Sabrina jeffries trilogia dos lordes 01 lorde pirata

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Sabrina Jeffries Lorde Pirata

TRILOGIA DOS LORDES, I Disponibilização em esp: Ellloras Digital Tradução: Yuna Revisão: Fatima Revisão Final e Formatação: Lívia

Projeto Revisoras Traduções UMA GRANDE OPORTUNIDADE.

Um carregamento de mulheres... para ser conquistadas! O Capitão Gideon Horn não podia estar mais encantado. Seus homens estavam cansados de vagar por alto mar e queriam estabelecer-se na paradisíaca ilha que tinham descoberto. Mas, para isso, não tinha mais remédio precisava encontrar companheiras que compartilhassem sua vida. E as mulheres tinham que sentir-se agradecidas por terem sido resgatadas de uma vida de escravidão em Nova Gales do Sul... Deus, ele era tão sagaz! UMA PAIXÃO INIGUALÁVEL.

Casar-se?! Com piratas?! Sarah Willis não podia estar mais horrorizada. Primeiro exigiu ser devidamente cortejada, ao menos durante um mês. Então, o misterioso e atraente Cavalheiro Pirata concedeu-lhe duas semanas. Depois, Sarah insistiu em que os homens desalojassem as cabanas para ceder-lhe às mulheres... e Gideon voltou a lhe conceder seu desejo mas, em troca, reclamou seus beijos. E, enquanto suas discussões iam subindo de tom, também o faziam suas paixões... e logo Sarah não pôde recordar por que lutava tão ferozmente com o diabólicamente sedutor pirata...


A Emily Toth, a minha feminista favorita e aos meus pais, que me ensinaram a lutar pelos meus direitos.

Capítulo 1 É uma pena que as mulheres britânicas se resignem a acatar sempre as regras, quando são perfeitamente capazes de levar a cabo modificações… Essays on Various Subjects... for Young Ladies, HANNAH MORE, escritora e filantropa inglesa

Londres, Janeiro de 1818 Nos seus vinte e três anos, a menina Sara Willis já tinha passado por bastantes momentos desagradáveis na sua vida. Como quando na tenra idade de sete anos a sua mãe a apanhara roubando bolachas na imponente cozinha de Blackmore Hall, ou quando pouco depois, sua mãe desposara o seu padrasto, o já falecido conde de Blackmore, caiu dentro da fonte. Ou quando no baile do ano anterior apresentou a duquesa de Merrington à amante do duque se sem dar conta disso. Mas nenhuma dessas ocasiões se podia comparar com a que estava para viver naquele momento: a ser fisicamente agredida pelo seu irmão, quando saía da prisão de Newgate na companhia do Comité de Senhoras. Jordan Willis, o novo conde de Blackmore, visconde de Thornworth e barão de Ashley, não era da espécie de individuo capaz de esconder o seu mau humor quando não concordava com alguma coisa, assim como um grande numero de membros do Parlamento tinham podido sentir na pele. E agora tinha tomado a liberdade de vir buscar em pessoas, mostrando uma rudeza brutal, empurrando-a para a carruagem da família Blackmore 2


como se fosse uma simples criança. Sara conseguia ouvir as gargalhadas entre cortadas das suas amigas enquanto Jordan abria bruscamente a porta da carruagem e a cravejava com um olhar inflexível. — Entra na carruagem, Sara. — Jordan, sinceramente, não é necessário recorrer a esses modos tão pouco elegantes. — Imediatamente! Engolindo o orgulho e a vergonha, Sara entrou na majestosa carruagem com tanta dignidade como pode. Ele entrou atrás dela, fechou a porta com um puxão seco, e depois desmoronou no banco à frente de Sara com tanta força que a carruagem oscilou energicamente Enquanto dava ordens ao cocheiro para que se pusesse em marcha, ela olhou para as suas amigas através da janela como se pretendesse pedir desculpas. Supunha-se que teria que ir com elas tomar chá na casa da senhora Fry, mas naturalmente já tinham percebido que isso não seria possível. — Por amor de Deus, Sara. Deixa de olhar para as tuas amigas com essa cara de tristeza e olhe para mim! Acomodando o seu frágil corpo nos almofadões de Damasco, Sara desviou o olhar e olhou para o irmão. Abriu a boca para reprovar a sua conduta execrável, mas fechou-a quando reparou no rosto franzido tão ameaçador. Apesar de estar habituada ao terrível gênio de Jordan, não gostava de ser a parte receptora. Praticamente, toda a sociedade londrina concordava com ela nesta questão, já que quando Jordan se aborrecia, conseguia ser realmente abominável. — Diga, Sara, que aspecto tenho hoje? — rugiu ele. Se Jordan era capaz de fazer uma pergunta como essa, talvez não estivesse tão zangado, apesar de tudo, pensou Sara. Cruzou as mãos sobre a saia e estudou-o durante uns segundos. Tinha a gravata um pouco torta, um detalhe pouco habitual nele. O cabelo ruivo estava no seu estado ingovernável habitual, e a jaqueta e as calças estavam visivelmente enrugadas. — Diria que um pouco desalinhado, para ser sincera. Necessitas te barbear, e a tua roupa está… — Sabe por que tenho este aspecto? Tem idéia do motivo que me obrigou a sair disparado da minha casa de campo, sem dispor de tempo nem para dormir nem para me arrumar devidamente? A sua reprimenda conseguiu que as sobrancelhas escuras formassem uma linha sólida de censura. Ela tentou imitá-lo, mas não conseguiu. Fazer cara de poucos amigos não era o seu forte. — Tinha vontade de me ver? — Aventurou-se a responder. — Não faça piadas. — Resmungou ele naquele tom de aviso que usava para acovardar as senhoras que queriam apresentar-lhe as filhas casadoiras. — Sabe perfeitamente porque estou aqui. E não tente oferecer o seu rosto mais doce; não consentirei que leve a cabo o teu projeto. Santo céu. Não podia saber, pois não? — Que... que projeto? O Comitê de Senhoras e eu limitamo-nos a distribuir cestas de comida entre as pobres infelizes que cumprem pena em Newgate. — Não minta, Sara; mente mal. Sabe perfeitamente que esse não era o motivo pelo qual estava na prisão de Newgate. — Jordan cruzou os braços sobre a jaqueta que se ajustava perfeitamente ao seu corpo, desafiando-a a contradize-lo. Sabia o verdadeiro motivo? Ou estava apenas a lançar uma isca? Com Jordan nunca se sabia. Mesmo quando ele tinha apenas onze anos e a mãe de Sara se casou com o seu pai e a levou a viver para Blackmore Hall, Jordan já se comportava de um modo completamente inescrutável, especialmente quando tentava arrancar algum segredo de sua irmã. 3


Bom, ela também conseguia ser impenetrável. Cruzou os braços em cima do peito numa tentativa de o imitar e depois inquiriu: — E pode-se saber porque estava em Newgate, senhor Sabe tudo? Ninguém conseguia intimidar Jordan. A única razão pela qual ele consentia essas insolências pela parte dela era porque realmente a considerava como sua verdadeira irmã, apesar de que pelas suas veias não corresse o mesmo sangue. No entanto, a julgar pelo intenso brilho nos olhos castanhos, desta vez Sara estava se excedendo com muito atrevimento. — Estava em Newgate para conhecer as mulheres que serão transferidas para a colônia de Nova Gales do Sul, na Austrália, no barco de reclusas que zarpará daqui a três dias, porque meteu na cabeça a disparatada idéia de ir com elas. — Quando Sara abriu a boca para protestar, ele acrescentou: — Não negue. Hargraves contou-me tudo. Maldição! O mordomo tinha dado com a língua nos dentes? Mas Hargraves sempre tinha sido leal! Porque razão, aquele infeliz tinha traído agora a sua confiança? Com um terrível sentimento de derrota, mergulhou pesadamente no banco e olhou pela janela. O céu estava amontoado como um prato de nata cortada, e uma densa nuvem cobria o resto do panorama. A carruagem havia penetrado agora na conhecida rua de Fleet Street, onde tinham sede todos os editoriais mais importantes em Inglaterra. Normalmente a atividade de gente naquela famosa rua conseguia animá-la, visto que demonstrava que pelo menos alguma coisa estava tentando mudar na sociedade. Mas naquele momento não conseguia levantar o ânimo. Jordan continuou com uma voz firme. — Quando recebi a carta de Hargraves, deixei um bom número de trabalhos inacabados em Blackmore Hall para vir correndo a Londres e tentar te fazer raciocinar. — É a ultima vez que confio em Hargraves — murmurou ela. — Não seja assim, Sara. Já te disse várias vezes; embora se negue a ver os perigos que assume ao continuar em contato com aquela mulher, a senhora Fry, e o seu Comitê de Senhoras, os criados e eu percebemos. — A nota de preocupação na voz dele tornou-se mais patente. — Até o Hargraves, que está a favor dos teus esforços reformistas, não é tão ingénuo para não reconhecer os riscos envolvidos não teu novo projeto. Ele apenas se limitou a cumprir a sua obrigação; se não tivesse contado, eu o teria posto na rua, e ele sabe disso. Sara olhou fixamente para o seu bonito meio-irmão, cujo cabelo ruivo e os olhos castanhos se pareciam tanto aos seus que as pessoas normalmente pensavam que era suaverdadeira irmã. Às vezes, as intenções de Jordan de protegê-la pareciam encantadoras, mas na maioria dos casos eram chatas. Se não fosse pelas obrigações como novo conde, que lhe ocupavam praticamente todo o tempo, Sara nunca seria capaz de se dedicar aos projetos que considerava mais importantes do que a segurança e a decência. Perante a surda paz da sua meia-irmã, Jordan acrescentou: — Olhe, Sara, não é que não esteja de acordo com as suas idéias reformistas. Garanto que valorizo muito os esforços do Comitê das Senhoras. Sem elas, haveriam mais órfãos na rua, mais bebês mortos de fome… — Mais pobres infelizes obrigadas a se prostituir por se atreverem a roubar pão para os seus filhos. — Ela inclinou-se para a frente, com os traços rígidos perante o ultraje moral que sentia. — Vão enviar aquelas reclusas para uma terra desconhecida só porque cometeram umas ofensas irrelevantes, pelo mero motivo de que na Austrália precisam de mais mulheres. — Entendo — repôs ele secamente. — Está me dizendo que não acredita que nenhuma delas merece estar na prisão. — Não ponha palavras na minha boca. — Respondeu Sara, recordando as mulheres que 4


tinha conhecido nesse mesmo dia. — Admito que muitas delas são ladras e prostitutas... ou algo pior. Mas pelo menos metade delas são mulheres que se viram obrigadas a roubar por culpa da pobreza. Deveria ouvir os seus «horríveis» delitos: roubar roupa velha para a trocar por um pouco de carne, ou roubar um xelim da caixa registadora. Uma mulher foi condenada a ir para a Austrália por ter roubado quatro couves de uma horta. Quatro couves, por amor de Deus! Em comparação, um homem apenas teria recebido um par chicotadas pelo mesmo delito. A expressão do rosto de Jordan tornou-se mais solene. — Eu sei que a justiça nem sempre é justa, bonequinha. Mas as coisas foram resolvidas no Parlamento, aprovando leis. Agora chamava-a de «bonequinha». Só a chamava assim quando queria acalmá-la. — O Parlamento delegou as responsabilidades que tinha sobre as reclusas transportadas para a Austrália para o Conselho Naval, cujos membros simplesmente não sabem nada do assunto. A humidade fria da carruagem de Blackmore não se podia comparar com o frio amargo que aquelas mulheres sofriam na prisão de Newgate nem o que sofreriam durante a viagem. Até teriam que suportar coisas ainda piores. A voz de Sara tornou-se mais glacial por causa de tal pensamento. — No mesmo instante em que aquelas mulheres pisarem os barcos, a tripulação cai em cima delas. Os barcos convertem-se em bordéis flutuantes, até as mulheres chegarem ao seu destino, onde são entregues a patrões ainda mais desalmados. Não te parece um castigo demasiado severo para uma mulher que roubou um pouco de leite para alimentar o seu bebê? — Bordeis flutuantes. E contando-me tudo isso espera me convencer para que te deixe subir num desses barcos infernais? — Oh, os homens não me incomodarão, se é que me entende. Só se aproveitam das reclusas porque sabem que elas não estão em condições de contra atacar. — Não te incomodarão — repetiu ele com sarcasmo. — Olha, se isso não é ridículo, ou ingênuo… Jordan calou-se quando ela o olhou fixamente. — Sara, um barco cheio de reclusas não é o lugar mais adequado para uma... — Reformista? — A carruagem balançou bruscamente ao se esquivar de um buraco. Quando voltou novamente a avançar com mais calma, ela acrescentou: — Não consigo pensar numa situação mais adequada que precise da intervenção de uma reformista. — Por todos os demônios! E pode se saber porque diabo pensa que tua presença naquele barco conseguirá mudar alguma coisa? Sara ficou perplexa perante a blasfêmia. Lamentavelmente, não era o momento oportuno para dar um sermão sobre essa questão. — Os grandes senhores do teu Parlamento ignoraram os protestos dos missionários que embarcam com as reclusas. Mas não ignorarão a irmã do conde de Blackmore se esta se apresentar diante deles com uma informação detalhada sobre as condições deploráveis, tanto nos barcos como na Austrália. — Tem razão. — Jordan inclinou-se para a frente, apoiando as mãos enluvadas nos joelhos. — Não poderão ignorar... se for. Mas visto que não existe a mais remota possibilidade de te deixar ir... — Não conseguirá me deter, e tu sabe. Tenho idade suficiente para ir onde quiser, com ou sem a tua permissão. Mesmo que me trancasse no meu quarto, encontraria maneira de escapar, e se não o conseguisse a tempo para embarcar nesta ocasião, conseguiria na seguinte. 5


Jordan estava tão lívido que ela temeu que desmaiasse ali mesmo. Santo céu, que instável que era aquele homem. Que Deus tivesse piedade da mulher que acabasse por casar com ele. — Se pensava que não podia te deter, porque esperou que estivesse fora da cidade para colocar o teu plano em ação? — Contestou ele. — Precisamente porque queria evitar esta discussão. Porque gosto de ti o suficiente para odiar lutar contigo. Jordan farfalhou uma maldição que não se ouviu, sufocada pelo movimento da carruagem. — Então, porque não gostas de mim o suficiente para que fiques aqui? Sara suspirou. — Vamos, Jordan, a minha ausência certamente fará sua vida mais fácil. Será mais cômodo correr para uma das tuas quintas se não tiver que se preocupar comigo. A travessia até Nova Gales do Sul durava quase seis meses de ida e mais seis meses de volta, assim Sara estaria ausente durante um ano. — Não tenho que me preocupar contigo? O que acha que farei durante todo esse tempo? — Deu um murro na almofada da carruagem. — Por Deus, Sara, os barcos afundam, há epidemias, e existe sempre a possibilidade de um motim a bordo... — Ui, sim! E não te esqueça dos piratas. Sem dúvida nenhuma, seremos uma apetecível recompensa para eles. — Sara sufocou uma risada. Jordan pensava sempre no pior, mesmo que fosse a coisa mais absurda que um homem pudesse imaginar. — Acha que o mar é uma diversão, não é? — Passou os dedos pelo cabelo, alisando-o ainda mais. — Não imagina o quanto está arriscando. — Está enganado. Eu sei. Mas às vezes uma pessoa deve arriscar-se a certos perigos para obter algo que mereça realmente a pena. Um brilho de melancolia surgiu nos olhos de Jordan. Emitiu um suspiro e abanou a cabeça. — Não há dúvida de que é filha de Maude Gray. A menção da sua mãe fez com que Sara ficasse séria. — Sim, sou, e tenho muito orgulho nisso. A sua mãe tinha lutado duramente por reformar alguns aspectos no país. Começou no dia em que o pai de Sara, um soldado sem trabalho, foi encarcerado por causa de umas dívidas. E continuou essa luta mesmo depois da morte do seu marido, que morrera enquanto cumpria pena na prisão. Sara estava completamente convencida de que tinha sido a generosidade da sua mãe o que tinha seduzido o falecido conde de Blackmore. A sua mãe conhecera o conde, um homem de ideias muito progressistas, enquanto esta solicitava a sua ajuda para conseguir que os membros da Câmara dos Lordes ouvissem os seus planos para reformar o sistema penitenciário. Apaixonaramse quase de imediato, e depois de se casar com ele, Maude continuou com as suas atividades reformistas. Até ela morrer dois anos antes, por causa de uma dura e prolongada doença. Os olhos de Sara encheraram-se de lágrimas. Afastou-as com as costas da mão e depois desviou os dedos pata acariciar o medalhão de prata gravado da sua mãe, que usava sempre pendurado no pescoço. — Ainda sente a falta dela. — o comentário aveludado de Jordan rompeu o silêncio reinante na carruagem. — Não passa um dia em que não pense nela. O bater que Jordan começou a dar com os dedos no seu joelho demonstrou o enorme grau de incomodidade que a profunda emoção da sua meia-irmã tinha provocado nele. — eu também gostava da tua mãe. Tratou-me como um filho, mesmo naquela época em que... não queria ter uma mãe ao meu lado. 6


Sara sempre pressentira que havia algo peculiar na relação de Jordan com a sua própria mãe, que morreu apenas um ano antes de Maude conhecer o seu pai e se casasse com ele em segundas núpcias. Mas Jordan e o pai sempre tinham negado a falar da primeira lady Blackmore, e Sara nunca os pressionou a esse respeito. — Para ser sincero, eu também sinto falta da tua mãe — apressou-se a acrescentar Jordan, — e respeito o seu trabalho como reformista. — E o teu pai também o respeitava; não se esqueça. — Sim, mas até o meu pai teria se oposto a esse teu projeto. Teria alegado que deveria ficar aqui e… — E para fazer o quê? Dar de comer aos pobres? Realizar visitas ocasionais à prisão enquanto ignorava os teus esforços para me encontrar um marido adequado? Sara arrependeu-se das suas palavras duras no momento em que as pronunciou. Não queria enfurecê-lo, não quando ia sair de Londres ao fim de poucos dias. — Os meus esforços por encontrar um marido adequado para você! Pode-se saber a que diabo te referes? — Não sou assim tão ingênua, Jordan. Sei porque insiste tanto em que vá a essas celebrações que estão na moda entre a alta sociedade. — Inclinando-se para a frente, Sara segurou as mãos do seu meio-irmão entre as suas; notou que estavam geladas e rígidas, apesar das luvas de pele que as cobriam. — Pensas que se me exibir perante os solteiros suficientes que possam ser um bom partido, um deles terá pena e se casará comigo. — terá pena de você! — Jordan tirou as suas mãos com amargura. — Como pode falar assim? É linda, inteligente e espirituosa. O que acontece é que ainda não encontrou o homem da sua vida... — O homem ideal não existe. Porque não consegue meter essa ideia tão simples na tua cabeça dura? — Ainda guarda rancor pelo coronel Taylor. Não é verdade? Recusa-se a conhecer outros homens porque não deixei você casar com ele. — Não é verdade! Isso aconteceu há cinco anos. E não é verdade que não teria casado com ele se eu quisesse. — Quando Jordan olhou para ela surpreso, ela hesitou, debatendo-se entre o seu orgulho e a necessidade que sentia por fazer com que ele compreendesse os seus sentimentos. No final venceu a necessidade. — eu... nunca te contei, mas... lembra da noite em que explicou tudo ao teu pai? A noite em que ele me chamou e me ameaçou me deserdar se me casasse com o coronel? — Como é podia esquecer? Ficou imensamente zangada comigo. — Bom, pois nessa mesma noite escapei de casa para ver o coronel Taylor em segredo. As bonitas feições de Jordan torceram-se de angústia. — Não pode ser! — Fui vê-lo e... e pedi para fugirmos juntos. — Sara desviou o olhar para a janela. As dolorosas recordações não lhe permitiam manter o olhar fixo nos penetrantes olhos do seu irmão. — mas ele não quis. Aparentemente o coronel era realmente um canalha, tal como tu tinhas garantido. Só me queria pela minha fortuna. E eu estava tão iludida que não percebi. Sara esperou que o irmão aceitasse a confissão como forma de lhe demonstrar que era plenamente consciente de que no passado tinha tido decisões precipitadas. Mas quando ele lhe deu umas palmadinhas no joelho, teve que fazer um esforço enorme para conter as lágrimas que queriam aparecer novamente. — Iludida não, bonequinha. — a voz dele era rouca e carinhosa. — eras apenas muito jovem. Vocês mulheres deixam-se guiar pelo vossos instintos nessa idade, e dizem que o amor é 7


cego. Não conseguias ver a sua verdadeira pessoalidade, assim como todos nós víamos. — Mas devia ter visto! Todos perceberam... tu, o papá, até a mamã. A única pessoa incapaz de ver fui eu. — E essa é a razão pela qual não quer dar nenhuma oportunidade a outros possíveis pretendentes? Porque pensa que te decepcionarão? Sara começou a brincar nervosamente com um dos laços do vestido de cor azul, retorcendoo inflexivelmente com o dedo indicador metido na luva. — Enquanto a mamã esteve doente, não tive tempo para pensar em pretendentes. Quando morreu, acho que... me apavorei. Enganei-me tanto na minha primeira escolha... e agora... agora não sei se consigo distinguir entre um caça dotes e um homem de confiança. — Não pode acusar nenhum dos meus amigos de andar atrás de você pela sua fortuna. Pensa em Saint Clair, por exemplo. Admito que não tem uma grande fortuna, mas a riqueza não é um fator determinante para ele. E costuma dizer frequentemente que és linda. — Saint Clair nunca aprovaria o meu trabalho. Esse homem quer uma mulher que se comporte como a dona e senhora da sua casa, e não uma reformista. — depois acrescentou num tom irónico: — Além disso, gosta de salmão, e eu não consigo suportar um homem que goste de salmão. — Vamos, não brinque, Sara. Há um monte de homens que estariam dispostos a casar contigo. Sara retorceu o laço com mais força. — Não tanto como acredita. Os homens que estão abaixo da minha posição social sentem-se atraídos pela minha fortuna, e os homens que estão acima não querem complicar a vida com uma esposa que se dedique a incomodar os seus amigos com ideias reformistas. — Então procura algum de posição intermédia. — Não existe um indivíduo assim. Sou uma plebéia adotada por um conde, mas sem ascendência própria. Não sou nem carne nem peixe. Não pertenço ao teu mundo, Jordan. Nunca pertencerei. Só me sinto cômoda quando estou com as do Comité de Senhoras, e nesse círculo garanto que não existem potenciais pretendentes. O que Sara não disse era que nunca encontraria um homem de qualquer posição social com o qual pudesse imaginar passar o resto da sua vida. Os amigos de Jordan eram tipos muito agradáveis, mas preferiam passar a vida a divertir-se em vez de fazer alguma coisa útil. E nenhum deles a compreendia. Nem um só. — Por Deus, Sara, se acreditasse que com isso evitaria que partisse, eu próprio me casaria contigo. Não temos vínculos de sangue, pelo que suponho que poderíamos casar. Sara desatou a rir. — Supões? Que entusiasmo! — Sabendo como sabia o que Jordan pensava acerca do casamento, ficou gratamente surpreendida por ter sugerido que se casaria com ela. Tentou imaginar como seria a sua vida casada com Jordan, mas foi impossível. — que disparate! Não é viável, e tu sabe disso. Não somos irmãos de sangue, mas comportamo-nos como irmãos em quase todos os aspectos. Nunca poderíamos consumar o casamento. — É verdade. — Jordan parecia visivelmente aliviado por ela ter recusado a oferta que tinha lançado de forma tão irrefletida. — além disso, isso não evitaria que partisses, pois não? — Suponho que não. Vamos, Jordan, aquele barco cheio de reclusas não será tão mau como imaginas. a maioria das mulheres foi condenada por delitos não violentos. O médico levará a esposa e, no passado, os missionários levavam as esposas a bordo. Serei perfeitamente respeitada. A carruagem entrou no elegante e efervescente bairro de Londres chamado Strand, e Jordan cravou o olhar na janela, como se procurasse respostas nas caríssimas lojas que faziam as delícias 8


da aristocracia. — E se levar um criado, para te proteger? Sara lançou-lhe um olhar perspicaz. O seu irmão estava a acalmar, sabia disso. Escolheu as palavras com muito cuidado. — Não posso levar um criado. A nossa ideia é esconder a minha relação contigo. Vou fazerme passar por uma professora solteirona, que se encarregará de montar a escola para as reclusas e para os filhos delas, assim como o fizeram até agora os missionários. — Filhos? A imagem de todas aquelas crianças que acabariam por embarcar naqueles barcos encheu-a de uma raiva incontida. — Sim, uma reclusa enviada para a Austrália tem direito a levar com ela os filhos com menos de seis anos e as filhas com menos de dez. Se considera que me verei exposta a um espectáculo deplorável, imagina aquelas pobres criaturas — comentou Sara com amargura. Jordan permaneceu uns instantes em silêncio, como se estivesse imaginando a cena. — E porque é que tem que viajar incógnita? — Vou escrever um diário relatando os abusos. Se o capitão e a tripulação averiguarem que sou sua irmã, esconderiam as suas artes. Queremos uma informação honesta sobre as condições daquela espécie de viagens; por isso não posso revelar os meus vínculos com a nobreza. — Mas isso não significa que não consiga enviar um... — Sara Willis, uma simples professora, não viajaria com um criado, garanto. — Genial — pronunciou ele com um tom sarcástico. — Nem sequer poderá dispor de um criado. — Não precisarei dele. — Sara tentou falar com um tom mais animado. — me considera tão inapta a ponto de não ser capaz de ficar sozinha durante um tempo sem um criado? — Sabe perfeitamente que não se trata de ser ou não capaz. — Jordan fez uma pausa e depois prosseguiu. — então está decidida a embarcar no Chastity 1, não é verdade? Maldição! Quem terá lembrado de um nome tão inapropriado para esse barco? Quando Sara o criticou com o olhar, ele afastou o dele e fixou-o de novo na janela. Já estavam chegando à mansão que a família Blackmore possuía na cidade. Era um palacete impressionante localizado em Park Lane, no coração do elegante bairro de Mayfair, que tinha sido construído com a intenção de intimidar qualquer mortal inferior que se aventurasse a entrar nos seus espectaculares corredores. Sara recordava como aqueles imponentes pilares e as múltiplas janelas a tinham impressionado da primeira vez que ela e a sua mãe participaram de um jantar na esplêndida mansão. Mas o seu padrasto não permitiu que ela se sentisse intimidada. Ofereceu-se para lhe mostrar a nova ninhada de cachorros que abrigava na cozinha, e com esse gesto conseguiu ganhar o seu coração para sempre. Às vezes sentia falta dele tanto como da sua mãe. Nunca conhecera o seu verdadeiro pai, e o conde preencheu esse posto de uma forma tão admirável que Sara sempre o viu como seu verdadeiro pai. Ele amava a sua mãe loucamente. Apesar da sua morte ter acontecido um ano depois de Maude falecer deixou destroçados tanto a ela como a Jordan, não foi uma surpresa para nenhum dos dois. O Lorde e a lady Blackmore nunca gostaram de estar separados. A carruagem parou, Jordan saltou sobre o caminho coberto por uma finíssima capa de gelo e depois apressou-se a ajudá-la a descer. Em vez de lhe soltar a mão rapidamente, capturou-a entre as dele. — Não há nada que possa fazer para evitar que vá? 1

«Chastity» en inglés significa «castidad». (N. de la T.)

