Priscilo Siaueim
GENOcíOIO DOS CAlÇARAS
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problema do genocídio dos calçaras, ampliado, é o da maioria do povo brasileiro, espoliado, vilipendiado, vitimado pela sanha dos oligarcas que impunemente tripudiam sobre o que resta de esperança nestes brasis. A incompetência administrativa, a venalidade política e a corrupção institucionalizada transformaram o provável "futuro celeiro do mundo", em poucos decênios, no maior e mais insolvável devedor de toda a história da humanidade, com todas as indesejáveis conseqüências que tal fato acarreta: sacrifícios cada vez maiores à população já combalida, carente, miserável, desesperançada, famélica, e principalmente indignada com o "status quo", que a impede ainda de definir o seu próprio rumo. É neste cenário que a atuação de Priscila Siqueira, mais que denúncia, se faz sentir, resgatando ao oprimido, ao humilde, ao inocente os elementares direitos a que faz jus: o de viver, o de se associar, o de se manifestar, o de ir-e-vir e que tais. Verdadeira paladina-guardiã de tais princípios, não arredando pé e fazendo valer de todos os recursos de que dispõe, põe-se à luta com tanta e inabalada convicção que até multinacionais já chegaram a recuar em seus propósitos, dada a contundência de sua atuação. Mais do que prestigiá-la, urge é colaborar com todas as nossas forças nessa sua luta que é, em última instância, a luta de todos os brasileiros. Os Editores
Prefácio de DALMO DALLARI
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Priscila Siqueira
GENOCÍDIO DOS CAlÇARAS Prefácio de DALMO DALLARI
V Edição 1984
Massao Ohno - Ismael Guarnelli/Editores
PREFÁCIO Este livro é a denúncia de um genocídio. Ao mesmo tempo, seguindo a trilha do clássico "Parceiros do Rio Bonito", de Antônio Cândido, é também o registro de uma cultura agonizante. Em termos muito atuais, pode-se dizer ainda que é um retrato fiel da face desumana do desenvolvimento econômico. Além disso tudo, saído da pena de uma jornalista que sempre manteve fidelidade a seu compromisso humanista, este livro é O testemunho sucinto, preciso e corajoso, de uma agressão à humanidade. Essa agressão contínua, sem obstáculos e sem punições .. favoreci da pela degradação dos costumes políticos que atingiu o Brasil nas últimas décadas e apoiada no mito do progresso econômico necessário, que vem sacrificando grande parte da humanidade em favor do enriquecimento de alguns indivíduos. O cenário deste livro é o Litoral Norte do Estado de São Paulo e um trecho do Litoral Sul fluminense. Vivendo há muitos anos na região, e tendo olhos para ver, Priscila Siqueira vem testemunhando e sofrendo a deterioração física e social daquela área. Através de reportagens publicadas nos jornais "O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde" tem procurado denunciar os aspectos mais agudos das práticas antisociais, antiecológicas e até mesmo antibrasileiras que se têm verificado naquela parte do litoral brasileiro. Este livro é uma continuação de seu trabalho de jornalista. A par do caráter de denúncia, este livro de Priscila Siqueira é um importante registro de características e manifestações da cultura calçara, em vias de extinção. A terra e o mar são prolongamentos das comunidades e com ambos o caiçara vive em verdadeira comunhão espiritual, respeitando-os como fontes de vida. Sem nenhuma preocupação com a acumulação de riquezas, o caiçara vive a "boa pobreza", que, longe de ser um estado de privações e desânimo, é a opção pela vida simples, espontânea e alegre. E assim, como fica demonstrado neste livro, caiçara sempre viveu feliz.
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Outro aspecto muito interessante da cultura calçara, registrado por Priscila Siqueira, é a religiosidade, que se manifesta de modo ingênuo e alegre, através de festanças, com muito colorido e muita dança, havendo ainda os últimos sinais da congada, com seus reis e seus guerreiros. Curiosamente, conforme o testemunho da Autora, o rádio de pilha penetrou nesse ambiente e colocou o caiçara em contacto permanente com o resto do mundo, praticamente sem agredir seus valores e tradições. Esse dado é muito interessante, pois revela a possibilidade de divulgação de informações mesmo onde é elevado o número de analfabetos e sem provocar deformações culturais., Mas a vida simples e feliz do caiçara parece destinada a um breve desaparecimento. É o que nos revela este livro-denúncia de Priscila Siqueira. A gente calçara, que por séculos teve o mar corno via de acesso quase única, encontrando nisso um fator de proteção, não conseguiu resistir aos "piratas" vindos da terra. Favorecidos pela proteção dos governos militares que infelicitaram o Brasil nos últimos anos, chegaram os aventureiros de várias espécies. A simulação de um "milagre econômico", que foi uma das muitas imoralidades impostas ao Brasil pelos governos militares, foi pretexto para grandes investimentos públicos e para que pseudo-revolucionários se valessem de informações confidenciais e do poder arbitrário para ganhar dinheiro na esteira desses investimentos. A estrada RioSantos, embora prevista antes desse período, entrou de carnbulhada nesse processo desenvolvimentista. Políticos sem escrúpulos, especuladores imobiliários, empresas multinacionais e pessoas ricas à procura de "paraísos" para recreação descobriram o Litoral Norte paulista e Sul fluminense. Foi o começo do genocídío (morte física), acompanhado de etnocídio (morte cultural) dos caiçaras e de agrupamentos de índios guaranis existentes na região. Com precisão e coragem Priscila Siqueira relata neste livro o que tem sido esse processo, contando "o milagre e o santo", na antiga expressão brasileira, descrevendo agressões e identificando agressores. Desapossamento de terras, ações de jagunços, fechamento de praias e
estradas, poluição, prostituição de meninas, tudo isso faz parte do ritual de chegada da "civilização" a essa região. Este é um livro-testemunho, um grito de alerta e também um repositório de dados para etnólogos, antropólogos e outros estudiosos das sociedades humanas. Se nada for feito para deter a voracidade dos invasores, se não houver ouvidos que ouçam, olhos que vejam e vontade de decidir a favor da pessoa humana, restará o registro de que um dia, numa região de praias, florestas e montanhas, existiu um povo caiçara, companheiro da terra e do mar, simples, ingênuo e feliz.
Da/mo de Abreu Dallari
ÍNDICE 5 13 18 21 26 32
38 42 45
51 55 59
63 69 81
Prefácio Milhões de mil-réis Apenas uma mulher Em paz na terra dos pais Terror multinacional Se a pesca fracassar Antigos piratas e nova pirataria Vomitando sangue Um Brasil com mais justiça O caso da pranteada velhinha Subindo o morro do abrigo O rio que está mais escuro De coronel para coronel Histórica vitória Documentação fotográfica
As epígrafes dos capítulos deste livro foram retiradas da transcrição das congadas de São Francisco, município de São Sebastião, e Caraguatatuba, publicada em O Folclore do Litoral Norte de São Paulo, de Rossini Tavares de Lima e outros (Rio, 1981; MEC-SEAC-FUNARTE, Instituto Nacional do Folclore, Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e Universidade de Taubaté). Segundo o apresentador do livro, Bráulio do Nascimento, trata-se de uma pesquisa realizada sob a coordenação do professor Rossini Tavares de Lima em 1959. Em 1968, foi lançado um volume sobre aquelas duas congadas, e a "carência de recursos vinha impedindo a publicação do restante do trabalho". Então, em 1981 foi possível "a edição completa, num único volume, incluindo-se o primeiro, já esgotado". Mas as congadas de São Francisco e Caraguatatuba já não existem mais, morreram, são coisas do passado.
Conflitos de terras, jagunços armados, mortes e mentiras encomendadas por um preço estipulado como mercadoria no supermercado. Estamos acostumados a pensar que isso tudo não passa de uma realidade longínqua, no Araguaia, em Rondônia, no Acre, talvez. Nunca na zona rural do município onde moramos, aqui, no Sul. O que presenciei ao longo de vinte anos de moradia no litoral norte paulista e, principalmente, nos cinco anos de trabalho como repórter regional de O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, é uma realidade completamente diferente daquela que à primeira vez possamos imaginar. Jagunços são contratados, como atestam muitos depoimentos colhidos em delegacias de polícia do litoral norte paulista e sul fluminense e muita gente posta fora de suas terras à força. A marginalização social, há poucos anos atrás ausente nesta região, é uma espécie de sombra dos que aqui moram ou vêm veranear. E muitas vezes, sob o nosso olhar cúmplice. Priscila Siqueira
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MILHÕES DE MIL-RÉIS Soberano Rei de Congo, Eu desejava saber no nome Desses teus queridos fidalgos Para trazer na memória Deste Príncipe exaltado O secretário
Os faróis do trator mais pareciam os olhos de Boitatá. As crianças, que nunca tinham visto coisa igual, se encolheram junto à saia das mães, que também olhavam o monstro assustadas. Sob o impacto da pesada máquina, troncos de jequitibás, perobas e massarandubas centenárias iam tombando um a um. Em poucas horas acontecia o que pareceu o prenúncio do fim do mundo para os caiçaraso A ocupação secular de gerações não destruíra o que o loteamento ou a estrada conseguiam em poucas horas. E o caiçara, que vivera isolado, com sua economia de consumo, e com seus costumes e valores próprios, viu-se de repente inserido numa outra sociedade, sem saber o que significava e sem estar preparado para ela. Descendente de portugueses, índios e negros, mas também da mestiçagem ao longo dos anos de presença de holandeses, franceses e espanhóis que surgiam por estas costas, o caboclo do litoral é (ou era) um homem ajustado à natureza. A região em que vive foi uma das primeiras a ser colonizada, sendo famosa em nossos livros escolares a saga dos tupi-guarani que aqui viviam. Destroçadas, o que restou dessas nações se repete em seus descendentes. Para muitos antropólogos o caiçara é um povo em extinção. 13
I o porque, se no passado o capitalismo chegou a seinteressar por sua mão de obra farta e barata, hoje o qUi:' lhe cobiça são as terras valorizadas ao extremo, principalmente depois da abertura da rodovia Rio-Santos. E sem a terra, que lhe garante acesso ao mar, o caiçara não pode sobreviver. Na terra à beira-mar, o caiçara sobrevive com o produto da pesca, sua principal fonte de alimentação. Para ele, o oceano é tão essencial quanto o ar que respira. Ao lado do "peixe de cada dia", a banana, o feijão, o milho, a cana e a mandioca, matéria prima de uma excelente farinha. E com tudo isso, fortes e vivas manifestações culturais, como a congada em honra de São Benedito, o reísado, a Folia do Divino. A cozinha caiçara é cheia de segredos. O "azul marinho" - prato típico da região, na base do peixe e da banana verde, que tem este nome pela intensa cor azulada que adquire, não dá para ser feito apenas com uma receita culinária. É preciso" consertar" o peixe de véspera, saber o ponto exato da banana - nem verde, nem madura - e "perceber" a hora de se colocar a água. Quando o "azulmarinho" está pronto, o "bentrecha" - parte do peixe situada logo após sua cabeça na altura das nadadeiras - (o ombro do peixe) é a mais disputada na mesa caiçara. Os "causes", as "lendas", os "pasquins", povoam sua -cultura: o mundo caiçara é mágico e lá tudo pode acontecer _ espíritos se confundem com a realidade, a poesia se infiltra nas histórias de amor mal sucedidas - como na lenda dos dois namorados do Pontal da Cruz, em São Sebastião - ou o bom humor e a sátira registrando os fatos ocorridos no cotidiano deste povo, como os "pasquins" de Ilhabela - verdadeiros jornais falados, em versos - muitos deles recolhidos pela saudosa professora Gioconda Mussolini. Até os primeiros anos da década de 50, a terra onde moravam esses caiçaras tinha pouca valia. Daí eles vive. rem em paz, praticamente isolados do resto do mundo. Há quem compare o litoral entre as cidades do Rio de Janeiro e 14
Santos, até àquela época, com o "vazio econômico" da Amazônia de·antes da era Médici. E "vazio econômico" é o isolamento frente ao processo capitalista desenrolado no restante do país. Mas na verdade, nem sempre os habitantes deste litoral estiveram isolados da produção da riqueza brasileira. Região antiga na colonização portuguesa, Paraty, por exemplo, chegou a ser 'um porto famoso na exportação oficial do ouro das Geraes para a Europa. Seus casarões testemunham o fausto que se estende do século 19, através da economia do ouro, cana e café. O mesmo sucedia com outros portos como Paraty-Mírim e Ubatuba, no litoral paulista. Mas aqui já era o ouro contrabandeado. Rareando o ouro das Geraes, o café, o "ouro verde", vem tomar o seu lugar de importância econômica para o País, especialmente nesta região litorânea. Interiorizando-se, a cultura do café fez entrar em declínio a economia do litoral. O município de Ilhabela, formado pelas ilhas de São Sebastião, Búzios, Vitória e outras menores, chegou a possuir 33 engenhos de cana no final do século passado. A inauguração da estrada de ferro Santos-Iundiai iria ser outro fator a determinar a morte econômica de grande parte do litoral paulista. A estagnação social chegou a ser tanta que, em 1923, o então presigente do Estado de São Paulo, Wáshington Luiz, visitando o litoral norte paulista a bordo de um navio do Lloyd Brasileiro, propõe à população dessa região que se mude em massa para o Interior do Estado, a exemplo dos "irmãos nordestinos" que imigravam e eram recebidos "de braços abertos no planalto paulista". Com o desinteresse do capital, o caiçara pôde sobreviver em suas posses centenárias. Os seus títulos muitas vezes datam do tempo das sesmarias e da doação de terra às ordens religiosas, como é o caso da ilha do Montão de Trigo, em São Sebastião, cujos títulos pertenciam aos padres carmelitas. 15
Na década de 60, vários fatores vêm tirar o caiçara de seu isolamento. As vias de acesso ao litoral norte paulista são melhoradas, a Petrobrás se instala na região (atraindo pessoas de outras localidades em busca de novos campos de trabalho) e o turismo na Baixada Santista inicia seu processo de saturação, fazendo com que pessoas de maior poder aquisitivo busquem outras áreas de lazer. Além disso, em 1965, um ano após a "Revolução" de 64, a Rede Globo de Televisão começa a penetrar no litoral, invadindo recantos distantes, difundindo outros padrões de comportamento e provocando exigências nunca antes imaginadas. Mas a gota d'água que determinou o interesse dos grupos econômicos de fora foi o começo da construção da BR 101, a rodovia Rio-Santos. Seu trajeto havia sido um "segredo de Estado", a fim de-que fosse evitada a especulação imobiliária nesta área litorânea. Um segredo de polichinelo, porque quando foi inaugurado o primeiro e único trecho da estrada, entre Ubatuba e Rio, em 1974, os títulos das terras por onde a estrada passava já eram, na sua grande maioria, de propriedade do senhor Carlos Lacerda, ex-governador do Rio e "revolucionário" de primeira hora. A partir daí o caiçara não tem mais sossego. E na maioria das vezes é enganado em transações comerciais que não compreende, acostumado à troca direta, fora do mercado, sem saber o valor real do dinheiro, vendendo suas posses por "milhões de mil-reis". Mas quase sempre ele as vende por se sentir enxotado, indefeso diante de um poder que não tem como enfrentar. Há histórias tragicômicas que ilustram o fascínio que a cidade, com seu consumo, exerceu sobre muitos desses caiçaras. Em Ilhabela, se tornou lenda o caso· de um posseiro que vendeu suas terras "por 80 mil réis", comprou um carro, mas como não soubesse dirigir, teve de contratar um chofer. O dinheiro acabou, o motorista foi embora, o carro vendido por uma bagatela e o homem, perplexo, no meio da rua sem saber onde morar. 16
Outros casos são apenas dramáticos. Em 1979, o Juiz de Direito da comarca de São Sebastião, que também éjuiz de Menores, Manoel de Lima [únior, denunciava em pleno Ano Internacional da Criança, que a idade média das prostitutas desta cidade variava de 12 a 16 anos. Muitas dessas "damas da noite" não tinham tido sua primeira menstruação e grande parte das adolescentes e crianças viviam antes com seus familiares nas praias da região. Agora, elas não tinham mais onde morar pois as praias não mais lhe pertenciam. Nesses vinte anos, os caiçaras que conseguiram sobreviver em suas terras descobriram um fenômeno novo em sua sociedade: os que foram para a cidade receberam dela somente o pior, a favela, a periferia infecta, a marginalização. E o preconceito que o "homem da cidade", o "branco civilizado" tem em relação a eles. Aurélio Buarque de Hollanda, no seu Dicionário da Língua Portuguesa, registra o consenso capitalista sobre o caiçara. Para quem só vê o lucro e a ganância como a grande finalidade da vida, o caiçara com sua maneira calma de ser, com sua mística e sua visão do mundo, é mesmo "vadio, preguiçoso e indolente". Essa experiência amarga e sofrida lhes ensinou uma lição: a de que é preciso se mobilizar para enfrentar não somente os grupos econômicos nacionais interessados em suas terras, mas até mesmo os podesosos holdings internacionais que vêem neste litoral o paraíso do lucro. E nessa luta dos caiçaras pela posse da terra e manutenção de sua identidade cultural, o apoio que outros setores da sociedade ,possa lhes dar é de fundamental importância. Pois o que aconteceu com os indígenas, os primeiros posseiros nestas terras brasileiras, se repete com os caiçaras: genocídio.
