isso eu as defenderei até a morte. Mesmo quando exerço a violência, estou consciente de que estou defendendo o mais sagrado dos direitos humanos. Repete por diversas vezes, durante todo o percurso até chegar ao local marcado à representação.

Unidade 2

Quando chegam ao local da representação, o lobo mau discursa pela última vez, enquanto João procura um lugar para estacionar o seu carrinho. Enquanto discursa o lobo mau, João retira do carrinho um rolo de corda, desenrola-o formando um grande círculo com seu carrinho ao centro. Ele define o espaço lúdico, separando os universos da representação e da realidade. Lobo mau: a independência. A proclamação da república. A abolição da escravatura. São conquistas do nosso povo. E por isso eu as defenderei até a morte. Mesmo quando exerço a violência. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

4


Estou consciente de que estou defendendo o mais sagrado dos direitos humanos. O lobo mau mistura-se ao público que se formou para ver o espetáculo. Ele narra uma breve estória, o som da sua voz sai do carrinho que transporta Maria. A estória é contada para alguém do meio da plateia, de preferência uma criança, um louco, um bêbado, ou um idoso. Ou um ser especial (um passarinho, uma formiga, uma lesma ou qualquer outra criatura viva). Enquanto o lobo mau conta a sua estória João prepara-se para despertar Maria. Antes prepara o café da manhã (café preto – pão seco). Lobo mau- havia uma vez, já há muito tempo, uma cidade maravilhosa chamada felicidade. Nesta época todas as nossas cidades estavam intactas. Não havia ruínas porque a guerra final ainda não havia se instalado. Quando ocorreu a grande catástrofe desapareceram todas as cidades menos felicidade. Felicidade ainda existe, se você souber buscá-la a encontrará. E quando chegares à felicidade encontrarás um lugar com uma caixa de música que se move com uma manivela. Quando chegares à felicidade, ajudarás nas colheitas e encontrarás o escorpião que se esconde na terra embaixo de uma pedra branca. Quando chegares à felicidade conhecerás a eternidade e verás o pássaro que a cada 100 anos bebe uma gota de água do oceano. Quando chegares à felicidade compreenderás a vida e serás gato fênix e cisne e elefante e criança e idoso. E estarás sozinho e acompanhado. E amarás e serás amado. E estarás aqui e mais além. E possuirás os desejos dos desejos. E à medida que caírem os céus sobre tua cabeça. Sentirás que o êxtase existe por você, para não mais deixá-lo. - (como alguém que faz uma entrevista) você é feliz? De quanto você precisa para ficar feliz hoje? (elogia a roupa de uma pessoa) nossa você está de parabéns... Eis aqui entre nós uma pessoa de bom gosto. (cumprimentado - de forma particular faz diversos questionamentos sobre a felicidade entre o público) você é feliz? O que te deixa feliz? Qual é o preço da sua felicidade? (após um tempo crescendo num discurso espetacular, como alguém que faz uma entrevista) você é feliz? De quanto você precisa para ficar feliz hoje?

Unidade 3

João retira do bolso uma garrafa de vinho tinto e dá alguns goles. Enquanto procura pelo chão beatas de cigarro, Maria acorda meio perdida, não sabendo onde se encontra exatamente. Durante o diálogo entre Maria e João o lobo mau entrega ao público presente, panfletos de promessas de felicidade. Tenta convencê-los das vantagens dessas promessas. Maria – (cantando)-

Eu morrerei E ninguém se recordará de mim Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

5


Eu morrerei e ninguém se recordará de mim Maria agita-se assustada, como se acordasse de um pesadelo Maria- mas eu vou morrer e ninguém vai se lembrar de mim (chora como um bebe). João caminha na sua direção, toma-a nos braços e embala-a carinhosamente. João -(docemente) -Sim, Maria. Eu vou me lembrar de você e irei vê-la no cemitério com uma flor e um cachorro. (longa pausa. João olha Maria. Emocionado.) -e no seu enterro cantarei baixinho o refrão “como é bonito um enterro", cuja música é muito engraçada. (ele a olha silenciosamente e continua com ar satisfeito.) - eu farei isso por você. João limpa Maria, usa um trapo velho e uma garrafa plástica com água. Maria – (acalmando-se) você me ama muito. João -amo, mas prefiro que você não morra. (pausa) Vou ficar muito triste no dia que você morrer. Maria – (não acreditando) ficar triste? Por quê? João -(desolado) - não sei. Maria - (fazendo manha) você me diz isso, só porque ouviu-me dizer. Isso é sinal de que você não ficará triste. Você sempre me engana. João – Não Maria, eu estou dizendo a verdade, vou ficar muito triste. Maria - você vai chorar? João -farei um esforço, mas não sei se vou conseguir. Não sei se vou conseguir! Não sei se vou conseguir! Você acha que isso é uma resposta? Acredite em mim, Maria. Maria – (confusa) mas acreditar em quê?

Unidade 4

João -(refletindo) - não sei bem. Diga apenas que acredita em mim.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

6


Maria - (como um autômato) - eu acredito em você. João – (desapontado) mas nesse tom, não vale. Maria – (alegremente falsa) - eu acredito em você. João -assim também não vale, Maria. (humildemente) -fale direito, pois quando você quer, você sabe dizer muito bem as coisas. Maria - (num outro tom, também pouco sincero) - eu acredito em você. João -(abatido) não, Maria, não. Não é assim. Tente outra vez. Maria - (faz um esforço, mas não são sinceras suas palavras) - eu acredito em você. João - (muito triste) -não, não, Maria. Como você é, como se comporta mal comigo. Tente, mas direito. Maria - (sem ainda conseguir) - eu acredito em você. João - (violento) - não, não, não é isso. Maria - (faz um esforço desesperado) - eu acredito em você. João -(violentíssimo) - assim também não. Maria - (muito sincera) - eu acredito em você.

Unidade 5

João prepara o café da manhã à Maria. João -(comovido) - você acredita em mim, Maria! Você acredita em mim! Maria - (também comovida) - eu acredito em você. João – (alegria infantil) como eu sou feliz!

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

7


Maria -(sonhadora) eu acredito em você, porque quando fala, você parece um coelho e quando dorme comigo, você me deixa ficar com toda a coberta e fica sentindo frio. João – (envergonhado) isso não tem importância. Maria -(sonhadora) e sobretudo porque pelas manhãs você me banha na fonte e, assim, eu não tenho que me lavar, pois isso me aborrece muito. João - (depois de uma pausa, resoluto) - Maria, quero fazer muitas coisas por você. Maria – (eufórica) quantas? João -(reflete) - quanto mais melhor. Maria – (determinada) então o que você tem de fazer é lutar pela vida. João – (vencido) isso é muito difícil. Maria – (determinada) é assim que você pode fazer alguma coisa por mim! João -(irônico) lutar pela vida? Que coisas você diz! (pausa) -quase uma brincadeira. (muito sério) -é que, Maria, não sei por que tenho que lutar pela vida e, talvez se eu soubesse o porquê, não teria forças; e inclusive se eu tivesse forças, não sei se elas me serviriam para vencer. Maria – (incentivando) João, faça um esforço. João – (pensativo) fazer um esforço? (pausa) - talvez assim seja mais simples. Maria – (determinada) temos que fazer um acordo. João – (decidido) e você acha que isso nos ajudará? Maria – (com certeza) estou quase certa. João - (pensa, perdido) - mas, ajudar em que? Maria – (esclarecedora) não importa, o que interessa é que nos ajude. João - para você tudo é muito simples. Maria - não, para mim também é difícil. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

8


João - mas você tem soluções para tudo. Maria - não eu nunca encontro soluções, o que ocorre é que me iludo dizendo que as tenho encontrado. João - isso não vale. Maria -já sei que não vale, mas como ninguém me pergunta nada, dá no mesmo; além do mais, é muito bonito. João - Sim, está certo, é muito bonito. Mas e se alguém lhe perguntar alguma coisa? Maria -Tanto faz. Ninguém pergunta nada. Todos estão muito atarefados buscando uma maneira de enganarem-se a si mesmos. João - uh! Que complicado! Maria - Sim, muito.

Unidade 6

João -(comovido) - como você é esperta, Maria! Maria - mas não me serve de nada, você sempre me faz sofrer. João - não, Maria. Eu não a faço sofrer, muito pelo contrário. Maria - lembra-se de como você me bate quando pode. João -(envergonhado) - é verdade. Não voltarei a fazer isso, você verá que não. Maria -você sempre me diz que não voltará a fazer, mas logo me atormenta o quanto pode e diz que vai me amarrar com uma corda para que eu não possa me mover. Você me faz chorar. João -(terníssimo) -fazia você chorar, principalmente, quando você estava naqueles dias. Não, Maria, não voltarei a fazer. Comprarei uma barca quando chegarmos à "felicidade" e levarei você para ver um rio. Você quer, Maria? Maria - Sim, João. João - e eu sentirei todas as suas dores, Maria, para que veja que eu não quero fazer você sofrer. (pausa) - terei filhos como você também. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

9


Maria -(comovida) - como você é bom!

Unidade 7

João -quer que eu lhe conte estórias bonitas, como a do homem que levava uma mulher paralítica, a caminho de “felicidade”, num carrinho de reciclagem? Maria - Primeiro, me leva para passear. João -Sim, Maria. (João toma Maria nos braços e passeia com ela pela cena) - olhe, Maria, como são bonitos o campo e a estrada. Maria - Sim, como eu gosto! João - olhe as pedras. Maria - sim, João, que pedras lindas! João - olhe as flores. Maria - não tem flores, João. João -(violento) - dá no mesmo, olhe as flores. Maria - Eu estou dizendo que não tem flores. Maria fala agora num tom muito humilde, João, pelo contrário, se torna mais autoritário e violento por momentos. João -(gritando) - eu disse para olhar as flores! Será que não entende? Maria - sim, João, me perdoa. (longa pausa) - como sofro por ser paralítica! João - é bom que seja paralítica, assim sou eu que levo você para passear.

Unidade 8

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

10


João se cansa de carregar Maria nos braços ao mesmo tempo que se torna cada vez mais violento. Maria - (bem docemente, temendo desagradar a João) -como está bonito o campo com suas flores e suas arvorezinhas. João -(irritado) - onde é que você está vendo árvores? Maria -(docemente) - assim se diz: o campo com suas lindas árvores. (pausa) João - Você é muito pesada. (João, sem nenhum cuidado, deixa Maria cair no chão.) Maria - (grita de dor) - ai João! (imediatamente com doçura, com medo de desagradar a João) você me machucou! João -(duramente) - você ainda se queixa. Maria - (quase chorando) -não, não me queixo. Muito obrigada, João. (pausa) -mas eu gostaria que você passeasse comigo no campo e me mostrasse as flores tão bonitas.

Unidade 9

João, visivelmente desgostoso, segura Maria por uma perna e a arrasta pela cena. João -então, agora está vendo as flores? O que mais queria ver? Hein? Diga. Já viu o bastante? Maria - (soluça esforçando-se para que João não a ouça. Sem dúvida sofre muito) – sim, sim. Obrigada... João. João - ou quer que eu a carregue até o carrinho de reciclagem? Maria - Sim, se não for incômodo. (João arrasta Maria pela mão até deixá-la junto ao carrinho) João - (visivelmente chateado) -eu tenho de fazer tudo para você e ainda por cima você chora. Maria - me perdoa, João. (ela soluça) João - qualquer dia eu lhe deixarei e irei para bem longe de você. Maria -(chora) - não, João, não me abandone. Eu só tenho você no mundo. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

11


João - você não faz nada mais que me amolar. (grita) - e não chora. Maria - (faz um esforço para não chorar) - não estou chorando. João -pare de chorar, eu já disse. Se você continuar chorando, vou me embora agora mesmo. Maria, apesar de tentar impedi-lo, continua chorando. João - (muito chateado) -então você continua chorando, sempre, sempre, hein? Pois agora mesmo eu vou embora e não volto nunca mais.

Unidade 10

João abandona Maria e dá algumas voltas na cena, está enfurecido. O lobo mau invade o espaço da representação em direção à Maria, enquanto João num canto toca no seu trompete uma conhecida marcha militar. Lobo mau: a independência. A proclamação da república. A abolição da escravatura. São conquistas do nosso povo. E por isso eu as defenderei até a morte. Mesmo quando exerço a violência. Estou consciente de que estou defendendo o mais sagrado dos direitos humanos. Tempo... Lobo mau- durante milhares de séculos o homem acumulou conhecimento; enriqueceu sua inteligência até atingir essa maravilhosa perfeição que é a vida moderna. Por toda parte a felicidade, a alegria, a tranquilidade, o riso, a compreensão abundam. Tudo foi criado para tornar a vida do homem mais simples, sua felicidade maior, sua paz mais duradoura o homem descobriu tudo o que é necessário para o seu conforto. E hoje é o ser mais sereno e o mais feliz de todos os seres da criação. Construirei para mim uma gaiola de madeira e nela me fecharei. De lá, perdoarei à humanidade por todo o ódio que ela nutre por mim. Perdoarei meu pai e minha mãe pelo dia que uniram seus ventres para me engendrar. E perdoarei à minha cidade, meus amigos e meus vizinhos por não terem percebido meu valor, e ignorado quem sou, e perdoarei, e perdoarei, e perdoarei...

Unidade 11

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

12


Depois de alguns instantes acalma-se e volta devagar e temeroso, até chegar onde está Maria. João - Maria, me perdoa. Humilde, João toma Maria nos braços e a beija. Depois ele a senta comodamente. Ela se deixa levar sem dizer nada. João - eu nunca mais vou ser mal com você. Maria - como você é bom, João! João - Sim... Maria, você verá como eu vou me portar bem de agora em diante. Maria - Sim, João. João - me diga o que é que você quer. Maria - que nos coloquemos a caminho da "felicidade". João -vamos partir imediatamente. (João toma Maria nos braços com muito cuidado e a coloca no carrinho) - Há muito tempo que nós estamos tentando chegar à “felicidade” e não conseguimos nada. Maria - vamos tentar outra vez... João - Muito bem, Maria, como você quiser.

Unidade 12

João empurra o carrinho que começa a cruzar lentamente a cena. Maria, dentro dele, olha para o fundo. João para de repente, se dirige para Maria e lhe acaricia o rosto com as duas mãos. Pausa João - eu peço perdão pelo que aconteceu. Eu não queria te fazer sofrer. Maria - Eu sei disso, João. João - confia em mim. Nunca mais vou fazer isso.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

13


Maria - Sim, confio em você. Você é sempre muito bom comigo. Eu me lembro que quando eu estava no hospital, você me enviava cartas enormes, para que eu pudesse me gabar que recebia cartas tão grandes. João -(envaidecido) - isso não tem importância. Maria -também me lembro que, muitas vezes, como não tinha nada para me contar, você me mandava um monte de papel higiênico para que a carta ficasse bem cheia. João - isso não é nada, Maria. Maria - como eu ficava contente! João - você está vendo como tem que confiar em mim? Maria - Sim, João, eu confio. João - sempre farei o que você mais gosta. Maria - então, vamos nos apressar para chegarmos à “felicidade”. João -(triste) - mas não chegaremos nunca. Maria - eu já sei, mas tentaremos.

Unidade 13

João empurra o carrinho de reciclagem pela cena, João faz círculos contrários aos anteriores, dá várias voltas pelo espaço.

Quadro II

Unidade 1

O lobo mau dirige-se para o meio do público. Enquanto fala com as pessoas distribui dinheiro. Ele é muito generoso. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

14


Anoitece. João para. Retira alguns objetos do carrinho de reciclagem e prepara uma cama para Maria, volta ao carrinho de reciclagem e lentamente, com muito cuidado, tira Maria do carrinho de reciclagem e a coloca na cama que lhe preparou. Pega numa grossa corrente de ferro e prende um dos pés de Maria o carrinho de reciclagem. A corrente é bastante comprida. João fala num tom docemente desesperante, enquanto bebe seu tintol. João -Maria, estou muito cansado. Vou descansar um pouco. (Maria olha distraída) -Estou dizendo que estou muito cansado e que vou me sentar um pouco. (Maria olha sacudindo a cabeça e inexpressiva.) -Você quer alguma coisa? Me diga se você quer alguma coisa. (Maria não responde) -Fale comigo, Maria, não se cale, diga alguma coisa. Eu sei o que é que você tem. Você está zangada comigo, porque depois de tanto andar não avançamos e estamos no mesmo lugar de sempre. (parece que Maria não ouve nada.) -Maria, me responde. (suplicando) -Deseja alguma coisa? Maria, fale comigo. (João continua falando num tom suplicante e lamentável) -Quer que eu lhe mude de posição? Você não está bem assim? (Maria não responde, Maria não faz o mínimo caso de João) -Já sei: você quer mudar de posição. (João, com muito cuidado, a muda de posição. Ela se deixa levar. Ele a trata com muita atenção) -Você vai ficar melhor assim. (João coloca as mãos sobre o rosto de Maria e a olha com entusiasmo) -como você é bonita, Maria! (João a beija. Maria continua imóvel.) Me diga alguma coisa, Maria. Fale comigo. Você está aborrecida? Quer que eu toque tambor para você? (João olha para Maria esperando uma resposta, depois continua muito contente) - claro, vejo que você quer que eu toque tambor para você. (João, muito contente, vai ao carrinho de reciclagem, pega o tambor e coloca na altura do estômago) -o que você quer que eu toque? (Maria nada fala. Silêncio) -Bom, eu vou tocar a canção da pena. Você gosta? (silêncio) -Ou prefere que eu toque a canção da pena? (silêncio. Maria não responde) -como você quiser. (ele vai começar a tocar o tambor, mas para.) Estou com vergonha, Maria. (silêncio) -bem, vou fazer um esforço por você e vou tocar a canção da pena que você gosta tanto. (ele vai começar, mas não se decide. Envergonhado) – Eu sinto muito por não saber outra canção além da canção da pena. (pausa. De repente, João começa a tocar tambor de um modo muito sem jeito, enquanto canta com uma voz desafinada a seguinte canção.) - A pena estava na vara E a vara estava na pena. (bis) João- Gostou, Maria?

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

15


Maria não diz nada. João muito entristecido vai até ao carrinho de reciclagem para deixar o tambor. Antes disso, ele olha para Maria, retoma o tambor e toca de novo. Olha de soslaio para Maria, mas vê que sua música não faz efeito nela. Desencorajado, deixa o tambor junto ao carrinho de reciclagem. Mais triste que nunca João– fale comigo, Maria. Diga-me alguma coisa. Como é que você quer continuar o caminho se não fala comigo? Estou cansado. Me sinto muito só. Fale comigo, -Maria, diga alguma coisa. Conte-me qualquer coisa, mesmo que seja uma bobagem, mas diga alguma coisa. Você sabe falar muito bem quando você quer. Maria, não se esqueça de mim. (pausa) -eu vou te levar para “felicidade”. (pausa) -às vezes você se cala e eu não sei o que está acontecendo com você. Não sei se está com fome, ou se quer flores ou se está com vontade de urinar. Claro, eu posso me enganar, eu sei que você não tem nada do que me agradecer e inclusive pode estar zangada comigo, mas isso não é um motivo para não falar comigo. (pausa) -como sei que você quer ir para “felicidade”, eu lhe estou levando. -Não me importam as dificuldades, só quero fazer aquilo que possa lhe agradar. (silêncio) – mas, Maria, fale comigo. (Maria olha sem expressão).

Unidade 2

João dirigindo-se ao público, enquanto bebe seu tintol.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

16


João - (lembrando-se entusiasmado) - oh, como vocês falavam bem, como era bonito!... Sim, mas não prestava atenção, somente ouvia a música. Soava muito bem. (cantarolando) – “patati, patatá, simimi, simimó, que se o, que se a...” Lá de longe, era muito bonito de ouvir.... O que é que o senhor disse? Que existe pior que um porco, que existe melhor que um porco?... Não, eu somente pergunto se o que ele procura são animais melhores ou piores que o porco.... (muito contente, fala precipitadamente) - eu sei. Os piores são o leão, a barata, a cabra e o gato. E os melhores são a vaca, o coelho, a ovelha, o papagaio e o canguru.... Sim, o canguru... O senhor coloca as coisas de uma tal maneira que lança a dúvida no meu espírito....(chorando) - o senhor é demasiado forte (desculpando-se) - mas eu chorei muito pouco: duas lágrimas... Sim, é verdade, ela não me incomoda em nada. Ela é encantadora... Olhem para ela. (João move a cabeça de Maria, colocando-a em diversos ângulos, enquanto diz:) – olhem como ela é bonita! Abaixem-se para vêla por baixo, em perspectiva.... Venham aqui, os senhores vão ver como é bonito. ...Olhem que pernas bonitas e como o pano da sua combinação é suave. Toquem-na....Olhem suas coxas, tão brancas e tão suaves. (João levanta a combinação de Maria) ...o que eu mais gosto é de beijá-la. Seu rosto é muito suave. Dá gosto acariciá-lo. Experimentem.... Sim, acariciem assim. (João, com as duas mãos acaricia o rosto de Maria e as escorrega ternamente) – venham, podem acariciá- la, vocês vão ver como é bom.... Então, o que acha?... Você também, beije-a também, como eu. (João beija rapidamente Maria na boca) – façam isso, vão ver como é bom. ... Então, gostou?... (muito satisfeito) - pois é minha noiva. Um dia, decidido a não falar, comecei a pensar no que poderia fazer para compensar o silêncio e me pus a andar de um lado para o outro.... No princípio eu andava e andava. Mas logo aconteceu o pior. (João se cala) ...não, não vou contar, é muito íntimo.... É melhor que eu me cale agora. A história acaba mal. Desde a infância eu experimento sistemas infalíveis para reconhecer a razão

Um deles é o dos dias da semana, mas é muito complicado....

É assim: nos dias múltiplos de três, têm razão os senhores de idade, nos dias pares têm razão as mães e, nos dias terminados em zero, ninguém tem razão Mas é muito complicado: tem que se estar sempre atento ao dia que é e ter bastante cuidado para não se confundir. Foi assim que alguns dias eu dei razão a quem não tinha. Muitas vezes, isso impedia que me crescessem as unhas...por isso uso frequentemente o sistema da palavra, que é assim: se em cinco minutos, ninguém disser a palavra "onde", dou razão ao primeiro que disser a palavra "mosca".... Sim, sem dúvida é um sistema perfeito bom se ninguém disser a palavra mosca, então eu troco pela palavra "árvore"... Se ninguém disse a palavra árvore, então eu dou razão ao primeiro que disser a palavra "água" Com o tempo fica mais fácil, apesar de ser mais difícil no começo, tenho tudo previsto se ninguém disser a palavra "água" eu dou razão ao primeiro que disser (dúvida) ... Que disser. (pensa) que disser a palavra... A palavra... "palavra"!. Não, não é verdade, eu não acabei de inventar.... (envergonhado) a verdade é que eu não experimentei ainda...

Unidade 3

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

17


Ninguém lhe dá atenção. Ele volta para junto de Maria, olha por algum tempo docemente para ela, silêncio, bebe seu tintol. João - (Maria continua sem olhá-lo, ele docemente) Maria, você é melhor do que eles. Você sabe dizer coisas lindas. Fale comigo. (Maria continua em silêncio) - quer que eu faça uma exibição para lhe agradar? Vou fazer acrobacias, hein? Maria continua em silêncio. João executa uma série de exercícios que são uma mistura de ballet, palhaçadas e gestos de bêbado. Por fim, sustentando-se sobre uma perna, une o joelho da outra com o cotovelo, enquanto com a mão do mesmo braço ele faz caretas, colocando o polegar na ponta do nariz João - (enquanto grita entusiasmado) olha como é difícil. Maria, olhe como é difícil! Maria continua calada. João, em silêncio e abatido, termina seu número, vai até Maria e dá uma volta em torno dela cheio de tristeza. Silêncio. Bebe seu tintol João - (num tom de queixa, ainda sem gritar) - fale comigo, Maria, fale comigo. João pega em Maria e coloca-a delicadamente no carrinho de reciclagem, guarda a cama e volta a puxar o carrinho de reciclagem pela cena, dá várias voltas circulares.

Quadro III

Unidade 1

Lobo mau: a independência. A proclamação da república. A abolição da escravatura. São conquistas do nosso povo. E por isso eu as defenderei até a morte. Mesmo quando exerço a violência. Estou consciente de que estou defendendo o mais sagrado dos direitos humanos. Tempo.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

18


Lobo mau- aprenderão... Aprenderão... Dominarei essa terra. Botarei essas histéricas tradições em ordem, em ordem, pela força, pelo amor da força, pela harmonia universal dos infernos, e chegaremos a uma civilização. O que eu não posso explicar aos meus amigos, são as razões que me levaram a abandonar o exercício da solidão pelo sacerdócio da vida pública. Nem Cristo pôde explicar, a não ser com a própria vida. Assim eu responderei aos meus inimigos que Cristo deu a vida pelo povo. Quando os exploradores do povo quiseram que ele compactuasse com a exploração do próprio povo, morreu, mas não traiu. Eu morrerei sem trair, proclamando a grandeza do homem, da natureza e de deus. Amanhece. João para, bebe seu tintol, Maria está acordada e abatida. João - o que há com você? Maria - Estou doente. João segura Maria com muito cuidado e desce-a do carrinho de reciclagem. Maria tem uma comprida corrente de ferro que prende seu calcanhar ao carrinho João - onde é que dói? Maria - Não sei. João - que doença você tem? Maria - Não sei. João – Isso é o pior, se eu soubesse que doença você tem, tudo mudaria. Maria - mas eu me sinto muito mal. João - (com muita tristeza) – você não vai morrer. Maria – Tenho um mal-estar muito grande. Me sinto muito mal, João você andou muito depressa. João – Sim, estou em grande vantagem. Maria – mas outra vez voltamos ao mesmo lugar. Não adiantamos nada. João - como você é pessimista. O importante é que nós estamos andando.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

19


Maria -você correu muito, andou muito depressa. Essa rapidez não me fez bem. Eu já lhe disse isso. João -(envergonhado) - é verdade, Maria, me perdoa. Maria - você sempre me pede perdão, mas nunca me leva em consideração. João – é verdade, como eu sou mau com você... (pausa) Maria -e ainda por cima você sempre diz que vai me algemar as mãos, como se não bastasse a corrente. João - não, não vou algemar você. (pausa) Maria - você nunca me considera. Lembra-se de como às vezes, antes de eu ficar paralítica, você me amarrava na cama e me batia com a correia?! João - eu não sabia que lhe maltratava. Maria – mas eu dizia sempre. Quantas vezes eu disse que não podia suportar o mal que você me fazia! João -Maria, me perdoe. Eu não voltarei a lhe amarrar na cama a lhe bater com a correia, eu prometo. Maria - depois entrou numa de me amarrar com a corrente que me impede de me afastar do carrinho de reciclagem, apenas posso me arrastar. João - é verdade, Maria. Você devia ter me avisado. Maria - eu sempre lhe digo tudo, mas você nunca me ouve. João - Maria, não fique zangada comigo, me beija! Maria - (com resignação) - você pensa que assim tudo se ajeita? João - Você me atormenta, Maria. (abatido. Silêncio. Continua contente) -em quem vou dar um beijinho na boquinha? Maria - Não são horas de brincadeiras, João.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

20


João -Maria, não brigue comigo. Eu sei que sou culpado, mas não brigue comigo que vou ficar muito triste. Maria - não pense que assim se ajeita tudo. João -me beija, Maria. (Maria, muito séria e sem expressão, permite que João, apaixonadamente, a beije) esqueça todas estas coisas e não me faça pensar nelas. Silêncio

Unidade 2

Maria - Ontem você inventou de me deixar nua toda a noite na estrada e sem dúvida é por isso que eu estou doente. João -mas eu fiz isso para a vissem os homens que passassem: para que todo mundo visse como você é bonita. Maria - fazia muito frio. Eu estava tremendo. João -pobre, Maria..., mas os homens a olharam e ficaram muito felizes e é claro, depois deviam ter continuado o caminho com mais alegria. Maria - eu me sentia muito só e com muito frio. João -eu estava do seu lado. Você não me viu? Além do mais, muitos homens a acariciaram quando lhes pedi. (pausa) -mas eu nunca mais vou fazer isso, Maria, estou vendo que você não gosta. Maria - você sempre diz isso. João -é que às vezes você é estranha e não percebe que tudo o que eu faço é para o seu bem. (pausa. Ele se lembra) -Você estava muito bonita toda nua. Era um espetáculo maravilhoso. Maria – A parte chata é sempre para mim. João - não, Maria. Que pena que você não tenha os meus olhos para ver a si mesma. Maria - João, eu estou muito mal. Me sinto muito mal. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

21


João - o que quer que eu faça por você, Maria? Maria -agora não há mais remédio. (pausa) -o que eu quero é que você me trate sempre bem. João - Sim, Maria, lhe tratarei bem. Maria - mas faça um esforço. João - está bem, vou fazer.

Unidade 3

Pausa. Maria percebe um volume na calça de João. Maria - O que é que você tem no bolso? João como uma criança apanhada fazendo uma bobagem, procura disfarçar João - Uma coisa. Maria - me diz o que é. João - Não, não. Maria -(autoritária) - me mostra o que você está escondendo! João - Não é nada demais. Maria - eu já disse para me mostrar! João tira do bolso, envergonhado, algemas de ferro Maria - está vendo? As algemas! João - mas não é para fazer nada de mal. É só para brincar. Maria - está vendo? Você está apenas esperando um descuido meu, para colocá-las. João - não, Maria, eu não vou colocar em você. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

22


Maria - então, jogue fora! João -(agressivo) não! (torna a guardá-las) Maria - (quase chorando) - vê como me trata. João - (muito comovido) - Maria, não chore. Maria, eu amo você, muito. Não chore, Maria. Maria o abraça apaixonadamente Maria - não me deixe, João. Só tenho a você. Não me trate tão mal. João -(comovido) como eu sou mau com você! Mas agora você vai ver como é que eu vou ser bom. Maria - me abrace, João, me abraça. (eles se abraçam com paixão) - estou me sentindo muito mal. João -você já vai ficar boa e então nos poremos a caminho para “felicidade” e nós passaremos muito bem e eu te darei de presente todos os animais da terra para que você brinque com eles: as baratas, os escaravelhos, as borboletas, as formiguinhas, os sapos... E cantaremos juntos e eu tocarei tambor todos os dias. Maria - Sim, João, seremos felizes. João - e vamos continuar caminhando para a "felicidade". Maria - é, isso mesmo, para “felicidade”. João - os dois juntos. Maria – Sim, sim, os dois juntos. Pausa. Eles se olham mutuamente João - e quando chegarmos a “felicidade”, sim, então seremos felizes. Maria - como você é bom, João! Como me trata bem! João - Sim, Maria. Tudo farei por você, porque amo muito você.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

23


Unidade 4

João vai até o carrinho e desamarra o tambor com muito cuidado. Depois, com muito respeito, ele o mostra a Maria. João - Olhe o tambor, Maria. Maria - como é bonito! João - olhe como é redondinho. Maria - Sim, é verdade que é redondinho. João - pois bem, eu só o tenho para cantar canções para você. Maria - como você é bom! João -quando chegarmos a “felicidade”, como seremos felizes! Eu inventarei novas canções para você. Maria - A canção da pena é muito bonita. João -(lisonjeado) - ah, não tem importância! Inventarei outras coisas muito melhores. Outras que não só falam das penas, mas também de... (reflete) – de penas de pássaros e também... Penas de águia e também... (reflete, mas não acha nada) - ... E também de... Maria - e mercados de penas. João – (contente) -sim, sim, e também de penas e também de... De... Ah, e também penas. Maria - Que lindas canções! Como você é bom, João!

Unidade 5

Pausa. João tira de repente as algemas do bolso e olha para elas nervosamente Maria - não me faça sofrer. João -(duramente) - por que você acha que vou lhe fazer sofrer? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

24


Maria – (suave) – não me fale nesse tom, João. João - (entediado, se levanta e responde) - eu falo com você sempre no mesmo tom. Maria - O que é que você está pretendendo? João -(violento) - nada. Maria – Se está querendo fazer alguma maldade, você vai ver. João -(violentamente) - lá vem você com as suas coisas. Maria -(humilde) - sei muito bem que você quer me colocar as algemas. Não faça isso, (ela soluça) João - (com aspereza) - não chora. Maria - (se esforça para não chorar) - não, não vou chorar, mas me ponha as algemas. João -(irritado) - você sempre desconfia de mim. Maria - (com doçura) -não, não desconfio de você. (muito sincera ela continua) – acredito em você. Unidade 6

João dá alguns passos entre o carrinho de reciclagem e Maria. Ela chora João -(autoritário) - me dê as mãos. Maria - não, não faça isso, João. Não me ponha as algemas. Maria estende as mãos. João coloca as algemas nervosamente João – Assim é melhor. Maria - João. (muito triste) - João. João - eu coloquei para ver se você pode se arrastar com elas. Vá, tente se arrastar. Maria - eu não posso, João.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

25


João - tente. Maria - João, não me faça sofrer. João - (fora de si) - eu já lhe disse para tentar. Vá, se arraste. Maria tenta se arrastar, mas não consegue; suas mãos unidas pelas algemas a impedem Maria - não posso, João. João - tente, ou será pior para você. Maria -(docemente) - não me bata, João, não me bata. João - tente, eu já disse. Maria faz um grande esforço sem conseguir se arrastar Maria - não posso, João. João - tente outra vez. Maria - não posso, João. Me deixa. Não me faça sofrer. João - tente, ou será pior para você. Maria - não me bata. Sobretudo, não me bata com a correia. João -(irritado) - tente. Maria - não posso. João vai ao carrinho de reciclagem e pega a correia João - tente ou vou lhe bater. Maria - João, não me bata. Estou doente. João açoita em Maria com violência João - arraste-se. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

26


Maria faz um esforço supremo e consegue se arrastar. João a contempla palpitante de emoção Maria - não posso mais. João - mais, mais. Maria - não me bata mais. João - arraste-se. João volta a açoitá-la. Maria se arrasta com dificuldade. Num falso movimento, esbarra suas mãos amarradas no tambor e rasgam o couro João -(colérico) - você rasgou o meu tambor. Você rasgou o meu tambor. João a açoita. Ela cai desmaiada cuspindo sangue pela boca. João, irritado, pega o tambor e, distante dela, começa a consertá-lo. Maria, deitada e inerte com as mãos amarradas sobre o peito, está no meio da cena. Longo silêncio. João trabalha no tambor.

Unidade 7 Lobo mau: a independência. A proclamação da república. A abolição da escravatura. São conquistas do nosso povo. E por isso eu as defenderei até a morte. Mesmo quando exerço a violência. Estou consciente de que estou defendendo o mais sagrado dos direitos humanos. Ele havia prometido que quando ela morresse ele iria vê-la no cemitério com uma flor e um cachorro. O que aconteceu realmente foi que ela havia dito que queria se suicidar e ele disse que era o melhor que ela podia fazer. Eu me lembro que ele passava o tempo todo dormindo. Ele dizia que não queria pensar, porque era muito cansativo. Ela disse que seria melhor se ele pensasse em anedotas e ele respondeu que não sabia anedotas. Eu me lembro que ele disse que ouvira dizer que era muito difícil chegar à felicidade, mas que tentaria. Mais tarde ele disse a ela que quando chegassem à felicidade, ele ia compor muitas canções lindas, como a canção da pena e passeariam nas águas tranquilas do rio translúcido. Disse ainda que tocaria tambor para ela, foi então que eles se abraçaram. Foi aí que ela descobriu que ele levava algemas no bolso para colocar nela. Ele disse que não era nada demais e depois guardou-as. Então ela se zangou e disse que era muito difícil de entendê-lo por que ele idiota. Foi aí que ele se entediou muito.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

27


Ela e ele começaram então a brincar de pensar. Mas como ele não sabia ficar numa boa posição, ele pensava muito mal. E quando ela ensinou a ele a postura correta que ele devia se colocar para pensar, ele só conseguiu pensar em morrer. Aconteceu também que ela levantou as saias para atrair os homens que passavam e se aproximou deles, e eles a beijaram de diferentes e variadas formas. Aconteceu também que ele não sabia nenhum método para classificar tudo E que de mais a mais estava preocupado porque ela tinha dito que se achasse o plano ruim ela diria, sem se importar com nada.

Quadro IV

Unidade 1

João vai até Maria. A olha com respeito e se aproxima dela com uma grande tristeza. A abraça, incorporando-a. A cabeça de Maria cai, inerte para trás. João não diz nada. João recoloca a cabeça de Maria no chão com muito cuidado. João está a ponto de chorar. De repente, ele apoia sua fronte contra a barriga de Maria. Apesar de não se ouvir nada, é provável que ele chore. João enrola o corpo de Maria num lençol branco e coloca-o no centro do espaço, vai até ao carrinho de reciclagem pega uma vela uma flor e um cachorro amarrado num cordel de sapato, ele atravessa a cena sem nada dizer, ajoelha-se junto a Maria, acende a vela e coloca a flor sobre seu peito. João, enquanto embala Maria em seus braços, canta uma canção de acalanto. João (cantando)-

Que bonito é um enterro Eu vou ver-te no enterro Com uma flor e um cachorro Que bonito é um enterro Eu vou ver-te no enterro Com uma flor e um cachorro

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

28


Lobo mau: vocês estão aqui reunidos, amontoados...homens, mulheres, crianças... Unidos com um propósito. Vocês estão cientes de suas responsabilidades, orgulhosos de nossos líderes... Aqueles poucos conscientes tecnocratas bem organizados que decidem por você. Vocês estão reunidos esta noite para aplaudirem os homens que preparam o paraíso na terra. Estes homens hoje pedem que vocês sejam conscientes. Amanhã nossos bifes estarão mais ricos em proteínas... O que precisamos fazer são homens de nossos filhos. Amanhã computadores servirão as donas de casa, decidindo dietas para que nossos filhos sejam descendentes saudáveis de nossa raça. Amanhã a televisão interativa estará em cada uma de nossas casas e dará a todos instruções necessárias para serem bons cidadãos... Amanhã, armas biológicas garantirão a paz duradoura e para sempre eliminarão aqueles idealistas vis que glorificam o individual… Passa o chapéu João levanta-se lentamente, dirige-se para o carrinho de reciclagem e começa a puxá-lo pela cena, o som do vento uivante lentamente desaparece, o lobo mau segue-os como se de um cortejo se tratasse. Ele discursa usando um megafone, vez por outra pendura-se no carrinho e vai a reboque de João. O lobo mau é o abre-alas do cortejo. Ao fundo pode-se ouvir o guarani ato 1 de Carlos Gomes. Lobo mau: a independência. A proclamação da república. A abolição da escravatura. São conquistas do nosso povo. E por isso eu as defenderei até a morte. Mesmo quando exerço a violência. Estou consciente de que estou defendendo o mais sagrado dos direitos humanos. Repete por diversas vezes até abandonar por completo o local da apresentação.

The end

IN CERTEZA

Personagens

homem 1 Homem 2

Cenário esgoto terminal de uma grande cidade com edifícios populares a sua volta Espaço arena Duração 45 minutos Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

29


Tema incerteza Objetos homem 1 -

01 rádio am (programas policiais, músicas massificadas, programas religiosos, novelas)

-

01 jornal ( notícias que marcam um tempo)

-

uma garrafa

-

01 taça vinho

-

01 caneca velha

-

01 escova de dentes

-

01 coxa de galinha

-

01 baú com cédulas e moedas

-

01 cofrinho

-

01 fone com microfone internet

-

01 visor computador

-

01 patinho de borracha

-

01 máquina fotográfica

-

01 lanterna

-

saco de comida

-

01 espelho

-

01 computador

-

01 telefone

-

01 balde

Objetos homem 2 -

01 escova de dentes

-

jornais

-

latas de bebidas alcoólicas

-

corda que o liga ao balde

-

01 carta (relato de um emigrante, gravação em off)

-

01 caneca velha

-

algumas fotos velhas

-

01 celular (recebe uma chamada contando novidades, toque música sertanejo universitário)

-

01 rato branco de estimação

Notícias que marcam um tempo 1º assunto queda de político

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

30


2º assunto esquemas da máfia branca 3º assunto a morte de deus 4º assunto papa beija na boca religioso mulçumano 5º assunto brasil ganha 01 medalha de bronze nos jogos olímpicos Tempo das ações -

14/18 minutos dramaturgia cênica

-

30/35 minutos dramaturgia literária

Cena 1

1. O público encontra-se nas janelas desses blocos, como se moradores fossem. Estão localizados no 2º andar. Cai uma chuva fina sobre o esgoto. 2. No lago, dois seres trabalham sob a fina chuva. Suas águas são sujas e fétidas. 3. O homem 1 está imerso até o peito, veste roupa de mergulhador. Ele é jovem. Pendurados em seu corpo alguns objetos, 01 escova de dentes, 01 saco com um rato branco de estimação no seu interior, uma carta, algumas fotografias e 01 caneca velha. 4. O homem 2 é bem mais velho. Aparentemente é cego e tem as pernas amputadas. Veste roupas formais, mas ligeiramente sujas e velhas. 5. Está sentado sobre uma cadeira/jangada, embaixo de um velho guarda-sol publicitário sem pano. A sua frente pendurados ao seu redor 01 rádio am (programas policiais, músicas massificadas, programas religiosos, novelas) – 01 jornal ( notícias que marcam um tempo) – uma garrafa – 01 taça vinho – 01 caneca velha – 01 escova de dentes – 01 coxa de galinha – 01 baú com cédulas e moedas – 01 cofrinho – 01 fone com microfone internet – 01 visor computador - 01 patinho de borracha – 01 máquina fotográfica 01 lanterna – saco de comida – 01 espelho – 01 computador – 01 telefone e 01 balde. 6. Enquanto o homem 2 contabiliza os ganhos do dia, o homem 1 trata de carregar o balde com lixo retirado da merda.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

31


7. Entre um mergulho e outro eles conversam. 8. O homem 2 durante toda a representação, jamais deixa de contabilizar os ganhos do dia. O seu trabalho consiste em contar dinheiro; separá-lo em pacotes de cem notas e guardá-los numa valise que ele mantém presa a seu corpo. 9. O dinheiro que ele contabiliza, está escondido nos lugares mais inusitados da sua cadeira/jangada. Estão guardados em pequenos rolos de dez notas. 10. Ele trata o homem 1 como se fosse uma animal, domesticado. 11. O homem 1, durante toda a representação, passa o tempo ora depositando merda no balde pendurado na cadeira/jangada. 12. entre um mergulho e outro, ele conversa com o homem 2. Tem um espírito bobo. Sem malícia. A maldade está além do seu ser. Apesar do seu sofrimento diário, mantém-se vivo e desperto. Sua característica principal é a alegria, está sempre sorrindo. 13. homem 1- você sabe que dia é hoje? 14. homem 2- não. 15. pausa 1 minuto 16. homem 1- você sabe que dia é hoje? 17. homem 2- não é dia, é noite! 18. homem 1- você sabe que noite é essa? 19. homem 2- é uma noite fria, gelada, que chega a congelar a alma. 20. pausa 1 minuto 21. homem 1- você sabe que dia é hoje? 22. homem 2- é um dia tenebroso, onde as emoções profundas, profundamente emergem. 23. pausa 1 minuto 24. homem 1- você sabe que dia tenebroso é hoje?