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— Nada. É uma coisa que tenho de fazer. A sério, Jordan, não se preocupe. Vai correr tudo bem. — É a única família que me resta, bonequinha. E a verdade é que não quero te perder. Sara notou como se formava um nó na garganta, e esfregou carinhosamente a mão do irmão. — Não me perderá. Apenas deixará de me ver durante um tempo. O ano passará voando, vai ver, e antes que perceba já estarei de volta. Um ano. A Jordan pareceu-lhe uma eternidade. Apesar de não pronunciar nem mais uma palavra quando ela o agarrou pelo cotovelo e o arrastou até ao interior da casa, sentiu uma enorme vontade de a abanar para incutir juízo. Uma mulher da sua posição num barco cheio de reclusas! Que loucura! Mas sabia que não poderia fazer nada para a deter. Talvez se o seu pai estivesse vivo... Não, nem o seu pai teria sido capaz de convencer Sara quando esta estava determinada a fazer alguma coisa. A confissão de como tinha escapado de casa para ver às escondidas o coronel Taylor era a prova. Que o demônio levasse Taylor! Se não fosse por esse maldito coronel, provavelmente agora Sara estaria casada e rodeada de um par de filhos, em vez de planear viajar para a Austrália numa missão disparatada. Jordan observou Hargraves enquanto este se aproximava para segurar o resguardo da sua irmã. Ela lançou-lhe um olhar acusador. O pobre Hargraves ficou corado até às raíz do seu escasso cabelo. — Desculpe, menina. Sinto muito, sinceramente. Como era costume, Sara acalmou-se perante os remorsos do criado. Deu rapidamente uma palmadinha na mão ao mesmo tempo que murmurava: — Não se preocupe. Apenas cumpriste o teu dever. A seguir, virou-lhe as costas e começou a subir os alcatifados degraus da majestosa escadaria. Jordan contemplou-a sem pestanejar. A sua irmã era a pessoa mais generosa e gentil que alguma vez tinha conhecido. Como diabos ia sobreviver num barco cheio de reclusas? Os seus trabalhos com o Comité de Senhoras tinham-lhe proporcionado uma pequena amostra das misérias humanas, mas nunca tinha visto imersa nesse mundo tão cruel. No barco, ia ficar irremediavelmente aprisionada durante um ano ou mais. Desprotegida. Sozinha. Jordan observou a sua bela figura por trás, as pontas do cabelo cobre que apareciam por baixo do cabelo recolhido, o seu andar inconscientemente feminino, e um suspiro escapou dos seus lábios. Sara não percebera o quanto era atraente. Podia sentir-se incômoda entre a alta sociedade, mas isso não evitava que todos os homens a desejassem. Pelo contrário. Ele tinha passado a primeira metade da temporada de bailes travando os impulsos mais atrevidos dos pretendentes mais ousados da sua irmã. Sara não era especialmente bonita, embora se pudesse considerar uma mulher decididamente atraente. No entanto, conseguia atrair os homens graças a sua inteligência e àquela amabilidade tão sincera que exercia com todas as pessoas, sem ter em consideração a posição social do seu interlocutor. Uma professora solteirona e amargurada não teria nada a temer dos marinheiros a bordo do Chastity, mas não seria o mesmo com Sara. Como podia permitir que embarcasse naquele barco sem nenhuma espécie de proteção? Não podia. E visto que não podia negar o direito de ir, só lhe restava uma alternativa. Teria que imaginar alguma coisa para a proteger. Assim que Sara desapareceu da sua vista, Jordan olhou fixamente para Hargraves. — Conhece algum marinheiro? 10


— Sim, senhor. — o criado de meia-idade segurou o resguardo e o chapéu do conde com uma expressão estudadamente inexpressiva. — O meu irmão mais novo, Peter, é marinheiro. Um plano começava a germinar na mente de Jordan. — É bom em defesa própria? E é capaz de defender alguém? Hargraves deu-lhe um olhar esperto. — Esteve na Marinha seis anos antes de se envolver na tripulação de um barco mercante. Pelo que me disseram, é muito bom com os punhos. Não nos vemos com frequência, porque ele passa a maior parte do tempo em alto mar. — Está embarcado neste momento? — Não, senhor. Regressou há umas semanas. — Excelente. Acha que ele se interessará a voltar a embarcar dentro de uns dias? Há boa quantia de dinheiro à espera dele. O criado assentiu. — Tenho certeza que sim, senhor. Não tem esposa para se preocupar. Além disso, deve-me uns favores. — Faça com que venha aqui amanhã às dez. Ah, e certifique-se para que Sara não o veja. Compreendeu? — Sim, senhor — respondeu Hargraves com um ar conspirador. — e devo acrescentar, senhor, que tenho a certeza de que Peter não o decepcionará. — Assim espero. — Com um sorriso, Jordan despediu-se de Hargraves, aliviado por ter encontrado forma de vigiar Sara enquanto ela estivesse a bordo daquele horrível barco. Não queria ter ilusões até conhecer Peter Graves em pessoa, mas se o tipo parecesse adequado, Sara teria um companheiro no Chastity, quer quisesse ou não. Capítulo 2 Ninguém deveria confiar na sua virtude se não tem a ocasião de pecar, visto que a sua coragem é desconhecida até que perceba. Por conseguinte, um dos primeiros deveres é evitar cair no erro de tentar. Carta de 22 de Junho de 1752, LADY MARY WORTLEY MONTAGU, considerada figura da alta sociedade inglesa Tinha decorrido uma semana desde a discussão entre Sara e o seu meio-irmão, e agora ela encontrava-se na coberta do Chastity. Era de manhã cedo, naquela hora em que o oceano se assemelha a um fabuloso tapete aquático. o espectáculo não podia ser mais fascinante. Sara nunca tinha presenciado nada parecido até dois dias antes, quando deixaram para trás as águas do Tâmega para entrar em alto mar. foi rapidamente seduzida pela natureza inconstante do oceano. O primeiro dia decorreu como se navegassem ao lombo de um dragão desvairado que transportava o barco sobre as suas costas ondulantes. Com o seu rugido, a besta tinha dispersado uma neblina que pelas varandas da coberta, os tinha rodeado a todos completamente, e com as garras aquáticas batia furiosamente no casco do navio, fazendo com que o barco de três mastros oscilasse ruidosamente em cada novo ataque, como se tratasse de um simples fantoche. Naquele dia, no entanto, o dragão estava mais calmo, parecia que tinha se transformado num inofensivo cavalinho de baloiço que se dedicava a empurrar o barco para a frente num agradável movimento rítmico. Sara inalou o ar salgado, tão diferente do fedor incômodo de Londres. Graças a Deus tinha escapado dos terríveis enjoos que algumas reclusas tinham sofrido. Era como se tivesse nascido para viver no mar. 11


— Está um belo dia, não está, menina? — disse uma voz ao seu lado. Sara deu rapidamente meia volta e descobriu um dos marinheiros que, de pé ao seu lado, se apoiava na varanda. Já tinha visto aquele indivíduo antes, porque pareceu que a observava com demasiada atenção. Havia qualquer coisa nele que lhe parecia familiar, embora não conseguisse decifrar o que era. Não se parecia com ninguém que conhecesse. Era um homem magro mas forte, cerca de trinta anos, com umas orelhas enormes e com as pernas e os braços delgadíssimos; realmente parecia-se com o típico macaco empoleirado num órgão que se podia ver de vez em quando nas ruas da capital. Apesar do seu aspecto não infundir medo, incomodou-a a intensidade do seu interesse. Além disso estava demasiado perto dela, mais perto do que se poderia considerar conveniente. — Sim, um dia muito bonito — murmurou Sara, ao mesmo tempo que se afastava uns passos do sujeito. Seguidamente virou-lhe as costas e pôs-se a observar o oceano, ignorando-o de uma forma descarada, com a esperança de que a deixasse sozinha. Mas ele aproximou-se mais. — Você é a professora das reclusas, não é? a menina Willis. — Sim, iniciaremos as aulas esta manhã. Quando o tipo se inclinou para ela, Sara notou que o seu coração começava a bater loucamente; olhou ao seu redor à procura de ajuda, mas além dos marinheiros que abundavam pela coberta içando as velas ou empoleirados nos mastros, não viu mais ninguém. E o que não pensava fazer era pedir ajuda a um daqueles vinte e dois marinheiros. Não confiava neles. Já tivera que repreender um deles na noite anterior, quando saíra do seu diminuto camarote porque não conseguia conciliar o sono e apanhara aquele tipo a tentar entrar no compartimento destinado às reclusas. Mas onde estava o capitão e os oficiais do barco nessa manhã? E o médico e a sua esposa? — Tinha vontade de falar consigo... — começou a dizer o homem, enquanto Sara se preparava para lhe dar uma forte reprimenda. De repente tocou o sino do barco, anunciando o início do turno de vigilância seguinte. Sara aproveitou-se da intensa atividade do momento, em que os homens desciam apressadamente dos mastros e apareciam outros no convés, para fugir do misterioso marinheiro. Mas as batidas do seu coração continuaram a ressoar nos ouvidos quando entrou precipitadamente no salão onde ela e os oficiais do barco comiam. Talvez o medo de Jordan pela sua segurança tivesse fundamento, apesar de tudo. «Não seja ridícula — disse a si própria ao entrar no salão que já era familiar. — Há um monte de pessoas ao teu redor. A única coisa que não deve fazer é passear sozinha pelo convés». Mas isso não ia ser nada fácil. Não suportava a ideia de ficar o tempo todo no camarote por baixo do convés, e também não tinha ninguém de confiança com quem pudesse caminhar tranquilamente pela coberta. Quando o capitão Rogers entrou na sala e se sentou no extremo oposto da mesa, Sara tinha um rosto triste. O bom do capitão nunca faria companhia a ela. Aquele cinquentão, arisco e fanfarrão, estava mais interessado em governar o seu barco do que em estabelecer conversa com a enviada complicada pelo Comité de Senhoras. Sara observou todos os ocupantes da mesa. Os oficiais pareciam estar demasiado ocupados para querer conversar com ela, e apesar do médico e a sua esposa provavelmente acedessem a acompanhá-la, preferia estar completamente sozinha antes que ter que conversar com aquele casal. Nunca tinha conhecido pessoas tão sombrias, cheias de terríveis presságios sobre tempestades e naufrágios. O médico tinha aterrorizado a filha de uma das reclusas dizendo que o seu rosto saliente era um claro indício de que a pequena acabaria por ser uma criminosa como a 12


mãe. A menina só conseguiu acalmar-se quando Sara lhe disse que a mulher do médico tinha um rosto muito parecido, embora o disfarçasse com uns ridículos cabelos. O cozinheiro do barco atirou a Sara uma taça cheia de lâminas de aveia, e ela agarrou o recipiente pela ponta para evitar que se espalhasse pela mesa por caos do constante balançar do barco. Não, encontrar companhia não era a resposta. teria simplesmente que se contentar com o seu trabalho. felizmente, havia trabalho suficiente para estar todo o tempo ocupada, com as oito crianças em idade escolar a bordo do Chastity, alem das cinquenta e uma reclusas e os treze filhos pequenos. Sara suspeitava de que todos — excetuando os bebés, claro — necessitariam alguma forma de escolaridade. Por isso, uma hora mais tarde, quando desceu às celas da prisão localizadas no convés inferior, sentiu-se com uma enorme vontade de começar. Embora fosse estranho, sentia-se mais em segurança com as reclusas do que com os marinheiros. Com as portas das celas abertas e as mulheres pululando tranquilamente, preparando-se para o dia, Sara quase se esqueceu que eram delinquentes. Estavam divididas com pouca exatidão em oito salas. Durante a noite, duas salas cheias de mulheres com os respectivos filhos fechavamse para formar apenas uma cela que media aproximadamente doze metros quadrados, mas durante o dia as reclusas tinham mais liberdade. Enquanto entravam e saíam, recolhendo os seus pertences num dos três níveis de beliches e com os alguidares cheias de agua salgada para lavar a roupa, tinham o mesmo aspecto que qualquer outra mulher passageira. Bom, salvo pelas tatuagens, claro, que surgiam por debaixo das mangas pouco finas de algumas das mulheres. O que impeliria uma mulher a ornamentar o corpo de uma forma permanente? Provavelmente, a mesma ideia que impelira as mulheres civilizadas em épocas anteriores a exibir perucas cheias de pó e saias com crinolina. Certamente a moda entre as reclusas não era mais absurda do que qualquer outra moda. A verdade é que apenas as delinquentes que mais discutiam usavam tatuagens, as mulheres que tinham feito parte de bandos de ladrões ou que tinham misturado a prostituição com a péssima habilidade de roubar. as criadas ou as empregadas de comércio que tinham sido condenadas ao exílio por roubar uma tarte e roupa usada nunca se atreveriam a desfigurar os seus corpos. Sara agarrou-se a dos mastros quando o barco balançou, e dedicou-se a observá-las criticamente. Estavam vestidas de uma forma deplorável. Para evitar perder o hábito, as regras do Conselho Naval eram um absurdo. Alguém tinha decidido a lã e flanela causavam doenças, por isso não eram considerados materiais aceitáveis para fazer uniformes para as reclusas. Como resultado, as pobres usavam simples camisolas de algodão, que não ofereciam qualquer proteção contra o desagradável inverno do Atlântico Norte. Até às crianças só foi permitido usar peças de algodão. Era preciso fazer alguma coisa a esse rCspeito imediatamente. Além das musselinas que Sara tinha metido nas suas malas para os climas mais quentes, também tinha acrescentado cinco camisolas baratas de lã. Mas não precisava de todas. Duas eram as suficientes, embora isso significasse que teria que as lavar todos os dias. Com as outras poderiam fazer roupas paras as crianças. quanto às mulheres, talvez conseguisse convencer o capitão para que colocasse um fogão nas celas, pelo menos até se aproximarem dos trópicos. Mas isso era uma coisa que podia fazer mais tarde. Agora era o momento de colocar em marcha a sua pequena escola. Sara soltou-se do mastro e separou as pernas o suficiente para conseguir um melhor equilíbrio no chão inconstante do barco, depois deu umas palmas para chamar a atenção das mulheres. Assim que todas ficaram sossegadas e olharam para ela, esboçou um sorriso. 13


— Bom dia. Espero que tenham dormido bem. — Quando elas começaram a murmurar, Sara continuou: — Algumas de vocês já sabem que sou um membro do Comité de Senhoras da senhora Fry porque as visitei em Newgate. Para aquelas que ainda não conhecem, sou a menina Sara Willis, vossa professora. As mulheres começaram a murmurar. Tinham sido informadas que receberiam aulas, mas estava claro que a idéia não agradava a algumas delas. Depois de um longo tempo de cotoveladas e sussurros, uma das mulheres deu um passo em frente, separando-se das restantes. As mãos estavam sem luvas e o rosto estavam roxas e gretadas pelo frio. No entanto, exibia um ar altivo que não coincidia com a sua penosa situação. — Algumas de nós já sabemos o abecedário e também sabemos somar, menina. Não precisaremos de ir às suas aulas. Sara não se ofendeu perante o tom insolente da mulher. as reclusas tinham tido que suportar um sem fim de mudanças nesses últimos dias, pelo que estavam no pleno direito de mostrar desconfiança. O objetivo que se tinha proposto era dissipar tanto quanto possível o receio de todas elas. Sara sorriu para a mulher. — Concordo. Aquelas que já sabem o abecedário e também sabem somar podem ajudar-me com as outras. Será um prazer para mim poder contar com a sua ajuda, menina... — Sara deteve-se por um momento. — Como se chama? A amabilidade de sara pareceu amedrontar a mulher. — Louisa Yarrow — balbuciou. seguidamente, lançou-lhe um olhar cheio de medo, como se pensasse que Sara estivesse brincando com ela. Colocou a cabeça para trás com ar arrogante, e o seu cabelo de cor dourado agitou-se. — mas não sei se quero ajudá-la. — A decisão é exclusivamente sua, menina Yarrow. Embora considere que é uma pena que as crianças passem toda a viagem sem assistir às aulas. A verdade é que esperava que alguém pudesse cuidar delas enquanto eu me encarrego das mulheres que estão interessadas em aprender. — Sara soltou um suspiro exagerado. — mas se ninguém quer me ajudar... — Eu ajudo, menina! — exclamou uma voz do fundo de um dos compartimentos. Sara fixou a vista no ponto de onde provinha aquela tímida voz tão infantil, mas quando a criança de cabelo preto se levantou e se segurou aos barrotes de ferro de uma cela para não perder o equilíbrio, Sara percebeu que não se tratava de uma criança, mas de uma criatura semelhante a uma boneca com proporções femininas. Sara prendeu-se no seu sorriso encorajador. — Como se chama... — Ann Morris, e sou galesa. — o acentuado sotaque galês da mulher não deixava margem para dívidas. — Não sei o abecedário em inglês, mas sei em galês. — E o que pensa que vai conseguir com isso, lá para onde nos levam? — perguntou uma voz sem piedade de um dos beliches. — Só porque se chama Nova Gales do Sul não quer dizer que esteja cheia de galeses! Todas as mulheres desataram a rir às gargalhadas perante aquela resposta tão espirituosa. A pequena Ann Morris parecia amedrontada, o que fez com que algumas prisioneiras rissem com mais vontade. Contrariada, Sara bateu as palmas até que conseguiu que reinasse novamente o silêncio. — De qualquer forma pode me ajudar, Ann — acrescentou, ignorando os comentários ásperos das outras. — Não precisa saber o abecedário em inglês para me ajudar com as crianças enquanto eu dou aulas às mulheres. Poderá aprender ao mesmo tempo que as crianças. Qualquer outra mulher teria sentido insultada por tê-la comparado com as crianças, mas 14


Ann Morris deu-lhe um sorriso de agradecimento antes de sentar de novo. Era óbvio que gostava de crianças, e a intenção de Sara era tirar partido daquele pormenor para ajudar a que a pequena aprendesse. Quando Sara voltou a focar toda a sua atenção no resto das reclusas, surpreendeu-se ao comprovar que já não estavam tão hostis como no início. — Bom, continuemos, o Comité de Senhoras enviou-nos cinquenta quilos de retalhos e material de costura para que possam confeccionar edredões com eles. Cada uma de vós receberá um pacote com material para coser e um quilo de tecido. Podem vender todos os edredões que acabarem e ficarem com o dinheiro que obtiverem. A proposta obteve uma visível aprovação por parte das mulheres. Apesar do escasso dinheiro que pudessem obter com os edredões, Sara sabia que seria muito bem-vindo em terras desconhecidas. Era a primeira vez que colocavam em marcha o projeto de oferecer às prisioneiras material de costura. Nas viagens anteriores, as tripulações dos barcos tinham-se queixado de que as mulheres estavam visivelmente inquietas e que não paravam de causar problemas. Claro que, qualquer pessoa que tivesse a mínima inteligência teria percebido que as mulheres necessitavam de ocupar o tempo com alguma tarefa, mas a inteligência parecia ter sido banida por completo pelos membros do Conselho Naval, pelo que a senhora Fry teve que indicar aquela evidencia. Quando obteve a conformidade do Conselho Naval, o Comité de Senhoras convenceu varias fábricas têxteis a doar retalhos. As senhoras tinham comprado os carros de linhas, as agulhas e outros utensílios com dinheiro dos seus próprios bolsos. — Distribuirei os pacotes dentro de um tempo. — Sara informou as mulheres. — mas primeiro quero verificar quais são os vossos conhecimentos. Levantem o dedo aquelas que sabem o abecedário. Um silêncio incômodo instalou-se no espaço, cheio de olhares desconfiados e de batidas nervosas com os pés. Quando ninguém levantou a mão, Sara acrescentou: — É sério, garanto que apenas quero verificar o que sabem. Prometo que não utilizarei as vossas habilidades ou a falta delas contra vocês. A explicação pareceu encorajar as mulheres. Quase metade delas elevou a mão, incluindo a Louisa Yarrow. Quando começaram a descer os braços, Sara interveio novamente. — Um momento. Aquelas que sabem as letras bem o suficientemente para serem capazes de ler uma página, não baixem a mão. O resto pode baixar. Metades das que tinha a mão levantada baixaram-na. Sara estimou que havia umas treze mulheres que afirmavam que conseguiam ler. A seguir, realizou uma divisão semelhante com as que conseguiam escrever e terminou com sete mulheres que conseguiam tanto ler como escrever. Depois de falar um pouco com elas, atribuiu finalmente a duas das mulheres a tarefa de ajudar Ann no trabalho de ensinar as crianças, e às outras cinco restantes a tarefa de ensinar pequenos grupos de mulheres, divididos segundo os seus graus de conhecimento. Uma das mulheres que afirmou saber ler e escrever, uma prostituta descarada que se chamava Queenie, negou-se a ajudar a dar aulas, alegando que preferia dedicar o seu tempo a «outras» tarefas. Quando levantou a saia até ao joelho, varias mulheres desataram a rir e Sara compreendeu claramente o que Queenie queria dizer. A senhora Fry a tinha prevenido acerca do problema dos marinheiros confraternizarem demasiado com as mulheres, nem sempre era por culpa deles. Algumas das «pombas desonradas» que se encontravam entre as prisioneiras sentiam-se com vontade continuar com a sua profissão durante a travessia. Sara se negava a tolerar tais comportamentos. Só precisava de uma mulher determinada a realizar esses atos ilícitos para provocar os homens a obrigar a agir do mesmo modo. Fora 15


testemunha desse problema em Newgate, e tinha a certeza de que também podia acontecer no barco. Além disso. Ansiava que aquelas mulheres descobrissem os seus próprios valores, e isso não seria possível se elas se dedicassem a traficar com os seus corpos. Mas não podia dizer tudo isso a Queenie, pois não? Em vez disso, decidiu abordar o assunto de outro ângulo. — Concordo, Queenie. Se não é capaz de dar aulas, então o melhor será fazer outra coisa qualquer. Quero apenas aquelas que são qualificadas. Se não é adequada para o cargo, não quero arriscar a deixar fora a hipótese de que outras mulheres aprendam mais do que você. Perante as gargalhadas disfarçadas ao seu redor, o sorriso irônico apagou-se do rosto de Queenie. — Olhe, eu não digo que não possa fazê-lo, mas… — Ficarei francamente satisfeita de me ocupar das alunas da Queenie — interrompeu a menina Yarrow, para surpresa de Sara. Quando Sara olhou para ela com curiosidade, a jovem que falava com um tom tão educado ergueu o queixo e acrescentou: — eu não tenho outras tarefas mais interessantes, pelo menos não as da espécie da Queenie. Não permitirei que nenhum tipo asqueroso me coloque as mãos em cima. Pronunciou as palavras com tanta veemência que Sara não conseguiu evitar de se perguntar porque o tinha dito. Olhou fixamente para Louisa Yarrow, tentando recordar o que tinha lido sobre ela na lista das prisioneiras e os delitos que havia cometido. Ah, sim, Louisa era a que tinha trabalhado como preceptora das filhas do duque de Dorchester até à noite em que apunhalou o filho mais velho do duque e quase o matou. Agora, a educada menina cumpria uma condenação de exílio forçado durante catorze anos. As palavras irritadas de Louisa tinham tornado as mulheres num mutismo hermético, e Sara não soube o que responder. De repente, uma voz suave rompeu o silêncio. — Não quero ofender, Louisa, mas não acredito que tenhamos a mais remota possibilidade de escolher o nosso destino quando chegarmos a Nova Gales do Sul. — quem falava era Ann Morris, com aquele rosto infantil afetado por uma careta de desânimo. — ouvi dizer o que fazem por lá, como enviam as mulheres para servir os colonos. Há homens demais, foi o que ouvi dizer. Vamos virar umas perdidas, queiramos ou não. Sara sentiu uma raiva inesperada perante o pensamento de que até uma jovem tão doce como Ann pudesse sentir-se tão impotente. — Não, não o farão. Quando chegarmos a Nova Gales do Sul, me encarregarei para que vos tratem com o devido respeito. Sara dirigiu-se até aos sacos cheios de material de costura, agarrou alguns pacotes e começou a distribui-los. — Mas antes que possam ganhar o respeito dos outros, terão que aprender a respeitarem a vocês próprias. Devem esforçar-se por melhorar as outras habilidades femininas que possuem até se sentirem orgulhosas de vocês mesmas. Só então poderão escapar das vossas vidas anteriores. Algumas ironizaram. Formaram um círculo e começaram a murmurar nas celas. Mas outras olharam para Sara com uma esperança renovada. Agarraram nos pacotes que Sara lhes oferecia e observaram curiosamente. Depressa se uniu a elas Ann Morris, que deu um olhar tímido enquanto a ajudava a distribuir os pacotes. Depois uniram-se também algumas das mulheres que Sara tinha escolhido como professoras, e num instante formou-se um numeroso grupo de mulheres que contemplavam os materiais que tinham entre as mãos e falavam sobre edredões. Quando todos os pacotes estavam distribuídos, Sara retrocedeu para observar as suas pupilas. Assim, muitas dessas mulheres nunca tinham contado com uma oportunidade. Ninguém 16


tinha dito a elas que eram capazes de se salvar, e todas acreditavam que tinham se perdido irremediavelmente num mundo de ladrões, prostitutas e criminosos. Mas não era verdade. Eram capazes de muito mais. Sara conseguia adivinhar pela forma em que algumas delas se puseram a ajudar as outras, como algumas sentaram imediatamente determinadas a começar a coser, pela maneira em que Ann agarrou numa das pequenas crianças e pacientemente lhe ensinou a tirar algo de um bolso... — Ann Morris! — exclamou Sara, sem acreditar no que via. Dirigiu-se para a pequena mulher galesa precisamente no momento em que o pequeno extraía um pacote de material de costura do bolso do avental de Ann e ria divertido. — posso saber o que está fazendo? Ann levantou o olhar, com um amplo e ingênuo sorriso nos lábios. — É um truque de magia, menina Willis. Queenie me ensinou ontem. Pode-se tirar qualquer coisa do bolso de alguém sem que este perceba. — virou-se para o pequeno — Agora volta a colocá-lo onde estava, Robbie. Não podes ficar com isso; isso seria roubar. Abafando um suspiro de irritação, Sara lançou um olhar de reprovação para Queenie, que de repente demonstrou um súbito interesse em organizar os seus retalhos, murmurando todo o tempo algo acerca de «ingenuas crianças saloias». Sara suavizou a sua voz quando colocou novamente toda a sua atenção em Ann. — Bom, sugiro que a partir de agora evites usar essa categoria de truques mágicos. Poderiam conseguir que estendesse a sua condenação. Quando Ann olhou para ela confusa, ela sacudiu a cabeça. Realmente tinha à sua frente uma árdua tarefa: afastar as mulheres incorrigíveis das pobres almas inocentes tão fáceis de corromper. Algumas dessas mulheres poderiam chegar a converter-se em membros úteis para a sociedade. Mas isso não aconteceria apenas num dia. A noite tinha caído quando Sara terminou a sua primeira campanha com as mulheres. Apesar das lições já terem acabado há um tempo, ficou com elas por baixo do convés, tentando averiguar tudo o que podia sobre elas. Ao princípio mostraram-se receosas de falar, mas depois de um tempo de tenção Sara obteve um pouco de informação acerca delas e dos filhos. Uma das reclusas chamava-se Gwen Price, era galesa como Ann, mas falava tão pouco de inglês que Ann teve de fazer de intérprete. Também havia uma mulher com cara de ratinha chamada Betty Slops, que parecia ser uma escrava do infeliz significado do seu apelido — que em inglês significa: «restos» — já que exibia constantemente os restos da sua última refeição na desalinhada camisola de algodão. E havia a Molly Baker, que tinha sido condenada por vender produtos roubados e estava grávida do segundo filho. A sua primeira filha, Jane, era filha do marido, mas o bebê que esperava tinha sido concebido em Newgate, depois que fora «seduzida» por um dos guardas. Uma violação, para dizer explicitamente. Era exasperante pensar que esse mesmo sistema que tinha permitido que a violassem e agora que estava grávida a tivesse castigado por algo que não era culpa dela, condenando-a a um exílio forçado apesar do seu avançado estado de gestação. Sara tinha tentado passar um tempo com cada uma delas. Quando chegou a hora de fechar as celas para dormir, subiu pelas elevadas escadas que ligavam as celas com as câmaras e notou uma terrível dor em cada um dos músculos da cabeça. Só tinha abandonado as prisioneiras por duas vezes para ir comer cereais na cozinha, e agora tudo o que ansiava era subir para o seu beliche e dormir. No entanto, quando abriu a escotilha, encontrou um marinheiro de pé, entre as estreitas câmaras. Por todos os santos, era o mesmo marinheiro que havia tentado descer ao compartimento das mulheres na noite anterior, e parecia tão surpreendido de a ver subir dali 17


como ela estava com a sua aparição. Aproveitando a clara surpresa que o indivíduo manifestou, Sara acabou de subir rapidamente as escadas e fechou a escotilha atrás dela. — Boa noite — cumprimentou-o com voz gélida. O tipo estava sozinho. as câmaras usavam-se como armazém. Ninguém descia àquele lugar do barco, o que significava que aquele homem estava ali por algum motivo impróprio. Sara sentiu-se invadida por uma incômoda sensação, mas tentou escondê-la olhando para o marinheiro com a testa franzida. — O que faz aqui? O marinheiro era realmente um tipo desagradável. Tinha uma barba desalinhada e cheirava a agua salgada rançosa e a rum, a bebida preferida de todos os piratas deste mundo. — Olhe, menina, Queenie está à minha espera, sendo assim não se meta nos meus assuntos — respondeu com animosidade. Pensar que ele mantinha uma relação indecorosa com uma mulher diante de todos na prisão provocou a Sara um nojo indescritível. Esforçando-se por oferecer a sua expressão mais severa, cruzou os braços sobre o peito. — Naturalmente, percebeu que não vou permitir que exponha as crianças a um espectáculo tão degradante. Ele olhou para ela com cara de mau. — Crianças? Não, mulher, não. Trago-a para cima comigo. — De um dos bolsos das calças bolorentas tirou um molho de chaves e fê-las tilintar diante dela. — tenho certeza de que aquela rapariga e eu podemos encontrar um lugar privado para ir ao fundo de uma questão que não lhe diz respeito. Sara cravou o olhar no molho de chaves que ele movia em círculos ao redor do sujo indicador. — Quem deu essas chaves a você? — inquiriu ela. — O primeiro-tenente. Disse, aos rapazes, que desde que não incomodássemos ninguém, não se importava com o que fizéssemos com as mulheres. Por todos os santos! Sara pensava deixar escrito o sucedido no seu diário. O Comité de Senhoras seria informado de que aquelas brincadeiras se expendiam até às patentes mais altas dos oficiais do barco. Rapidamente colocou-se diante da escotilha para bloquear a passagem ao marinheiro. — Desculpe, mas não posso deixá-lo descer. — Olhe, menina, você não sabe nada deste assunto. — o sujeito deu um passo em frente e sorriu ironicamente, mostrando um orifício entre dois dos seus dentes meio podres. — afaste-se do meu caminho, antes que mude de opinião sobre qual é a mulher que me apetece. Sara ficou corada quando percebeu o que ele queria dizer. Que desfaçatez! Oh, agora pensava mesmo ir falar com o capitão sobre aquele rufião! Certamente, o capitão não toleraria tais conversas dirigidas a uma mulher absolutamente respeitável! — Não penso mexer-me até que você saia daqui — contra atacou ela. — saia ou contarei ao capitão o que pretendia fazer! Uma careta desagradável desenhou-se no rosto do marinheiro. Com um movimento rápido, deixou a vela que levava na mão, depois agarrou-a pelos braços com uma rudeza desmedida e afastou-a da escotilha. — Você não vai abrir o bico. Se o fizer, direi que está mentindo, e o primeiro-tenente ficará do meu lado. Empurrou-a para um lado como se fosse um simples saco de batatas e se seguida abriu a escotilha. 18


Mas Sara não pensava dar o braço a torcer, especialmente com as tristes palavras de Ann Morris sobre como obrigavam as mulheres a prostituir-se à força ainda a ressoar nos seus ouvidos. Depois de recuperar o equilíbrio perdido no chão em constante movimento, fechou novamente a porta da escotilha com um puxão. Desta vez, o infeliz levantou a mão com a intenção de lhe bater. Mas uma voz proveniente das escadas que havia mesmo por trás do marinheiro conseguiu dissuadi-lo de o fazer. — Se puser uma mão em cima dela, companheiro, verá girar todas as estrelas do firmamento em volta da tua cabeça. Tanto Sara como o marinheiro se voltaram para as escadas embaraçados. Não tinham visto o homem que os estava observando desde o convés superior e que agora descia os degraus com as mãos abertas e os dedos contraídos e ameaçadores como navalhas. Sara lançou um gemido. Era o marinheiro com aparência de macaco que tinha tentado falar com ela pela manhã. Fantástico. Agora teria que se ver com dois imbecis. — Não se meta, Peter — espetou o marinheiro com os dentes meio podres. — Volta para onde estava, e deixa que a menina e eu ajustemos as nossas contas. O homem chamado Peter desenhava círculos no ar com os extremos das mãos. — Deixa-a em paz ou deixo-te morto. — Deixar morto a mim? Um pobre raquítico como tu? — o marinheiro levantou um punho ameaçador no ar. — Primeiro me encarrego de ti, e depois terminarei de ajustar as coisas com esta jovem. O que sucedeu a seguir aconteceu tão rapidamente que Sara não conseguiu acreditar. Num minuto os dois homens estavam a engalfinhar-se numa luta, e no minuto a seguir o marinheiro que a tinha ameaçado ficou deitado no chão, inconsciente, e o tal Peter estava de pé sobre ele, numa posição bastante estranha. Quando Peter levantou o olhar e o fixou em Sara, ela sussurrou: — Santo céu, mas o que fez? Ele relaxou a sua posição forçada, e o rosto entristeceu-se pela luz da vela quando recolheu o molho de chaves que o outro tipo ainda tinha em cima. — Aprendi uns quantos truques de luta livre quando estive em águas chinesas, menina. Embora seja pouca coisa, esforcei-me por aprender tudo o que pude. Um homem baixinho consegue lutar ao estilo chinês com tanta facilidade como um grandalhão. Sara fechou a boca, que tinha ficado aberta, e sentiu que um repentino calafrio de medo lhe percorria todo o corpo. Se Peter podia deixar um marinheiro tão robusto inconsciente em segundos, o que faria com ela? No entanto, tinha vindo socorre-la, não era verdade? Esforçou-se por utilizar um tom de cordialidade que verdadeiramente não sentia. — Compreendo. Bom, obrigado por usar as suas... táticas insólitas para me socorrer. E agora, se me desculpar... Começou a dirigir-se para as escadas, esperando poder escapar da situação antes que o marinheiro decidisse reclamar alguma espécie de recompensa desagradável por tê-la ajudado. Mas não foi veloz o suficiente. — Espere, menina. Tenho uma coisa a dizer-lhe. Estive todo o dia a tentar falar contigo... — Não quero saber — murmurou ela enquanto acelerava o passo pelas escadas em direcção à coberta principal. Oh, se pelo menos tivesse algum tipo de arma... uma navalha, uma pistola… qualquer coisa. Alarmada, viu como ele se separava do marinheiro inerte e começava a trepar pelas escadas atrás dela. 19