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APENAS UMA MULHER Vai correndo Secretário Meu pai rei avisar, Que a frente de nossa terra Tão quereno tomar. Príncipe
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Eulália Lara de Oliveira, caiçara de Toque-To ue Pequeno, na costa sul de São Sebastião, não gosta e alar no assunto. Afinal, como ela mesmo diz, como lutar contra gente tão poderosa como eles? "Eu sou só uma mulher", ela mesma responde. Eulália tem hoje um pequeno bar nessa praia, mas não mais em frente ao mar, onde sua família sempre morou. Eulália, nos anos de 78 e 79, foi uma das poucas pessoas moradoras em T oque- Toque Pequeno a enfrentar os proprietários da construtora Albuquerque Takaoka, que transformou a praia num grande empreendimento imobiliário e conseguiu, junto ao governo Maluf, fazer chegar até ele o asfalto da estrada São Sebastião-Bertioga. Eulália tinha então o barzinho em frente ao mar. Mãe de três meninas, o marido trabalhador do DER com salário mínimo, o fator fundamental da sobrevivência da família era mesmo o barzinho. Um bar que estava justamente no terreno mais importante para os planos da AlbuquerqueTakaoka. Grande parte dos caiçaras já tinha saído de Toque- Toque, ou cedido a frente para a praia a turistas que construíram mansões. Eulália e o velho Silvestre Marcelino de Matos seriam os últimos a sair. Para que essa corajosa mulher desistisse de sua luta, mesmo grávida foi muitas vezes ameaçada pelos funcionários da empresa. 18
Com Eulália foi usado um recurso muito comum neste litoral de São Paulo: as pressões indiretas que fazem com que o caiçara seja obrigado a permutar ou vender sua posse. Tudo aparentemente muito limpo, fazendo com que autoridades afirmem não existirem mais problemas de terra na área. Um pouco diferente do que acontece no litoral sul fluminense: lá, o uso da violência é uma constante, às vezes acontecendo aberrações jurídicas inexplicáveis. O juiz de direito de Paraty, por exemplo, expulsou famílias de caiçaras da praia de Trindade. Elas já estavam estabelecidas em terreno com liminar de posse concedida a um caiçara que acolhera sus parentes e amigos. Mas o juiz se sentiu autorizado a expulsá-Ias da terra do outro. Nessas ocasiões não vale o sagrado direito da propriedade privada. Em São Paulo, a pressão é mais sutil - não há expulsões, nem contingentes policiais que possam atrair a imprensa. Isto certamente daria chance à formação de uma consciência crítica da situação por parte tanto do caiçara violentado em seus direitos como da sociedade civil. Os caminhos para livrar T oque- Toque da presença de seus tradicionais habitantes foram bastante sinuosos, com coincidências no mínimo curiosas, como o fato de o advo'gado na defesa dos interesses da empresa na área ser o mesmo que devia defender os interesses do município, já que é também funcionário da prefeitura de São Sebastião. Ironia: São Sebastião é considerado área de segurança nacional desde 1967, e o seu prefeito é escolhido e nomeado diretamente pelo Presidente da República. Para que Eulália cedesse à proposta de troca de sua área em frente ao mar por outra no interior da praia, o administrador da AlbuquerqueTakaoka em ToqueToque Pequeno, um sargento reformado da Marinha do Brasil, conhecido na praia como Capitão, abriu também outro bar, de propriedade da empresa. Podendo apresentar preços muito mais baixos que os oferecidos por Eulália - já que esses bares funcionam também como pequenos 19
armazéns -, Capitão também proibiu que funcionários da empresa se abastecessem em qualquer outro estabelecimento que não o seu. Sem outra alternativa, Eulália quase fecha o bar, acabando por aceitar a troca. Hoje, o bar de Eulália não está mais em frente ao mar, e ela nem se preocupa em recorrer ao SPU-Serviço do Patrimônio da União reivindicando a legalização das terras que foram de seus avós. E T oque- Toque Pequeno mais se assemelha a uma cidade fortífícada da Idade Média, cercada por altos muros de pedra que protegem valiosíssimas propriedades numa praia em que o caiçara não tem mais vez.
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EM PAZ NA TERRA DOS PAIS Embaixador,
eu não queria assim,
Eu não queria que este reino Fosse todo esbandalhado
O Cacique do Embaixador
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Eles foram os primeiros moradores deste litoral. Nem por isso estão em segurança. As terras da comunidade dos Índios guarani do Rio Silveiras na Barra rio Una, em São Sebastião, desde 1981 se tornaram um cenário de disputa , eiitré" grandes grupos econômicos e seus moradores. E5-1 tes, cerca de 70, aí cultivam banana e mandioca, além de retirarem das matas da Serra do Mar o material para a confecção de seu artesanato, flechas, arcos, machadinhas e J cestos, vendidos em toda a região. No local onde moram esses indígenas, numa .9!!!).inhada de duas horas mata a dentro desde o núcleo da Barra d.9 Una, está prevista a construção de um conjunto habitacional de cerca de cinco mil casas de veraneio, conforme projeto da empresa Sapor Construtora, com sede na capital de São Paulo. Há cerca de 40 anos o capitão da Polícia Militar Homero dos Santos luta na Justiça com Joaquim Feliciano Neto, na disputa pelo título de posse dessas terras e de sua redondeza, área que nenhum dos dois chegou jamais a ocupar. Quando a Justiça deu ganho de causa a Joaquim Feliciano Neto, os guarani foram intimados a abandonar o local sob a alegação de que teriam ido habitar aquelas terras a convite do capitão Homero dos 21
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Santos, ainda na década de 60. Além disso, o comerciante Armando Peralta, dono de uma rede de supermercados na Baixada Santista, também reivindica parte das terras dos guarani, para estabelecer aí um projeto agroindustrial. Conforme o advogado Marco A tônio Barbosa, do Centro de Trabalho Indigenista - CTI, ue assessora a comunidade do Rio Silveiras, a própria Constituição brasileira é muito clara a respeito da posse de terras pelos índios, no seu artigo 198: "As terras habitadas pelos índios são inalienáveis, ficando declarada a nulidade de qualquer ato jurídico que incida sobre território indígena". Mas é Marco Antônio mesmo quem comenta: "o que presenciamos nos territórios ocupados por indígenas em todo o País é que normalmente esse artigo da Carta Magna brasileira se tornou uma brincadeirinha de crianças". Para sustar a lfa"Ção de expulsão dos guarani, Marco Antônio e sua esposa Carla Antunha Barbosa, além do jurista Dalmo de Abreu Dallari, entraram na Justiça com uma ação de embargo de terceiro possuidor, tentando suspender a ação judicial anterior. "Os fatos ocorridos com a comunidade indígena do Rio Silveiras já se tornaram jurisprudência em nosso país", afirma Dalmo de Abreu Dallari. Foi a primeira vez em nossa história que os próprios índios se fizeram representar na Justiça, reivindicando seus direitos, sem interrnediações da Funai, tendo conseguido a liminar de posse de suas terras. Esse exemplo foi seguido por outras comunidades indígenas do Rio Grande do Sul e do Amazonas. A manutenção das terras da comunidade guarani do Rio Silveiras, eerca de 300 alqueires, é de vital importância para as nove comunidades guarani do Estado de São Paulo. Isso porque essas comunidades indígenas do litoral e da Capital mantêm entre si estreitas relações sociais e econômicas. A ameaça que paira sobre uma comunidade se estende sobre todas as outras. Maria Inês Ladeira, educadora do CTI, que desde 1978 trabalha com os índios 22
guarani do aldeamento da barragem Billings, afirma que os guarani são os únicos índios que voltaram ao litoral, ao contrário dos outros, que fugiram ao contato com os branco? ernhrenhando-se para oeste do País. Os guarani moram sempre perto das comunidades brancas mas em locais de difícil acesso, maneira com a qual 'pretendem proteger sua própria comunidade e sua identidade cultural. De acordo com Maria Inês, as várias comunidades guarani interdependem economicamente, pois a lavoura, a caça, a pesca e a coleta de material para seu artesanato são atividades feitas em conjunto. "as matas da Serra-do Mar abastecem de material para as cestas e colares não só os índios do litoral mas também os da Capital". Do ponto de vista social, essas comunidades são também dependentes umas das outras, já que todas mantêm relações de parentesco e os casamentos são sempre realizados entre elementos dessas comunidades. Os advogados da CTI têm em suas mãos documentos que historiam migrações guarani para o litoral de São Paulo já no início do século XIX..Os autores desses tex~os citam migrações muito anteriores a essa época. Alem disso, os tupinambás sempre ocuparam o território imemorial dos indígenas. Os mais velhos do Rio Silveiras afirmam que na década de 50, quando chegaram a esta comunidade, ela já era habitada por outros indígenas. Para Marco Antônio Barbosa, "é só estudarmos um pouco de história do nosso País para sabermos que esse litoral foi densamente povoado por indígenas. Agora, só falta provarem que quem descobriu o Brasil foram os índios invasores e que os brancos, estes sim, sempre viveram aqui". O cacique Samuel Bento dos Santos, líder da comunidade do Rio silveiras, afirma que "sua gente" só quer viver em paz nas terras de seus pais. É aí, nessa comunidade, que se encontra um dos únicos cemitérios guarani no Estado de São Paulo, onde estão enterrados três caciques, um fato 23
.:Iegrande significado para toda a nação guarani. Samuel lembra os tempos do cacique Gumercindo: "Naquela época nós tínhamos mais de mil alqueires e levávamos mais de um dia para percorrer de urna ponta a outra as terras. Quando esse nosso chefe morreu, roubaram urna parte do nosso território e hoje só nos restam 300 alqueires de mata. O que sobrou nós não vamos perder. Se nos obrigarem a sair daqui, nós nos matamos, para mostrar ao mundo todo o que o branco faz com o seu irmão índio". Os guarani da comunidade do Rio Silveiras também não querem a intervenção da Funai em seu aldeamento, porque a transformaria em reserva indígena: "Índio da Funai é corno prisioneiro. Os guarani de Peruíbe passam fome, comendo banana com café. Eles não têm liberdade de receberem seus próprios amigos. É pior do que bicho enjaulado. Aqui somos livres e as crianças são fortes e bonitas". Por outro lado, as promessas feitas aos índios pelos capitalistas interessados na área, no final de 82, de dar em troca do pedaço de terra dos guarani três casas de bloquete mais 500 mil cruzeiros, "não resolve o problema", segundo Maria Inês Ladeira. Isso porque a divisão de terra corno é .feita para o posseiro não funciona igualmente para o índio. O indígena vive em contato estreito com a natureza, que lhe é vital. Daí a configuração de posse por eles realizada ter de ser entendida de forma diferente daquela feita pelo branco: "o índio mantém com a terra um relacionamento religioso e sagrado, que demonstra no respeito e conservação da mata onde vive e da natureza que o cerca. O índio não devasta, preservando a área em que habita e deixando sinais de ocupação diferentes dos nossos". Para Maria Inês, "se quisermos que a população indígena aumente, é necessário que sua terra seja mantida, pois o fato de serem urna população flutuante - característica guarani - não significa que não seja urna população estável. O sertão do Rio Silveiras é, sem dúvida, território guarani". 24 .