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

32


25. homem 2- é um dia como qualquer outro, onde nos purgamos na inércia absoluta. 26. pausa 1 minuto 27. homem 1- você sabe que dia é hoje? 28. homem 2- hoje e sempre e também ontem, houve, haverá dias como o de hoje. 29. pausa 1 minuto 30. homem 1- você sabe que dia é hoje? 31. homem 2- sabe que dia após dia, conto nos dedos, os dias que passam, e eu aqui, dia após dia, no mesmo lugar, caminhando por terrenos acidentados, percorrendo horizontes infinitos, mas com a sensação de que é sempre o mesmo dia. 32. pausa 1 minuto 33. homem 1- você sabe que dia é hoje? 34. homem 2- Você sabe que dia é hoje? 35. homem 1- claro que eu sei! 36. homem 2- você sabe que dia é hoje? 37. homem 1- hoje é o dia, que a noite na madrugada, despertou seu dia, no mesmo dia, na mesma hora, e os coelhos pastaram, os vulcões invadiram ilhas, índios morreram ao respirarem o sangue de seus antepassados, homens rasgaram a carne de outros homens, por coisas que não compreendiam, meninas desvirginadas perderam o pudor no comércio da vil moralidade, e neste mesmo dia, coisas piores e melhores estão acontecendo. 38. homem 2- você está louco, esse dia não existe. Os dias hoje em dia, são belos e recheados de luz amarela, os pássaros cagam bosta dura, para não melecarem nosso aconchegante Inverno, e as pessoas sorriem umas para as outras, desejando felicidades. 39. Pausa 40. homem 1- você não sorriu para mim. 41. homem 2- você não me pediu. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

33


42. homem 1- Eu te mando uma carta. 43. homem 2- assim fica melhor. 44. homem 1- Quando eu te escrever, eu acrescento também o pedido de felicidades? 45. homem 2- em letras garrafais e grifadas. 46. pausa 1 minuto 47. homem 1- caiu uma bosta de pombo na minha cara. 48. homem 2- isso não é merda! 49. homem 1- não? 50. homem 2- não! 51. homem 1- o que é então? 52. Homem 2- é o esperma dos amantes, que nestas tardes frias, onde o vento invade o ser, amamse nas sacadas das antigas casas, saciando o desejo com seus corpos nus, quebrando a imagem da paisagem hermética, estagnada em seus alicerces. 53. homem 1- mas tem cheiro de merda! 54.homem 2- esse cheiro é do esgoto idiota. 54. homem 1- esgoto, que esgoto? 55. homem 2- este esgoto. São detritos jogados, petrificados nos canais da podridão, restos imprestáveis, de necessidades tão profundas, que até a alma desconhece. 56. pausa 1 minuto

Cena 2

57. homem 1- o dia não está tão amarelo assim! 58. homem 2- você é daltônico! Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

34


59. homem 1- é verdade, tinha me esquecido disso. 60. homem 2- Assim você vê tudo azul, é uma cor tão bonita. 61. homem 1- Me parece um pouco triste, apagada, fria até. 63. homem 2- são os seus olhos que veem tudo negro, olham a paisagem distorcida, como se fosse um espectro à persegui lo. 64. homem 1- mesmo assim me pergunto que dia negro é hoje? 65. homem 2- é um dia onde as nuvens dispersam-se na tempestade, causando interferências nas ondas teleféricas dos trastes humanos. 66. homem 1- e o que fazemos nós aqui, neste lamaçal de merda, inalando a podridão pegajosa de restos mortais, de seres que um dia, levantavam-se iluminados pelo sol da manhã, gargalhavam misturando suas vozes com saltos e alaridos vibrantes. Agora o que é isto? Quase nada. 67. homem 2- a não ser o adubo. 68. homem 1- que adubo? 69. homem 2- o melhor adubo, retirado do pólen de estrelas perdidas, que vagueiam sem rumo, pelas noites obscuras de dezembro. 70. homem 1- o que tem a ver o adubo das estrelas perdidas, com esta merda toda? 71. homem 2- você é mesmo um idiota. Esta merda, este precioso excremento da humanidade, por si só, não vale nada, mas quando juntados e acondicionado em recintos hermeticamente fechados, tem a capacidade de produzir um gás letal, muito mais poderoso que o átomo, e graças a essa merda em que você está mergulhado até o pescoço, faz se ferver uma grande caldeira, que aciona um grande motor, que por sua vez, faz funcionar uma bomba d’água, que bombeia água de um rio até um reservatório no alto de uma altíssima montanha, a água do reservatório despenca num abismo infinito fazendo girar um grande moinho, que aciona uma grande turbina retro nuclear, responsável em girar os cata-ventos gigantes, que sugam as estrelas perdidas, triturando-as com suas afiadas pás, que depois são misturadas com um pouco dessa merda e obtêm-se o melhor adubo do mundo. 72. homem 1- isso eu não sabia.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

35


73. homem 2- vê-se logo que é um completo idiota. Qualquer criança sabe, que para se conseguir o pó das estrelas, é necessário muita merda. 74. O homem 1- é que eu já não sou mais criança. As tardes em que eu andava correndo pelos campos, trepado em mangueiras e goiabeiras, ao frescor dos ventos das brisas aconchegantes de uma tenra idade, hoje já são recordações passadas. Dos tempos do mergulho nos rios, Das cavernas escuras, das descobertas sensatas, só me restam marcas e cicatrizes, das quedas e brincadeiras, que a vontade do desconhecido, deixou marcado em meu corpo infantil. 75. homem 2- isso não é desculpa para você desconhecer a utilidade dessa merda toda. 76. pausa 1 minuto

Cena 3

77. homem 1- se você é cego, como é que sabe que os dias de hoje em dia são amarelos? 78. homem 2- é um sonho que tive e tenho todas as noites antes de dormir. 79. homem 1- um sonho? 80. homem 2- é. Ele começa com pássaros cantando... O vento invade meu quarto e o meu corpo lentamente começa a despertar...pela janela aberta, luzes brancas, quase transparentes, ofuscam meu olhar, e o calor dos seus raios ardem em minha pele, e o canto dos pássaros filtram-se em meu corpo, e tudo fica claro e nítido como a luz do dia. 81. homem 1- e como você sabe que hoje é um dia amarelo? Isto aqui não é um sonho, e não há pássaros cantando. 82. homem 2- eu sei pelo calor que está fazendo, quando está um dia muito quente, o dia ilumina-se como labaredas de um incêndio qualquer, e os pássaros você não ouve porque é Surdo. 83. homem 1- é verdade, tinha me esquecido completamente disso, o silêncio que vagueia meus dias, leva meus pensamentos para além das montanhas com florestas de pinheirinhos de natal, fazendo com que as vezes eu me esqueça completamente que ouço absolutamente nada.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

36


84. homem 2- essa sua cabecinha, as vezes você diz cada merda. Quem disse que você tem pensamentos? Para se ter pensamentos, ainda que o senhor não saiba, é necessário pensar, que eu saiba seres aquáticos como você, não tem a capacidade de pensar, seus espíritos estão mergulhados na merda, e isso atrapalha o funcionamento preciso, do metabolismo encefálico, que esta tua carcaça carrega. 85. homem 1- são imagens, não sei. Elas vão e vêm com tanta velocidade, que mal consigo dizer como são. As vezes elas surgem lentamente e me invadem todo, por completo, fazendo-me adentrar em um mundo, onde tudo é claro e transparente, você vê as auras das pessoas, você sente o calor dos seus espíritos, você sente o entendimento da vida, da merda, da luz, de tudo, e numa fração de segundos eu acordo aqui, no meio dessa merda toda, me dá vontade de Vomitar. 86. homem 2- deixa de ser porco. 87. homem 1- mas esta merda toda me dá ânsia de vómito. 88. homem 2- não culpe a merda pelo seu trágico destino, foi você quem escolheu nascer submerso nessa podridão, por isso agora, não me venha com reclamações infundadas… e por hoje você já falou demais, vamos trabalhar, trabalhar… 89. pausa 1 minuto

Cena 4

90. homem 1- é verdade que você não sabe nadar? 91. homem 2- antes nadava muito bem, podia atravessar o canal da mancha 04 vezes num mesmo dia, mas um dia, um grande tubarão branco, que me perseguia toda a vez que eu cortava o pacífico em busca de terras perdidas, por distração minha, engoliu e triturou minhas duas pernas, agora o lugar mais seguro, é a minha banheira, onde nado como um campeão, acompanhado do meu patinho de borracha. 92. homem 1- E se você caísse nesta banheira de merda? 93. homem 2- impossível, este barco é muito seguro, não vira nunca. 94. homem 1- mas digamos que você caísse, por um acidente qualquer, ou por uma fatalidade do destino?

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

37


95. homem 2- isso não seria nada bom, morreríamos os dois. 96. homem 1- mas eu sei nadar muito bem, apesar de não me habituar ao cheiro, sinto-me em casa nesse habitat. 97. homem 2- eu sei idiota, mas você morreria de fome, não afogado, pois se morro eu, quem é que vai alimentá-lo todos os dias, 03 vezes ao dia? 98. homem 1- 03 vezes ao dia? Às vezes me parece que como 01 vez a cada 03 dias. 99. homem 2- você não tem muito cérebro nessa sua cabecinha, pela lei tenho de alimentá-lo 03 vezes ao dia pelo menos. De manhã acordo-o com duas gotas do melhor limão azedo que se produz em todo o mundo, no meio do dia, você chega à comer até 03 bolachas de trigo seco, e no final da noite, quando termina o seu honrado trabalho, devora de uma só vez, duas asinhas de frango. 100.

O homem 1- às vezes me parece tão pouco, sinto constantemente um vazio interior, que as

vezes chega a invadir minha alma, transformando-me em um ser inanimado. 101.

homem 2- deixa de besteira homem, você deveria agradecer a Deus pela vida que tem, não

é todo mundo que tem a sorte em levar uma vida como a sua. 102.

homem 1- isso não é verdade. Eu já ouvi dizer que por detrás desse esgoto de excremento

humano, há um mundo onde as pessoas olham-se nos olhos, amam-se e tem filhos que nas tardes de domingo, saltitam nos parques de diversão, comendo pipoca e dando amendoins aos macacos. 103.

homem 2- quem é que te disse tão absurda asneira? Com quem anda falando as

escondidas? Não sabe que as pessoas do exterior não são de confiança? Tentam a todo custo enganar seres aquáticos e estúpidos como você! 104.

homem 1- não foi ninguém não. É um sonho que as vezes perturba meu sono. Vejo-me

flutuando sobre uma terra estranha, onde as pessoas enxergam todas as cores do arco-íris, e não tem, como aqui, esse cheiro de merda e carniça que invade meus pulmões impregnando o ar, asfixiando a vida. 105.

homem 2- você as vezes diz cada coisa. Ao invés de ficar sonhando asneiras, deveria

prestar mais atenção ao seu trabalho, semana passada cheguei a encontrar 02 pares de velhas botas e algumas garrafas plásticas não recicláveis no meio de carregamento de merda. 106.

pausa 1 minuto Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

38


Cena 5

107.

homem 1- porque é que eu tenho que mergulhar tão profundamente, se aqui mesmo na

superfície, está cheio de excrementos frescos e o que é melhor, boiam. 108.

homem 2- porque é nas profundezas que o limbo se prolifera, é o ambiente propício para a

fortificação dos detritos ignorados na mais insana das nossas fantasias. Na superfície só se encontram superficialidades, se quer ir profundamente no seu trabalho, deve mergulhar no limbo e extrair das suas entranhas a mais fétida das porcarias. É isso que se valoriza nessa vida, porcarias profundas! 109.

homem 1- é verdade que quando meus pais estiverem mortos, meus filhos todos já pais, eu

terei uma cama para dormir e poderei jogar cartas aos domingos com os sobreviventes, nas imundas praças da cidade decadente? 110.

homem 2- isso é o que dizem. Não se pode confiar plenamente, já ouvir falar de pessoas que

ganharam um ataúde para a eternidade, antes mesmo de seus filhos tornarem-se pais. 111.

homem 1- mas isso é um absurdo, como pode um homem morrer, sem esperar que ao

menos seus filhos tenham tido filhos? Francamente, a moralidade dos nossos dias beira o abismo do ridículo. 112.

homem 2- são lógicas que não tem sentido para você. As leis que regem o sistema desse

nosso glorioso habitat, são indiscutíveis, não são coisas com que você deva preocupar-se. 113.

homem 1- um dia um homem me disse que os caracóis quando marcam seus caminhos com

a lentidão dos seus passos, é porque suas antenas captam as vibrações oriundas do espaço infinito, tentando atingir a velocidade da luz imaginária e mergulhar no mundo fantástico dos seres superiores e eternos. 114.

homem 2- às vezes eu não consigo te entender, as palavras que você vomita dessa tua boca

fétida, são incompreensíveis no mundo real e ao mesmo tempo me causam náuseas e o vómito vem amargar minha língua sensível. 115.

pausa 1 minuto

Cena 6 Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

39


116.

homem 1- você sabe que dia é hoje?

117.

homem 2- segunda-feira.

118.

homem 1- mas ontem foi segunda-feira.

119.

homem 2- hoje também é.

120.

homem 1- então amanhã e terça feira?

121.

homem 2- não amanhã é segunda feira.

122.

homem 1- mas se hoje é segunda, como pode amanhã ser segunda?

123.

homem 2- porque todas as segundas, o galo canta para raiar o dia e o sol ilumina as

pastagens serenadas pela noite finda e ao final do dia as estrelas despertam os grilos que com sua melodia clássica, fazem o nosso merecido sono, leve e sereno. 124.

homem 1- eu nunca ouvi o galo cantar. E o sol e as estrelas, não vejo por que não penetram

nessa masmorra úmida e fétida. 125.

homem 2- às vezes me esqueço que nem todos têm o privilégio de contemplarem essas

belas manifestações da natureza morta, pois suas almas inferiores não estão preparadas para tal contemplação. 126.

pausa 1 minuto

Cena 7

127.

homem 1- você disse que um dia eu serei livre?

128.

homem 2- disse.

129.

homem 1- e vai demorar muito tempo?

130.

homem 2- não. Só o tempo de tirar toda a merda desse lago...o balde já está cheio?

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

40


131.

homem 1- está.

132.

O homem 2 derrama todo o conteúdo do balde de volta ao lago.

133.

pausa 1 minuto

Cena 8

134.

homem 1- você sabe que dia é hoje....

135.

as luzes começam a cair em resistência. Ao fundo apenas o som da rala chuva preenche o

silêncio dos corações vazios.

The end

FIM DE PARTIDA A partir de Endgame de Samuel Becket

Personagens

O enfermeiro O homem Peixinho dourado

Cenário

uma sala de convívio, qualquer Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

41


Uma sala de espera, vazia Uma sala de troca de roupa, negra Uma sala uti (unidade de tratamento intensivo), com cadeiras, tubos e garrafas penduradas pelo ar

Figurino

batas descartáveis de cirurgia

Registro Interpretativo

hiper naturalista (energia butoh)

Estética

expressionista

Linguagem

simbólica

Iluminação

sala convívio branca Sala de espera branca contra luz Sala de troca de roupa azul Sala uti vermelha e foco branco

Sonoplastia música instrumental espacial

Tema o vazio da existência humana

Cena primeira

Unidade 1

1. O público aguarda o início da representação numa sala contígua. O ticket de entrada é uma senha numerada.

Cena segunda Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

42


Unidade 1

2. O público é encaminhado para uma segunda pequena sala totalmente vazia. Aguarda por mais alguns instantes. O espaço é preenchido de luz vermelha. Um homem vestido somente com uma roupa descartável de sala de cirurgia invade o espaço. Carrega a tiracolo um calendário e uma caneta pendurada no pescoço. Tem nos olhos olheiras profundas e vermelhas. Examina seu calendário e chama um número. 3. Enfermeiro- número 13, número 13 por favor. 4. Uma pessoa do público com o respectivo número caminha até ele.

Unidade 2

5. Enfermeiro- O seu ticket por favor.

Cena terceira

Unidade 1

6. A pessoa entrega seu ticket a ele. Os dois desaparecem no interior da terceira sala. Um som ensurdecedor se faz presente. A terceira sala é escura e longa, tem uma luz azulada preenchendo seu vazio, uma das paredes é lisa e uma outra repleta de aventais descartáveis cirúrgicos e máscaras também descartáveis. O enfermeiro pega num avental e numa máscara. Tem uma postura mecânica, indiferente.

Unidade 2

7. Enfermeiro (mecanicamente dando instruções) - estique os braços...para frente...para dentro da bata...vire-se ...ponha a máscara... Encoste-se...na parede...ao fundo por favor...

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

43


Unidade 3

8. Ele encosta-se junto dessa pessoa e segreda alguma coisa no seu ouvido esquerdo. São fragmentos de um poema. 9. Enfermeiro (sussurra amavelmente) – Nós que habitamos este mundo Que sabemos que a internet liga o mundo Que sabemos da vida privada de celebridades Que sabemos que negros morrem em África aos milhares com fome Nas guerras dos homens que alimentam seus banquetes com o sangue dos que perderam suas identidades Sabemos também que aqui outros tantos sofrem outros males Nós que sabemos sobre a lei quântica Que duvidamos dos olhos azuis de cristo Será que sofremos tanto? Digo, tanto quanto podem sofrer outros semelhantes seres Abandonados pela sorte de seus destinos tortos Controlados por mentes que não se enganam Que controlam a nós também Mentes desconhecidas é verdade Que constroem comunidades de seres largados nos seus cantos E nós Nós mesmos, largados num canto Gemendo nossa dor solitária.

Unidade 4

10. Abandona a pessoa e dirige-se para a segunda sala. Examina seu calendário e chama outro número. 11. Enfermeiro- número 4, número 4 por favor. 12. Outra pessoa do público com o respectivo número caminha até ele. 13. Enfermeiro- seu ticket por favor.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

44


14. Vão os dois para dentro da terceira sala e o ritual repete-se. O enfermeiro, depois de vestir cada pessoa, segreda no seu ouvido esquerdo um fragmento de um poema. Entra na sala a última pessoa. O enfermeiro veste-a, dirige-se para a extremidade da pequena sala, e abre uma terceira porta.

Cena quarta

Unidade 1 15. Enfermeiro- façam o favor de entrar e ocupar o lugar com o vosso numero, favor de entrar e ocuparem o lugar com vosso número, de entrar e ocuparem o lugar com vosso número, e ocuparem o lugar com o vosso numero, lugar com o vosso número, com vosso número, vosso número, número, número, número... 16. O espaço é uma sala margeada por cadeiras cobertas com panos brancos e sujos de sangue, com garrafas penduradas pelo espaço, cheias de líquidos coloridos, com tubos transparentes que rasgam o espaço vazio a caminho do solo. O chão é também forrado com panos brancos sujos de sangue. De frente para as cadeiras um televisor ligado a uma câmera de filmar que projeta no ecrã televisivo imagens do público presente. O cheiro a éter impregna o espaço.

Unidade 2

17. Enfermeiro invade a cena, agacha-se e dobra um pano que tapa alguma coisa no chão. Debaixo do pano um homem nu ligado aos tubos transparentes pendurados em garrafas pelo espaço. Seu corpo está coberto por sangue e hematomas. Dos seus olhos, narinas, ouvidos, punhos e pulsos escorre sangue. O enfermeiro coloca o pano dobrado embaixo da cabeça do homem nu e vai sentar-se numa cadeira ao seu lado. Pega a câmera sobre a tv e começa registrar as imagens da representação. O homem nu tem sobre a face um velho trapo encardido que esconde toda a sua cara. Gradativamente ele vai-se destapando, retirando lentamente o trapo que esconde seu rosto. Seus movimentos são lentos e energéticos. Sua respiração ofegante e pesada. A música baixa ao fundo gradativamente.

Cena quinta

Unidade 1 Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

45


18. Homem (retirando o trapo e olhando a sua volta lenta e gradativamente) - é o fim Isto vai acabar Os grãos juntam-se aos grãos Um a um E um dia de repente é um monte Um montinho O monte possível

Unidade 2

19. Homem (olhando para o trapo já junto a sua face) - Velho trapo haverá miséria maior que a minha Talvez tenha havido sem dúvida noutros tempos E hoje será que sofro tanto como sofrem meus semelhantes seres Isto quer dizer que nossos sentimentos se equivalem Sem dúvida que sim Tudo é tão absoluto Quanto maior se é mais cheio se está Ou quanto mais vazio

Unidade 3

20. Seu corpo é rasgado por uma dor física qualquer. 21. Homem- basta 22. Relaxa ofegantemente tentando aliviar a dor.

Unidade 4

23. Homem - Já são horas que isto acabe e, no entanto, hesito em chegar ao fim Em todo o caso, ainda vacilo em acabar Que terei eu hoje Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

46


Seria melhor que eu voltasse a dormir Fora daqui é a morte

Unidade 5

24. Novamente uma pequena dor invade seu ser. 25. Homem - Malditos progenitores Ah os velhos só pensam em comer não pensam noutra coisa Cada um com a sua especialidade

Unidade 6

26. A dor intensifica-se. 27. Homem - Isto não vai depressa Mas é sempre assim no final do dia Um final de dia como todos os outros

Unidade 7

28. Progressivamente a dor aumenta até chegar ao insuportável. 29. Homem- isto progride. Unidade 8 30. Tentando relaxar. 31. Homem - Ah se eu dormisse Se eu dormisse talvez eu amasse Talvez eu e alguém iríamos pelos bosques Veríamos o céu e a terra Correríamos atrás dos nossos sonhos perdidos Mergulharíamos no riacho doce dos nossos desejos esquecidos E eu fugiria

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

47


Unidade 9

32. Volta seu corpo para a posição inicial tentando adormecer. Violentamente uma dor aguda invade sua cabeça, como querendo estourá-la. 33. Homem - Há uma gota de água na minha cabeça Há um coração de sangue vermelho na minha cabeça cega Ah se eu dormisse Talvez sonhasse e nossos corações seriam tranquilos Seria um sonho

Unidade 10

34. Relaxa por completo na sua dor e pouco a pouco volta a sua normalidade. 35. Homem - Mas quando é que isto acaba Do que será que ainda se pode falar Não há pressa

Unidade 11

36. Lentamente começa a sentar-se. 37. Homem- a minha ira recai.

Unidade 12 38. Olhando a sua volta com determinação 39. Homem - Tenho vontade de fazer xixi Tenho vontade de fazer xixi Tenho vontade de fazer xixi…

Unidade 13

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

48


40. Procura desesperadamente seu pênis. Encontra-o. 41. Homem (angustiado) - mas também não tenho pressa

Unidade 14

42. Pausa 43. Homem - Pela manhã nos dão estimulantes pela tarde estupefacientes Ou ao contrário tanto faz

Unidade 15

44. Alguma coisa fora desse tempo chama a sua atenção e ele tenta ouvir mais além. 45. Homem (colocando as mãos no ouvido esquerdo) - Mais além está o outro inferno Ouçam

Unidade 16

46. Olhando para trás fixando-se por algum tempo em algo e retornando a olhar para a frente. 47. Homem- ouviram

Unidade 17

48. Tempo. 49. Homem- tudo isto é oco

Unidade 18

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

49


50. A dor ausente retorna para marcar sua presença. 51. Homem- basta

Unidade 19

52. Olhando a sua volta angustiado. 53. Homem - Isto é duma tristeza Nada mexe É tudo tão cinzento Preto claro Todo o universo Nunca se sabe

Unidade 20

54. Tentando recuperar-se lentamente. 55. Homem - Esta noite vi meu peito aberto sangrando Tinha uma ferida muito grande Parecia uma coisa viva Nessas noites quando meu peito aberto vermelho pulsa meu coração infantil Meus olhos parecem ver além das estrelas Não sei

Unidade 21 56. Começa lentamente a tentar ficar em pé. Não consegue. 57. Homem- não estaríamos na hora de significar alguma coisa Unidade 22 58. Tenta novamente e com muito esforço assume uma posição quase ereta. 59. Homem - Se uma inteligência regressasse à terra Não estaria tentada a formular ideias à custa de nos observar Unidade 23

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

50


60. Olhando a sua volta, como esperando respostas. 61. Homem - Até mesmo nós Nós por momentos

Unidade 24

62. Olha para uma garrafa que está a sua frente e tenta apanhá-la. Esforça-se exaustivamente. Não consegue. Cai. 63. Homem- e pensar que tudo isto talvez não tenha servido para nada

Unidade 25

64. Tempo. 65. Homem - Isto demora Alguma coisa segue seu curso

Unidade 26

66. Ele volta a deitar. 67. Homem - Partirei só a caminho do sul a procura do mar Construirei uma jangada As correntes marítimas conduzir-me-ão longe Muito longe Até outros mamíferos Partirei só E vocês um dia ficarão cegos como eu Ficarão sentados em algum canto escuro na plenitude do vácuo Para sempre na sombra Como eu Um dia dirão Estamos cansados Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

51


Vamos nos sentar um bocadinho E se sentarão E depois dirão Temos fome Vamos nos levantar e fazer nosso comer Mas não se levantarão E dirão Fizemos mal em nos sentarmos Mas visto que nos sentamos continuaremos sentados mais um pouco Levantaremos depois e faremos o nosso comer Mas vocês não se levantarão e nem farão o vosso comer Olharão por um instante a parede branca e dirão: Vamos fechar os olhos Talvez dormir um pouco E depois pensam vocês Tudo ficará melhor E fecharão os olhos E quando voltarem a abri-los já não haverá parede branca Apenas o vácuo da incerteza vazia O infinito os rodeará e nem todos os mortos de todos os tempos bastarão para preencher o vazio das vossas certezas E como uma semente no deserto árido estarão vocês sós Sozinhos Um dia saberão o que é Saberão como eu Exceto que vocês não terão ninguém Porque não tiveram piedade de ninguém À parte que não haverá mais ninguém por quem sentir piedade

Unidade 27

68. Tempo. 69. Homem - Só temos uma solução Aniquilar-nos Que tal Gosto das velhas perguntas Das velhas respostas que lançam novas perguntas Não há nada melhor

Unidade 28

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

52


70. A dor volta avassaladoramente profunda. Seus músculos enrijecem. Sua respiração comprimese 71. Homem- isto progride

Unidade 29

72. Tempo. 73. Homem- sigo meu curso

Unidade 30

74. Tempo. Senta-se. 75. Homem - Ah as pessoas Tem-se que lhes explicar tudo Bom vamos lá Eu conheci um louco que julgava que o fim do mundo tinha chegado Ele pintava Eu gostava dele Ia visitá-lo ao hospício Pegava-lhe na mão e arrastava-o até a janela Olha ali, dizia eu Os girassóis cortando o espaço colorindo o céu azul E ali as mulheres alegres cantando a beira do riacho das pedras pontiagudas Ele soltava-se da minha mão e retornava ao seu canto Ele só havia visto cinzas e devastação

Unidade 31

76. Tempo. 77. Homem- parece-me que esses casos não são assim tão raros

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

53


Unidade 32

78. Tempo. 79. Homem - Eu gostava dele Ele era pintor Pintava

Unidade 33

80. Tempo. 81. Homem- não vos parece que isto já durou o bastante

Unidade 34

82. Tenta levantar-se e acaba por ficar de joelhos. 83. Homem- silêncio por favor

Cena sexta

Unidade 1 84. Silêncio. O homem levanta-se e seu registro interpretativo muda por completo, seu corpo ereto ocupa todo o espaço com seus músculos rijos, sua voz que aparentava a fragilidade do fim, das forças que acabam, preenche o vazio sonoro do espaço com força e determinação. Tem um tom irônico no falar. 85. Homem - Onde estava eu Ah sim O homem aproximou-se lentamente Arrastando-se de barriga para baixo De uma palidez e uma magreza admiráveis Um longo silêncio se fez ouvir Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

54


Eu enchia calmamente o meu cachimbo de madrepérola Acendia-o Soltava uma baforada na sua cara Vamos dizia eu Sou todos ouvidos Fazia nesse dia recordo-me perfeitamente um frio extremamente vivo Zero no termómetro Mas como estávamos na véspera de natal isso não tinha nada de extraordinário Um clima de estação como costuma ser Vamos dizia eu Que mau tempo te trouxe aqui Ele levantou a cara completamente suja de porcarias Borrada com suas lágrimas paternas Olhou-me nos olhos Não, não me olhe Ele baixou a cabeça murmurando desculpas sem dúvida Diga logo Eu estou muito ocupado com os preparativos da festa como deve calcular Mas qual é o objetivo dessa invasão Fazia um dia maravilhosamente esplêndido Sol gélido dos ventos do norte queimavam nossos lábios serenos Vamos, vamos diga alguma coisa Foi então que ele tomou a sua decisão É o meu filho o disse Como se o sexo tivesse importância De onde viria ele Meio-dia mais ou menos a cavalo disse ele Não me venha dizer que ainda há população por aí Era o que faltava Expliquei-lhe que não havia almas vivas nos próximos 2 milhões de kms Informei-lhe sobre a extinção total de toda a espécie animal sobre a face da terra Nem um gato revirando restos de comida Bom, então quer fazer-me acreditar que deixou seu menino lá Completamente só E ainda por cima vivo Fazia nesse dia recordo-me um vento uivante que gelava nossas espinhas Vamos, vamos que quer de mim afinal Um pão disse ele Um pão para o meu menino Um pedinte como sempre Pão Mas eu não tenho pão Então trigo Trigo realmente tenho em meus celeiros Mas reflita Eu dou-te o trigo Um k Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

55


Um k e 1/2 Leva-o ao teu filho e prepara-lhe se ele ainda estiver vivo Uma boa papa Uma boa papa e ½ Ele retoma suas forças Talvez E depois Zanguei-me Raciocina estamos na terra o que espera você Que a terra renasça em primavera Que os mares e os rios voltem a encherem-se de peixes Que ainda exista no céu um lugar para os imbecis Para o senhor Pouco a pouco acalmei-me O suficiente para lhe perguntar quanto tempo demorou para chegar aqui 03 dias completos Em que estado tinha deixado a criança Mergulhado no sono disse ele Mas que espécie de sono Um sono infantil Infantil como Como os anjos que disfarçam a imortalidade em sorrisos com asas sem fim Enfim ele tinha me comovido Propus-lhe que trabalhasse para mim Depois imaginava eu que ele não ficaria por muito tempo Aqui se tiver cuidado pode-se morrer uma bela morte Naturalmente confortável Então disse ele A criança, posso trazer a criança Se ainda ela estiver viva é claro Era o momento que eu esperava Se eu posso recolher a criança Revejo-o de joelhos As mãos no chão Fixando-me com seus olhos de louco Apesar de ter-lhe avisado para não mirar meus olhos

Unidade 2

86. Homem (deixando a narrativa de lado, voltando gradativamente ao seu registro original) - Chega por hoje

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

56


Não terei por muito mais tempo esta estória A não ser que acrescente personagens Mas onde encontrá-los Ai meu deus tende piedade de mim

Unidade 3

87. Ajoelha-se em posição de oração. 88. Homem - Agora rezemos a deus Silêncio (mirando a sua volta) um pouco de compostura senão não chegamos a nada (olhando para os céus) pai nosso……………………………..Amém

Unidade 4

89. Lentamente desmancha a posição de oração. 90. Homem- fim da palhaçada.

Cena sétima

Unidade 1

91. Deita-se relaxadamente. 92. Homem - Sinto-me um pouco vazio O esforço criativo prolongado suga-me todas as forças Se eu pudesse arrastar-me a beira do mar faria um travesseiro de areia E durante a noite no meio de sonhos selvagens a maré viria-me acordar Eu acenaria para os navegadores perdidos E depois nadaria até terras distantes Ah se pudesse me arrastar

Unidade 2 Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

57


93. Chora compulsivamente. 94. Homem - Que é que eu vou fazer Que é que eu vou fazer É isso Agora eu represento

Unidade 3

95. Senta-se. 96. Homem - Chora-se para nada Para não se rir E pouco a pouco uma verdadeira tristeza nos ganha

Unidade 4

97. Tempo. 98. Homem - Todos aqueles que eu poderia ter ajudado Ajudado Salvado Mas raciocinem Estamos na terra Não tem remédio

Unidade 5 99. Olhando fixamente as pessoas à sua volta. 100. Homem - Vão-se embora e amem-se Lambam-se uns aos outros Voltem aos vossos bacanais Mas por favor deixem-me em paz

Unidade 6

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

58


101. Tempo.

Unidade 7

102. Homem - Tudo isto é uma grande merda Nem sequer um cão verdadeiro O fim está no começo e no entanto continua-se Eu poderia talvez continuar a minha estória acabá-la e começar outra Talvez atirar-me ao chão Enterrar minhas unhas nas ranhuras e arrastar-me com meus pulsos

Unidade 8

103. Tempo. 104. Homem - Isto será o fim E eu me pergunto quem poderá tê-lo trazido Por que demorou tanto

Unidade 9

105. Tentando levantar-se. 106. Homem - Eu estou aqui neste refúgio sozinho lutando contra o silêncio e a inércia Se eu puder calar-me e ficar imóvel será coisa arrumada Chamaria pelo meu pai e pelo meu filho Chamaria 03 vezes para o caso deles não terem ouvido nem na 1ª nem na 2ª

Unidade 10

107. Tempo.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

59


108. Homem - Passos Ratos Olhos O suspiro que se retém Depois falar depressa Não parar de falar Falar como a criança que se multiplica em 3, 4 para estar acompanhada E falar em conjunto na noite na madrugada morta E como grãos 1 a 1 soma-se e espera-se Para que toda a vida nos faça uma vida Então que isto acabe Que isto rebente com o resto no fim com as sombras com os murmúrios e com todo o mal

Unidade 11

109. Tempo. 110. Homem - Para acabar apenas uma coisa Uma última graça Compete-me representar

Unidade 12

111. Posiciona-se. 112. Homem - Velho fim de partida perdida Deitar fora Tirar Tornar a repor Tu chamavas o tempo Tu reclamavas a noite Ela veio Ela desceu Ei-la E depois Momentos nulos Sempre nulos Mas se querem fazer a conta A conta aí está E a estória acaba

Cena oitava

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

60


Unidade 1

113. Levanta-se lentamente e com muito esforço em direção a garrafa presa por tubos na sua cabeça. 114. Homem - Se ele poderia ter o filho com ele Era o momento que eu esperava Não quer abandoná-lo Quer que ele cresça enquanto o senhor vai minguando Ele só conhece a morte o frio e fome nos seus extremos Mas o senhor O senhor deve saber o que é a terra presentemente Coloquei-o perante suas responsabilidades

Cena nona

Unidade 1

115. A dor retorna com intensidade cruel, levando seu corpo ao solo. 116. Homem - Bem cá estou eu E para acabar Jogar fora Arremessar distante Visto que isto é assim Não falemos mais nisto Não falemos mais

Unidade 2

117. Agarra decididamente o trapo. 118. Homem - Velho trapo Tu ficas comigo

Unidade 3

119. Enfia o trapo na boca tentando sufocar-se.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

61


120. Black’out. A música invade o espaço. Tempo. A música baixa gradativamente até desaparecer. Silêncio.

Cena décima

Unidade 1

121.

Começa-se a ouvir ao fundo uma pesada respiração. Na escuridão do silêncio ouve-se a

voz do enfermeiro. 122.

Enfermeiro

- Ah a juventude Com seus músculos rijos Com sua mente embrulhada Que grita por todos os cantos suas inquietações precisas Que sabe o valor da sua vida oprimida Que só viveu até o presente A liberdade plena da vida Herança recém perdida na infância preciosa Lúdica Liberta Juventude maioritariamente absoluta Ah a juventude Que foge de seus pais aflitos Que faz o seu pão no mercado negro do ócio Que cresce e conhece o patrão da vida eterna Que bate cartão E esquece o passado ainda tão presente em seu coração infantil Que envelhece na amargura da sua vida forçada Forjada E que num futuro próximo Ainda não velha Reclama em frente à tv Da vida Do nada Do tudo E envelhece Mas nunca deixa de reclamar Há que deixar bem claro isso E assim molda sua poltrona Com suas amarguras futuras.

Cena décima primeira Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

62


Unidade 1

123. A música e a luz voltam gradativamente preenchendo todo o vazio do silêncio. O homem lentamente senta-se, abre seus olhos que até o momento estavam fechados, mira seu olhar nos olhos ao seu redor, assustado começa a chorar suas tristezas terrenas, até seu choro torna-se compulsivamente pesado.

Unidade 2

124. O enfermeiro levanta-se do seu lugar e caminha em direção ao homem. O homem assustase aumentando seu choro. O enfermeiro aproxima-se do homem, e fraternalmente pousa a cabeça do homem sobre seu peito tentando acalmá-lo. Fixa- se seu olhar em todos os presentes.

Unidade 3

125. Enfermeiro (energicamente) - Façam o favor de se levantar, tirar as batas, pousar as máscaras e sair.

Cena décima segunda

Unidade 1 126. O som alegre e festivo de uma canção popular invade a cena. 127. O público gradativamente abandona o espaço.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

63


The end

OBRIGADO

Personagens Rainha Militar Homem do povo

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

64


Cenário

Um salão nobre formado por um trono que na verdade é um vaso sanitário rodeado

de folhas amassadas de jornais velhos com um longo tapete de cerimônia que serve de capa para a rainha.

Espaço

Arena

Duração

45 minutos

Tema O poder

Pretexto

O poder sempre o poder o poder individual que ansiamos vítimas que somos do

poder unânime da coletividade individualmente burra poder plural desconhecido que das sombras obscuras controlam nossas vidas minguadas num tempo distante, sistematicamente fomos margeados nos nossos caminhos diários com o poder absoluto da monarquia, que parecia eterna, noutro momento sob o punho pesado da moralidade da modernidade decadente que eternamente parecia não ter fim finalmente por poucos momentos a esperança acesa num breve período que descarrilou toda a mentalidade que direcionava nossos rumos já milimetricamente traçados depois o grande vazio da incerteza de nossos futuros sem sombras que sob a névoa da globalidade múltipla de sentidos sem significados virtualmente nos rouba a vida oferecendo-nos em troca a possibilidade inatingível dos bens que delimitam o estar presente nessa terra transitória de transe sempre em transe hipnotizados por verdades relativas sempre relativas mas inadvertidamente sempre absolutas e nós incomodados em nossos cantos escuros úmidos gemendo nossa dor solitária sempre com a sensação presente do vazio dos significados que constroem nossos dias romanos abafamos o grito dos nossos corações desesperados com falsas esperanças de matérias concretas que inequivocamente nos remetem ao nada.