— Por favor, não tenha medo. Não a vou machucá-la. — segurou-a pelo tornozelo, e quando Sara inclinou a cabeça e o fulminou com o olhar, ele acrescentou em voz baixa: — chamome Peter Hargraves, menina. Sou o irmão de Thomas Hargraves. Trabalho para o senhor conde. Tudo mudou nesse momento. Sara sentiu-se invadida por uma fresca onda de alívio, tão intensa que pensou que ia desmaiar no ato. Se era o irmão de Thomas Hargraves e trabalhava para o conde, isso só queria dizer uma coisa: que Jordan o contratara. Agradeceu a Deus por ter um meio-irmão tão intrometido e tão protetor. Deveria ter imaginado que Jordan não desistiria tão facilmente. Como não conseguira o que queria dela, simplesmente procurara outra forma de protegê-la. Deveria estar furiosa com ele, mas em vez disso, agradecia pela sorte que tinha de que o seu irmão tivesse decidido ignorar os seus desejos. — Já entendi. — Sara deu um olhar furtivo à sua volta, esperando que ninguém mais tivesse ouvido as palavras do marinheiro. — talvez seja melhor que falemos deste assunto em privado, no meu camarote. Siga-me. A seguir, Sara subiu até à coberta principal e esperou por Peter antes de se dirigir ao seu camarote, situado debaixo do salão. Assim que entraram no modesto camarote, ela virou-se para estudar o marinheiro, que acabava de tirar o chapéu de asa larga. Agora Sara compreendia porque lhe era familiar. Parecia-se com Hargraves. Tinha a mesma cor de cabelo ruivo do seu irmão assim como os olhos castanhos e penetrantes. No entanto, Sara não conseguiu imaginar Hargraves a tentar derrubar um homem com aqueles movimentos chineses tão extravagantes. Esboçou um sorriso de satisfação. Jordan tinha escolhido bem. — Quer um pouco de vinho antes de regressar ao convés superior, senhor Hargraves? — Agradeço, menina, mas estou de vigia. Não tenho muito tempo, mas obrigado na mesma. — Se não se importar, eu vou beber um gole. O encontro com aquele marinheiro desprezível deixara-a gelada. Abriu um dos compartimentos de carvalho que continha os seus utensílios e as escassas provisões, e tirou uma garrafa de Borgonha e um copo. Então começou a interrogar Peter. — Então o meu meio-irmão o contratou para que me vigie, não foi? — Sim. Pediu-me para que garantisse de que ninguém lhe fizesse mal. Sara verteu uma generosa quantidade de vinho de Borgonha no copo. — E suponho que eu não devia saber deste acordo. — Bom, o seu meio-irmão ordenou-me que esperasse até que estivéssemos em alto mar, e que então lhe contasse que estava aqui para protegê-la. Tentei dizer antes, mas passou todo o dia lá em baixo, na prisão. — Compreendo. — Pelo menos Jordan não pretendera que ela fizesse toda a viagem sem ser consciente do fato de que contava com alguém para a ajudar se precisasse. — Quanto a estar na prisão até altas horas da noite — acrescentou Peter, — não deveria permanecer lá em baixo até ao anoitecer. É perigoso. Depois de guardar a garrafa de novo no compartimento, Sara bebeu um gole do copo. — Foi o que ouvi. — Não conseguiu esconder a nota censuradora que emergiu de sua voz. — mas alguém tem que manter estes homens com rédea curta, para que não incomodem as reclusas. Peter começou a brincar com o chapéu ao mesmo tempo que a observava com olhar curioso. — Preocupa-se com aquelas mulheres, não é verdade, menina? O Tom disse que você é uma pessoa com um grande coração, mas não pensei que se arriscasse por um grupo de pobres 20


put… quero dizer, de meninas de fácil virtude. Não deveria assumir essa espécie de riscos. Da próxima vez, é possível que eu não esteja perto para a ajudar a sair de uma enrascada. Sara não custou a perceber que o seu protector podia ser muito chato. — Não vou deixar que os marinheiros se juntem com as mulheres — advertiu ela. — ali em baixo há crianças, e meninas com menos de catorze anos. Se fosse permitido à tripulação entrar e sair quando desse vontade… — Não se preocupe com isso, menina. Se quiser que as mulheres fiquem protegidas, garantirei que os homens não vão mais lá abaixo, embora tenha que ir falar pessoalmente com o capitão. — coçou atrás da orelha. — mas tem que me prometer que não ficará lá em baixo durante a noite, percebe? Não é um lugar seguro. Sara bebeu outro gole, olhando para ele desconfiada. — Pensa sinceramente fazer o que me disse? Se prometer terminar o meu trabalho depois do jantar, protegerá as mulheres dos marinheiros, Peter? Apesar de o homem ter corado por Sara se dirigir a ele pelo seu nome de batismo, concordou veementemente com a cabeça. — O seu meio-irmão pagou muito bem para a proteger. E se para proteger você significa proteger um monte de reclusas, suponho que posso me organizar. Sara reparou na expressão estóica do indivíduo, muito semelhante à do seu irmão, e relaxou. Era exatamente o tipo de comentário que Hargraves teria dito… e feito. — De acordo. Estamos combinados. Mas prometa-me que cumprirá a sua parte até ao fim, Peter. Ele concordou solenemente ao mesmo tempo que cobria novamente a cabeça com o chapéu. — Cumprirei a minha parte se você cumprir a sua, menina. Garanto-lhe que não a desapontarei. Vai ver. Quando Peter se dirigiu para a porta, ela chamou-o. — Peter? — Sim, menina? — Parece que Jordan contratou o melhor homem que podia ter encontrado. As orelhas de Peter ficaram coradas. — Obrigado, menina. Tentarei fazer o melhor que possa, prometo-lhe. Depois de Peter fechar a porta do camarote, Sara sentou-se numa cadeira, sentindo-se aliviada. Agora já não teria que carregar sozinha o terrível peso de se preocupar pelas mulheres. De repente, a viagem que tinha pela frente pareceu-lhe menos desanimadora, menos penosa. Tudo ia correr bem, apesar de tudo, graças ao magnífico plano de Jordan. E se ela e Peter pudessem evitar que o barco se convertesse num bordel flutuante, quem sabia o que podiam conseguir em Nova Gales do Sul! Capítulo 3 Vai e diz ao rei de Inglaterra, Vai e diz-lhe da minha parte, que se ele manda na terra, eu sou o rei-do-mar. Estrofe da canção popular inglesa The Famous Sea Fight between Captain Ward and the Rainbow, ANÔNIMO 21


O sol tropical salpicava as palmeiras, com a sua tênue luz quando o capitão Gideon Horn do Satyr e o cozinheiro do barco, Silas Drummond, viraram no atalho que levava ao mercado repleto de gente da Praia, uma aldeia esculpida na encosta da montanha de Santiago. Santiago era a última e a maior das ilhas de Cabo Verde que Gideon e os seus homens tinham visitado. Primeiro tinham desembarcado nas ilhas menores, pensando que teriam mais possibilidades de encontrar o que procuravam, mas tinham se enganado. E agora Gideon temia que também não encontrariam em Santiago. Finalmente decidiu comprar provisões para levar de volta para Atlântida. Se a Praia não podia oferecer o que realmente necessitavam, não tinha sentido permanecer ali por mais tempo. Observou a banca mais próxima, onde uma nativa de aspecto afável e com um chapéu de palha vendia fardos de algodão e, no português rude que os ilhéus usavam, convidava os transeuntes a aproximar-se da sua bancada. — Quanto? — perguntou Gideon em inglês, depois esperou que Silas, que falava um pouco de português, traduzisse a sua pergunta. A mulher fixou os olhos nele, e o seu sorriso desvaneceu-se no mesmo instante. Primeiro secou o suor das mãos manchadas de azul índigo, e depois lançou uma verdadeira enxurrada de palavras, sem deixar de apontar para Gideon com uns movimentos bruscos. O seu corpulento tradutor desatou a rir. — Diz que se o pirata americano quer esta mercadoria para a sua senhora, terá que pagar muito caro. Gideon olhou para a mulher com a testa franzida. — Diga que não tenho mulher alguma, e que creio que demorarei bastante para encontrar. — Então, antes de Silas abrir a boca, acrescentou: — Como é que soube quem sou? Silas conversou animadamente com a mulher durante uns minutos. Aparentemente, a vendedora alarmara-se diante da presença de Gideon. Finalmente, Silas olhou para Gideon ao mesmo tempo que puxava suavemente as pontas da barba castanha. — As notícias voam depressa nestas ilhas, capitão. Parece que todos sabem que o perverso Lorde Pirata e a sua tripulação estão aqui. A mulher reparou no sabre que usa no cinturão, e supôs que era você. — Silas adotou uma fisionomia pensativa. — talvez por isso temos tido tão pouca sorte com estes malditos ilhéus, e não obtivemos o que procurávamos. Ao descobrir quem somos, esconderam as mulheres jovens. — Talvez. — Gideon sorriu agradecidamente à vendedora, mas o gesto não pareceu apaziguar minimamente a mulher. — Demônio de mulher! Diga que não quero a mercadoria. Para que servirá se não podemos contar com nenhuma fêmea? Silas concordou solenemente enquanto Gideon girava sobre os calcanhares e tomava o caminho de volta para o molhe. Depois de tagarelar umas quantas palavras com a vendedora, Silas correu atrás de Gideon, movendo-se a uma velocidade surpreendente com a sua perna de madeira. — E o que fazemos agora, capitão? — Não sei. Teremos que falar com a tripulação. Talvez algum deles tenha tido mais sorte do que nós. — Talvez — disse Silas, apesar de não se mostrar muito esperançado. Desceram em silêncio e com passo rápido pelas ruas empedradas da Praia. Gideon era consciente do aspecto cabisbaixo do seu acompanhante. O seu plano era absurdo; devia ter percebido desde o princípio. Simplesmente, não podia correr bem. 22


Ainda estava condenando a si próprio pela sua ingenuidade quando Barnaby Kent, o primeiro-tenente do barco, subiu correndo pelo trilho da montanha em direção a eles. — Sabem o que averiguei no porto? — gritou entusiasmado. Barnaby era o único inglês que Gideon tinha permitido envolver-se no seu barco, mas nunca se arrependeu de tal decisão. Aquele homem era um marinheiro extraordinário, embora se vestisse como um vaidoso. — O que? — perguntou Gideon enquanto Barnaby se detinha bruscamente perante eles, ofegando. Devia ser uma coisa importante, para que Barnaby tivesse entusiasmado a dar uma corrida. Geralmente preferia deambular calmamente, supervisionado tudo e a todos com cara de aborrecido. Barnaby inclinou-se para o chão e colocou as suas mãos em cima dos joelhos, tentando recuperar o fôlego. — Chegou ao porto... um barco... que pode nos interessar. Gideon lançou um rugido. — Já falámos sobre isso, Barnaby. Temos jóias suficientes, ouro e prata para encher um navio de guerra. o que precisamos é de mulheres, não de mais troféus. — Exatamente, senhor. — Barnaby ergueu as costas, tirou um lenço e secou o suor que lhe escorria na testa. — E esse barco leva mulheres. Um montão de mulheres. Para escolhermos a que mais gostarmos. Gideon e Silas trocaram olhares. — Do que está falando? — incitou-o Gideon. Barnaby tinha finalmente conseguido recuperar o fôlego e agora falava precipitadamente. — É um barco de prisioneiras proveniente de Inglaterra, o Chastity. Vai carregado com um montão de mulheres, e leva-as para a Austrália. Pelo que consegui averiguar, há pelo menos cinquenta mulheres ou mais a bordo, e certamente ficarão fascinadas de que alguém as resgate... Não sei se me compreende. Gideon desviou o olhar para o turbulento porto e esfregou o queixo. — Prisioneiras, diz? Prisioneiras inglesas? — Sei o que está pensando, capitão — interveio Silas, — mas não importa se são inglesas. as inglesas servirão na mesma. Nem todos os homens odeiam os ingleses tanto como você. Quando Gideon lançou um olhar colérico para ele, o cozinheiro apressou-se a acrescentar: — Não é que não compreenda os seus motivos para os odiar; sinceramente, compreendo-o perfeitamente. Mas aquele tipo de mulheres... não é como os ingleses que você não suporta. São apenas umas pobres desgraçadas, assim como o resto da nossa tripulação, que tiveram uma vida muito dura. Serão perfeitas para os homens, muito melhor do que estas vaidosas mulheres das ilhas que se acham boas demais para um bando de piratas. — Mas não nos resta muito tempo — disse Barnaby, mantendo-se à margem da discussão sobre ingleses com grande habilidade. — o Chastity zarpará de manhã. Só atracou no porto para se abastecer de provisões. Ignorando Barnaby, Gideon concentrou-se no seu mal-humorado cozinheiro, que não tinha interesse especial no plano. Silas não gostava das mulheres, e tinha jurado que nunca se casaria. — Acha mesmo que os homens vão gostar da ideia? — Sim, tenho certeza absoluta — respondeu Silas. Barnaby alisou o lenço que adornava o seu pescoço com um olhar cintilante. — Pelo menos eu gosto. Gideon hesitou uns minutos. A verdade é que não tinha outra alternativa. Era a melhor oportunidade que tinha apresentado nos últimos meses. E um barco de prisioneiras seria fácil de 23


abordar em alto mar. os barcos de prisioneiros nunca viajavam bem armados. — De acordo. — Quando os seus dois melhores amigos pareceram aliviados, ele continuou. — Barnaby, descubra tudo o que puder sobre esse barco: quantos canhões tem, as suas dimensões... tudo o que precisamos de saber para o abordar. E pelo amor de Deus, tente fazer com sutileza. É uma sorte que não tenhamos atracado noutro porto, mas faz o que for conveniente para que a tripulação do Chastity não saiba que há um barco pirata no porto. Embebeda-os, embora tenhas que pagar todas as rodadas durante toda a noite. Não queremos espantar a presa. Enquanto Barnaby regressava ao cais a toda a velocidade, Gideon olhou fixamente para Silas. — Reúna a tripulação. Diga que zarparemos ao amanhecer, e que quero todos a bordo esta noite. — Quando Silas assentiu com a cabeça e começou a descer pelo caminho empedrado, Gideon gritou: — e certifique de que saibam o motivo, para que não brinquem contigo. Quando os dois membros da tripulação desaparecram de vista, Gideon observou o porto e concentrou-se num barco cuja figura de proa oferecia a figura esculpida de uma mulher recatadamente vestida. O Chastity. Tinha que ser. Embora não visse nenhum sinal das mulheres, supôs que as prendiam por baixo do convés quando o barco atracava em algum porto. A tripulação do Chastity estava concentrada em encapelar as velas, obviamente com uma enorme vontade de terminar com o seu trabalho o mais rápido possível para poder ir à Praia beber, jogar e deitar-se com uma ou outra prostituta. Perfeito. Com um pouco de sorte, todos acabariam por cair nas redes de Barnaby. Observou o barco à distancia o melhor que pôde. Era um barco à vela, com três mastros... e visivelmente muito carregado. Da sua posição, não avistou muitos canhões, e contou vinte marinheiros a bordo, muito menos do que os sessenta e três homens que formavam a sua tripulação. Um sorriso apareceu os seus lábios. Não podia desejar uma presa mais fácil. «Ah, sim. És uma verdadeira beleza, e levas uma valiosa carga. *Será pão comido.» Não conseguia esperar até ao dia seguinte. Peter empoleirou-se no mastro. Embora tentasse fixar as cordas e a vela, a sua mente encontrava-se noutro lugar: pensava no quanto enigmática era a menina Willis. Tinham se passado duas semanas desde a sua conversa com ela, e ainda insistia para que vigiasse as mulheres a cada noite. Até tinha convencido o capitão para que o pusesse de serviço ali permanentemente. Ele pensou que podia relaxar quando outros membros da tripulação o substituíram no trabalho que lhe fora designado, mas a menina Willis não confiava em ninguém. Só queria a ele ali de guarda, todas as noites. Secando o suor da testa com as costas da mão, Peter tentou enrolar a vela em pequenas pregas e uni-la à verga enquanto amaldiçoava o duque por não o ter prevenido que a menina podia ser um pouco problemática, mas depois pensou que devia ter adivinhado. Pelo menos ela * Pão Comido – Coisa que será fácil de resolver. tinha cumprido com a sua parte no acordo. Felizmente, não tinha havido outro confronto entre ela e os marinheiros. Isso podia-se considerar uma recompensa por todas as noites que passava acordado, vigiando as mulheres do convés inferior. A verdade é que não tinha sido difícil, depois da primeira noite. a primeira noite as mulheres demonstraram-se ligeiramente desconfiadas com ele, e as crianças observavam-no através dos barrotes, com os olhos abertos como laranjas, quando ele pendurou a sua rede perto das celas. Também não foi uma noite calma. Um marinheiro atrás do outro metia a cabeça pela escotilha, apesar de o capitão ter ordenado que ficassem no convés superior a menos que tivessem de fazer algum trabalho ali em baixo. Quando compreenderam que Peter pretendia fazê-los 24


cumprir as ordens do capitão, deixaram de tentar. A partir dessa noite, as mulheres suportaram a sua presencia em silêncio. Algumas até se atreveram a agradecer-lhe. Até uma rapariga diminuta, uma coisinha doce chamada Ann, ofereceu parte do seu jantar. Tendo em conta que as mulheres tinham um melhor uso das suas rações do que o cozinheiro, ele ficou encantado por aceitar uma porção. Obviamente, a tripulação não achava graça da sua intromissão, mas isso não importava. O seu patrão, o conde, pagava-lhe três vezes mais de ordenado do que recebia como marinheiro. Por essa quantia seria capaz de lutar com todos eles, se fosse preciso. Por sorte, só teve que derrubar um homem, e o tipo estava bêbado. Embora os outros marinheiros tentassem fazer sua vida impossível, suportava francamente bem as canalhices que eles consideravam insuportáveis. O primeiro-tenente enviava-o para o mastro sempre que podia, pensando que era uma forma de o castigar. Com o corpo franzino, Peter era o tripulante adequado para se empoleirar ali em cima, mas enrolar uma vela era uma tarefa que a maioria dos marinheiros não gostavam, já que eram conscientes de que se tratava de um trabalho extremamente perigoso. Mas o primeiro-tenente não sabia que Peter adorava estar ali em cima, apreciando a maravilhosa vista do oceano aos seus pés como se fosse uma interminável almofada salpicada de brilhantes diamantes, assim como da agradável sensação ao sentir como o suave vento salgado fustigava suas orelhas. Agora que tinham deixado para trás o frio perpetuo da Inglaterra, sentia-se mais feliz por suar sob o sol tropical. Além disso, preferia as tarefas mais perigosas que exigiam sujar as mãos, como por exemplo, tirar o alcatrão das juntas. Do alto do mastro observou o pequeno grupo de mulheres que limpavam o convés. As reclusas trabalhavam por turnos, mas isso não parecia importar-lhes, visto que o trabalho permitia a elaspermanecer nas cobertas superiores. Observou-as durante uns minutos. Realmente estavam deixando o convés brilhando. Que sorte que eram elas a limpar, e não ele. Desviou o olhar para os outros homens, que contemplavam as mulheres com pouco interesse. Depois de passar a noite no porto da Praia, os marinheiros tinham saciado a sede graças aos serviços das prostitutas, pelo que ao olhar para as prisioneiras não sentiam uma iminente necessidade sexual. Mas aquela situação não duraria muito tempo. Peter sabia disso. E embora parecesse estranho, pelo fato de ter passado duas semanas a protege-las, agora lamentava que as reclusas tivessem que sofrer de novo o assedio da tripulação. — Oi, companheiro — gritou-lhe um marinheiro que estava de vigia no cesto do barco. — Tenho que descer para mijar. Pode me substituir por um minuto? Assentindo com a cabeça, Peter gatinhou pelo longo poste transversal para o mastro. Agarrou o telescópio que o marinheiro oferecia e substituiu-o no cesto. Examinou o horizonte, depois apreciou Santiago enquanto o Chastity se afastava da costa. Era um dia perfeito para navegar. Apesar do Chastity poder alcançar as águas serenas do Equador num dia ou dois, naquele dia um vento brincalhão enchia as velas, enpurrando-o para o sul ao longo da costa de África. Acomodou-se na madeira curva do cesto, e voltou a pensar na pequena Ann. A julgar pelo seu sotaque, devia ser galesa. Uma linda mulher galesa, com a pele pálida e os dentes tão brancos como marfim. Perguntou-se o que podia ter feito para acabar naquele barco, no meio de um bando de delinquentes. A condenação dela parecia-lhe um horror. Talvez fosse por pequenas como Ann que a irmã do conde se arriscasse tanto por ajudar aquelas mulheres. Aquela moça atormentava constantemente o capitão para conseguir uma melhoria nas condições delas, e passava todas as horas do dia na ponte inferior, ensinando-as a ler 25


e a escrever. Só tinham passado duas semanas desde que zarparam de Londres e as reclusas já falavam da menina Willis como se fosse uma santa. Peter suspirou. Talvez fosse. Agarrou novamente no telescópio e dedicou-se a examinar o horizonte, contemplando a água e as nuvens com olhos experientes. Acabava de realizar uma volta completa ao oceano e estava a observar as ilhas que deixavam para trás quando algo captou o seu interesse. Focou o telescópio com mais precisão e conteve a respiração. Como saído do nada, um barco tinha aparecido pelo barlavento de Santiago; o seu aspecto provocou a Peter um certo desassossego. Era como se tivesse estado à espreita, à espera deles. E o que era pior, parecia ter a intenção de se aproximar do Chastity. O coração de Peter começou a bater aceleradamente. Um marinheiro sabia perfeitamente que não era um bom presságio que um barco se aproximasse de outro no mar, especialmente quando o primeiro tinha surgido do nada por trás de uma das ilhas. — Barco a estibordo! — gritou ao primeiro-tenente. O primeiro-tenente aproximou-se do mastro com passo moderado. — Que espécie de barco? Peter graduou bem o telescópio e focou-o novamente para o navio. Ficou imóvel, observando, até que as velas e os mastros borrados se tornaram mais nítidos; então avistou uma escuna cheia de bem orgulhosa, cheia de canhões. Ao ver tantos canhões assustou-se. Não se tratava de um barco mercante, disso tinha a certeza. Procurou a bandeira, mas não a encontrou. — E então, Peter? — o oficial gritou com impaciência. — o que é que vê? — Estou tentando investigar. É uma escuna ligeira. Com dois mastros e um monte de canhões. O primeiro-tenente franziu a testa. Obviamente, ele também percebia o que isso podia significar — A bandeira, procura a bandeira. — a sua ordem foi secundada pelo capitão, a quem o contramestre acabava de avisar para que fosse ao convés. Peter deslizou novamente o telescópio por todos os lados do barco ameaçador, até que finalmente viu que içavam uma bandeira. — Um momento! Estão içando uma bandeira! — Isso era um mau sinal, visto que a maioria dos barcos navegavam com a bandeira hasteada. — Que Deus nos proteja — murmurou quando conseguiu ver a bandeira. Era negra como o carvão, com uma caveira sorridente e um par de ossos cruzados. — Piratas! — gritou. — Piratas à vista! — Todos ao convés! — gritou o capitão enquanto o contramestre se apressava a tocar o sino de alerta. — Encerrem todas as mulheres na cave, e quero todos os rapazes no convés agora! Nunca antes a tripulação do barco tinha se posto em ação com tanta rapidez, realizando as suas tarefas como se fossem marionetas num espectáculo de uma feira. Ignorando as perguntas das mulheres, dois marinheiros obrigaram-nas a descer aos empurrões para o nível inferior enquanto o capitão dava ordens sem parar, e outros marinheiros se puseram a despregar as velas e a manobrar os poucos canhões do barco com movimentos impacientes. — A toda a velocidade! — gritou o capitão ao primeiro-tenente, que repetiu a ordem. — Temos que ser mais rápidos do que eles! Peter pensou que isso ia ser impossível. Sem afastar o telescópio do navio, tentou encontrar algum sinal de debilidade. Pela sua aparência soube que era una escuna construída na América; a sua leveza transformava-a num navio máis rápido do que qualquer fragata inglesa. As escunas tripuladas por corsários americanos tinham sido um terrível pesadelo para os barcos mercantes ingleses durante a guerra de 1812. Apesar da guerra ter acabado há um tempo, um bom número 26


de corsários praticava a pirataria, e ele temia que aquele fosse o caso do barco que os perseguia. Quando eles percebessem de que não iam conseguir nenhum suculento espólio com a captura, deixariam o Chastity em paz. Já tinha acontecido antes, ou pelo menos fora isso que tinha ouvido dizer. — Estão quase nos alcançando! — gritou Peter ao capitão, que visivelmente alarmado ordenou aos marinheiros que se apressassem para que o barco andasse com mais rapidez. O mesmo vento empurrava os dois barcos, mas o outro navio era mais leve e portanto mais veloz. Peter voltou a ajustar o telescópio. Agora via-os mais próximo, próximo o suficientemente para examinar a bandeira detalhadamente. Revirou mais os olhos para ver a caveira com mais clareza. Parecia diferente, não era a típica caveira com os ossos cruzados. Havia alguma coisa no formato da cabeça... Cornos. a caveira tinha cornos. o coração dele encolheu-se. Só um barco pirata exibia aquela bandeira... o Satyr. Para se certificar, focou para o mastro da proa. Quando avistou a figura mitológica meio homem, meio cabra, conteve a respiração. De seguida ergueu o telescópio e viu um homem com o cabelo preto na proa, de pé. Sim, agora não tinha duvidas; era o Satyr. Com o diabo do seu dono, o capitão Gideon Horn. — é o Lorde Pirata em pessoa! — rugiu enquanto colocava o telescópio debaixo do braço e começava a descer pelo mastro principal. — é o capitão Horn do Satyr! Não conseguiremos fugir dele! Tem o barco mais rápido de todos os mares! Quando saltou para o convés, o capitão correu para o seu lado, com o rosto pálido por baixo do seu enorme bigode, que cobria metade das faces. — Tem certeza,, amigo? Lorde Pirata? Porque vem atrás de nós? O nosso patrão não é nenhum nobre, mas um simples mercante! A escolha peculiar dos objetivos por parte de Lorde Pirata tinham dado a Gideon aquele apelido. No primeiro barco que atacara encontrou o patrão a bordo, um estúpido conde que lhe dissera para que fizesse o favor de não mostrar tão pouca falta de respeito para com «um membro da Câmara dos Lordes». As testemunhas dessa primeira captura tinham imortalizado a resposta do pirata: «na América, todos os homens são iguais, assim sendo até um pirata era um Lorde. Eu não me ajoelho perante mais ninguém senão perante Deus, senhor, e ainda menos perante um nobre inglês com cara de vaidoso». O capitão Horn roubara ao nobre tudo o que possuía, até as roupas que trazia vestidas. E também acabou por roubar um beijo de sua própria esposa. Desde então, todos os objetivos do Satyr tinham sido barcos da propriedade de algum membro da nobreza inglesa ou que transportassem algum passageiro de rançosa decendencia, e ouviam-se rumores que o pirata obtinha uma grande satisfação em depená-los. Alguns nobres tinham até decidido viajar incógnitos e escondiam-se entre os outros passageiros para protegerem a si próprios a aos seus barcos. Com uma terrível sensação de ansiedade, Peter pensou na menina Willis. Era impossível que aquele homem os atacasse exclusivamente por ela. Apesar de ser a filha adotiva de um conde e a meia-irmã do novo conde, não era realmente uma lady. Além disso, ninguém no barco conhecia as verdadeiras conexões com a nobreza. — Tem certeza de que o dono deste barco é um mercador? — perguntou ao capitão. — Tem a certeza? — Tenho. É um primo meu. Neste barco não há uma única pinga de sangue nobre, digo eu. À exceção da menina Willis. Era melhor que Peter a prevenisse para que não dissesse nada sobre o irmão se fossem capturados. Melhor dizendo, quando fossem capturados, visto que a 27


captura parecia inevitável. — Talvez o Lorde Pirata nos solte quando vir que não levamos nada de valor — murmurou Peter. — Vai nos transformar em picadinho. É isso que vai fazer! — O primeiro-tenente estava agora diante do leme, e lançara as terríveis palavras como se o próprio capitão Horn tivesse feito aquela ameaça. — ouvi dizer que consegue derrubar um homem só com um murro. Peter engoliu a saliva. Não tinha medo quase de ninguém, mas do Lorde Pirata sim. Pelo que sabia, nunca ninguém tinha acusado o pirata de se exceder com as atrocidades e massacres que outros piratas cometiam. Mas isso não significava que o capitão Horn não reagisse com violência quando descobrisse que no Chastity não havia nenhum tesouro precioso. — Talvez será melhor preparar-nos para lutar — sugeriu Peter. O capitão Rogers soprou visivelmente desorientado. — Lutar? Ficou louco ou quê? É o Satyr, amigo, a nos apontar trinta canhões! Fazem-nos voar em mil e um pedaços! Não dispomos nem de canhões nem de homens suficientes para lutar contra um barco pirata armado até aos dentes. Além disso, se oferecermos resistência, provavelmente pensarão que temos algo valioso a bordo, e isso só vai piorar as coisas. — Não poderemos escapar — repetiu Peter. — Com tanto peso é impossível. E como se fosse a favor daquelas palavras, o Satyr surgiu diante deles, pisando-lhes os calcanhares como um diabo atrás de uma alma pecadora. Estaria em cima deles em questão de segundos. O capitão olhou para a sua tripulação, e depois voltou a fixar o olhar no primeiro-tenente e em Peter. — É a nossa única possibilidade, rapazes. Fugir, ou ficarmos presos. E temo muito que nos façam prisioneiros, a menos que aconteça um milagre. O milagre não aconteceu, e uns intermináveis minutos mais tarde, o outro navio alcançou-os, ameaçando-os com o disparo dos canhões se o Chastity não se detivesse para permitir que o abordassem. E foi só quando o capitão Rogers deu a ordem à sua tripulação para que se rendessem, que Peter se lembrou que não tinha avisado a menina Willis. Capítulo 4 Mil velas derrubei, e mil mercantes fiz tremer, foram tantos os que abordei, enquanto navegava pelo mar... Balada do capitão Kidd, ANÔNIMO Até esse dia Sara havia considerado que a viagem transcorria sem incidentes. Certo, tivera uma ou outra discussão com as mulheres mais perversas que adoravam tirar a ração às pobres raparigas saloias. e também tinha ralhado sem parar acerca do que não deviam dizer em voz alta. No entanto, as suas aulas funcionavam bem, e ela e Peter haviam conseguido manter as mulheres separadas dos homens. Agora, por sua vez, reinava o caos à sua volta. As reclusas que estavam na coberta tinham sido enviadas de volta, e apinharam-se ao seu redor, tomadas pelo pânico e sem conseguir deixar 28


de tagarelar. Sara necessitou de alguns minutos para compreender o que diziam. Aproximava-se um barco pirata? Não podia ser. A cada ano havia menos piratas, agora que os americanos e os ingleses tentavam limpar as águas daquela chaga. E o que procuravam num barco de prisioneiras que não levava nada de valor? Mas é claro, eles não sabiam que o Chastity transportava só mulheres. De repente notou que seu sangue ficava gelado. Um irrefreável temor apoderou-se do seu estômago. Se aqueles homens não encontrassem ouro para saciar o seu apetite selvagem, provavelmente procurariam outra espécie de prazeres. — Vão nos matar! — gritou Ann Morris por cima do clamor de vozes, expressando em voz alta os piores presságios de Sara. — vão nos violar e nos matar! Oh, menina Willis! O que vamos fazer? Sara queria dizer que não sabia o fazer, que nunca tinha esbarrado com nenhum pirata. Só com uma enorme força de vontade conseguiu manter aquelas palavras para si própria. Perante a proclamação de Ann, as outras permaneceram em silêncio, observando Sara com expectativa, como se acreditassem que de algum modo ela conseguisse projetar um exército de protetores para que as salvasse. Oh, se ela pudesse... Esforçou-se para falar com voz calma, embora a verdade, era que se sentia tão agitada como o resto das mulheres. — Não entrem em pânico. Os marinheiros lutarão contra eles e vencerão. o barco está armado e... — Armado? Pois sim! — Resmungou Queenie. — Com os pouos canhões que tem não poderemos nos defender dos piratas. — Os marinheiros não lutarão — pronunciou a voz crítica de Louisa atrás de Queenie. — Porque iriam fazer, aquele bando de mortos? Saltarão para a água antes de perder um dedo por nós. As vozes do pânico rodearam novamente Sara, que sentiu uma desconhecida sensação de abandono. Louisa tinha razão. Os marinheiros não lutaríam por um barco carregado de reclusas. O cordão de vozes na cave tornou-se opressivo, e Sara teve que se conter para não perder o seu controle tão enraizado e se deixar levar pelo pânico como as outras mulheres. De repente, Louisa gritou: — Caladas! Escutem! Uma a uma as mulheres foram baixando a voz até que só se ouviu o pranto dos bebês e as vozinhas infantis dos menores. Todas escutaram, mas não conseguiram ouvir nenhum ruido estranho proveniente do piso superior, exceto apenas um leve murmurinho de vozes. Parecia que o barco tinha parado, embora fosse difícil saber, dali de baixo na cave. De repente ouviram umas pancadas, como se vários homens estivessem saltando sobre o convés. Depois o barco balançou para um dos lados, obrigando as mulheres a se agarrarem aos barrotes para não perder o equilíbrio. Depois de uns instantes, o barco voltou a recuperar a sua posição normal. — Saltaram para bordo — pronunciou Queenie. — Talvez se ficarmos muito quietas, não se darão conta que estamos aqui — murmurou Ann Morris timidamente. — Talvez o capitão Rogers diga que a cave está vazia e partam. — Partir? — Apesar das belas feições de Louisa se mostrarem tristonhas sob a luz da lamparina de azeite, a mulher não tinha perdido o seu típico tom de voz seco. — só com a palavra do nosso querido capitão? Não acredito. Além disso, aquele homem não se arriscará a mentir para nos proteger. Somos a única coisa de valor que pode lançar para os braços de uns piratas esfomeados. 29