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A grande reivindicação dos guarani do Rio Silveiras e do CTI é a imediata demarcação de suas terras. Este pedido foi feito ao Governo do Estado através da Secretaria do Interior, que poderia usar os recursos da Sudelpa nessa demarcação, já que ela conta agora com um grupo especial de trabalho para a resolução dos problemas de terras. Problemas que existem em todo o litoral paulista. Já no dia 19 de abril de 83, o secretário do Interior, Chopin T avares de Lima, recebeu um dossiê com o histórico da comunidade guarani do Rio Silveiras. Nele se reivindicou a demarcação das terras, seguida de seu registro no SPU corno terras indígenas. "Afinal, afirma Marco Antônio Barbosa, a Funai alegou, no início de 83, falta de verbas para poder demarcar todas as terras indígenas brasileiras. Mas, para qualquer ação do governo estadual é imprescindível que sejam respeitados os direitos dos guarani decidirem sobre seu futuro. Além disso, a. relação entre o Estado e a comunidade guarani deve ser interrnediada por profissionais com formação indigenista e com conhecimento da realidade guarani. Sem isso, o Estado estará agindo corno sempre fizeram os Órgãos oficiais de proteção ao índio - SPI e a Funai - isto é, de forma autoritária e sem respeito aos interesses e desejos dos índios". Enquanto tal demarcação não ocorrer, os guarani serão fáceis vítimas de agressões. Pois agressão é a palavra para qualificar a atividade de Armando Peralta, que de posse de urna autorização concedida pelo ex-governador José Maria Marin, fez com que a empresa Palmares Indústria, Comércio' e Exportação Ltda. invadisse a área dos guarani para retirar todo o palmito existente. Isso em julho de 83. Apesar do Parque Estadual da Serra do Mar e da decisão judicial. E depois do cacique Samuel ter dito, num ato público realizado em março deste ano, na Paróquia de São Sebastião, em favor da comunidade do Rio Silveiras, que "quando os guarani acabarem no Estado de São Paulo, o Brasil todo já terá acabado". 2S
TERROR MUL TINACIONAL Me seja possive, príncipe, Eu não te vejo falá, Deixastes um Secretário Tomar o vosso lugá. O Rei
As 40 famílias de caiçaras que vivem em São Gon alinho aprenderam a conviver com o medo. Desde há muito que jagunços armados, montados a cavalo, patrulham esta praia em nome da empresa S.A. White Martins que, entre outras coisas; mantém o monopólio de oxigênio no País. Posseiros há comprovadamente mais de cem anos, os caiçaras de São Gonçalinho, praia do lito ai sul flu ine~se, deveriam estar tranqüilos em suas terras. No cartório "deParaty existe um inventário datado de 1845 que registra os bens do capitão-rnor Antonio José Pereira da Cruz e de sua mulher, Ana Maria Lapa, provando que"as terras do lugar chamado São Gonçalinho foram lançadas à Fazenda Nacional pela quantia de Hum conto quatrocentos dez mil e quinhentos réis, pelo pagamento dos impostos atrazados" desse capitão. Esse documento demonstra que a posse dos caiçaras está situada em cima de terrenos da União. Apesar disso, na ação de reintegração de posse movida pela White Martins, a empresa se diz legítima senhora e possuidora da fazenda São Gonçalinho, "inclusive dos acréscimos da Marinha". Seu gerente, Júlio Cesar Cassano, entrevistado, chegou a afirmar:" estamos recuperando
o que é nosso; queremos apenas que eles (os posseiros) saiam do local porque temos outros planos para a região". Os caiçaras acreditam que foi o fato de a White Martins ter uma sede de fazenda na praia vizinha de São Gonçalo que a levou a reivindicar as posses da praia de São Gonçalinho. Arlindo de Souza Sobrinho, 75 anos de idade, nascido e criado nesta praia, está desolado: "A companhia proibiu todos os que moram aqui de cuidar de suas roças. Todos os dias, dois capatazes da fazenda passam a cavalo pela pJ;.aiae se nos vêem fazer uma roçado ou consertar nossas casas, ameaçam a gente. Como podemos sobreviver na terra se não podemos cuidar de nossas plantações?" Nas declarações que Júlio Cesar Cassano faz à imprensa, os caiçaras aparecem como pessoas que não. têm "amor à terra, porque a maioria, ao contrário do que afirmam, não nasceu no local e sabe perfeitamente viver de outra coisa". Não é o que diz Orivaldino Geraldo da Silva, de 88 anos, o mais velho morador em São Conçalinho. Sua certidão de nascimento prova que ele nasceu nesta praia, assim como todos os que lutam para aí permanecerem. Para os caiçaras, a desdita começou com a construção da "estrada (BR 101), que valorizou as terras e atiçou a ganância dos homens". São Gonçalinho fica na margem da Rio-Santos, à altura do quilômetro 154, a 32 quilômetros do centro urbano de Paraty. Jair da Silva, da antiga diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paraty e do PDS local- do qual foi presidente - é natural de São Gonçalinho e aí foi criado: "Meus pais contavam que a White Martins comprou uma 'sorte' de terras em São Gonçalo e botou aí um armazém. Nessa época muito caiçara trocou suas terras por um pedaço de fumo ou um pouco de querosene. A empresa tirava madeira deste litoral para fazer alcatrão. Mais tarde, ela pôs tanto boi nas plantações que a terra chegou a virar areia". Num período em que a fazenda São
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Gonçalo foi desativada, os caiçaras que lá moravam conseguiram recuperar seus roçados e as condições de vida começaram a melhorar, apesar da grande distância da cidade: "A gente andava um dia inteiro para chegar a Paraty e lá trocar a farinha de mandioca ou a banana e o peixe salgado por alguma coisa que precisássemos". Para Jair da Silva, com a construção da Rio-Santos "o negócio engrossou: a empresa contratou um policial reformado da PM carioca, entre os anos de 1972 e 1973, que bateu e desrespeitou muita gente, até que acabou matando dois posseiros, Amâncio Bonifácio da Cruz e o filho dele, Vitório da Cruz". A empresa começou então a chamar os caiçaras para fazer um "acordo" com eles, "dando o que bem entendia pelas terras". Jair afirma que a "White Martins já destruiu 50 casas de posseiros para nada de útil fazer com a terra - só guardá-Ia para especulação imobiliária". É ainda este membro do PDS de Paraty que assegura: "A titulação registrada em cartório pela White Martins é de 2.500 metros quadrados, e no entanto reivindica mais do dobro do que legalmente possui". É espantoso o que a White Martins consegue. Clarice Maria da Conceição é uma velha caiçara, mãe de muitos filhos, nascida e criada em sua posse de São Gonçalinho. Para sua surpresa, em meados de 83 recebeu uma intimação do Juiz de Direito de Paraty pondo-a a par da ação de despejo - "rito sumaríssimo" - que a White Martins movia contra ela. Alegação da empresa: existe entre ambas um contrato de arrendamento rural. E na ação judicial foi mesmo anexado um contrato de arrendamento que se destinava ao exercício de exploração agrícola ou agro-industrial. Acontece que Clarice não sabe assinar nem mesmo o seu nome - "e eu não botei o dedão em papel nenhum, não". O advogado que defende Clarice, Jarbas Macedo de Camargo Penteado, do escritório de Sobral Pinto, desde 1976 vem acompanhando a luta dos caiçaras deste litoral 28
fluminense. O primeiro contato que [arbas ,teve com os posseiros àe Paraty foi na defesa dos trindadeiros ,contra as pretensões- do conglomerado multinacional Brascan. que pretendia fazer de Trindade um paraíso do turismo internacional. Os caíçaras, evidentemente, estavam atrapalhando os planos do Brascan. [arbas atua também através da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, e tem hoje o apoio do Instituto Histórico e Artístico da Prefeitura de Paraty e da nova diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais deste município, eleita em feveretro de 1983. Examinando o contrato apresentado pela White Martins, [arbas descobriu que a área arrendada e nele descrita é de seis metros quadrados, ou seja, medindo dois por três metros, exatamente onde se localiza o casebre de Clarice. E mais: o contrato de arrendamento foi assinado a ro~o, em 1975, por uma professora chamada Leci Cuedes, que na época trabalhava em São Gonçalinho. Na Justiça, Leci declarou que "não se lembrava da área de arrendamento no momento em que assinou o contrato, nem o total da área arrendada, além de não se lembrar se dona Clarice colocou ou não sobre o contrato suas impressões digitais". Na defesa da caiçara, Jarbas sustentou que o próprio Sistema Nacional de Trabalho Rural conceitua o imóvel rural, devendo o mesmo possuir uma área mínima de dois hectares, ou seja, dez mil metros quadrados. Jarbas afirma que muitas irregularidades dessa ação judicial exemplificam os meios usados pela White Martins em São Conçalinho: "Como pode ser colhida a pretensão da empresa se tal contrato fere toda a conscientização do que se entende por arrendamento? Além disso, acresce o fato de Dona Clarice não ter assinado nem colocado suas impressões digitais, muito menos autorizado a professora a assinar o documento a rogo. Mesmo porque, neste caso, como entendem renomados tratadistas do Direito ivil, deve ser efetuado um contrato por instrumento públi O para que o Oficial de Cartório possa verificar se as p rt estão manifestando sua vontade livremente". 2
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Como disse o repórter Edilson Martins numa entrevista com [arbas, "no dia que este país pertencer ao seu povo, esta historinha haverá de ser narrada nas escolas públicas como testemunha de um Brasil obscurantista e feudal". Um obscurantismo e feudalismo que podem também ser reproduzidos na história do relacionamento do advogado Antonio Francisco Maia e os caiçaras de São Gonçalinho. Esse advogado detém a maiona das ações de defesa dos caiçaras, levadas até eles por Jair da Silva, que é filho de São Gonçalinho, ex-presidente do sindicato dos trabalhadores rurais, ex-presidente do PDS de Paraty e membro da igreja evangélica Brasil para Cristo, da qual a maioria dos moradores desta praia faz parte. O advogado Antonio F. Maia também já foi advogado do sindicato dos trabalhadores rurais quando Jair era o presidente. Coincidências? Tanto Maia como seu colega Alírio Campos também atuaram junto aos caiçaras da praia de Trindade, por interferência de Jair da Silva, quando as ameaças de expulsão dos posseiros começaram a ser feitas pela multinacional Adela. Segundo os trindadeiros, os advogados prometiam iniciar o processo de usucapião e para tanto conseguiram as procurações dos caiçaras. Mais tarde o discurso mudou: Campos e Maia aconselhavam os trindadeiros a venderem suas terras, "pois contra multinacional nada se pode fazer". Além disso, os advogados afirmavam que se os posseiros recusassem a oferta da Adela, "acabariam ficando sem nada". Em São Gonçalinho a história se repete. Conforme o contrato firmado entre Maia e os posseiros (muitos deles analfabetos e crentes nas palavras do "irmão de fé"), o advogado deverá ficar com 20% do produto da venda de suas posses, caso vença a ação judicial. O que Maia recomenda aos caiçaras de São Gonçalinho é que reivindiquem um preço maior por suas posses, o que, evidentemente, lhe trará maior lucro. Mas, com nenhum caiçara Maia 30
chegou a falar da possibilidade de permanecer em sua terra, apesar de ter em mãos o documento que prova que o título desta praia é da União. Atualmente, Maia trabalha no IBDF, onde conseguiu financiamento a fundo perdido para a Fazenda São Gonçalo, destinado à plantação de eucalíptos nesta praia de propriedade da White Martins S.A. A ação desenvolvida pela Sociedade de Defesa do Litoral, do Instituto Histórico da Prefeitura de Paraty empenhado na preservação da cultura caiçara - e pela Pastoral da Terra da diocese de Itaquaí, da qualParaty faz parte, fez com que os moradores de São Gonçalinho pretendessem mudar de advogado. E àqueles que o procuram, Maia afirma que só entregará os documentos e a procuração mediante a quantia de dois milhões de cruzeiros.
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• SE A PESCA FRACASSAR E se padeço de boa páiz, A terra da cristandade; Assim mesmo semo em páiz Benedito seja louvado, O Primeiro Fidalgo
O céu está ainda cheio de estrelas e Malaquias Souza Santos, caiçara de 30 anos, já se dirige para o mar. Não deu ainda três horas no relógio de pulso de um de seus cunhados que o esperam para juntos empurrarem a canoa para fora da barra. Atalaia é a maior canoa de todo o Bonete, orgulho de Malaquias, seu proprietário. Para comprá-Ia, com todas as redes com que trabalha, ele precisou mudar-se para Santos com a mulher e os dois filhos "já nascidos naquela época". Naquela cidade, Malaquias trabalhou durante quatro anos como empregado ,no barco de outros. Com o dinheiro que juntou, voltou para o lugar onde nasceu, mandou construir nesta praia mesmo a sua canoa e se tornou um dos maiores pescadores de Bonete. Mas nem sempre Malaquias pode sair para o mar. Existe no lugar um provérbio que diz que "em mês de abril não se pode sair", que traduz a insegurança da população de Bonete - ilha situada do lado do.mar aberto da ilha de São Sebastião, municí ia de Ilhabela -- em relação aos meses fri~ do ano. Quando o~?fecha" nesta praia, a maré sobe até as primeiras casas da vila e ninguém se arrisca a sair do lugar. E.é com orgulho que os pescadores 32
de Bonete afirmam" que nunca nenhum deles pareceu no oceano. O mar, companheiro de trabalho, elemento fundamental na vida de toda a comunidade, é respeitado e velho conhecido de todos. Com um dia de antecedência o caiçara sabe dizer se o tempo vai "virar" ou permanecerá "firme". Esta vila é uma das poucas comunidades ~scadores remanescentes no. itora au ista. A população que ficou - localizando-se' entre a frente da praia vendida a turistas e as terras da Serra do Mar, propriedades de grandes plantadores de coco, como Adhemar de Barros Filho - tem uma vida dura mas descontraída. Os que trabalham no coco estão de volta para suas casas no final da manhã. Ademar Alvez de Souza, 48 anos de idade, 11 filhos, é um exemplo: "Além do trabalho na fazenda, ainda planto minha roça-e pesco para a família. O que sobra do peixe, vendo para o Malaquias". A viola, o violão, a música caipira estão sempre presentes na vida destes caiçaras. À noite, sob as estrelas, costuma sair para ():.terreiro cantando e compondo. O futebol na praia, no. fim da tarde, também é sagrado. Mas tanto ele como a pesca são atividades tipicamente masculinas - "os homens se distraem com o futebol, as mulheres .com a reza na igreja", afirma uma moça casadoura. Aqui existem três igrejas: a capela católica de Santa Verônica, a igreja Brasil para Cristo e a Assembléia de Deus. Por conta de divergências religiosas entre marido e mulher, o primeiro desquite já foi registrado em Bonete. A festa deSanta Verônica, a 8 de julho, é a maior comemoração nesta praia. Para a novena da santa acorre gente de todos os lugares da ilha de São Sebastião e até mesmo antigos, moradores do lugar vêmde Santos e da Capital para dela participarem. Benedito Corrêa, cantador do "martírio" da santa e responsável pela festa do Divino e pelo reisado de Bonete, acha que "todas as festas não são mais como antes". Antigamente, conta ele, as bandeiras 33
iam cantando em outras praias de Ilhabela, como a Enxovas e Castelhanos, recolhendo dinheiro para as solenidades. Mas não foram somente as manifestações religiosas que mudaram, em Bonete. Os três aparelhos de televisão instalados, e que funcionam a bateria, tiram muita gente da viola ponteada no terreiro para acompanhar os capítulos das novelas que falam de realidades distantes da vida desses caiçaras. Antônio Aguinaldo, 85 anos de idade, 26 netos e tantos bisnetos que perdeu a conta, a pessoa mais idosa de todo o Bonete, é de opinião que muita coisa mudou em sua praia: "no meu tempo não havia canoa a motor, e para ir até São Sebastião levava um dia e meio de viagem; para ir a Santos, quatro dias remando sem parar - a gente fundeava em qualquer lugar e cozinhava a bordo mesmo". Para Santos eram levados ovos de galinha; laranja, abacate, e lá faziam compras de sal, milho e pano para a costura das mulheres. Antônio Aguinaldo acha que agora os tempos são melhores: "temos uma aposentadoriasqnha e o povo tem mais onde trabalhar, apesar de não termos mais a terra". Os empregados em Bonete trabalham nas fazendas de coco, na limpeza das plantações, ganhando salário mínimo. "No tempo" de Antônio o fio de confecção das redes era comprado na cidade e os mais velhos do lugar as teciam - "e a gente não matava o peixe para vender. Quando sobrava o pescado, o povo salgava tudo para alimento do lugar". Por que tanta gente foi embora de Bonete? O velho Antônio tem uma explicação mística: "Meu pai sempre me dizia que viria um tempo em que o povo não ia achar um lugar bom para morar. Ia viver como formiga de um lado para outro. Calhou que esta era já chegou". Mas Malaquias, homem novo, é de outra opiruao mais realista: "O pescador fica na terra quando tem condições de trabalhar e sustentar a família. Se a pesca evoluir,
continuo aqui e quero que meus filhos sigam o meu caminho, pois tenho uma profissão para dar a eles. Se a pesca fracassar, eles que sigam a vontade deles e seu destino". . Bela praia de 600 metros de comprimento, situada entre dois rochedos, Bonete já teve uma população de mais de cem famílias de caiçaras. A maioria vendeu suas terras, conforme eles mesmos contam, "às vezes em troca de uma viagem ao continente, num dia de muita precisão", ou a preços irrisórios, saindo para outros lugares em busca de novas oportunidades de trabalho. Em Bonete ficaram cerca de 200 pessoas que compõem as 40 famílias. Estas dizem que nãos aem daqui "por dinheiro algum do mundo", deste único núcleo mais povoado neste lado da ilha de São-Sebastião, sendo a pesca sua principal atividade econômica. O trabalho dos pais de família começa muito cedo, ou se dirigem ao mar durante a madrugada, voltando à praia no-começo da tarde. Ou passam a noite em mar aberto, retornando de manhãzinha prá casa. Malaquias Souza Santos desempenha um papel importante na comunidade, pois é o maior pescador da comunidade, chegando a comprar de alguns companhe.jss o peixe apanhado que excede às necessidades de suas famílias. O que fez de Malaquias uma pessoa especial em Bonete foi o fato dele ter trazido para esta praia a geladeira de isopor que veio mudar a economia da comunidade. Antigamente, o peixe não consumido era salgado para ser usado quando o mar "engrossasse". Depois da introdução da geladeira de isopor no Bonete, os pescadores começaram a guardar o pescado excedente, vendendoo em São Sebastião ou Ilhabela. Mesmo assim muitos são os pescadores artesanais do lugar que desistiram da pesca, preferindo ser empregados das fazendas situadas nde eram antes suas terras. Pelo menos, dizem eles, "temos a segurança de um salário no fim do mês".