Cena 1. Registro clownesco. Tempo desejável da cena: 15 minutos. Após a entrada do público no espaço do acontecimento as portas são trancadas com correntes e cadeados. As cenas que se seguem são cíclicas e repetir-se- ão indefinidamente até que algum ser, com atitude rara, finalize a repetição desgastante da representação. Só então as portas serão abertas e liberadas para a saída do público incauto. Silêncio. Escuridão total. Começa-se a ouvir ao fundo a música ``obrigado dos Titãs.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

65


Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado... Luz. No trono a rainha bate clara de ovos, parece feliz, mas entediada. Carrega a tiracolo um par de binóculos. Aos pés da escadaria, um militar escova-limpa-espana-lustra a escadaria. É do tipo puxa-sacoinvejoso-perigoso. No centro, mais a frente, um homem do povo está sem nada a fazer. Em volta dele, muitas folhas em branco (ou jornais) amassadas e espalhadas pelo chão. O homem do povo, apanha as folhas de papéis do chão, uma a uma, desdobrá- las e monta um bloco de folhas amassadas. Retira do bolso um lápis. Faz rabiscos. A rainha observa-o atentamente. Os rabiscos viram letras, as letras palavras, as palavras sons, os sons incomodam. A rainha deixa de bater claras de ovos, chama o militar e cochicha alguma coisa em seus ouvidos. Ele desce das escadas e caminha até o homem do povo. A rainha observa-os. Está inquieta. Militar- bom dia cavalheiro. Homem do povo- bom dia. Militar- O que o senhor está fazendo? Homem do povo- escrevendo não está vendo! Efeito pinga! Militar- E o senhor gosta? Homem do povo- o que? Militar- O senhor gosta de escrever? Homem do povo - gosto! Militar- o senhor não sabe que é ridículo gastar papel desta maneira, um produto tão raro e valioso hoje em dia? O senhor sabe quantas árvores são necessárias para se fazer uma folha de papel? Não sabe? Milhões! Homem do povo- milhões? Militar- é milhões! Efeito vaias de auditório. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

66


Militar- E então? Homem do povo- então o que? Militar- O senhor não acha que já gastou muito por hoje? O militar tira drasticamente o lápis e o bloco de papéis das mãos do homem do povo. Efeito palmas de auditório. Militar- então, o que o senhor está fazendo aqui? Homem do povo- eu? Não estou fazendo nada. Não estão vendo? Efeito poing. Militar- o senhor não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que o senhor não vai se divertir? Homem do povo- divertir-me? Militar- é divertir-se! Efeito palmas de auditório. O militar entrega o lápis e o bloco de papéis à rainha. Ele volta ao seu papel de puxa-saco-invejoso. O homem do povo está sem nada a fazer. A rainha começa a rabiscar as folhas, amassa-as e joga-as fora. O militar pega-as e examina-as atentamente. Guarda algumas com ele. A rainha começa a se aborrecer. O homem do povo retira do bolso um balão azul e começa a enchê-lo. Brinca com ele. Diverte-se muito. A rainha observa-o atentamente. Está inquieta. Deixa de rabiscar e chama o militar, cochicha alguma coisa em seus ouvidos. O militar caminha até ao homem do povo. Militar- boa tarde senhor. Homem do povo- boa tarde. Militar- O que o senhor está fazendo? Homem do povo- estou me divertindo, não está vendo? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

67


Efeito poing. Militar- E o senhor gosta? Homem do povo- do que? Militar- De brincar com isso? Homem do povogosto! Militar- o senhor não sabe que brincar com balões é muito perigoso, um descuido e eles podem explodir. O senhor não sabia? Homem do povo- sabia o que? O militar retira o balão da mão do homem do povo. Efeito vaia de auditório. Militar- O que o senhor está fazendo? Homem do povo- eu não tô fazendo nada não está vendo? Efeito poing. Militar- o senhor não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que o senhor não vai comer? Homem do povo- comer? Militar- é comer! Efeito palmas de auditório. O militar entrega o balão à rainha. O homem do povo está sem nada a fazer. A rainha brinca com o balão. Ele escapa diversas vezes da sua mão. Toda vez que o balão vai ao chão, o militar apanha-o e brinca um pouco com ele. Entrega- o à rainha e volta ao seu posto. A rainha se aborrece. O homem do povo retira do bolso um sanduíche e começa a comê-lo delicadamente. A rainha observa-o atentamente. Chama o militar e cochicha alguma coisa em seu ouvido. O militar caminha até o homem do povo. militar- boa noite cavalheiro. Homem do povo- boa noite. Militar- O que o senhor está fazendo? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

68


Homem do povo- eu estou comendo não está vendo. Efeito poing. Militar- E o senhor gosta? Homem do povo- o que o senhor acha? Militar- é o que eu te pergunto? Homem do povo- gosto! Militar- o senhor não sabe que é ridículo comer desta maneira, comer assim pode te causar indigestão! Homem do povo- indigestão? Militar- é indigestão! O militar tira drasticamente o sanduíche das mãos do homem do povo. Efeito varia de auditório. O militar permanece por algum tempo ao seu lado. Ele cheira o sanduíche como um cão. Coloca alguma coisa no meio do sanduíche. Militar- O que o senhor está fazendo? Homem do povo- eu? Não to fazendo nada o senhor não está vendo? Militar- o senhor não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que o senhor não vai para casa? Homem do povo- para casa? Militar- É para casa! Foi o que eu disse. Efeito palmas. O militar entrega o sanduíche à rainha. O homem do povo está sem nada a fazer. A rainha começa a comer o sanduíche. Ela come-o grotescamente. O homem do povo começa a se fechar na posição fetal. A rainha engasga-se. O militar tenta ajudá-la, batendo com as mãos em suas costas. Bate com muita força e acaba derrubando-a do trono. O homem do povo solta um grito aterrorizante. Ao cair, a coroa da rainha vai parar nas mãos do militar, ele joga seu capacete fora e experimenta a coroa. O militar puxa a descarga e experimenta-limpa- esfregue-lustra o trono. Senta- se nele. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

69


Começa a bater claras de ovos. Black’out. Ouve-se o barulho de uma máquina fotográfica disparando. Foto cena congelada. Silêncio. Escuridão total. Começa-se a ouvir ao fundo a música ``obrigado '' dos Titãs. Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado...

Cena 2. Registro expressionista. Tempo desejável da cena: 30 minutos. Luz. Sobre o vaso um militar bate claras de ovos. Parece entediado. Carrega a tiracolo um binóculo. A sua esquerda, no pé da escadaria, o homem do povo escova-limpa-espana- lustra a escadaria. É do tipo puxa saco-invejoso.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

70


No centro, mais a frente, a rainha está sem nada a fazer. A sua volta muitas folhas em branco amassadas espalhadas pelo chão. A rainha começa a apanhar as folhas de papel, uma a uma. Desdobra-as e monta um bloco de folhas amassadas. Retira do bolso um lápis e começa a fazer rabiscos. O militar observa-a atentamente. Os rabiscos viram letras, as letras palavras, as palavras sons, os sons incomodam. O militar deixa de bater os ovos, chama o homem do povo e cochicha alguma coisa em seu ouvido. O homem do povo caminha até a rainha. Permanece calado algum tempo ao seu lado. O militar os observa. Está inquieto. Homem do povo- bom dia senhora. Rainha- bom dia. Homem do povo- o que a senhora está fazendo? Rainha- escrevendo não está vendo! Efeito poing! Homem do povo- E a senhora gosta? Rainha- o que? Homem do povo- a senhora gosta de escrever? Rainha- Gosto! Homem do povo- a senhora não sabe que é ridículo gastar papel desta maneira, um produto tão raro e valioso hoje em dia? A senhora sabe quantas árvores são necessárias para se fazer uma folha de papel? Não sabe? Milhões! Rainha- milhões? Homem do povo- é milhões! Efeito vaias de auditório. Homem do povo- e então? Rainha- então o que? Homem do povo- a senhora não acha que já gastou muito por hoje? O homem do povo tira drasticamente o lápis e o bloco de papéis da mão da rainha. Efeito palmas de auditório. O homem do povo examina as folhas de papel ao lado da rainha. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

71


Homem do povo- então, o que a senhora está fazendo aqui? Rainha- eu? Não to fazendo nada. Não está vendo? Efeito poing. Homem do povo- a senhora não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que a senhora não vai se divertir? Rainha- divertir-me? Homem do povo- é divertir-se! Efeito palmas de auditório. O homem do povo entrega o lápis e o bloco de papéis ao militar e volta ao seu papel de puxa-sacoinvejoso. A rainha está sem nada a fazer. O militar começa a rabiscar as folhas, amassa- as e joga-as fora. O homem do povo pega-as, examina-as atentamente e guarda- as com ele. O militar começa a se aborrecer. A rainha retira de seu bolso um balão azul e começa a enchê-lo. Brinca com ele. Diverte-se muito. O militar observa-a atentamente. Está inquieto, deixa de rabiscar e chama o homem do povo, cochicha alguma coisa em seu ouvido. Ele caminha até a rainha. O homem do povo permanece calado por algum tempo ao seu lado. Homem do povo- boa tarde senhora. Rainha- Boa tarde. Homem do povo- o que a senhora está fazendo? Rainha- estou me divertindo, não está vendo? Efeito poing. Homem do povo- E a senhora gosta? Rainha- do que? Homem do povo: De brincar com isso? Rainha- Gosto! Homem do povo- a senhora não sabe que brincar com balões é muito perigoso, um pequeno descuido e eles podem explodir. A senhora não sabia? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

72


Rainha- Sabia o quê? O homem do povo retira o balão da mão da rainha. Efeito vaia de auditório. O homem do povo permanece algum tempo ao seu lado brincando com o balão. Homem do povo- o que a senhora está Fazendo? Rainha- eu não to fazendo nada não está vendo? Efeito poing. Homem do povo- a senhora não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que a senhora não vai comer? Rainha- Comer? Homem do povo- é comer! Efeito palmas de auditório. O homem do povo entrega o balão ao militar e volta ao seu posto de puxa-saco invejoso. A rainha está sem nada a fazer. O militar brinca com o balão. Ele escapa diversas vezes da sua mão. Toda vez que o balão vai ao chão o homem do povo apanha-o e brinca um pouco com ele. Entrega-o ao militar. O militar se aborrece. A rainha retira do bolso um sanduíche e começa a comê-lo delicadamente. O militar observa-a atentamente. Chama o homem do povo e cochicha alguma coisa em seu ouvido. O homem do povo caminha até a rainha. Permanece calado algum tempo ao seu lado. Homem do povo- boa noite senhora. Rainha- Boa noite. Homem do povo- o que a senhora está fazendo? Rainha- eu estou comendo não está vendo? Efeito poing. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

73


Homem do povo- E a senhora gosta? Rainha- O que o senhor acha? Homem do povo- é o que eu te pergunto? Rainha- Gosto! Homem do povo- a senhora não sabe que é ridículo comer desta maneira, comer assim pode te causar indigestão! Rainha- indigestão? Homem do povo- é indigestão! O homem do povo tira drasticamente o sanduíche das mãos da rainha. Efeito palmas de auditório. Pausa. O homem do povo permanece por algum tempo ao lado dela. Ele cheira O sanduíche como um cão. Coloca algo no meio do sanduíche. Homem do povo- o que a senhora está fazendo? Rainha- eu? Não estou fazendo nada o senhor não está vendo! Homem do povo- a senhora não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que a senhora não vai para casa? Rainha- para casa? Homem do povo- é para casa! Foi o que eu disse! Efeito palmas. O homem do povo entrega o sanduíche ao militar e volta ao seu papel de puxa- saco invejoso. A rainha está sem nada a fazer. O militar começa a comer o sanduíche. Ele come-o grotescamente. A rainha começa a se fechar na posição fetal. O militar se engasga.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

74


O homem do povo tenta ajudá-lo, batendo com as mãos em suas costas. Bate com muita força e acaba derrubando-o do trono. A rainha solta um grito aterrorizante. Ao cair, o militar acaba abandonando sua coroa. O homem do povo joga fora seu capacete e experimenta a coroa. O homem do povo puxa a descarga e experimenta-limpa-esfrega lustra o trono. Black’out. Ouve-se o barulho de uma máquina fotográfica disparando. Foto cena congelada. Silêncio. Escuridão total. Começa-se a ouvir ao fundo a música ``obrigado '' dos Titãs. Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado...

Cena 3. Registro naturalista. Tempo desejável da cena: 15 minutos. Luz. Sobre o vaso o homem do povo bate claras de ovos. Parece entediado. Carrega a tiracolo um binóculo. A sua esquerda, no pé da escadaria, uma rainha escova-limpa-espana lustra a escadaria. É do tipo puxa-saco-invejosa.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

75


No centro, mais a frente, o militar está sem nada a fazer. A sua volta muitas folhas em branco amassadas espalhadas pelo chão. O militar começa a apanhar as folhas de papel, uma a uma. Desdobra-as e monta um bloco de folhas amassadas. Retira do bolso um lápis e começa a fazer rabiscos. O homem do povo observa-o atentamente. Os rabiscos viram letras, as letras palavras, as palavras sons, os sons incomodam. O homem do povo deixa de bater os ovos, chama a rainha, cochicha alguma coisa em seu ouvido. A rainha caminha até o militar. Permanece calada algum tempo ao seu lado. O militar os observa. Está inquieto. Rainha- bom dia, cavalheiro. Militar- bom dia. Rainha- O que o senhor está fazendo? Militar- escrevendo não está vendo! Efeito poing! Rainha- E o senhor gosta? Militar- o que? Rainha- O senhor gosta de escrever? Militar- Gosto! Rainha- O senhor não sabe que é ridículo gastar papel desta maneira, um produto tão raro e valioso hoje em dia? O senhor sabe quantas árvores são necessárias para se fazer uma folha de papel? Não sabe? Milhões! Militar- milhões? Rainha- é milhões! Efeito vaias de auditório. Rainha- E então? Militar- então o que? Rainha- O senhor não acha que já gastou muito por hoje? A rainha tira drasticamente o lápis e o bloco de papéis da mão do militar. Efeito palmas de auditório. Rainha- Então, o que o senhor está fazendo aqui? Militar- eu? Não to fazendo nada. Não está vendo? Efeito poing. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

76


Rainha- O senhor não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que o senhor não vai se divertir? Militar- divertir-me? Rainha- é divertir-se! Efeito palmas de auditório. A rainha entrega o lápis e o bloco de papéis ao homem do povo e volta ao seu papel de puxa-sacoinvejosa. O militar está sem nada a fazer. O homem do povo começa a rabiscar as folhas. Amassa-as e joga-as fora. A rainha pega-as, examina-as atentamente e guarda-as com ela. O homem do povo começa a se aborrecer. O militar retira de seu bolso um balão azul e começa a enchê-lo. Brinca com ele. Diverte-se muito. O homem do povo observa-o atentamente. Está inquieto, deixa de rabiscar, chama a rainha, cochicha alguma coisa em seu ouvido. Ela caminha até o militar. A rainha permanece calada por algum tempo ao seu lado. Rainha- Boa tarde senhor. Militar- boa tarde. Rainha- O que o senhor está fazendo? Militar- estou me divertindo, não está vendo? Efeito poing. Rainha- E o senhor gosta? Militar- do que? Rainha- De brincar com isso? Militar- Gosto! Rainha- o senhor não sabe que brincar com balões é muito perigoso, um descuido e eles podem explodir. O senhor não sabia? Militar- Sabia o que? A rainha retira o balão da mão do militar. Efeito vaia de auditório. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

77


Rainha- O que o senhor está fazendo? Militar- eu não tô fazendo nada não está vendo? Efeito poing. Rainha- O senhor não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que o senhor não vai comer? Militar- comer? Rainha- é comer! Efeito palmas de auditório. A rainha entrega o balão ao homem do povo e volta ao seu posto de puxa-saco- invejoso. O militar está sem nada a fazer. O homem do povo brinca com o balão. Ele escapa diversas vezes da sua mão. Toda vez que o balão vai ao chão, a rainha apanha-o e brinca um pouco com ele. Entrega-o ao homem do povo e volta a seu posto. O homem do povo se aborrece. O militar retira do bolso um sanduíche. Começa a comê-lo delicadamente. O homem do povo observa-o atentamente. Chama a rainha e cochicha alguma coisa em seu ouvido. A rainha caminha até o militar. Permanece calada algum tempo ao seu lado. Rainha- boa noite cavalheiro. Militar- Boa noite. Rainha- O que o senhor está fazendo? Militar- eu estou comendo não está vendo? Efeito poing. Rainha- E o senhor gosta? Militar- O que o senhor acha? Rainha- é o que eu te pergunto? MilitarGosto! Rainha- o senhor não sabe que é ridículo comer desta maneira, comer assim pode te causar indigestão! Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

78


Militar- indigestão? Rainha- é indigestão! A rainha tira drasticamente o sanduíche das mãos do militar. Efeito vaias de auditório. Rainha- O que o senhor está fazendo? Militar- eu não estou fazendo nada, não está vendo? Efeito poing. Rainha- o senhor não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada. Por que o senhor não vai para casa dormir? Militar- para casa? Rainha- é para casa! A rainha entrega o sanduíche ao homem do povo e volta ao seu papel de puxa- saco invejoso. O militar está sem nada a fazer. O homem do povo começa a comer o sanduíche. Ele come-o grotescamente. O militar começa a se fechar na posição fetal. O homem do povo se engasga. A rainha tenta ajudá-lo, batendo com as mãos em suas costas. Bate com muita força e acaba derrubando-o do trono. O militar solta um grito aterrorizante. Ao cair o homem do povo acaba esquecendo sua coroa. A rainha joga fora o seu capacete e volta a usar a coroa. Puxa a descarga. Ela experimenta-limpaesfregue-lustra o trono. Senta-se nele. Black’out. Ouve-se o barulho de uma máquina fotográfica disparando. Foto cena congelada. Silêncio. Escuridão total. Começa-se a ouvir ao fundo a música ``obrigado '' do Titãs. Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado, De nada, Obrigado, A nada, Obrigado...

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

79


Cena 4. Registros clownesco, expressionista e naturalista. Tempo desejável da cena: 20 minutos. Luz. No trono a rainha bate clara de ovos parece feliz, mas entediada. Carrega a tiracolo binóculo. Aos pés da escadaria, um militar escova limpa-espana-lustra, a escadaria. É do tipo puxa-sacoinvejoso.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

80


No centro, mais a frente, um homem do povo está sem nada a fazer. Em volta dele, muitas folhas em branco amassadas e espalhadas pelo chão. O homem do povo, apanha as folhas de papéis do chão, uma a uma, desdobrá- las e monta um bloco de folhas amassadas. Retira do bolso um lápis. Faz rabiscos. A rainha observa-o atentamente. Os rabiscos viram letras, as letras palavras, as palavras sons, os sons incomodam. A rainha deixa de bater claras de ovos, chama o militar, cochicha algo em seus ouvidos. Ele desce das escadas e caminha até o homem do povo. Permanece calado algum tempo ao seu lado. A rainha observa-os. Está inquieta. militar- bom dia, cavalheiro. homem do povo- bom dia. Militar- O que o senhor está fazendo? Homem do povo- escrevendo não está vendo! Efeito poing! Militar- E o senhor gosta? Homem do povo- o que? Militar- O senhor gosta de escrever? Homem do povo - gosto! Militar- o senhor não sabe que é ridículo gastar papel desta maneira, um produto tão raro e valioso hoje em dia? O senhor sabe quantas árvores são necessárias para se fazer uma folha de papel? Não sabe? Milhões! Homem do povo- milhões? Militar- é milhões! Efeito vaias de auditório. Militar- E então? Homem do povo- então o que? Militar- O senhor não acha que já gastou muito por hoje? O militar tira drasticamente o lápis e o bloco de papéis das mãos do homem do povo. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

81


Efeito palmas de auditório. Militar- então, o que o senhor está fazendo aqui? Homem do povo- eu? Não estou fazendo nada. Não estão vendo? Efeito poing. Militar- o senhor não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que o senhor não vai se divertir? Homem do povo- divertir-me? Militar- é divertir-se! Efeito palmas de auditório. O militar entrega o lápis e o bloco de papéis à rainha. Ele volta ao seu papel de puxa-saco-invejoso. O homem do povo está sem nada a fazer. A rainha começa a rabiscar as folhas, amassa-as e joga-as fora. O militar pega-as e examina-as atentamente. Guarda algumas com ele. A rainha começa a se aborrecer. O homem do povo retira do bolso um balão azul e começa a enchê-lo. Brinca com ele. Diverte-se muito. A rainha observa-o atentamente. Está inquieta. Deixa de rabiscar e chama o militar, cochicha alguma coisa em seus ouvidos. O militar caminha até ao homem do povo. Militar- boa tarde senhor. Homem do povo- boa tarde. Militar- O que o senhor está fazendo? Homem do povo- estou me divertindo, não está vendo? Efeito poing. Militar- E o senhor gosta? Homem do povo- do que? Militar- De brincar com isso? Homem do povogosto! Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

82


Militar- o senhor não sabe que brincar com balões é muito perigoso, um descuido e eles podem explodir. O senhor não sabia? Homem do povo- sabia o que? O militar retira o balão da mão do homem do povo. Efeito vaia de auditório. Militar- O que o senhor está fazendo? Homem do povo- eu não tô fazendo nada não está vendo? Efeito poing. Militar- o senhor não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que o senhor não vai comer? Homem do povo- comer? Militar- é comer! Efeito palmas de auditório. O militar entrega o balão à rainha e volta ao seu posto de puxa-saco- invejoso. O homem do povo está sem nada a fazer. A rainha brinca com o balão. Ele escapa diversas vezes da sua mão. Toda vez que o balão vai ao chão, o militar apanha-o e brinca um pouco com ele. Entrega- o à rainha e volta ao seu posto. A rainha se aborrece. O homem do povo retira do bolso um sanduíche e começa a comê-lo delicadamente. A rainha observa-o atentamente. Chama o militar e cochicha alguma coisa em seu ouvido. O militar caminha até o homem do povo. militar- boa noite cavalheiro. Homem do povo- boa noite. Militar- O que o senhor está fazendo? Homem do povo- eu estou comendo não está vendo. Efeito poing. Militar- E o senhor gosta? Homem do povo- o que o senhor acha? Militar- é o que eu te pergunto? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

83


Homem do povo- gosto! Militar- o senhor não sabe que é ridículo comer desta maneira, comer assim pode te causar indigestão! Homem do povo- indigestão? Militar- é indigestão! O militar tira drasticamente o sanduíche das mãos do homem do povo. Efeito vaia de auditório. militar- o que o senhor está fazendo? Homem do povo- eu? Não to fazendo nada o senhor não está vendo? militar- o senhor não sabe que existe uma lei que proíbe não fazer nada? Por que o senhor não vai para casa? Homem do povo- para casa? Militar- É para casa! Foi o que eu disse. Efeito palmas. O militar entrega o sanduíche à rainha e volta ao seu papel de puxa-saco- invejoso. O homem do povo está sem nada a fazer. A rainha começa a comer o sanduíche. Ela come-o grotescamente. O homem do povo começa a se fechar na posição fetal. A rainha engasga-se. O militar tenta ajudá-la, batendo com as mãos em suas costas. Bate com muita força e acaba derrubando-a do trono. O homem do povo solta um grito aterrorizante. Ao cair, a coroa da rainha vai parar nas mãos do militar, ele joga seu capacete fora e experimenta a coroa. O militar puxa a descarga e experimenta limpa- esfregue-lustra o trono. Senta- se nele. Black’out. Ouve-se o barulho de uma máquina fotográfica disparando. Foto cena congelada. A partir daqui tem-se dois caminhos: pode seguir-se para a próxima cena e finalizar a peça ou voltar ao princípio e repetir indefinitivamente todas as cenas (looping) até que alguém do público reclame a finalização da peça e acabe com o martírio de todos (público e intérpretes).

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

84


Cena 5. Efeitos sonoros de rebelião, choros e outras algazarras invadem a cena. A música felicidade dos titãs juntamente com a luz começam a subir gradativamente. Não é por não falar Em felicidade Que eu não gosto De felicidade Não é que eu não goste De felicidade E é por gostar De felicidade Que eu falo De infelicidade... Pode-se notar em cena agora 03 corpos enforcados. Ao fundo, o fogo consome o trono e as suas escadarias. As luzes do palco se apagam. Foto plateia. As luzes da plateia se acendem. A música dos Titãs invade a cena. Se você está aqui é porque você veio Se você veio até aqui é porque você Está aqui Se você está aqui É porque você está atrás de uma Coisa Se você não quer nada por que não Vai embora...

The end

O BAILE TUPINIQUIM

Personagens As personagens são fantasmas que pairam no espaço aprisionadas num tempo histórico de um passado recente. Louco Político Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

85


Hippie Eterna virgem Pós-estudante Homem de negócios Homem nu Religiosa Emigrante retornado Militar Nacionalista fascista Espaço

Salão de baile de uma sociedade recreativa decadente. Na entrada do salão um

grande placar com as fotografias dos formandos de 88, sob as suas desfocadas fotografias, alguma informação como nome, hobby, sonho de consumo etc. No salão há uma pista de dança, um pequeno palco, o espaço é margeado por cadeiras formando um grande círculo, as cadeiras estão personalizadas com uma placa com o nome dos seus ocupantes, os nomes são os mesmos dos crachás que identificam atores e público ativo. Pendurado no teto uma grande faixa com os dizeres; 30º baile anual dos formandos do curso superior de epistemologia aplicada turma do ano da mudança. O espaço é decorado com rolos de papel higiênico, balões, cravos vermelhos e um globo de espelhos. No pequeno palco um microfone e 02 cadeiras- tronos, sobre as cadeiras 02 coroas e 02 faixas rei-rainha do baile, sobre as cadeiras um grande relógio marca o tempo real ao mesmo tempo que imagens são projetadas no seu interior, na entrada do salão um grande espelho. Figurino

Os atores vestem roupas datadas da década de 80 (seus trajes têm uma tonalidade

pálida independente das suas cores originais, o figurino sofre um tratamento com talco e naftalina), crachás de identificação, chapéus de festa infantil e cravos vermelhos no peito. Os atores e o público ativo (33, três para cada ator) usam chapéu de festa, crachá de identificação e um cravo vermelho no peito. Contracena

Direta-ativa, os atores contracenam diretamente com o público ativo. O público

participa diretamente no acontecimento, não existe espaço para uma apreciação distanciada da cena, vive-se a representação, não há a contemplação passiva, seus olhos cruzam-se, os corpos tocam-se, seus odores e suas respirações misturam-se num único corpo. Registo interpretativo

Hiper naturalismo

Linguagem estética Simbólica/expressionista

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

86


Tema O espetáculo retrata o espírito emocional do brasil atual, que se encontra mergulhado num marasmo absoluto, onde a inércia prevalece nas atitudes das classes que movimentam ou deveriam movimentar o destino político dessa nação, o acontecimento é estruturado no sentimento acumulado nesses 30 anos de liberdade condicionada, herança última dos ideais libertários da constituição de 1988, tendo como foco principal os estados de alma que marcam nosso cotidiano contemporâneo. Vive-se nos dias presentes uma letargia total, uma nação adormecida, entorpecida pelo frenesi do ideal classe média, onde negros e outros seres inferiores, escravizados durante séculos, são hoje renegados na terra de seus exploradores, como se fossem invasores desconhecidos, onde jovens perambulam desnorteados pela dura realidade atual, anestesiados pelo marketing institucional, comercial e Político que determina os destinos dos sujeitos incautos que navegam sem rumo neste sonho sem fim. Existem dois níveis visíveis no universo ficcional das personagens, o primeiro é o que denota com sua estética e forma e conota com seu comportamento, representando seu ser social coletivo, o outro nível representa seu ser único/pessoal/inacessível e denota um comportamento confessional e conota um sentimento de impossibilidade. Sonoplastia António variações Reportagens radiofônicas das décadas 80 e 90 do século XX Pascal comelade Titãs Iluminação

Luzes vermelhas, amarelas e azuis Globo de espelhos

Vídeo Imagens de manifestações sociais, políticas, artísticas, religiosas, desde a década de 80 do século XX até a atualidade são projetadas na pista de dança do salão. Os panfletos subversivos São panfletos que circulavam e que circulam na calada da noite, representam os ideais de várias organizações políticas que viviam e vivem na clandestinidade. Os nomes dos crachás

São nomes de batismo permitidos pelo poder (Nuno, Isabel, Antônio,

Miguel, Maria, João, Carlos, Pedro, Sofia, Ana, Jorge, Manuel, Nuno, Paulo, José, marta, Sílvia, Mário, Jorge, luís, Luísa, Manu, Teresa, Paula, Sofia, joana, Ricardo, Victor, vitória, Daniel), além do nome cada crachá contém outras informações básicas, exemplo: João, presidente do clube de história, hobby xadrez desportivo, qualidade passivo emocional, sonho de consumo casa própria.

Esboço básico do roteiro o baile Dramaturgia em processo de construção

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

87


Começa afinal…

Na entrada do salão um grande placar com a identificação do espaço: sociedade recreativa desportiva e cultural amigos da constituinte, sob o placar um painel com as fotografias dos formandos de 88, sob as suas desfocadas fotografias, alguma informação como nome, hobby, sonho de consumo, etc., pendurados ao lado do placar 30 cravos vermelhos, 30 crachás com a identificação dos formandos e 30 chapéus de festa infantil. As portas se abrem, o homem nu recepciona o público, veste apenas um tapa sexo estilizado, uma gravata borboleta e um chapéu de festa infantil, segura nas mãos um cravo vermelho e carrega ao pescoço um crachá com seu nome (João), convida o público passivo a ocupar seu lugar na plateia, pode-se ouvir ao fundo uma música datada do Antônio variações. Contra luz vermelha na plateia passiva, o palco encontra-se às escuras. O homem nu distribui os crachás, os cravos e os chapéus de festa pelo público ativo, que ainda não adentrou o espaço cénico. Cessa a música do António variações. Gradativamente pode-se ouvir ao fundo, notícias radiofônicas das décadas de 80 a 90. A contra luz da plateia desaparece por completo. As luzes do espaço da representação acendemse, o salão de festas está vazio. O espaço é dominado por luzes amarelas, vermelhas e azuis. No fundo da cena um grande telão onde são projetadas imagens do universo acadêmico da década de 80. Pendurado no teto uma grande faixa com os dizeres; 30º baile anual dos formandos do curso superior de epistemologia aplicada turma do ano da mudança. No pequeno palco do salão, duas cadeiras ao fundo, nas cadeiras duas coroas uma de rei e outra de rainha e duas faixas com os seguintes dizeres: rainha do baile 2018 e rei do baile 2018, acima das cadeiras, um grande relógio onde imagens são projetadas marca o tempo real. O espaço é decorado com rolos de papel higiênico, balões, cravos vermelhos e um globo de espelhos. O público ativo (33) começa a entrar no salão de festa 1 a 1, entram por uma escadaria localizada no fundo do palco, é a entrada do salão, nessa entrada um grande espelho, sobre o espelho um foco de luz branca a pino. O público ativo usa chapéu de festa infantil e traz no peito do lado direito um crachá com seu nome e do lado esquerdo um cravo vermelho. Suas cadeiras estão marcadas com seus nomes. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

88


Depois do público ativo estar sentado nos seus respectivos lugares, gradativamente o som das reportagens começa lentamente a desaparecer ao mesmo tempo que pouco a pouco a música de pascal comelade começa a invadir a cena. As personagens começam a entrar 1 a 1, cada entrada tem o tempo de 30 segundos (olhar no espelho, arrumar-se, mirar o salão e descer as escadas). Enquanto cada personagem está entrando em cena, os que antecederam a sua entrada já estão realizando outras ações específicas. Quando uma personagem está ao lado de alguém do público ativo, ou dançando com alguém, segrega-lhe o seu texto e a sua história individual, que posteriormente num momento específico vocifera em alto e bom-tom para todo o público (ativo e passivo) presente. As personagens são espectros que pairam no tempo e no espaço. Todas, independente dos seus humores individuais, que disfarçam suas verdades, carregam um grande peso metafórico, seus semblantes estão carregados e entristecidos. Os textos que saem das suas bocas assumem um tom confessional. 07:30 - entra em cena a eterna virgem, antes de adentrar o salão olha-se no espelho e arruma-se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Veste um vestido de noiva com véu e grinaldas, seu olhar é vago e distante. Todos os anos é sempre a primeira a chegar ao baile. 09:00 - entra em cena o militar, antes de adentrar o salão olha-se no espelho e arruma-se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Veste roupas gastas da tropa, no peito tem uma medalha de mérito, tem as duas pernas inutilizadas, locomovese com muletas, seu olhar é vago e distante. O militar vai dançar sozinho. A eterna virgem vai dançar sozinha. 10:00 -entra em cena o louco, antes de adentrar o salão olha-se no espelho e arruma- se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Sua roupa é neutra e gasta, carrega a tiracolo vários objetos pendurados pelo corpo, seu olhar é vago e distante. Enquanto entrava em cena a eterna virgem foi até a mesa de bebidas. O militar foi sentar-se nalgum canto. A eterna virgem convida alguém para dançar. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

89


O militar foi até a mesa de bebidas. A eterna virgem vai sentar-se nalgum canto. 11:00 - entra em cena o pós-estudante, antes de adentrar o salão olha-se no espelho e arruma-se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Usa um traje académico velho e empoeirado, seu olhar é vago e distante. Enquanto entrava em cena o militar foi até a mesa de comidas. O louco isola-se num canto qualquer. O militar dança só. O pós-estudante foi dançar. A eterna virgem vai dançar sozinha. O louco foi dançar. O militar depois de guardar alguns salgadinhos no bolso convida alguém do público ativo para dançar. A eterna virgem vai sentar-se nalgum canto e retira da sua bolsa fotografias de cerimônias de casamento. O louco vai sentar-se num canto qualquer. 12:00 -entra em cena o emigrante, emigrante retornado, antes de adentrar o salão olha se no espelho e arruma-se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Sua roupa é neutra e gasta, carrega a tiracolo uma velha mala, seu olhar é vago e distante. Enquanto entrava em cena a eterna virgem foi até a mesa de bebidas. 13:00 - entra em cena o homem de negócios, antes de adentrar o salão olha-se no espelho e arruma-se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Usa um belo fato muito gasto, traz a tiracolo uma pasta de documentos, usa na cintura uma boia de náufrago, seu olhar é vago e distante. A eterna virgem vai sentar-se nalgum canto. O militar volta para a mesa da bebida. 14:00 - entra em cena o político, antes de adentrar o salão olha-se no espelho e arruma-se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Está dignamente vestido, fuma um grande charuto, seu olhar é vago e distante. Enquanto entrava em cena o homem de negócios faz ligações no celular. O louco convida alguém do público para dançar. A eterna virgem vai sentar-se num canto qualquer, reza uma ave-Maria. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

90


O pós- estudante vai sentar-se num canto qualquer. 15:00 - entra em cena a hippie, veste roupas coloridas dos anos 80, carrega a tiracolo uma grande bolsa, antes de adentrar o salão olha se no espelho e arruma-se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Tem um olhar vago e distante. O louco convida alguém do público ativo para dançar. A hippie vai dançar sozinha. O militar vai sentar-se num canto qualquer. A eterna virgem convida alguém para dançar. 16:00 -entra em cena o nacionalista, antes de adentrar o salão olha se no espelho e arruma-se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Veste um traje negro tipo skin head e botas da tropa, carrega a tiracolo um bastão de beisebol, seu olhar é vago e distante. Enquanto entrava em cena a eterna virgem foi até a mesa de bebidas. 17:00 – entra em cena o homem nu, antes de adentrar o salão olha se no espelho e arruma-se, vira-se para o salão mira a sua totalidade e vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Veste apenas uma gravata borboleta e um tapa sexo tipo os nativos da papua nova-guiné, seu olhar é vago e distante. 18:00 –a hippie convida alguém do público ativo para dançar. O político convida alguém do público ativo para dançar. 19:00 –o louco vai sentar-se num canto qualquer. O nacionalista vai sentar-se nalgum canto. O homem de negócios vai até a mesa de bebidas e faz outra ligação. A música começa a baixar gradativamente até desaparecer por completo, os únicos sons audíveis são provenientes das movimentações das personagens que dançam e agem na cena. A musicalidade que preenche o espaço é basicamente humana. O nacionalista dirige-se até o microfone e lê um manifesto.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

91


Nacionalista - nós abaixo-assinados brasileiros de gema fiéis descendentes de camões raça de aventureiros que desbravou meio mundo senhores de África e Ásia signatários diretos dos grandes homens que moldaram essa terra bendita abençoada por Fátima pequeno nicho encrustado no cu da Europa vimos através deste abaixo assinado exigir do senhor doutor suposto engenheiro civil atual capitão deste nau que ruma sem direção a reboque da grande saxocatólicaapostólicaeuropa que se digne em fechar nossas fronteiras terrestres aéreas e marítimas para negros amarelos vermelhos brancos e outras cores que supostamente tenham passado despercebidas na nossa criteriosa análise e que não satisfaçam o nosso padrão de raça europeia para que num futuro próximo não nos transformemos em seres com orelhas negras narizes amarelos e bocas que comem tudo. Enquanto o nacionalista lê seu manifesto as outras personagens cantam em voz baixa o hino nacional. Enquanto essa personagem discursa, todas as outras personagens olham fixamente para ela, no entanto sem abandonar as ações específicas que estão executando. A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. 20:00 –a eterna virgem vai sentar-se num canto qualquer. Tira do bolso um maço de fotografias de homens anônimos, escolhe uma e contempla-a incessantemente. Não a larga para nada. Desabotoa dois botões do seu vestido, tira um frasco de perfume da sua bolsa e pulveriza seus seios. A hippie senta-se num canto qualquer e enrola um charro. O pós-estudante convida alguém para dançar. O homem nu serve ao público ativo um cálice de ginjinha. 21:00 –o louco isola-se num canto qualquer e começa a tocar uma pequena concertina desconcertante. A hippie convida alguém para dançar. O louco vai dançar sozinho. O militante político convida alguém do público ativo para dançar. 22:00 – a hippie vai sentar-se nalgum canto. O louco volta para a mesa das bebidas. Tira uma pequena garrafa vazia do bolso e despeja no seu interior um copo de vinho. Guarda-a novamente no bolso. O político vai sentar-se num canto qualquer. 23:00 –o louco vai dançar sozinho. O homem de negócios convida alguém do público ativo para dançar. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

92


A música começa a baixar gradativamente até desaparecer por completo, os únicos sons audíveis são provenientes das movimentações das personagens que dançam e agem na cena. A musicalidade que preenche o espaço é basicamente humana. Emigrante retornado - (enquanto fala, mira nos olhos a pessoa do público com quem está dançando ou na sua proximidade, esse mesmo texto já foi repetido outras vezes para todas as pessoas com quem já teve algum contato) T1- 1969… era fim de tarde, faltava pouco tempo para os 02 anos da tropa, já não aguentava mais aquele calor insuportável, aquele cheiro putrefato da morte diária, aquela comida enlatada, naquela tarde sem qualquer aviso prévio nosso acampamento foi invadido por uma sombra negra, o silêncio habitual dos últimos dias foi quebrado pelo zumbido das balas que rasgavam nossa carne, uma chuva intensa de granadas explodiam em todo o lado, uma delas arrebentou minhas duas pernas… nesses quase dois anos perdemos muitos companheiros mas matamos uma carrada de pretos… meu irmão mais velho é que teve sorte conseguiu fugir para a França quando foi convocado, era meio comunista, andava metido com subversivos como meu pai costumava chamá-los… é que estava certo, lá em África a situação era pra esquecer, nós não sabíamos mais o que estávamos lá a fazer, o sangue, o medo e o esquecimento era rotina diária, enquanto aqui, o mesmo sangue sob a pele de outra cor, mas também aqui a mesma dor, o mesmo medo e o mesmo esquecimento pontuavam nossos brandos costumes, hoje já não consigo mais esquecer as imagens que marcaram aqueles tempos atrozes, da carne negra manchada com o sangue vermelho comum a todos nós…hoje porém aqui, a dor, o medo e o esquecimento ainda assola nossos dias romanos, mas agora o sangue que já não escorre, esconde-se sob peles multicoloridas, que pouco a pouco tornam-se maioria, que falta nos faz um general, hoje qualquer um pensa que sabe o que é melhor para o brasil, mas o brasil que eles conhecem é aquele das agendas noticiosas dos jornais das 20 horas, os lobos emergentes que esquartejam o país como uma alcateia faminta que pensa em comer sua última refeição antes do inverno que se avizinha.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