As terríveis palavras conseguiram com que todas as mulheres estremecessem, inclusive Sara. Nunca teria sonhado, quando brincou com Jordan acerca de ser capturada por um pirata, que isso pudesse acontecer de verdade. Não deveria haver piratas naquelas aguas, nem deveriam ter abordado o Chastity. Não podia ser verdade! Tinha que haver alguma explicação distinta para a aparição do outro barco, pensou desesperadamente. Dentro de pouco tempo a tripulação desceria para informar de que apenas se tratava de um barco da Marinha britânica que tinha pedido para que se detivessem porque precisavam de provisões. Não, isso também não fazia sentido. Ainda se encontravam perto de Santiago, onde qualquer barco podia ir procurar provisões. Tomara ela e as outras que pudessem se defender. Tomara pudessem evitar que os piratas entrassem na cave. Mas não dispunham de armas para lutar, visto que as mulheres tinham sido privadas de tudo aquilo que pudessem usar contra os seus vigilantes. Ninguém parecia capaz de se mover. Qualquer rugido da madeira do barco aumentava mais tensão ao ambiente quente e asfixiante da cave. Até as crianças pareciam conter a respiração, perante o medo do que ia acontecer. — Oh, como gostaria que o Peter... quero dizer, o senhor Hargraves estivesse aqui em baixo para nos proteger — disse Ann a meio do silencio aterrador. — Nem sequer o teu senhor Hargraves consegue deter um bando de piratas, Ann — grunhiu Louisa. — se ainda não percebeu, não é um Deus. Desta vez nem todas as meninas Willis nem todos os senhores Hargraves do mundo conseguirão salvar-nos de todas as ações perversas a que nos veremos submetidas... — Já chega, Louisa — ralhou Sara duramente. — Está assustando as crianças. E não acredito que tenhamos que ouvir toda essa espécie de... Calou-se quando ouviu o ruído de alguém que abria a escotilha. Todas as mulheres se viraram e olharam para as escadas. Os olhos brilhavam de medo, nas celas pobremente iluminadas. O homem que desceu pela escada não era um pirata, era o coxo grumete do capitão Rogers. Assim que as mulheres o viram, soltaram um suspiro coletivo e prepitaram-se para a escada. Gritos de «o que aconteceu?» e «é verdade que há piratas?» encheram o ar ao mesmo tempo que o rapaz se detinha a meio da escada. — Enviaram-me para dizer que arrumem as vossas coisas e subam ao convés — anunciou o grumete. Estava visivelmente pálido, apesar da sujeira que cobria as suas faces, e as pernas magras tremiam como gelatina. — Quem te enviou? — Sara adiantou-se para perguntar. — O capitão Horn, menina. Do Satyr. é o barco que nos abordou. O Satyr. Sara tinha ouvido alguma coisa sobre esse barco, embora não recordasse o que tinha lido. — E esse capitão Horn... é um pirata? O rapaz olhou para ela como se estivesse diante de uma alienígena. — É claro. Todo mundo sabe disso. Sara não se sentiu mais aliviada quando confirmaram os seus receios. — Porque é que ordenou para que as mulheres arrumem as coisas? — Não sei, menina, mas... — Vamos, rapaz, deixa de conversa! — gritou uma voz rouca do convés. — Diga que subam depressa. O capitão Horn quer todas aqui em cima imediatamente, ou então, saberão o que é bom. O impacto da voz ameaçadora conseguiu que regressasse o pânico de novo na cave. Todas as mulheres se puseram em movimento, agarrando as suas exíguas posses, prevenindo as crianças 30


e calçando os sapatos, visto que muitas delas tinham decidido por ficar descalças quando entraram em aguas mais quentes. Sem perder um segundo fizeram fila para as escadas, com os fardos de tecido entre os seus braços. A maioria delas levava o pacote de costura para confeccionar edredões. Sara colocou-se à frente da comitiva. Não ia permitir que passassem por aquele infortúnio sozinhas. Alguém tinha que falar em nome delas, e quem melhor do que ela para se erguer como porta-voz. — Escutem-me um momento. Lembram-se do que falamos durante estes dias. Não importa o que vos façam, vocês são as únicas donas da vossa alma. Não poderão tocá-la se a mantiverem a salvo, bem encerrada dentro de vocês próprias. As suas palavras pareceu insuflar-lhes coragem, apesar do grupo que a seguia pela escada através dos cubículos em direção ao convés superior apresentar um aspecto angustiado. a cena que Sara presenciou quando emergiu perante a brilhante luz do sol era de uma serenidade absoluta. A tripulação do Chastity estava alinhada em ambos os lados do barco, vigiada por um conjunto de piratas mais apresentáveis do que ela teria imaginado. Tinham um aspecto visivelmente asseado e comportavam-se de uma forma disciplinada, ao contrario da tripulação do capitão Rogers. Como era possível que aqueles homens fossem piratas? Nem um usava uma pala no olho nem um gancho no braço! E enquanto as mulheres se apinhavam no convés, não se lançaram sobre elas nem soltaram comentários obscenos. Mas a sua indumentária vergonhosa delatava-os como piratas. Predominavam as jaquetas de pele, e a maioria não tinha camisa. Nunca na sua vida tinha visto tantos homens com o peito despido... nem tantas cabeças masculinas com cabelos até os ombros. Então reparou nas armas que carregavam e gelou seu sangue. As adagas com punhos de osso esculpido brilhvam nas suas mãos, e alguns usavam pistolas meio escondidas nos cinturões. Apesar do aspecto limpo e rostos agradáveis, aquelas armas deixavam claro o motivo pelo qual estavam ali. Estava esclarecido. Antes que Sara tivesse tempo para pensar mais no assunto, um homem corpulento e barbudo com uma perna de pau ordenou às mulheres que se dirigissem para a proa. Alí encontraram mais piratas, uma multidão que superava a tripulação do Chastity e até o numeroso grupo de mulheres. Então a multidão afastou-se, e Sara teve a oportunidade de divisar pela primeira vez o homem que, sem duvida alguma, era o capitão do Satyr. Estava de pé, com as pernas separadas e com os braços cruzados sobre a sua camisa branca aberta pelo peito, deixando à vista a sua jaqueta de pele. A sua expressão era severa, tanto que endurecia ainda mais os proeminentes ângulos do seu rosto. Com os olhos contraídos, contemplou as mulheres que se apinhavam na coberta. Sara não soube como tinha chegado à conclusão de que aquele tipo era o capitão dos piratas; simplesmente sabia. Emanava uma certa arrogância que não via no resto dos piratas presentes. E também reparou noutras coisas, como na sua enorme estatura. E a sua roupa, tão elegante como a de qualquer pessoa de boa linhagem. As calças de cor cinzenta que se ajustavam às pernas musculosas eram de excelente qualidade e muito bem confeccionadas, e o cinturão era coroado por uma fivela de pedraria. O nome do seu barco encaixava perfeitamente com ele; embora usasse botas de pele negra em vez de sapatos e da ingovernável cabeleira preta que chegava até aos ombros não saísse um par de cornos, a sua expressão apresentava tal satisfação burlesca como só um verdadeiro cínico poderia apresentar. Estava estudando as mulheres com um olhar brutal e feroz, como se quisesse averiguar as debilidades de cada uma delas. E o seu rosto! Embora bem barbeado, era o rosto de um cínico: descaradamente masculino, 31


friamente belo, apesar das povoadas sobrancelhas escuras e da boca torcida... e assustadoramente ameaçadora. O que conferia a ele aquele aspecto tão temível? Talvez as cicatrizes... uma em forma de lua crescente que atravessava toda sua face enrubescida pelo vento, e outra pequena que se estendia ao longo do extremo exterior de uma das suas sobrancelhas, que por escassos milímetros não entrava no olho. Embora, evidentemente, o sabre colossal que exibia no enorme cinturão de pele também tivesse algo a ver com isso. Mais havia mais alguma coisa. Sara suspeitava que aquele homem seria igualmente alarmante, mesmo que não tivesse nem cicatrizes nem aquele sabre e se usasse um casaco um casaco e um chapéu normal. — Bom dia, meninas — saudou ele com um peculiar sotaque americano quando todas as mulheres ficaram em fila na coberta superior e as escotilhas se fecharam. Com um sorriso sarcástico que conseguiu suavizar um pouco o seu olhar feroz, contemplou detalhadamente o enxame de prisioneiras e acrescentou: — viemos resgatá-las. As suas airosas palavras foram tão inesperadas que Sara irritou-se. Depois de todos os aparatosos métodos de intimidação, de examinar as mulheres como se fossem gado antes de o levar para o matadouro, o tipo tinha a lata a de dizer um disparate como aquele! — É assim como chamam agora roubar, saquear e violar?? — respondeu ela sem conseguir conter-se. Enquanto surgia um incômodo murmurinho entre a tripulação do Chastity e as mulheres retrocediam para se distanciar de sua imprudente companheira, Sara ralhou consigo própria por ter perdido a paciência tão facilmente. Mas o mal já estava feito. Agora só faltava implorar àquele maldito pirata que a cortasse em bocadinhos com o imponente sabre. Não se tratava de um Lorde civilizado nem de um capitão de barco orgulhoso para que pudesse instruir imperfeitamente; aquele homem carecia de moral, de escrúpulos e de misericórdia. E agora tinha focado toda a sua atenção nela. Sara conteve a respiração enquanto ele lançava para ela um olhar agressivo, analisando detalhadamente cada centímetro da sua sóbria indumentaria, desde o seu penteado enfeitado com um lacinho até à ponta dos seus sapatinhos rosados. Depois, e para sua surpresa, ele soltou uma estonteante gargalhada — Saquear, roubar e violar? Quem é esta pequena e corajosa mulherzinha que ousa falarme assim? Sara notou um nó no estômago. O medo invadiu-a de tal maneira que quis implorar-lhe perdão, dizer-lhe que não era uma moça impertinente, era apenas uma pobre louca. Mas o orgulho venceu. Ele ainda não a tinha pulverizado, e isso significava que talvez pudesse conversar com ele. — Sou a menina Sara Willis, senhor, professora e protetora destas mulheres. O vento açoitava o cabelo rebelde do capitão, afastando-o do seu rosto e expondo a pequena argola dourada que usava na orelha. Com ar impassível, ele apoiou-se no varandim da proa. — Ah. Ou seja, que a vossa intenção é protegê-las para que não as roubemos nem as violemos, não é? Quando os piratas que as rodeavam começaram a rir com estrondosas gargalhadas, Sara ficou corada. — Sabe perfeitamente que não posso fazer isso. Não disponho nem de espada nem da força necessária para a manejar. — Sem conseguir evitar, acrescentou uma pitada de ironia à sua voz. — Talvez esse seja o motivo pelo qual não encontro piada nenhuma nesta situação, como você e os seus sanguinários companheiros pensam que tem. 32


O sorriso áspero desapareceu rapidamente da cara do capitão. — Então, talvez agrade saber, menina Willis, que os meus homens e eu, não estamos aqui com essa finalidade. Dedicarmo-nos a saquear o barco seria uma perca de tempo, visto que duvido que haja uma só porção de ouro ou de jóias aqui dentro. Quanto a roubar, é uma coisa que pessoalmente acho absurdo e inútil, não concorda? Quando o capitão faz uma pausa, o nó de terror no estômago de Sara tornou-se mais evidente. — Pois então só resta a pior das afrontas: violação, não? Um barco cheio de mulheres... um barco cheio de piratas... — Também não estamos aqui para as violar! — grunhiu ele, separando-se subitamente do varandim com a expressão contraída. — Não é isso que podemos oferecer às suas... alunas! — Oferecer? O capitão avançou com passo furioso para ela, deteve-se a um metro dela e colocou as mãos nas ancas. — Sim, oferecer. Viemos oferecer a estas mulheres a liberdade. Resgatá-las. Tinha-o tão perto que Sara conseguiu observar a cor dos seus olhos, um nítido verde azulado que refletia o mar tropical. Era uma cor atraente demais para pertencer a um pirata assassino. — E oferecem a liberdade sem esperar nada em troca? — rematou ela secamente. Os cantos da boca do capitão retorceram-se para dar passagem a um esgar irônico. — Eu não disse isso. O coração de Sara encolheu-se. — Não, e eu já sabia. Se há algo que os piratas não têm fama, é precisamente de serem uns tipos caridosos, não é verdade? Sara não sabia o que a tinha invadido para falar ao capitão daquela forma tão impertinente. Talvez fosse o medo, que a tinha feito perder a cabeça. Mas se ele pensava matá-la, pelo menos queria que a sua morte servisse para alguma coisa. — E o que é que querem? — continuou Sara. — Umas quantas noites de prazer antes de as soltar na costa de África para que se defendam sozinhas? Querem usá-las como se fossem umas simples, mas pagar-lhes com uma duvidosa liberdade em vez de dinheiro? — Não. — O capitão fulminou-a com um olhar desafiante. — Não procuramos prostitutas, menina Willis. Procuramos esposas, para mim e para os meus homens. Sara olhou para ele boquiaberta. Um murmurinho confuso ergueu-se entre a fila de mulheres às suas costas; por sua vez, ela limitou-se a continuar a olhar para ele fixamente, tentando compreender o que ele dizia. Estudou os rostos dos piratas, e surpreendeu-se ao ver que as suas expressões refletiam a veracidade das palavras do capitão Horn. — Mas são… são piratas! Porque é que querem esposas? Os olhos do capitão tornaram-se inescrutáveis. — Isso não lhe diz respeito, menina Willis. Pensamos levar estas mulheres quer goste ou não. — transpassou-a de cima a baixo com um impudico olhar agressivo. — Não se preocupe, não levaremos você. A ultima coisa que precisamos é de uma solteirona chata que nos dê aulas de matemática. Com aquele insulto final ainda suspenso no ar, o capitão ordenou a alguns dos seus homens para levarem as mulheres e as crianças a bordo do Satyr, e ordenou aos outros que confiscassem as provisões Chastity. Sem acreditar nos seus olhos, Sara observou como os piratas se apressavam por cumprir as ordens, enquanto a tripulação do Chastity não fazia nada para evitar. Não, não podia ser verdade. 33


Aquele animal estava a sequestrar todas as mulheres do barco para satisfazer os seus interesses mais sórdidos, e a tripulação do Chastity permanecia impassível, sem mover um único dedo! — Não podem fazer isso! É um disparate! — gritou ao capitão pirata. Sem prestar atenção, Gideon olhou para o capitão Rogers fixamente. — Deixo-vos sem água e sem comida. Não terão outro remédio senão regressar ao porto de Santiago. Depois, não me importo com o que fizerem, desde que não tentem nos perseguir. Quando nos afastarmos, se vir que tentam nos seguir, juro que destruirei o seu barco sem nenhuma consideração. Quando se virou e passou à frente de Sara, ela agarrou-o pelo braço. — Não vou permitir que vença com este despropósito! Ele olhou para ela impávido e sereno ao mesmo tempo que desenhava um sorriso irônico. — Tal como disse há pouco, não consegue me deter. Sara ficou irritada com a futilidade de toda a situação. Tinha trabalhado duramente para ajudar aquelas mulheres a sonhar com uma vida melhor, para procurar que conseguissem encontrar o melhor que tinham… e agora aquele energúmeno planeava deitar tudo pela borda fora num abrir e fechar de olhos. Bom, se ele se negava a ouvir a menina Sara Willis, talvez prestasse mais atenção a alguém que estivesse numa posição social superior. — Eu não, mas o meu irmão pode — disse ela, com a voz mais arrogante que conseguiu. — e me assegurarei para que o encontre, a você e aos seus homens, nem que seja a ultima coisa que faça nesta vida! O capitão Horn safou-se da sua mão e deu uma gargalhada. — E posso saber quem é o seu irmão, tão poderoso para acabar com um pirata? O filho de um mercador? Um padre, talvez? — O conde de Blackmore — proclamou o título com tanta raiva como se fosse uma arma com a qual o pudesse derrubar. — Se eu pedir, ele o perseguirá sem compaixão. Subitamente ouviu-se um crescente murmúrio de indignação entre as filas da tripulação e do capitão do Chastity. Sara estranhou aquela reação, visto que a revelação que acabava de fazer já não tinha importância, agora. Lamentavelmente, a reação do capitão pirata foi mais alarmante. Em vez de se mostrar atemorizado como ela esperava, um estranho brilho gélido emergiu dos seus olhos enquanto a agarrava pelo braço com tanta força que chegou a machucá-la, depois fulminou o capitão Rogers com o olhar. — É verdade o que esta jovem está dizendo? O irmão dela é um conde inglês? De esguelha, Sara conseguiu ver como Peter Hargraves fazia uns movimentos bruscos em forma de aviso, mas ela ignorou-o. Se revelando a sua verdadeira identidade podia salvar as mulheres, então não restava nenhuma duvida do que tinha que fazer. O capitão Rogers tinha ficado mais pálido do que um defunto. — Que eu saiba não, senhor. É a primeira vez que ouço dizer de que o irmão é um conde. — Essa mulher está louca — exclamou Peter. — Sempre com esses delírios de grandeza. Essa não é irmã de nenhum conde; garanto-lhe, capitão Horn. Como Peter se atrevia a mentir! Não percebia a gravidade da situação? — Asseguro que sou a irmã do conde de Blackmore! — protestou ela. — Viajava incógnita com a finalidade de informar as autoridades de Londres sobre o tratamento humilhante que as reclusas recebem nesta espécie de barcos! Sara conseguiu soltar-se da garra do pirata e rebuscou no bolso do seu avental até que encontrou o seu diário, que sempre trazia com ela. Tirou um documento que tinha guardado entre 34


duas páginas e entregou-o ao capitão Horn. Jordan insistira para que levasse com ela algum tipo de identificação se fosse necessário para alguma emergência. Por isso havia escrito uma carta na qual explicava que a menina Sara Willis era sua irmã, e imprimira o selo da casa Blackmore no fim da carta. Felizmente, não se referira a ela como sua meia irmã. Jordan pedira-lhe para que usasse a carta se encontrasse dificuldades para regressar a casa quando estivesse em Nova Gales do Sul, mas parecera mais apropriado a Sara, utilizar a carta naquela situação. O capitão pirata olhou para a carta. A sua expressão escureceu quando se fixou na marca do selo. — Se insistir em levar estas mulheres, me encarregarei para que o meu irmão recorra a todas as influencias dele para o capturar — ameaçou-o ela com a sua voz mais altiva. — Não descansarei até que varra todos os mares com barcos na sua procura. Farei com que… — Já chega! — rugiu ele. Depois, guardou a carta no cinturão ao mesmo tempo que olhava para ela desafiante e esboçava um sorriso desconcertante. — já a entendi, menina Willis... Lady Sara. Bom, isto muda completamente as coisas. Sara sentiu-se invadida por uma refrescante onda de alívio. O seu argumento surtira efeito. Agora aquele maldito soltaria as mulheres e procuraria outros a quem martirizar. Mas as palavras seguintes deitaram por terra todas as suas esperanças. — Parece, milady, que vai ter que vir connosco. Capítulo 5 Se os direitos abstratos de um homem conseguem suscitar debates e declarações, pela mesma razão, os das mulheres deveriam ser tratados com a mesma consideração, apesar de neste país prevalecerem outras opiniões diferentes. Reivindicação dos direitos da mulher, MARY WOLLSTONECRAFT, escritora feminista inglesa

Gideon Horn passeava pelo convés do Satyr visivelmente furioso, tentando não prestar atenção aos soluços provenientes do porão enquanto ordenava aos seus homens que retirassem os ganchos que ainda mantinham o Satyr unido ao Chastity. Malditas fossem aquelas mulheres! Não entendiam a enorme sorte que tinham ao ter escapado do Chastity? Ele tinha estado em Nova Gales do Sul. Era uma colônia sem lei, cheia de assassinos e de ladrões. Não era o lugar mais apropriado para mulheres, nem sequer para um grupo de prisioneiras. Enquanto o Satyr se separava do Chastity, Barnaby aproximou-se exibindo um sorriso irônico. — Bem, capitão. Eu diria que o plano correu muito bem. — Mantém o teu maldito humor inglês para ti, Barnaby. Não estou com humor para piadas. — O alvoroço das mulheres lá em baixo no porão está enervando os homens. — Não é a primeira vez que ouvem soluçar um grupo de mulheres — contra-atacou Gideon, encolhendo os ombros. No entanto, tinha que admitir que aquele continuo soluçar proveniente do porão era, sem sombra de dúvida, muito pior do que o enjoado soluçar de uma mulher que chorava pela perca de suas jóias. Deu uma ordem ao contramestre, e virou-se para 35


olhar para Barnaby. — Diga à tripulação que se for necessário, tapem as orelhas. Preciso de todos os homens, não há tempo a perder; temos que sair daqui o mais rápido possível, antes que o Chastity regresse de Santiago e envie um barco à nossa procura. Barnaby assentiu, mas não se afastou do lado do capitão. — O problema é que aquelas mulheres não são simplesmente isso. São as nossas futuras esposas, e os homens não gostam de vê-las tão alteradas. Não é o que esperavam. — Também não era o que eu esperava, acredite. É aquela maldita lady Sara. Estavam tranquilas até que a fiz entrar ali em baixo com elas. Devia ter percebido que as agitava; é uma provocadora, uma instigadora nata. — Tem razão. — Barnaby tirou um charuto, acendeu-o e inspirou profundamente. — Talvez devêssemos tê-la deixado no Chastity. As ameaças dela eram ridículas. Mesmo que conseguisse convencer o irmão para sair à procura de um grupo de reclusas, não nos teriam encontrado. A nossa ilha não aparece nos mapas e... — Não queria correr esse risco. Precisamos de tranquilidade, se queremos que tudo corra como planejamos. Não podemos vigiar a todas as horas para que um maldito conde nos apanhe de surpresa. — Mas trazer aquela mulher conosco não evitará que isso aconteça. Pelo contrário, vai piorar a situação. Acredita sinceramente que aquele conde deixará que sua irmã desapareça do mapa sem ir à sua procura? Eu não. Gideon fixou o olhar no Chastity, que rapidamente ia ficando para trás. O fato de Barnaby ter razão não fez com que as palavras do inglês fossem mais fáceis de digerir. — Tal como disse há minutos, quem vai nos encontrar? Além disso, aquela mulher seria uma ameaça terrível se regressasse a Inglaterra e incitasse o irmão. Se ela não estiver perto para o pressionar, é possível que ele nem se preocupe. Se tivesse uma irmã como aquela, gostaria que ela regressase? — Não sei. Talvez. — Barnaby soltou uma baforada de fumo, com expressão taciturna. — Tem certeza de que não há… uhh… outras razões para trazê-la conosco? Gideon lançou-lhe um olhar furibundo e dirigiu-se para a cabina. — O que quer dizer? Barnaby seguiu-o. — É a irmã de um conde, e você ganhou a fama por fazer coisas simplesmente para aborrecer a nobreza, capitão. Gideon não disse nada enquanto descia para a cabina e afastava o leme do contramestre. Na realidade não podia descrever quê razões o tinham impelido a levar a menina Willis — lady Sara — para bordo. Exceto a indescritível raiva que tinha sentido quando ela atirara o título do irmão ao rosto. A nobreza britânica conseguia sempre enervá-lo. Aqueles malditos vaidosos afeminados eram um flagelo num mundo civilizado. Se não fosse por indivíduos como o conde de Blackmore e a sua irmã, haveria menos opresaão e dor, menos separações cruéis de amantes... Gideon lançou uma maldição quando reparou que a velha ferida voltava a manifestar-se. Por mais vezes que se risse aqueles malditos duques, marqueses e viscondes, por mais vezes que se apoderasse das suas propriedades e se ridicularizasse dos seus barcos de guerra, não conseguia libertar-se da dor intensa que sentia nem mudar o sistema britânico que tinha destruído o seu pai e tinha convencido a sua mãe para que agisse de uma forma tão inconcebível. A sua mãe. Brincou com a fivela do cinturão. Já tinha sido um alfinete, mas ele tinha-o transformado numa fivela para que lhe servisse de recordação constante da traição da sua mãe. 36


Talvez Barnaby tivesse razão. Talvez tivesse trazido lady Sara para bordo porque queria atormentá-la pelo mero fato de pertencer à nobreza. — Se não a trouxe a bordo por ser quem é — acrescentou Barnaby, como se tivesse lido os pensamentos de Gideon, — então talvez seja pelo que é. Tenho certeza que reparou que é uma mulher muito bonita. — É uma delas — respondeu Gideon. — isso supera qualquer outra consideração que acredite. Quando Barnaby desatou a rir, Gideon apertou os dedos sobre o leme. Sim, tinha reparado na bonita figura de Sara e no seu adorável rostinho. Só tinha visto uma uma pequena amostra do seu cabelo, uma ou duas madeixas rebeldes que surgiam por baixo daquele gorro tão modesto, mas reparou que eram de uma deliciosa cor vermelho escura. Surpreendeu-se perguntando-se a si próprio que aspecto teria aquela cabeleira solta, açoitada pelo vento, ou até húmida e caindo em cascata sobre as graciosas costas. Era teimosa. Maldição... Não podia dedicar-se a pensar na jovem naqueles termos, pois não? Não era mais do que uma incitadora com uma língua viperina. Não podia se deixar tentar por ela, por mais bela que fosse. Queria que a sua esposa cumprisse uma serie de requisitos, e ela não cumpria nenhum. Queria uma donzela de caráter doce, que desse a ele serenidade e bem estar durante as longas noites, não uma mulher de estirpe rançosa e ainda por cima desafiante, que amargurasse seus dias e as noites. — Não importam as razões pelas quais a trouxe — resmungou, olhando para Barnaby. — Agora está a bordo, e já é tarde demais para a enviar de volta. — De repente ouviram um grande tumulto proveniente do porão e Gideon esboçou um esgar de desgosto. — é uma pena, mas enquanto aquela alvoroçadora estiver ali em baixo semeando a discórdia, aquelas mulheres não deixarão de gritar. — Deve acreditar que se as mulheres fizerem ruído suficiente, mudará de opinião e as mandará de volta para o Chastity. — Devolvê-las ao Chastity? Pois sim! Aquelas mulheres tiveram a imensa sorte de as termos salvo do que as esperava em Nova Gales do Sul, sem esquecer as penúrias que teriam tido que suportar durante o resto da viagem. — Sim, mas elas não sabem disso né? E você também não esclareceu para elas as nossas intenções. Gideon acariciou o queixo. — Tem razão. Tinha tanta pressa em embarcá-las no Satyr sem derramar uma gota de sangue que não contei nada a elas exceto que os meus homens procuravam esposas. Estabilizou o leme. Talvez devesse ser mais explícito com elas, e assim se acalmariam. Se esclarecesse que não iam fazer mal a elas, seguramente se mostrariam mais dispostas a cooperar. Isso se conseguisse que lady Sara deixasse de provocá-las. Parecia que tinha erigido como a portavoz do grupo. Um sorriso retorcido desenhou-se nos lábios dele. A porta-voz. Sim, o mais apropriado era atacar o problema desde a raiz. — Barnaby, vai lá abaixo e leva a lady Sara ao meu camarote. Depois regresse aqui, para te encarregar do leme. — Agora? — Agora. Creio que chegou o momento daquela irritante mulher e eu trocarmos umas palavras. Sara encontrava-se de pé no meio do porão abarrotado de mulheres. Sentia-se tão indignada que não conseguia se conter. Como se atrevia aquele maldito pirata a sequestrá-las! 37