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Ao todo existem 14 canoas em Bonete. E é nelas que os pescadores saem todos os dias para "visitar" ou "correr" as redes. Numa boa pescaria o dono do barco pode recolher até 200 quilos de peixe de uma só vez. A pescaria considerada normal gira em torno de 80 quilos. Quando este limite não é alcançado, "não compensa nem a despesa com o combustível". O preço da mercadoria é sempre indicado pelo comprador - "eu nunca sei quanto vão pagar. A gente até tem medo de pegar muito cação porque se não o preço dele vai prá quase nada", afirma Malaquias. Más não é só com a incerteza do preço de sua mercadoria que o pescador sente insegurança em sua profissão. Se o tempo "engrossa", "não dá para sair, e daí não dá trabalho nem ganho". Mesmo trabalhando, as condições em que o fazem são as mais inseguras. Para a pesca do cação - um tipo de tubarão, dentes bastante afiados um pescador fica no remo mantendo a canoa em equilíbrio, enquanto o outro recolhe a rede. Se cair na rede um cação o terceiro pescador está atento empunhando um porrete. Se falhar na paulada, os três correm o risco de perder as pernas. "Além disso, suas redes ficam expostas a todo o tipo de am2:;'~as, desde os grandes cardumes que podem arrebentá-Ias até o roubo praticado por pescadores de fora. Os pescadores de Bonete acreditam que grande ameaça mesmo é a concorrência ilegal praticada pelas grandes parelhas de pesca de Santos e Rio de Janeiro, que atuam neste litoral impunemente. Por lei, um barco de arrastão só pode pescar em alto mar, cerca de dois mil metros da costa. Edson Nobun.a Ishi, dono da peixaria que compra quase toda a produção dos pescadores de Bonete, é quem empresta dinheiro aos pescadores para a compra de suas redes. O pescador artesanal não tem condições de obter empréstimo bancário, pois a tera onde vivem é posse, não servindo para garantia. O recolhimento de 2,5% feito sobre o total da venda do pescado para o Funrural "é um 36
absurdo", na.opinião de Edson: "O peixeiro desconta dessa percentagem que não vai ser revertida em benefício do pescador artesanal, uma vez que ele não tem nota de produtor", Além do mais, conforme Edson, pelo menos um dos pescadores de cada embarcação é registrado, por' força de lei, no INPS. Assim, alguns pescadores são tributados duplamente, muitas vezes não usufruindo dos benefícios desses órgãos do governo. A grande reivindicação dos pescadores da região é a construção de um entreposto de pesca, onde haja abastecimento de gelo e câmaras frigoríficas para guardar o peixe, onde seja possível ainda a venda do pescado diretamente ao consumidor e atacadista e possa ser feita a fiscalização do Dipoa - Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal, órgão ligado ao Ministério da Agricultura. Atualmente, essa fiscalização é feita dentro das dependência da indústria Confrio, que por conta das despesas ocorridas nessa operação, cobra uma "taxa exorbitante", conforme pescadores e peixeiros, pelo aluguel de suas instalações. . "A gente continua tentando, pois é isto que sei fazer e é no mar que me sinto bem", afirma Malaquias, "mas era preciso que o governo desse mais apoio ao pequeno pescador: não temos mais terra para plantar, e se ficamos sem o peixe, o que vamos ficar fazendo no Bonete ?".
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ANTIGOS PIRATAS E NOVA PIRATARIA Fazei frente, fazei frente Fazei frente, fortemente Para que nosso rei diga Que sois um príncipe valente, Que eu já vo sem tardá. O Secretário
Não há diferença nos dias dá semana nesta ilha do litoral aulista: Búzios município de- abela, uma contiOI.iaçãogeológica d~<ie São S astião a 25 milhas do contmente. Aqui moram 60 famílias num total de 400 habitantes. Montanhosa, seu acesso é difícil e perigoso. Em Búzios não existem praias: a ilha apresenta, em todo o seu redor, costões onde o mar arrebenta com muita violência. Para se chegar, é preciso fazer baldeação da lancha para uma canoa de caiçara. Esta, com o impulso das gigantescas ondas e a ajuda de pessoas de cócoras que esperam sobre as pedras, "aterrisa" sobre 05 trapiches improvisados nos rochedos. "Nossa vida depende do mar: se ele está calmo, nós saímos; se está 'grosso', ficamos", dizem os moradores. O pier construído pela ~l~ Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista, ainda no governo de Paulo Egídio Martins, nunca é usado porque, muito acima do nível do mar, acaba por oferecer mais perigo do que descer pelas pedras _. é o que dizem 05 caiçaras. Ép,or esse isolamento que 05 dias se repetem sem grandes diferenças para 05 moradores desta ilha de sete e meio quilômetros quadrados. Seus moradores se espalham em quatro núcleos chamados Mãe [oana, Ponta das 38
Pitangueiras, Porto do Meio e Guaxuruna. A vida do caiçara de Búzios é meio simples. Sua subsistência se baseia no peixe, na roça de mandioca, cana, feijão e inúmeras árvores frutíferas encontradas por toda a ilha, "A gente costumava mandar canoas e canoas com frutos para o continente, na época da manga", conta orgulhosa da proeza, Iosefina Mariano de Jesus, uma das mais velhas caiçaras do lugar. Para chegar ao centro urbano de I1habela, onde vendem seu artesanato de madeira, 05 caiçaras de Búzios precisam remar por onze horas ou então fazer uma viagem de barco a motor de cerca de três' horas. Mas nem sempre existe dinheiro para a passagem. Foi (ou é) esse acesso difícil e perigoso que permitiu a Búzios permanecer mais tempo longe da especulação imobiliária. Mas ela já está-se acercando da ilha: "já andou gente por aqui dizendo que temos que vender nossas posses a qualquer preço, por qualquer dinheiro, pois o governo quer fazer um presídio", afirma a caiçara, filha de pai japonês, Benedita Higa, que nasceu na ilha da Vitória. "O governo precisa ajudar o pessoal das ilhas, senão !!-es acabam perdendo as terras, como os caiçaras de Ilhabela, muitos deles que foram expulsos da praia onde viviam", diz Benedita. E, dramática: "Se tirarem os caiçaras das ilhas, eles morrem". Em Vitória, ilha adiante de Búzios, com 16 famílias, os moradores contam que muitos caiçaras já colocaram "o dedão num papel, que um senhor de Ubatuba trouxe para a gente". O significado desse "papel" nenhum deles sabe explicar. E eles também não sabem explicar como vieram parar aqui os primeiros moradores de Búzios. "Difícil de responder", diz o Aristides Fernandes Teixeira, marido de [osefina e tido como um dos mais antigos moradores da ilha. Apesar da incerteza do patriarca Aristides, há muita gente neste litoral que atribui aos piratas europeus os olhos verdes e azuis, 05 cabelos loiros ou vermelhos, assim como 39
a pele sardenta de muitas crianças de Búzios. Mas a aparência de outras' - cabelos negros e lisos, pele morena, olhos de jaboticaba - atesta a inçonfundível ascendência indígena. É evidente que tudo isso não conta para os novos piratas das corporações imobiliárias. Como não conta, para os novos piratas, a festa e o baile desta comunidade. A casa de [osefinaestá sempre montada para uma festa. As paredes de sua casa foram pintadas por ela mesma, e as decorou com desenhos de flores, navios, animais e helicópteros. Estes se explicam por ser elemento constante com a chegada das multinacionais do petróleo nesta região litorânea. O cotidiano destas pessoas é alegre e "nos casamentos tem dança até o sol nascer". A viola é seu instrumento mais popular, mas as radiolas de pilha, sambas, chorinhos e modas caipiras fazem o deleite da maioria. O radinho de pilha é o maior elo de ligação desta comunidade com o mundo. Por ele pode-se ficar sabendo do roteiro dos barcos de pesca, que levam muitos de seus parentes, geralmente os mais novos, "embarcados" em busca de uma nova vida. É o rádio de pilha que supre outros elementos religiosos: "Todos os dias faço minhas orações e ponho uma garrafa de água para ser benta pelo padre que fala no rádio. confessa [osefina, que tem um retrato do padre Donizete de Tambaú pendurado na parede. Além da imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira dessas famílias que têm todas algum tipo de parentesco entre si. As comemorações de São Pedro são esperadas durante o ano todo. A única capela, situada no Guaxuruna, dedicada ao santo protetor dos pescadores, é conhecida em Búzios como a Casa de São Pedr~. Para sua festa, no fim de junho, acorrem famílias de buzianos que moram agora em Santos ou no bairro de São Francisco, em São Sebastião, 40
Outra alegria do buziano é a presença de um barco pesqueiro na região, sinal de que a onerosa viagem a Ilhabela poderá ser dispensada, pois a venda do peixe será feita na ilha mesmo. E é por causa das dificuldades da pesca que todo buziano tem a sua rocinha, apesar do terreno pedregoso de toda a ilha. . "Aqui não há necessidade de se sentir tristeza", diz [osefina, "e quem enfrenta uma enxada e tem meio de poder viver, não precisa de mais nada. O medo que eu tenho é que aquele causo do presídio seja verdade mesmo."
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VOMITANDO SANGUE Soberano meu rei Senhor Eu parte vos venho dá Que a guerra está muito forte Eu nela, não posso entrá. É preciso dar um grito Para ansim agrumentá O Secretário fala ao Rei
Poluição do mar, expulsão da terra, caminhos centenários fechados por cancelas e guaritas. Agora é assim, na ilha da Madeira, Itaguaí no litoral sul do Rio de Janeiro, desde quehTI8 anos atrás a Metalúrgica Ingá se instalou no lugar. A empresa é responsável por 50% da produção nacional de cádmio -lançando somente por uma de suas chaminés duas vezes mais zinco e 30 vezes mais cádmio do que o permitido por lei, conforme relatório da Feema. Com isso, o mangue situado na área estuarina, que era nascedouro natural de camarões, caranguejos e mexilhões, é agora uma imensa lagoa de águas lamacentas e mortas. Eos peixes, segundo os pescadores da ilha, "só dão muito longe da praia". Com isto, "só os que têm barco muito grande podem ir buscar os peixes". Quado a Ingá chegou na ilha da Madeira tratou muito bem os pescadores que aí viviam. Manuel Francisco da Silva, 74 anos, nascido na ilha, neto de madeirenses, um dos mais velhos do lugar, lembra-se do "médico japonês que a empresa trouxe pra nós - era uma beleza. Ela .trouxe até um caminhão de remédio". Mas foi só o começo. Logo em seguida, a empresa fechou a passagem de servidão, isolando as mais de mil 42
pessoas que moravam na ilha do resto da comunidade. Atravessar a cancela da empresa, constantemente guardada por homens armados, somente os funcionários e os moradores da ilha que têm com que se identificar. Um verdadeiro gueto, com a direção da Ingá pretendendo até a adoção de um cartão de identificação. A prefeitura de Itaguaí, na época da instalação da Ingá na ilha, entrou, junto com moradores do lugar, com uma ação judicial contra o fechamento da estrada pública onde circulava inclusive uma linha de ônibus municipal. Em 1982, o então juiz da Comarca de Itaguaí, Franklin de Oliveira Netto, deu uma sentença afirmando que "os pescadores poderão transitar pela servidão de passagem inclusive com seus veículos, observando as limitações impostas pela segurança da empresa". O último item da sentença determinou que a estrada continuasse fechada e que nenhuma condução pudesse transpor os limites da guarita. Esta fica a cerca de um e meio quilômetro da aldeia dos pescadores, que tem agora 350 moradores porque muitos desistiram de morar na ilha. O trecho da estrada precisa ser percorrido a pé, mesmo quando alguém está doente ou uma mulher está para dar à luz. As compras feitas no centro urbano têm que ser transportadas em carrinhos de mão, assim como o pescado, q.ue é levado aos caminhões que esperam do lado de fora da guarita. E até o acesso da capela de Nosso Senhor do Iguape, com mais de 100 anos de construção, continua fechado pela empresa. Para forçar a saída dos moradores da ilha, a Ingá cortou a luz que fornecia aos operários que aí residiam. Já os moradores da ilha que não trabalham na metalúrgica estavam acostumados com a luz de lampião: a Ingá nunca permitiu a instalação de postes da Light através de sua cancela. Conforme Manoel Francisco, "já na época da última Copa do Mundo a empresa cortou a luz de nossas casas, para o pessoal desanimar e sair da ilha. Mas o que 43
UM BRASIL COM MAIS JUSTIÇA oferecem por nossas _poses não dá yra gente morar em outro lugar", Diante de tantos desmandos, os moradores da ilha chegaram a fazer um abaixo-assinado enviado ao presidente da República, João Figueiredo, onde expunham os problemas que enfrentam por conta da instalação da Ingá. Sobre algum resultado positivo nada se sabe. Do que se tem certeza é que "acabou tudo o que havia dentro do mangue, os peixes estão fugindo do litoral", por causa da poluição. Também os mariscos, os mexilhões são coisas do passado: "Morreu tudo que havia de vivo por aqui" ... As maiores denúncias, entretanto, dizem respeito à saúde dos moradores da ilha da Madeira e aos operários da Ingá. Os madeirenses se queixam de que suas crianças são constantemente atacadas de bronquite e que todos sofrem de ardência nos olhos. E são muitos os operários que morrem com a idade de 40 anos, "vomitando sangue. E a causa ninguém sabe."