93


T2- quando lá chegamos, o mundo parecia infinito, eu era muito criança, tínhamos viajado durante 4 dias num velho caminhão que meu pai comprou em Luanda, depois de muita poeira chegamos no meio do nada, em 10 anos meu pai transformou aquilo que parecia infértil, numa grande propriedade agrícola, tínhamos de tudo, uma grande casa, muitos empregados e uma boa vida... Um dia o primo Joaquim chegou assustado e nós pegamos em tudo que fosse de valor e fugimos para a África do sul, lá éramos pretos, escravos dos senhores vermelhos, minha mãe depois de meses a lavar sanitas e escadas imundas morreu subitamente, foi nessa altura que meu pai resolveu voltar para o brasil, aqui as coisas não estavam melhores, o pior é que nós não tínhamos absolutamente nada, o único bem que meu pai não vendeu quando fomos para África foi uma pequena propriedade, deixada de herança para minha avó numa terrinha distante, lá eu cresci e quando cresci vim estudar pra , vivi em muitos quartos miseráveis, enfrentei filas intermináveis nas cantinas universitárias, lavei cuecas e meias rotas em lavabos húmidos, mas quando terminei o curso voltei desesperado pra terrinha, pelo menos lá o quarto era só meu e a comida era boa, meu pai morreu logo depois da minha chegada, parece que esperava o meu regresso, foi a depressão que o matou pouco a pouco, quando viu que tinha cumprido sua missão deixou-se ir, agora vivo sozinho com as ovelhas e a vaquinha mimosa, planto umas hortaliças, uns grãos e umas batatas, não preciso de muito, o que me mata é esse abandono. A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. Enquanto essa personagem fala, todas as outras personagens olham fixamente para ela, no entanto sem abandonar as ações específicas que estão executando. 25:00 - a hippie vai beber qualquer coisa. O pós-estudante vai sentar-se num canto qualquer. O homem nu convida alguém do público ativo para dançar. O louco vai beber um copo. O emigrante retornado convida alguém do público ativo para dançar. A eterna virgem vai dançar sozinha. O nacionalista vai sentar-se nalgum canto. A religiosa vai dançar sozinha. O homem de negócios vai dançar sozinho e faz uma ligação, são negócios internacionais O político vai sentar-se noutro lugar . O militar vai sentar-se nalgum canto, retira do bolso uma flan e lustra suas antigas medalhas. A música começa a baixar gradativamente até desaparecer por completo, os únicos sons audíveis são provenientes das movimentações das personagens que dançam e agem na cena. A musicalidade que preenche o espaço é basicamente humana.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

94


Louco- todas as noites dos finais de semana o bairro alto está entulhados de seres anônimos, nos bares pequenos e apertados corpos chocam-se inadvertidamente, nas ruas traficantes misturam-se com putos bêbados descaídos nas suas sarjetas estreitas, turistas nórdicos desavisados passeiam calmamente com seus olhares babados e seus sorrisos de criança feliz, um grupo de negros aproxima-se das loiras geladas exibindo seu exotismo na encruzilhada frágil, bandos de jovens e não tão jovens protegem-se em bandos infantis, as vozes misturam-se num frenesi babilónico, e as línguas molhadas em qualquer parte do mundo, ligam seus corpos anônimos, caras cansadas perpetuam seus espaços marcando sua presença com sua decadência urbana, noutros cantos da noite cadáveres humanos cavalgam no dorso de cavalos selvagens, alguns vendem seus corpos minguados e infectados, outros assaltam a liberdade individual com suas fraquezas humanas, enquanto isso os senhores da noite deliciam-se nos templos elitistas do saber que essa terra encerra, celebrando nas paredes fechadas de condomínios desconhecidos seus planos planificados na massa humana que inadvertidamente movimentam-se na calada da noite tórrida do verão da terra eterna, onde as tardes findam com bandos de pássaros que desfalecem em voos rasantes no colo amigável do velho Tejo. A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. Enquanto essa personagem fala, todas as outras personagens olham fixamente para, no entanto, sem abandonar as ações específicas que estão executando. 27:00 – a hippie vai sentar-se num canto qualquer. O pós-estudante vai dançar sozinho. O homem nu vai sentar-se nalgum canto. A hippie vai sentar-se nalgum canto. O louco vai dançar sozinho, assobia e uiva como um cão vadio, retira do bolso uma pequena garrafa e bebe seu conteúdo. O militar vai até a mesa de comida. Retira da sua mala velhas fotos de África, contempla-as por um bom tempo. O nacionalista distribui discretamente panfletos subversivos. A eterna virgem vai sentar-se nalgum canto. Desabotoa mais 02 botões do seu vestido, amarra-a transformando-a numa mini blusa, sua barriga fica à mostra. Retira o frasco de perfume e pulveriza sua barriga. O político convida alguém para dançar. O homem de negócios convida alguém do público ativo para dançar. A música começa a baixar gradativamente até desaparecer por completo, os únicos sons audíveis são provenientes das movimentações das personagens que dançam e agem na cena. A musicalidade que preenche o espaço é basicamente humana.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

95


29:00- pós-estudante (enquanto fala, mira nos olhos a pessoa do público com quem está dançando ou na sua proximidade, esse mesmo texto já foi repetido outras vezes para todas as pessoas com quem já teve algum contato) O que falta nesse país é apostar na formação, eu por exemplo tenho 02 licenciaturas, 01 pós graduação, 01 mestrado e um doutorado, já escrevi 03 teses, fiz os programas Erasmus e Leonardo, conclui 06 estágios não remunerados e 15 programas de voluntariado, falo inglês, francês, italiano, alemão e um bocadinho de finlandês, e claro, espanhol, tudo isso só acrescentou pontos à minha formação, quando não estou a trabalhar à minha formação faço um part time num bar decadente do bairro alto, já fiz 35 entrevistas de trabalho, mas como não tenho experiência não tenho tido sorte, me chamaram uma única vez, para garoto de programa num bordel. Confundaram meu doutoramento em relações internacionais com relações interpessoais, fiquei lá uma semana. Mas depois de levar no cu durante uma semana já não conseguia mais sentar, por isso resolvi fazer uma formação em como portar- se numa entrevista de trabalho, é importante saber qual a estratégia certa a ser utilizada em cada situação, a minha sorte é que vivo com meus pais, cama e roupa lavada, namoro a 8 anos com a mesma pessoa, ela fica insistindo que chegou o momento de nós nos casarmos, mas eu disse-lhe que nós só nos cansaremos depois de eu estar a trabalhar numa empresa que me dê futuro, além do mais ela ainda nem terminou a sua pós graduação de aperfeiçoamento nos estudos do ócio lusitano do baixo Alentejo, e depois ainda há que fazer um mestrado e um doutorado sem contar que a única língua que ela fala é o inglês, até ela fazer tudo isso temos pelo menos mais 7 anos de namoro tranquilo. A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. Enquanto essa personagem fala, todas as outras personagens olham fixamente para ela, no entanto, sem abandonar as ações específicas que estão executando. 31:00 - o político vai dançar sozinho. O pós-estudante vai sentar-se num canto qualquer, retira do bolso um livreto de palavras cruzadas. O homem nu vai dançar sozinho. A eterna virgem convida alguém do público ativo para dançar. O louco vai para a mesa das bebidas. Volta a encher sua pequena garrafa com o vinho de um copo. Volta a guardar sua pequena garrafa. Enquanto bebe parece falar sozinho, fala com si mesmo. O militar vai dançar sozinho. A hippie vai sentar-se noutro canto. Observa atentamente por um momento uma pessoa da plateia ativa, abandona-a e percorre todo o espaço da representação a procura de outra pessoa, fixa seu olhar num indivíduo incauto. O político vai sentar-se nalgum canto. O nacionalista convida alguém para dançar. O homem de negócios vai sentar-se num canto qualquer, abre sua valise que está cheia de dinheiro, pega num maço e joga-as para o alto, espalhando-se pelo chão.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

96


A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. 33:00- homem de negócios (enquanto fala, mira nos olhos a pessoa do público com quem está dançando ou na sua proximidade, esse mesmo texto já foi repetido outras vezes para todas as pessoas com quem já teve algum contato) 2 trilhões, 5 trilhões, 20 trilhões, 50 trilhões, 100 trilhões de reais, 300 mil imigrantes legalizados, 700 mil imigrantes legalizados, 1.200 mil imigrantes legalizados, 1800 mil imigrantes legalizados, 500 mil imigrantes ilegais, 1 milhão de imigrantes ilegais, 2 milhões de imigrantes ilegais, 3 milhões de imigrantes ilegais, 5 milhões de imigrantes ilegais, 1 milhão de desempregados, 2 milhões de desempregados, 3 milhões de desempregados, 5 milhões de desempregados, 10 milhões de desempregados, 15 milhões de desempregados, população ativa 10.000.000, população ativa 30.000.000, população ativa 50.000.000, população ativa 100.000.000, competições mundiais, estádios de futebol, metropolitanos, submarinos modernos, f-16s encaixotados, ota, comboios de alta velocidade, campos de golfes, privatizações obscuras, lava jato, construções de escolas e hospitais, encerramento de escolas e hospitais, apito dourado, casa pia, Fátima Felgueiras, viagens fantasmas, assaltos a banco, tráfico de drogas, prostituição feminina, contrafação, golpes financeiros, castelos medievais, pegadas dos dinossauros, cidades romanas, sítios arqueológicos, templários, aquedutos seculares, praias com bandeiras azuis, 20 por cento de alérgicos crônicos, 50 por cento de obesos, 60 por centos de frígidas, 40 por cento de impotentes, 10 por cento de deficientes, 20 por cento de toxicodependentes, 40 por cento de alcoólicos, 30 por cento depressivos, 30 por cento de homossexuais, 30 por cento de heterossexuais, 40 por cento de abstêmios, 5 por cento de licenciados, 15 por cento com ensino médio, 30 por cento com ensino fundamental, 40 por cento com ensino básico 10 por cento de analfabetos, 250 milhões de celulares, 25 milhões de computadores, 100 milhões de televisores, 25 milhões de carros, 25 milhões de imóveis residenciais, 200.000 bares, 100.000 escolas, 3000 salas de cinemas, 1000 salas de espetáculos, 2400 universidades, nenhuma revolução, contabilizando a soma astronómica de 30 trilhões de reais, provenientes de uma massa quantitativa de 200 milhões de individualidades com necessidades básicas, possibilitando-nos a exploração de todas as áreas emergentes de que todos necessitam. Enquanto essa personagem fala, todas as outras personagens olham fixamente para, no entanto, sem abandonar as ações específicas que estão executando. 35:00 - a religiosa vai sentar-se num canto qualquer. Abre sua bíblia e começa a ler seus versículos. O pós-estudante bebe um copo. O homem nu vai comer qualquer coisa. A hippie vai sentar-se num canto qualquer. Retina da sua bolsa um papelote de cocaína e snifa. O louco convida alguém para dançar. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

97


O militar vai sentar-se nalgum canto. O político vai sentar-se nalgum canto. A eterna virgem vai sentar-se nalgum canto. Enrola a parte de cima da sua longa saia transformando-a numa mini-saia, retira da sua bolsa o perfume e pulveriza suas pernas. O nacionalista convida alguém para dançar. O homem de negócios vai dançar sozinho. A música começa a baixar gradativamente até desaparecer por completo, os únicos sons audíveis são provenientes das movimentações das personagens que dançam e agem na cena. A musicalidade que preenche o espaço é basicamente humana. 36:00- nacionalista Eu por mim fechava todas as fronteiras, e todos que não fossem brasileiros tinham que deixar o brasil em 30 dias, não queremos cá ninguém, não nos servem pra nada, que voltem pra suas terras, não queremos cá pretos, chinocas, ucranianos e muito menos brasileiros, são uma praga, estão em todos os lados, daqui a pouco já não haverá mais brasileiro no brasil, só em França, eu não sou contra os estrangeiros, só não gosto que s cá fiquem, se quiserem vir aqui gastar o seu dinheiro tudo bem, mas ficar cá pra tirar trabalho a um português isso é que não pode, depois de expulsarmos todos os parasitas estrangeiros vamos à caça dos homossexuais, outro dia fomos a uma manifestação em simpatia à gnr e fomos expulsos só porque estávamos usando cruzes suásticas, no brasil não temos liberdade, na Alemanha é que é bom, semana que vem vou falar para milhares de pessoas, lá existe mais consciência, aqui estamos apenas a começar, (canta)...ouviram do Ipiranga... A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. Enquanto essa personagem fala, todas as outras personagens olham fixamente para ela, no entanto sem abandonar as ações específicas que estão executando. 39:00 –a hippie vai sentar-se noutro canto. A religiosa convida alguém para dançar. O pós-estudante vai sentar-se num canto qualquer. O homem nu convida alguém para dançar. O louco isola-se num canto qualquer, pega no pequeno teclado e produz notas desconexas enquanto uiva e late como um cão. O militante vai dançar sozinho. A eterna virgem bebe alguma coisa. Enquanto bebe procura alguém na plateia ativa, quando encontra fixa seus olhos no sujeito. Baixa suas longas meias até a canela, tira da sua bolsa o perfume e pulveriza suas pernas. O militar vai sentar-se nalgum canto. O político vai sentar-se nalgum canto.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

98


O homem de negócios vai sentar-se nalgum canto, recolhe do espaço as cédulas que havia espalhado anteriormente, junta-as e guarda-as na sua valise. A música começa a baixar gradativamente até desaparecer por completo, os únicos sons audíveis são provenientes das movimentações das personagens que dançam e agem na cena. A musicalidade que preenche o espaço é basicamente humana. 41:00- – hippie (enquanto fala, mira nos olhos a pessoa do público com quem está dançando ou na sua proximidade, esse mesmo texto já foi repetido outras vezes para todas as pessoas com quem já teve algum contato) T1- não sou ninguém nesta vastidão que cerca todas as terras que a vista permite ver, sou um desavisado sujeito lançado na luz intermitente, que vaga nas entrelinhas cósmicas dos lábios secretos da boca do homem, que transformou um simples recanto de relva queimada, transportando os mares do ser por trajetos dantes percorridos por cavaleiros blindados, que na procura sensata da razão viram-se perdidos nas florestas úmidas das cavernas carmins, que fazem o caminhar de um novo ser, que desfrutará dos nossos pecados e que sacrificados pelo tempo presente, marcharão pálidos e perdidos rumo ao abismo escuro e fétido T2- se perguntar quem sou eu, digo-te rapidamente se não sabe, sou carne que apodrece, sou sangue que escorre, sou vísceras rasgadas, sou lágrimas amargas, sou feridas abertas, sou sonhos infindáveis, sou promessas não cumpridas, sou homem que sente dor quando seu coração recebe de punhos fechados, porradas que esmagam os soluços aparentes, sou uma fração do meu próprio tempo, sou frio e duro como a vida deseja, e de tudo que sou, nada sou, e nada sendo, algo sou, T3- hoje como todos os dias o acaso encontra-se escondido entre caras e almas ausentes de qualquer valor histórico nesta imensidão de águas, que invadem o dia- a-dia da humanidade como se o ostracismo de um doente terminal habitasse as montanhas nas grandes giras do vácuo na imensidão do espaço cósmico, deslocando seu corpo presente entre orações e lamentações desejadas por algum ser invisível sem dó nem piedade, matando a essência da vida que escorre entre fragmentos dos átomos que rodeiam as incertezas presentes no valor desmantelado do nada, fazendo do nada viver.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

99


T4- talvez precisemos nos afastar da realidade dos nossos sonhos que diariamente são esquecidos e trocados por migalhas jogadas aos pombos, que alimentam-se nas praças sujas dos jardins descuidados das cidades esquecidas pelos senhores que dominam o universo, como se fossem animais domesticados ps angústias e sofrimentos que toda a humanidade que chora sobre seus mortos, esquecidos no vazio dos corações dos amantes que reivindicam apenas a carne no gozo supremo do prazer efêmero dos seres sem vida, plástificadosmassificados-codificados com rótulos marcando suas tentações demoníacas com a carne do senhor salvador, encharcando com o sangue dos inocentes que vagueiam sem rumo em direção incerta, na incerteza que marca sua trajetória diária fazendo do seu viver apenas estímulos nulos, que nada mais são do que abstrações inadequadas para o momento que vem a seguir, cravando em sua carne marcas dementes e decadentes, que g em sua alma e queimam seu peito infeliz, na esperança de alcançar o inatingível e palpável mundo real A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. Enquanto essa personagem fala, todas as outras personagens olham fixamente para ela, no entanto sem abandonar as ações específicas que estão executando. 43:00 – a hippie vai sentar-se num canto qualquer. O pós-estudante convida alguém para dançar. O homem nu vai sentar-se nalgum canto. O louco vai dançar sozinho. O político convida alguém do público ativo para dançar. O homem de negócios vai dançar sozinho. O nacionalista vai sentar-se nalgum canto, retira da sua pasta um abaixo-assinado e recolhe assinaturas pelos espetadores. A eterna virgem dirige-se à sua vítima e convida-a para dançar. O emigrante retornado vai sentar-se nalgum canto, vomita. A religiosa vai dançar sozinho. A música começa a baixar gradativamente até desaparecer por completo, os únicos sons audíveis são provenientes das movimentações das personagens que dançam e agem na cena. A musicalidade que preenche o espaço é basicamente humana. 45:00- eterna virgem- (veste vestido de noiva véu e grinaldas, seu olhar é vago e distante)

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

100


Hoje como todos os dias o acaso encontra-se escondido entre caras e almas ausentes de qualquer valor histórico nesta imensidão de águas, que invadem o dia- a-dia da humanidade como se o ostracismo de um doente terminal habitasse as montanhas nas grandes giras do vácuo na imensidão do espaço cósmico, deslocando seu corpo presente entre orações e lamentações desejadas por algum ser invisível sem dó nem piedade, matando a essência da vida que escorre entre fragmentos dos átomos que rodeiam as incertezas presentes no valor desmantelado do nada, fazendo do nada viver, talvez precisemos nos afastar da realidade dos nossos sonhos que diariamente são esquecidos e trocados por migalhas jogadas aos pombos, que alimentam-se nas praças sujas dos jardins descuidados das cidades esquecidas pelos senhores que dominam o universo, como se fossem animais domesticados ps angústias e sofrimentos que toda a humanidade que chora sobre seus mortos, esquecidos no vazio dos corações dos amantes que reivindicam apenas a carne no gozo supremo do prazer efêmero dos seres sem vida, plástificadosmassificados- codificados com rótulos marcando suas tentações demoníacas com a carne do senhor salvador, encharcando com o sangue dos inocentes que vagueiam sem rumo em direção incerta, na incerteza que marca sua trajetória diária fazendo do seu viver apenas estímulos nulos, que nada mais são do que abstrações inadequadas para o momento que vem a seguir, cravando em sua carne marcas dementes e decadentes, que em sua alma e queimam seu peito infeliz, na esperança de alcançar o inatingível e palpável mundo real A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. Enquanto essa personagem fala, todas as outras personagens olham fixamente para ela, no entanto sem abandonar as ações específicas que estão executando. 45:00- a hippie vai dançar sozinha O pós-estudante convida outra pessoa para dançar. O homem nu dança sozinho. O louco vai sentar-se nalgum canto. O político vai comer qualquer coisa. O emigrante retornado vai sentar-se nalgum canto. O nacionalista dança sozinho. A eterna virgem abandona seu parceiro de dança no meio do salão e vai beber qualquer coisa. Enquanto bebe retira da sua bolsa um maço de fotografias escolhe uma e fixa-a insistentemente. O militar vai sentar-se nalgum canto. O homem de negócios convida alguém para dançar. A música começa a baixar gradativamente até desaparecer por completo, os únicos sons audíveis são provenientes das movimentações das personagens que dançam e agem na cena. A musicalidade que preenche o espaço é basicamente humana.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

101


47:00- religiosa. (enquanto fala, mira nos olhos a pessoa do público com quem está dançando ou na sua proximidade, esse mesmo texto já foi repetido outras vezes para todas as pessoas com quem já teve algum contato) Todos os anos vou a aparecida do norte, quando era mais nova costumava ir a pé, hoje em dia vou em excursões com minhas irmãs lá da igreja, é mais animado, nós podemos cantar pra nossa senhora ou podemos ver o programa daquela menina; a Fátima não sei o que, porque hoje todos os ônibus têm televisão. Quando o santíssimo papa João Paulo beatificou a nossa senhora eu estava lá, foi muito divertido, passamos a noite a rezar, nós acampamos mesmo ao pé das escadas na traseira do altar de vossa santidade, quando os bispos que o sustentavam ficaram ao seu lado, nós conseguíamos ver um bocadinho da sua careca, era uma careca muito bonita, parecia um espelho divino, quando nós tiramos uma fotografia a luz do flash refletiu na careca e a única coisa que se consegue ver é um vulto negro com um grande sol ao fundo, mas o que eu mais gosto lá na congregação são os bailaricos que fazemos aos domingos nos finais das tardes, dançamos todas ao som das músicas do Daniel, o único senão e que somos todas senhoras, era bom se tivéssemos algum cavalheiro com quem pudéssemos bailar, mesmo assim é bom, todos os anos fazemos uma representação do martírio de santa Apolônia, este ano vou fazer o papel da virgem imaculada, eu gostaria de fazer de santa Apolônia, mas como não tenho dentes, não posso… A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. Enquanto essa personagem fala, todas as outras personagens olham fixamente para ela, no entanto sem abandonar as ações específicas que estão executando. 49:00 – a religiosa volta para o seu canto, tira da bolsa uma fotografia de um pênis sagrado. O pós-estudante vai beber qualquer coisa. O homem nu vai sentar-se nalgum canto. A hippie senta-se nalgum canto retira da bolsa vários frascos de comprimidos faz um coquetel com s e engole todos de uma só vez. O político convida alguém do público ativo para dançar. O nacionalista vai dançar sozinho. O militar vai sentar-se nalgum canto. A eterna virgem dança sozinha. Sua dança é muito sensual e provocativa. Enquanto dança procura alguém da plateia ativa. Quando a encontra dança provocantemente. O emigrante retornado volta para a mesa dos copos. O louco vai sentar-se nalgum canto, tirar os sapatos e as meias, retira do bolso um corta unhas e apara as unhas dos pés. O político vai sentar-se nalgum canto. Enquanto caminha para o seu canto aperta a mão de algumas pessoas, com um sorriso amarelo na boca. A música começa a baixar gradativamente até desaparecer por completo, os únicos sons audíveis são provenientes das movimentações das personagens que dançam e agem na cena. A musicalidade que preenche o espaço é basicamente humana. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

102


51:00- homem nu (enquanto fala, mira nos olhos a pessoa do público com quem está dançando ou na sua proximidade, esse mesmo texto já foi repetido outras vezes para todas as pessoas com quem já teve algum contato) Nesta região não há estrelas, o sol não brilha há tempos, aqui somos pedras imaculadas, pedra calcário desgastada pelo tempo, eterno carrasco dos nossos atos, somos cavaleiros na tempestade, seres abandonados, nascemos nesta casa e somos lançados ao mundo como um cão sem dono. A nossa vida nunca acaba, os dias parados no tempo marcam a eternidade etérea da vida, as grandes coisas têm, antes de as usarmos, máscaras monstruosas, que depois se cravam nos corações humanos e marcam o nosso destino com sangue e dor. Ouçam crianças o som da morte, este mundo é uma grande serpente sem princípio, nem fim, com o único desejo de poder e nada mais. Desperta, sacode seus sonhos minha pequena criança, escolhe o dia e o signo do teu dia, escolhe a sua divindade, está outra vez na sua hora, escolha agora. Cante sob a lua, entre novamente na floresta, entre no sonho lascivo, venha aonde tudo se estilhaça e dança, como fadas dos doces bosques do outono. Adentre agora na terra dos justos, dos fortes, dos sábios. Quem dentre vós correrá com o caçador? A música começa a subir gradativamente, até preencher todo espaço da cena. Enquanto essa personagem fala, todas as outras personagens olham fixamente para ela, no entanto sem abandonar as ações específicas que estão executando. 53:00- a eterna virgem vai dançar sozinha. O pós-estudante convida alguém para dançar. O homem nu dança sozinho. O louco vai sentar-se nalgum canto. O militante dança sozinho. O político vai dançar sozinho. O pós-estudante vai beber qualquer coisa. A hippie senta-se nalgum canto. Tira da sua mala vários frascos de comprimidos coloridos e engole uma mão cheia. O louco vai dançar sozinho. O louco convida alguém do público ativo para dançar. O louco vai dançar sozinho. O militante vai sentar-se nalgum canto. 55:00 –a música do Pascal comelade desaparece por completo ao mesmo tempo que uma música folk invade a cena. Todas as personagens abandonam o que estavam fazendo e convidam alguém do público ativo para uma dança tradicional, formam todos uma grande roda. Colocam todos os cravos nas suas respectivas bocas. 57:00 – a música desaparece por completo. Aplausos. O rei e a rainha do baile (homem nu, alguém do público) estão no meio da roda e são coroados e enfaixados. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

103


59:00 – uma música com parecença ao tango argentino invade a cena. O rei e a rainha dançam. Enquanto dançam a eterna virgem observa-os dum canto qualquer. As outras personagens começam a sair 1 a 1, com exceção da eterna virgem. Quando saem repetem os gestos efetuados nas suas respectivas entradas, só que desta feita em ordem inversa (olham do alto das escadas o salão pela última vez, olham- se no espelho e saem). 61:00 – o tango argentino desaparece por completo e a música tocada durante todo o baile volta com força. O rei abandona sua rainha no meio do salão e sai de cena. A eterna virgem observa por um instante a rainha sozinha no meio do salão e sai de cena, repete todos os gestos da sua entrada. As luzes do salão começam pouco a pouco a desaparecer até a escuridão total. A música preenche todo o espaço. Cessa a música por completo. 63:00 – a contra luz vermelha da plateia passiva acende-se. A música dos Titãs invade a cena. Se você Está aqui É porque você veio Se você Veio até aqui É porque Você está aqui Se você está aqui É porque Você está atrás de alguma coisa Se você não quer nada por que não vai embora… 65:00 – black out.

Esboço roteiro individual das personagens de o baile Dramaturgia em processo de construção

O nacionalista radical da extrema direita Depois de todos entrarem, adentra o espaço cênico, para em frente ao espelho, arruma-se, vira-se para o salão, percorre com seus olhos todo o espaço, toma consciência dos presentes e entra finalmente. Passa

pela

plateia

discretamente

um

abaixo-assinado

contra

a

imigração,

senta-se

disfarçadamente ao lado de alguém e tenta convencê-la a assinar o documento.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

104


Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança de salão. Senta-se num canto qualquer e lê algumas passagens de '' a minha luta''. Dança sozinho uma dança punk. Bebe. Retira da sua mochila 02 punhais, 01soqueira, 01 arma paralisante, 01 pistola automática, alguns trapos de limpeza e alguns frascos, limpa as armas, enquanto limpa mira-as com admiração e respeito. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança latina. Come. Retira da sua mochila um maço de panfletos, são panfletos que defendem as ideias neonazistas e nacionalistas, distribui-os sorrateiramente pelo público presente. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho hip-hop. Senta-se num canto qualquer e cantarola a melodia do hino nacional. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança lenta. Vai para um canto qualquer, retira do bolso um canivete e limpa com as unhas das mãos. Bebe. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

105


Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Fixa alguém do público mira nos seus olhos enquanto limpa sua pistola automática. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho uma polca. Senta-se num canto e retira da mochila uma revista pornográfica com mulheres asiáticas. Come. Senta-se num canto qualquer, tira do bolso uma fotografia amarrotada, é a foto de uma mulher negra, olha para com ternura e desgosto, beija o retrato. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança techno. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho uma música de sofrência. A música do Pascal comelade desaparece por completo ao mesmo tempo que uma música folk invade a cena. Todas as personagens abandonam o que estavam fazendo e convidam alguém do público ativo para uma dança tradicional, formam todos uma grande roda. Colocam todos os cravos nas suas respectivas bocas.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

106


A música desaparece por completo. Aplausos. O político deixa a roda vai até ao pequeno palco, pega nas coroas e nas faixas, volta para a roda e coroa o rei e a rainha do baile (homem nu, alguém do público) que estão no meio da roda e são coroados e enfaixados. Uma música com parecença ao tango argentino invade a cena. O rei e a rainha dançam. As personagens e o público voltam aos seus afazeres. Enquanto dançam a eterna virgem observa-os dum canto qualquer. As outras personagens começam a sair 1 a 1, com exceção da eterna virgem. Quando saem repetem os gestos efetuados nas suas respectivas entradas, só que desta feita em ordem inversa (olham do alto das escadas o salão pela última vez, olham-se no espelho e saem). O tango argentino desaparece por completo e a música tocada durante todo o baile volta com força. O rei abandona sua rainha no meio do salão e sai de cena. A eterna virgem observa por um instante a rainha sozinha no meio do salão e sai de cena, repete todos os gestos da sua entrada. As luzes do salão começam pouco a pouco a desaparecer até a escuridão total. A música preenche todo o espaço. Cessa a música por completo. A contra luz vermelha da plateia passiva acende-se. A música dos Titãs invade a cena. Se você Está aqui É porque você veio Se você Veio até aqui É porque Você está aqui Se você está aqui É porque Você está atrás de alguma coisa Se você não quer nada por que não vai embora… – Black out. O pós-estudante Depois de todos entrarem, adentra o espaço cênico, para em frente ao espelho, arruma-se, vira-se para o salão, percorre com seus olhos todo o espaço, toma consciência dos presentes e entra finalmente. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar um rock n roll. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

107


Senta-se num canto qualquer, retira da sua bolsa uma ficha de emprego, preenche-a e entrega a uma pessoa do público. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Senta-se num canto qualquer, retira da sua bolsa todos os seus diplomas e certificados, currículo, teses e dissertações e mostra-os para alguém do público, depois da demonstração deixa para esta pessoa um currículo. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho uma dança ritualista. Senta-se num canto qualquer e lê os classificados. Come. Senta-se num canto qualquer, retira da sua bolsa uma ficha de emprego, preenche-a e entrega a uma pessoa do público. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma lambada. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho um reggae. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

108


Senta-se num canto qualquer, retira da sua bolsa uma ficha de emprego, preenche-a e entrega a uma pessoa do público. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança lenta. Senta-se num canto qualquer, retira da sua bolsa uma ficha de emprego, preenche-a e entrega a uma pessoa do público. Dança sozinho uma dança folclórica. Bebe. Senta-se num canto qualquer, retira da sua bolsa uma ficha de emprego, preenche-a e entrega a uma pessoa do público. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança africana. Come. Retira da sua mochila um maço de panfletos, são panfletos que são distribuídos nas saídas das estações do metrô, distribui entre o público. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Dança sozinho uma dança heavy metal. Senta-se num canto qualquer e tira um livro e estuda chinês. A música do Pascal comelade desaparece por completo ao mesmo tempo que uma música folk invade a cena.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

109


Todas as personagens abandonam o que estavam fazendo e convidam alguém do público ativo para uma dança tradicional, formam todos uma grande roda. Colocam todos os cravos nas suas respectivas bocas. A música desaparece por completo. Aplausos. O político deixa a roda vai até ao pequeno palco, pega nas coroas e nas faixas, volta para a roda e coroa o rei e a rainha do baile (homem nu, alguém do público) que estão no meio da roda e são coroados e enfaixados. Uma música com parecença ao tango argentino invade a cena. O rei e a rainha dançam. As personagens e o público voltam aos seus afazeres. Enquanto dançam a eterna virgem observa-os dum canto qualquer. As outras personagens começam a sair 1 a 1, com exceção da eterna virgem. Quando saem repetem os gestos efetuados nas suas respectivas entradas, só que desta feita em ordem inversa (olham do alto das escadas o salão pela última vez, olham-se no espelho e saem). O tango argentino desaparece por completo e a música tocada durante todo o baile volta com força. O rei abandona sua rainha no meio do salão e sai de cena. A eterna virgem observa por um instante a rainha sozinha no meio do salão e sai de cena, repete todos os gestos da sua entrada. As luzes do salão começam pouco a pouco a desaparecer até a escuridão total. A música preenche todo o espaço. Cessa a música por completo. A contra luz vermelha da plateia passiva acende-se. A música dos Titãs invade a cena. Se você Está aqui É porque você veio Se você Veio até aqui É porque Você está aqui Se você está aqui É porque Você está atrás de alguma coisa Se você não quer nada por que não vai embora… – Black out. Homem nu

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

110


O homem nu – (tapa sexo tribal estilizado, tipo de algumas tribos da papua nova guiné, gravata borboleta) recepciona o público que chega, primeiro convida o público passivo a entrar e ocupar seus lugares na plateia, deixa de fora 14 pessoas, chama- as uma a uma, coloca um chapéu de festa infantil na sua cabeça, um crachá no seu pescoço e entrega-lhe um cravo vermelho e pedelhe para adentra o espaço e ocupar o lugar com o seu nome. Depois de todos entrarem, adentra o espaço cênico, para em frente ao espelho, arruma-se, vira-se para o salão, percorre com seus olhos todo o espaço, toma consciência dos presentes e entra finalmente. Vai até a mesa da comida, pega numa bandeja e em alguns guardanapos, coloca alguns salgadinhos e serve algumas pessoas. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar um bolero. Vai até a mesa da bebida, pega numa bandeja, coloca alguns copos com vinho e serve as pessoas. Dança sozinho uma dança tribal. Bebe. Vai até a mesa da bebida, pega numa bandeja e recolhe os copos vazios pelo salão. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar 01 balada lenta. Come. Retira da sua bolsa a tiracolo alguns envelopes fechados (são cartas de amor antigas), procura entre as pessoas seus destinatários, entrega 07 cartas. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Dança sozinho uma dança trip. Tira da sua bolsa alguns boletins para a votação do rei e rainha do baile, nos boletins a seguinte inscrição: 30º baile anual dos formandos do curso de pós-graduação em epistemologia aplicada turma da mudança votação rei/rainha do baile 2018 - candidatos rei a), b), c), rainha a), b), c), entrega e boletim e uma caneta para cada pessoa.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

111


Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança sevilhana/cigana. Retira da sua bolsa um saco transparente e vai recolher os boletins de votação, depois vai até o palco e amarra o saco no microfone. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Pega num balde e numa esfregona e limpa o pequeno palco. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho um mantra indiano. Retira da sua bolsa alguns incensos e acende-os na entrada ao lado do espelho. Come. Retira da sua bolsa um punhado de pétalas de rosas e espalha-as pelo espaço. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança alegre infantil. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho um vira português.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

112


A música do Pascal comelade desaparece por completo ao mesmo tempo que uma música folk invade a cena. Todas as personagens abandonam o que estavam fazendo e convidam alguém do público ativo para uma dança tradicional, formam todos uma grande roda. Colocam todos os cravos nas suas respectivas bocas. A música desaparece por completo. Aplausos. O político deixa a roda vai até ao pequeno palco, pega nas coroas e nas faixas, volta para a roda e coroa o rei e a rainha do baile (homem nu, alguém do público) que estão no meio da roda e são coroados e enfaixados. Uma música com parecença ao tango argentino invade a cena. O rei e a rainha dançam. As personagens e o público voltam aos seus afazeres. Enquanto dançam a eterna virgem observa-os dum canto qualquer. As outras personagens começam a sair 1 a 1, com exceção da eterna virgem. Quando saem repetem os gestos efetuados nas suas respectivas entradas, só que desta feita em ordem inversa (olham do alto das escadas o salão pela última vez, olham-se no espelho e saem). O tango argentino desaparece por completo e a música tocada durante todo o baile volta com força. O rei abandona sua rainha no meio do salão e sai de cena. A eterna virgem observa por um instante a rainha sozinha no meio do salão e sai de cena, repete todos os gestos da sua entrada. As luzes do salão começam pouco a pouco a desaparecer até a escuridão total. A música preenche todo o espaço. Cessa a música por completo. A contra luz vermelha da plateia passiva acende-se. A música dos Titãs invade a cena. Se você Está aqui É porque você veio Se você Veio até aqui É porque Você está aqui Se você está aqui É porque Você está atrás de alguma coisa Se você não quer nada por que não vai embora…

– Black out.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

113


A hippie A hippie depois de todos entrarem, adentra o espaço cênico, para em frente ao espelho, arruma-se, vira-se para o salão, percorre com seus olhos todo o espaço, toma consciência dos presentes e entra finalmente. Senta-se num canto qualquer retira da sua bolsa cigarros, isqueiro, mortalha, haxixe, enrola um charro e fuma, retira da sua bolsa muitas fotos de homens, escolhe uma das pessoas da plateia e interage com ela. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança bimba, continua agarrada a foto. Depois da dança, abandona a pessoa e joga a foto pelo espaço. Senta-se num canto qualquer retira da sua bolsa vários frascos de remédios, despeja um bocado de cada frasco nas mãos e engole-os todos com um gole de vinho. Dança sozinho uma dança rock anos 50. Bebe. Senta-se num canto qualquer, retira da sua bolsa uma pastilha de ecstasy, toma-o, retira algumas fotografias e escolhe uma. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança lenta e sensual, continua colada a foto. Depois da dança, abandona a pessoa e joga a foto pelo espaço. Come. Senta-se num canto qualquer, retira da sua bolsa um papelote de cocaína, um cartão, uma capa de cd, faz um canudo e snifa a coca, retira da bolsa algumas fotos, escolhe uma pessoa e interage com ela.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

114


Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Dança sozinho uma dança break. Senta-se num canto qualquer tira da bolsa uma pequena garrafa de whisky, bebe, tira da bolsa algumas fotos, escolhe uma pessoa e interage com ela. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar um tango, continua agarrada a foto. Depois da dança, abandona a pessoa e joga a foto pelo espaço. Senta-se num canto qualquer, tira da bolsa algumas fotos e escolhe uma pessoa e interage com ela. Bebe. Com a foto a tiracolo procura pelo espaço alguém que se parece com a pessoa da fotografia. Senta-se num canto qualquer, tira da bolsa um jogo de cartas de Tarot e lê a sua sorte, tira da bolsa algumas fotos e escolhe uma pessoa e interage com ela. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho um techno trance. Sempre colada a foto, depois de dançar abandona a foto no espaço. Senta-se num canto qualquer, retira da bolsa um papelote de heroína, uma seringa, água, limão, colher, isqueiro, limão, prepara um chuto, tira da bolsa algumas fotos e escolhe uma pessoa e interage com ela. Come.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

115


Senta-se num canto qualquer retira da sua bolsa um punhado de velhas fotografias, são fotos de casamentos de jovens casais, olha atentamente para cada uma e joga- as indiferentemente pelo espaço. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma marcha nupcial. Depois de dançar abandona a pessoa e joga a foto pelo espaço. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho uma dança ritualista. A música do Pascal comelade desaparece por completo ao mesmo tempo que uma música folk invade a cena. Todas as personagens abandonam o que estavam fazendo e convidam alguém do público ativo para uma dança tradicional, formam todos uma grande roda. Colocam todos os cravos nas suas respectivas bocas. A música desaparece por completo. Aplausos. O político deixa a roda vai até ao pequeno palco, pega nas coroas e nas faixas, volta para a roda e coroa o rei e a rainha do baile (homem nu, alguém do público) que estão no meio da roda e são coroados e enfaixados. Uma música com parecença ao tango argentino invade a cena. O rei e a rainha dançam. As personagens e o público voltam aos seus afazeres. Enquanto dançam a eterna virgem observa-os dum canto qualquer. As outras personagens começam a sair 1 a 1, com exceção da eterna virgem. Quando saem repetem os gestos efetuados nas suas respectivas entradas, só que desta feita em ordem inversa (olham do alto das escadas o salão pela última vez, olham-se no espelho e saem). O tango argentino desaparece por completo e a música tocada durante todo o baile volta com força.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

116


O rei abandona sua rainha no meio do salão e sai de cena. A eterna virgem observa por um instante a rainha sozinha no meio do salão e sai de cena, repete todos os gestos da sua entrada. As luzes do salão começam pouco a pouco a desaparecer até a escuridão total. A música preenche todo o espaço. Cessa a música por completo. A contra luz vermelha da plateia passiva acende-se. A música dos Titãs invade a cena. Se você Está aqui É porque você veio Se você Veio até aqui É porque Você está aqui Se você está aqui É porque Você está atrás de alguma coisa Se você não quer nada por que não vai embora… – Black out. O homem de negócios Depois de todos entrarem, adentra o espaço cênico, para em frente ao espelho, arruma-se, vira-se para o salão, percorre com seus olhos todo o espaço, toma consciência dos presentes e entra finalmente. Senta-se num canto qualquer e retira da sua pasta um bloco de notas, uma caneta e uma calculadora, retira do bolso do casaco um monte de faturas, anota seus valores no bloco e realiza a contabilidade. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma música lenta. Quando termina a dança, dá à pessoa um cartão pessoal. Senta-se num canto qualquer, retira da sua pasta um saco de moedas, separa-as em montes de 10 cêntimos, enrola-os em fita-cola e volta a guardá-las na pasta. Senta-se num canto qualquer retira da sua pasta algumas promissórias de dívidas em é a credora, anda pelo espaço e entrega-as a algumas pessoas do público.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

117


Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas; Dança sozinho uma dança tribal. Senta-se num canto qualquer tira da pasta um cofre porquinho, pega nos montes de moedas e 1 cêntimo e coloca moeda a moeda no porquinho. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar dança festiva da idade média, continua agarrada a foto. Depois da dança abandona a pessoa. Dança sozinho uma dança psicodélica. Bebe. Senta-se num canto qualquer retira da sua pasta um maço de cédulas de 100 euros, anda pelo espaço enquanto joga o dinheiro ao ar, guarda com uma nota de 100 euros. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma lambada, dá à pessoa a nota de 100 euros. Depois da dança abandona a pessoa e tira-lhe a nota de 100 euros. Come. Senta-se num canto qualquer, retira da pasta muitos anéis, coloca-os nos dedos das mãos, retira da pasta uma quantidade infinita de joias e enfeita-se como uma árvore de natal. Bebe. Caminha pelo espaço exibindo sua riqueza. Senta-se num canto qualquer, tira da pasta alguns títulos de propriedade de terrenos na lua (podese ler em letras grandes: título de propriedade eu sou proprietário de um terreno na lua, assina-os e entrega-os a algumas pessoas. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