Como se atrevia a mantê-las encerradas ali em baixo, naquelas condições! — Vamos, mulheres, sei que conseguem fazer ainda mais ruído! — Sara encorajou as suas pupilas, que gritavam e uivavam como se tivessem arrancado os seus filhos do peito. — Conseguiremos que dêem meia volta e nos devolvam ao Chastity, mesmo que tenhamos que ficar afônicas. — Ainda nos matam, em vez disso! — vociferou Queenie por cima da algaraviada. Ela era a única que tinha se mostrado reticente com o plano de Sara de incomodar os piratas, mas como o resto tinha posto do lado de Sara, sustentando que era um bom plano, Queenie ficara sozinha. Além disso, o fato de se comportarem daquela forma permitia-lhes não pensar no pior, se elas se mantivessem ativas em vez de ficarem deitadas na escuridão, esperando ser divididas entre os homens, como se fossem meros pacotes de provisiões. — Se quisessem matar-nos, a estas alturas já o teriam feito! — contra atacou Sara. — Disseram que queriam esposas! Demonstremos a eles quanto seremos terríveis como esposas, e talvez mudem de opinião e nos soltem! As palavras acabavam de sair da sua boca quando a escotilha do porão se abriu e um dos piratas meteu a cabeça pela estreita escada. O individuo soltou uma gargalhada, e ela perguntouse se teria ouvido as suas palavras. Sara fez um gesto para que todas as mulheres se calassem enquanto interrogava o intruso. A elegante indumentaria parecia extraordinariamente diferente do resto dos seus companheiros. Sem duvida nenhuma, na Inglaterra teriam considerado um vaidoso, com as meias de seda, o casaco às riscas e o lenço atado ao pescoço com um nó à Bergami. Quando as mulheres ficaram em silêncio, ele inclinou a cabeça para Sara. — O capitão deseja trocar umas palavras consigo, lady Sara. Faça o favor de me seguir... Uau! O individuo era inglês! No meio de todos aqueles bárbaros colonos, pelo menos havia um inglês, um homem que talvez conservasse alguns escrúpulos morais. Talvez. No entanto, era um pirata. Perante as suas palavras, as mulheres apinharam-se à volta de Sara para protegê-la. Embora o gesto provocasse nela uma grata surpresa, Sara percebeu de que com isso não conseguiriam mudar as coisas. Nem uma única podia manter-se a salvo, muito menos a poderiam salvá-la. — Não acontecerá nada, meninas. — Sara esforçou-se por desenhar um sorriso de plena confiança. — Irei falar com o capitão, se é isso que ele quer. Quem sabe. Talvez tenha ganho juízo. Os olhares céticos das mulheres não conseguiram infundir-lhe coragem. A ultima coisa que queria era entrar no camarote privado de um homem que se autoproclamava sátiro. Contudo, fez uma cara animada, tentando ocultar o terror que sentia, e relaxou os ombros enquanto abria caminho entre as mulheres em direção à escada. Quando ficou ao lado do pirata, ele retirou-se, fazendo um gesto cortês com a mão para ceder o caminho. Ela hesitou apenas um momento antes de se colocar outra vez em marcha. Era difícil manter a saia colada ao seu corpo enquanto subia pela íngreme escada. Não sabia porque se preocupava por ser tão modesta, dadas as enormes possibilidades de que não mantivesse a sua virtude por muito tempo. No entanto, tinha aqueles hábitos de elegância demasiado enraizados para os esquecer tão facilmente. Assim que os dois chegaram ao convés, o pirata agarrou-a pelo braço com uma gentileza surpreendente e obrigou-a a deter-se. Sou Barnaby Kent, o primeiro-tenente. e antes que a leve ao camarote do capitão, permitame que a previna sobre como deve comportar-se diante da sua presença. Sara esforçou-se por responder com a voz mais altiva que conseguiu. — Como devo comportar-me? Por acaso existem regras de protocolo perante piratas que eu 38


deva saber? Os lábios de Barnaby ficaram visivelmente tensos enquanto a observava fixamente. — Não, mas poderia beneficiar com alguns conselhos sobre o nosso capitão. — Com a cabeça apontou para o leme. — Se estivesse no seu lugar, eu não diria o seu parentesco com o conde de Blackmore. — Porque não? — Não ouviu falar de Lorde Pirata? Sei que o nome dele apareceu bastante na imprensa londrina. Lembrou-se daquele nome rapidamente, coisa que não acontecera quando ouviu os nomes Satyr e capitão Horn pela primera vez. De repente, o coração de Sara começou a bater apressadamente. — Lorde Pirata...? Refere-se àquele... àquele homem abominável que adora atacar os nobres sempre que se apresenta a ocasião? — Sim — esclareceu Barnaby secamente. — aquele «homem abominável» é Gideon Horn. O seu captor. Sara engoliu a saliva convulsivamente. Santo céu. Tinha sido nos jornais onde lera algo acerca de Satyr. Agora compreendia porque o capitão pirata se tinha mostrado tão colérico quando ela se gabou do título de Jordan. Tinha acreditado que se o ameaçasse com o irmão, conseguiria ajudar as mulheres, mas em troca só conseguira piorar a situação. — Comp... preendo. — Não, não compreende. O capitão Horn odeia a aristocracia, sendo assim, deveria procurar não mencionar o seu sangue nobre, se não quer ser testemunha do seu lado mais escuro. — Ah, mas aquele homem tem um lado bom? Um leve sorriso apareceu no rosto do pirata inglês. — Sim. — transpassou-a de alto a baixo com o olhar, e o seu sorriso alargou-se. — Especialmente quando fala com uma mulher tão bela como você. Sara afastou o olhar do indivíduo enquanto notava um enorme rubor nas faces. — Pois eu diria que, neste caso, a beleza é um inconveniente evidente em vez de ser uma vantagem. — Não vai machucá-la, garanto. Não é desse tipo de homens. Mas não respondo pela sua raiva se o insultar gabando-se sobre os seus contatos com a nobreza. Sugiro que pondere as suas palavras. Se o fizer, conseguirá beneficiar-se não só a si, mas também beneficiará o resto das mulheres. O pirata parecia tão sincero que Sara se emocionou. Diante dela tinha um homem que se preocupava pela sorte que corriam as reclusas. Talvez pudesse usar aquela solução a seu favor. — Você é inglês, não é? Sabe perfeitamente que o que o capitão Horn está fazendo é uma barbaridade. Convença-o para que nos solte, para que nos leve de volta para Santiago e desista da sua decisão. Todos os sinais de preocupação acerca da sua sorte se desvaneceram do rosto do pirata, e o seu olhar endureceu como lápide de mármore. — Há muito tempo que perdi o desejo de lealdade para com os ingleses, milady. Além disso, sou a pessoa menos indicada para convencer o capitão para que vos solte. — Porquê? — Porque o fato de abordar o barco de reclusas foi ideia minha. Sara abriu a boca, mas não conseguiu pronunciar uma única palavra. Então, fechou-a com raiva. Devia ter imaginado. Não se podia confiar num pirata, fosse qual fosse a sua nacionalidade. Ele nunca as ajudaria. Não havia a menor esperança. 39


— Leve-me até ao capitão — pediu ela abatida. Não valia a pena atrasar mais aquele encontro. o melhor era averiguar o que aquele tipo pensava fazer com ela. Caminharam em silêncio por baixo de todos os aparelhos do barco até à cabina que se apresentava diante deles. Sara viu de lado o capitão, de pé e de costas, segurando o leme, e sentiu um calafrio de medo ao longo de todo o corpo. a firmeza da posição dele tão erguida; as pernas abertas provocadoramente, como um pistoleiro; as amplas e corpulentas costas... nunca tinha visto um homem com uma aparência tão aterradora. O senhor Kent não tinha que se preocupar, ela não acolhia o mínimo desejo de contrariar o capitão Horn. Disso tinha a certeza absoluta. O senhor Kent conduziu-a através das portas por baixo da cabina até uma ampla sala, que era como o salão do Chastity. Mas evidentemente aquela sala depressa se encheria de piratas, bebendo e jogando e... Sara estremeceu ao pensar nas outras coisas que podiam fazer. Pelo menos ela e as mulheres estavam gozando de um breve descanso. e talvez, se falasse de forma razoável com o capitão pudesse convencê-lo a mudar de opinião. Continuava imersa naquele pensamento quando o senhor Kent abriu a porta do camarote do capitão na popa do barco e convidou-a a entrar. Sara olhou ao seu redor, sentindo-se presa de um enorme desespero no momento em que presenciou o luxuoso interior do camarote e a magnífica vitrina cheia de armas. Não era o camarote de um homem decente, que pudesse ter piedade de um barco carregado de prisioneiras. Era o camarote de um assassino depravado. Não, não teria compaixão por ela, nenhuma. — O capitão estará aqui dentro de uns minutos — murmurou o senhor Kent antes de sair e fechar a porta atrás dele. Sara não ouviu o que ele lhe dizia. Estava absorta examinando o camarote. Só tinha estado no camarote de um capitão, o do Chastity. Em comparação com o do capitão Horn, o do capitão Rogers, com as linhas rígidas e economicamente vazias e mínimas comodidades parecia o camarote de um grumete. Por sua vez, o que agora observava, cada móvel era fabricado da melhor madeira de mogno que um homem podia sonhar, desde a secretária abarrotada de instrumentos e papeis até o armário que, por trás das portas de vidro, exibia todas as pistolas e sabres que conhecia e por conhecer. As cortinas de cor azul real eram bordadas com fio dourado, e no chão havia um tapete persa, uma óbvia amostra de excentricidade, dado que ali na água supunha ser uma constante ameaça. Mas o mais alarmante era a enorme cama de madeira de mogno que havia num dos cantos do espaçoso camarote, cujas pernas tinham esculpido o mesmo motivo do sátiro que ornamentava a figura da proa do barco. Um edredão de seda de uma insolente cor vermelha repousava sobre o imponente colchão, com uma fila de almofadões tão negras como o carvão coroando um dos extremos. Ela caminhou para a cama num estado de transe, perguntando-se que aberrações e descaramentos teriam cometido ali. Involuntariamente, estendeu uma mão para tocar o tecido vermelho enquanto uma repentina e nítida imagem do pirata com o cabelo negro surgia na sua mente. Devia ter-se deitado com um monte de mulheres naquela cama. Um estranho calor invadiu o corpo dela ao imaginar o capitão inclinado sobre uma mulher, acariciando o corpo feminino com aquelas mãos colossais, beijando-o com aquela boca firme e irónica... — O que faz? Procura sinais de surras, roubos e de violações, lady Sara? — pronunciou uma voz nas suas costas. Ela separou-se da cama com velocidade de um remoinho, enquanto notava um terrível ardor nas suas faces coradas. Por todos os santos! Era ele, o capitão pirata em pessoa! Que 40


vergonha! Agora teria algo novo para acrescentar à lista de experiencias humilhantes. Ele fechou a porta, esboçando um sorriso triunfal enquanto ela ficava petrificada, sem conseguir falar. —O edredão pertenceu a um detestável visconde, que ia de viagem para a América para se casar com uma rica herdeira — explicou ao mesmo tempo que tirava o sabre do cinturão e o pendurava num gancho situado atrás da porta. Seguidamente dirigiu-se à escrivaninha e olhou para Sara um olhar irónico e desafiante. — adorei roubá-lo da cama que partilhava com a amante. Sara pestanejou incômoda ao mesmo tempo que recordava o que o senhor Kent lhe dissera acerca do ódio que o capitão professava pela nobreza. Talvez devesse contar-lhe a verdade acerca do seu incorrecto parentesco com o conde. Talvez conseguisse que aquele indivíduo mostrasse uma melhor predisposição para escutar os seus pedidos. — Capitão Horn, creio que deveria... que deveria... esclarecer-lhe uma questão. Não sou... como explicar... Não deveria me chamar lady Sara. Na penumbra do camarote, o repentino olhar desdenhoso do capitão fez com que parecesse ainda mais uma criatura mitológica, uma criatura perigosa, temível, capaz de devorá-la com as massivas faces em questão de segundos. — Ah. E pode-se saber porque não? — Porque a verdade é que não sou uma verdadeira dama... não no sentido ao qual você se refere, quero dizer Apesar de Sara ter os olhos postos no chão, continuou a notar a possante força do desprezo dele enquanto se aproximava dela. — Não é a irmã do conde de Blackmore? — Bem, sim, de certa forma... — Sara engoliu a saliva. — o pai dele, o anterior conde de Blackmore, adotou-me depois de casar com a minha mãe, que também era viúva. na realidade não sou lady Sara, mas a menina Willis. Quando o capitão permaneceu em silêncio, ela aventurou-se a levantar os olhos novamente, surpreendida ao ver a expressão pensativa que refletia o rosto dele — Pretende dizer-me que, apesar de ter sido adotada pelo conde de Blackmore e de este a ter aceitado como parte da família dele em todos os aspectos legais, não ostenta o direito de usar o favorável título da família, como o resto dos filhos do finado conde? Sara nunca tinha ouvido ninguém expor a sua situação daquela forma. — Sim. Não posso. O capitão soltou um rugido. —É a coisa mais absurda que já ouvi. — passou a mão pelo desgrenhado cabelo ondulado ao mesmo tempo que olhava para ela com intransigência. — juro-lhe, nunca conseguirei entendelos, refiro-me a vocês, os ingleses. Têm mais regras formuladas para semear a discórdia entre as famílias do que as que um homem consegue imaginar. Os filhos mais jovens não herdam nada, as filhas também não podem herdar, os pais opõem-se aos seus herdeiros... é uma tremenda confusão. Sara ficou atônita perante aquele comentário referente às regras de conduta da sociedade inglesa. Supunha-se que os piratas não tinham opiniões sobre tais questões. Nem que fossem capazes de as expressar de uma forma tão eloquente. — Não vai negar que o sistema funcionou bem durante bastantes séculos — apontou ela numa tentativa de defesa aos seus. Ele arqueou uma sobrancelha. — Ah, sim? Com aquelas duas palavras, o capitão conseguiu expressar perfeitamente a aversão que sentia pelas regras inglesas. Que poderosa razão podia ter originado aqueles sentimentos tão 41


horrorosos naquele sujeito? Os americanos eram adversos a aceitar que tinham sido uma antiga colônia britânica, isso já ela sabia, mas a reação daquele homem podia-se considerar bem diferente. e apesar de morrer de vontade de averiguar o motivo pelo qual odiava tanto os ingleses, não perguntou. Tinha sérias dúvidas de que aquele pirata tão orgulhoso cedesse e respondesse. Não parecia uma pergunta acertada. Ele estudou-a com atenção, como se quisesse penetrar na sua mente. Sara tinha suportado os olhares ardentes de lordes e os olhares lascivos de mais do que um preso em Newgate, assim como de todos aqueles marinheiros, claro. Mas nenhum homem a tinha olhado com tanta atenção. A situação era incômoda, verdadeiramente incômoda. Ela afastou os olhos dele e procurou algo para dizer com o pretexto de afastar aquele interesse tão violento que sentia sobre a sua pessoa. — De qualquer forma, tenho a certeza que não me trouxe aqui para falar disso. O comentário surtiu efeito e o capitão rompeu o seu silêncio. — É verdade. — Rodeou a escrivaninha, sentou-se numa cadeira e em seguida apontou para uma cadeira que tinha perto. — Sente-se, lady Sara. Embora ela fizesse o que ele ordenava, protestou: — Já disse que não me pode chamar... — O barco é meu, e aqui sou eu que faço as regras. Chamarei como me apetecer. — transpassou-a de alto abaixo e depois voltou a cravar os olhos no rosto dela. — assim, lembrarei que tem um meio-irmão andando por aí, com uma terrível obsessão por me perseguir pelos sete mares. O sarcasmo deixou Sara sem fala. Estava explicado que o capitão não estava minimamente assustado com Jordan. Sem dúvida, com a sua revelação a única coisa que conseguira era que aquele tipo considerasse que Jordan não era uma ameaça real. E isso não era o que justamente desejava conseguir. Sara ficou tensa na cadeira, e entrelaçou as mãos sobre a saia. — Que Jordan seja meu meio-irmão em vez de meu irmão não muda as coisas, capitão Horn. Ele não se esquecerá de mim. Garanto que, quando souber do que aconteceu, persegui-lo-á sem tréguas. Enviará barcos de guerra com o objetivo de o capturar. Não conseguirá viajar com medo de deparar-se com o meu meio-irmão. As suas palavras não obtiveram o efeito que ela pretendia. Um sorriso desenhou-se no belo rosto do pirata. — Então, suponho que o melhor será não sairmos mais para navegar, desde que cheguemos ao nosso destino. — O que quer dizer? Ele encolheu os ombros. — Os meus homens e eu pensamos em nos retirar da pirataria. Por isso necessitamos de esposas. A declaração deixou Sara surpresa. Voltou a olhar para o camarote, fixando-se nos apliques de ouro e nas excêntricas comodidades. — Retirar-se? — conseguiu murmurar finalmente. — Sim, retirar-nos. Como já deve saber, a pirataria converteu-se numa profissão muito perigosa. a maioria dos governos declarou-nos uma guerra sem quartel, com a clara intenção de acabar conosco. E os meus homens e eu temos riquezas de sobra para viver desafogadamente. Não queremos acabar a nossa ilustre carreira deambulando entre as nuvens... Não sei se me entende. Ela assentiu mecanicamente. Tinha trabalhado tempo suficiente em Newgate para reconhecer aquele jargão com o qual os delinquentes se referiam à fatalidade de ser enforcados. 42


Mas retirar-se? Uns piratas que decidiam retirar-se? O capitão entrelaçou os dedos em cima da barriga e observou-a com um olhar perturbador. Parecia como se quisesse tocar-lhe a boca, as faces, até os seus seios tão recatadamente tapados. Se outro homem a tivesse olhado daquela forma, teria se sentido enojada. Mas como era possível que quando ele o fazia, se acelerasse o pulso? — O , problema é — continuou o pirata, com um tom mais grave, mais rouco, — que não dispomos de um país onde possamos gozar de um plácido retiro. — Porque não na América? — Nem mesmo lá. Digamos que a América não demonstra uma grande simpatia para tipos como nós. E duvido que algum outro povoamento americano dê as boas vindas a um bando de piratas com os braços abertos. — Não, espero que não — murmurou ela. Instantaneamente quis engolir as palavras que acabava de soltar, quando viu o rosto visivelmente aborrecido do capitão. Mas ele pareceu esquecer-se rapidamente da mensagem, visto que quando voltou a falar, a sua voz mostrava uma grande indiferença. — Vejo que compreende a nossa situação. felizmente, os meus homens e eu descobrimos uma ilha habitada unicamente por javalis. Há um riacho de agua doce e a sua vegetação é exuberante, e é grande o suficiente para aguentar uma população substancial. Decidimos que nos estabeleceremos ali e criaremos o nosso próprio país. O olhar dele tornou-se mais taciturno, quase hipnótico. — Só existe um problema... não temos mulheres. E uma colônia sem mulheres... bem, suponho que compreenderá o nosso problema. O sorriso que deu foi tão inesperadamente sedutor que Sara teve que se conter para não dar um sorriso igual em forma de resposta. Não queria que aquele... que aquele perverso animal a seduzisse. Não, de modo nenhum. — Mas porquê estas mulheres? Porque não escolhem mulheres em Cabo Verde ou...? — Porque acha que estávamos em Santiago? — O capitão fez um gesto evasivo e continuou com ar abatido: — Lamentavelmente, poucas mulheres desejam ir viver para uma ilha nova, com a obrigação de romper todos os vínculos com as suas famílias e de contribuir para aumentar a população. Até as...hum... as mulheres de vida fácil não consideram a proposta nada tentadora. Mulheres de vida fácil? Apesar dos seus esforços por parecer impassível, Sara notou como o rubor se estendia pelas suas faces. Moveu-se na cadeira visivelmente incomodada. — Não pode culpá-las. O capitão voltara a pousar o olhar no rosto dela, e sorriu como se o divertisse estar vendo seu estado desorientado. — Não, suponho que não. Têm motivos de sobra para ficarem em Santiago. Mas para as mulheres do Chastity a situação é absolutamente diferente. Estão condenadas a uma vida que beira a escravidão, numa terra desconhecida. As escolhemos precisamente porque supusemos que prefeririam a liberdade conosco em vez de ter que sofrer um servilismo forçoso com os prisioneiros cruéis que já povoam Nova Gales do Sul. — Não tenho a certeza de ver a diferença entre reclusos cruéis e piratas — espetou ela. — Ambos são delinquentes, não? Um músculo ficou tenso na mandíbula do capitão, conferindo-lhe um aspecto ainda mais feroz. — Acredite em mim, existe uma grande diferença entre os meus homens e aqueles criminosos. — E espera que confie na sua palavra? 43


— Não tem outra alternativa. — perante a expressão contrariada de Sara, ele tentou conter o seu temperamento. — Além disso, a nossa ilha tem mais para oferecer do que Nova Gales do Sul, onde o tempo é insuportável e o governo também. Nós oferecemos-lhes um tempo magnífico, uma vida fácil, muita comida, e nenhum governo exceto o nosso. Não há carcereiros, nem magistrados que oprimam os pobres nem que favoreçam a rica nobreza... é um paraíso. Ou será, quando as mulheres o partilharem conosco. O capitão olhou para ela fixamente nos olhos, com um audiente entusiasmo. Tinha descrito a ilha como o sítio ideal para viver, mas Sara não era tão ingênua. Nova Gales do Sul poderia ter sido um lugar horroroso a longo prazo, mas pelo menos as mulheres teriam podido escolher. Não teriam sido obrigadas a casar-se contra a sua vontade. Apesar dos habitantes do país talvez inicialmente tratassem as reclusas como meras prostitutas, sempre haveria a porta das oportunidades aberta para aquelas mulheres que estivessem determinadas a trabalhar duramente e a ganhar o respeito. algumas reclusas até teriam conseguido regressar a Inglaterra para junto das suas famílias, embora fossem muito poucas. Na ilha do capitão Horn, por sua vez, não gozariam daquela possibilidade. Estariam à inteira mercê dele e dos seus piratas. — Um paraíso? — Sara levantou-se da cadeira com tanto ímpeto que a sua saia se agitou violentamente. — Quer dizer um paraíso para si e para os seus homens. Mas não pronunciou nada que a transformasse num paraíso para as mulheres. Serão obrigadas a transformarem-se em esposas e a trabalhar para um país que não escolheram. Ele também se levantou, rodeou a escrivaninha até que ficou a uns escassos centímetros dela, e fez uma careta de desgosto. — Acha que teriam a oportunidade de escolher em Nova Gales do Sul? Eu estive naquele maldito lugar. Vi como tratavam as prisioneiras. Distribuem-nas entre os colonos como escravas, embora aqueles homens só as queiram para outro tipo de serviços. Perante aquelas palavras tão cruéis, Sara voltou a corar. Ele baixou a voz até quase a converter num sussurro. — As que não são escolhidas como escravas, são confinadas em fábricas abarrotadas de trabalhadores, onde as condições são mais doentias que nas prisões inglesas. E é esse o destino que anseia para as suas alunas, lady Sara? Eu ofereço-lhes liberdade, e você oferece-lhes um inferno. Sara ficou magoada com a acusação. — Liberdade? É assim que descreve um casamento forçado? Alega que a sua colônia será melhor, mas não me ofereceu nenhuma prova. Você também vai distribuir aquelas mulheres entre os seus homens, como fazem as autoridades australianas. Oferece-lhes casamento, mas isso também é uma escravidão forçada, ou não? O pirata ficou plantado de pé, tão rígido como a figura do seu barco. Então, encolheu os olhos. — Suponha que dou a elas o direito de escolha. — Pronunciou as palavras devagar, como se o magoassem. Sara notou uma grata sensação de surpresa, que imediatamente se transformou em esperança. — Escolher o quê? Se querem ir ou não para a sua ilha? Ele olhou para ela com a testa franzida. — Não. Refiro-me a escolher os seus maridos. Podem dedicar uma semana a conhecer os homens e a familiarizar-se com a nossa ilha. Depois, no entanto, deverão aceitar a proposta do homem que mais gostarem. 44


— Ah. — Sara considerou a sugestão durante um minuto. Evidentemente, era melhor que a tirânica oferta inicial, se bem que era o suficiente para outorgar às mulheres a liberdade absoluta para escolher entre regressar ao Chastity ou partir com os piratas. Embora, na verdade, ela não tinha a certeza de que elas quisessem regressar ao outro barco. No fundo, sabia que o capitão podia ter razão sobre a terrível sorte que as esperava se continuassem a viagem até Nova Gales do Sul. Oh, se pudesse ter a certeza de que os seus homens tinham adotado a firme determinação de se retirar... Se pelo menos soubesse como eram na realidade... Suspirou. Eram piratas. Que mais precisava de saber? Contudo, ele oferecia algo que as mulheres provavelmente não teriam conseguido em Nova Gales do Sul; a possibilidade de escolher o homem que as escravizaria. Sara procurou uma forma de suavizar mais aquela opção. — Una semana não é o suficiente — começou a dizer. — Talvez não cheguemos à sua até... — Chegaremos a Atlântida em dois dias — interrompeu ele. — Atlântida? — repetiu, ela. — Como a Atlântida dos gregos? Por um momento, o capitão mostrou um semblante menos severo. — Alguns dizem que a Atlântida não era mais do que uma utopia, lady Sara. E isso é o que esperamos criar: uma utopia. — Uma utopia onde os homens têm o direito a escolher e as mulheres não. — Estou oferecendo uma escolha. — Poderia dar-nos duas semanas, talvez? A expressão do capitão endureceu. — Uma semana. Ou aceita ou desiste. De todas as formas, as suas mulheres terão que escolher um marido. Já estou cedendo demais ao permitir que sejam elas a escolher em vez deles. Tenho a certeza de que os meus homens não acharão graça. — E se uma mulher escolher não se casar? — Essa não é uma opção. — colocou os polegares no amplo cinturão com a estranha fivela. — Ao fim de uma semana, se uma das mulheres não tiver escolhido um marido, será escolhido um. — Que sorte que não estejamos a negociar nada importante — espetou Sara. — Primeiro terei que falar com as mulheres, claro. Não posso decidir por elas. — Evidentemente. — O capitão voltou a caminhar para a escrivaninha, sentou-se na ponta da mesa e cruzou as pernas e os tornozelos. — Espero que com isto ponhamos fim ao alvoroço proveniente do porão. As palavras eram uma ordem. Sara encolheu os ombros. — Se elas aceitarem as suas condições suponho que sim. — Alisando a saia com uma mão contraída, acrescentou. — Posso ir já, capitão Horn, e explicar-lhes a sua oferta? — Claro. Dou-lhe uma hora. Depois enviarei o Barnaby para saber a resposta. Ela encaminhou-se para a porta, aliviada por poder escapar da perturbadora presença. Mas quando abriu a porta, ele disse: — Uma coisa, lady Sara. Ela virou a cabeça para olhar para ele. — Sim? — Se por acaso não me compreendeu bem, esta oferta refere-se a todas as mulheres a bordo deste barco, você incluída. Dispõe de uma semana para escolher um marido entre os meus homens. — ficou uns segundos em silencio sorrindo perversamente enquanto que com o olhar, observava os lábios dela, o pescoço… a cintura e as ancas. — caso contrário, terei muito gosto em 45


escolher um para si Capítulo 6 Oh, comando um bando irredutível de piratas audazes e livres. Não tenho lei, o meu barco é o meu trono, o meu reino é o mar. The Pirate of the Isle, R. B. DAWSON As palavras do capitão Horn ainda ressonavam nos ouvidos de Sara quando esta cruzou com passo rápido o salão e surgiu no convés. «Você incluída.» Mas em que é que ele acreditava! Estava há cinco anos negando a se casar porque não encontrava o homem adequado, e agora esse insolente pensava que podia colocá-la nos braços de qualquer animal que escolhesse para ela! Fechou os olhos perante a intensidade do brilho do sol, e atravessou apressadamente a coberta em direção à escotilha que conduzia ao porão. Podia esquecer-se do acordo! Nunca deixaria que a acorrentassem a um horrível pirata simplesmente porque ele o ordenava! Inclinou-se para abrir a escotilha, e um jovem pirata com cabelo curto aproximou-se agilmente. — Permita-me que a ajude, menina. — ofereceu-se enquanto corria o ferrolho e depois levantava a escotilha. O seu ato tão educado apanhou-a completamente desprevenida. Quando ela olhou para ele perplexa, ele acrescentou: — Espero que as senhoras estejam cômodas aí em baixo. Se precisarem de alguma coisa, seja o que for, por favor, diga-me e verei o que se pode fazer. Apesar de ser difícil continuar a mostrar-se furiosa diante de tais mostras de cordialidade, Sara ainda estava digerindo o encontro com o capitão Horn. Não, aquelas demonstrações de preocupação não a convenciam. — A única coisa que as senhoras precisam é que as deixem em liberdade agora mesmo. Consegue ajudar-nos? — Quando o pirata corou e murmurou que só o capitão podia fazer isso, ela respondeu: — Então sinto dizer-lhe que você não nos pode ajudar. Sem perder nem mais um segundo, desceu pelas escadas, deixando o pobre homem para atrás, com o dever de fechar a escotilha sobre ela. O ar no porão estava viciado pelo barulho e pelo mau cheiro das mulheres e as crianças estavam assustadas. Apesar do barco pirata ser menor do que o Chastity, o seu porão era mais espaçoso e não possuía barrotes intimidadores. No entanto, sem os beliches colados às paredes, as mulheres viam-se obrigadas a partilhar os colchões que, aparentemente, os piratas tinham distribuído pelo chão para acomodar a carga que esperavam recolher nas ilhas de Cabo Verde. Pelo menos havia mais luz no porão do Satyr do que no do Chastity, graças às lamparinas de azeite alinhadas nas paredes que chegavam à barriga do barco com um acre cheiro de azeite queimado. Assim que as mulheres viram Sara, levantaram-se com um salto dos colchões e correram para as escadas. — O que pensam fazer connosco? — perguntou Queenie. — Quanto tempo teremos que ficar aqui em baixo? — inquiriu outra mulher, enquanto uma das crianças berrava para que lhe dessem alguma coisa para comer e outro chorava porque tinha sede. 46