Quem sois vóis, Atrevido Embaixador, Estou a te perguntar, Nada tens que me falar? O Rei
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Lentamente, como uma enorme centopéia que se arrasta pelas ruas, a manifestação dos posseiros invade Paraty. Estes caiçaras da praia do Sono protestam contra a expulsão de Manoel Quirino de Araújo e sua família das terras onde os pais dos seus pais haviam nascido. Manoel Quirino, homem respeitado por todos os moradores da praia do Sono, um dos líderes da igreja evangélica Brasil para Cristo, permitiu que seu filho mais velho, José Quirino de Araújo - casado - construísse uma casinha em seu terreno. E isto o industrial paulista Cilbrail Nu bile T annus não poderia admitir. Acompanhado por oito policiais armados, eles expulsaram as famílias de Manoel e de seu filho, gue vivem ~gora na sede à espera de uma resposta da Justiça. Mas esta espera se restringe somente ao destino do filho, já que o velho Manoel não mais poderá voltar para sua casa, por decisão judicial. Os antigos caiçaras das diversas comunidades de pescadores de Paraty são unânimes em afirmar que o Sono era o lugar mais animado e onde aconteciam as melhores festas da região: "Era a praia com mais vida em toda essa costa. Vinha gente de todo canto festejar junto com a gente". No Sono já chegaram a morar mais de 200 famÍ45
lias, que "plantavam, construíam e criavam, pois esta é uma terra de muita fartura". Moacir dos Santos, caiçara nascido e criado nesta bela praia ao sul de Paraty, afirma estar convencido de que "no Sono nunca houve dono, pois somos uma geração de muito longe, que sempre viveu em terras do Estado". Os moradores do Sono chegavam a produzir dois mil cachos de banana por mês, além da farinha de mandioca, do peixe salgado, dos ovos de galinha, feijão e milho, que eram transportados numa viagem de mais de quatro horas a remo até o centro de Paraty. A paz dos moradores do Sono, "todos eles criados dentro do Evangelho", acabou em 1950, quando Gilbrail comprou os títulos das terras da Fazenda Santa Maria, vizinha a esta praia. Logo no começo, Gilbrail tentou estender seus domínios-além dos limites da fazenda, mas foi a partir de 64 que a pressão e intimidação sobre os caiçaras se intensificou. Segundo o industrial, a praia do Sono, Ponta Negra, Antigo Grande e Antigo Pequeno fazem parte de sua propriedade. "O homem comprou uma fazenda pegou quatro praias, afirma Manoel Quirino. Para que os posseiros do Sono deixassem suas terras, Gilbrail chegou a oferecer em troca uma área de 400 metros quadrados num lugar chamado Mãe d'Água. Segundo Maria Coralda, esposa de Manoel Quirino, "é um lugar que não dá pra viver, bate pouco sol e existe muito mosquito". Atualmente moram no Sono 36 famílias, num total de mais de 200 pessoas que se comprimem em 23 casas, já que os capangas de Gilbrail não permitem nenh uma construção na área. 05 caiçaras estão proibidos inclusive de fazer melhorias em suas propriedades, proibição que se estende às duas igrejas evangélicas existentes na praia, Assembléia de Deus e Brasil para Cristo. As duas igrejas, construções simples de terra batida que necessitam de constante recuperação - como de resto todas as casas do Sono - estão com as vigas quebradas, as paredes racha46
das e ameaçando ruir. Numa dessas igrejas vive Manoel Quirino com as famílias de seus filhos. O terror praticado por Gilbrail é constante. Ele chegou a ter no Sono uma numerosa criação de búfalos, que comia toda a plantação dos caiçaras, até mesmo o sapé que servia de cobertura para suas moradias: "os búfalos entravam na escola, punham medo nas crianças, que não queriam mais ir pra aula, e deixavam elas cheínhas de bernes". Para Fausto Pires de Campos, membro fundador da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro - que há anos vem acompanhando a luta dos posseiros do litoral fluminense pela legalização de suas terras -, "de todas as comunidades existentes no município de Paraty. a do Sono foi, sem dúvida, a mais oprimida e atemorizada". À pressão exercida sobre os posseiros chegou a ser tanta que até mesmo o presiden te do PDS local e en tão secretário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paraty, Jair Silva (que tem seu nome ligado, ainda que indiretamente, a muitas transações de terra na região) reconhece, num relatório enviado ao presidente João Figueiredo, em outubro de 82, que "os moradores do Sono evitam dar qualquer afirmação, fugindo do contato com pessoas estranhas, sendo visível a incerteza, o desânimo e a pobreza aí exis ten tes", Dentro das histórias de medo e opressão conhecidas e cochichadas nesta região, está a do negro André Miguel Trindade. Ele era um nordestino "que morava há 20 anos com as famílias aqui no Sono", conta Manoel Quirino. "André apareceu por aqui com a família em busca de um lugar para trabalhar e foi ficando. Crente, humilde, muito manso, era respei tado por todos pois fazia parte do conselho da igreja Assembléia de Deus. A mando de Gilbrail, e sob a alegação de ter fugido no levante de prisioneiros ocorrido em 1952 na ilha Anchieta, no litoral de Ubatuba, a polícia levou o negro André para a cidade, batendo nele para que saísse daqui. Quando foi solto, havia perdido a 47
voz e estava completamente louco, indo morar numa caverna, onde acabou morrendo. Até hoje quem sustenta a mulher e os filhos do negro André somos nós, o povo do Sono". . Esperanças? Fausto Pires de Campos afir~a que elas existem neste povo desde que começou a ser prestada assistência jurídica pelo advogado Jarbas Macedo. de Camargo Penteado. A possibilidade de ver seus direitos respeitados trouxe alento ao cotidiano das pessoas. Para [arbas, "houve fraude por parte de Gilbrail em relação aos caiçaras do Sono. Desde 1950, quando comprou os títulos da Fazenda Santa Maria, esse empresário vem sistematicamente coagindo os posseiros. Há 30 anos atrás, viviam 1500 pessoas no Sono - e a maioria acabou abandonando as terras, por medo ou cansaço. Em 1969, Gilbrail induziu vários caiçaras, inclusive Manoel Quirino. a colocarem suas impressões digitais - já que são analfabetos - num documento de escritura pública de cornodato, obrigando- . se a dar a eles outro imóvel. Esta escritura de comodato é ilegal, pois de legítimos proprietários pelo título de posse, os caiçaras passam a ser considerados inquilinos da terra. Por ou tro lado, a troca de terrenos que deveria ser realizada pelo empresário até hoje não se concretizou, o que reforça a invalidade da documentação". Conforme testemunho dos caiçaras da praia do Sono, suas impressões digitais só foram colocadas naquele documento depois que o pastor Agostinho Ignácio, que hoje trabalha em Guaratinguetá - "homem crente, que se dizia antigo tenente expedicionário" - convenceu-os de que com aquele papel todos eles teriam os títulos das terras. Desde então, Gilbrail construiu uma guarita na entrada que dá acesso ao Sono, fechando-a completamente. Somente no primeiro semestre de 1983 o prefeito de Paraty. Edson Lacerda. do PMDB, conseguiu junto à Justiça que a centenária servidão de passagem fosse aberta a toda a comunidade. Mas o industrial já tinha colocado -10
nesta única via de acesso ao Sono um mata burro, impedindo assim o tráfego de animais, o que obrigava aos moradores a carregar nas costas o que quisessem transportar por terra. Um desses caiçaras, Jorge Lopes Coelho, quanto teve o braço ferido pelo machado, trabalhando na roça, teve que andar por duas horas entre os rochedos até chegar na praia das Laranjeiras. Aí então foi levado de carro até a Santa Casa de Paraty a fim de ser socorrido. O carro, estava proibido de trafegar pela estrada do Sono. E por tudo isso que os moradores do Sono fizeram passeata, no começo de 83, pelas ruas de Paraty, chamando a atenção da população urbana para os problemas que vivem. Nos cartazes que levavam liam-se dizeres pedindo "terra para os que nela trabalham". Embalando sua lenta trajetória, hinos da igreja Brasil para Cristo. Num deles, os crentes, homens e mulheres tão sofridos da praia do Sono, pediam "um Brasil com mais Justiça que caminha em direção a Deus".
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o CASO
DA PRANTEADA VELHINHA
Manda subi tua gente, Se é que tu não me engana. O Rei ao Embaixador
Quem trafega pela rodovia Rio-Santos não percebe a ( belez~ da praia que está lá em baixo, na altura do quilôme- . trat12S) iraQuara de Dentro Pira u r de Ci!!la. Praígha das urnas, Praínha ou Praia do Sítio, como é mais conhecida, são nomes' o mesmo lugar, 2S alqueires onde vivem seis famílias numerosas, algumas com mais de dez filhos, todas descendentes da caiçara Eurídice Matos Cunha. São quase sessenta pessoas. Caiçaras nascidos e criados "nestas terras de nossos pais", em pleno litoral cortado pela BR 101, no município de Angra dos Reis, as famílias da praia do Sítio estão aturdidas com o mandado de citação que receberam .do Juiz de Direito da Comarca, Valter Soares. Segundo o documento que acompanha o mandado, os caiçaras estão proibidos de construir o que quer que seja dentro da praia, pois esta não lhes pertence. Os vinte e cinco alqueires extremamente valorizados desta praia particular seriam de Iracema Ramalho de Campos, moradora em São Paulo. No documento assinado por Caio Jordão (OAB 6770 SP), advogado de Iracema, Eurídice Matos Cunha, mãe e avó de todas as famílias moradoras naquela praia, transformase "numa fiel guardiã desta propriedade. Depois da morte da pranteada velhinha, seus filhos, não se sabe porque, entraram ilegalmente na área tomando posse de uma propriedade que não lhes pertencia". Este document ita 51
a existência de um outro, firmado no cartório de Angra dos Reis e datado de 1918, que provaria ser Iracema a legítima dona da praia. Odete de Oliveira, mãe de 13 filhos, nora da falecida Euridíce, não sabe explicar quem é Iracema: "Aqui, ela nunca esteve, não senhora. Como é que ela foi chorar a morte de minha sogra eu não sei explicar, porque ela nem conhecia a falecida". O mistério de toda a dema-nda judicial que ocorre com estes caiçaras está ligado à figura da advogada Lúcia Montenegro, que trabalha no Ministério do Trabalho, na cidade do Rio de Janeiro. Esta advoga da, depois de defender os posseiros contra um grileiro que Ihes queria as terras, há nove anos atrás, começou a freqüentar a praia do Sítio, hospedando-se na casa dos caiçaras, cativando a confiança de todos. Odete conta: "A moça apareceu por aqui depois da estrada ser aberta no fundo de nossa praia. Antes, nós tínhamos roça branca de mandioca, milho e feijão até em cima do morro. Mas os aterros da estrada acabaram com as nossas plantações, pois deixaram muita pedra no lugar". João de Matos Cunha, marido de Odete, antigo pescador que agora trabalha no pátio da Usina de Fumas, não consegue entender o que a "moça Lúcia" fez a eles: "Nós somos do tempo que se levava horas remando em canoa para chegar até Paraty ou Angra dos Reis. A gente vivia isolado, dependendo da nossa roça e do mar para comer. Neste tempo, quando fomos criados, o que valia era a palavra do homem, a palavra do fio de barba. Como a advogada nos disse que ia legalizar o usucapião de nossas terras em troca de 30% da praia para ela, nós acreditamos e aceitamos". Lúcia Montenegro conseguiu a procuração de todos os caiçaras da praia do Sítio, além do atestado de óbito de Eurídice, quando esta morreu. Há cerca de dois anos, Lúcia parou de visitar a praia. Os caiçaras procuraram por ela nos telefones e endereços na cidade do Rio de Janeiro. Não conseguiram localizá-Ia. 52
Em julho de 83 ela voltou, propondo a compra de uma casa que aí estava sendo construída por um casal de jovens do lugar que ia se casar. Pela casa, Lúcia daria 350 mil cruzeiros. Como a oferta fosse recusada, logo em seguida apareceu um oficial de justiça de Angra dos Reis que a pôs abaixo, sob a alegação de não possuir o alvará de construção da Prefeitura Municipal. É rotina para as prefeituras deste litoral não exigirem documentação para as construções dos caiçaras, pois são muito modestas - em algumas partes da construção ainda é usado o barro no lugar do cimento. Quando a advoga da voltou na semana seguinte, sua proposta foi outra: ela prometeu um barraco no bairro do Frade, vizinho da praia do Sítio, para cada um dos moradores, já que eles não teriam "direito a nada desta praia". João não entendeu o que estava acontecendo. Desesperado, correu até as casas de seus irmãos para comunicar a terrível novidade. Os caiçaras da praia do Sítio pediram ajuda à Pastoral da Terra da diocese de Itaguaí. Lúcia Helena Soares, assistente social que mora juntamente com duas religiosas numa favela do Bairro do Frade, e José Marcos Castilho, ambos daquela Pastoral, procuraram assistência jurídica na capital carioca, "já que dificilmente um advogado desta região pega uma causa em defesa dos caiçaras, posseiros na terra". Corino Cunha, um dos moradores da praia do Sítio, é militante no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Angra dos Reis. Para Corino. "o primeiro passo para os caiçaras se defenderem está na sua organização dentro do sindicato de classe. Em quase dez anos que estamos lutando pela defesa de nossas ter~as, somente agora encontramos um advogado honesto. E mais difícil um advogado de sindicato enganar o lavrador, pois o que ele faz fica sendo conhecido de todos os trabalhadores rurais." A Pastoral da Terra também é de opinião que se deva fortalecer o sindicato, para que, através de seu departa53
mento jurídico, os interesses principalmente dos posseiros, que não têm como pagar um advogado, sejam defendidos. Mas Lúcia Helena acredita que "na base da luta que estamos travando é necessário que tenhamos assessoria jurídica própria, para inclusive trabalhar juntamente com o sindicato. Na realidade, o que acontece é que toda a batalha travada pelos direitos do cidadão acaba sendo travada dentro de um fórum. A luta é uma luta jurídica, e o papel do advogado identificado com a causa do posseiro marginalizado e oprimido, que não exija metade de sua terra para defendê-lo, é de capital importância".