118


Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho uma dança tradicional portuguesa. Senta-se num canto qualquer, retira da pasta celular, faz uma ligação (pode-se ouvir: compra,vende...compra...). Come. Senta-se num canto qualquer e retira da sua pasta um jornal económico, anota no seu bloco os índices da bolsa. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar a dança do patinho. Depois da dança abandona a pessoa à sua sorte. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho uma dança de roda. A música do Pascal comelade desaparece por completo ao mesmo tempo que uma música folk invade a cena. Todas as personagens abandonam o que estavam fazendo e convidam alguém do público ativo para uma dança tradicional, formam todos uma grande roda. Colocam todos os cravos nas suas respectivas bocas. A música desaparece por completo. Aplausos.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

119


O político deixa a roda vai até ao pequeno palco, pega nas coroas e nas faixas, volta para a roda e coroa o rei e a rainha do baile (homem nu, alguém do público) que estão no meio da roda e são coroados e enfaixados. Uma música com parecença ao tango argentino invade a cena. O rei e a rainha dançam. As personagens e o público voltam aos seus afazeres. Enquanto dançam a eterna virgem observa-os dum canto qualquer. As outras personagens começam a sair 1 a 1, com exceção da eterna virgem. Quando saem repetem os gestos efetuados nas suas respectivas entradas, só que desta feita em ordem inversa (olham do alto das escadas o salão pela última vez, olham-se no espelho e saem). O tango argentino desaparece por completo e a música tocada durante todo o baile volta com força. O rei abandona sua rainha no meio do salão e sai de cena. A eterna virgem observa por um instante a rainha sozinha no meio do salão e sai de cena, repete todos os gestos da sua entrada. As luzes do salão começam pouco a pouco a desaparecer até a escuridão total. A música preenche todo o espaço. Cessa a música por completo. A contra luz vermelha da plateia passiva acende-se. A música dos Titãs invade a cena. Se você Está aqui É porque você veio Se você Veio até aqui É porque Você está aqui Se você está aqui É porque Você está atrás de alguma coisa Se você não quer nada por que não vai embora… – Black out. O político Depois de todos entrarem, adentra o espaço cênico, para em frente ao espelho, arruma-se, vira-se para o salão, percorre com seus olhos todo o espaço, toma consciência dos presentes e entra finalmente.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

120


Senta-se num canto qualquer tira do bolso do casaco um pente e um pequeno espelho, penteia-se, retira do bolso um frasco de after shave, exagera na colónia. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança popular africana. Senta-se num canto qualquer, retira do bolso um maço de pequenos panfletos, nos panfletos apenas a sua foto com um sorriso amarelo e a frase: eu prometo, caminha pelo espaço e entregaos a algumas pessoas. Dança sozinho uma balada romântica. Senta-se num canto qualquer tira do bolso alguns panfletos, são panfletos com o seu programa eleitoral, distribui-os a algumas pessoas. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Dança sozinho uma dança erótica. Senta-se num canto qualquer e tira do bolso alguns rebuçados e alguns cartões com o seu número de candidato, anda pelo espaço e distribui os rebuçados e seus cartões. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança de acasalamento, depois da dança dá 01 rebuçado e 01 cartão à pessoa e abandona-a no meio do salão. Bebe. Senta-se num canto qualquer tira do bolso alguns balões coloridos, enche-os e entrega-os a algumas pessoas.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

121


Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança caribenha. Depois de dançar dá o balão à pessoa abandona-a no meio do salão. Come. Senta-se num canto qualquer, tira do bolso uma folha em branco e uma caneta, prepara o seu discurso de campanha. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Vai até o pequeno palco e ensaia seu discurso no microfone. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma marcha popular de Santo Antônio. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho um rock deprimente. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

122


Dança sozinho uma dança folclórica de luta. Senta-se num canto qualquer, retira de um dos bolsos uma lista enorme de propostas eleitorais, risca com uma caneta as que são inviáveis de realização, risca quase todas, com exceção da proposta do estudo da situação económica e social. Come. Senta-se num canto qualquer, retira do bolso uma escova e uma flan de engraxar, escolhe uma pessoa e dá-lhe graxa. A música do Pascal comelade desaparece por completo ao mesmo tempo que uma música folk invade a cena. Todas as personagens abandonam o que estavam fazendo e convidam alguém do público ativo para uma dança tradicional, formam todos uma grande roda. Colocam todos os cravos nas suas respectivas bocas. A música desaparece por completo. Aplausos. O político deixa a roda vai até ao pequeno palco, pega nas coroas e nas faixas, volta para a roda e coroa o rei e a rainha do baile (homem nu, alguém do público) que estão no meio da roda e são coroados e enfaixados. Uma música com parecença ao tango argentino invade a cena. O rei e a rainha dançam. As personagens e o público voltam aos seus afazeres. Enquanto dançam a eterna virgem observa-os dum canto qualquer. As outras personagens começam a sair 1 a 1, com exceção da eterna virgem. Quando saem repetem os gestos efetuados nas suas respectivas entradas, só que desta feita em ordem inversa (olham do alto das escadas o salão pela última vez, olham-se no espelho e saem). O tango argentino desaparece por completo e a música tocada durante todo o baile volta com força. O rei abandona sua rainha no meio do salão e sai de cena. A eterna virgem observa por um instante a rainha sozinha no meio do salão e sai de cena, repete todos os gestos da sua entrada. As luzes do salão começam pouco a pouco a desaparecer até a escuridão total. A música preenche todo o espaço. Cessa a música por completo. A contra luz vermelha da plateia passiva acende-se. A música dos Titãs invade a cena. Se você

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

123


Está aqui É porque você veio Se você Veio até aqui É porque Você está aqui Se você está aqui É porque Você está atrás de alguma coisa Se você não quer nada por que não vai embora… – Black out. O louco Depois de todos entrarem, adentra o espaço cênico, para em frente ao espelho, arruma-se, vira-se para o salão, percorre com seus olhos todo o espaço, toma consciência dos presentes e entra finalmente. Senta-se num canto qualquer, liga seu teclado e toca uma canção disforme. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma dança sensual/sexual. Senta-se num canto qualquer pega no seu violão quebrado e toca uma canção disforme enquanto assobia e uiva como um cão. Dança sozinho uma dança rock anos 50. Bebe. Senta-se num canto qualquer abre um dos sacos de lixo e retira do seu interior diversos pequenos objetos, interage com cada um deles. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar a dança da maçã. Come. Senta-se num canto qualquer pega no seu violão quebrado e toca uma canção disforme enquanto assobia e uiva como um cão.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

124


Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Dança sozinho uma dança break. Senta-se num canto qualquer e tira um livro e estuda chinês. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma valsa. Senta-se num canto qualquer, abre um dos sacos de lixo e retira do seu interior diversos cadernos antigos e amarrotados, folheia cada um deles, pega num lápis e anota alguma coisa em um deles. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Senta-se num canto qualquer pega no seu teclado e toca uma canção disforme enquanto assobia e uiva como um cão. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho um funk. Senta-se num canto qualquer, retira de um dos sacos algumas cartas, e lê superficialmente uma a uma. Come. Senta-se num canto qualquer retira da sua bolsa um punhado de velhas fotografias, são fotos da guerra do ultramar, depois de olhar cada foto, joga-as indiferentemente pelo espaço. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

125


Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar uma marcha militar. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ele, quando essa pessoa percebe que está sendo observado, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. Dança sozinho uma dança psicodélica. A música do Pascal comelade desaparece por completo ao mesmo tempo que uma música folk invade a cena. Todas as personagens abandonam o que estavam fazendo e convidam alguém do público ativo para uma dança tradicional, formam todos uma grande roda. Colocam todos os cravos nas suas respectivas bocas. A música desaparece por completo. Aplausos. O político deixa a roda vai até ao pequeno palco, pega nas coroas e nas faixas, volta para a roda e coroa o rei e a rainha do baile (homem nu, alguém do público) que estão no meio da roda e são coroados e enfaixados. Uma música com parecença ao tango argentino invade a cena. O rei e a rainha dançam. As personagens e o público voltam aos seus afazeres. Enquanto dançam a eterna virgem observa-os dum canto qualquer. As outras personagens começam a sair 1 a 1, com exceção da eterna virgem. Quando saem repetem os gestos efetuados nas suas respectivas entradas, só que desta feita em ordem inversa (olham do alto das escadas o salão pela última vez, olham-se no espelho e saem). O tango argentino desaparece por completo e a música tocada durante todo o baile volta com força. O rei abandona sua rainha no meio do salão e sai de cena. A eterna virgem observa por um instante a rainha sozinha no meio do salão e sai de cena, repete todos os gestos da sua entrada. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

126


As luzes do salão começam pouco a pouco a desaparecer até a escuridão total. A música preenche todo o espaço. Cessa a música por completo. A contra luz vermelha da plateia passiva acende-se. A música dos Titãs invade a cena. Se você Está aqui É porque você veio Se você Veio até aqui É porque Você está aqui Se você está aqui É porque Você está atrás de alguma coisa Se você não quer nada por que não vai embora… – Black out. Eterna virgem Adentra o espaço cênico, para em frente ao espelho, arruma-se, vira-se para o salão, percorre com seus olhos todo o espaço, toma consciência dos presentes e entra finalmente. Vai sentar-se numa cadeira num canto qualquer. Veste roupas fechadas e pudicas, seu olhar é vago e distante. Todos os anos é sempre a primeira a chegar. Vai até a mesa de comidas. Senta-se nalgum canto, retira da sua bolsa um frasco de perfume, desabotoa um botão da sua camisa e coloca 02 gotas de perfume no pescoço, olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Dança sozinho uma dança rock anos 50. Vai sentar-se num canto qualquer, tira do bolso um maço de fotografias de homens anônimos, escolhe uma e contempla-a incessantemente. Não a larga para nada. Desabotoa dois botões da sua pudica camisa, tira um frasco de perfume da sua bolsa e pulveriza seus seios. Olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar. Abandona a pessoa no meio do salão.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

127


Senta-se nalgum canto, retira da sua bolsa um frasco de perfume, desabotoa um botão da sua camisa e coloca 02 gotas de perfume no pescoço, olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Vai dançar sozinha. Senta-se num canto, enrola a saia na cintura, perfuma-se, tira do bolso um maço de fotografias de homens anônimos, escolhe uma e contempla-a incessantemente. Come. Vai sentar-se nalgum canto. Desabotoa mais 02 botões da sua camisa, amarra-a transformando-a numa mini blusa, sua barriga fica à mostra. Retira o frasco de perfume e pulveriza sua barriga, tira do bolso um maço de fotografias de homens anônimos, escolhe uma e contempla-a incessantemente. Bebe alguma coisa. Enquanto bebe procura alguém na plateia ativa, quando encontra fixa seus olhos no sujeito, baixa suas longas meias até a canela, tira da sua bolsa o perfume e pulveriza suas pernas. Convida alguém para dançar, abandona seu par no meio do salão. Senta-se num canto qualquer. Vai para um canto retira da sua bolsa algumas cartas de amor, são cartas de possíveis pretendentes, lê uma delas em meio a soluços e lágrimas. Vai até a mesa das bebidas e bebe dois copos duma só vez. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Bebe. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes. A eterna virgem dança sozinha. Sua dança é muito sensual e provocativa. Enquanto dança procura alguém da plateia ativa. Quando a encontra dança provocantemente para ela.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

128


Senta-se num canto qualquer, solta o cabelo, tira da bolsa fotografias, escolhe uma delas, retira da bolsa uma caixa de fósforos e queima-a. Vai até a mesa da comida. Dança sozinha. Senta-se num canto qualquer, tira da bolsa uma estátua de sto Antônio, acende uma vela e faz um pedido a santo Antônio, levanta-se, retira da bolsa um batom vermelho sangue, adorna sua boca exageradamente, depois desfila pelo salão como se buscasse a sua próxima vítima. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas. Convida alguém para dançar. Abandona seu par. Vai até a mesa das bebidas, bebe dois copos, e começa a recompor-se, sobe as meias, desce a saia, abotoa a camisa, prende o cabelo, quando termina seu estado e exageradamente desleixado, está triste e angustiada, desesperada. Senta-se num canto qualquer e olha disfarçadamente para uma pessoa do público que não esteja olhando para ela, quando essa pessoa percebe que está sendo observada, deixa de olhá-la e busca outra pessoa para olhar sorrateiramente, faz este jogo com 03 pessoas, e repete o mesmo jogo mais 03 vezes Dança sozinho uma dança psicodélica. A música do Pascal comelade desaparece por completo ao mesmo tempo que uma música folk invade a cena. Todas as personagens abandonam o que estavam fazendo e convidam alguém do público ativo para uma dança tradicional, formam todos uma grande roda. Colocam todos os cravos nas suas respectivas bocas. A música desaparece por completo. Aplausos. O político deixa a roda vai até ao pequeno palco, pega nas coroas e nas faixas, volta para a roda e coroa o rei e a rainha do baile (homem nu, alguém do público) que estão no meio da roda e são coroados e enfaixados. Uma música com parecença ao tango argentino invade a cena. O rei e a rainha dançam. As personagens e o público voltam aos seus afazeres.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

129


Enquanto dançam a eterna virgem observa-os dum canto qualquer. As outras personagens começam a sair 1 a 1, com exceção da eterna virgem. Quando saem repetem os gestos efetuados nas suas respectivas entradas, só que desta feita em ordem inversa (olham do alto das escadas o salão pela última vez, olham-se no espelho e saem). O tango argentino desaparece por completo e a música tocada durante todo o baile volta com força. O rei abandona sua rainha no meio do salão e sai de cena. A eterna virgem observa por um instante a rainha sozinha no meio do salão e sai de cena, repete todos os gestos da sua entrada. As luzes do salão começam pouco a pouco a desaparecer até a escuridão total. A música preenche todo o espaço. Cessa a música por completo. A contra luz vermelha da plateia passiva acende-se. A música dos Titãs invade a cena. Se você Está aqui É porque você veio Se você Veio até aqui É porque Você está aqui Se você está aqui É porque Você está atrás de alguma coisa Se você não quer nada por que não vai embora… – Black out. Panfleto manifestação pela cidadania pela nação sábado 14 horas concha acústica O partido nacionalista convida todos os autênticos brasileiros de berço e de raça e que já não suportam mais ser minoria no seu próprio país a comparecerem sábado às 14 horas na praça do Martins Muniz vestidos de negro e de cabeça raspada (as mulheres é permitido cabelo longo desde que presos com uma fita negra) lembramos que não se esqueçam de trazer um taco de beisebol, caso a manifestação, a princípio pacífica, encontre pelo caminho negros amarelos ou outra qualquer cor que não seja o negro dos nossos sonhos, aconselhamos que verifiquem se suas botas da tropa têm biqueiras de aço, aconselhamos que tragam seus r.g.s para evitar que elementos estranhos infiltrem-se disfarçados de nativos. O partido conseguiu, com muito esforço, que estivessem presentes camaradas das terras germânicas e radicais livres do nosso país Hermano, onde irão nos honrar com a canção como é bela a nossa terra, cantada em à capela pelos castrados de olhos azuis, finalizando a sua visita com a dança do umbigo com passos marcados por castanholas, logo após da intervenção dos nossos convidados marcharemos em silêncio (marcando nossos passos apenas com o som surdo dos tacos de beisebol que a cada passo tocam a biqueira das nossas botas) pela avenida da liberdade até o marquês de pombal, onde em silêncio urinaremos nos pés da estátua do marquês e defecaremos na entrada do sef. Contamos com a sua participação. Aparece. Pelo país, pela língua, pelo ideal. The end Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

130


Esperando Deus

Gênero pós-existencialista Linguagem estética Simbólica Registro Interpretativo expressionista Clownesco Hiper Naturalista Naturalista Personagens pozzo Estragon Vladimir Lucky Espaço arena, não há separação entre atores e espectadores. Cenário atemporal, desértico, duas árvores estilizadas. Elásticos e balões moldam as suas formas. Pelo espaço folhas secas espalhadas pelo chão. Os balões estão recheados com infinitos objetos. Além de quê, dois personagens, Vladi e estra e toda a plateia Ativa, fazem parte indissolúvel do cenário. Não se pode considerar o Espaço Cênico sem esses elementos. Luz são utilizadas as luzes das quatros estações do ano Paisagem sonora sons e ruídos da natureza, tendo como base o tic-tac dum relógio, intercalados com uma canção triste mexicana. Interpretação O trabalho de ator tem como base uma linguagem Clownesca, sem, no entanto, cair na convenção das leis que regem. As Ortodoxas regras do clown. Mais do que qualquer coisa, o que nos remete ao clownesco é a estética e a linguagem corporal, já o seu Estado psicológico seria de um hipernaturalismo levado ao extremo nos seus sentimentos. O trabalho assim, adquire em momentos da obra uma estética e um registro próximos do que convencionamos chamar de expressionista. Contracena Ator / espectador (direta / passiva) não há conflito Direto entre os personagens, toda a contracena passa pelos olhos do público incauto, cada elemento que passivamente assiste é um elo entre as relações surgidas na cena, deslocando sensivelmente o olhar do público já não tão passivamente cético. Algumas considerações sobre Esperando deus

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

131


A espera, a interminável espera. O acomodar-se. A espera de que os nossos problemas, os nossos sonhos, as nossas felicidades, as nossas inquietações, sejam resolvidas por outrem. Um deus talvez, um político talvez, um papa talvez, um outro qualquer, desde que não sejamos nós próprios. Os sonhos infantis, traçados com a vida das nossas abstrações mais lúcidas. A vida dura e escaldante do nosso mundo metrópole. O medo que nos rodeia e nos imobiliza. A indignação com o momento presente. A constante manifestação inconformista que nos mantém na espera absoluta da mudança fatal. Tão desejada, tão reclamada, mas que a nossa coragem limitada nos obriga a gritar pelos cantos, como velhos rabugentos, que nos seus guetos escuros vociferam contra toda a humanidade, mas não são capazes de abrir a braguilha de suas calças, e que acabam urinando em suas pernas esqueléticas, esquecidas e deformes. O desejo que nos move é a vontade da mudança, de bater nossas asas, de olhar nos olhos da criança na rua e dizer- lhe que não é bem assim, que nem tudo está perdido, que as bestas que nos trazem a infelicidade perene, são coisas que passam. Talvez poder dizer, quem sabe, que podemos cambiar nossos ares, talvez nos transmutar em criaturas felizes, talvez. Talvez tentar sempre. Não desistir no meio do caminho. Levar o caminho para frente, mesmo que seja somente com a barriga. Mas caminhar, não parar, não se sentar. Correr atrás dos sonhos perdidos. É isso não parar, correr exaustivamente atrás de nossos sonhos perdidos num passado recente. As personagens Pozzo é o senhor todo poderoso dos limites que a sua vista permite ver. Adquiriu tamanho poder com o sacrifício dos desavisados. Juntou em suas mãos, todo o poder do conhecimento humano. Mitificou dogmas e descobriu, depois de séculos de estudos e pesquisas infindáveis, o segredo fragilizado da raça humana. Reunido de conhecimento e autodeterminação, traçou seu destino. Teve de ser cruel e impiedoso consigo mesmo, pois só assim poderia ser com outras criaturas também. Seu poder é tão grande que não conseguimos ter uma visão totalitária de sua força, pressentimos apenas que ela anda por aí, interferindo em nossos caminhos, dificultando o nosso viver. O poder camuflante das suas forças, confundem-nos a todo o instante.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

132


Lucky é prisioneiro de Pozzo. Apesar do seu grande poder sobre as forças da natureza e de outras naturezas desconhecidas do nosso neandertal raciocínio, ele nada pode fazer contra os desmandos de Pozzo. Seu poder sobre a esfera humana limita-se a realizar sonhos impossíveis. Sua função é simples: zelar pelo bom funcionamento do cosmo e fazer com que as forças que o equilibram, choquem-se somente o permitido nas normas da lei quântica. Tarefa devo dizer desde já, sensivelmente ingrata. De todas as funções que rotineiramente desempenha, a que mais lhe desagrada é interferir diretamente na esfera humana. Tarefa que num passado remoto, dava-lhe grande satisfação. Naqueles tempos, suas intervenções causavam-lhe frequentemente um orgulho supremo. Hoje a amargura toca-lhe a alma cada vez que sua presença se faz necessária no mundo dos mortais. Pois ultimamente, exaustivamente, seu trabalho se reduz a podar sonhos impossíveis. Ele nada pode fazer. Seu poder sempre esteve na posse de outrem. Para que ele se manifeste a nosso favor, temos que querer, que tomar posse do desejo de realizá-lo. Lucky pelo seu lado está aí, sempre esteve, aguarda ansiosamente que nos levantemos e o libertemos da prisão que nós imputamos a ele e a nós próprios. Vladi e Estra estão eternamente sentados em suas caixas à espera. Como sempre, aguardam calmamente e tediosamente a chegada de Deus, que com certeza, acham eles; modificará suas vidas. A vida toda eles nunca souberam fazer outra coisa a não ser esperar por Deus. Já não sabem exatamente quanto tempo esperam. Mas esperam. Enfadonhamente aguardam. O que lhes dá força para esta exaustiva espera é a fé. Adquirida por tradição, há muitas e muitas gerações. Acreditam eles que a raiz de seus problemas, será exterminada no momento em que encontrarem com seu deus. Apesar de todos os dias falhados eles, apesar do aparente desgosto mantém-se firmes, no propósito de não arredar pé do local, que determinaram como sendo o do encontro. Mesmo que seus sonhos infantis, pela imobilidade de seus atos, pouco a pouco comecem a desaparecer. Como que absorvidos por uma força obscura qualquer, persistem na imobilidade fatal. Objetos significativos Alguns objetos que marcam a presença de Pozzo O que marca sua presença é sua autodeterminação, sua eloquência, sua retórica e, principalmente, seu poder de manipulação. Alguns objetos que marcam a presença de Lucky Mala- na mala encontra-se toda a essência de sua alquimia mágica. É ali que ele guarda as poções que transformam dias em noites, a bela brisa duma tarde de verão em tufões catastróficos e mortais. Guarda também a essência da vida e de toda a eternidade, forças que estão concentradas nos sonhos que flutuam sobre nossas cabeças. É dentro da mala que estão os poderes secretos que equilibram o universo, e que são liberadas segundo os nossos desejos e, principalmente segundo nossas vontades, ou melhor dizendo força de vontade, atitude. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

133


Correntes- São as forças que o prende aos desmandos de Pozzo. Ele não tem permissão superior para arrebentá-las, se quisesse poderia. Mas somos nós, com um ínfimo esforço, que devemos arrebentá-las. Escada- É o seu preferido, dentre todos os seus equipamentos de trabalho. Do alto da pequena escada, ele pode apreciar toda a sua obra. Contemplá-la. Mas também, antagonicamente, representa seu maior sofrimento, pois dali, do alto dos seus limites, pode mirar também, o sofrimento e o caos que assolam seus domínios. Cada momento no alto, é um misto de dor, pela impossibilidade de interferir, misturado com a alegria contagiante pela possibilidade do movimento que se acena a todo o momento, e que ele pacientemente espera. Tranças/guizos/elásticos- Vestígios do tempo em que ele, como nós, tinha seus sonhos também. A diferença é que todos os seus sonhos foram realizados, e agora seu sonho impossível é conseguir administrar seus sonhos realizados, nós. Alguns objetos que marcam a presença de Vladi e Estra Tigelas e batedores de ovos- São instrumentos passatempo, que aliviam a inércia da espera estática eleita por eles. Elásticos presos a balões- Representam os caminhos de seus sonhos. É através desses elásticos que seus sonhos abstratos, frutificam-se na árvore da vida, que é sustentada pelas suas abstrações irreais. Elásticos presos ao público- É a ligação ao mundo real. Faz-lhes lembrar a todo o instante que estão presos ao mundo palpável do homem. Que podem tanto manipular, como serem manipulados pelos seus iguais. O entendimento desse processo é que determina a movimentação ou a estagnação de seus sonhos. Signo presentes em todos os personagens/objetos de cena/cenário Códigos de barra- Determinam a identificação massificada-codificada do mundo contemporâneo, onde cada coisa, cada produto, cada gênero da espécie animal, está qualificado de acordo com suas características e padrões. Essas, determinadas por forças desconhecidas, que nos catalogam como matérias inorgânicas que servem ao bel-prazer de criaturas desconhecidas e onipotentes

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

134


Cena 1

Unidade 1 – espera

Sub-unidade 1 Começa afinal...

O público aguarda o início do espetáculo numa sala contígua ao espaço da representação. Enquanto esperam, distraem-se vendo uma exposição de fotos, cujo tema são narizes de clowns e balões coloridos. Na sala ouve-se música clássica enérgica. Lucky vestindo um pijama branco, tipo camisola de enfermo, com uma numeração no peito, nos moldes dos presidiários, calçando botas da tropa, preso pelos pés a uma corrente, que está presa a um pequeno escadote de ferro, recepciona o público que chega. Tem um ar cansado, não um cansaço físico, mas um cansaço emocional, espiritual. Nos seus olhos pairam a tristeza e a indignação. Ele é muito velho, apesar de ainda ostentar uma bela cabeleira amarela. Suas rugas e seu andar retardado denunciam a imensidão vivida. Seus movimentos são lentos e ritmados. Tem, entre os olhos lânguidos e a boca carmim, um grande nariz vermelho.

Unidade 2 – mudança

Sub-unidade 1

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

135


Lucky convida um a um dos espectadores, a segui-lo ao espaço da representação. Pelo caminho, o público passa por um túnel formado por balões coloridos. No final do túnel, um grande espelho. Do lado direito do espelho, pendurados na parede, camisolas de enfermos, com códigos de barra no peito. Do lado esquerdo, narizes de clowns. Lucky veste cada pessoa com um nariz de clown e um camisolão de enfermo. Depois de vestido, a pessoa mira-se no espelho e adentra o espaço da representação. À medida que as pessoas vão adentrando o espaço, Lucky as conduz a seus respectivos lugares. Por uma razão qualquer, tem ele o péssimo hábito de separar as pessoas que chegam acompanhadas ou em grupos, colocando-as em lugares opostos e conflitantes. Depois de todos estarem instalados confortavelmente em suas caixas plásticas de cerveja, Lucky amarra seus pés e mãos à elásticos que convergem para dois pontos no centro do espaço.

Sub-unidade 2 Lucky sobe no escadote que se encontra ao fundo entre vladi e estra e adormece em pé.

Unidade 3 – universo ficcional

Sub-unidade 1

No espaço ouve-se ao fundo, música festiva de aldeia do final da idade média. As luzes apagamse, o espaço é invadido pelo som ensurdecedor de um relógio despertando. As luzes acendem-se, o despertador cessa. A cena agora é invadida por sons de pássaros no acasalamento e ao fundo o tic-tac de um relógio. No teto, balões de várias cores e tamanhos dão forma a uma árvore estilizada. Neste primeiro momento da representação o registro interpretativo dos atores segue uma linha hiper naturalista levando à sua musicalidade física contaminações da linguagem expressionista. O elemento que marca essa característica é o peso da inércia que os personagens carregam em seus ombros e que eternamente na espera do nada deixam transparecer nas suas atuações os sentimentos de dor e de perda que determinam o eterno tempo da contínua espera.

Sub-unidade 2 Lucky desperta. Mira o seu território e reconhece seus objetos.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

136


Cena 2

Unidade 1 – despertar

Sub-unidade 1

Estragon e Vladimir estão dormindo. Eles estão amarrados com elásticos ao público ativo. Vestem a mesma roupa que Lucky, com uma pequena diferença, suas camisolas têm uma numeração. São tão velhos quanto lucky. Estão sentados em caixas plásticas de cerveja e presos por elásticos ao público e aos balões por suas tranças longas e brancas. Nas extremidades dos elásticos, guizos prateados. Carregam entre as pernas, tigelas e batedores de ovos. Acordam assustados com o barulho ensurdecedor do relógio, seus movimentos são lentos e fluidos. Miram estáticos o infinito, seus olhares estão distantes e suas expressões estão carregadas de aborrecimento. Seus narizes são brancos e enormes

Sub-unidade 2

Pozzo dorme pesadamente, veste a mesma vestimenta que os outros, só que não leva qualquer numeração no peito, dorme como uma criança, carrega sobre o peito um gansinho branco de pelúcia. Dorme com o dedo polegar enfiado na boca. Ressona muito alto. Tem uma bela cabeleira carmim, feita de tranças, presas a elásticos e com guizos prateados em suas extremidades.

Unidade 2 – acalanto Sub-unidade 1

Lucky depois de detalhadamente reconhecer seu território, canta para pozzo acordar, é uma música de acalanto. Lucky (maternal)- acorda Maria bonita, acorda e vem fazer o café, que o dia já vem raiando, e a polícia já está em pé...

Cena 3 Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

137


Unidade 1 – terror

Sub-unidade 1

Pozzo começa a despertar lenta e ruidosamente. Uma triste e melancólica canção mexicana invade o espaço. Pozzo veste um negro casaco recheado de medalhas e insígnias. Tem um grande nariz negro. Tem o espírito alegre e sarcástico. Leva a tiracolo um grande binóculo. Com barulho do despertar de pozzo, vladi e estra assustados, começam a bater claras de ovos. Seu ritmo é lento e compassado, algo pesado na sua essência. Enquanto batem as claras dos ovos, miram o vazio infinito. Sub-unidade 2

Pozzo levanta-se, observa detalhadamente os objetos (orgânicos e inorgânicos) que formam o seu universo, tira do seu capacete um charuto cubano, coloca-o na boca entre os dentes cerrados e mira nos olhos de Lucky, nesse caso alguém da plateia ativa. Toda a contracena passa necessariamente pela triangulação dos olhos da plateia ativa. Toda a comunicação direta e indireta dos personagens passa obrigatoriamente pelo filtro ativo do público presente. Lucky mira alguém da plateia ativa, desce da sua escada, abre a sua grande mala, retira do seu interior um isqueiro, caminha até Pozzo e acende-lhe o charuto.

Sub-unidade 3

Pozzo começa a andar ruidosamente pelo espaço fumando prazerosamente seu charuto cubano.

Unidade 2 – dúvida

Sub-unidade 1

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

138


Vladi e estra cessam de bater. Primeiro estra, logo a seguir Vladi. Miram cada qual alguém da plateia enquanto e começam uma melancólica conversa. Suas movimentações são lentas e seus olhares profundos. Falam com total falta do acreditar, suas frases apenas preenchem o vazio da eterna espera. Lucky começa a caminhar pelo espaço, carregando uma escada e uma tesoura de jardinagem. Enquanto isso, Pozzo espreita e vigia com seu binóculo todo o espaço, parece procurar algo. Estra (confuso)- tem certeza de que era hoje? Vladi (perdido)- o que? Estra (esclarece)- que ele marcou o encontro? Vladi (tranquiliza)- eu devo ter tomado nota. Pozzo escolhe um balão, ordena a Lucky para podá-lo. Nas pausas da conversa de estrada e vladi, Lucky poda os balões, que são meticulosamente escolhidos antecipadamente por Pozzo. Lucky poda um balão amarelo. Vladi e estra, acompanham a trajetória da queda do balão. O balão espatifa-se no chão. Eles ficam aflitos. Pozzo ri lascivamente. Vladi e estra ficam tristes e impacientes. Estra (negativo)- é claro que se ele veio ontem e não nos encontrou aqui, ele não vai voltar hoje! Vladi (incrédulo)- mas você disse que a gente veio aqui ontem! Estra (terminando a conversa) - eu posso ter me enganado! Vamos ficar um pouco quietos, está bem? Vladi (conformado)- está.

Unidade 3 – passatempo

Sub-unidade 1

Batem claras de ovos, primeiro vladi, logo a seguir estra. Cessam de bater, primeiro Vladi, logo a seguir estra. Miram cada qual alguém da plateia. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

139


Pozzo abre um caderninho negro e volta a caminhar e espreitar pelo espaço, como se seguisse a um mapa. Retira do seu caderninho um pequeno pedaço de papel, desdobra-o, o pequeno papel transforma-se incrivelmente numa grande folha, na folha um mapa. Toda a vez que ele resolver ordenar o corte de um balão, primeiramente escolheu no mapa. Depois da escolha feita, volta a dobrar o mapa e a guardá-lo no caderninho. Escolhe outro balão. Lucky poda-o. É um balão vermelho. Vladi e estra, acompanham a sua queda. O balão espatifa-se no chão. Pozzo ri lascivamente. Vladi (impaciente)- o que vamos fazer agora? Estra (conformado)- esperar. Vladi (inconformado)- sim, mas enquanto a gente espera? Estra- Que tal se a gente se enforcasse? Vladi- é um modo de se masturbar? Estra- a gente goza! Vladi- Vamos nos enforcar imediatamente! Batem claras de ovos, primeiro vladi, logo a seguir estra. A mando de pozzo lucky poda outro balão, é um balão azul. O balão cai suavemente e não se espatifa no chão, pelo contrário cai como uma pluma. Pozzo torna-se agressivo e histérico. Chupa o dedão da mão. Escolhe em seu caderninho outro balão. Vladi e estra ficam aliviados. Pozzo caminha pelo espaço com seu caderninho negro a tiracolo e seleciona mais um balão. Enquanto caminha fuma prazerosamente seu charuto cubano. Vladi e estra não deixam de bater os ovos, sempre ritmados e compassadamente. Lucky poda um balão laranja que se espatifa no chão. Pozzo ri lascivamente. Está muito feliz. Cada vez que um balão é podado, Lucky enche um balão e entrega-o a alguém da plateia. Mais um balão é podado. Um balão azul pousa suavemente no chão. Pozzo acompanha sua queda. Torna-se histericamente agressivo. Ele chupa o dedão da mão. Lucky poda um balão azul. Pozzo observa atentamente sua queda. Está inquieto. O balão está vazio. Pozzo descontrola-se agressivamente. Vladi e estra ficam aliviados.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

140


Pozzo seleciona outro balão e lucky poda-o. É um balão verde. Ele espatifa-se no chão. Pozzo ri lascivamente histericamente. Vladi e estra contrariam-se. Pozzo guarda seu caderninho negro e vai a procura dos balões que não estouraram.

Unidade 4 – quem tem cu tem medo

Sub-unidade 1

Cessam de bater, primeiro estra, logo a seguir Vladi. Miram cada qual alguém da plateia. Pozzo caminha pelo espaço à procura dos balões. Cada vez que encontra um, pisa nele com suas botas da tropa e ri lascivamente. Estra (ordenando)- você primeiro. Vladi (resoluto)- não, primeiro você. Estra (não entendendo) porquê? Vladi (esclarecendo)- você é mais leve do que eu. Estra (afirmativamente)- por isso mesmo.

Sub-unidade 2

Vladi (desnorteado)- não compreendo!] Estra (explicativo)- raciocina... Se o galho enforca você, enforca a mim também. Vladi (perdido)- mas eu sou mais pesado que você! Estra (desvaloriza)- você é quem diz, há uma chance em duas mais ou menos! Pozzo pega seu charuto em brasa e começa a estourar os balões que Lucky entregou à plateia. Ri lascivamente. Seu riso descontrola-se completamente.

Unidade 5 – decisão

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

141


Sub-unidade

Batem claras de ovos, primeiro estra, logo a seguir vladi. Cessam de bater, primeiro vladi, logo a seguir estra. Miram cada qual alguém da plateia. Nas pausas das conversas não deixam de bater as claras de ovos, ora lenta, ora rapidamente, mas sempre compassadamente. Vladi (decidido)- então vamos fazer o quê estra (sensato)- não vamos fazer nada, é mais prudente.

Sub-unidade 2

Vladi (concordando)- vamos esperar e ver o que ele diz. Estra (perdido)- quem? Vladi (esclarece)- deus. Estra (entusiasmado)- isso. Vladi (resoluto)- vamos esperar até que a gente saiba exatamente qual é a nossa situação. Estra (entusiasmado)- estou louco para saber o que ele tem a nos oferecer, aí a gente aceita ou não!

Unidade 6 – alarme falso

Sub-unidade 1

Batem claras de ovos, primeiro estra, logo a seguir vladi. Cessam de bater, primeiro Vladi, logo a seguir estra. Miram cada qual alguém da plateia. Enquanto Vladi e estra travam esse bizarro diálogo, Pozzo está estourando balões, e para tanto faz muito alarido. Lucky nesse tempo, dorme em pé. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

142


Vladi (sussurrando)- escuta. Estra (com as mãos no ouvido, tentando ouvir algo) - não ouço nada! Vladi- pssssiuuu (eles param para tentar ouvir algo) ... Nem eu.

Sub-unidade 2

Estra (sussurrando)- você me assustou. Vladi (sussurrando)- pensei que fosse ele. Estra (sussurrando)- quem? Vladi (sussurrando)- deus.

Unidade 7 – contra a parede

Sub-unidade 1

Batem claras de ovos, primeiro vladi, logo a seguir estra. Cessam de bater, primeiro estra, logo a seguir vladi. Miram cada qual alguém da plateia. Estra (determinado)- eu te fiz uma pergunta. Vladi (sem dar importância) - qual foi a pergunta? Estra (determinado)- eu perguntei se nós estávamos presos. Vladi (perdido)- presos? Estra (firme)- presos. Vladi (perdido)- como presos?

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

143


Estra (esclarece)- presos a teu cavalheiro. Vladi (desvaloriza)- a deus? Presos a deus? Que ideia, nunca, jamais... Por enquanto!

Sub-unidade 2

Estra (surpreso)- o nome dele é deus? Vladi (na dúvida) - acho que sim.

Cena 4 Unidade 1 – finalmente chegou

Sub-unidade 1

Batem claras de ovos, primeiro vladi, logo a seguir estra. Cessam de bater, primeiro estra, logo a seguir vladi. Miram cada qual alguém da plateia. Durante essa conversa, Pozzo manteve-se atento aos dois, observando-os com seu grande binóculo. Pozzo entra em cena fazendo muito barulho. O registro interpretativo que até o momento assumia um tom hiper naturalista, esbarrando no espaço da linguagem expressionista, transforma-se com a entrada de pozzo em cena, num registro clownesco, tornando o ritmo da representação mais dinâmico nos diálogos e menos estático nas movimentações cênicas, alterando por completo a musicalidade espacial da representação. O peso existencial que marca o sentimento no expressionismo ganha cores com um peso soft com o humor que caracteriza a construção clownesca. Estra (entusiasmado)- é ele? Vladi (perdido)- quem? Estra (entusiasmado)- deus! Vladi (incrédulo)- é!

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

144


Unidade 2 – eu sou deus

Sub-unidade 1

Pozzo (como um trovão) - eu sou pozzo... Este nome não lhes diz nada? Eles não respondem, estão admiradamente amedrontados.

Sub-unidade 2

Pozzo (insiste)- eu perguntei se este nome não lhes diz nada? Estra (assustado)- nós não somos daqui senhor. Pozzo (irônico)- mas vocês são seres humanos, pelo menos parecem, da mesma espécie que pozzo...

Sub-unidade 3

Pozzo (com dureza) - quem é deus? Estra (surpreso)- deus? Pozzo (irônico)- é, você pensou que eu fosse ele! Estra (desculpando-se) - não senhor, de modo algum!

Sub-unidade 4

Pozzo (muito irritado) - quem é deus? Vladi (tranquilo)- é um conhecido nosso! Estra (desculpando-se) - não, nós nem o conhecemos! Vladi (tranquilo)- é verdade, nós não o conhecemos bem, mas mesmo assim... Pozzo (irônico)- você pensou que eu fosse ele!

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

145


Estra (desculpando-se) - quer dizer, a escuridão, a fadiga, o cansaço, a espera... Eu confesso, por um instante eu pensei...

Sub-unidade 5

Pozzo (ironicamente surpreso) - a espera... Então vocês estão esperando por ele? Pausa. Eles não respondem, estão ocupados em observar lucky.

Unidade 3 – diplomacia politicamente correta

Sub-unidade 1

Pozzo (diplomático) - meus caros amigos, estou muito feliz por tê-los encontrado, mas juro felicíssimo...

Sub-unidade 2

Pozzo mira os olhares incautos da plateia atenta e não obtendo resposta muda seu discurso estratégico. Pozzo (sofredor)- sim a estrada é longa para quem caminha sozinho durante seis horas sem encontrar viva alma...

Sub-unidade 3 Pozzo mira os olhares incautos da plateia atenta e não obtendo resposta muda seu discurso estratégico. Pozzo (contemplativo)- há um toque outonal na brisa desta tarde...

Sub-unidade 4

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

146


Pozzo mira os olhares incautos da plateia atenta e não obtendo resposta muda seu discurso estratégico. Pozzo (humilde)- sim cavalheiros, eu não posso ficar muito tempo distante da companhia de meus semelhantes, mesmo quando a semelhança não é perfeita.