— Não sei quando nos permitirão subir ao convés — respondeu Sara quando alcançou o último degrau. — mas sei o que planeiam fazer connosco. Foi por isso que o capitão me chamou, porque quer que vos diga. Entre o movimento de dezenas de pés nervosos e os berros das crianças, Sara descreveu a negociação com o capitão e falou-lhes da ilha de Atlântida e do que os piratas pretendiam. Quando terminou, as mulheres estavam completamente em silêncio. Era obvio que não sabiam como encarar a oferta do capitão. Ela também não. Depois de uns breves momentos, Louisa deu um passo em frente, separando-se do resto das mulheres. O seu cabelo ruivo caía sobre os seus ombros num massa emaranhada, e tinha a cara mais branca que o marfim. — Insinua que a intenção daqueles homens é obrigar-nos a casarmos com eles e que depois nos encerrem numa ilha remota para o resto das nossas vidas? — a voz dela continha una nota de pânico. — Não poderemos regressar a Inglaterra nunca mais? — E quem se importa de voltar a Inglaterra? — rugiu Queenie antes que Sara pudesse responder. — lá não há nada para nós. Além disso, se tivéssemos chegado a Nova Gales do Sul, também teríamos ficado lá retidas. Para escapar, teríamos que pagar o bilhete de volta para Inglaterra dos nossos próprios bolsos assim que a nossa condenação acabasse, e isso é impensável, visto que o bilhete de regresso custa os olhos da cara. — Mas eu tenho família em Inglaterra, Queenie — soluçou uma das mulheres mais jovens. — Tenho que tratar da minha mãe. Está sozinha e… Sara deu uma quantas palmas para estabelecer o silêncio. — Sei que acham este plano tão horrível quanto eu. Mas temo que o capitão Horn está decidido a não nos soltar. Já cedi bastante ao permitir que sejamos nós a escolhermos o homem com o qual nos queremos casar. — Nós? — repetiu Louisa, com uma expressão de incredulidade no rosto. — aquele homem quer que você também se case? Você, que é uma dama? — Não sou uma dama. o conde de Blackmore é apenas meu meio-irmão. Mas sim, também quer obrigar-me a casar. — agarrando-se às escadas quando o barco se inclinou, Sara acrescentou: — corremos todas a mesma sorte. Daqui a uma semana, ou escolhemos um marido entre os piratas, ou o capitão Horn o escolherá por nós. Nas nossas mãos está transformar a Atlântida numa prisão ou no nosso lar; isso dependerá de nós. O capitão não nos dá outra alternativa. — Pois para mim não me parece tão horrível — interveio Ann. — Teremos um homem que trate de nós e dos nossos filhos... — Nem todas morremos de vontade por ter um homem que nos proteja e estar rodeadas de crianças, Ann — espetou Louisa. — Algumas de nós preferiríamos estar sozinhas. — E o que acontecerá com as que não forem capazes de apanhar um marido? — proferiu uma voz lá do fundo Sara olhou para Jillian, uma anciã que rondava os sessenta anos e que estava sentada num barril selado de água potável. — Não somos assim tão jovens — acrescentou. — Nenhum pirata olhará para nós. — É verdade. — Sara franziu a testa. Não tinha percebido. Havia três mulheres que excediam a idade de gerar filhos. O coração dizia-lhe que aqueles piratas (a maioria pareciam ter menos de quarenta anos) não quereriam uma velha para esposa. — E o que acontecerá com as que não são bonitas? — perguntou uma jovem com o rosto desfigurado por causa das marcas que a varíola lhe deixara. — e se nenhum daqueles homens nos quiser? A expressão de Sara tornou-se mais taciturna. Maldito fosse o capitão Horn e as suas suposições. O maravilhoso plano continha uns quantos buracos negros. Tinha dito que os homens 47


cortejariam as mulheres, mas se sabia algo sobre os homens, era que se lançariam numa apaixonada competição por conseguir seduzir as mais bonitas e esquecer-se-iam das outras. E depois? Depois que as mais bonitas tivessem escolhido maridos, obrigaria o resto dos homens a casar com mulheres que não desejavam? E o que aconteceria com as mulheres que tinham dois ou três filhos? Esperava que os seus piratas se encarregassem da família por completo? E se negassem? O que aconteceria a essas crianças? — Parece-me que o capitão Horn não considerou todas as possibilidades — comentou Sara. — queixa-se imenso do sistema clássico inglês, mas obviamente não sabe nada sobre como organizar uma sociedade. Creio que terei que manter outra conversa com ele para tratar de todos estes pontos. Talvez, quando compreender a complexidade da situação, veja que é impossível que aceitemos o seu plano. Todas concordaram, embora algumas murmurassem que antes prefeririam ter um pirata por marido do que um colono. Era evidente que as mulheres se mostravam divididas quanto à questão de escolher maridos. — Pessoalmente, não quero estar presa a um único homem quando há uma ilha repleta deles para escolher — anunciou Queenie. Quando as outras desataram a rir, Sara conteve-se para não sorrir abertamente. Seria interessante ver como se arranjaria o capitão Horn com as incorrigíveis «pombas manchadas» como Queenie. Uma ilha cheia de prisioneiras e piratas não ia ser a utopia com a qual ele sonhava. Provavelmente, quando aquele animal percebesse que a situação era inviável, se mostrasse mais razoável. Embora duvidasse. Gideon estava sentado diante da escrivaninha, com uma pedra de amolar, distraído a afiar o seu sabre. A sua mão escorregou e fez um corte num dedo. Proferiu um palavrão em voz alta ao mesmo tempo que limpava o sangue no casaco de pele. Era perigoso segurar um sabre na mão quando tinha a mente completamente ocupada pensando em Sara Willis. Colocou o sabre no seu colo e olhou para a porta. Não conseguia acreditar que tinha se deixado convencer tão facilmente por aquela mulher. Maldita fosse! Mas que pesadelo... Se não fosse por ela, teria a consciência mais tranquila sobre o fato de ter sequestrado as reclusas do Chastity. as mulheres se mostrariam contentes, ele e os homens estariam contentes e tudo correria de vento em poupa. Se não fosse pela menina Willis. Barnaby tinha razão: deveriam ter deixado aquela maldita mulher no Chastity. Então o seu irmão — melhor dizendo, meio-irmão — teria levado com ela da melhor maneira que conseguisse. Gideon soltou outro palavrão e colocou a pedra de amolar na escrivaninha. Que espécie de homem era o irmão para permitir que uma mulher como ela embarcasse num navio cheio de condenadas? Alguém deveria colocar o conde de Blackmore num altar. Gideon nunca deixaria que uma das suas irmãs — num sequer uma meia-irmã — cometesse uma loucura semelhante, e menos ainda tratando-se de uma jovem de boa estirpe. Admoestou-se a ele próprio por raciocinar como um maldito inglês. Não importava se ela era de boa estirpe ou não. Não era melhor que qualquer uma daquelas reclusas, e não merecia um tratamento diferente. Além disso, não era indefesa, não com aquela língua viperina. Mas conseguiria colocá-la com rédeas curtas, mesmo que tivesse que lhe amordaçar a boca para o conseguir. Aquela boca... Mmmm... Que Deus tivesse piedade dele... Podia pensar noutras formas de a silenciar... outras formas mais agradáveis. Durante escassos segundos, imaginou o que sentiria o 48


beijar aqueles lábios provocantes, ao saboreá-los enquanto se abriam e... Umas pancadas secas na porta tiraram-no do seu devaneio, e Gideon gritou: «entre!», enquanto tentava afastar a deliciosa Sara Willis dos seus pensamentos. Imediatamente voltou a agarrar a pedra de amolar. Barnaby entrou com outro dois homens de Gideon, e entre os dois arrastavam um marinheiro raquítico que ele não reconheceu. — Encontramos este clandestino escondido no bote salva vidas, capitão. — Barnaby empurrou o pobre com brusquidão. — pensamos que estava no Chastity. Gideon observou o indivíduo calmamente. Sem dizer uma palavra, começou a afiar novamente o sabre, vendo como o clandestino empalidecia. Afiou a folha já amolada do sabre com lentidão, deixando que o roçar da pedra contra o aço ressoasse na cabina varias vezes antes de decidir falar. — Vejamos, quem és tu, e o que fazes no meu barco? — perguntou-lhe tranquilamente. Apesar das mãos do homem temerem sem parar, este não afastou o olhar de Gideon. — chamo-me Peter Hargraves, senhor. Introduzi-me enquanto estavam a embarcar as mulheres no Satyr. eu... eu quero ser pirata, senhor. Outro tipo sedento de riqueza. — E porque quer ser pirata? Não é uma vida fácil. Há que trabalhar duro para conseguir ouro, e fazer algumas coisas desagradáveis. Hargraves estava lívido, como se estivesse enjoado, mas manteve-se firmemente em pé. — Bem... senhor... uhh... a verdade é que não tenho outra alternativa. Tinha planejado ir para Nova Gales do Sul para fazer fortuna, mas você pôs fim ao meu sonho. Não posso regressar a Inglaterra, por isso me introduzi no seu barco. Pelo menos parecia sincero. Gideon continuou a afiar o sabre. — E pode-se saber porque não podes regressar a Inglaterra? As pontas das proeminentes orelhas de Hargraves ficaram vermelhas. — Envolvi-me no Chastity para escapar da forca, senhor. Matei um homem. Não posso voltar. Se o fizer, me enforcarão. «Não posso voltar.» Havia algo de verdade naquelas palavras. Mas e o resto... Era possível que esse sujeito estivesse mentindo? Apesar da sua história parecer credível, havia algo no comportamento de Hargraves que fez Gideon pensar que não era completamente sincero. Mas evidentemente, a maioria dos homens de Gideon tinham segredos. Por isso tinham se decidido pela pirataria. E nenhum marinheiro seria capaz de se introduzir como clandestino num barco pirata a menos que estivesse desesperado. Gideon deixou de afiar o sabre e observou o homem com olho crítico. Então queria ser pirata, não era? Era de compleição delgada, mas parecia forte. Provavelmente se daria bem subindo nos mastros. Mas essa habilidade já não seria de grande ajuda para Gideon, já não. — Diga, Peter, se dá bem cultivando a terra? Hargraves olhou para Gideon como se pensasse que o capitão tinha ficado louco. — Cultivar a terra, senhor? — Sim, foi o que perguntei. — respondeu Gideon impacientemente. — Ou fazer trabalhos de construção, ou de carpintaria. Sabes alguma coisa sobre isso? Hargraves olhou para Barnaby de lado, que se limitou a dizer: — O capitão fez-te uma pergunta. — Não... não sei nada sobre isso. Sou marinheiro, senhor, e muito bom, na verdade. — Quando Gideon franziu a testa, apressou-se a acrescentar: — e também me defendo muito bem com os punhos, embora não pareça, pelo meu aspecto, eu sei, mas consigo derrubar um homem 49


com o dobro do meu tamanho. Gideon só exagerou mais o seu olhar escurecido. — Não precisarei de marinheiros duros nem de lutadores quando chegarmos ao nosso destino. Não me serves. Barnaby, prende-o até que... — Sei como matar e a esfolar animais! — exclamou Hargraves. Gideon soltou o sabre e a pedra de amolar e olhou para o marinheiro com evidentes mostras de ceticismo. — Não me diga. Sabe como esfolar um veado e conservar a carne? — Sim.. — Hargraves respirava agora com dificuldade. — o meu pai era carniceiro. Ensinou-me tudo o que sabia. Envolvi-me num barco quando ele perdeu o seu negócio. Um carneiro. Poderia ser útil. Se aquele homem dizia a verdade, claro. Bem, valia a pena arriscar-se, se no final acabassem por dispor de um carniceiro competente em Atlântida. — Olha, inglês, permito que fiques com a minha tripulação durante o resto da viagem. — Hargraves dispôs-se a agradecer, mas Gideon levantou uma mão. — mas quando chegarmos ao nosso destino, terás demonstrar o que sabes. Não vou tolerar nenhum erro. Se pensaste que os piratas são um bando de preguiçosos. Se não fizeres bem o teu trabalho, te trinchamos. Gideon ignorou a cara de estupefacção de Barnaby. Nunca tinham trinchado ninguém, nem sequer os nobres ingleses que o capitão tanto odiava. Mas Gideon queria aterrorizar o indivíduo. Talvez Hargraves pensasse duas vezes da próxima vez, antes de se introduzir num barco pirata. — Coloca-o a limpar o solo do convés. — ordenou Gideon, depois agarrou no sabre outra vez. Mas o seu primeiro-oficial não se moveu. — Capitão? — Sim? — resmungou Gideon sem levantar o olhar. — Já é praticamente hora de comer. O que vamos a fazer, para dar de comer às mulheres? As mulheres. Tinham estado tão caladas durante a última hora que Gideon quase tinha esquecido delas. — Temos comida suficiente para todos. Diga a Silas que prepare algo para elas e para as crianças. — Mas... as deixamos subir ao convés? — perguntou Barnaby. Nesse momento Gideon percebeu que Hargraves estava ouvindo a conversa com uma enorme curiosidade. Talvez aquele tipo não tivesse sido completamente honesto ao expor as razões que o tinham movido a introduzir-se no Satyr. Talvez uma daquelas mulheres fosse sua noiva. Bom, aquilo seria uma razão suficientemente inocente para subir a bordo como clandestino, e Gideon não podia ralhar por isso. — Não, ainda não. Tenho algumas coisas para conversar com a tripulação antes das mulheres poderem subir ao convés. — Que tipo de coisas? — perguntou Barnaby. Gideon olhou fixamente para o primeiro-tenente. — Depressa saberás. — tirou um relógio do bolso e consultou-o. Tinha decorrido uma hora desde que falara com a menina Willis. Agora era tempo de averiguar se as mulheres aceitavam a sua oferta ou não. — mas traga a menina Willis. Temos que concretizar determinados assuntos. Apesar de Barnaby lançar um olhar inquisidor, ele ignorou-o. Ainda não tinha explicado ao resto da tripulação a oferta que tinha proposto às mulheres. Não queria aumentar as queixas e criticas dos seus homens até que não tivesse a certeza se as mulheres tinham aceitado ou não. Barnaby e o seu companheiro abandonaram o camarote, levando Hargraves com eles, e Gideon ficou imóvel, com o olhar perdido no espaço. Não tinha considerado o quanto era difícil 50


comunicar aos seus homens que tinha oferecido às mulheres a possibilidade de escolher marido. Que diabos o tinham invadido para aceitar aquele acordo? Não que aquelas mulheres esperassem tais privilégios. Em Nova Gales do Sul, não teriam tido a mínima possibilidade de escolher. Ou muito poucas. Gideon abriu uma das gavetas da escrivaninha e procurou no fundo até que encontrou um pequeno frasco com rum que guardava ali para os estados febris. Quase nunca bebia licor, mas hoje sentia uma necessidade imperiosa. Bebeu um gole, tossiu, depois bebeu outro gole. Depois de uns quantos goles mais, conseguiu aplacar a raiva que o possuía. E se tivesse outorgado aquele direito às mulheres? Queria que estivessem contentes. Se elas estivessem contentes, fariam o que mandasse e uniriam as suas forças à dos homens. Precisavam de mulheres em Atlântida, não só para que os homens pudessem desafogar-se sexualmente, mas também para finalizar outras tarefas — como cozinhar, coser e semear, — coisas que os homens não sabiam fazer. e se concedendo às mulheres um pouco de liberdade para escolher marido conseguisse que se sentissem mais cômodas, faria. os homens compreenderiam perfeitamente, se explicasse a situação como era devido. Embora, pensando bem, preferiria que a sua própria esposa, a que ele escolhesse, se casasse com ele não por coação mas sim porque ela o quisesse. Na porta soaram umas pancadinhas. Guardou o frasco de rum na gaveta, acomodou-se na cadeira e gritou: «entre!». A menina Willis entrou. Quando entrara no camarote há uma hora, entrara ostensivelmente irritada, mas agora, no entanto, parecia mais sossegada, até acovardada. Embora parecesse estranho, Gideon não gostou de a ver com aquele ar submisso, e isso levou-o a falar com um tom mais severo do que era de esperar. — E então? O que decidiram as mulheres? Sara parecia não ter ouvido a pergunta. — Enquanto vinha para aqui, vi que prenderam um marinheiro do Chastity. O que vai fazer com ele? Por alguma razão, o capitão não gostou da preocupação que ela demonstrou por aquele pobre marinheiro inglês. — Mandá-lo borda fora. — a expressão horrorizada de Sara deu a entender que não tinha entendido a brincadeira, e então ele acrescentou: — uniu-se à minha tripulação. — as feições de Sara relaxaram aliviadas, e Gideon sentiu uma crescente curiosidade. — Porque queria saber. Ela fez um gesto evasivo. — Oh, não gostaria que fizessem mal a ninguém do Chastity. — Uau, muito simpático da sua parte... — Por um momento, passou pela cabeça de Gideon que a menina Willis podia ser o motivo pelo qual Hargraves tinha se introduzido no seu barco. Mas rapidamente desistiu da ideia porque pareceu absurda. Os marinheiros britânicos sabiam melhor do que ninguém que não podiam apaixonar por uma mulher de uma posição social superior. E uma mulher bonita como a menina Willis nunca mostraria um interesse romântico por um homem esquelético como Peter Hargraves. De qualquer forma, aquele não era o motivo pelo qual a tinha chamado. — As mulheres decidiram se aceitam a minha oferta? A expressão de Sara mudou repentinamente quando levantou a cabeça e olhou para ele diretamente nos olhos. O medo desapareceu, e no seu lugar surgiu uma fria determinação que se expressou numa linha intransigente na sua boca e num brilho intenso nos bonitos olhos castanhos. — Não exatamente. — Não exatamente? — Gideon levantou-se furiosamente da cadeira, rodeou a escrivaninha e plantou-se à frente dela. — lembre-se que se não aceitarem uma semana de tempo, limitar-me-ei 51


a deixar que os meus homens escolham a mulher que quiserem... — Não! — Quando Gideon arqueou uma sobrancelha, ela apressou-se a acrescentar: — Quero dizer, claro que aceitam essa semana; é melhor do que a alternativa. Mas tenho algumas perguntas. Temos algumas perguntas. Sobre como se levará a cabo a escolha. Gideon apoiou uma anca na escrivaninha e observou-a fixamente. Sara parecia desorientada, e era assim como ele queria que ela se sentisse. Quanto mais confusa, mais rapidamente solucionavam o assunto e ela sairia do seu camarote. O motivo pelo qual ele queria que Sara saísse do seu camarote era uma questão que preferia não examinar detalhadamente. — Vá, solte as perguntas, mas rápido, sim? Tenho que me encarregar do barco. Sara endireitou uma madeixa de cabelo rebelde que insistia em se escapar por baixo do gorro apertado com um lacinho e esboçou uma careta de alívio. Depois ergueu as costas. — Algumas daquelas mulheres têm filhos. Os homens com quem casarem assumirão a responsabilidade de se encarregarem dessas crianças? — Claro que sim. Se não sabia, nós não somos monstros. Sara franziu a testa . Era óbvio que não estava de acordo com o comentário. — E o que acontecerá com as mulheres mais velhas? Há lá em baixo algumas mulheres que já não estão em idade de procriar. Se nenhum dos seus homens quiser casar com elas, e você escolher um marido que provavelmente as despreze? Maldição! Gideon não tinha pensado nessa questão. Mas encontraria uma solução rapidamente. — Farei uma exceção com as mulheres que não podem ter filhos. Se nenhum homem quiser casar com elas, poderão permanecer solteiras. Sara bufou estrondosamente. — Então, se uma mulher não encontrar um homem que queira casar com ela, não terá que se casar. — Eu não disse isso! — aquela pequena velhaca estava a deturpar as suas palavras. — as mulheres que estejam em idade gerar deverão escolher marido, ou escolhe-se um por elas. Sara cruzou os braços por cima do peito, com o porte furioso. Gideon perguntou-se se ela era consciente do aspecto que oferecia, ali de pé, no centro do camarote. Com aquele gorro ridículo e o recatado vestido sujo por causa da transferência das mulheres para o Satyr, recordoulhe uma descarada a implorar favores a um Lorde. Salvo que ele não era um Lorde, e ela era exatamente uma descarada. E provou-o ao levantar o queixo com uma arrogante expressão de desafio. — Suponha que uma mulher é feia demais para que um homem olhe para ela. Obrigaria um dos seus homens a casar-se com ela só porque anseia casar toda a sua tripulação? — perguntou Sara. As palavras dela conseguiram irritar Gideon, não tanto pela lógica mas pela clara oposição que ela demonstrava para com os seus planos. Aproximou-se dela impetuosamente, sentindo uma leve satisfação ao ver a súbita expressão de desconfiança que se formava no rosto da sua interlocutora. — Os meus homens passaram os últimos oito anos no mar, apenas com algumas noites em algum porto, ocasionalmente para saciar a sua necessidade de companhia feminina. Aquelas mulheres poderiam ter cara de cavalo e estar desdentadas, e os meus homens ainda assim as desejam, garanto-lhe! Aquilo não era completamente verdade, mas a paciência de Gideon estava acabando. A menina Willis acataria as suas regras, nem que tivesse que a encerrar para o conseguir! 52


Ela retrocedeu ao mesmo tempo que notava um intenso sufoco nas faces. Mas quando bateu na porta do camarote e se sentiu encurralada, optou por continuar a repreende-lo. — Não pode acreditar que os seus homens desejem uma mulher que... — Já chega! — Gideon colocou as mãos na porta de carvalho, de ambos os lados dos ombros de Sara, aprisionando-a entre elas. — dou-lhes uma semana para escolher marido. Quando acabar o prazo, casarei os que ainda ficarem livres da melhor maneira que me ocorrer, e nada do que você disser mudara a situação! — Mas não está pensando de maneira lógica — protestou ela com absoluta sinceridade, virando o queixo para um dos lados. — Se obrigar as pessoas a... — Porque é que você é tão teimosa, hein? Tem medo de não encontrar marido? É isso que a preocupa? Tem medo de que ninguém a escolha? A cor desapareceu do rosto de Sara. — Mas no que acreditou! Desprezível, detestável... — Porque se for isso, então não tem que se preocupar. Muitos homens neste barco vão achá-la atraente. Antes que o pudesse deter, Gideon desatou-lhe o laço com o qual segurava gorro ao pescoço e lançou o gorro ao chão. Sara olhou para ele com uns olhos descomunalmente abertos, e notou como se acelerava o pulso ao mesmo tempo que começava a respirar com dificuldade. Pelo seu lado, Gideon sentiu-se invadido por um incontrolável desejo, tão repentino como uma magnífica tempestade em pleno verão. Algumas madeixas de cabelo ruivo escaparam-se do recatado rabo-de-cavalo, e ela tentou prende-los de novo disfarçadamente. Eram praticamente da mesma cor que os seus olhos, de castanho-escuro, ladeados pelas pestanas mais longas e finas que ele alguma vez vira. Raios e trovões. Mas que linda era. Com os lábios pintados de cor de pêssego… a testa branca…a pele salpicada por raríssimas sardas que lhe davam um aspecto infantil. Era a primeira vez que estava tão perto dela, a primeira vez que admirava aquele doce rosto. Ele e os seus homens tinham-se cruzado com muitas mulheres inglesas durante os anos de pirataria. E tinha beijado uma ou duas para aborrecer os chatos dos seus maridos, mas nunca tinha desejado nenhuma. Não da forma em que, de repente, desejava a menina Willis. A sensação assustou-o terrivelmente. Ela não era a mulher ideal para ele. O melhor será deixar que um dos seus homens se deitasse com aquela bruxa e sofresse com o seu temperamento e com os delírios de grandeza. Mas a alternativa também não lhe parecia convincente. O melhor era afastar-se dela, mas não conseguia. Não até que tivesse visto um pouco mais. Num estado de transe, tirou os ganchos que prendiam o cabelo naquele sóbrio rabo-de-cavalo e a cabeleira caiu numa magnífica cascata sobre os ombros. Gideon deslizou os dedos pela cabeleira até que as madeixas começaram a separa-se nos seus dedos com se fossem suaves tiras de seda. quanto tempo tinha passado desde a última vez que tinha acariciado uma cabeleira feminina? Quanto tempo para que não estivesse tão perto de uma mulher? Enredou uma madeixa castanha num dos seus dedos, e sua insolência pareceu dar forças a Sara para reagir do espantoso silencio em que tinha sumido. — Não faça — sussurrou ela. O rosto refletia o incômodo que sentia. — Porquê? — Gideon acariciou o cabelo que tapava um dos seus ombros, pensando que aquela fêmea tinha a pele mais sedosa que já vira, uma pele que parecia gritar que a acariciassem. Quando ele passou delicadamente o contorno do seu pescoço com um dedo, Sara conteve a respiração. 53


— Não é... correto — disse ela. O comentário conseguiu arrancar um sorriso ao capitão. — Correto? Cruzamos a linha do correto ou incorreto no momento em que abandonou o Chastity. Está num barco pirata, lembra-se? Sozinha, no camarote de um perverso capitão pirata... que está prestes a beijá-la. Assim que Gideon pronunciou estas palavras, soube que tinha cometido um grave erro, e não pela expressão de ultraje que surgiu no rosto dela, mas porque sabia que beijá-la era perigoso. Não, não era a mulher ideal para ele. Mas tinha que a provar uma vez. Apenas uma vez, um pouco… E antes que Sara pudesse protestar, Gideon uniu a sua boca à dela. Capítulo 7 Desdém, oh desprezem esse estado aborrecido, e a todos esses aduladores detestáveis: desprezem os homens, e ficarão orgulhosas de mostrarem a vossa perícia. To the Ladies, MARY, LADY CHUDLEICH, poeta inglesa

Sara ficou petrificada. os lábios de Gideon, demasiado suaves para corresponder a um pirata, moviam-se sobre os seus com uma gentileza embelezadora. A respiração dele, surpreendentemente doce, confundiu-se com a dela. Em seguida, o capitão deslizou a língua por cima dos seus lábios. e Sara deu um salto. Assustada. Tinha-a beijado! Aquele… aquele animal tivera a desfaçatez de a beijar! — O que aconteceu, lady Sara? — perguntou ele com uma voz rouca e uns olhos penetrantes e confiantes. Elevou a mão para acariciar a face, e percorreu o rosto dela com o polegar até chegar ao lábio inferior. — é a primeira vez que a beijam? Um estremecimento traiu-a enquanto Gideon se dedicava a percorrer o seu lábio inferior com o dedo polegar. Tentou concentrar-se em repelir os movimentos dele, mas custava pensar, com ele a lhe tocar daquela forma tão sugestiva. — Claro que... que me beijaram antes. O capitão arqueou uma sobrancelha como se não acreditasse nela. — Pois fosse quem fosse o homem que a beijou, não conseguiu fazer com que se sentisse desejável. — o polegar rugoso continuou as pequenas curvas do seu lábio superior. — Quem era? Algum pretendente a quem tremiam os joelhos, recém-saído do colégio? Algum Lorde afeminado? Aquele maldito canalha estava brincando com ela. Sara fulminou-o com um olhar desdenhoso. — Era um oficial de cavalaria inglês, se interessa, e não tinha nem um pelo de afeminado. — Sara interpôs a mão para se separar dele. Mas Gideon agarrou-lhe a mão e levou-a até à parte posterior do seu pescoço. Sem a soltar, baixou os olhos e cravou-os nos coléricos olhos dela. — Afeminado talvez não, mas não devia ser homem suficiente para retê-la na Inglaterra. E também não devia de ser muito adepto de beijos, ainda que talvez me engane... Talvez precise de mais para comparar. Antes que pudesse detê-lo, a boca do capitão pousou novamente sobre a dela, poderosa, possessiva, inflexível. Desta vez não houve rastro de gentileza naqueles lábios que a devoravam. 54


Invadiu a boca dela como se estivesse com todo o seu direito, ao puro estilo pirata. Sara agarrou-o pelo cabelo com a intenção de puxar com força e afastar a sua cabeça, mas naquele momento o barco oscilou e a força empurrou Gideon contra ela, aprisionando-a com as suas musculosas pernas e o seu ventre aveludado de uma forma tão intima que a obrigou a ofegar. No instante em que Sara abriu a boca, ele aproveitou para introduzir a língua, e para seu imenso horror, para ela pareceu-lhe... bem mais fascinante. Incrivelmente excitante. Ficou gelada, sem se mexer, permitindo explorar a sua boca, e quando Gideon começou a realizar uns estranhos movimentos, metendo e tirando a língua ritmicamente, esqueceu-se de onde estava... de quem era. Em vez de puxar pelo cabelo, fundiu os dedos nas madeixas onduladas para atrair mais aquela cabeça para ela, e depois revirou os olhos enquanto ele se apropriava da sua boca com firmeza, possuindo-a da mesma forma implacável em que se tinha apoderado do Chastity. Os beijos do coronel Taylor eram cautelosos, inseguros, como se não quisesse espantar a sua presa; por sua vez... Que Deus a ajudasse; encantava-a o descaramento do capitão Horn. As ardentes investidas da sua língua... os dedos esticados na parte inferior das costas, determinados a aproximá-la mais para ele. O beijo parecia interminável, e cada vez ficava mais brusco e mais exigente. Então as mãos do capitão começaram a acariciar-lhe as ancas e as costelas com círculos concêntricos, até que roçou a parte inferior do seio com o dedo polegar. Sara separou a boca atrapalhadamente e exclamou: — Não deve tocar-me desse modo! Não pode! Com a respiração entrecortada, Gideon olhou-a fixamente nos olhos. — Porque não? — Porque não é... não é correto! Os olhos dele brilharam divertidos. Afastou uma madeixa de cabelo que tinha se precipitado sobre a sua testa durante o beijo tumultuoso. — Nunca faz nada impróprio, lady Sara? Lady Sara. Por isso agia daquela forma, não? Ansiava humilhá-la com beijos porque o seu irmão era um conde. Aqueles beijos constituíam uma tática maquiavélica muito idêntica à do coronel Taylor... Sara acalmou-se quando compreendeu a cruel realidade. — Não me chame lady Sara. Essa pessoa não existe. — Afastou o rosto bruscamente. — Sou a menina Willis, e nada mais. — Não, não é a menina Willis. — Gideon prendeu o queixo dela com mão e obrigou-o a olhar para ele outra vez. — isso de menina Willis é demasiado prudente para uma mulher tão apaixonada. — Eu não sou apaixonada! — protestou. — Não gosto... o resto das palavras ficaram presas na sua boca. Gideon beijou-a de novo, violentamente, com fúria, com a força de um homem que tinha passado tempo demais no mar. Acariciou-lhe a garganta com o dedo polegar e deteve-se sobre a veia do pescoço que delatava o pulso acelerado, um pulso que, com cada nova investida da sua língua, acelerava-se ainda mais. Sara fez todo o possível por recusá-lo. Bateu-lhe no peito e depois tentou separá-lo dela, mas as poucas forças que tinha não conseguiram o objetivo marcado. Gideon agarrou-a pelos pulsos e obrigou-a a baixar as mãos e colocá-las sobre a sua cintura; uma vez ali, agarrou-as com uma força descomunal, até que conseguiu que ela esticasse os dedos completamente. Então soltoulhe os pulsos, mas só para a atrair mais para si e colar o seu corpo ao dela. Todo o vestígio de movimento... de fala... até de respiração saiu do corpo de Sara. Nesse momento existia apenas aquele homem, com as titânicas mãos sobre ela, fazendo com que se sentisse como uma mulher em vez de como uma reformista ou como a meia-irmã de um conde. O 55


capitão cheirava a mar e sabia a rum, uma combinação empolgante. A sua respiração, rápida e descontínua, confundiu-se com a dela quando a beijou apaixonadamente. a experiencia distanciava-se tanto do que esperava que decidiu deixar-se levar pela magia inebriante do momento. Então ele agarrou-a pelas ancas e puxou-a contra si com tanta força que Sara conseguiu sentir o enorme vulto atrás do tecido das suas calças. Ficou rígida. A sua mãe tinha sido muito explícita explicando-lhe como os homens e as mulheres faziam amor, sendo assim, sabia que aquele duro vulto era uma prova do estado de excitação do capitão. Santo céu! Não podia permitir que isso acontecesse! Lançou um grito sufocado e afastou-o com um empurrão. Conseguiu escapar das garras dele com uma espantosa agilidade, antes que ele tivesse tempo de reagir para a deter. Ardiam-lhe os lábios pelo ímpeto dos seus beijos, e o coração batia apressadamente, mas ignorou os dois sinais, precipitou-se para o outro extremo do camarote e entrincheirou-se atrás da escrivaninha. Sara sentiu as faces coradas quando observou como ele se virava lentamente para a olhar, com uns olhos brilhantes como dois fragmentos de vidro azulado idênticos. Sara não podia acreditar que tinha permitido que aquela besta tivesse posto suas mãos em cima dela. Não voltaria a suceder. Não o permitiria! Com um olhar altivo, Gideon aproximou-se com passo impetuoso e apoiou os punhos sobre a mesa. Os seus olhos ainda refulgiam com um desejo ameaçador, e a respiração ainda era entrecortada e irregular. — Sim, Sara, é apaixonada. Pode escudar-te nessa atitude honesta tanto quanto quiseres, mas ambos sabemos que não é tão recatada como pretende. — Sou mais decente do que você alguma vez poderá ser! — Uf! Pois ainda bem! — murmurou ele. Sara sentiu uma tremenda raiva perante o fato do capitão ter transformado o seu insulto num elogio. — Pois sim, gosta de se superar com os outros, não é verdade? Adora ser hábil com as mulheres e com as crianças! É tão desprezível quanto qualquer daqueles nobres ingleses que tanto odeia, que oprimem os seus parceiros e tratam as mulheres como móveis! Sara arrependeu-se de ter dito aquelas palavras um segundo depois de as pronunciar, visto que o olhar do capitão se escureceu e caiu como um jugo sobre ela, com todo de uma repulsa categórica. — Não sabe nada de mim! Nada! quando foi a última vez que sofreu a opressão na sua própria carne, lady Sara? Quando foi a última vez que teve que mendigar um pedaço de pão, ou suportar os maus-tratos de...? Gideon deteve-se. Separou-se da escrivaninha com a mandíbula tão tensa que a cicatriz que sulcava a sua face ficou branca. Inspirou um par de vezes, profundamente, antes de voltar a falar, com a voz calma mas firme. — Aquelas mulheres estão feitas à imagem e semelhança dos meus homens. Compreendem-se perfeitamente. Só você é que não percebe, é que não consegue ver que o que estou a oferecer àquelas prisioneiras é mais do que conseguiriam em algum outro lugar: um lar e a possibilidade de ter um marido e uma família. E sim, uma escolha… — Uma escolha? Ser aprisionada agora ou mais tarde? Que espécie de escolha é essa? — Chega de conversas! Aceite a minha oferta tal como a ofereço, quer dizer, uma semana para que as mulheres escolham marido? Ou devo proceder tal como ia fazer ao início, ou seja, deixar que sejam os meus homens a escolher com quem se querem casar? — E se...? 56