SUBINDO O MORRO DO ABRIGO Mas eu já veio sangue Corrê pela terra, Que ninguém tem piedade, Mas eu mesmo vô em batalha, Que eu inda estô em boa idade, Já vô já sem tardá. O Rei
Os migrantes começaram a chegar em São Sebastião no início dos anos 60. Os moradores da região, não acostumados com gente de fora, olhavam paraeles desconfiados, Eram mineiros, alguns de Teófilo Otoni ou Belo Oriente, muitos de São José do Barreiro, no fundo do Vale do Paraíba , outros dos sertões de Paraty. Quase todos já tinham andado por outros lados. Vinham desesperançados do norte do Paraná, numa caminhada em busca de melhores condições de vida, Sem lugar para morar, aos poucos se reuniram no morro do Abrigo, nas encostas da serra do mar, no bairro de São Francisco, Sua permanência nessas terras não lhes causaéa problemas, pois a direção do Abrigo Batuíra, entidade espírita beneficente. dona dos títulos das terras, permitia que os migrantes ali se abrigassem. Vindos da roça, estas famílias começaram suas plantações nas encostas da Serra, de onde tiram o sustento de cada dia. A maioria dos homens trabalha na Prefeitura Municipal de São Sebastião, ou na construção civil, mas, conforme testemunho deles mesmos, oque ganham, "não dá prá comer, não". O que mantém essas famílias, todas numerosas - algumas com uma dúzia de filhos - é a roça que as mulheres e as crianças tocam durante a semana, 54
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com a ajuda dos homens da casa nos sábados e domingos. "Veja, dona, nossos filhos não comem carne nem tomam leite, não, mas são bem Iortinhos", afirma uma posseira orgulhosa, mostrando seus rebentos. "O pão nosso de cada dia é mandioca ou batata, para tomar com o café que colhemos aqui". Feijão, mandioca, milho, mamão, banana, às vezes café, alguns mais felizardos (com mais terra para plantar), com arroz e até mesmo alguma verdura. A vida destas famílias moradoras do lado sul do Morro do Abrigo, transcorria normalmente até que em março de 83, doze homens armados derrubaram as cercas de suas lavouras, colocaram outras impedindo o acesso à roça; estragaram plantações e queimaram três barracos que existiam na área. O motivo de tanta violência era o fato de os posseiros terem avançado em terras que não lhes pertenciam, pois eram, "do Convento de São Francisco", atualmente com o nome de Instituto Santo Antônio. Esta área, limitrofe às posses tranqüilas do Morro do Abrigo, foram usucapiadas pelos franciscanos do convento Nossa Senhora do Amparo, no bairro de São Francisco, e entraram numa transação comercial realizada em 1972 entre os frades e o então proprietário das Faculdades de Bragança Paulista e Itatiba, Miguel Cocicov. Foi em cima destas terras assim tituladas que as 25 famílias deposseiros do morro do Abrigo formaram suas roças de consumo. que datam de cinco a doze anos, conforme o caso. E foi exatamente contra estas famílias que os jagunços investiram com violência. As mulheres começaram a temer ir à roça com os filhos pequenos, mas a fome não Ihes dava alternativa. Os jagunços ~ alguns conhecidos dos posseiros e por eles reconhecidos, conforme denúncia na Delegacia de Polícia de São Sebastião, feita em julho de 83 - diziam estar na área a mando do prefeito nomeado de São Sebastião, Décio Moreira Calvão, dono de uma das maiores imobiliárias da região, e seu sócio, Roberto Santana. 56
Todos os posseir JS ameaçados repetem esta mesma história. Abel da Silva, um dos mais antigos no lugar, chega a afirmar que o próprio prefeito o procurou para que desistisse da luta e passasse para "o lado do mais forte". Abel, com o apoio de um vereador do PDS, Luiz Carlos Betiatti, foi o primeiro a dar queixa na polícia local contra as pressões e ameaças que estava sofrendo. Décio Galvão sempre negou qualquer envolvimento no episódio: "estas terras não são minhas e nem as estou vendendo", afirmou categórico. Mas, estranhamente, num processo de desmembramento de outro trecho destas terras do Instituto Santo Antonio, Décio assina como representante do proprietário e como prefeito de São Sebastião. Por outro lado, na audiência realizada em setembro de 83, quando os posseiros não conseguiram a liminar de posse (pois seu advogado Ulissesde Paula não provou quem agira com violência e causou turbação na área) o advogado da Prefeitura, João Batista Fernandes, representou o prefeito e Roberto Santana. Para Ulisses de Paula, este é um fato estranho: "se ele não tinha interesse na área, por que veio se defender?". Os posseiros do Morro do Abrigo também esq-anham o interesse suscitado pela área em litígio, "tão perto do morro e tão longe da praia": "até agora nunca apareceu dono disto aqui, e sempre tivemos paz. Qual o rico que vai querer morar neste fundão?'~. Acontece que o "fundão" está encravado numa das "áreas nobres" do município de São Sebastião, ao lado de loteamento de grande valor imobiliário. "Quando isto aqui era ruim, não tinha estrada, nem luz, nem escola, deixavam a gente sossegada", se queixa uma das lavradoras. "E agora que está melhor, a gente tem que sair. Pobre tem até medo de coisa boa, não é para ele, não". O escritório regional da Sudelpa, no litoral norte paulista, convocado por vereadores do PMDB de São S7
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Sebastião, assumiu o caso dos posseiros do Morro do Abrigo. Euclides Vigneron, responsável por tal escritório, solicitou a ajuda do grupo especializado em terras, criado dentro da Superintendência, com pessoas como Fausto . Pires de Campos e Adriana Mattoso, que trabalharam com os posseiros caiçaras no litoral sul fluminense. Por isso, o prefeito nomeado, Décio Galvão, afirmou na imprensa da região que o problema era uma intriga política do PMDB, que estaria querendo vê-lo fora da Prefeitura. Ele deve ter-se esquecido que a primeira denúncia em relação ao caso tenha partido de um político do próprio PDS. Pedro Vicenttini, Juiz de Direito de São Sebastião, garante que não permitirá mais nenhuma violência contra os posseiros do Morro do Abrigo. "Continuem trabalhando na terra e defendam sua posse, pois isto compete a vocês", afirma Vicenttiniaos posseiros. Estes esperam que a Sudelpa realize o mais rapidamente possível a demarcação de suas terras para continuarem lutando por elas na Justiça. Pois, como diz Abel. "eu sou mineiro mas meus filhos já são caiçaras nascidos nesta terra".
o RIO
QUE ESTÁ MAIS ESCURO
Príncepe,
escuta i,
Sinal de guerra
estão dando
O meu peito de valor Está estranhando. Cacique ao Embaixador
Luzia Balbina Borges de Jesus: quando esta caiçara nasceu em 1932, no Rio Escuro, já há quatro anos seu pai - Delfino Borges - trabalhava a terra deste sertão de Ubatuba. "Sou caíçara. da roxa, fui criada com banana verde, cresci aqui, casei em 1956 e aqui mesmo tive meus dez filhos ..." Luzia herdou do pai uma faixa de terra, quase sete alqueires cultivados com ajuda dos filhos e "de alguns camaradas", já que o salário de seu marido - João de Jesus - funcionário do DER, não era suficiente para o sustento da numerosa família. Nesta terra, além do feijão, arroz e milho - para sua subsistência - Luzia chegou a ter mais de três mil pés de banana, produto que era vendido "para gente de fora". Em 1965, o Instituto Brasileiro de Reforma AgráriaIBRA - entregou aos ocupantes das terras do Rio Escuroentre eles João e Luzia - os títulos de-.propriedade de imóvel rural, passando a cobrar-lhes os impostos ter ritorial rural. Com isso o próprio IBRA reçonhecia que a área do Escuro estava sendo efetivamente ocupada por estas famílias de posseiros. Em 1975, foi requerido o usucapião deste território, que incompreensivelmente não foi ainda julgado. "Até os anos de 75 e 76, a gente viveu sossegado, plantando e colhendo a terra; depois começou o nosso calvário ... " desabafa Luzia, crente fervorosa de uma seita
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pentecostalista. o "calvário" a que se refere Luzia tem como protagonista principal a companhia imobiliária de "Ulisses Mesquita Miguez e Outros", responsáveis pelo loteamento das praias Dura, Domingas Dias e pela privatização da praia do Lázaro, - todas vizinhas ao sertão do . Rio Escuro. Apesar do usucapião requerido pelos posseiros, e sem contestá-lo, em 1976 Ulisses Miguez requereu a integração de posse do Rio Escuro, baseando-se em acordos que conseguiu fazer com quatro elementos da família do patriarca Delfino Borges, atualmente com mais de 70 anos e ainda morador no Rio Escuro. Este acordo constituiu-se num "compromisso amigável para futura doação de área de terra e outras avenças", como atesta o livro 34, folha 135 do segundo Cartório de Notas de Ubatuba. Além disto, o pedido de reintegração de posse se baseava num compromisso firmado com Mabel Hime Masset, residente no Rio de Janeiro, que arrematou em alçada pública as terras do Rio Escuro em 1932 - portanto em data (no mesmo ano que Luzia nasceu) posterior à ocupação dos caiçaras - sem que nunca tivesse dado utilização a elas e sem ter entrado em contato com as famílias que já há quatro anos moravam na região. Julgado em Ubatuba, este pedido de reintegração de posse foi negado a Ulisses Miguez. Como a companhia imobiliária tivesse apelado, o caso foi levado ao Tribunal de Justiça em São Paulo. "Nós passamos por oito advogados daqui da cidade e no final nenhum outro, em Ubatuba, quis nos defender: a força do dinheiro de Miguez é muito forte", diz Luzia. Na capital paulista, para espanto dos que acompanhavam essa luta na Justiça, foi dado ganho de causa à companhia imobiliária. O advogado dos caiçaras - Antonio Ivo Fontes além da ação, perdeu também o prazo do recurso extraordinário para apelar a Brasília. Luzia Balbina é sem dúvida a grande líder na luta pela defesa da terra na comunidade do Rio Escuro. "Eu defendo 60
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as terras de meus pais, pois se sair daqui muitas outras famílias serão expulsas do bairro. Aqui está tudo em conflito". No Rio Escuro existe uma escola de primeiro grau municipal em terreno doado à Prefeitura por Delfino Borges. Essa escola funciona desde 1965. Luzia se queixa das ameaças que ela esua numerosa família vem sofrendo por parte dos empregados de Miguez que, entre outras arbitrariedades, quebraram a bomba de água que serve não só à casa da família mas a toda plantação, além de terem posto fogo nos morros que cercam a sua posse. Pela decisão judicial obtida em São Paulo, a família dos posseiros tem de abandonar imediatamente a terra que ocupa há mais de meio século, deixando todos os seus bens imóveis, suas benfeitorias, plantações, levando "apenas seus móveis, suas roupas e sua dívida para com o Banco do Brasil, na ordem de sete milhões de cruzeiros", como atenta José Bernardes de Almeida Gil, presidente do Movimento Ecológico Pela Vida, Pela Paz, em Defesa de Ubatuba. Desde a metade da década de 70, os posseiros de Rio Escuro passaram do cultivo e extração da banana, para a produção de hortifrutigranjeiros e já então pleiteavam, junto ao Banco do Brasil, empréstimos com esta finalidade. As terras de João e Luzia, assim como de muitos posseiros do Rio Escuro, estão hipotecadas ao Banco como garantia do dinheiro emprestado. O próprio Banco do Brasil reconhece, com isto, que os posseiros tem direito à terra. É Almeida Gil mesmo quem afirma - "O incrível, neste caso, é que, para dar o veredito a favor da companhia imobiliária, os desembargadores do Tribunal de Justiça se valeram de um artigo de 1916 do Código Civil - (artigo 505) - em detrimento de leis mais atuais como a legislação do uso do solo, lei de retenção de posse, leis do Incra, etc..." Os posseiros não se deram por vencidos e entraram com uma ação recisória - isto é, uma ação que pode reformar uma decisão já tomada - junto ao Tribunal de Justiça, a qual os desembargadores Alves Barbosa e o 61
DE CORONEL PARA CORONEL revisor Gonçalves Santana julgaram improcedente. Isto no dia I? de dezembro de 1983. Na defesa dos posseiros do Rio Escuro, a população de Ubatuba se mobilizou através do seu movimento ecológico "Pela Vida, Pela Paz em Defesa de Ubatuba", com o apoio da Frente Nacional do Trabalho, da Pastoral da Terra, da Associação dos Produtores Rurais de Ubatuba - APRU -, Câmara dos Vereadores, Associação dos Amigos do Sertão da Quina, Movimento em Defesa do Menor e a própria Sudelpa com grupo de trabalho pela legalização das terras dos posseiros. Frente à ameaça iminente de expulsão de suas terras, várias atitudes foram tomadas, como o manifesto público da APRU que denuciava ser este "um dos muitos casos de posse de terra em Ubatuba em que as grandes companhias, movidas por interesses financeiros provocam problemas sociais, ignorando a importância que a agricultura representa para o Município. para o Estado e para o País." Conforme José Bernardes de Almeida Gil, "com a atual decisão da Justiça teremos mais uma vez, a aplicação injusta de uma lei arcaica e antisocial, na repetição do que vem ocorrendo há décadas em nosso litoral: a expulsão dos caiçaras de suas terras e seu confinamento em favelas impedindo que ele continue nas atividades que garantiam o sustento da família e de toda a comunidade e a entrega de suas terras às companhias imobiliárias, para que sejam vendidas aos turistas que aí constroem casas de veraneio. Estas casas permanecem fechadas a maior parte do ano." Frente a esta dura realidade, Sétero Borges, filho de Luzia e, ele mesmo, também pai de família, exclama angustiado, "Quem poderá nos ajudar? .."