Sub-unidade 5

Pozzo mira os olhares incautos da plateia atenta e não obtendo resposta muda seu discurso estratégico. Pozzo (desculpando-se) - essa é a razão pela qual, se os senhores me permitem, eu pretendo descansar um pouco aqui, antes de prosseguir viagem. Vladi e estra observam lucky que dorme em pé. Estão-se nas tintas para o discurso do pozzo.

Sub-unidade 6

Pozzo mira os olhares incautos da plateia atenta e não obtendo resposta muda seu discurso estratégico. Pozzo (ironicamente)- o ar fresco estimula o apetite. Pozzo mira os olhares incautos da plateia atenta e não obtendo resposta muda seu discurso estratégico. Eles não ligam a pozzo.

Sub-unidade 7

Pozzo senta-se, tira dos bolsos do seu casaco uma garrafa de vinho, uma taça de cristal, um grande guardanapo branco e finalmente um pedaço de pão e outro de frango embrulhados noutro guardanapo branco.

Unidade 4 – que é que ele tem Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

147


sub-unidade 1

Vladi e estra observam atentamente Lucky que dorme. Estra (curioso)- o que é que ele tem? Vladi (curioso)- tem um ar cansado! Estra (zombador)- olha como ele baba. Vladi (zombador)- é inevitável. Estra (zombador)- olha como ele sua. Vladi (zombador)- vai ver é um idiota. Estra (zombador)- um cretino. Vladi (zombador)- e os olhos dele. Estra (zombador)- o que é que tem? Vladi (zombador)- saltam das órbitas. Estra (zombador)- para mim está no último suspiro. Vladi (irônico)- não se pode ter certeza. Pergunta alguma coisa a ele! Estra (irônico)- será que vale a pena? Vladi (irônico)- O que é que a gente tem a perder?

Sub-unidade 2

Estra (zombador)- cavalheiro...

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

148


Unidade 5 – era o que faltava

Sub-unidade 1

Pozzo deixa seu banquete de lado e de súbito se levanta. Pozzo (contrariado com a situação) - deixa ele em paz, não vê que ele quer descansar. Pausa.

Sub-unidade 2 Pozzo joga os restos do pedaço de frango, espalha seus ossos pelo chão.

Unidade 6 – os ossos

Sub-unidade 1

Estra (humildemente)- por favor senhor... Pozzo (benevolente)- que é meu bom homem? Estra (quase implorando) - é que se o senhor não vai mais usar mais os ossos... O senhor precisa dos ossos? Pozzo (ironicamente)- se eu vou precisar dos ossos? Não. Pessoalmente não tenho mais necessidade deles, todavia, teoricamente, eles pertencem ao carregador. Portanto é a ele que se deve perguntar. Pergunte, não tenha medo meu bom homem.

Sub-unidade 2

Estra (respeitosamente)- cavalheiro, perdão cavalheiro, mas o senhor vai precisar dos ossos? Lucky não responde Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

149


Sub-unidade 3

Pozzo (brutalmente)- ele está falando com você seu porco. Responda. Quer os ossos ou não?

Sub-unidade 4

Pozzo (decidido)- são seus. (filosofa) é a primeira vez que ele recusa um osso, (intimidador) espero que não me faça a brincadeira de ficar doente. Unidade 7 – por que ele não põe a bagagem no chão

Sub-unidade 1

Vladi (indignado com a atitude de Pozzo) - é uma vergonha tratar um homem desta maneira...um ser humano... Eu acho um absurdo... Estra (chupando um osso) - um escândalo.

Sub-unidade 2

Pozzo (tranquilo)- os senhores são severos comigo... Quantos anos o senhor tem? Sessenta, setenta?... Qual a idade dele? Estra (chupando o osso) - pergunte a ele! Pozzo (com seriedade) - ele não pode suportar a minha presença. Eu sou meio desumano, mas e daí? Reflita antes de cometer uma imprudência. Digamos que você vá embora durante o dia, porque apesar de tudo ainda é dia. Muito bem, nesse caso onde vai ao encontro de vocês com esse tal de deus. Num momento em que o futuro de vocês depende disso? Pelo menos o futuro imediato.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

150


Sub-unidade 3

Estra (lambendo os dedos) - por que ele não põe a bagagem no chão?

Sub-unidade 4

Pozzo (dissimulando)- eu também gostaria de encontrá-lo. Quanto mais pessoas encontro, também fico mais feliz, pode-se aprender algumas coisas com a criatura mais insignificante, pode-se enriquecer mais a alma, tomar consciência das próprias bênçãos, até mesmo vocês podem ter me enriquecido! Estra (olhando para lucky) - por que ele não põe a bagagem no chão? Vladi (taxativo)- foi-lhe feita uma pergunta.

Unidade 8 – vulcão

Sub-unidade 1

Pozzo (irado)- uma pergunta? Há um instante vocês estavam me chamando de senhor, tremendo de medo, agora já me fazem perguntas. Isso vai acabar mal!

Unidade 9 – perguntar o quê

Sub-unidade 1

Vladi (observando lucky) - acho que ele está escutando! Estra (perdido)- o quê? Vladi (apontando para lucky) - pergunte agora que ele está atento!

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

151


Estra (perdido)- perguntar o quê? Vladi (explicativamente)- por que ele não põe a bagagem no chão? Estra (questionando-se) - é o que eu me pergunto.

Unidade 10 – explicação

Sub-unidade 1 Pozzo (tentando tomar conta da situação) - vocês querem saber por que ele não coloca a bagagem no chão? Vladi (sério)- é! Pozzo (diplomático)- o senhor está de acordo? Estra (perdido)- é. Pozzo (determinado)- vou lhes responder... Estão todos aí?

Sub-unidade 2

Pozzo- (a lucky com brutalidade) olha para mim seu porco! (dono da situação) perfeito... Estou pronto.

Sub-unidade 3

Vladi (com muita energia) - atenção. Pozzo do alto da sua afasia cria suspense Pozzo (benevolente)- é para me impressionar... É para que eu fique com ele!

Unidade 11 – pozzo fugindo a pergunta

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

152


Sub-unidade 1

Estra (desnorteado)- o senhor quer se livrar dele? Pozzo (explicativo)- ele imagina que se eu o julgar um bom carregador, poderei empregá-lo no futuro nessa função. Estra (na dúvida) - e o senhor não quer? Pozzo (dissimulando)- na verdade ele como carregador é pior que um porco, essa não é a profissão dele.

Sub-unidade 2

Vladi (insistente)- mas o senhor quer se livrar dele? Pozzo (como se não ouvisse nada) - ele imagina que se mostrando infatigável nessa função, eu mudarei de ideia, tal é a sua miserável maquinação, como se eu tivesse necessidade de escravos... Penso que respondi à pergunta! Há mais alguma? Vladi (insistentemente firme) - o senhor quer se livrar dele?

Unidade 12 – explosão

Sub-unidade 1

Pozzo (explodindo) - quero, mas em lugar de expulsá-lo, como eu poderia, se quisesse, em vez de simplesmente jogá-lo na rua com o pé no cu, eu, pelo contrário, tamanha a minha bondade, estou conduzindo-o à feira da ladra, onde espero conseguir alguma coisa por ele. Para falar a verdade, não é possível expulsar seres assim, a melhor coisa seria matá-los...

Sub-unidade 2

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

153


Pozzo (benevolente)- sabem quem me ensinou todas essas belas coisas?...ele. Sem ele eu só teria Pensamentos e sensações vulgares...a beleza, a graça, a verdade cristalina, estavam além de mim.

Sub-unidade 3

Vladi (revoltado)- e agora você o joga fora, um criado velho e dedicado como ele! Estra (deixando de chupar o osso que traz na boca) - filho da puta. Vladi (indignado)- depois de ter chupado tudo que ele tinha de bom, você o joga fora como uma casca de banana. Unidade 13 - teatrão

Sub-unidade 1

Pozzo (fingindo choro) - eu não aguento mais, não posso suportar o que ele me faz, vocês não fazem ideia, é terrível, ele tem de ir embora, estou ficando louco, eu não aguento mais, não posso mais… Vladi (comovido) - como é que você tem coragem, um patrão bom como ele. Depois de tantos anos, crucificá-lo dessa maneira. É incrível. Pozzo (chora soluçando) - ele era tão bonzinho, tão prestativo, tão divertido, era meu anjo da guarda, e agora está me assassinando.

Unidade 14 –dúvida

Sub-unidade 1

Estra (desnorteado)- ele quer substituí-lo? Vladi (totalmente a leste) - o quê?

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

154


Estra (explicando)- eu não entendi se ele quer outro no lugar dele ou não quer ninguém. Vladi (levantando dúvidas) - acho que não! Estra (desnorteado)- não o quê? Vladi (totalmente perdido) - não sei. Estra (sugerindo)- pergunta a ele.

Unidade 15 – normalidade

Sub-unidade 1

Pozzo (voltando ao seu estado normal) - senhores, não sei o que se passou comigo, eu lhes peço perdão. Esqueçam o que eu lhes disse, eu não sei exatamente o que lhes disse, mas podem estar certos de que não há uma palavra de verdade em tudo isso. Tenho jeito de homem que sofre? Onde está o meu charuto?

Unidade 16 – civismo

Sub-unidade 1

Vladi (sonhador)- Que tarde maravilhosa. Estra (com amabilidade) - inesquecível..., mas por obséquio, não fique aí de pé, o senhor pode apanhar uma pneumonia. Pozzo (gentil)- crê o senhor? Estra (com certeza) - mas sem dúvida! Pozzo (dissimulando)- o senhor tem razão, mas devo mesmo deixá-los, senão vou me atrasar.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

155


Unidade 17 – essas paragens o tempo parou

Sub-unidade 1

Vladi (aéreo)- o tempo parou. Pozzo (com conhecimento) - não creia nisso senhor. O que o senhor quiser, menos isso. Estra (picando)- hoje ele está vendo tudo negro. Pozzo (professoral)- menos o firmamento. Vocês não são daqui, não conhecem o nosso crepúsculo. Querem que eu o descreva?... Um pouco de atenção por favor... Senão não chegamos a nada...

Sub-unidade 2

Pozzo (bruto)- olha para mim seu porco...

Sub-unidade 3

Pozzo (professoral)- o que há de tão extraordinário nesse céu? É pálido como qualquer céu a esta hora do dia nestas paragens quando o tempo está bom. Há uma hora, mais ou menos, depois de ter derramado desde as dez da manhã, torrente de luz escarlate e branca, ele começa a perder a sua fulgência e a desmaiar. Porém atrás desse véu de delicadeza e de paz, a noite galopa e nos envolverá a todos, assim no momento que menos esperamos. É assim que é nesse puto deste mundo...

Sub-unidade 4

Pozzo (fingindo modéstia) - como vocês me acharam? Bom? Mais ou menos? Passável? Medíocre? Vladi (indiferente)- muito bom! Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

156


Pozzo- E o senhor? Estra (chupando o osso) - ó, muito bom, muito bom. Pozzo (fingindo modéstia) - muito obrigado, cavalheiro, eu preciso tanto de estímulo, perto do fim fraquejei um pouco, os senhores notaram? Vladi (indiferente)- talvez um pouquinho só. Estra (chupando o osso) - eu até pensei que fosse de propósito. Pozzo (fingindo modéstia) - é que a minha memória já não é a mesma.

Unidade 18 – que chatice

Sub-unidade 1

Estra (depois de guardar o resto dos ossos) - enquanto isso não acontece nada. Pozzo(solícito)- o senhor se chateia? Estra (chupando os dedos) - um pouco. Pozzo (insiste)- e o senhor? Vladi (indiferente) - já me diverti mais.

Sub-unidade 2 Pozzo (fingindo modéstia) - eu me pergunto o que posso fazer para que o tempo não lhes pareça tão longo. Já lhes dei meus ossos, já lhes falei de vários assuntos, já lhes expliquei o crepúsculo muito claramente, mas será o bastante. Isso é que me tortura. Será o bastante? Estra (aproveita a deixa) - uma moedinha. Vladi (taxativo)- para com isso! Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

157


Estra (taxativo)- também menos não aceito!

Unidade 19 – ele pensa?

Sub-unidade 1

Pozzo (eloquente)- o que os senhores preferem, que ele cante, dance, recite, pense? Estra (a leste) - quem? Pozzo (provocando)- quem? Vocês sabem pensar? Vladi (duvidando)- ele pensa? Pozzo (eloquente)- claro! Antes eu podia ouvi-lo durante horas. Então querem que ele pense alguma coisa para nós?

Sub-unidade 2

Vladi (duvidando)- isso tudo é conversa! Estra (dando crédito) - não se pode ter certeza! Vladi (desafiando)- daqui a pouco ele vai dizer que não havia uma palavra de verdade no que ele disse! Estra (empolga-se) - manda ele pensar! Vladi (decidido)- o que ele está esperando? Pozzo (bruto) - afastem-se... (a lucky) pensa porco!

Sub-unidade 3

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

158


Pozzo dá um forte puxão na corrente que está presa ao pescoço de Lucky. Lucky (acordando)- dada a existência, conforme se comprova por recentes trabalhos públicos (adormece, ressona, desperta) de um deus pessoal, com barbas brancas, fora da compreensão humana, que do alto de sua apatia, nos ama profundamente com algumas excepções (adormece, ressona, desperta) por motivos desconhecidos, estes, estão mergulhados no tormento, mergulhados no fogo e, cujo o fogo e, cuja a flama, por pouco que dure, um pouco dura (adormece, ressona, desperta) e quem duvidar incendiará o firmamento, o que significa conduzir o inferno ao firmamento, tão azul e tranquilo e calmo, com uma calma que não pode ser interrompida (adormece, ressona, desperta) fica estabelecido sem qualquer possibilidade de erro, que o que é permitido aos cálculos humanos, (adormece, ressona, desperta) é a certeza que o homem, apesar dos processos da alimentação e da defecação, está em processo de emagrecimento (adormece, ressona, desperta) e ao mesmo tempo, sem razão lógica, apesar do incremento da cultura física, da prática dos esportes, está caminhando para o emagrecimento, para o definhamento, enfim, para o desaparecimento não importa, os fatos são esses (adormece, ressona, desperta) considerando de outra parte, o que é mais grave, é que sob a luz das experiências abandonadas, resulta que as planícies, as montanhas, os mares, os rios, são os mesmos (adormece, ressona, desperta) e no grande frio, no grande escuro, transformar-se-ão em pedras, e as pedras, nos grandes vácuos, transformar-se-ão em pó (adormece, ressona, desperta) apesar das barbas brancas, das flamas, dos prantos, das pedras, tão azuis e tão calmas, apesar dos esforços das experiências inacabadas, apesar de tudo transformar-se-ão em pó...

Sub-unidade 4

Lucky (explodindo)- por isso o que importa é viver, viva, viva, viva

Unidade 20 – violência doméstica

Sub-unidade 1

Pozzo puxa-o pelo pescoço derrubando-o Pozzo (bruto)- de pé porco! Vladi (indignado)- assim o senhor o mata. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

159


Pozzo (bruto)- de pé porco! Suíno...

Sub-unidade 2

Pozzo fareja algo no ar. Pozzo (com nojo) - qual de vocês cheira tão mal? Estra (inocente)- ele tem mau hálito e eu tenho chulé! Pozzo (decidido)- eu vou-me embora! Estra (entusiasmado)- então adeus.

Sub-unidade 3

Vladi (chamando a atenção de Pozzo) - o senhor está indo pelo lado errado. Pozzo dá meia volta e segue em outra direção, que na realidade vem dar na mesma. Estra/vladi (em coro) - adeus.

Cena 5

Unidade 1 – tempo

Sub-unidade 1

Pozzo sai de cena carregando a tiracolo lucky. Vladimir e Estragon batem claras em neve por mais ou menos 3 minutos.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

160


Durante o processo de bater claras de ovos, gradativamente o registro interpretativo passa do clownesco para um naturalismo carregado de fragmentos expressionistas.

Sub-unidade 2

Cessam de bater, primeiro vladi, logo a seguir estra. Miram cada qual alguém da plateia. O som de pássaros no acasalamento é substituído pelo som de ondas do mar quebrando com violência. O tic-tac do relógio mantém-se. Vladi (irônico)- deu para passar o tempo. Estra (irônico)- teria passado de qualquer maneira. Vladi (irônico)- sim, mas não tão depressa! Batem claras de ovos, primeiro vladi, logo a seguir estra. Cessam de bater, primeiro estra, logo a seguir vladi. Miram cada qual alguém da plateia.

Unidade 2 – é aqui mesmo

Sub-unidade 1

Estra (depois de examinar o espaço) - é aqui mesmo? Vladi (examina o espaço) - claro, não reconhece o lugar? Estra (puto)- o que há para reconhecer? Toda a merda da minha vida eu chafurdei na lama, e você fica me falando do cenário. Olha para essa merda, eu nunca saí daqui!

Sub-unidade 2

Batem claras de ovos, primeiro estra, logo a seguir vladi. Cessam de bater, primeiro Vladi, logo a seguir estra. Miram cada qual alguém da plateia. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

161


Unidade 3 – é tão difícil

Sub-unidade 1

Vladi (com desânimo) - diz alguma coisa! Estra (com desânimo) - eu estou tentando Vladi (com desânimo) - diz qualquer coisa!

Sub-unidade 2

Estra (decidido)- que vamos fazer agora? Vladi (decidido)- vamos esperar Deus! Estra (decidido)- é mesmo.

Sub-unidade 3

Batem claras de ovos, primeiro estra, logo a seguir vladi. Cessam de bater, primeiro Vladi, logo a seguir estra. Miram cada qual alguém da plateia. Pozzo volta a pesquisar seu caderninho negro, enquanto lucky “rega” todo o espaço com pétalas de flores. Estra e vladi voltam a bater claras de ovos. Pozzo guarda seu caderninho negro e vai até lucky, retira do bolso uma mordaça e tampa-lhe a boca. Pozzo coloca uns óculos escuros e voltar a pesquisar seu caderninho negro. Pozzo finge caminhar com dificuldade, como se fosse cego Vladi (desanimado)- é tão difícil. Estra (procurando animá-lo) - e se você cantasse? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

162


Vladi (decidido)- não. Quem sabe se a gente começar tudo de novo? Estra (desvaloriza)- isso não seria difícil. Vladi (desanimado)- começar é que é difícil! Estra (procurando animá-lo) - pode-se começar de qualquer coisa. Vladi (justifica)- mas é preciso uma decisão. Estra (vazio)- é. Vladi (categórico)- isso impede a gente de pensar. Estra (determinado)- a gente pensa assim mesmo. Vladi (categórico)- é impossível!

Unidade 4 – contradição

Sub-unidade 1

Batem claras de ovos, primeiro vladi, logo a seguir estra. Cessam de bater, primeiro estra, logo a seguir vladi. Miram cada qual alguém da plateia. Estra (decido)- é isso: vamos nos contradizer. Vladi (categórico)- é impossível. Estra (sem certeza) - você acha? Vladi (na dúvida) - talvez não! Lucky poda mais um balão, é um balão amarelo, ele espatifa-se no chão. Pozzo ri lascivamente. Lucky enche um balão azul e entrega a alguém da plateia.

Unidade 5 – a gente é feliz Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

163


Sub-unidade 1

Batem claras de ovos, primeiro vladi, logo a seguir estra. Cessam de bater, primeiro estra, logo a seguir vladi. Miram cada qual alguém da plateia.

Sub-unidade 2

Estra (esperançoso)- pelo menos há isso. Vladi (a leste) - isso o quê? Estra (esclarece)- muito menos miséria. Vladi (vazio)- é verdade.

Sub-unidade 3

Batem claras de ovos, primeiro vladi, logo a seguir estra. Cessam de bater, primeiro estra, logo a seguir vladi. Miram cada qual alguém da plateia.

Sub-unidade 4

Estra (down)- então que tal se a gente pensasse que é feliz? Vladi (down)- o que é terrível é ter pensado. Estra (down)- é verdade.

Sub-unidade 5

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

164


Vladi e estra gradativamente perdem o ar pesado e deixam a mostra seus dentes cerrados, produzindo um típico sorriso amarelo. Vladi (pateticamente)- a gente é feliz... O que é que a gente faz agora que é feliz? Continua esperando?

Unidade 6 – conversa sobre nada

Sub-unidade 1 Com seu sorriso patético mira detalhadamente o espaço circundante, estaciona por alguns instantes nas árvores presentes no espaço e finalmente fixa seu olhar num espectador incauto. Vladi (patético)- ah, a árvore. Estra (totalmente a leste) - a árvore? Vladi (patético)- não se lembra? Estra (down)- estou cansado. Vladi (determinado)- olha bem! Estra (depois de uma rápida mirada) - não vejo nada. Vladi (questionando-se) - mas ontem a noite estava toda carregada de frutos, hoje está preta e esquelética e o chão coberto de flores. Estra (perdido)- de flores? Vladi (como não acreditando) - é, da noite para o dia! Lucky poda três balões azuis de uma só vez. Pozzo descontrola-se e irrita-se terrivelmente. Vladi e estra enquanto conversam batem claras de ovos.

Sub-unidade 2

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

165


Estra (desvaloriza)- eu já te disse que a gente não veio aqui ontem, é outro de seus pesadelos! Vladi (no ataque) - e segundo você aonde é que a gente esteve ontem? Estra (desvaloriza)- sei lá, em outro compartimento. Não é o vácuo que nos falta? Vladi (no ataque) - muito bem. Então a gente não esteve aqui ontem? E o que é que a gente fez ontem? Estra (a leste) - fez? Vladi (insiste)- vê se te lembra! Estra (desvaloriza)- acho que a gente bateu papo. Vladi (duvidando)- sobre o quê? Estra (fechando a conversa) - isso e aquilo. Nada em particular... É isso: ontem a gente bateu papo sobre nada, há mais ou menos cinquenta anos que a gente bate papo sobre nada. Pozzo manda Lucky podar mais três balões, mas um de cada vez. Eles caem e espatifam-se no chão. Pozzo ri lasciva e histericamente. Lucky enche balões e entrega-os à plateia.

Sub-unidade 3

Vladi (insiste)- você não se lembra de nada em particular? Estra (saturado)- não me atormenta! Vladi (insiste)- o sol, a lua, não se lembra? Estra (saturado)- acho que estavam por aí, como sempre. Vladi (insiste)- não notou nada de extraordinário? Estra (totalmente saturado) - ai meu deus. Vladi (entusiasmado)- o pozzo, o lucky. Estra (totalmente a leste) - pozzo? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

166


Vladi (categórico)- os ossos. Estra (menospreza)- parecia espinha de peixe. Vladi (esclarece)- foi o pozzo que te deu.

Unidade 7 – o que vamos fazer

Sub-unidade 1 Ficam um tempo sem nada a fazer, miram apenas os olhos da plateia estática. Estra (down)- estou cansado. Vamos embora? Vladi (down)- não podemos. Estra (down)- por quê? Vladi (down)- estamos esperando Deus. Estra (down)- ah é...

Sub-unidade 2

Batem claras de ovos, primeiro estra, logo a seguir vladi. Cessam de bater, primeiro estra, logo a seguir vladi. Miram cada qual alguém da plateia.

Sub-unidade 3

Estra (vazio)- o que vamos fazer agora? Vladi (vazio)- não vamos fazer nada! Estra (vazio)- mas eu não aguento mais.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

167


Vladi (vazio)- isso está ficando verdadeiramente insignificante! Estra (vazio)- ainda não o bastante. Pozzo chama lucky. Ele retira de sua mala um óculos escuro, uma bengala de cego e uma caixinha para guardar moedas, daquelas que os cegos carregam no peito. Pozzo ornamenta-se de ceguinho, caminha pelo espaço sendo rebocado por Lucky. Unidade 8 – incomoda

Sub-unidade 1 Estra fica sem nada a fazer. Vladi (canta) - um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam, incomodam muito mais três elefantes incomodam muita gente...quinze elefantes incomodam muita gente… Estra (explode)- chega. Estou cansado! Vladi (irônico)- prefere ficar aí sem fazer nada? Estra (irado)- prefiro! Vladi (indiferente)- como queira. Pozzo e Lucky começam a caminhar pelo espaço. Lucky puxa a reboque pozzo que finge estar cego. Pozzo nessa caminhada procura os balões pela plateia para estourá-los.

Unidade 9 – vamos embora

Sub-unidade 1

Batem claras de ovos, cessam de bater

Sub-unidade 2

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

168


Estra (down)- vamos embora! Vladi (down)- não podemos Estra (down)- por quê? Vladi (down)- estamos esperando deus Estra (down)- ah é.

Unidade 10 – incomoda Sub-unidade 1

Estra fica sem nada a fazer. Vladi (canta) - dezessete elefantes incomodam muita gente... Estra (irrita-se) - será que você não pode ficar quieto?

Unidade 11 – hora do recreio

Sub-unidade 1

Vladi e estra ficam sem nada a fazer. Vladi (entusiasmado)- você não quer brincar? Estra (indiferente)- brincar de quê? Vladi (entusiasmado)- de pozzo e lucky. Estra (indiferente)- não conheço! Vladi (entusiasmado)- eu faço o lucky, você faz o pozzo!...vai!

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

169


Sub-unidade 2

Estra (perdido)- vai o quê? Vladi (ordenando)- me xinga! Estra (sem energia) - canalha. Vladi (incentiva)- mais forte! Estra mira outra figura da plateia ativa. Estra (com força) - gonorrento, espiroqueta. Vladi (entusiasmado)- me manda pensar! Estra (perdido)- o quê? Vladi (entusiasmado)- diz pensa porco! Estra mira outra figura da plateia ativa. Estra (com força) - pensa porco!

Cena 6

Unidade 1 – grande entrada

Sub-unidade 1

Pozzo depois de estourar todos os balões do espaço, fazendo muito barulho, cai entre vladi e estra no maior estardalhaço. Com a entrada turbulenta de Pozzo, Vladi e estra cessam o jogo.

Unidade 2 – eles vêm aí

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

170


Sub-unidade 1

Vladi (agitado)- eles vêm aí! Estra (perdido)- quem? Vladi (agitado)- não sei. Estra (agitado)- quantos? Vladi (agitado)- não sei. Estra (esperançoso)- é deus, enfim é deus, estamos salvos, vamos encontrá-lo!

Sub-unidade 2

Eles tentam escutar algo. Vladi (sussurra)- você deve ter se enganado. Estra (sussurra)- o quê?

Sub-unidade 3

Vladi (gritando) - você deve ter se enganado! Estra (gritando)- não precisa gritar! Vladi (irônico)- seu macaco cerimonioso. Estra (irado)- seu porco formalista. Vladi (irado)- termine sua frase! Estra (irado)- termine a sua! Vladi (improvisa)- miserável. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

171


Sub-unidade 4

Estra (entusiasmado)- boa ideia, vamos nos insultar! Vladi tira das meias um dicionário e procura uma palavra. Vladi (entrando no jogo) - mentecapto. Estra tira das meias um dicionário e procura o significado da palavra. Lê o seu significado e reage de acordo com a sua denotação e por vezes em função da sua conotação, depois procura outra palavra. Estra- verme. Vladi examina o significado no seu dicionário, reage e finalmente procura outra palavra. Vladi- aborto. Estra examina o significado no seu dicionário, reage e finalmente procura outra palavra. Estra- pároco. Vladi examina o significado no seu dicionário, reage e finalmente procura outra palavra. Vladi- cretino. Estra examina o significado no seu dicionário, reage e finalmente procura outra palavra. Estra- crítico. Vladi examina o significado no seu dicionário e percebe que perdeu o jogo. Vladi- óóóó. Deixam de jogar e ficam sem nada a fazer. Pozzo caído entre os dois observa-os atentamente.

Unidade 3 – você acha que deus está nos vendo agora Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

172


Sub-unidade 1

Estra (desanimado)- o que é que a gente faz agora? Vladi (desanimado)- a gente espera. Estra (desanimado)- a gente espera. Sub-unidade 2

Estra (vazio)- você acha que Deus está nos vendo agora? Vladi (vazio)- você tem que fechar os olhos!

Cena 7

Unidade 1– que tal se a gente se levantasse

Sub-unidade 1

O som de ondas quebrando nas rochas desaparece, e é substituído pelo som do vento uivante do outono, com ruídos de folhas secas estalando. O som do tic-tac do relógio permanece ao fundo. Vladi e estra abandonam suas tigelas, ajoelham-se e com os olhos fechados miram o infinito dos céus. O registro interpretativo dos atores gradativamente transforma-se numa linguagem exageradamente clownesca. Diferentemente da primeira interferência do registro clownesco, que teve o peso soft dum humor alegre, agora o tom assume algo de burlesco, de grotesco, onde o sarcasmo marca sua presença total na cena. Estra (fechando os olhos) - deus tende piedade de mim. Vladi (fechando os olhos) - de mim. Estra (exageradamente)- de mim, de mim, piedade de mim! Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

173


Sub-unidade 2

Pozzo (sofredor)- socorro. Estra (abrindo os olhos) - é Deus. Vladi (esperançoso)- estávamos começando a fraquejar, agora temos a tarde garantida. Pozzo (sofredor)- socorro. Estra (indiferente)- ele está pedindo socorro. Vladi (esperançoso)- não estamos mais sozinhos, esperando a noite, esperando Deus, esperando a espera, nós lutamos sozinhos durante toda a tarde, mas isso terminou, o amanhã já chegou.

Sub-unidade 3

Pozzo (sofredor)- socorro. Estra (decidido)- manda ele calar a boca. Dá um pontapé nos tomates dele! Vladi (para pozzo com decisão) - quer parar com isso seu cretino!

Sub-unidade 4

Vladi e estra observam por alguns instantes pozzo e lucky que se encontram caídos entre eles. Estra (interessado)- ele conseguiu se levantar? Vladi (afirmativamente)- não! Estra (na dúvida) - você disse que ele caiu? Vladi (esclarece)- estava de joelhos.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

174


Sub-unidade 5

Estra (decidido)- que tal se a gente se levantasse? Vladi (decidido)- vamos tentar. Estra (decidido)- brincadeira de criança. Vladi (decidido)- simples questão de força de vontade. Enquanto Pozzo conversa com vladi e estra, Lucky espalha folhas secas pelo espaço, ao mesmo tempo que distribui balões azuis pela plateia. Pozzo (sofredor)- socorro.

Unidade 2 – vamos embora

Sub-unidade 1

Estra (vazio)- e agora? Vamos embora? Vladi (vazio)- não podemos. Estra (vazio)-. Por quê? Vladi (vazio)- estamos esperando Deus! Estra (vazio)- ah é...

Sub-unidade 2

Estra (vazio)- o que vamos fazer agora? Ficam sem nada a fazer.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

175


Unidade 3 – o que foi que aconteceu

Sub-unidade 1

Pozzo (sofredor)- socorro Vladi (decidido)- que tal se a gente o socorresse? Sub-unidade 2

Vladi (amigavelmente)- senhor pozzo não vamos machucá-lo. (a estra) acho que ele está morrendo. Pozzo (coitadinho)- quem são vocês? São amigos? Vladi (esclarece)- somos homens.

Sub-unidade 3

Estra (perdido)- o que é que ele quer? Quer saber se somos amigos? Vladi (esclarece)- não, ele diz amigos dele. Pozzo (coitadinho)- que foi que aconteceu vladi (irônico)- você ouviu o que ele disse? Ele quer saber o que aconteceu. Pozzo (coitadinho)- o que aconteceu exatamente? Vladi (irônico)- vocês dois tropeçaram e caíram! Pozzo (fingindo medo) - vocês são assaltantes? Estra (estupidamente)- assaltantes? Nós temos cara de assaltantes?

Sub-unidade 4 Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

176


Vladi (indignado)- para com isso não vê que ele é cego! Estra (na dúvida) - é mesmo. Ele é cego? Pelo menos é o que parece. Pozzo (coitadinho)- não me abandonem. Vladi (irônico)- não tem perigo. Estra (irônico)- por enquanto.

Unidade 4 – já é de noite

Sub-unidade 1

Pozzo (voltando à sua normalidade) - que horas são? Vladi (esclarece)- sete...oito horas. Estra (contrariando)- depende da época do ano. Pozzo (firme)- já é noite? Estra (não responde) - parece que o sol está nascendo. Vladi (com certeza) - é impossível. Estra (provocando)- talvez seja de madrugada. Vladi (determinado)- não seja ridículo. Estra (provocando)- como é que você sabe?

Sub-unidade 2

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

177


Pozzo (firme)- já é de noite? Vladi (dono da verdade) - o sol nem se mexeu. Estra (provocando)- te digo que está nascendo. Pozzo (começa a irritar-se) - por que vocês não respondem? Estra (irônico)- porque não queremos dar uma informação falsa. Sub-unidade 3

Vladi (tomando conta da situação) - é o entardecer cavalheiro. O sol está se pondo. Meu amigo aqui desejou pôr-me em dúvida e deve confessar que por um instante conseguiu, mas não foi a troco de nada que eu atravessei este longo dia, e posso garantir-lhe que o dia está chegando ao fim de seu repertório. Como está se sentindo agora, o senhor ontem parecia possuir uma vista magnífica se me lembro corretamente? Durante a fala de Vladi, estragon dormita. Pozzo (não dando importância) - magnífica, uma vista magnífica. Vladi (preocupado)- e foi de repente? Pozzo (melancolicamente teatral) - um belo dia acordei cego como o destino, de vez em quando ainda penso que estou dormindo. Enquanto Pozzo e Vladi conversam, Lucky e Estra dormitam. Vladi (curioso)- e quando foi isso? Pozzo (indiferente)- não sei. Vladi (não entendendo) - mas ainda ontem...

Sub-unidade 4

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

178


Pozzo (firme)- não me pergunte, os cegos não têm noção do tempo, as questões do tempo também são desconhecidas deles. Vladi (colocando-se em dúvida) - ora veja só, eu podia jurar que era ao contrário.

Unidade 5 – é claro que eu sou o pozzo

Sub-unidade 1 Pozzo (firme)- onde é que estamos? Vladi (a leste) - não sei. Pozzo (firme)- não será um lugar chamado buraca? Vladi (indiferente)- não conheço. Pozzo (firme): Como é o lugar? Vladi (observa o espaço) - é indescritível. É como o nada. Não há nada. Só uma árvore. Pozzo (firme)-então não é a buraca!

Sub-unidade 2

Pozzo (desconversa)- onde está o meu criado? Vladi (indiferente)- por aí. Pozzo (desconversa)- por que é que ele não responde quando eu chamo? Vladi (sem pensar) - não sei(curioso)o senhor é o pozzo? Pozzo (irritado)- é claro que eu sou o pozzo! Vladi (curioso)- os mesmos de ontem?

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

179


Sub-unidade 3

Pozzo (desconversa)- de ontem? Vladi (esclarece)- nós nos encontramos ontem, não se lembra? Pozzo (irritado)- não me lembro de ter encontrado ninguém ontem. Mas amanhã não vou lembrar de ter encontrado ninguém hoje, não conte comigo para esclarecê-lo. Vladi (insiste)- mas...

Sub-unidade 4

Pozzo (firme)- chega. Vladi (esclarecendo)- o senhor estava levando-o à feira da ladra para vendê-lo. O senhor nos contou sobre o crepúsculo, ele dançou, pensou, o senhor via claramente. Pozzo (firme)- como quiser, mas deixe-me em paz.

Unidade 6 – o que é que ele tem na valise

Sub-unidade 1

Vladi (curioso)- aonde vai agora? Pozzo (sem dar importância) - não me preocupo com isso. Vladi (curioso)- o que é que ele tem na valise? Pozzo (sem dar importância) - areia (bruto) de pé porco. Vladi (decidido)- espera um pouco.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

180


Pozzo (firme)- estou de partida (bruto) de pé porco. Vladi (curioso)- o que é que vocês fazem quando caem longe de socorro? Pozzo (sem dar importância) - esperamos até que possamos nos levantar, e aí partimos.

Sub-unidade 2

Vladi (amigavelmente)- antes de partir manda ele cantar. Pozzo (fingindo não entender) - quem? Vladi (afirmativo)- o lucky. Pozzo (fingindo não entender) - cantar? Vladi (amigavelmente)- ou pensar, ou recitar. Pozzo (decidido)- mas ele é mudo. Vladi (incrédulo)- mudo? Pozzo (concluindo)- lógico, ele não pode nem gemer. Vladi (incrédulo)- mudo, desde quando?

Sub-unidade 3

Pozzo (irritado)- você não se cansa de me atormentar com suas histórias sobre o tempo? É abominável. Quando, quando? Um dia. Isso não lhe basta? Um dia como qualquer outro. Um dia ele ficou mudo. Um dia eu fiquei cego. Um dia vamos todos ficar surdos. Um dia nascemos. Um dia morreremos. O mesmo dia. O mesmo segundo. Será que isto não lhe basta?

Cena 8

Unidade 1 – vem tempestade por aí Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

181


Sub-unidade 1

Pozzo sai de cena levando Lucky a reboque. Vladi acorda estra. Ele desperta agitado. O som de tempestade invade o espaço. Trovões raios e relâmpagos fazem um barulho ensurdecedor. O tic-tac mantém-se. Pozzo prepara-se para dormir. Vladi começa a bater claras em neve. No processo o registro clownesco deixa de existir dando lugar ao peso do hiper naturalismo que volta com o peso da primeira parte da representação. Estra desperta sonolento e acompanha vladi. Cessam de bater, primeiro vladi, logo a seguir estra. Miram cada qual alguém da plateia.

Unidade 2 – será que vai chover

Sub-unidade 1

Vladi (otimista)- que dia maravilhoso, você não acha? Estra (pessimista)- parece que vai chover. Vladi (insiste)- você não acha que está um dia maravilhoso? Estra (contrariado)- parece que vai chover. Vladi (categórico)- você não diria isso se soubesse que seu vaso sanitário está com vazamento. Estra (down)- já estou sentindo alguns pingos de chuva. Vladi (farejando o ar) - não está sentindo o cheiro? Estra (a leste) - cheiro, que cheiro? Vladi (down)- ultimamente o vento tem soprado a noroeste a muito que não tenho o prazer do olfato.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

182


Estra (down)- se o dia continuar assim, terei muito o que fazer amanhã. Vladi (fora do tempo) - você acha que vai chover? Estra (down)- depois da chuva já terei tido tempo, poderei fazer muitas coisas ainda hoje.

Unidade 3 – vamos esperar

Sub-unidade 1

Batem claras de ovos, primeiro estra, logo a seguir vladi. Cessam de bater, primeiro vladi, logo a seguir estra. Miram cada qual alguém da plateia.

Sub-unidade 2

Vladi (vazio)- o que vamos fazer agora? Estra (vazio)- vamos esperar. Vladi (vazio)- esperar? Estra (vazio)- é. Vladi (vazio)- quem? Estra (vazio)- deus. Vladi (vazio)- ah é

Unidade 4 – amanhã quem sabe

Sub-unidade 1

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

183


Batem claras de ovos, primeiro vladi, logo a seguir estra. Cessam de bater, primeiro estra, logo a seguir vladi. Miram cada qual alguém da plateia. Estra (down)- os pingos da chuva continuam a cair, acho que o vento começa a mudar de direção, começo a sentir a carniça invadir minhas entranhas. Vladi (down)- é o cheiro da chuva na terra seca, escavando seus segredos. Estra (down)- o dia começa a escurecer. Amanhã quem sabe a chuva já terá parado, hoje me resta dormir. Vladi (down)- dormir?

Cena 9

Unidade 1 – sonolência

Sub-unidade 1

Estra (down)- por que você nunca me deixa dormir? Vladi (down)- eu me sentia sozinho.

Sub-unidade 2

Estra (otimista)- eu sonhei que era feliz. Vladi (indiferente)- isso passa o tempo. Estra (feliz)- eu sonhei que...

Sub-unidade 3

Vladi (de súbito) - não me diga, será que ele é cego mesmo? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

184


Estra (perdido)- quem? Vladi (explica)- o pozzo! Estra (surpreso)- ele é cego? Vladi (deduzindo)- um cego de verdade diria que não tem noção de tempo? Estra (não entendendo) - e daí? Vladi (explicativo)- ele me deu a impressão de que estava vendo a gente. Estra (desconversando)- você sonhou tudo isso. Vamos embora. Ah não podemos!

Sub-unidade 4

Estra (depois de refletir) - tem certeza de que não era ele? Vladi (perdido)- quem? Estra (esclarece)- deus. Vladi (mais perdido ainda) - quem? Estra (esclarece)- o pozzo. Vladi (convicto)- claro que não! Pausa, ficam no vazio sem nada a fazer. Estragon está sonolento. Sua cabeça descai.

Sub-unidade 5

Estra (entre o sono e o acordar) - acho que vou me levantar. Tempo. Estragon adormece.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

185


Cena 10

Unidade 1 – não sei mais o que pensar

Sub-unidade 1

Lucky prepara a cama de pozzo. Vladi (filosofa com seriedade) - não sei mais o que pensar... Eu estava dormindo enquanto os outros sofriam? Estarei dormindo agora? Amanhã quando eu estiver pensando que acordei, que direi do dia de hoje? Que junto com estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite eu esperei deus? Que posso passou com seu escravo e falou conosco? (apático) mas o que haverá de verdade em tudo isso? Ele não saberá de nada. Ele falará dos golpes que recebeu. Com um pé na cova e um nascimento difícil, o coveiro aplica seu fórceps. Temos tempo de envelhecer. O ar está cheio de nossos gritos, mas o hábito é uma grande surdina. Também para mim alguém está olhando e dizendo ele está dormindo, ele não sabe nada, deixa ele dormir... Não posso mais continuar...