— Sim ou não, Sara? Não há outra opção. Se surgirem problemas, eu encarrego-me de os resolver sem a sua ajuda, entendido? — Perfeitamente. — Para Sara era mais fácil negociar com o capitão quando este estava aborrecido do que quando a estava seduzindo com seus beijos. Conseguia compreender os homens aborrecidos rotundamente. — você é um tirano. De acordo. Aceitamos a semana que nos oferece. mas não me culpe se as coisas não saírem como planejou. Gideon olhou para ela com os olhos brilhando. — Tudo sairá exactamente como planeei, garanto. A endemoninhada autoconfiança na voz dele era tão... tão irritante! Aquele tosco negava-se a aceitar que o seu plano pudesse ter falhas. Bem, ia ver-se sozinho, no fim da semana. Depressa descobriria que não podia emparelhar as pessoas como se fossem gado. E quando o seu plano desmoronasse como um castelo de cartas, ela iria rir… oh, se iria! Ergueu as costas e olhou para ele com os olhos desafiantes. — Posso sair agora, capitão Horn? — Gideon; chame-me Gideon. Sara não podia ignorar o grau de intimidade que implicava aquela sugestão. — Não penso chamá-lo assim. Só porque me... beijou, não significa que... — Aquele beijo foi um erro. Não voltará a repetir. — Os seus olhos brilharam, frios e impessoais como safiras. — mas nós, os piratas desalmados, não gostamos de formalidades, por isso pode me chamar de Gideon. — Avançou para a porta com passo rápido e apoiou a mão no puxador da porta. — Agora saia. Sara não sabia se sentir-se insultada ou aliviada por ele renegar abertamente de albergar desejos de a beijar de novo. «Claro que me sinto aliviada. Não quero que aquele canalha volte a pôr a mão em cima » — disse a si própria. — E então? — Gideon abriu a porta como se a obrigasse a sair. Sara reuniu toda a dignidade que uma dama podia ter, rodeou a escrivaninha e caminhou para a porta. O gorro jazia no chão, a poucos passos dela, e parou para o recolher. — Deixe aí esse chapeuzinho — ordenou ele bruscamente. — fica mais bonita com o cabelo solto. Não volte a usá-lo. Sara olhou para ele boquiaberta, perguntando-se a que se devia aquele repentino interesse pelo seu cabelo quando tinha deixado bem claro que queria desembaraçar-se dela o mais rápido possível. Então ele acrescentou: — Terá mais possibilidades de caçar um bom marido com o cabelo solto, Sara. A sua vaidade feminina ficou em fanicos perante a implicação de que nenhum homem olharia para ela se usasse o cabelo preso. Agarrou no goro furiosa e começou a procurar os ganchos que tinham ficado espalhados pelo chão, mas Gideon soltou a porta e avançou para ela ao mesmo tempo que murmurava um palavrão. — Se o presnder outra vez, eu voltarei a soltá-lo. — Baixou a voz até a converter num sussurro gutural. — e já sabe o que acontece quando solto seu cabelo. Ele aproximou-se mais, e Sara levantou-se pensando que o mais prudente era esquecer-se da ideia de apanhar os ganchos do cabelo. Antes que desse tempo para reagir, Gideon agarrou no gorro que ela segurava nas mãos. Dobrou-o e guardou-o no bolso das calças. — E agora saia do meu camarote. Silas preparou algo de comer para as mulheres. Vá jantar com elas. Mas espero-a de novo no convés daqui a meia hora... na companhia do resto das mulheres. 57


— Para quê? — Temos que comunicar à tripulação as condições da nossa negociação, não acha? À tripulação? Aos outros piratas? — Santo céu, até a esse momento ela no tinha pensado no fato de informar os piratas. A verdade era que não sentia nenhum desejo de vê-los por perto. Gideon estava muito próximo a ela, agora, e quando Sara levantou os olhos para olhar para ele, ele avisou-a em silêncio se negasse cumprir as suas ordens. as sombras enganadoras da tênue luz que invadia o camarote fizeram-na imaginar umas hastes que surgiam entre os caracóis raivosamente negros que coroavam a testa do capitão. Sacudiu varias vezes a cabeça para afastar aquela visão. Aquele tipo não era uma criatura mitológica, por muito que se parecesse com uma. Era um ser humano, e podia ser domado. Mas ainda não tinha apurado como. — O que está acontecendo? — disse ele. — Tem medo de conhecer os meus homens, quando disser que a felicidade deles estará atrasada graças a você? Sara ficou rígida. — Não tenho medo de nada. A expressão de Gideon suavizou-se. Lentamente, levantou uma mão para afastar uma madeixa de cabelo da face. Ela suportou a carícia sem pestanejar, com a clara determinação de demonstrar que não conseguiria amedrontá-la, embora não tivesse a certeza disso. — Acredito quando diz que não tem medo de nada, menina Sara Willis — respondeu ele, afastando a mão da face dela. — Poderia segurar as rédeas de toda a Inglaterra, ou até da América, se quisesse. — Baixou a voz. — mas aviso-a: não sou um daqueles palermas lordes ingleses que numa distração se deixam governar por uma mulher, mesmo que esta beije tão docemente. E se insistir em provocar uma rebelião entre aquelas mulheres de novo, terá motivos de sobra para ter medo de mim. Prometo-lhe. Seguidamente, fez uma reverência brincalhona apontando para a porta. Com a cabeça erguida, Sara agarrou a saia e atravessou o umbral, depois apressou-se a sair para o convés ao mesmo tempo que ele fechava a porta do camarote atrás dela. Mas sentiu-se mais humilhada quando viu como alguns piratas a observavam. Quando estes trocaram olhares de cumplicidade, ela deteve-se, com as faces vermelhas por causa do terrível calor que sentia. Por todos os santos, que aspecto devia ter sem o gorro, e com o cabelo solto, e os lábios vermelhos! O que deviam de pensar dela! Bom, ao diabo com eles e com o que pensassem. Ergueu as costas, ignorando as gargalhadas dos piratas enquanto abria caminho entre eles para a escotilha. Malditos canalhas! Provavelmente estavam habituados a ver sair mulheres do camarote do capitão com aspecto de terem sido seduzidas. Sem duvida nenhuma eles acreditavam que tinha sucumbido às propostas desonestas do Lorde Pirata. Cruzou o convés rapidamente. Tinha sucumbido um pouco. Mas apenas com um beijo. Bem, dois. Ou tinham sido três? Pelo amor de Deus, a quantidade não importava! Aquela historia tinha acabado. Ele próprio tinha dito, e Sara pensava fazer com que ele cumprisse o fato. Não haveria mais beijos entre eles a menos que aquele cruel pirata a obrigasse! Nem pensar. Nem um mais! Peter uniu-se aos piratas no convés e acomodou-se sobre um dos barris que tinha mais perto, sentindo um terrível tumulto enquanto aguardava para ouvir o que o capitão desejava comunicar-lhes. Que Deus tivesse piedade dele; Como diabo conseguiria tirar a menina daquela enorme trapalhada? Quando se meteu no Satyr, fez sem nenhum plano na mente. a única certeza que tinha era que não queria regressar para Inglaterra sem a menina Willis, não tanto pelo sentido 58


do dever mas pelo medo do que o conde faria com ele e com a sua família se voltasse com as mãos vazias. Embora aquele tipo tivesse parecido bastante razoável, um homem razoável não enviava um espião atrás da sua irmã e oferecia uma quantia de dinheiro descomunal por esse tipo trabalho. Não, Peter preferia não arriscaria a experimentar a fúria do conde. Tom precisava daquele trabalho na casa do conde, especialmente agora que o seu pai tinha perdido o trabalho. Mas Peter sentia-se como se tivesse saltado de uma frigideira ao fogo. o conde era um homem temível, sem sombra de dúvidas, mas Lorde Pirata... Peter rugiu. Quase vomitou de susto, quando o capitão pirata falou de trinchá-lo. Sabia que se tratava de uma prática muito comum entre os piratas, e sentiu-se horrorizado só de pensar na ideia. Graças a Deus que se lembrou de mencionar o seu pai. claro, Peter tinha exagerado as suas habilidades pessoais, alegando saber mais do que realmente sabia. Mas, de toda as formas, para que diabo precisava um pirata de carniceiro? Colocou uma mão na testa, como uma viseira, para resguardar os seus olhos da luminosidade do sol crepuscular, e situou a vista na cabina, onde Lorde Pirata deambulava com as mãos atrás das costas e com cara de mau. O capitão estava com um péssimo humor desde que convocara os homens ao convés e mandara ir avisar as mulheres. Peter perguntou-se si próprio se a menina teria alguma coisa a ver com o estado do capitão. Tinha a língua afiada, era verdade, e não o surpreenderia que a tivesse usado para ralhar ao capitão. Pelo bem-estar dela, esperava que não o tivesse feito. Qualquer um podia ver que Lorde Pirata não era um homem ao qual se pudesse aproximar com palermices. De repente, as mulheres surgiram pela escotilha situada atrás de Peter, lideradas pela menina Willis. Ele observou-a avidamente quando passaram em fila diante dele, mas Sara só lhe deu um olhar impotente antes de avançar. — Pode-se saber o porquê de tudo isto? — Peter ouviu murmurar um homem que estava ao seu lado. Era o tipo com quem partilhara a refeição umas horas antes, um homem chamado Silas. O primeiro-tenente respondeu: — Não sei. Mas aquela lady Sara tem alguma coisa a ver com isto. Disso podem ter a certeza. Peter engoliu a saliva e rezou para que a menina não tivesse condenado todas as mulheres a um destino horrível com as suas confusões, embora tivesse que admitir que as mulheres tinham recebido um bom tratamento até esse momento. Examinou o grupo, procurando a pequena Ann, mas a moça era tão baixinha que não conseguiu avistá-la. Assim que as mulheres ficaram reunidas no convés, Lorde Pirata ordenou à menina Willis que se colocasse ao seu lado na cabina. Ela obedeceu, embora tivesse uma expressão taciturna que pôs Peter seriamente nervoso. Ao lado da imponente figura do capitão, Sara parecia uma pobre infeliz. Então o capitão começou a falar. Ao princípio, Peter não podia acreditar nas palavras daquele homem. Uma colônia? Os piratas pensavam fundar uma colônia? E queriam que as mulheres se unissem a eles como esposas? Quando Lorde Pirata abordara o barco e anunciara que procuravam esposas, Peter achou que se tratava de uma brincadeira de mau gosto. Mas, aparentemente, aquele maluco falava sério. Piratas que queriam assentar a cabeça? Quem iria imaginar? Os piratas geralmente viviam demasiado pelo ouro para desejar estabelecer-se em algum lugar. Mas os outros piratas comportavam-se como se as noticias não fossem novas para eles. Peter viu o excessivo interesse com que olhavam para as mulheres, como se tentassem decidir com qual ficariam. De repente, sentiu um calafrio por todo o corpo. A sua doce Ann acabaria com... com um 59


deles! Não, não podia ser! mas claro... se Peter formava parte da tripulação agora... também permitiriam a ele escolher esposa, não? E pensava lutar duro com qualquer homem para conseguir Ann. Depois disso, Peter ouviu com escassa atenção as condições que o capitão impunha referentes aos gritos: que as mulheres mais velhas viam-se isentas e que as crianças ficariam com as mães. Peter só conseguia pensar em Ann... que belo seria ter uma esposa... que agradecida ela ficaria por ele a salvar daqueles piratas... quanto desejava beijá-la. Os seus pensamentos risonhos quebraram-se abruptamente quando o primeiro-tenente exclamou: — E a irmã do conde, capitão? Também tem que escolher marido? Ou devemos supor que já está reservada? Perante as gargalhadas entrecortadas dos piratas, a menina Willis manteve-se em silêncio, com as faces tão vermelhas com um céu ao amanhecer. Peter conteve a respiração, aguardando a resposta do capitão pirata. O capitão Gideon fulminou o primeiro-tenente com um olhar de reprovação. — Não suponha tantas coisas, senhor Kent. E sim, ela escolherá um marido como o resto das mulheres. Peter estremeceu horrorizado. Maldito louco! Obrigar a menina Willis a casar-se com um daqueles piratas? Isso era impensável! Aquilo não podia acontecer a uma dama como ela! Todos os seus sonhos de casar com Ann se desvaneceram. Se a menina Willis estava incluída na lista das mulheres a cortejar, Peter só via uma opção: cumprir com o seu dever de não a abandonar. Teria que casar com ela — ou, pelo menos, simular que se casava com ela — para a proteger daqueles tipos desalmados, até que pudesse levá-la de volta ao seu irmão, sã e salva. Mas Ann... Peter repreendeu-se a si próprio. Ann era a coisita mais doce que alguma vez conhecera, disso tinha a certeza, mas primeiro tinha que cumprir com o seu dever. Não podia defraudar a sua família ignorando a sorte que correria a menina Willis. O capitão Gideon tinha agora uma cara de zangado, como se o assunto sobre o futuro marido da menina Willis não tivesse agradado nada. Mas continuou a falar, com voz calma e fria. — Agora que já sabem qual é a situação, rapazes, espero que se comportem com a máxima discrição. Queremos fundar uma colônia, não um lugar de perdição. Tratarão as mulheres com o devido respeito; senão, terão que prestar contas comigo. A menina Willis olhou para ele sem pestanejar, gratamente surpreendida, mas ele ignoroua por completo. — A não ser que tenhamos dificuldades por causa do mau tempo, chegaremos à ilha dentro de dois dias. Até lá, todos continuarão com as vossas tarefas no barco, como é habito, embora possam falar com as mulheres no vosso tempo livre. Mas ouçam bem: não quero que se esqueçam do vosso trabalho com a desculpa do namoro. Gideon depositou o seu olhar implacável sobre as mulheres uniformizadas que dividiam o grupo de piratas ao meio, como um apelativo laço atado a um poste negro. — As mulheres poderão passear livremente pelo barco desde que não interfiram com as tarefas quotidianas. Mas à noite dormirão no porão, e um de vocês fará a guarda para as vigiar. Digo isto para o caso de algum de vocês pensar adiantar a noite de núpcias antes de celebrar o matrimónio. Alguns piratas começaram a murmurar, mas o murmúrio calou-se rapidamente quando o capitão olhou para eles com a testa franzida. Depois olhou por cima da multidão, e os seus olhos poisaram-se num homem que estava ao lado de Peter. 60


— Silas, ficas encarregado de averiguar que habilidades têm cada uma destas mulheres. E fazer uma lista com todo o material que precisam para coser e para outras tarefas domésticas. Embora seja melhor que mantermo-nos afastados de Santiago durante um tempo, quando chegarmos a Atlântida, enviarei uns quantos homens de volta a uma das ilhas de Cabo Verde em busca de provisões e de coisas adicionais. — As mulheres já dispõem de material de costura — interveio a menina Willis. Tinha-se mantido calada até esse momento, assim que o som da sua voz firme mas educado depois do tom abrupto e imperativo do capitão, surpreendeu a todos os reunidos. — Entregamos esse material e vários pedaços de tecido no Chastity, e parece-me que a maioria o trouxe consigo ao embarcar no Satyr. O capitão voltou-se para ela como se reparasse na sua presença pela primeira vez. Era evidente que não tinha achado piada nenhuma ao fato de ela ter interrompido o seu discurso. — Obrigado pela sua informação tão relevante, menina Willis — disse ele secamente. — Deseja acrescentar mais alguma coisa? Sob a força do olhar dele, ela ficou corada, mas manteve-se firme. — Sim, mais uma coisa. Se não o incomodar, capitão, gostaria de continuar com as aulas de leitura e de escrita que dava às mulheres no Chastity. — Quando o capitão Horn arqueou uma sobrancelha, ela apressou-se a acrescentar: — e se qualquer dos homens desejar unir-se às aulas, será muito bem-vindo. O comentário levantou um coro de gargalhadas por parte dos piratas, e por um momento, Pareceu a Peter que o capitão também sorria. Mas quando Lorde Pirata se dirigiu aos seus homens, o sorriso tinha desaparecido do seu rosto. — Já ouviram o que a menina Willis disse, rapazes. Podem assistir às aulas junto com as senhoras, se quiserem. Mas só quando não estiverem de serviço. — olhou para a tripulação severamente, e depois acrescentou: — Agora podem sair. E lembrem-se: portem-se como deve ser. Enquanto a tripulação se dispersava, Peter permaneceu sentado no barril, visto que não podia retomar a tarefa de polir o chão do convés até que este estivesse completamente deserto. Enquanto esperava, dedicou-se a observar o capitão, que não afastava os olhos da menina Willis. Ela parecia não perceber que o capitão seguia cada um dos seus movimentos. Mas houve outros que também repararam nesse detalhe. — Não importa o que diga o capitão, está claro que quer ficar com aquela rapariga — comentou Silas, a escassos passos de Peter. Peter olhou de lado para Barnaby, que ficou incrédulo. — Não tenho tanta certeza — repôs Barnaby. — é uma mulher inglesa e além disso nobre, e já sabe a opinião que o capitão tem dessa gente. — E o que tem a opinião! Não viu como olha para ela? Parece como se o capitão não tivesse provado comida em duas semanas e ela fosse um bife de vitela de primeira qualidade. — Silas deu ritmicamente umas pancadinhas nos dentes com o seu cachimbo. — Sim, não há dúvida, a quer para ele. a questão é como conseguir que ela escolha o capitão. — Isso não será um problema. Gideon consegue qualquer mulher que deseje. Se realmente a quiser, a terá prostrada aos seus pés, implorando que se case com ela antes que termine a semana, vai ver. Peter voltou-se e olhou horrorizado para os dois indivíduos. Uma coisa era tentar proteger a menina Willis para que não tivesse que casar com um daqueles piratas, mas ir contra o Lorde Pirata? Que Deus o ajudasse! Isso seria como meter a cabeça na boca de um leão! De repente, Barnaby pareceu reparar o persistente olhar de Peter sobre ele, e observou-o com o rosto severo. 61


— Pode-se saber que diabo estás olhando? Vamos! Rápido! Volte ao seu trabalho! — Sim... sim, senhor! — murmurou Peter. Avançou para o lugar onde tinha deixado o balde e apanhou a pedra que os marinheiros chamavam «a bíblia», uma pedra lisa do tamanho da palma da mão que se usava para polir os recantos mais difíceis de limpar do convés. Mas quando se ajoelhou e começou a esfregar as tábuas de madeira de teca com areia húmida, continuou a pensar na pobre menina Willis. Tinha que encontrar a forma de falar com ela. Tinha que a avisar para que agisse com cautela quando o capitão estivesse perto. Porque se não tivesse cuidado, Peter seria obrigado a tomar medidas drásticas para a proteger do Lorde Pirata. E a ideia de falar cara a cara com um capitão do tamanho de um monstro marinho não lhe agradava minimamente. Em absoluto. Capítulo 8 As jovens donzelas garantem, que os nós marinheiros somos muito vaidosos. Mas que culpa temos nós, Se elas se deixam seduzir. The Jovial Marriner, JOHN PLAYFORD

O sol escondeu-se no horizonte como um espectacular medalhão dourado pertencente a um Deus, desaparecendo dentro do mar. Sara apoiou-se no varandim e observou a estrela do astro rei sobre as águas trêmulas, desejando poder caminhar ao longo daquela travessia luminosa até alcançar Inglaterra e sentir-se a salvo, em casa. Odiava admitir, mas Jordan tinha razão. Aquela viagem estivera azarada desde o princípio. E aquele maldito capitão não fazia mais do que piorar as coisas. Oh, como devia de ter rido quando ela abandonou o seu camarote, depois de a estúpida ter sucumbido aos seus beijos! Como devia ter amado testemunhando a sua debilidade! Em vez de negociar em nome das mulheres, Sara tinha permitido que ele tomasse todo o tipo de escandalosas liberdades com ela. Tinha-a distraído de um modo decididamente real, só para favorecer os seus próprios fins maquiavélicos. Tinha a certeza de que aquele canalha não tinha agido porque sentia uma atração real por ela. Tinha-o deixado suficientemente esclarecido, tanto no camarote como mais tarde, quando a humilhou publicamente diante de todos os seus homens, agindo como se ela fosse uma... uma simples peça do seu saque, para dividir entre os piratas como ele considerasse mais conveniente! Ao recordar o sucedido, as suas faces coraram de raiva. Tinha-a seduzido, e depois tinha oferecido a sua mão ao primeiro homem que a pedisse. Maldito canalha! Oh, como o odiava! — Menina Willis — pronunciou uma voz nas suas costas. Sara virou-se e viu Louisa, que abria caminho através das mulheres que estavam sentadas no convés, jantando. Louisa aproximou-se, fazendo equilíbrios para segurar o prato de vitela estofada e bolachinhas que tinha numa mão e o copo de agua com um ligeiro sabor a whisky que segurava na outra. — Tem que comer — indicou a reclusa naquele tom de professora que estava tão acostumada a usar. Se seguida, passou-lhe o prato. — Não pode enfraquecer. — Para quê? — suspirou Sara, embora aceitasse o copo de água. — é impossível lutar contra eles, não percebe isso? Farão o quiserem conosco, sem importar o que digamos. — Isso não é verdade. — Louisa depositou o prato sobre uma caixa que havia perto, 62


agarrou uma das bolachas e colocou-a na mão livre de Sara. — você conseguiu convencê-los para que nos deixem escolher. Isso é mais do que tínhamos no princípio. — Ah, sim, a escolha! — numa explosão de desafio, lançou a bolacha ao mar. Não tinha apetite; tinha-o perdido depois do encontro com aquele maldito capitão pirata. Quando falou novamente, a sua voz denunciava a sua amargura. — Podemos casar-nos com um pirata jovem ou com um velho, com um engraçado ou com um aborrecido, mas forçosamente temos que nos casar com um pirata, e viver o resto dos nossos dias numa ilha perdida, sem voltar a ver a nossa família... — a sua voz quebrou-se perante o pensamento de não voltar a ver Jordan nunca mais. Não importava o que Gideon tivesse dito, sabia que Jordan nunca a encontraria. Como o ia fazer? O seu meio-irmão rastrearia os lugares errados, nunca imaginaria que os piratas se encontravam numa ilha. Uma lágrima furtiva escapou de um dos seus olhos, e Sara afastou-a com brusquidão. Ela nunca chorava. Era demasiado prática para perder o tempo com choros. Mas nesta noite não se sentia nada prática... ao contrário, sentia uma enorme vontade de chorar. Louisa apertou-lhe carinhosamente o braço enquanto murmurava umas palavras de consolo. — Vamos, vamos... Não se dê por vencida. Vai tudo correr bem. Vai ver. Uma nova voz, mais grossa, ressoou atrás de Louisa. — Se a senhora não vai a provar o jantar, dê-a a alguém, e não a gaste mal lançando-a ao mar. Sara e Louisa viraram-se e viram um marinheiro com a perna de pau, que olhava para elas com cara de poucos amigos. Numa mão segurava o cântaro de água, e na outra o pau gasto e roído que usava como bastão. Mas a barba castanha e salpicada de brancas que cobria o seu rosto dava-lhe uma aparência feroz que negava qualquer indício de debilidade que uma pessoa pudesse deduzir pelo fato daquele pirata ter que se ajudar com um bastão para se deslocar. Uau, outro pirata com vontade de discutir. Sara começava a fartar-se deles, mas nessa noite não sentia de disposição para discutir com mais ninguém. Louisa, por sua vez, parecia fazer ter uma disposição completamente diferente. Encarou o cozinheiro, ameaçando-o com um dedo indicador inflexível. — Como se atreve a atormentar a pobre menina, falando das suas bolachas nauseabundas? Se preparasse bolachas como Deus manda, senhor, talvez ela não as lançasse aos peixes! O cozinheiro gaguejou com cara de estupefação, mas reagiu a seguir e rugiu, elevando cada vez mais o tom de voz: — Bolachas nauseabundas? Como bolachas nauseabundas? Para que saiba, senhora, preparo as melhores bolachas dos sete mares! — Pois devem ser as de outros cozinheiros! Porque, realmente, as suas são intragáveis. — Já chega, Louisa, não tentes defender-me... — Começou a dizer Sara. Mas Louisa ignorou-a por completo. — Estas bolachas estão tão duras que é praticamente impossível engoli-las. E quanto ao estofado... — Olhe, pedaço de árpia irrespeitosa — interrompeu-a o cozinheiro, marcando cada uma das sílabas com uns golpes do seu bastão. — o estufado de Silas Drummond é muitíssimo bom. Desafio qualquer, homem ou mulher, a melhorá-lo! — Aceito o desafio! Suponho que será melhor que a partir de agora cozinhe eu. — Louisa agarrou a ponta do fino avental distribuído a cada uma das prisioneiras como parte do seu uniforme. — mas preciso de um avental mais grosso e um gorro decente... bem, tenho a certeza de que encontraremos algo por aí... ah, e se não se importa, terá que me mostrar onde guardam as provisões… 63


— O que...? De modo nenhum! — a expressão de Silas exibia uma divertida mistura de pasmo e de nojo. Sara ficou surpreendida ao ver a falta de atenção que Louisa mostrava para a evidente fúria do indivíduo. — Então, como quer que prepare o jantar amanhã? — Não vai preparar jantar nenhum! — gritou ele. — a minha cozinha não é o lugar adequado para uma fêmea arrogante como você! Provavelmente nem sabe como desossar a carne de vitela! Sara apoiou o cotovelo no varandim, observando a discussão em silêncio, agora que tinha a certeza de que Louisa podia defender-se sozinha. — Preparar um jantar não é assim tão difícil. Já presenciei como o fazem alguns dos cozinheiros mais reputados do mundo. — Voltou a cara para Sara e comentou. — Trabalhei para o duque de Dorchester durante uma temporada. Aquele tipo tinha dois cozinheiros franceses em sua casa. Aprendi com eles uma série de coisas. — Cozinheiros franceses? Duques ingleses? — vociferou Silas. — tem de lutar muito para se aproximar da minha cozinha... maldita... maldita... — Chamo-me Louisa Yarrow, mas agradeço-lhe que me chame menina Yarrow — proclamou Louisa com petulância. O cozinheiro parecia tão surpreendido pelo comentário tão condescendente que Sara teve que simular que tossia para esconder a enorme vontade de rir que a invadiu. — Não me interessa como quer que a chame — grunhiu enquanto se aproximava mais de Louisa para olhar para ela desafiante. Um abanão repentino do barco fez com este se inclinasse bruscamente para a frente, mas enquanto Sara e Louisa tiveram que se segurar ao varandim para não perder o equilíbrio, o cozinheiro conseguiu permanecer em perfeito equilíbrio, como se os seus pés estivessem pregados no convés. — Não se aproxime da minha cozinha, entendido? Já tenho coisas suficientes com que me preocupar, como por exemplo ter que alimentar todas estas mulheres. Não preciso de uma alvoroçada a dançar perto dos fogões. — Talvez Louisa pudesse ajudá-lo um pouco — interveio Sara. Tinha que admitir que o estofado não tinha bom aspecto nem cheirava bem, e só precisou deitar um rápido olhar ao seu redor, pelo convés, para constatar que as mulheres não comiam com entusiasmo, apesar de estarem esfomeadas. — Quê ideia tão brilhante! — exclamou uma nova voz. Sara voltou-se e viu o primeirotenente inglês, de pé ao seu lado, fumando um charuto. — Porque não deixamos que as mulheres se encarreguem da comida? Assim poderíamos provar algo decente de vez em quando. Silas fulminou o primeiro-tenente com o olhar. — Está do lado das mulheres? Isto é o cúmulo! Já chega! Não quero ouvir nem as tuas queixas nem as dela. — Virou-se e saiu com passo firme. — vamos ver se vocês os dois arranjam melhor do que eu na cozinha. Esperarei que essa arpia te sirva uma taça com uma miserável colher de caldo francês. Numa semana estarás a implorar-me que volte a encarregar-me da cozinha. Malditos loucos ingleses. Juro que... Continuou a resmungar enquanto abria caminho entre as mulheres sentadas no convés. mas quando Louisa tentou segui-lo, Barnaby deteve-a, segurando-a suavemente pelo braço. — Não se preocupe com ele. é um velho mal-humorado que sente um ódio visceral pelas mulheres. Ouvi dizer que isso é porque é incapaz de satisfazer uma fêmea na cama, se me estende... uma velha ferida de guerra. — Barnaby obsequiou Louisa com o melhor dos seus sorrisos, mostrando-lhe uns admiráveis dentes brancos. — Se é um marido que procura, ficará melhor comigo. Todas as minhas partes funcionam perfeitamente. 64