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Não te dou a minha mão, Porque não és merecedor, Era bem que te fizesse Debaixo de ferro martir, Com sepultura de sangue De braços martirizado. O Rei ao Embaixador
Lágrimas de alegria, risos descontrolados que mostravam o medo da notícia não ser verdadeira - esta a reação dos posseiros das fazendas Barra Grande e Taquari, no Município de Paraty, quando o prefeito Edson Lacerda irrompeu escadas acima anunciando aos berros a notícia - "O Presidente João Figueiredo desapropriou para fins de reforma agrária a área onde vivem os posseiros destas duas fazendas". Isto tudo aconteceu no dia 4 de outubro de 1983, quando a então juíza da Comarca de Paraty - Tereza Maria Savine - estava prestes a iniciar uma audiência com os caiçaras e seu advogado Jarbas Macedo Penteado, da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro e do escritório de Sobral Pinto. Sob o tímido olhar do advogado da parte contrária, a comemoração começou ali mesmo: afinal, a luta pela posse destas terras já se arrastava. há mais de cinco anos e cerca de cem famílias que sempre viveram neste lugar estava seriamente ameaçada de expulsão de suas casas e roças. São dois os decretos presidenciais que dispõem sobre áreas prioritárias para f~ns ~e reforma agrária na fazenda Barra Grande e Taquari (números 88.789 e 88.791). Na fazenda Taquari foram desapropriados 98~ hectares, num total de quase dez milhões de metros quadrados, beneficiando 54 famílias; na 63
1 Barra Grande, foram desapropriados 630 hectares num total de quase 6.300.000 metros quadrados, beneficiando 56 famílias. Conforme Jarbas Penteado "o objetivo de [ais decretos éa reformulação fundiária nesta região litorânea, condicionando o uso das terras à sua função social, para que se promova justa e adequada distribuição da proprie-
. dade". Os proprietários dos títulos dessas fazendas receberão seu pagamento em títulos da Dívida Agrária, que se resgatam a partir de dois anos após sua emissão. "Essa foi uma atitude muito corajosa do general Venturini, ministro dos Assuntos Fundiários", afirma Jarbas Venturini recebeu, em janeiro deste ano, o prefeito e o presidente da Câmara de Vereadores de Paraty, juntamente com Jarbas Penteado, quando então foram levadas ao ministro as provas de que os posseiros dessas duas fazendas não eram simples parceiros da terra, nem tão pouco invasores na área, já que as certidões de óbitos de seus antepassados e suas certidões de nascimento mostravam que eles sempre viveram ali. "Cabe agora ao INCRA requerer judicialmente a emissão de posse das terras desapropriadas." O ofício que estas famílias enviaram ao coordenador do INCRA no Rio de Janeiro, em 1981, relata sua luta: Muito tempo atrás, no fim do século passado, tinha na fazenda Barra Grande um coronel chamado Honório Lima, que dizia ser o dono destas terras. Aí moravam quase cem famílias de trabalhadores, aproximadamente seis pessoas por família. Todos trabalhavam na terra e suas casas foram construídas por eles próprios. Viveram mais de trinta anos sem nada cobrarem deles. Depois esta fazenda t foi vendida para o senhor Joaquim Flores dos Santos Callado que a teve por 25 anos, quando todos os trabalhaodores viveram livres com toda a liberdade para trabalhar. Criaram seus filhos e vieram os netos (...)" As dívidas contraídas por Joaquim Callado fizeram com que vendesse a fazenda para Albino Gonçalves. Foi 64
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então que o filho de Albino, Nestor Gonçalves - "conhecido grileiro em Angra dos Reis", segundo o relatório ~ recebeu a fazenda de herança do pai. Na época da Segunda Grande Guerra, ele soltou gado nas lavouras dos posseiros, destruindo toda a plantação e provocando a retirada de muitos deles sem que recebessem qualquer indenização. Por volta de 1949, um grupo de italianos, liderado pelo então novo proprietário dos títulos da fazenda Guiseppe Cambarelli - exigiu dos posseiros o pagamento de um terço de sua produção agrícola, "33% de cada produção que eles obtinham sem o auxílio de ninguém, a não ser da terra". Esse tipo de pagamento foi feito, no início, sem recibo. A partir de 1964, as fazendas contrataram para administrá-Ias um indivíduo chamado José Garcia, que se dizia sargento do Exército. Ele, juntamente com diversos capangas armados, atemorizaram e coagiram os caiçaras na cobrança do "terço" dos senhores feudais. Em troca, a administração se comprometeu a fornecer condução para que os trabalhadores se locomovessem até suas roças, além de oferecer condições de armazenamento e escoamento da produção de banana - ítens que, sem surpreender ninguém, nunca foram cumpridos. Depois da morte de Guiseppe Cambarelli, as fazendas passaram a ser administradas pela viúva Iolle Fabri Cambarelli. E "com novos capatazes ela começou a proibir os lavradores de trabalhar em novas plantações e de consertarem suas casas, para no futuro poder acusar os posseiros de não trabalharem direito na lavoura". Em 1976, os moradores foram obrigados a assinar um contrato de parceria - "fomos ameaçados por um delegado de polícia que acompanhou o administrador que ia entrando de casa em casa". Muitos dos caiçaras, porém, não ~ssinaram o contrato apesar da intimidação ostensiva. Aqueles que aceitaram o contrato foi-lhes prometido que a "contribuição voluntária" dada à fazenda cairia em 20% e até mesmo 10% da produção que tivessem na terra. 65
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o relatório dos posseiros conta ainda que "como a dona das fazendas não conseguiu seus objetivos, ela então ligou-se a grupos financeiros, cujo gerente, coronel Casimir Vieira, passou a perseguir os trabalhadores. Eles vem forçando os moradores que se acham em dificuldade de sobrevivência e de produzir, mesmo os moradores na terra há mais de 70 anos". Somente as 80 famílias da Fazenda Barra Grande e as 50 famílias que moram na Fazenda Taquari têm alguma coisa plantada num total de 1300 hectares - "é desta área que a administração quer despejar o pessoal". As fazendas têm o título de propriedade de 20 mil hectares ... Iolle cedeu metade dos títulos de propriedades destas fazendas ao Grupo Morada - que atua com cadernetas de Poupança e cujo proprietário é Rui Barreto presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro. E Rui Barreto quem detém o poder de decisão nas Empresas Reunidas Agró-Industrial Mickael S.A. resultantes da sociedade entre ele e Iolle. A luta dos posseiros de Barra Grande e Taquari foi assessorada e apoiada pela Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro do Instituto Histórico e Artístico de Paraty, da atual direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais daquele município e da Pastoral da Terra da Díocese de Itaguaí, da qual Paraty faz parte. As arquiteturas Marcia de Souza Carvalho e Maria Ignez Maricondi, integrantes da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro,' fizeram o levantamento de toda a área ocupada pelos posseiros, com os respectivos mapas de sua localização, cuja função é de instruir qualquer tipo de processo jurídico na defesa dos caiçaras. Conforme o advogado Jarbas Macedo Soares, "era uma contradição o fato de a empresa dizer existir para a área um grande projeto agropecuário se, por outro lado, ela tentou despejar em massa aqueles que produzem no imóvel. Como acreditar na criação de agrovilas ou de qualquer tipo de proteção ao homem do campo se de uma hora para outra a empresa investe contra os caiçaras, despejando-os sumariamente?" 66
Para [arbas, "é fato notório, não só em Paraty como em outras regiões onde houve supervalorização de imóveis em decorrencia da abertura da Rio-Santos, que aqueles que tinham títulos de propriedade começaram a se valer de diferentes recursos para expulsar o homem do campo." Um desses recursos foi denunciado pela diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paraty, no relatário ao presidente João Figueiredo: "O sindicato tenta defender os posseiros mas encontra muitas dificuldades de razões econômicas e de influência; isto porque, entre os advogados que trabalham para as empresas ligadas ao grupo Cambarelli, há um que é promotor na cidade do Rio de Janeiro e outro que é procurador do Estado." Para Miguel Pressburguer, da Pastoral da Terra e atual advogado desse sindicato, "não importa a indenização que as empresas queiram dar aos posseiros como meio e recurso de tirá-los da terra onde nasceram e moram. O dinheiro perde cada vez mais o seu valor e o que importa é fixar o homem à sua terra para que ele e sua família não vão engrossar o contingente de favelados na região". Mas os "meios e recursos" utilizados pelas empresas não páram aí - em reuniões com seus advogados, os posseiros contaram que "as empresas pagariam de cinco a oito mil cruzeiros a qualquer um dos posseiros que quizesse depor a favor delas, contra os companheiros. E no dia da audiência na cidade, elas se ofereceram até para pagar o almoço do pessoal". Os posseiros reconhecem que os que aceitaram a oferta o fizeram na esperança de que, agrandado aos donos das fazendas, ficassem em suas terras - "mal sabem eles que se nós caimos fora, eles também não terão condições de ficar, pois nossa força é a nossa união". Essa união se revela concretamente na associação que os posseiros organizaram, visando a defesa de seus interesses e do direito à terra. A associação reivindica à prefeitura local infra-estrutura sanitária, posto de saúde, esco67
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Ias, transporte e luz elétrica - mas todos esses benefícios ainda não foram conseguidos, dizem os caiçaras das fazendas Barra Grande e Taquari, "por causa das pressões da administração das fazendas, que faziam tudo para que a gente desista de continuar na terra dos nossos pais". O lavrador Assir Soares, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paraty, considera esta desapropriação "uma vitória conjunta dos posseiros e de todos os setores da sociedade que ficaram ao seu lado. Uma vitória do povo de Barra Grande e Taquari que entendeu a necessidade de se organizar pela luta de seus direitos ..."
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HISTÓRICA VITÓRIA Glorioso Benedito Glorioso Benedito Santô que não tem vexame Santô que não tem vexame Bençoado que nos livre Bençoado que nos livre Dos castigos deste mundo Dos castigos deste mundo Do canto "Chibá"
Uma solução considerada única na luta de terras no país foi alcançada em 5 de novembro de 1981, quando 71 famílias caiçaras moradoras em Trindade, praia situada a 28 quilômetros ao sul do centro urbano de Paraty, assinaram o título definitivo de sua propriedade. A assinatura do documento foi feita numa das salas da escola isolada de Trindade, na presença de posseiros, de seu advogado [arbas Macedo Penteado e de José Pascowitch Neto, dono da Cobrasinco, acompanhado de seus advogados. A Cobrasinco é uma empresa de capital nacional, especializada em construções, que em junho de 1981 comprou por três milhões de dólares os títulos das terras da praia de Trindade, da ADELA - Atlantic Development Group for Latin America, holding composto por 227 empresas multinacionais, com sede em Luxemburgo. Durante mais de nove anos os caiçaras de Trindade resistiram a esta poderosa Holding, testemunhando uma das mai belas histórias de luta dos oprimidos por seus direitos, pela posse de suas terras ~ por sua dignidade de pessoas humanas. 69
"Se tenho de morrer, que seja em minha terra", afirmava Antônio de Jesus, pai de sete filhos que por três vezes foi expulso dos barracos que construía em Trindade. Durante muito tempo, Antônio, um dos líderes na luta de resistência dos caiçaras nesta praia, morou à beira de estradas, na praia e nas matas da Serra do Mar, recusando-se a abandonar as terras em que seus pais sempre plantavam. A luta de Antônio foi igual a de muitas outras famílias que, expulsas de suas casas, se embrenharam na mata, passando a viver em cavernas e cabanas improvisadas. Nem sempre o cotidiano dos trindadeiros foi de sofrimento. Quando a especulação imobiliária não havia chegado a este litoral, a vida era' outrapara estes posseiros de mais de 200 anos, como atestam os documentos do Cartório de Paraty. Os mais velhos testemunham: A gente não carecia de dinheiro, não, com um dia de caminhada a gente chegava a Paraty, onde trocava a farinha e a banana por querosene ou pelo que precisasse, às vezes um pano pra mulher fazer vestido". A população de Trindade, onde existem muitos loiros ?e olhos azuis ou verdes, é toda protestante, pertencentes as .seitas pentecostais Assembléia de Deus, Brasil para Cnsto e Adventista, cujas sedes foram construídas em regime de mutirão por todos os habitantes da praia. Uma das explicações para a ausência da Igreja católica na comunidade seria o seu difícil acesso; impedindo um contato mais constante com O padre católico. A mudança radical na vida destes protestantes começa em 1972 quando os títulos de propriedade da Fazenda Laranjeiras, com uma área de 1403 hectares, foi adquirida pela Companhia Paraty Desenvolvimento Turístico S.A. A companhia, cujo presidente era o general Candau da ~onse~a, que havia sido presidente da Petrobrás, pertencia a holding Adela. A fazenda Laranjeiras foi vendida por um milhão de dólares, conforme atesta a escritura lavrada no 17.0 Ofício de Notas do Rio de Janeiro, das mãos do JI
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ex-governador Carlos Lacerda, do antigo Estado da Guanabara. Esta fazenda englobava as praias de Laranjeiras, Picinguaba (em Ubatuba, no Estado de São Paulo), Sobrado, Vermelha, Galhetas, Brava, De Fora e Cachadaço. Por que estas terras, antes só ocupadas por caiçaras, começam a se tornar tão importantes para os poderosos grupos econômicos? A socióloga Maria Christina de AImeida Braga, que conviveu muitos anos com os caiçaras de Trindade e sobre eles elaborou vários estudos, tem uma resposta clara - "Baseada no projeto Turis e em muitos outros trabalhos científicos realizados sobre esta praia, podemos dizer que a estrada Rio-Santos, a BR-10l planejada no governo de Castelo Branco, em 1967 - foi concebida para atender às necessidades do escoamento das áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo. Sendo uma alternativa de ligação rodoviária entre estes dois palas econômicos, satisfaria às necessidades do capital já instalado na região: o Parque Industrial de Santa Cruz, porto de Sepetiba, Estaleiros Verolme, Usina Nuclear Angra e os terminais petrolíferos de Angra dos Reis e São Sebastião". Como a segunda fase da BR-101, no seu trecho entre Ubatuba e Santos, nunca foi concluído, a grande realização do então Ministro dos Transportes, Mário Ándreazza, serviu apenas ao segundo propósito dos planejadores da estrada, a que Maria Christina se refere:" A BR-101 possibilita, ao mesmo tempo, a exploração turística de uma das regiões mais bonitas do país e abre perspectivas para os investimentos dos grupos empresariais. Conseqüentemente, há uma redefinição do uso da terra, transformada em mercadoria e extremamente valorizada", Tal é formulado por Carlos Lacerda, em sua entrevista ao jornal "O Estado de São Paulo", de sde outubro de 1972, em uma materia intitulada "Imobiliários gananciosos e imobilistas gananciosos": "A essa valorização corresponde o valor que se faz com ela (terra) ... onde a terra passa a valer mais do que a banana permite, o desejável não é plantar bananas e 71