Sub-unidade 2

Vladi (como que acordando de sonho) - o que foi que eu disse?

Cena 11

Unidade 1 – e se a gente desistisse

Sub-unidade 1

Estra (começa a despertar) - que é que você tem? Vladi (vazio)- nada.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

186


Estra (decidido)- eu vou embora. Vladi (vazio)- eu também. Tempo. Eles não se movem. Permanecem mirando o vazio dos olhos alheios.

Sub-unidade 2

Estra (apático)- eu dormi muito tempo? Vladi (apático)- não sei. Estra (apático)- onde é que nós vamos? Vladi (apático)- por aí. Estra (apático)- vamos para bem longe daqui vladi (apático)- não podemos. Estra (apático)- por quê? Vladi (apático)- temos que voltar amanhã. Estra (apático)- para quê? Vladi (apático)- para esperar Deus! Estra (apático)- ele não veio hoje? Vladi (apático)- não. Estra (apático)- e se a gente desistisse? Vladi (apático)- ele nos puniria

Unidade 2 – amanhã a gente se enforca se deus não vier

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

187


Sub-unidade 1

Vladi observa a paisagem à sua volta, centraliza sua atenção nas árvores que preenchem o espaço. Vladi (melancólico)- está tudo morto menos a árvore. Estarmelancólico- mas que árvore? Vladi (melancólico)- não sei... Um chorão.

Sub-unidade 2

Estra (decidido)- por que a gente não se enforca vladi (incrédulo)- com que? Estra (sem muita certeza) - você não tem um pedaço de corda? Vladi (melancólico)- não. Estra (melancólico)- então não podemos.

Sub-unidade 3

Vladi (decidido)- vamos embora. Estra (decidido)- você disse que a gente vai voltar amanhã? Vladi (decidido)- disse? Estra (decidido)- então a gente traz um bom pedaço de corda! Vladi (decidido)- amanhã a gente se enforca se deus não vier! Estra (decidido)- e se ele vier? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

188


Vladi (decidido)- aí seremos salvos!

Unidade 3 – então vamos

Sub-unidade 1

Estra (decidido)- então vamos! Vladi (decidido)- então vamos! Estra (decidido)- vamos! Vladi (decidido)- vamos.

Sub-unidade 2

Eles não saem dos seus lugares. Voltam a bater claras de ovos.

Cena 12

unidade 1 – o inverno chegou

Sub-unidade 1

Cessa o barulho da tempestade. O barulho ensurdecedor de um despertador invade a cena. Pozzo senta-se em sua caixa de cerveja e prepara-se para dormir com seu gansinho de pelúcia. Vladimir e estragon estão sonolentos e acabam despencando suas cabeças dentro das tigelas com ovos. O uivo gelado do inverno invade a cena. Lucky espalha pelo espaço flocos de neve, enquanto canta uma canção de ninar.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

189


Unidade 2 – pega esse menino que tem medo de careta

Sub-unidade 1

Lucky (cantando melancolicamente) - boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino, que tem medo de careta, boi, boi, boi.... Unidade 3 – noite de lua cheia

Sub-unidade 1

Silêncio. Lucky fica de quatro e começa a uivar como um cão contemplando a lua cheia. Black’ out.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

190


The end

BADEN-BADEN: O ACORDO A QUALQUER HORA EM QUALQUER LUGAR

Personagens

O Dr. Smith o palhaço

Duração 15 a 20 minutos (rua e espaços abertos) 08 a 12 minutos (bares, cafés, pubs) Espaço cênico qualquer espaço Tema manipulação de ideias e apatia social Linguagem expressionista/clownesca Dois operários carregam de um lado ao outro da cena, dois grandes latões de lixo com pichações de ordem. Os operários carregam os latões da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, de maneira que quando voltam ao seu ponto de partida sempre haverá um latão a ser carregado, tornando assim, o trabalho infindável. 1. Operário 1: quantas falta? 2. Operário 2: acho que só falta mais uma! 3. Operário 1: ai que bom! 4. Os operários carregam os latões. 5. Operário 1: eta vidinha miserável! 6. Os operários voltam descansando. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

191


7. Operário 2: que que eu estou fazendo aqui meu deus? 8. Os operários fazem o mesmo jogo até que se forme uma roda para que o Trabalho possa continuar. 9. ator 1: senhoras e senhores, vamos apresentar pra vocês um trabalho de teatro chamado Baden Baden: o acordo, o trabalho é uma adaptação da obra de um dramaturgo alemão chamado Bertolt Brecht, o trabalho tem a duração de 15 minutos e o grupo convida a todos à alguns momentos de atenção e reflexão. 10. o repicar de um Tarol invade a cena. 11. palhaço: vivemos em tempo de cólera o homem não ajuda o homem Nos omitimos acusamos nos indignamos, mas sempre, sempre e para o sempre amém nos calamos, mas até quando havemos de calar a dor adormecida que nos mata acordai ó ser humano que os dias que virão serão de trevas e desconserto 11. repicar do Tarol. 12. palhaço: tudo bem dr. Smith? 13. Dr. Smith: Sim! 14. palhaço: está se sentindo bem dr. Smith? 15. Dr. Smith: estou! 16. palhaço: melhorou dr. Smith 17. Dr. Smith: eu melhorei, mas a minha perna está doendo muito! 18. palhaço: a sua perna está doendo dr. Smith? 19. Dr. Smith: está! 20. palhaço: então vamos cortá-la! 21. Dr. Smith: cortar a minha perna? 22. palhaço: claro, assim o sr. Se sentirá melhor!

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

192


23. Dr. Smith: mas você tem certeza? 24. palhaço: claro dr. Smith! 25. Dr. Smith: se você acha que vai fazer bem para mim 26. então vamos cortá-la! 27. palhaço: então vamos cortá-la! 28. Dr. Smith: então vamos cortá-la! 29. no repicar do Tarol a perna do dr. Smith é cortada. 30. palhaço: tudo bem dr. Smith? 31. Dr. Smith: Sim! 32. palhaço: está se sentindo bem dr. Smith? 33. Dr. Smith: estou! 34. palhaço: melhorou dr. Smith? 35. Dr. Smith: eu melhorei, mas o meu braço está doendo muito! 36. palhaço: o seu braço está doendo dr. Smith? 37. Dr. Smith: está! 38. palhaço: então vamos cortá-lo! 39. Dr. Smith: cortar o meu braço? 40. palhaço: claro, assim o sr. Se sentirá melhor! 41. Dr. Smith: mas você tem certeza? 42. palhaço: claro dr. Smith! 43. Dr. Smith: se você acha que vai fazer para mim então vamos cortá-lo. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

193


44. palhaço: então vamos cortá-lo! 45. Dr. Smith: então vamos cortá-lo! 46. no repicar do Tarol o braço do dr. Smith é cortado. 47. palhaço: tudo bem dr. Smith? 48. Dr. Smith: Sim! 49. palhaço: está se sentindo bem dr. Smith? 50. Dr. Smith: estou! 51. palhaço: melhorou dr. Smith? 52. Dr. Smith: eu melhorei, mas o meu cérebro, o seu cérebro, o seu cérebro, o seu cérebro, o meu cérebro está doendo muito! 53. palhaço: o seu cérebro está doendo dr. Smith? 54. Dr. Smith: está! 55. palhaço: então vamos cortá-lo! 56. Dr. Smith: cortar o meu cérebro? 57. palhaço: claro, assim o sr. Se sentirá melhor! 58. Dr. Smith: mas você tem certeza? 59. palhaço: claro dr. Smith! 60. Dr. Smith: mas você tem certeza? 61. palhaço: absoluta dr. Smith! 62. Dr. Smith: se você acha que vai fazer bem para mim então vamos cortá-lo! 63. palhaço: então vamos cortá-lo!

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

194


64. Dr. Smith: então vamos cortá-lo! 65. no repicar do Tarol o cérebro do dr. Smith é cortado. 66. palhaço: tudo bem dr. Smith? 67. Dr. Smith: dammmmm! 68. palhaço: como está, melhor agora? 69. Dr. Smith: dammmmm 70. palhaço: está se sentindo bem dr. Smith? 71. Dr. Smith: dammmmm! 72. palhaço: como está, melhor agora? 73. Dr. Smith: dammmmm! 74. palhaço: melhorou dr. Smith? 75. Dr. Smith: dammmmm 76. .palhaço: como está, melhor agora? 77. Dr. Smith: dammmmm! 78. ator 1: algumas pessoas nos dizem que o importante é estar de acordo e quando algumas pessoas nos dizem que o importante é estar de acordo nós temos que questionar se realmente na vida da gente o mais importante é estar de acordo 79. ator 2: cortaram nossas pernas cortaram nossos braços podem cortar a nossa cabeça só não deixem cortar a nossa liberdade de agir e pensar 80. senhoras e senhores, este é o trabalho tem como proposta levar o teatro aos lugares mais inusitados possíveis, o grupo tem se apresentado em bares, restaurantes, pubs e em todos os lugares possíveis, e a proposta do grupo não é chegar nesses lugares somente com o riso ou com o choro, mas chegar com alguns questionamentos que fazem parte do nosso dia-a-dia, como o caso apresentado, será que nossos pensamentos e nossas atitudes são

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

195


81. Todas nossas, se não são deveriam voltar à ser porque são muito importantes e para terminar trabalho, enquanto eu passo o chapéu, que o grupo nesta turnê vem se mantendo com a ajuda das pessoas que se agradaram do nosso trabalho e que acham importante que este tipo de trabalho continue, vocês ouvem um último poema que é de uma poetisa catarinense que diz exatamente assim… 82. ator 1: este poema eu ofereço as pessoas que acreditam num mundo melhor, mas ofereço principalmente para pessoas que vivem reclamando da vida e dificilmente saem de suas cadeiras para mudar a trajetória das suas próprias vidas... Que é mais ou menos assim: 83. será que morreremos sem nunca termos tido sem nunca termos sido será que nós só queremos querer nos calaremos até quando hein ah, mais alguém há de dar o 1º passo mudar o compasso ir ao além ah, mais ai desse alguém será calado no ato será morto no laço e nós hein? E nós, hein? Nós nos calaremos no ato 84. mas até quando, está na hora de mudança e esta mudança só depende da gente

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

196


The end

O

BORDEL

Espaço arquitetônico Grande, de preferência que não esteja catalogado dentro da "convencionalidade" do espaço teatral ortodoxo. Servem-nos velhos armazéns, conventos palacianos, quadras desportivas, fábricas abandonadas; ou seja, qualquer espaço onde a estrutura espacial concebida para a representação de o bordel possa encaixar-se, inclusive um grande espaço cênico à italiana, desde que aberto as prováveis mudanças estruturais necessárias, na arquitetura do espaço original. Espaço cênico Espaço cênico de o bordel é constituído por 04 estruturas que margeiam e delimitam o espaço de representação. Essas estruturas são construídas a partir de tubos de ferro. A dimensão de cada estrutura é de: 10 mts comprimento, 06 m de altura. Sendo que todas as 04 estruturas têm uma passarela de 02 mts de largura, que estão localizadas a 03 m de altura e são acessadas por escadas laterais. Além de dar suporte à representação, as estruturas permitem resolver dificuldades surgidas na utilização dos meios técnicos necessários para a realização da encenação. Cenografia A cenografia básica da representação de o bordel, será constituída exclusivamente por objetos de cena, que além do seu valor e utilização intrínsecos, terão funções de alicerçar a leitura simbólica da representação no contexto dramatúrgico da encenação. Permitindo a construção de vários cenários no decorrer da representação. Figurino

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

197


Todos os personagens utilizarão um figurino básico, composto por bota da tropa e ceroulas brancas. Em cada quadro, a utilização de determinado adereço, definirá as diferenças entre os personagens. Serão os adereços que marcarão as diferentes caracterizações de cada ator. A iluminação A iluminação da representação será sustentada pela estrutura do espaço cênico. A sonoplastia A sonoplastia será a base da musicalidade da representação. É a partir dela que a representação se sustenta. Tanto a musicalidade sonora como a musicalidade corporal-visual da encenação. Ela ditará os espaços-tempo e a movimentação dos estímulos sensoriais da fábula. A interpretação A interpretação percorrerá dois caminhos. Um será construído a partir de uma linguagem burlesca, exagerada, sem, no entanto, cair no caricato da anedota. O outro, percorrerá o caminho do hiper naturalismo levado ao seu extremo. Personagens Revoltosos mulher violentada bispo juiz ladra égua general manifestantes velho dos piolhos rapariga 1 Chantal Roger revoltoso cães rainha bispo drogados mendigo Carmen Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

198


escravo chefe de policia papa presidente da república cardeal Solano 03 pastorinhos (multidão) nsrª de qualquer coisa

Quadro I

A insurreição

2.o público aguarda em seus lugares o início do espetáculo. Ao fundo ouve-se o som de música festiva da idade média. 3.as luzes apagam-se. Um contra luz, vindo do fundo, cega a plateia. Ao mesmo tempo que sons pesados de um conflito militar invade a cena. Oito figuras levantam- se da plateia e caminham para o centro do espaço cênico. As figuras fazem uma barreira humana entre a contra luz e a plateia. As figuras começam a despirem-se. Ficam totalmente nus. Seus corpos mostram-nos somente suas silhuetas. 4.progressivamente a contra luz desaparece dando lugar a oito focos em pino que iluminam claramente as figuras. As figuras agora totalmente desnudas, agarram suas roupas que estão a seus pés e envergonhadas desaparecem de cena.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

199


5.Em cena apenas resta um personagem, veste se com pedaços de pano que estão aos seus pés. Dois focos paralelos às paredes laterais rasgam o espaço, formando dois caminhos de luz. Em cada caminho dois atores representam a insurreição da revolução. São os primeiros passos para a derradeira explosão popular. No foco da direita, à frente da cena, um homem vestindo ceroulas, botas da tropa e um capacete que na realidade é uma velha panela, prepara seu equipamento de trabalho. Sua função é dinamitar alvos precisos. Seu corpo está coberto de bananas de dinamite. Carrega a tiracolo um detonador e um rolo de fios. Trabalha meticulosamente e com muito cuidado. Ao fundo da cena, no mesmo foco, um Tocador de tambor prepara seus passos. Veste Ele também ceroulas, botas da tropa e uma Panela velha como capacete. Do lado Esquerdo da cena, ao fundo, um soldado Revoltoso prepara-se para avançar no terreno, carrega consigo todo o tipo de armas mortíferas. Sua função é proteger todas as etapas do movimento da revolta, garantindo com sua vida, a integridade física de todos os revoltosos. A frente do soldado, mais ao centro do foco, um homem observa os Horizonte, carrega consigo vários Instrumentos de observação. Tem todo o Aparato necessário para vigiar minuciosamente o inimigo. 6.Mais à frente da Cena, outro homem, é o carregador, Responsável por organizar e transportar as Necessidades que exige a revolução. Sua atenção e seu cuidado são exageradamente excessivos. 7.Dois outros focos rasgam o espaço paralelo ao chão, por detrás do ator do centro que Confessa seus pecados. Nesse foco uma mulher do povo está totalmente desorientada, Caminha insistentemente da direita para a Esquerda e vice-versa. Carrega consigo instrumentos e todo o tipo de elementos necessários para uma orientação correta. 8.Todos esses personagens usam ceroulas brancas, botas da tropa e panelas como capacetes, com exceção da mulher do povo que não usa capacete. 9.Enquanto o ator do centro reza sua Catártica oração, os outros seis atores, Representam progressivamente, o desfecho Fatal. A mulher quase desnuda foge de um Perseguidor invisível. Um homem nu vestindo apenas uma mitra surge em cena perseguindo desesperadamente a mulher. Pode-se notar no corpo da mulher grandes manchas de sangue que vazam dentre suas pernas. O homem consegue agarrá-la e tenta violentamente violá-la. Ela luta com todas as suas forças. 10. mulher- senhor perdoai esta alma Que nas imensidões das distâncias Que separam os corpos translúcidos Das cadeias de montanhas longínquas Na extremidade do universo paralelo Dos nossos desejos infernais Que nos atormentam diariamente Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

200


Fazendo com que nossas cansadas Vistas cansadas Obscureçam-se na monotonia das tempestades Cerebrais Que marcam nossos corpos Transfigurados com as imensidade Esperanças traçadas nas almas desses seres Tão leves E insustentavelmente incoerentes Das terras onde os gritos desesperados Das banalidades bestiais que perfuram nossos Pés molhados na manhã nebulosa Que marcam nossos dias futuros Como a carne putrificada da criança Que suga o peito caído e fétido De outra carne sem vida Sem sina Sem maneiras coerentes De visualizar as imagens Metaforicamente esquecidas Nas puras pretensões pessoais E inacessíveis à outra face desconhecida Mergulhada no âmago das entranhas Do sofrimento dos desprazeres Inconsequentes Dos momentos efêmeros Passados num tempo extremamente confuso Onde a vontade do ser Totalmente puro e liberto Dos tormentos que nos obrigam A assumir perante os outros Também cruéis seres Ferozmente defensivos no seu medo do Exterior Que domina sua alma gélida Que vaga entre tantas incertezas Na esperança de que seu corpo Matéria orgânica sem vida Transcenda além das entrelinhas Que dividem o lado obscuro Desconhecimento que cerram nossos olhos Fazendo com que a mais pura manifestação Da verdade escondida Em nossos corações de pedra calcário Que constrói diques intransponíveis E que desaguam na mais pura abstração Como o uivo lunático dos lobos Que nas noites cheias de lua espelhada Cheiram no ar úmido da madrugada Os odores liberados dos poros secos e Castrados Que desfiguram o que de bom temos todos Sem nos permitir Qualquer deslize insignificante Perante o que realmente importa Sem ao menos termos a chance prematura De nos posicionarmos como os fetos Que protegidos no ventre materno Esticam suas frágeis pernas Lembrando-nos que o próximo Passo da nossa infinita eternidade Marcará sua presença Nos chamando à razão Para essa tão besta inexistência Caótica e disforme Dos nossos corpos que vagam Incansavelmente por caminhos Totalmente transformados em pedras Pontiagudas que rasgam nossa pele E perfuram nossas almas Ventiladas com os prazeres sofredores que nos limitam a visão reta desse caminho infindável do ser, ela consegue fugir do homem. Um outro foco Rasga o espaço na diagonal, iluminando uma imagem do grande holocausto. O homem foge em direção às imagens.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

201


11.

esse foco move-se, parando sempre numa Nova imagem do grande holocausto. O foco

aumenta e percebe-se agora que as imagens do grande holocausto formam uma grande cruz. O foco aumenta ainda mais. Vê-se que a cruz faz parte da vestimenta de um grande bispo Estilizado. Seu corpo é muito grande e sua cabeça demasiada pequena para o seu tamanho. Nota-se que essa figura nada mais é do que o homem nu com a mitra na cabeça sob um gigantesco figurino bispal. 12.

Enquanto isso as cenas paralelas dos Revoltosos, seguem o curso normal da revolução. Os

planos traçados, agora são Executados meticulosamente. Todos os Revoltosos realizam suas funções com o objetivo de distrair e iludir as forças da Ordem estabelecidas. Apesar de estarem momentaneamente na surdina, avançam vitoriosamente. 13.

Um outro pequeno foco ilumina somente o rosto do bispo. Nesse momento ouve - se uma

grande explosão provocada pelo detonador. Todas as cenas paralelas e as luzes que cortam o espaço desaparecem por completo, restando apenas as luzes do bispo e a do personagem que confessa. 14.o bispo ouve-a com grande entusiasmo e devota alegria. Sua áurea é calma e serena, fala com tranquilidade. 15. bispo- na verdade o que deve definir o Verdadeiro prelado Não é tanto a doçura e a unção Mas a mais rigorosa inteligência Coração perde-nos Julgamos ser senhores da nossa bondade E acabamos escravos duma serena indolência Mas não é bem de inteligência que se trata É de outra coisa Talvez de crueldade E para lá desta crueldade E através dela Uma caminhada Hábil e vigorosa na direção da ausência Na direção da morte Deus talvez E tu mitra em forma de barrete de bispo Fica a saber Que quando os meus olhos se fecharem pela Última vez Serás tu Meu belo chapéu dourado A última coisa que ficarei por detrás das Pálpebras E tu meu caro espelho Responde ao que eu te pergunto É para descobrir o mal e a inocência que venho A esta casa Mas quem sou eu refletido em ti Para chegar a bispo precisei lutar para não o Ser e de fazer aquilo que me levasse a sê-lo Uma vez bispo Foi preciso que não deixasse de me considerar Como tal para poder exercer as minhas Funções Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

202


Oh rendas Trabalhadas por milhares de mãozinhas ternas Para cobrirem tantas gargantas em fogo Gargalos rostos e cabelos Uma função é uma função Não é um modo de ser Ser bispo é um modo de ser É um cargo Um fardo Que se lixe a função A majestade A dignidade que dão brilho à minha pessoa Não provém das atribuições da minha função Nem mesmo dos méritos pessoais A majestade e a dignidade que me iluminam Vêm de um esplendor mais misterioso Do fato do bispo me preceder Ouviste espelho Imagem dourada Enfeitada como uma caixa de charutos cubanos Quero ser bispo na solidão Pela simples aparência E para destruir qualquer função Trago comigo o escândalo para te arregaçar Minha puta putona pauteia peidorreira E com estes paramentos e rendas Regresso a mim próprio Reconquisto um domínio Investi contra uma praça forte e antiga Donde me expulsaram Instalo-me agora numa clareira Onde o suicídio é finalmente possível Julgamento depende de mim E eis-me frente a frente com a minha morte Paramentos mitras rendas E tu capa dourada Acima de tudo tu Que me escondes do mundo Onde estão as minhas pernas E os meus braços Tu minha capa rígida Que permites a elaboração no calor e na Obscuridade Da mais terna Da mais luminosa doçura A minha caridade que inunda o mundo Destilei-a sob esta carcaça Que às vezes surgia como uma faca na minha Mão para abençoar cortar guilhotinar Como a cabeça de uma tartaruga afastava a Fímbria E depois regressa ao rochedo Oculta minha mão sonhava Oh capas paramentos mitra. 16. Sons de metralhadoras, bombas e lamentos invadem o espaço. 17. O bispo assusta- se. As luzes apagam- se.

Quadro II

A tomada da cidade Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

203


18.05 focos laterais, saídos da diagonal, do Chão para o teto, invadem a cena, formando Caminhos, que rasgam o espaço, ligando as Extremidades da cena. O espaço então é invadido por revoltosos que atravessam a Cena, pelo ar, da direita para a esquerda e vice-versa. Estão de arma em punho e fazem muito alarido quando passam. 19. invadem a cidade, pelos seus telhados vermelhos. Andam sobre eles sorrateiramente. Avançam em direção aos bairros do norte. Por onde passam bombardeiam a população passiva. Faz-se noite. As noites são perigosas. O fogo ilumina o silêncio da metrópole. 20. Enquanto a revolução queima a cidade, espalhando cadáveres por todos os lados; no Palácio da justiça, a espada da lei estabelecida, afia suas lâminas. Pode-se ouvir ao fundo o sussurrar da glândula morena. 21. um foco saindo do chão em direção ao teto, corta o espaço na diagonal. No teto um homem Nu, pendurado de cabeça para baixo, com sangue escorrendo pelo seu corpo, parece desmaiado. Os alaridos paralelos dos Revoltosos continuam enquanto a cena do julgamento desenrola-se, ficando, no entanto, em “off”. 22. Surgindo do nada, invadindo o foco do Homem, uma bela mulher com roupas de rendas Coladas negras com um chicote a tiracolo e Usando saltos altos, invade a cena ela circunda o homem, interrogando-o com Soberba e maestria. Nota-se da parte do Homem, do fundo da sua alma, um prazer sarcástico qualquer. Uma cena sadomasoquista. 23. mais à frente no espaço, um outro foco em pino, ilumina o carrasco. Ele caminha circularmente, ao redor do juiz e da ladra. Seu caminhar é traçado por focos em pino que se acendem e apagam-se à medida que ele se movimenta. Ele caminha de “quatro” e, enquanto caminha, chicoteia-se. Toda a vez que se chicoteia, o juiz solta um grito de profunda dor. A ladra goza. 24. Durante esse tempo os revoltosos avançam e conquistam 03 importantes posições. 25. juiz- sim, és uma ladra! Apanharam-te em Flagrante...e quem? A polícia... Já te esqueceste que tenho uma rede subtil e sólida... Os meus soldados de aço... Os meus homens são como Insetos de olhar inconstante, montados sobre rodas, sempre a espiar-vos. A todas! E todas vós, cativas, são trazidas por eles, aqui, ao palácio... Que tens tu a dizer-me? Apanharam-te em flagrante... 26. ladra- não!

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

204


27. juiz- isso mesmo minha filha: primeiro deves Negar e só depois confessar para alcançares o Arrependimento. Quero que desses belos olhos saltem lágrimas ardentes. Sim quero ver-te Encharcada em lágrimas. Oh santo poder das lágrimas!... Onde pus eu o código? 28. ladra- já chorei o bastante! 29. juiz- quando te batiam. Mas eu quero lágrimas de arrependimento. Só ficarei totalmente Satisfeito quando te vir molhada como um prado.... és muito nova. Sem experiência. Menor provavelmente... 30. ladra- menor não senhor. 31. juiz- Chama-me senhor doutor juiz. 32. ladra- sim senhor doutor juiz. 33. juiz- enfim recomecemos. Portanto Aproveitas-te do sono dos justos, aproveitaste do sono repentino para roubares, Surripiares, furtares, despojares… 34. ladra- não senhor doutor juiz, é mentira! 35. juiz- volto a repetir: roubaste? 36. ladra- sim senhor doutor juiz! 37. juiz- muito bem. E agora responda-me depressa e sem hesitações: o que é que tu roubaste? 38. ladra- roubei pão porque tinha fome. 39. juiz- sublime função a minha! Tudo vai ser julgado por mim. Oh minha querida filha só tu Consegues reconciliar-me com o mundo. Vou ser juiz de todos os teus atos! De mim vai depender a medida, o equilíbrio. O mundo é uma maçã para eu cortar ao meio: os bons e os maus. E tu meu deus, aceitas ser a parte má? Nada nas mãos, nada nos bolsos, extirpar o podre e deitá-lo fora. Mas que ocupação dolorosa! Hábito esta região da liberdade exata. O rei dos infernos, todos os que eu julgo, estão como eu: mortos. Esta está como eu: morta. 40. ladra- faz-me medo senhor doutor juiz!

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

205


41. juiz- cala-te. No fundo dos infernos faço a Partilha dos humanos que se arriscam a chegar Aqui. Uma parte para a fogueira e outra para o Tédio dos campos de asfódelos. Tu minha ladra, Minha espiã, minha cadela, ouve o que mimos te diz, ouve a decisão... Não estiveste a mentir-me? Pois não?... Sinto-me quase feliz... O que é que tu roubaste?...responde-me ou não? O que é que tu roubaste mais? Onde? Quando? Como? Quanto? Por quê? Para quem? Responde! 42. ladra- entrei em muitas casas pela escada de Serviço, aproveitando a ausência das Criadas...abri armários, parti mealheiros dos Garotos...uma vez disfarcei-me de senhora Honesta. Vesti uma saia e um casaco comprados Na feira da ladra, pus um chapéu preto de palha enfeitado com um ramo de cerejas, um véu e uns sapatos pretos e entrei… 43. juiz- onde? Onde? Onde' onde? Onde é que tu entraste? 44. ladra- já não me recordo! 45. juiz- onde é que tu entraste? Diz-me onde é que tu entraste? Onde? Onde' onde? 46. ladra- juro que não me lembro. 47. juiz- diz-me onde entraste? Diz-me o que roubaste? Diz, não sejas má… 48. ladra- não me trates por tu, ouviu? 49. juiz- minha menina...minha senhora. Por favor, Suplico-lhe... Não posso acreditar. Ouve bem o que te digo: continua a dissimular, a fingir o mais que puderes e os meus nervos suportarem. Continua a negar, a negar sempre, Para me obrigares a sofrer, a bater com os pés no chão, a espumar de raiva, a suar, a ganir de impaciência, a rastejar... Queres que eu rasteje? 50. ladra- rasteje! 51. juiz- Que me obrigues a rastejar depois de mim ser juiz, está bem minha marota, mas se te recusares definitivamente ao teu papel, isso seria um crime minha cabra! 52. ladra- chama-me, minha senhora, e seja mais educado! 53.juiz- e terei o que pretendo? 53. ladra- roubar não é fácil sabe! 54. juiz- mas eu pago, pago o que for preciso, minha senhora. 55. se deixasse de poder separar o bem do mal para que serviria eu, diga-me, para que serviria?

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

206


56. ladra- isso pergunto eu a mim própria! 57. juiz- ainda a pouco estavas prestes a Transformar-me em mimos... Como tu eras cruel, terrível! E eu impiedoso preparava-me para encher os infernos de condenados. Encher as prisões... Minha senhora, diga que sim por favor. Posso lamber-lhe os sapatos se quiser, mas por favor confesse que é uma ladra. 58. ladra- primeiro lambe. Lambe meu cãozinho rafeiro… 59. bombas e rajadas de metralhadoras invadem a cena. Black’out.

Quadro III

A explosão das barragens

60. Em todo o espaço cênico, bombas Verdadeiras explodem. Dois focos laterais invadem a cena, deixando à mostra do lado Direito, uma grande multidão com cartazes simpatizantes à revolta. No outro extremo, Três soldados tentam salvar o que resta do Arsenal bélico do exército. Eles carregam de um lado ao outro da cena, grandes sacas com Material bélico, tentam salvá-las da inundação provocada pela destruição da Barragem. A água não cessa de correr, encharcando toda a cena. Do outro lado, os manifestantes-revoltosos gritam palavras de ordem. 61. no centro do espaço um foco em pino ilumina um velho nu, que aguarda impacientemente. Parece medroso. Uma bela jovem entra no seu Espaço. Traz consigo algumas peças de roupa interior. Começa a vesti-lo enquanto conversam. As manifestações populares continuam em segundo plano. 62. general- até que enfim que chegou, com meia hora de atraso, tempo mais que suficiente para se perder uma batalha... E o sangue, não vejo nenhum sangue. 63. rapariga- o sangue secou, não se esqueça que se trata de sangue de antigas batalhas. 64. general- que andaste tu a cheirar por aí? Não te deram o teu saco de aveia? Tu sorris? Sorris para o teu cavaleiro? Estás a Reconhecer esta mão suave e firme meu corcelzinho orgulhoso? Quantas correrias não fizemos juntos minha bela égua! 65. rapariga- e faremos muitas mais. Estes cascos bem ferrados, estas patas nervosas, anseiam por correr mundo. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

207


66. general- está bem. Mas primeiro põe-te de joelhos, vamos de joelhos, vá dobrar- me esses jarretes minha linda!... Bravo, bravo minha colomba! 67. rapariga- o pé esquerdo continua inchado! 68. General- claro é o pé da partida, é o pé que bate e que aperreia. Como esse teu cascozinho quando me fazes as vénias. 69. rapariga- Quando faço o quê? 70. general- és um cavalo ou uma ignorante? Se és um cavalo então sabes fazer vénias. 71. rapariga- faço o que devo fazer! 72. general- já estás a revoltar-te? Espera que eu esteja pronto. Quando te meter os freios nos dentes.. 73. rapariga- oh não, isso não. 74. general- era o que faltava, um general a ser chamado à ordem pelo seu próprio cavalo! Sim Senhor... Terás o freio, as rédeas, os arreios, a cilha, e só então, de botas, chibata e chapéu te saltarei em cima! 75. rapariga- é horrível o freio, fico com as gengivas a sangrar, e os lábios todos gretados, e depois babo sangue. 76. general- ah, a espuma cor de rosa e o Crepitar do fogo. Que cavalgadas. Entre Campos de centeio, no meio da luzerna, Atravessando prados, caminhos poeirentos, Por montes e vales, deitados ou de pé, da Aurora ao pôr do sol...as medalhas estão todas aí? É melhor contá-las! 77. rapariga- estão, meu general. 78. general- e a guerra, onde está a guerra? 79. rapariga- está perto, meu general. Vai desenrolar-se num campo de macieiras. O céu está calmo e róseo, uma paz repentina que banha toda a terra, o tempo está agradável, as coisas sustêm a respiração, a guerra foi declarada, e está bom tempo. 80. general- e de repente...

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

208


81. rapariga- alcançamos o prado, paro de escoucinhar, de relinchar, sinto as tuas coxas quentes a apertar-me os flancos. 82. general- e de repente... 83. rapariga- a morte fica a postos, põe um dedo nos lábios convida-nos ao silêncio. Uma bondade extrema ilumina as coisas, nem tu dás pela minha presença. 84. general- e de repente... 85. rapariga- o próprio vento esperava ordens Para desfraldar as bandeiras, e de repente foi O ferro e o fogo. Muitas viúvas. Foi preciso tecer quilómetros de crepe para enlutar os Estandartes. As mães e as esposas tinham os olhos secos e ocultos pelos véus. Os sinos caiam das torres bombardeadas. Ao virar uma Rua espantei- me com um pano azul e ergui as Patas, mas tua mão doce e pesada logo me acalmou, e recomecei o trote. O h meu herói, como eu te amava. 86. general- e os mortos? Não havia mortos? 87. rapariga- os soldados morriam beijando o estandarte. Tu não eras senão vitórias e bondade. Uma tarde, recordas-te? 88. general- fiquei tão doce que me pus a nevar, a nevar sobre os meus homens, cobrindo-os com o mais suave dos lençóis... 89. rapariga- em suma a morte não parava, Ligeira andava de um lado para o outro, fazendo uma chaga, vazando um olho, arrancando um braço, abrindo uma veia, esmagando um rosto, estrangulando um grito, amordaçando um cântico, até não poder mais. Por fim, esgotada, morta de fadiga, acabou por adormecer em cima dos teus ombros. 90. general- para, para, ainda não chegou o momento. Mas já estou a sentir que vai ser maravilhoso... Eis o que sou nesta pura aparência, nada. Atrás de mim não arrasto nenhum contingente, surjo simplesmente. Atravessei guerras sem morrer, atravessei Misérias sem morrer, subi patentes sem morrer, sem morrer para viver este minuto próximo da Morte. Quando eu já não for nada, a não ser a Minha imagem refletida nestes espelhos até ao infinito quero que a minha égua esteja bem Arreada, daqui a pouco quando as trombetas Soarem, desceremos os dois para a glória e para a morte. 91. rapariga- o meu general morreu anteontem. 92. general- eu sei... Mas é uma descida solene, insólita, por degraus inesperados.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

209


93. rapariga- sois um general morto, mas mesmo assim eloquente. 94. general- eloquente porque estou morto meu caro tagarela. Isto que te digo com tão bela Voz é o exemplo, sou apenas a imagem daquele que fui... Estás pronta minha colomba? 95. rapariga- começou o desfile, atravessamos a Cidade, ao longo do rio, sinto-me triste, o céu está pesado e o povo chora o seu belo herói que morreu na guerra... 96. general- colomba. 97. rapariga- sim, meu general! 98. general- acrescenta que morri de pé! 99. rapariga- o meu herói morreu de pé. O desfile continua, os oficiais marcham à minha frente, depois passo eu, colomba, o teu cavalo de batalha, a banda militar toca uma marcha fúnebre…

Quadro IV

A guerra dos tomates

100.

Um foco em pino vindo do teto invade a cena. No foco um velho nu, aguarda

impacientemente. 101.

Da direita para a esquerda um tomate voa em direção ao velho, ele abaixa-se desviando-se

do tomate. Da esquerda para a direita um Tomate voa na direção do velho, ele abaixa-se Desviando-se do tomate. Da direita e da Esquerda vários tomates voam na direção do Velho, ele tenta desviar-se, mas é atingido em cheio. A chuva de tomates intensifica-se, rasgando na horizontal a cena. 102.

Dois focos laterais, unindo a esquerda e a direita do Espaço, cortam a cena. Percebe-se

agora, que os tomates são munições na batalha dos revoltosos com os soldados. 103. Do lado direito encontram-se os Camponeses, agora revoltosos. Estão Abrigados por uma barricada formada por sacos de areia, têm em seu poder muitas caixas de tomates. Combatem arduamente.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

210


104. Do lado esquerdo encontra-se a polícia de choque. Estão eles também protegidos por uma barricada formada por sacos de areia. Possuem também uma grande quantidade de caixas de tomates roubadas dos camponeses. 105. velho nessa altura da batalha, praticamente virou suco de tomate. Seu corpo está coberto dos pés à cabeça com restos de tomates. 106. entra em cena uma bela rapariga. Traz a Tiracolo uma velha peruca. Os focos que iluminam as cenas dos camponeses e soldados desaparecem por completo, restando da sua presença apenas o odor de tomate podre. 107. velho ao pegar a peruca fica alegremente excitado. 108. velho- e os piolhos? 109. rapariga- está cheia deles. 110. A rapariga sai de cena deixando-o só. 111. O Velho está radiante. 05 focos em pino iluminam 05 espelhos ao redor do velho, de maneira que O velho e a platéia se fundem num mesmo Plano. O velho encara a plateia com um sorriso lascivo e débil. 112. Sons de metralhadoras e de bombas invadem o espaço. Black’out.

Quadro v Chantal adere a revolução 113. O movimento de revolta chega ao seu ápice. Chantal junta-se à revolução e vira ícone dos revoltosos. 114. Focos de luzes cortando o espaço Paralelamente ao público iluminam as conversas dos revoltosos. Enquanto Chantal e Roger conversam à frente da cena, três Revoltosos fazem-se de guarda-costas e são iluminados por 03 focos pinos que saem do teto.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

211


115. Um foco ilumina um canto das margens da Cena. No foco a rainha de ceroulas e coroa, Borda. Está sentada sobre escombros. Parece impaciente e nervosa. Na outra extremidade do Espaço, revoltosos estão reunidos em pequenos grupos. Buscam pela rainha. Estão desejosos de vingança e deveras enraivecidos. Focos laterais rasgam as margens do espaço Cênico. Começa uma incansável perseguição à Rainha. Ela desesperada foge por todos os cantos do palácio real, que agora encontra-se em ruínas. Chantal é uma menina e brinca o Jogo da Macaca, acompanhada da sua boneca De trapos. Roger é um velho senil e tarado, Veste apenas um chapéu, um par de meias e Sapatos, tem dificuldade em andar, por isso Faz-se acompanhar por uma velha e clássica Bengala. Carrega sempre consigo pirulitos deliciosos. Enquanto conversam chantal não Para de jogar à macaca e Roger movimenta-se Por toda a cena, procurando achar o melhor Ângulo de visão para deliciar-se com a cuequinha da chantal. Resumindo: é um Pedófilo. 116. chantal- podes guardar-me no teu coração, se quiseres meu amor. Mas agora deixa-me partir. 117. roger- amo-te com o teu corpo, os teus cabelos, o teu pescoço, o teu ventre, as tuas tripas, os teus humores, os teus odores. Tu és minha chantal. 118. chantal- já sei. Mas és tu quem eu amo e só tu. 119. Roger- Sim, mas eu não posso ir atrás de ti nessa corrida heroica e estúpida ao mesmo tempo. 120. chantal- ora, ora. Tens ciúmes de quem ou De quê? Dizem que pairo gloriosa, acima da Insurreição, que sou a voz e a alma dela, enquanto tu não consegues erguer-te da Terra. É o que te torna tão triste. 121. roger- por favor chantal não sejas Ordinária, não te fui roubar para te transformares num licórnio ou numa águia de duas cabeças. 122. chantal- não gostas de licórnios? 123. roger- nunca soube fazer amor com eles. Nem contigo, aliás. 124. chantal- Queres tu dizer que não sei amar? Que desaponto. Mas eu gosto de ti Roger. E tu alugaste-me a troco de cem vivandeiras. 125. roger- perdoa-me chantal, fui obrigado a isso. Também eu te amo, amo-te e não to sei dizer e não sei cantar. E o último recurso é ainda cantar. 126. chantal- tenho de me ir embora antes que se faça dia, caso contrário nunca mais sairemos deste bordel.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

212


127. roger- só mais um minuto meu amor, minha vida. Ainda é noite. 128. chantal- é a hora em que a noite se desfaz no dia meu pombinho, deixa-me partir. 129. roger- não conseguirei suportar os minutos que vou passar sem ti. 130. chantal- juro-te que não vamos estar separados. Quando falar com eles num tom glacial, murmurarei para ti palavras de amor. Podes ouvi-las daqui e eu ouvirei aquelas que tu me disseres. 131. Roger- eles podem dominar-te chantal. São fortes, são fortes como a morte, é o eles são, a morte. 132. chantal- não tenhas receio meu amor, Conheço o poder deles. Para mim é mais forte o Poder do teu carinho e da tua ternura. Irei falar-lhes com voz severa e dizer- lhes o que o Povo exige. E eles ouvir-me-ão porque terão medo. Deixa-me partir 133. roger- amo-te chantal. 134. chantal- também te amo Roger, por isso não posso perder tempo. 135. roger- amas-me? 136. chantal- amo-te porque és terno e doce, tu O mais duro, o mais severo dos homens. O teu Carinho e a tua ternura tornam-te leve como o Farrapo de tule, subtil como um floco de Bruma, aéreo como um capricho. Os teus Músculos espessos, os teus braços, as tuas Coxas, as tuas mãos são mais irreais que a passagem do dia para a noite. Envolves-me e estás contido em mim. 137. roger- eu amo-te chantal porque tu és dura E severa, a mais terna e doce das mulheres. O Teu carinho e a tua ternura tornam-te severa Como uma lição, dura como a fome, inflexível Como um pedaço de gelo. Os teus seios, a tua pele, os teus cabelos são mais reais que a certeza do meiodia. Envolves-me e estás contida em mim. 138. chantal- quando estiver com eles, quando Lhes falar, hei de ouvir dentro de mim os teus suspiros e os teus queixumes, o bater do teu coração. Deixa-me partir. 139. roger- ainda tens tempo, ainda é escuro à volta dos muros. 140.revoltoso- está na hora chantal. 140. chantal- ouves? Estão a chamar-me! 141. roger- mas porque hás de ser tu? Nunca conseguirás falar com eles. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

213


142. chantal- conseguirei melhor que ninguém, possuo dons especiais. 143. Roger- mas eles são manhosos. 144. chantal- inventarei gestos, as atitudes, frases. Antes deles dizerem qualquer palavra, Já eu compreenderei tudo, poderás orgulhar-te da minha vitória. 145. roger- que os outros estejam Contigo...ponham-se a caminho. E se têm medo irei eu dizer-lhes que devem submeter-se a nós, porque nós somos a lei. 146. chantal- não lhe deem ouvidos, está Embriagado... Eles só sabem combater e tu só Sabes amarme. É esse o nosso papel que aprendemos a representar. O bordel serviu-me de escola, foi graças a ele que aprendi a arte de fingir e de representar. Fui obrigada a tantos papéis que os sei praticamente todos. Tive tantos parceiros… 147. Roger- chantal! 148. chantal- conheci tantos sábios, tantos Manhosos, tantos falantes que através deles adquiri uma ciência, uma astúcia, uma eloquência incomparável. 149. roger- conhece todos os papéis não é verdade? 150. chantal- isso aprende-se depressa. 151. Roger mostra e oferece a Chantal um Delicioso pirulito, ela deixa de jogar à macaca e vai correndo sentar-se ao seu colo. Chupa seu pirulito delicioso. Roger geme de prazer. 152. revoltoso- chega de paleio. Toca a andar. 153. chantal sai de cena disparada. 154. roger- não vás chantal 155. chantal- envolvo-te e estás contido em mim meu amor. 156. chantal desaparece. 158. roger- tive tantos parceiros, conheci tantos manhosos, tantos sábios... Chantal vai Precisar de muita coragem para lhes dar a Resposta. A resposta que eles exigem, chantal Vai ter agora parceiros manhosos e sábios, chantal será a resposta que eles tanto anseiam... Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

214


159. Roger sai de cena. Os revoltosos encontram a rainha, e como animais no cio, lincham-na literalmente.

Quadro VI

desfile da conspiração vitória

160. o chefe de polícia almeja abafar a Revolução. Os revoltosos dominam praticamente tudo. Os senhores do poder desfilam pelas ruas da metrópole, que estão totalmente desertas. 161. enquanto caminham pelas ruas desertas, planejam sua conspiração 162. Uma música latina melancólica invade a cena. Um bispo caracterizado apenas com uma Mitra invade o espaço ao mesmo tempo que na Extremidade contrária um rei trajado com um manto, uma coroa e um pênis de arame adentra a cena. Elas confrontam-se. Encaram-se. Aproximam-se e dançam colados. Dança sobre Uma cruz suástica estilizada. Dançam sempre Acompanhado e formando coreografias sobre a cruz. Afastam-se e saem de cena. Rajadas de metralhadoras rasgam o espaço. 163. chantal é assassinada. A revolução é abafada. O chefe de polícia torna-se herói dos poderes estabelecidos. Chantal é canonizada. 164. mendigo - viva a rainha 165. rajadas de metralhadoras e bombas rasgam o silêncio.

Quadro VII

Mausoléu

166. Ao fundo do espaço um foco ilumina uma grande escadaria de pedra. O espaço é um grande mausoléu todo de pedra.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

215


167. A população, agora não mais revoltosos, caminha sem rumo nas escuras ruas da cidade. Parece-se com um grupo de drogados "robotizados". 168. O chefe de polícia está deitado nu sobre uma cama. Carmem entra em cena com um balde, uma pequena toalha e sabão. Sua função é lavá-lo e prepará-lo para a cerimônia. Um escravo nó e ensanguentado rasteja Literalmente pela cena. 169. carmen- (dando-lhe um cigarro) oferta da Casa 170. Roger- obrigado... O escravo? 171. carmem- estão a desatá-lo. 172. roger- e ele está corrente do que se passa? 173. carmem- de tudo. 174. roger- quantos escravos trabalham aqui? 175. carmem- o povo inteiro. Metade da população trabalha de noite e a outra metade durante o dia. 176. roger- é verdade que não veio ninguém aqui antes de mim? 177. carmem- sim. 178. roger- ficarei realmente só? 179. carmem- tudo está calafetado, as portas são acolchoadas e as paredes também. Quanto à luz, a obscuridade é de tal modo compacta que os seus olhos conseguirão desenvolver capacidades incomparáveis. O frio é o da morte. Os homens continuam a gemer para que o Senhor tenha um nicho de granito. 180. roger- disseste que os homens gemem? Posso ouvir seus gemidos? 181. carmem- aproxima-te. 182. roger- é isto? 183. carmem- é belo não acha? É magro, tem piolhos e chagas e só sonha em morrer por vós. Quer que o deixe sozinho? Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

216


184. roger- com ele? Não! 185. carmem- obrigue-o a falar. 186. roger- és capaz de falar? E o que mais sabes fazer? 187. escravo- sou capaz de me enrolar sobre mim próprio e de me enterrar. 188. roger- de te enterrares? Mas aqui não há lama. 189. escravo- todo o meu corpo está enterrado Em lama, meu senhor. Livre só tenho a boca aberta para vos elogiar e para soltar os gemidos que me tornaram célebre. 190. roger- célebre? Mas tu és célebre? 191. escravo- célebre pelos meus cânticos Senhor. Cânticos que saldam toda a vossa glória. 192. roger- portanto a tua glória acompanha a Minha glória. Quer dizer que a minha reputação depende necessariamente das suas palavras? E se ele se calasse eu deixaria de existir? 193. carmem- teria todo o prazer em responder-lhe, mas as perguntas não estão incluídas nesta representação. 194. roger- sem mim, sem meu suor, sem as minhas lágrimas, sem o meu sangue, o que serias de ti? 195. escravo- nada, meu senhor. 196. roger- e o que mais fazes tu? 197. escravo- esforço-me por apodrecer de pé. E isso não é fácil, acredite. A vida muitas vezes tenta levar a melhor, mas nós resistimos, e vamos diminuindo um pouco a cada dia. 198. Roger- isso pouco importa, quando a minha realidade é a realidade das tuas frases. Mas os outros saberão? A noite conhece-me? E a morte? E as pedras? 199. escravo- o cimento que as mantém ligadas, umas às outras contemplam o vosso túmulo.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

217


200. roger- tudo fala de mim, tudo me respira e Me adora. Vivi a minha história para que fosse escrita uma página gloriosa, que depois será lida. O importante é a leitura...Para onde ele foi? 201. carmem- saiu para cantar a vossa glória. 202. roger- e que mais? Que mais poderá dizer? 203. carmem- a verdade: que estais morto e que a vossa imagem, como o vosso nome se repercute ao o infinito. 204. roger- ele sabe que a minha imagem está em toda a parte? 205. carmem- inscrita, gravada, imposta pelo medo em toda a parte. 206. roger- nas mãos dos estivadores? Nos jogos dos garotos? Nos dentes dos soldados? 207. carmem- em toda a parte. 208. roger- está também nas prisões? 209. carmem- sim. 210. roger- na curva dos caminhos? 211. carmem- não se deve pedir o impossível! Mas agora o seu tempo acabou, tem de ir embora! 212. roger- mas ir para onde? Voltar para a vida. Retomar as minhas ocupações? 213. carmem- não sei o que o senhor faz e não tenho o direito de saber, mas agora tem de se ir embora, o seu tempo acabou. 214. roger- aqui não se perde tempo, por que é que queres que eu volte de onde vim? 215. carmem- já não tem nada a fazer aqui. 216. Roger- nem aqui nem lá fora 220.carmem- vá-se embora depressa. 221.roger- não saio. 217. carmem- o senhor está doido, não é o primeiro a julgar que tem o poder nas mãos. 218. roger- nada a mim já não resta mais Nada...(castra-se). Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

218


219. carmen- não pode fazer isso aqui. 220. roger- minha imagem vai perpetuar-se em Segredo, mutilada, será rezada uma missa à minha glória. Previnam as cozinheiras, quero que me preparem comezaina para dois mil anos. 221. rajadas de metralhadoras e bombas invadem a cena.

Quadro VIII O papa é pop(e)

222. O som de aglomeração humana invade a Cena, seguida pelo som melódico de canções religiosas cerimoniais. 223. Entra em cena um papa velho, moribundo e totalmente nu, vem sendo carregado por um revoltoso. 224. Apesar da Movimentação corporal do papa ser Orquestrada pelo esforço corporal do Revoltoso, ela faz o possível para dissimular a situação. 225. O revoltoso leva o papa até uma Cadeira central, prende seus punhos a duas cordas que estão dependuradas sobre a Cadeira e senta na cadeira. 226. Ele prende outras duas extremidades das cordas em seus punhos e assim manipula as movimentações do papa. Mantém-se em pé atrás do papa. 227. A voz off do presidente da república invade O espaço. O seu discurso faz as honras da Casa, blábláblá...o papa ouve dormitando. O revolto faz pequenos movimentos de maneira a fazer com que o papa pareça interessado. Termina seu discurso. Som de multidão invade as cenas. Pode-se ouvir algumas palmas. 228. O revolto puxa as cordas com violência de maneira a fazer com que o papa se levante. O Papa seguindo as forças da natureza, fica meio em pé e meio arqueado. O som off da voz do papa invade a cena. Ele retribui o discurso do Presidente e faz as honras do visitante ilustre. O espaço é invadido por palmas e gritos abafados. O som gregoriano invade a cena. O papa está sentado.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

219


229. A voz off do bispo de Leiria corta o espaço, Ele discursa enobrecendo o dito papa. o papa é Levantado e vestido cerimonialmente com um Cetro e uma mitra. É o momento da beatificação Dos 03 pastorinhos. A voz off do papa invade a cena. Ele discursa extensivamente. Termina seu discurso. A multidão ovaciona em delírio. A voz off do meio de comunicação invade a cena. Eles comentam sobre determinada instrução que o bispo de Leiria teria dado à irmã Lúcia quando o papa dissesse tal coisa. 230. O papa faz o seu discurso final e é literalmente levado para fora de cena. 231. Enquanto o papa é tirado de cena, uma música sacra invade o espaço, ao mesmo tempo em que a voz off do cardeal Solano ministro do vaticano preenche a saída do papa. Ele discursa sobre o 3º segredo de Fátima.

Quadro IX

Nossa senhora dos desesperados

232. um foco acende-se no centro do espaço. No foco nsª dos desesperados, está imóvel. 233. entram em cena dois homens que carregam pelos braços um velho papa da "quermética" Igreja católica. Tem em suas mãos rosas Vermelhas. Os homens levam- no até nsª. Ele é Ajoelhado pelos homens. Chora compulsivamente, enquanto não tira seus olhos lacrimejantes da face da santa. 234. Outros homens juntam-se aos três e rezam ajoelhados à volta de nsª. 235. nsra- as luzes que serão precisas, 100 Contos de eletricidade por dia...trinta e oito Salões, todos dourados e todos eles aptos a Encaixarem-se uns nos outros, a combinarem-se... E todas estas representações para que eu fique sozinha, dona e sub-dona desta casa e de Mim própria... Enfim tudo está preparado, os Pratos já estão confeccionados: a glória está Em descer para o túmulo com toneladas de comezaina...daqui a pouco é necessário Começar tudo outra vez, acender novamente Tudo, vestir tudo de novo, distribuir os papéis, Enfiar o meu...preparar o vosso, juízes, Generais, bispos, camareiros, revoltosos que Deixam fugir a revolta. Preciso de preparar os Salões para amanhã, e vocês, precisam de voltar para as vossas casas, onde tudo, tenham a certeza, será mais falso que aqui... Podem sair pela direita... O último que sair feche a porta por favor.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

220


236. enquanto diz seu texto ser despe-se. O mesmo fazem os outros atores. Terminado seu texto, a irma e os outros atores, estão Novamente vestidos com suas roupas do dia a dia. Acendem-se as contra luzes e os atores retornam a seus lugares na plateia. 237. Sons de rajadas de metralhadoras e bombas silenciam o espaço.

The end.

O CONDENADO Tema liberdade / opressão / justiça Espaço um poço profundo em algum canto Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

221


Personagens Tasla Viloro Paso Registro interpretativo naturalismo contaminado por rasgos expressionista Contra-cena direta/passiva Linguagem simbólica Balão azul busca da liberdade Penico toda a podridão do mundo Botas da tropa uniformização da humanidade Amarras que nos prendem a todos Amarelo no preto o novo no terror / obscuro Vermelho no preto sangue / terror / opressão através da força Verde esperança, a última que morre Vermelho no branco o imaculado manchado com sangue inocente Branco pureza/justiça Tasla a justiça, meio prostituta, meio salvadora Viloro o ideal, a busca da felicidade Paso o terror, o opressor, o mal As pichações manifestação do coletivo revoltado Melodia transmutada identificação catártica de um povo Cenário real que nos envolve a todos Cena 1

Unidade 1

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

222


1. O público aguarda o começo do espetáculo numa sala contígua ao espaço da representação. Tasla invade o espaço e perambula pela sala distribuindo balões.

Unidade 2

2. Paso invade a cena armado com duas grandes facas de cozinha, seus olhos estão vendados, ele nada vê. O pânico instala-se.

Unidade 3

3. Viloro adentra o espaço, tentando salvaguardar a integridade física das pessoas presentes. 4. Tasla e Viloro evacuam a sala, encaminhando sorrateiramente o público, para o espaço da representação.

Unidade 4

5. Paso fica só na sala. Unidade 6 6. O público é levado para um celeiro entulhado com fardos de feno. 7. Os fardos servem de cadeiras. No fundo do espaço, um grande painel feito de jornais atuais (do dia), está completamente pichado, as pichações são frases da música comida dos titãs. 8. Não há separação entre público e atores, palco e plateia formam um único espaço cênico. 9. A luz avermelhada reforça o peso do ambiente. Pode-se ouvir ao fundo, o som da fase fúnebre de Mozart. As pessoas espalham-se por todos os lados.

Cena 2

Unidade 1 Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

223


10.

As luzes apagam-se. Sons de tambores primitivos invadem a escuridão. Imagens projetadas por todas as paredes em simultâneo,

Acompanham o ritmo dos tambores. São imagens de celebrações de poder, desde o mais antigo ritual até as mais contemporâneas formas de poder. São flashes, como se de um caleidoscópio se tratasse.

Unidade 2

11.Os sons cessam. As imagens congelam. Uma conhecida melodia nacional invade a cena. Tasla ao centro imita a estátua da justiça, tem um dos olhos destapados. Sentado à sua frente, Viloro encara a plateia. Ele ostenta uma bela coroa. Depois de algum tempo, vê-se surgir das costas de Viloro, como se fosse parte dele. . Unidade 3

12.

A música torna-se rápida e alegre. Paso rouba a coroa de Viloro e coloca algumas moedas na balança de Tasla. Ela sorri. Paso cobre Viloro com sua longa capa. Black’out. Fotografia público.

Cena 3

Unidade 1

13.

Imagens de explosões, poeticamente falando, recheiam o ambiente. Sons rasgados distorcidos, de um teclado, invadem a cena. Lentamente o espaço é iluminado pelo azul da noite. Viloro ensaia acordes no centro da cena. São acordes de uma conhecida melodia nacional. Ele repete-os continuamente. Toca muito mal.

Unidade 2

14.

Risinhos irônicos fazem-no parar. As imagens congelam. Viloro assusta-se. Vira- se lentamente, covardemente, procurando a origem dos risos. Estaciona seus olhos num ponto qualquer, está apavorado, os olhos esbugalhados fecham-se com um grito. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

224


Unidade 3

15.

Põe a cabeça entre as pernas. Começa lentamente a endireitar-se. Espreita cautelosamente por todos os lados. Não vê ninguém. As imagens movimentam-se. Volta a tocar o seu teclado. Toca horrivelmente mal. Gesto de contrariedade. Torna a tocar. Grande alegria.

Unidade 4

16.

Paso ri. As imagens congelam. Viloro cessa de tocar e volta-se lentamente à procura dos risos. Paso encara-o seriamente.

Unidade 5

17.

Viloro volta a tocar. Flashes de imagens. Gesto de contrariedade.

Unidade 6

18.

Paso ri. As imagens congelam. Viloro vira-se e nada vê, volta a tocar desajeitadamente. Flashes de imagens.

19.

Paso desaparece por detrás do muro. Viloro toca 04 vezes.

Cena 4

Unidade 1

20.

O som melancólico de uma conhecida melodia nacional invade o espaço. Entra em cena Tasla, traz a reboque. Dentro de uma gaiola de ferro, um condenado, ele está muito ferido e cansado, tem a boca e os punhos atados. As imagens congelam. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

225


21.

Tasla estaciona ao lado de Viloro, a música cai ao fundo, eles conversam.

22.

Tasla- Bom dia Viloro.

23.

Viloro- não fale, eles estão ali.

24.

Tasla- ainda.

25.

Viloro- vê se eles ainda estão lá.

26.

Tasla- olha você, tenho medo.

27.

Viloro- eu também...eles já foram embora.

28.

Tasla- finalmente estamos tranquilos.

29.

Viloro- temos que esperar. Não vão eles voltar daqui a pouco como fazem algumas vezes.

Unidade 2

30.

Tasla- progrediste?

31.

Viloro- oh sim, fiz enormes progressos.

32.

Tasla- toca para eu ouvir.

33.

Viloro- Tenho um pouco de vergonha.

34.

Tasla- coragem, não há motivo para ficar vermelho de vergonha.

35.

Viloro- é sem querer

36.

Tasla- De repente?

37.

Viloro- Não é bem de repente..., mas quase.

38.

Tasla- toca um bocadinho.

39.

Viloro toca. Gesto de contrariedade.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

226


Unidade 3

40.

Tasla- Muito bem Viloro, fizeste um progresso espantoso.

41.

Viloro- enganei-me no fim, não percebeste?

42.

Tasla- não. Realmente não percebi. Fiquei com a boa impressão do começo. Porque no começo pode-se dizer que foste extraordinário.

43.

Viloro- Vou tentar tocar tudo sem parar.

44.

Tasla- tenta.

45.

Viloro toca. Gesto de contrariedade.

Unidade 4

46.

Tasla- bravo.

47.

Viloro- errei por uma coisinha à toa.

48.

Tasla- perfeito magnífico.

49.

Viloro- Sim, saiu bem. Mas no fim, enganei-me numa coisa de nada.

50.

Tasla- realmente pode-se dizer que fizeste progressos espantosos.

51.

Viloro- isso é verdade.

52.

Tasla- nunca teria imaginado.

53.

Viloro- lembra do ano passado?

54.

Tasla- só conseguias tocar as duas primeiras notas.

55.

Viloro- isso mesmo.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

227


56.

Tasla- Sim, sim, eu me lembro disso.

57.

Viloro- não há nada melhor do que treinar todos os dias.

58.

Tasla- e ter talento.

59.

Viloro- também é evidente.

Unidade 5

60.

Viloro - tens de levá-lo?

61.

Tasla- tenho.

62.

Viloro- vão matá-lo?

63.

Tasla- Não sei, acho que sim. Eles sabem melhor do que eu.

64.

Viloro- pesa muito?

65.

Tasla- mais ou menos, perdeu muito sangue.

66.

Viloro- bateram-lhe para o obrigar a confessar

67.

Tasla- Sim, acho que sim. Eles sabem melhor do que eu.

68.

Viloro- e confessou.

69.

Tasla- Não sei, mas de qualquer forma isso vem a dar na mesma.

70.

Viloro- pode falar Unidade 6

71.

Viloro - ainda não me beijaste.

72.

Tasla- aquilo me incomoda.

73.

Viloro- mas agora estamos a sós... Pelo menos imagino.

74.

Tasla- tenho pressa. Tenho que me livrar dele. Você sabe como eles são.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

228


75.

Viloro- nunca se tem tempo para nada.

76.

Tasla- é nunca. Tenho que transportar os condenados.

77.

Viloro- é verdade.

Unidade 7

78.

Tasla- olha trouxe este balão para você brincar.

79.

Viloro- obrigado Tasla.

80.

Tasla- adeus Viloro.

81.

Viloro- adeus Tasla.

Unidade 8

82.

As imagens movimentam-se. Tasla sai de cena levando o condenado a reboque. A música melancólica invade a cena.

83.

Durante todo o diálogo de Tasla e Viloro, o condenado passou a maior parte do tempo a dormitar, em alguns momentos prestava mais atenção à conversa dos dois.

Cena 5

Unidade 1

84.

Viloro recomeça a tocar. A melodia melancólica desaparece por completo. Viloro toca desajeitadamente. Gesto de contrariedade. Toca novamente.

Unidade 2

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

229


85.

Paso surge por detrás de Viloro e ri. As imagens congelam. Viloro deixa de tocar, vira-se e encara Paso.

Unidade 3

86.

Pega o balão e brinca com ele. As imagens movimentam-se. Diverte-se muito. O balão cai ao chão.

87.

Paso ri descontroladamente. As imagens congelam. Viloro apanha rapidamente o balão e volta a tocar. Flashes de imagens. Toca 04 vezes. Gesto de contrariedade.

Unidade 4

88.

Paso ao fundo da plateia estoura um balão. As imagens congelam. A luz vermelha toma conta do espaço. Viloro vira-se e encara-o.

89.

Paso- continuas a tocar....

90.

Viloro encolhe-se em seu banco. Paso está acompanhado de uma sensual prostituta.

91.

Paso- de pé.

92.

Viloro encolhe-se mais ainda.

93.

Paso- Então, eu não disse a você que é proibido tocar.

94.

Viloro nada diz.

95.

Paso- (falando com a prostituta) - amarra-o.

96.

Ela amarra os pés de Viloro.

97.

Paso- sabes muito bem que não tens o direito de tocar. da próxima vez será pior.

98.

As imagens movimentam-se. Paso e a prostituta saem de cena.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

230


Cena 6

Unidade 1

99.

Viloro volta a tocar. Gesto de contrariedade.

Unidade 2

100.

Levanta-se e tenta andar pelo espaço de gatas, cai, torna a levantar-se, consegue

caminhar com certa dificuldade, cai, levanta-se e recomeça a andar. Está aparentemente contente.

Cena 7

Unidade 1

101.

Volta a tocar. Flashes de imagens. Uma melodia espacial invade a cena. Tasla entra em

cena carregando o condenado a reboque. Viloro toca. O condenado desta vez, está mais atento e menos cansado, agora já não tem os pulsos amarrados, apenas sua boca continua amordaçada. 102.

As imagens congelam. A música cai ao fundo.

103.

Viloro- (descobrindo Tasla) ouve Tasla.

104.

Toca muito rapidamente. O contentamento de Tasla cresce à medida que Viloro toca.

105.

Tasla- como você conseguiu?

106.

Viloro- (caminhando até Tasla) sou um sujeito formidável, não é verdade?

107.

Tasla- Sim, você é um sujeito excepcional.

Unidade 2

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

231


108.

Viloro- é o mesmo ainda?

109.

Tasla- sim. Dizem que não o torturaram ainda o suficiente.

110.

Viloro- é você que o conduz à câmara de torturas?

111.

Tasla- sim. Foi o que disseram para fazer, com um pouco de sorte eles não o terão por

muito tempo. Gostaria de levá-lo ainda hoje mesmo. 112.

Viloro- claro, assim ficarás livre mais cedo

Unidade 2

113.

Viloro - eles vieram e me amarraram, estás vendo?

114.

Tasla- nunca mais vão te deixar em paz?

115.

Viloro- Bem sabes que eles não gostam que eu toque.

116.

Tasla- virá o dia em seremos livres.

117.

Viloro- acreditas, Tasla?

118.

Tasla- acredito. E nunca mais terei que transportar condenados.

119.

Viloro- Sim, nunca mais.

120.

Tasla- e você poderá tocar todas as vezes que quiser.

121.

Viloro- sempre?

122.

Tasla- sempre e facilmente

Unidade 3

123.

Viloro- facilmente (sonhador) verás que nessa altura serei um grande pianista. Chegarei

mesmo a compor. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

232


124.

Tasla- você também quer compor?

125.

Viloro- claro! Quero escrever uma canção para você...uma canção nova e original.

126.

Tasla- Que ótimo.

127.

Viloro- Já fiz a letra.

128.

Tasla- é mesmo?

129.

Viloro- é... Estou certo de que você vai gostar muito. Quer que eu cante?

130.

Tasla- lógico.

131.

Viloro- Estou um pouco envergonhado.

132.

Tasla- vamos, vamos, não fique envergonhado. Se quiser, não olho para você.

133.

Viloro- está bem, não olhe para mim. Põe as mãos nos olhos. Não está vendo nada? Os

olhos estão bem fechados? 134.

Tasla- estão, estão, vá canta.

135.

Viloro- (canta desafinadamente e muito alto) - a luz do luar, minha Taslazinha, taralalalá,

taralalalá... 136.

Tasla- que linda canção Viloro.

137.

Viloro- gosta?

138.

Tasla- oh sim, muito, muito.

Unidade 4

139.

Viloro- Tasla me diz: você me ama?

140.

Tasla- amo Viloro.

141.

Viloro- também te amo muito...faz uma canção para mim?

142.

Tasla- mas eu não tenho talento nenhum. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

233


143.

Viloro- se quiseres posso te dar uma ideia.... ouve a luz do lu...isso não te diz nada?

144.

Tasla- vagamente... A luz do luar meu pequenino Viloro.

145.

Viloro- como a tua canção é linda Tasla, você realmente tem inspiração, mas podias fazer

ainda melhor, ouve a luz do luar meu graaaaaannnnnde Viloro.

Unidade 5

146.

Tasla (contrariada)- ah é, está realmente melhor.

147.

Viloro- como vês tenho ideias.

148.

Tasla- Sim, você é formidável.

149.

Viloro- não vai embora Tasla, fica comigo.

150.

Tasla- impossível Viloro, bem sabes como eles são.

Unidade 151.

iloro- você vai pensar em mim!

152.

Tasla- Vou.

153.

Viloro- vais fazer outros poemas para mim?

154.

Tasla- sim Viloro.

155.

Viloro- para cada chicotada que derem no condenado você me manda um beijo!

156.

Tasla- está bem.

157.

Viloro- não vais esquecer?

158.

Tasla- não Viloro.

Unidade 7 Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

234


159.

Viloro- não me trouxeste nenhum presente hoje?

160.

Tasla- trouxe sim Viloro, trouxe um penico.

161.

Viloro- um penico para mijar?

162.

Tasla- Sim, como amarraram teus pés, isso vai te ser muito útil.

163.

Viloro- como você é boa Tasla, pensa sempre em mim.

164.

Tasla- E você, o que vai me dar?

165.

Viloro- uma coisa muito bonita... Toma.

166.

Tasla- puxa, que surpresa Viloro.

167.

Viloro- então gostou?

168.

Tasla- Sim, gostei muito.

Unidade 8

169.

Viloro- quando pudermos ir embora seremos muito felizes.

170.

Tasla- extraordinariamente felizes.

171.

Viloro- mas será que podemos?

172.

Tasla- sim, havemos de poder. Mas agora tenho que ir embora.

173.

Viloro- não vai ainda. Eles ainda não se deram conta Unidade 9

174.

Viloro - Tasla me diz quando escaparmos você me leva?

175.

Tasla- sim te levo.

176.

Viloro- mas ouve Tasla, se você se cansar, eu posso te carregar no colo. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

235


177.

Tasla- como você é amável.

178.

Viloro- e em todas as aldeias por onde passarmos tocarei piano, sei tocar tão bem, assim

todas as pessoas que encontrarmos ficaram contentes. 179.

Tasla- e depois, se quiseres, poderás recitar o poema que escreveste para mim.

180.

Viloro- Sim, claro, o poema também.

181.

Tasla- e dirás a toda gente que o escreveste para mim?

182.

Viloro- claro.

183.

Tasla- ainda serás famoso.

184.

Viloro- e compraremos soldadinhos de chumbo para brincar.

185.

Tasla- sim.

186.

Viloro- sim... E pensos higiênicos para quando estiveres menstruada?

187.

Tasla- sim Viloro.

188.

Viloro- como vamos ser felizes. (silêncio mortal) Unidade 10

189.

Tasla- mas agora tenho que ir embora Viloro.

190.

Viloro- adeus Tasla, não demora. Não esquece o balão.

191.

Tasla- adeus Viloro.

192.

A música espacial invade o espaço. Tasla sai de cena carregando o condenado a reboque.

193.

Durante toda a cena, o condenado esteve muito atento na conversa dos dois. A música

desaparece por completo. Cena 8

Unidade 1

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

236


194.

s imagens movimentam-se. Viloro recomeça a tocar. Toca com muita rapidez e energia.

Unidade 2

195.

Por detrás de Viloro surge Paso. Ele veste óculos e capuz de aviador. Ri descaradamente

de Viloro. As imagens congelam. Viloro vira-se e encara-o.

Unidade 3

196.

O som de aviões em bombardeamento invade a cena. Viloro desespera-se. Paso brinca de

aviãozinho ao redor de Viloro. Ele se diverte muito. Já cansado, Paso vai ao chão no centro do espaço.

Unidade 4

197.

O som cessa. Paso está no chão muito cansado, sua respiração é ofegante. Viloro volta-se

para o teclado.

Unidade 5

198.

Por detrás de Viloro e de Paso, surge uma mão que balança um balão. Paso interessa-se.

O balão desaparece. Riso lascivo de mulher.

Unidade 6 199.

O pé de uma mulher segurando um balão, aparece novamente. Paso interessa- se ainda

mais. O balão desaparece. Riso lascivo. Unidade 7

200.

As pernas de uma mulher, com o balão entre elas, movimenta-se como se estivesse

fazendo sexo. Paso interessa-se muitíssimo. As pernas desaparecem. Riso lascivo. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

237


Unidade 8

201.

Paso está em pé procurando o balão. A prostituta surge por trás de Paso e Viloro, segurando

entre os seios um grande balão azul. Ela dirige-se à Paso, e ele a ela. Encontram-se e fazem um jogo com o balão.

Unidade 9

202.

A melodia nacional em tom de música de parque de diversão invade o espaço. Flashes

imagens. A prostituta foge de Paso. Ele tenta tomar-lhe o balão. Eles brincam como duas crianças. Tasla ri muito. Finalmente, Paso consegue arrancar-lhe o balão e atirá-la para fora de cena. As imagens congelam.

Unidade 10

203.

A música some por completo. Paso brinca com o balão. Durante todo o jogo, Viloro

manteve-se atento e muito aflito. Unidade 11

204.

O braço de uma mulher surge por detrás de Viloro e Paso. Paso larga o balão e vai até

Viloro pega o seu penico e entrega à mulher. Barulho de alguém mijando vindo de trás. Viloro e Paso procuram a origem do barulho. O barulho repete-se mais duas vezes. Paso encontra a sua origem e salta para fora de cena.

Unidade 12

205.

As imagens movimentam-se. O som de alguém fazendo amor, invade a cena

gradativamente, até tomar conta de todo o espaço. Viloro envergonha-se. No gozo final, Paso é atirado de volta à cena, como se tivesse sido empurrado. Riso lascivo de mulher. Paso esborracha-se no chão. As imagens congelam. Viloro vira-se para ele, e ri descaradamente. Paso sai de cena zangadíssimo. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

238


Cena 9

Unidade 1

206.

Viloro pega o balão esquecido por Paso e brinca com ele. Cai, levanta-se e finalmente volta

a tocar. As imagens movimentam-se. Às vezes acerta, às vezes erra.

Unidade 2

207.

Paso, com a prostituta a tiracolo, surge por detrás de Viloro. A luz vermelha toma conta do

espaço. Paso tosse. As imagens congelam. 208.

Paso- continuas a tocar?

209.

Viloro encara-o.

210.

Paso- Então eu disse a você que é proibido tocar!

211.

Viloro encara-o decidido.

212.

Paso- levanta-te!

213.

Viloro encara-o com indignação.

214.

Paso- amarra-o.

215.

A prostituta encaminha-se até Viloro e amarra suas mãos.

216.

Paso- sabes muito bem que não tens o direito de tocar da próxima vez será

pior. As imagens movimentam-se. Ele e a prostituta saem de cena. Ela ri lascivamente. Cena 10

Unidade 1 Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

239


217.

Viloro tenta soltar-se. Não consegue. As imagens congelam. Tenta agora tocar com as mãos

amarradas. Toca desajeitadamente. Faz várias tentativas, até que consegue. Tenta agora caminhar pelo espaço. Cai, levanta-se. Anda de gatas. Está muito contente. Vai até o teclado, apanha o balão e brinca com ele. Diverte-se muitíssimo. As imagens movimentam-se. Volta ao teclado e retorna a tocar.

Cena 11

Unidade 1

218.

A melodia nacional com o tom de festa, vitória, invade o espaço. Viloro toca. Tasla entra em

cena carregando o condenado a reboque. Grande alegria de Viloro quando repara em Tasla. A música cai ao fundo. 219.

O condenado agora, já não tem qualquer amarra que o prenda. Está notadamente mais

vivo e ágil. Ele movimenta-se muitíssimo dentro da gaiola. Está atento a tudo e a todos. As imagens congelam. 220.

Viloro- não vais acreditar.

221.

Tasla- o quê?

222.

Viloro- ouve.

223.

As imagens movimentam-se. Viloro toca com as mãos amarradas com grande

contentamento. As imagens congelam.

Unidade 2

224.

Tasla- você é um sujeito formidável. Fez um progresso espantoso

225.

Viloro- Mesmo com as mãos amarradas.

226.

Tasla- e ainda por cima com as mãos amarradas.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

240


227.

Viloro- Tasla você já se deu conta que eu sou um sujeito espantoso?

228.

Tasla- sim Viloro... Eles te amarraram as mãos?

229.

Viloro- sim. Mas você sabe que eu posso andar me arrastando?

230.

Tasla- verdade?

231.

Viloro- é.

232.

Tasla- você é muito corajoso.

Unidade 3

233.

Viloro- Já acabaram de torturá-lo?

234.

Tasla- Sim, acredito que sim.

235.

Viloro- E cada vez que o torturavam você pensava em mim?

236.

Tasla- Sim Viloro, pensava em você.

237.

Viloro- Pensava em mim como? Não é verdade.

238.

Tasla- é verdade Viloro.

239.

Viloro- você é uma rapariga verdadeiramente inteligente chega mesmo a pensar.

240.

Tasla- bom... Nem por isso.

241.

Viloro- Bateram muito nele?

242.

Tasla- muito, mas cada vez que lhe batiam ele botava a língua para os carrascos.

243.

Viloro- atreveu-se?

244.

Tasla- e não ficou só nisso.

245.

Viloro- tentou fugir também. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

241


246.

Tasla- não. Não chegou a tanto. Não mexeu um dedo durante todo o tempo. Estava

dobrado sobre si mesmo. Embora nunca deixasse de botar a língua para os carrascos. Ouvi mesmo chamar-lhes repugnantes. 247.

Viloro- E eles ouviram?

248.

Tasla- Não, felizmente para ele.

249.

Viloro- é um condenado, não é realmente um santinho.

250.

Tasla- é, isso temos que reconhecer.

251.

Viloro- E a você, ele nunca pôs a língua?

252.

Tasla- não.

253.

Viloro- pois bem, pode-se dizer que tens tido sorte.

254.

Tasla- sim é verdade, desde que o entregaram que ele está sossegado ali dentro.

255.

Viloro- Achas que ele tentaria fugir?

256.

Tasla- Na presença dos carrascos não, mas agora, se pudesse não hesitaria, é um bom

ponto, mas a corda é forte. 257.

Viloro- vais levá-lo agora lá para baixo?

258.

Tasla- Sim, vão matá-lo.

259.

Viloro- e depois ficarás livre.

260.

Tasla- sim, se não houver mais nada para fazer.

261.

Viloro- e virás ver-me?

262.

Tasla- claro Viloro.

Unidade 4

263.

Viloro- sabe Tasla, te arranjei um presente que vai te deixar espantada. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

242


264.

Tasla- eu também te trouxe um presente que vai te deixar admirado.

265.

Viloro- adivinha qual é o meu presente?

266.

Tasla- não sei... Um penico.

267.

Viloro- Não, não, já sabia que ia lhe fazer uma surpresa. É exatamente o contrário. Vê se

adivinha. 268.

Tasla- não consigo.

269.

Viloro- confessa que não é capaz de adivinhar?

270.

Tasla- confesso.

271.

Viloro- pois bem é um balão azul.

272.

Tasla- como você queria que eu adivinhasse isso?

273.

Viloro- vê como te amo... Toma é teu.

274.

Tasla- posso brincar com ele?

275.

Viloro- se quiseres.

276.

Tasla- é formidável.

277.

Viloro- É preciso aprender a fazê-lo saltar bem, para mostrarmos as nossas habilidades

quando passarmos os dois pelas aldeias. 278.

Tasla- como?

279.

Viloro- é muito simples, jogas para o alto e tornas a apanhá-lo, vais ver como é bonito.

280.

Tasla- conseguirei aprender?

281.

Viloro- evidentemente. Você é muito habilidosa. Para você que é até capaz de pensar, isso

não tem dificuldade nenhuma. 282.

Tasla- você me ensina como é. Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

243


283.

Viloro- claro. E para que o número tenha ainda mais sucesso, enquanto jogas o balão, eu

tocarei, sei tocar tão bem. 284.

Tasla- garanto que não consegue adivinhar o que é o meu presente?

285.

Viloro- não consigo... Já sei é um balão azul.

286.

Tasla- não, não é. Já sabia que ia te fazer uma surpresa, é exatamente o contrário. Vê se

adivinha. 287.

Viloro- não consigo.

288.

Tasla- confessa que não é capaz de adivinhar?

289.

Viloro- confesso.

290.

Tasla- pois bem, é um penico.

291.

Viloro- como você queria que eu adivinhasse uma coisa dessas?

292.

Os dois riem muito. De repente calam-se.

Unidade 5

293.

Tasla- Viloro tenho que ir embora. Preciso levar o condenado.

294.

Viloro- não te demores.

295.

Tasla- volto logo.

296.

Viloro- adeus Tasla.

297.

Tasla- adeus Viloro.

298.

A música invade a cena. Tasla sai carregando o condenado a reboque. A música

desaparece por completo. As imagens movimentam-se. Viloro volta a tocar.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

244


Cena 12

Unidade 1

299.

Paso surge por detrás de Viloro e tosse. Viloro não para de tocar. Toca freneticamente e

com certa habilidade. Paso irrita-se muitíssimo. 300.

Paso- levanta-se.

301.

Viloro continua a tocar.

302.

Paso- levanta-se.

303.

Viloro toca como nunca.

304.

Paso- levanta-se.

305.

Paso lança-se sobre Viloro e o assassina pelas costas. As imagens retrocedem como um

flash back. Viloro cai morto sobre o teclado.

Unidade 2

306.

Paso- diga a ela que venha buscar o corpo.

Cena 13

Unidade 1

307.

A melodia nacional com tom fúnebre invade todo o espaço. As imagens congelam.

308.

Tasla entra em cena trazendo a tiracolo um balão. Coloca-o sobre o teclado. Deita o corpo

de Viloro no centro do espaço amorosamente. Pega as partituras que estão sobre o teclado e joga-as para o alto.

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

245


Unidade 2

309.

Sai de cena carregando Paso a tiracolo, Paso reboca Viloro pelos calcanhares. Tasla ri

lascivamente. Imagens de crianças brincando invadem a cena. O som de risos infantis começam a tomar conta do espaço, enquanto o balão sobe aos ares lentamente. 310.

O balão desaparece por completo. As imagens desaparecem. Silêncio.

Cena 14

Unidade 1

311.

A melodia festa invade a cena. Milhões de balões azuis caem sobre a plateia. Cessa a

música. Black’out.

Unidade 2

312.

A música comida dos titãs, invade lenta e gradativamente a cena, até ficar muito grande.

313.

Cessa a música. Silêncio. As luzes acendem-se.......

The end

Coletânea Dramaturgia Encenada | Edward Fão | Cia Teatro Kaos | 2020

246


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.