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sim instalar algo mais compatível com a valorização ... Cidades, turismo, são mais valiosos que bananas" ... Para preservar a região da expansão dos interesses econômicos sobre ela, o Estado toma uma série de medidas, como o decreto do IBDF n? 68172 de'~ de fevereiro de 1971, cria ndo o Parque Nacional da Serra da Bocaina, com a área total de 136 mil hectares. Durante o governo Médici, os municípios de Paraty e Angra dos Reis são considerados áreas prioritárias para reforma agrária. Entretanto, o crescente interesse por parte das empresas privadas, nesta região, quando se inicia a construção da BR-101, faz com que o Estado disponha destas áreas em benefício do capital privado ou do poder público. O Parque Nacional da Serra da Bocaina é desmembrado através do decreto n? 70694, no mesmo dia que o grupo multinacional Brascan-Adela torna-se cessionário dos 34 mil hectares desmembrados da área original, que compreendia justamente a região de Trindade. É Maria Christina quem afirma - "Decretos governamentais referentes à desapropriação de terras com objetivos sociais, como do ex-governador Roberto Silveira (decreto n? 6897 de 13 de janeiro de 1960) foram então revogados. Os fins turísticos transformam-se em prioridade para estas áreas, fazendo com que elas pudessem ser negociáveis a grupos privados. Esta confluência de interesses entre o Estado e as empresas particulares permite a aferição de enormes lucros principalmente para aqueles que tem acesso aos planos 'governamentais. Um exemplo claro é o do ex-governador táI:l?5.L~cerda, que adquire a área da Fazenda Laranjejrâs'paj-a depois revendê-Ia a um preço bastante superior. Assim',Jl1esmo antes da abertura da BR-I01, a especulação imobiliária reina no litoral fluminense". Para se manter na praia, a "comparthia" - como era conhecida pelos caiçaras - a Paraty Desenvolvimento Turístico S.A., que posteriormente muda seu nome para Trindade Desenvolvimento Territorial S.A. - usa dos 72
mais diversos recursos. Em 1977; numa declaração à Imprensa, John Sillers. então representante da empresa na praia, afirmava que "a vastidão da área propiciava a ação de grileiros", Devido a isto foram envidados homens armados a Trindade, "armamento convencional, como revólveres, fuzis, rifles e metralhadoras". Sillers dizia ter procurado acordo com os trindadeiros, mas não admitia "a presença de terceiros nas posses". Um dos terceiros a que Sillers se referia é o atual senador de São Paulo, Severo Fagundes Gomes, que em 1973, através de Ivete Maciel, conhecida neste litoral pela alcunha de "Loba do Mar", adquire as praias de Baixo, Cepilho, De Fora e Canhadaço, revendendo-as posteriormente. Trindade, como outras praias ao longo da Rio-Santos, foi catalogada como sendode"dasse A", pelo projeto Turis da Embratur Este projeto data dos anos 72 e 73 e foi inspirado no modelo francês de desenvolvimento turístico da região costeira. Sob a pretensão de desenvolver turismo de massa - compreendido como a classe média motorizada a procura de lazer - as praias deste litoral foram classificadas em três categoriais: A, B e C. As praias consideradas classe A, como Trindade, seriam reservadas para as classes sociais de maior renda. O projeto Turis foi elaborado na época em que Severo Gomes era Ministro da Indústria e Comércio, ao qual a Embratur está ligada. Na "via crucis" dos caiçaras de Trindade, estavam envolvidos os advogados do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paraty-Alírio Campo e José Maia, enviados a esta praia por Jair Alves, então trindadeiros para iniciarem um processo de usucapião de 'suas posses que, segundo Jarbas Macedo Pen teado - advogado que posteriormen te defende os caiçaras - estava muito bem montado. Para [arbas, este dado é mais um indício da má intenção destes dois profissionais que, mais tarde, retornam a Trindade para propor uma acordo aos caiçaras, "pois contra a companhia nada se pode fazer". Alguns trindadeiros se nega73
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ram a qualquer entendimento com a companhia. Outros, intimidados, trocaram suas posses de moradia em frente ao mar por casas construídas nas periferias de Paraty e Ubatuba. Mas todos os que fizeram a troca, deixaram suas posses na Serra do Mar, usadas já por seus antepassados para a roça de consumo. A maioria dos caiçaras que se mudou para o Parque Paris, na periferia de Ubatuba, voltou para Trindade. A companhia não lhes forneceu a escritura definitiva de suas casas e muitas delas apresentaram péssimas condições, desde o início da construção. De volta à terra de seus pais, os trindadeiros se estabeleceram nas posses das roças de consumo. Uma cláusula, inexplicavelmente inserida à máquina nos documentos mimeografados de compra de posse, entre a companhia e os trindadeiros - afirmava terem eles vendido "todas as benfeitorias da área" e não só o terreno em frente ao mar. A rasura não foi levada em conta pelo então Juiz de Direito da Comarca de Paraty, José Seltti Rangel, que determinou não mais haver lugar para o caiçaras em Trindade. As arbitrariedades cometidas a nível jurídico, na saga dos trindadeiros, foram tão numerosas e terríveis, que se chegou ao ponto de proibir Isael Mariano dos Santos caiçara que havia ganho uma liminar de posse de três alqueires, na praia do Cepílho, de acolher outros parentes e amigos em sua terra. Uma proibição determinada pelo então juiz de Direito de Paraty, Ulisses Monteiro Ferreira. Conforme o padre João Bernardo Peters, da Pastoral da Terra da paróquia de Paraty, "que direito tem a Justiça de proibir quem quer que seja em receber alguém em sua legítima propriedade?". A alegação do juiz Monteiro Ferreira era a de não conhecer os limites da posse de Isael. Mas como uma liminar de posse foi assegurada sem serem conhecidos os direitos da mesma posse? "Para o caiçara não conta o direito sagrado da propriedade privada?", questiona padre Peters.
Se na disputa jurídica as arbitrariedades foram tantas, a nível humano as violências foram inolvidáveis. Nos feriados da Páscoa de 1978, duas jovens professoras do Estado do Rio, que não se haviam intimidado com as ameaças dos jagunços da Companhia e insistiram em permanecer em Trindade lecionando para as 70 crianças que aí viviam, foram violentadas por esses mesmos jagunços. Somente quatro meses após o incidente - não divulgado pela Imprensa, certamente por "respeito" às duas jovens, já que em nossa sociedade é a mulher violentada quem ainda passa vergonha - um rapaz de Paraty, Pedro Millíet, da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, mesmo não sendo professor formado se dispôs a ensinar àquelas crianças. Nessa hora de tanto sofrimento, a ação de "uns jovens maconheiros", como afirmavam os representantes da Companhia, foi fundamental na luta dos caiçaras. Rapazes e moças que costumavam acampar em Trindade, decidiram tomar posição frente ao problema. Formaram a Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro sob a liderança de Ricci Martinelli, o "Bienga", que passou a conviver com os caiçaras em Trindade. A SDLB logo obteve apoio de outras entidades da sociedade civil. Palestras, denúncias, foram feiras no circuito Rio-São Paulo. A Sociedade procurou o jurista Sobral Pinto, famoso por suas defesas dos direitos do cidadão numa época de perseguição e sufoco. Sobral liberou o advogado [arbas Macedó Penteado, de seu escritório, para acompanhar a causa. O papel que a Imprensa desempenhou, solidarizan do-se com os caiçaras e denunciando as arbitrari dad que eles estavam sofrendo, foi de fundamental imp rtância neste episódio. Praticamente todos os jornais d ix Rio-São Paulo passam a noticiar os acontecim nt S ) orridos em Trindade. A repercussão dessas notí ia hogou ao estrangeiro, a ponto da Igreja Reformada da H landa pedir um relatório por parte dos posseir dr mpa75
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nhia, para se inteirar do que se passava nesta praia do litoral flumínense. A Igreja Holandesa queria saber como eram obtidos os lucros das cadernetas de poupança de seus adeptos religiosos. Como eram obtidos inocentes lucros para os cristãos do Primeiro Mundo. A Trindade Desenvolvimento Territorial S/A nunca realizou seu relatório. Mas os posseiros fizeram um detalhado histórico de sua luta que foi redigido, por escolha e votação direta, pelo advogado Miguel Pressburguer, da Pastoral da Terra e pelo arquiteto Abídio Alapenha, também da mesma Pastoral. As pressões contra a Adela foram se avolumando de tal forma que, em 1981, não tendo condições de reverter o imenso capital empatado em Trindade, a empresa holding decide vender os títulos de terras da praia à Empresa Nacional Cobrasinco. Para os que acompanharam a luta dos caiçaras de Trindade, os novos fatos ocorridos com a assinatura dos títulos de terra por parte dos posseiros, devem ser enquadrados por diversos ângulos. Segundo Jarbas Penteado, o título assinado pelos caiçaras é um condomínio "próindivísuo", isto é, que apesar de estarem de posse do documento de suas terras, cada trindadeiro só poderá vendê-Ia para outro caiçara que more no mesmo condomínio. Esse tipo de titulação, aceita pelos caiçaras, foi, conforme [arbas, uma maneira jurídica de defender os posseiros do assédio dei turismo que chega a Trindade. Pelo acordo assinado entre a Cobrasinco e os trindadeiros, estes terão uma área de 147 mil metros quadrados que será dividida entre eles em lotes de moradia. Terão também uma outra área de 620 mil metros quadrados destinada a roças de consumo. Conforme consta do documento, a empresa se compromete a dar total liberdade de pesca aos caiçaras, ·e manter reservada área para abrigos de barcos num dos cantos da praia, permitir o livre acesso ao Parque Nacional da Bocaina, não mexer na praia do Cachadaço - que se encontra dentro desse Parque - além de preservar rios, 76
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córregos e cachoeiras do lugar. A Cobrasinco também se dispôs a construir duas igrejas em Trindade, já que uma delas, a Assembléia de Deus, havia sido vendida à companhia, que a transformara em escritório de suas operações. E o pastor fugiu com o produto da venda. Sem dúvida alguma, no cenário nacional, em que os que não têm capital não têm chance de vencer, Trindade foi uma vitória do povo, comemorada com júbilo. A concessões da Cobrasinco não foram frutos de um coração bondoso. A empresa compreendeu, melhor que a holding multinacional, que não valia a pena brigar com os calçaras, pois estes estavam organizados. Marco Antonio Barbosa, advogado do Centro de Trabalho Indigenista - CTI, compara a saga dos trindadeiros à dos guaranis: "Em todo o Estado de São Paulo só existem 400 guaranis. Que é que isso significa em termos de número? Nada. Mas na medida em que se reúnem, eles sobrevivem a toda opressão. E o índio sobreviveu a 500 anos de opressão porque, por sua cultura, ele se organiza socialmente. Os caiçaras e todo o povo oprimido de nosso país tem muito a aprender com nossos irmãos indígenas" - só nos organizando poderemos sobreviver. "As congadas de Caraguatatuba e do Bairro de São Francisco não existem mais, mas as rezas guaranis existem." Jair da Anunciação e Antônio de Jesus, os dois grandes líderes caiçaras de Trindade, nos dão maior esperança no futuro de nosso sofrido povo quando afirmam, convictos e emocionados: "Temos de levar nossa luta aos caiçaras de outras praias, para mostrar que só permanecendo unidos teremos nossos direitos preservados." Antônio de Jesus sintetizou todo o pensament d povo de Trindade ao dar seu depoimento em outubr d 81, à Adriana Mattoso realizadora do documentário V nto Contra: "Acho que minha família é quas Br il inteiro; então a gente tem que lutar porqu S 11 n L já esteve perto do fogo e saiu e não s:e queimou, g nt 77
tirar o amigo do fogo também, para que ele não se queime ... O que o caiçara vai fazer na cidade? Favela? Favela já chega o que está na cidade. Eu acho que aumentar mais favelas não dá. O cara tem de ter a liberdade dele na terra em que nasceu."
Os congos do Bairro de Francisco se afastavam, com as espadas levantadas. Depois as colocavam na bainha e acenavam com um lenço, sempre cantando: Fica-te em paz, Que eu vou-me embora, Fica-te em paz, Que eu vou-me embora. Assim terminava. E os últimos versos da Congada de Caraguatatuba eram: Que saudosa despedida Meus congo vieram dá, Vão cantando e vão marchando Cada um pra seu lugá.
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Documentação fotográfica de: Adriana Mattoso Agência Estado Araquém Alcântara Fausto Pires de Campos Inês Ladeira Sidney Corallo Stella Martinelli
Despejo da igreja em Trindade (foto Adriana Mattoso). Posseiros debatendo Campos).
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a situação em Trindade (foto Fausfo fi.
A família de Jair da Anunciação, despejada em Trindade (foto Adriana Maftoso).
Casa lacrada em Trindade (foto Adriana Maftoso).
Família despejada em Trindade (foto Adriana Maftoso).
Casa derrubada em Trindade (foto Adriana Maftoso).
A queima de casas em Trindade (foto /sdriana Maiíoso). Uma caverna na serra: a nova casa de Antonio de Jesus (foto Adriana Mailoso}.
A destruição na praia de Trindade (foto Adriana Matloso). Ação do trator em Trindade (foto Stella Muninelli}.
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Caravana ecológica em Trindade (foto Agência Estado, por Sidney Corallo}. Os jagunços armados da Casa do Alemão (foto Sidney Corallo}.
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Praia do Sono: fechada pela porteira (foto AdrianaMattoso). São Gonçalinho: os caiçaras debatendo seus problemas (foto Fausto Campos).
o interior
de uma casa caiçara (foto Araquém Alcântara).
Dona Condica (foto Araquém Alcântara).
A velha e o cachorro: tranqüilidade ameaçada (foto.Araquém Alcântara). A velha caiçara e a estrada (foto Araquém Alcântara).
Enterro caiçara (foto Araquém Alcântara). Desolação (foto Araquém Alcântara). O velho e o pito: um gesto habitual (foto Araquém Alcântara).
Aldeia do Silveira: o já falecido cacique Gumercindo e esposa com visitantes (foto Inês Ladeira).
Acabou-se de imprimir aos 2 de maio de 1984 sob orientação de Oficina Gráfica Fotocomposição: Studio Artgraph Edição a cargo de Massao Ohno - Ismael Guarnelli/Editores Caixa Postal 62673 - CEP OllSO São Paulo - Brasil
Aldeia do Silveira: família guarani (foto Inês Ladeira).