Louisa sorriu-lhe com uma linha contraída ao mesmo tempo que se safava do seu braço bruscamente. — Sério? Então sugiro-lhe que procure uma esposa que se sinta feliz limpando e mimando as suas partes, e mantendo-as em perfeito funcionamento. Acho que eu preferiria faze-las em picadinho. Depois do comentário mordaz, Louisa levantou a saia e saiu disparada atrás de Silas. Barnaby ficou a olhar para ela boquiaberto, enquanto que instintivamente unia as pernas na pressa de proteger as suas partes mais íntimas. — Aquela mulher é um bloco de gelo, não? — concluiu ele, virando-se para observar Sara. — Não. O problema é que não gosta muito dos homens. — Ah — disse Barnaby, como se compreendesse. Mas a sua testa franzida demonstrava que não compreendia. Como podia entender? Ele nunca tinha estado à inteira disposição de um homem, nunca tinha tido que sofrer a vergonha de ver como uma pessoa do sexo oposto fazia em fanicos a sua vida. Nenhum homem que não tivesse passado pelo mesmo tormento, exclusivamente por causa do seu sexo, poderia entender o ódio que Louisa sentia. — E você? Também odeia os homens? — perguntou o marinheiro. «Infelizmente, não», pensou, recordando a forma como se tinha derretido perante o beijo de Gideon. — Apenas os homens que tentam roubar a minha liberdade. O sol acabou de se esconder no horizonte, e uma neblina cinzenta invadiu a escura intensidade dos olhos negros de Barnaby, enquanto este a observava. — Refere-se aos homens como o capitão? A ironia no tom da voz dele conseguiu que Sara se ruborizasse. Todos pareciam estar convencidos que ela ia prostrar-se aos ilustres pés do capitão... e se soubessem apenas meia verdade... — que, efetivamente, tinha estado prestes a sucumbir — ririam dela às gargalhadas. Sara baixou o olhar e deslizou os dedos pela superfície lisa e brilhante do varandim de metal. — Sim, refiro-me a ele. Não tinha direito nenhum de nos raptar contra a nossa vontade. Barnaby apoiou-se comodamente no varandim enquanto saboreava o seu charuto. — Vamos, menina Willis, olhe ao seu redor. Parece que estas reclusas se lamentam de as termos libertado daquele barco? Sara virou-se e observou o grupo de mulheres. Alguém já havia acendido as lamparinas de azeite, e a sua ténue luz iluminava varias mulheres e vários homens, que riam alegremente enquanto conversavam. As mulheres estavam avaliando os homens, algumas disfarçadamente, outras com mais descaramento. Por baixo da proteção que conferiam alguns aparelhos, um pirata jovem deslizou o braço ao redor do ombro de uma reclusa que tinha uma carita muito doce, e ela não só o permitiu, como também olhou para ele nos olhos ao mesmo tempo que esboçava um tímido sorriso. Até a anciã que essa tarde tinha expressado os seus temores acerca das suas limitadas possibilidades de encontrar marido, estava a ser cortejada por um marinheiro com o cabelo branco, um dos poucos homens velhos que fazia parte da tripulação do capitão Horn. Todos os homens voavam à volta das mulheres como se fossem abelhas rondando uma suculenta colmeia cheia de mel. Apesar de não se comportarem de um modo excessivamente agressivo nem rude, havia uma indiscutível arrogância na forma como se aproximavam das mulheres, como se tivessem a certeza de que elas iam aceitá-los. E, pelo que se via, muitas das mulheres não estavam precisamente a ignorá-los. Sara suspirou. — Suponho que as mulheres não estão de todo insatisfeitas com a situação. 65


— Não estão de todo insatisfeitas? — ironizou ele. — diria que estão muitíssimo satisfeitas. De repente soou um forte bofetão do outro lado do convés, e de seguida, uma vozinha estridente gritou: — Não me toques, pirata asqueroso! Ainda não tenho que suportar que me manipules! Sara e Barnaby viraram-se e distinguiram um homem que cobria a face encarnada com a mão enquanto uma jovem se afastava dele atrapalhadamente. — Nem todas estão contentes, senhor. — o vento agitou o seu cabelo, e uma madeixa brincalhona tapou-lhe os olhos. Ela afastou-a da cara delicadamente. — Algumas apenas se resignam ao seu destino. Sabem que não resta outra opção. Visto que estão habituadas a acatar o que a vida lhes impõe, tentarão lidar com a situação da melhor maneira que podem. Mas eu gostaria que a vida concedesse a elas outra oportunidade melhor. Com aquela declaração de princípios, Sara afastou-se dele. Não se sentia com forças para suportar mais nenhuma discussão. Aquele pirata não podia ver a triste realidade da situação. Não importava o que ela dissesse; aqueles homens continuariam a pensar que tinham feito um grande favor àquelas mulheres, resgatando-as do seu cativeiro. Sentindo-se mais abatida do que antes, rodeou o extremo do convés em direcção à escotilha situada na proa. Mas nesse instante, um marinheiro surgiu de entre as sombras e aproximou-se com passo veloz. Sara deu um salto, assustada, mas o seu medo converteu-se em alívio quando descobriu que se tratava de Peter. — Siga-me, menina! Temos que falar! — murmurou, enquanto a empurrava para a escotilha. — Sim. — Sara seguiu-o até ao piso inferior, olhando com receio ao seu redor com medo que alguém os visse. Esperou até que entraram nas câmaras antes de emitir a pergunta que lhe queimava os lábios desde que o vira aquela tarde no camarote do capitão. — Suponho que se meteu no barco enquanto nos faziam subir a bordo, mas como é que ainda não te aniquilaram? — O capitão decidiu que tem um trabalho para mim. — acendeu a lamparina nas câmaras, e quando se virou para olhar para ela, a tênue luz dourada refletiu o seu aspecto preocupado. — aceitaram-me como mais um da tripulação, mas isso não significa que possa fazer o que quiser. Vigiam-me constantemente, assim, teremos que agir com rapidez. — Suponho que já ouviste o que disse o capitão. Que temos que escolher marido. Peter assentiu, e os seus olhos castanhos escureceram. — Sim, ouvi. E tenho um plano. Quando chegar o momento de você e as outras mulheres tiverem que escolher marido, o mais conveniente será que você me escolha a mim. A idéia apanhou Sara de surpresa. Casar com Peter? Apesar de saber que ele só pretendia protegê-la, não tinha a certeza que fosse a decisão mais acertada. Uma vida numa ilha remota já ia a ser suficientemente horrorosa, mas uma vida com um homem que não conhecia... Evidentemente, também não conhecia o resto da tripulação. Talvez algum deles pudesse gostar dela como ela era, em vez de casar com ela para cumprir com o dever. — Não sei, Peter... — Escute-me. Se casar comigo, não teremos que partilhar intimidades... você percebe. — as suas orelhas coraram, como prova visível do mal-estar que lhe provocava a questão. — isso vai facilitar-lhe muito as coisas, quando regressarmos a Inglaterra. O seu irmão, o senhor conde, não terá nenhum problema para conseguir a anulação do casamento desde que não... uhh... que não... você percebe. — Sim, percebo. — Sara estreitou os olhos. — mas não acredita que poderemos... — Dois dos piratas passaram tão perto que ela conseguiu ouvir como riam. Ficou paralisada até que os 66


dois indivíduos se afastaram da escotilha aberta, então Sara inclinou a cabeça para Peter. — Não acreditas que poderemos escapar. — Tentaremos. Tenho conhecimentos sobre como manejar um barco. Se aquela ilha se encontrar perto de outras ilhas, poderemos chegar a remo até uma que esteja desabitada. Sara emitiu um suspiro e brincou com o medalhão que pendia do seu pescoço. — Desculpe, Peter, mas o teu plano não parece nada promissor. — Suponho que não. Mas lembre-se, o capitão comentou algo sobre regressar às ilhas de Cabo Verde à procura de provisões. É possível que possamos introduzir-nos nessa viagem, e de lá poderíamos embarcar para Inglaterra. Não se preocupe, encontrarei a forma de sair daqui e de regressar para casa. — a sua voz adotou um tom mais firme. — entretanto, é melhor que se mantenha afastada do Lorde Pirata. — Deixa de o chamar assim. Dá-lhe um grau de importância que não possui. Peter agarrou-a pelo braço. — Escute, menina Willis. Não baixa a guarda perante o fato de o capitão ter concedido às mulheres a opção de escolher. Ele interessou-se por si. Por isso é necessário que alguém mais se dedique a cortejá-la, alguma pessoa de confiança, para evitar que ponha aquelas mãos em cima de você. As palavras de Peter provocaram-lhe um estranho calafrio. Sara disse para si própria que devia de ser por causa do medo. Apesar de tudo, só uma pobre ingênua poderia sentir-se adulada perante as atenções de um pirata desalmado. E além disso, Peter enganava-se. — Não se interessou por mim. Não ouviste o que disse esta tarde, diante de todos os piratas? Peter olhou para ela com a testa franzida. — Sei o que ele disse, mas também ouvi os comentários posteriores da tripulação, e os piratas estão a fazer apostas em como ele conseguirá seduzi-la antes de acabar a semana. Sara ficou corada. — Palermices. Não se preocupe; morreria antes de permitir que aquele monstro me ponha as mãos em cima outra vez. — Outra vez? — os dedos de Peter exerceram mais pressão sobre o braço dela. — o que fez, enquanto estavam no camarote dele? Magoou-a? Sara reprovou-se a si própria por ter falado demais. — Não, claro que não. Discutimos um pouco, nada mais. mas, sinceramente, não creio que goste de mim, e eu sinto uma absoluta aversão por ele. Garanto: nunca conseguirá casar-se comigo nem seduzir-me. Pelo menos era o que Sara esperava. Não tinha a certeza absoluta de conseguir resistir a ele, se ele tentasse seduzi-la de novo. Aquele pensamento fê-la refletir. — Talvez tenha razão, Peter... Talvez devesse escolher você como marido. — É pelo seu bem, menina. Mas não se preocupe, de uma forma ou de outra, eu tiro-a deste atoleiro. — Espero que sim — sussurrou ela. — espero que sim... Capítulo 9 Oxalá as mulheres dediquem até à última gota dos seus esforços para demonstrarem que merecem um tratamento melhor, não se submetendo submissamente à arrogância intolerável [dos homens]. Woman not Inferior to Man, SOPHIA (possivelmente lady Mary Wortley Montagu) 67


Já tinha caído a noite quando Gideon saiu do seu camarote para esticar as pernas no convés. Era uma noite serena e tranquila, com o céu iluminado por um milhão de estrelas brilhantes, que envolviam o barco como se fosse o manto de um rei, ponteado por pedras preciosas. Encheu os pulmões com o tonificante ar salgado. Ah, como sentiria saudades: as noites sossegadas a bordo do Satyr, o ruído das tábuas de madeira aos seus pés, e o açoite das ondas no velho casco de carvalho. Apesar de no futuro ele e os seus homens só sairiam para navegar esporadicamente até às ilhas de Cabo Verde para adquirir provisões, já não passariam longas semanas no mar, por baixo do brilhante firmamento. Olhou rapidamente para os marinheiros que estavam de guarda, depois meteu as mãos nos bolsos e passeou-se pelo convés. Sentia uma ligeira sensação de insatisfação, que destruía o prazer que normalmente o invadia naquelas noites estreladas em alto mar. Ultimamente sentia aquela sensação com demasiada frequência. Por isso tinha idealizado levar a cabo o seu plano para Atlântida; por isso tinha decidido abandonar a vida de pirata. As pilhagens no mar, o indescritível gozo de roubar o ouro aos nobres que tanto detestava... já nenhuma daquelas razões lhe parecia convincente, e menos ainda sabendo o que aconteceria se continuasse naquele caminho. a pirataria conduzia os seus seguidores a uma morte prematura. Não existiam piratas velhos. Talvez alguns homens não se importassem de morrer jovens, talvez alguns homens ansiassem partir deste mundo com um bom sabor na boca, tendo vivido rápido e ao máximo, mas ele não era um deles. Gideon sonhava em viver muitos anos, e não acabar os seus dias na forca. Ou num barco Tinha passado anos suficientes no mar, vinte e um no total. Tinha apenas doze anos quando o seu pai acabou com a sua vida graças ao excesso de álcool, deixando o seu único filho sem dinheiro nem amigos, completamente sozinho. então quando, depois de um ano combatendo a fome e procurarndo trabalho, um capitão de navio teve pena dele e ofereceu um posto como grumete, não pensou duas vezes. Mais tarde, quando o governo americano aprovou a pilhagem dos corsários para que atacassem os ingleses, Gideon reunira todo o dinheiro que tinha amealhado e comprara uma fragata. Parecera-lhe uma forma tão digna para sobreviver como outra qualquer. As coisas correram tão bem que rapidamente conseguiu mudar a fragata por um veleiro e o veleiro pelo Satyr. Ao longo de todos aqueles anos, só tinha imposto duas condições aos homens que queriam juntar-se à sua tripulação: que não tivessem mulher nem família, para que a sua coragem não fosse dilacerada, ao não ter nada a perder, e que odiassem os ingleses tanto como ele. O fato de escolher a tripulação com tanto cuidado, passou a ser uma vantagem, visto que os seus homens eram absolutamente leais. Quando terminou a guerra contra Inglaterra, e os mesmos oficiais americanos que tinham dado autorização aos corsários para saquear os barcos ingleses pediram, a ele e à sua tripulação que fizessem as pazes com o antigo inimigo, ele e os seus homens optaram por uma terceira via: a pirataria. Tinham passado bem, muito bem. Mas todos tinham começado a cansar-se da vida solitária e incerta de marinheiro, e Gideon mais do que os outros. para sua surpresa, perdeu a vontade pelo ouro e pelas jóias roubadas do inimigo. Nem sequer o fato de atormentar os lordes conseguia despertar o mesmo interesse de antes. Queria algo mais... um futuro real, não apenas uma serie de viagens e de saques. Queria edificar algo que lhe pertencesse, algo sólido e positivo. Poderia fazêlo em Atlântida. Todos poderiam fazê-lo em Atlântida. Observou os seus homens, pensando que aqueles que não estavam no convés deviam estar 68


a tentar ganhar os favores das mulheres. Rapidamente teria que ordenar a Barnaby que as reunisse a todas e as encerrasse no porão para que passassem a noite tranquilamente, mas naquele instante tudo o que queria era saborear o precioso momento. Conseguira o seu objetivo. Tinha encontrado mulheres para os seus homens. E depressa estariam todos juntos a trabalhar, com um objetivo comum. Então porque... porque se sentia inquieto, insatisfeito, quando devia estar a saborear o êxito? Porque tinha aquele desagradável temor de ter conduzido o assunto das reclusas de uma forma incorreta? Por culpa daquela maldita mulher inglesa. Sara tinha apinhado a sua cabeça de dúvidas absurdas. Sara, com aqueles olhos da cor do açúcar caramelizado, com aquele corpo suave e gracioso... Sara, a mulher capaz de excitar um homem apenas por agitar levemente a cabeleira castanha. Gideon sentiu como os músculos ficavam tensos e soprou incomodado. Até àquele dia, nenhuma mulher tinha conseguido exercer nele aquele tipo de magnetismo. Como qualquer outro marinheiro, tinha tido as suas aventuras amorosas, no entanto, nenhuma beleza das ilhas com os olhos rasgados tinha acelerado tanto a pulsação como acontecia agora, só de pensar nela. Mas não importava que Sara alterasse seu pulso... ou algo mais, pensou, sentindo uma crescente irritação. Num casamento existiam outras coisas, além da paixão. Os seus pais tinhamno demonstrado. A última coisa que queria era deixar-se governar pelas exigências do seu membro, que parecia reagir sem trava perante a filha mimada de um conde... embora fosse adotada. Aquela espécie de mulheres nunca ficava satisfeita com o que um homem pudesse dar. Aquela espécie de mulheres nunca davam uma hipótese aos pobres homens que caíam nas suas redes. Gideon deteve-se e apoiou-se no varandim, de costas para o mar. Não, Sara Willis não era a mulher ideal para ele. Teria que procurar uma esposa mais favorável entre o resto das mulheres. Com curiosidade, observou a dança do namoro que se abria diante dos seus olhos, perguntandose se seria capaz de se dar ao trabalho com o mesmo entusiasmo que os seus homens. Devia fazêlo. Era precisamente o que necessitava... outra mulher, uma mulher diferente para cortejar, uma que se ajustasse ao modelo que tinha da sua esposa. Meteu as mãos nos bolsos, então sobressaltou-se quando os dedos roçaram um pedaço de tecido enrugado. O gorro de Sara. O que tinha arrancado das mãos. O que tinha tapado aquela gloriosa mata de cabelo, sedoso e fino. Fez uma careta de aborrecido. Tirou o gorro do bolso e atirou-o ao mar. Nunca deveria terlhe soltado o cabelo. Nem devia tê-la beijado. A atração que sentia por ela era tão desesperada como navegar contra a corrente, e beijá-la só tinha conseguido aumentar o seu desejo. Raios e trovões, aquela rapariga era uma maldita bruxa, capaz de dominar os seus pensamentos de modo constante, mesmo quando não estava à vista! Não estava à vista? Olhou para a multidão, inquieto. Era verdade, não estava à vista. Em lado nenhum. Onde diabos estaria? Do outro lado do barco? Descera as escadas, com um dos seus homens? Aquele pensamento enfureceu-o imensamente. Enquanto continuava a procurar Sara, aproximou-se outra mulher, uma loira peituda que o devorava com um olhar tão persistente como o de um oficial que estivesse a inspeccionar um navio. Ela agarrou-lhe a mão e colocou-a sobre a cintura, exibindo uns olhares refinados sob as pálpebras quase cerradas. — Ora, ora. Mas quem é que temos aqui? Mas é o nosso querido capitão, o homem que nos salvou daquela maldita prisão em forma de barco. Ainda está procurando uma mulher para acasalar, não é? Pois a Queenie é a mulher que procura. — Colocou-lhe a mão sobre um dos seus enormes peitos e deteve-a ali, com a palma aberta, enquanto sorria sedutoramente. — Tenho tudo 69


o que um homem como você precisa, e muito mais. Um esgar de desgosto desenhou-se no rosto de Gideon, e instintivamente afastou a mão daquele enorme peito. — Desculpe, Queenie, mas esta noite tenho outras coisas na cabeça. Estava esclarecido porque motivos tinham encarcerado aquela mulher, e Gideon não se sentia com vontade para aceitar os seus serviços: Sara não era a mulher adequada para ele, mas Queenie também não. Lamentavelmente, Queenie não pareceu entender. Com a rapidez de um raio, colocou a mão sobre o proeminente vulto nas calças do capitão, cuja única culpada era Sara; bom, o fato de ter pensado nela. — Ohhh... por Deus... — pronunciou ela, arrastando a voz, enquanto começava a acariciá-lo com dedos experientes. — parece-me que você é um mentiroso. Está excitadíssimo, não está? E eu sei como acalmar esse tipo de necessidades. Mas Gideon não estava com vontade. afastou violentamente a mão e soltou-a com contraída. — Esta noite todos os homens deste barco estão excitadíssimos, Queenie. Vá à procura de um que tenha vontade. Eu já te disse; não me apetece. Ela mostrou-se visivelmente ofendida. — Está se reservando para alguém? — Quando Gideon arqueou uma sobrancelha, Queenie olhou para ele desafiante. — está se reservando para a lady? Porque se assim for, perde o seu tempo. Ela acha-se superior às pessoas como você ou como eu. Não apagará o ardor que sente debaixo das calças, garanto-lhe. O fato de provavelmente ter razão não significava que as suas palavras fossem bem recebidas por parte do capitão. Gideon olhou para ela furioso, o tipo de olhar que conseguia amedrontar até o mais corajoso dos seus homens. Queenie empalideceu. — Obrigado pelo aviso sobre a menina Willis — repôs ele, com a voz cheia de sarcasmo, — mas não aceito conselhos de uma puta. Não precisou de dizer mais nada para que Queenie se afastasse dele precipitadamente. Mas isso não foi o suficiente para conseguir ficar sozinhos, visto que outra mulher veio ocupar o lugar vago de Queenie. «Isto não cheira nada bem», pensou ele. Quando outorgou às mulheres o direito de escolher, não pensou que o rifariam com tanto entusiasmo. Começou a afastar-se, mas a mulher chamou-o em voz alta. — Capitão Horn, senhor! Trago-lhe o jantar! — Gideon deteve-se e virou-se, então, com enormes demonstrações de timidez, a moça ofereceu-lhe um prato a transbordante de comida. — o senhor Drummond pediu-me que trouxesse isto. Ela não se atrevia nem a olhar para ele, e Gideon não demorou um segundo para perceber que estava a cumprir o recado à força. Claro, nem todas aquelas mulheres eram umas desavergonhadas como Queenie; mas ele não estava habituado a que uma mulher servisse o jantar, por isso tinha reagido daquela forma, tentando fugir. Gideon relaxou-se e agarrou no prato que ela oferecia. — Obrigado. A verdade é que estou morto de fome. — Ela pareceu não prestar atenção às palavras dele, e agora que tinha a oportunidade de a observar mais perto, detectou o medo latente no rosto dela. — Como te chamas? — Ann Morris, senhor. — Levantou os olhos durante um instante fugaz, e rapidamente os desviou para as reclusas. Era obvio que queria estar noutro lugar em vez de estar ali, a falar com ele, pelo que Gideon tentou apaziguar os seus temores. 70


— Morris. é um apelido galês, não é? Ann abriu os olhos desmesuradamente. Depois assentiu. — Sou de Carmarthenshire, senhor. Ele sorriu. — Não me chames senhor, por favor. olha, não sou melhor do que tu nem do que nenhuma daquelas mulheres. — Sim, senhor... quero dizer, sim. Gideon apanhou uns pedaços de carne com o garfo e levou-os à boca. Estava dura e insonsa, como de costume, mas tinha um apetite voraz, e além disso sabia que Silas não era capaz de preparar nada melhor. Ann olhava nervosamente para ambos os lados, como se se preparasse para escapar. — Já jantou? — perguntou-lhe ele. Ela sacudiu energicamente a cabeça para cima e para baio, e todos os seus caracóis se agitaram. Gideon sorriu-lhe, e o gesto pareceu sossegá-la, visto que Ann deixou de se mexer nervosamente. Ele continuou a observá-la, enquanto engolia as bolachas e a carne. Era uma moça diminuta e com uns olhos atraentes que, sob a luz das lamparinas de azeite, pareciam de cor indefinida. Tinha o cabelo preto e encaracolado, e usava-o muito curto, pelas orelhas; provavelmente tinham-no cortado assim na prisão. Se não fosse pela sua silhueta feminina, podia tê-la confundido perfeitamente com um rapaz. Aquela era o tipo de mulher que queria para esposa. Era bonita e atraente. Provavelmente sabia como transmitir aquele bem-estar que ele sempre tinha procurado. Quando superasse o medo que sentia por ele, seria uma doce e agradável companhia. Que pena que o único sentimento que aquela moça conseguia arrancar dele fosse paternal. Gideon suspirou. — Estão todas cômodas lá em baixo, no porão? O seu rostinho iluminou-se, o que fez com que parecesse mais angelical. — Oh, sim, muito bem. Muito melhor do que no Chastity. Gideon passou uma bolacha pelo molho do prato. — Se não te importas com a minha indiscrição, como é que acabaste no Chastity? Uma sombra de tristeza passou pelos olhos dela. Ann apoiou o pequeno corpo numa caixa e suspirou. — Por roubar. Gideon teve que se conter para não desatar a rir. — Roubar? Você? Era impossível imaginar aquela diminuta criatura tão tímida roubando alguma coisa. Mas ela assentiu com a cabeça. — A minha mãe estava doente, e precisava de remédios, mas não tínhamos dinheiro para comprar. Com o pouco dinheiro que eu conseguia na chapelaria onde trabalhava não chegava nem para me alimentar a mim nem a minha mãe. Então, um dia, passei diante de uma casa que tinha a porta aberta, vi que não havia ninguém, entrei e... e vi uma jarra de prata e levei-a comigo. Os olhos de Ann estavam agora vidrados, como se estivesse prestes a começar a chorar. — Sei que o que fiz foi errado, eu sei. Só pensei que, se pudesse vender a jarra, poderia comprar remédios para a minha mãe. — Sacudiu a cabeça. — Mas o homem a quem a quis vender já tinha visto aquela jarra. Sabia que era roubada, e ele… ele levou-me às autoridades. Gideon sentiu uma enorme pena pela pobre pequena galesa. Sem conseguir esconder a fúria da sua voz, disse: — E os ingleses meteram-te naquele barco por isso? Por uma miserável jarra de prata? 71


— Sim, senhor. A minha mãe... — embargou-se-lhe a voz. — a minha mãe envergonhou-se de mim. Disse-me que nunca mais queria voltar a ver, porque me meteram na prisão. E tinha razão. O que eu fiz foi errado. Muito errado. Ann voltou a cara para um lado e Gideon conseguiu observá-la de perfil. A luz tênue da lamparina de azeite brilhava nas suas faces úmidas pelas lágrimas. Estava a chorar. Pobre rapariga, estava a chorar. Gideon colocou a mão sobre o ombro dela. — Fizeste o que tinha que fazer, Ann, e não te trataram como merecias. Não, fizeste nada de mal; o teu país é que funciona mal. Alguma coisa não funciona num país quando uma pobre anciã não consegue comprar remédios e ninguém a ajuda.. — Eu também acho. — Ann suspirou várias vezes seguidas, com a respiração entrecortada pelos soluços. — Por isso é que não me importo que nos levem para uma ilha. As coisas podem correr bem, se as fizerem corretamente. «Se as fizerem corretamente.» Gideon sentiu uma pontada de culpa. Sara não pensava que ele estivesse a fazer o correto. Absolutamente. Ela achava que ele agia de um modo negligente e informal. Ela sentia que ele se estava a aproveitar de umas pobres raparigas inocentes como Ann. Incomodado com tal pensamento e com as emoções confusas que o afogavam, retirou a mão do ombro dela e olhou para o oceano. — Então não se importas de casar com um dos meus homens? Ela secou as lágrimas com a mão fechada. — Não, agora que Peter está aqui, não. — Peter? Apesar de Gideon não ter a certeza pela pouca luz que os envolvia, pareceu ver que Ann corava. — Peter Hargraves, o marinheiro que veio do Chastity. Sem se preocupar por corrigir o seu erro, ele assentiu. — Ah, sim.. Ann procurou pelo convés, e depois apontou para um ponto. — Ali está, com a menina Willis. O capitão desviou o olhar instantaneamente para onde ela apontava. Sim, era sem mais nem menos aquele marinheiro do Chastity, e Sara estava com ele. Apertou os olhos. Então era aquilo que ela tinha estado a fazer: a falar com Hargraves. O que significava aquele homem para ela? E o que estava a conspirar com ele? Não havia dúvida de que conspirava alguma coisa; Sara parecia que passava todo o tempo a pensar numa maneira de conspirar contra ele. Gideon voltou a depositar o olhar sobre Ann, e percebeu que ela observava Hargraves da mesma forma que ele o fizera com Sara. Apontou para o casal e disse: — Diga-me, Ann, o que sabes sobre o Peter? Um sorriso tímido coroou os lábios da diminuta pequena. — Oh, é um homem muito bom. Era ele que nos vigiava, no Chastity. Gideon comeu um pouco mais do seu jantar enquanto observava o misterioso Peter, que agora se despedia de Sara e se dirigia para o quarto destinado ao dormitório do resto da tripulação, na proa. — O que quer dizer? — Que todas as noites dormia ao lado das celas, para nos vigiar. Foi o capitão que mandou. Peter não afastava os olhos de nós. — baixou a cabeça, mas não antes de Gideon ver o olhar brilhante e de adoração que Ann lançava ao seu herói. — Especialmente de mim. Então Ann estava apaixonada pelo inglês esquelético, não era? Por isso não se importava de 72


casar, e por isso nunca veria o capitão como um possível marido. Gideon não quis examinar profundamente a sensação de alívio que o invadiu. Limitou-se a continuar a comer. E a observar Sara. — Porque acha que estava com a menina Willis? Com as pernas curtas, Ann começou a dar pontapés numa caixa próxima. — Não sei. Talvez porque se preocupa por todas nós. Talvez estejam a falar do que faremos quando chegarmos à ilha. Talvez, pensou Gideon. Não o surpreenderia que Sara tentasse procurar a ajuda de alguém que já tinha mostrado o seu afeto pelas mulheres. «Também não lhe deste outra alternativa, pois não A quem mais ela poderia recorrer, para procurar ajuda?», pensou ele. Mal-humorado, franziu a testa. Maldita fosse aquela mulher, que o fazia duvidar de todos os seus planos. e agora tinha convencido Hargraves para que a ajudasse. — A menina Willis interveio para conseguir que o capitão do Chastity ordenasse a Hargraves que protegesse as mulheres? — perguntou-lhe. Ann ficou confusa. — Não, creio que não. a menina Willis não parecia conhecê-lo melhor do que nós. — Então não tem nenhuma conexão com Hargraves? — Não que eu saiba. Ele relaxou. Pelo menos não teria que se preocupar com aquela questão. Ann levantou timidamente a cabeça e olhou para ele com curiosidade. — Porquê? — Oh, por nada. — Gideon tinha acabado de jantar, e já era hora de as mulheres irem dormir. Os seus homens começavam a agir como galos combatentes, e rapidamente alguns começariam a fazer palhaçadas, ou algo pior, como assediar as mulheres com a insistência da bebida, o que não seria nada positivo para os casar. Entregou a Ann o prato vazio e disse: — Desculpe-me, mas tenho que tratar de alguns assuntos. Obrigado por me fazer companhia. Ela deu-lhe um sorriso tão bonito que, por um segundo, Gideon sentiu inveja do esquelético Hargraves, o homem que obviamente tinha roubado o coração daquela moça. Mas o sentimento não durou muito. Apesar de querer uma esposa doce e tranquila, Ann era demasiado doce e tranquila para o seu gosto. Cruzou o convés em direcção a Barnaby, que estava a namorar com uma bonequinha esquelética, e afastou-o para um dos lados. — Já é hora das mulheres descerem para o porão. Pede ajuda à menina Willis. — observou o convés para a encontrar, e fez uma careta de desagrado quando a viu a conversar animadamente com um grande grupo de mulheres. Primeiro Peter Hargraves, e agora as mulheres. Sara nunca se cansava de conspirar, pois não? Barnaby já se tinha posto a andar, mas Gideon deteve-o. — Espera. Mudei de opinião. Deixa a menina Willis fora disto. Eu encarrego-me dela pessoalmente. — Ah, sim? — A menina Willis vai dormir no teu camarote. Durante os próximos dois dias, tu vais dormir no beliche do Silas. — Ela não vai gostar da sua decisão. Gideon deu-lhe um sorriso inflexível. 73


— Não me interessa a opinião dela. Se passar a noite com as mulheres, vai incitá-las para que se rebelem. Quero-a num lugar onde a possa vigiar. Um sorriso irônico apareceu nos lábios de Barnaby. — Essa é a única razão para a pôr no meu camarote? Precisamente o camarote que está à frente do seu? — Sim, é a única razão — respondeu Gideon. — vou dizer-lhe agora mesmo. Espera até que a tenha dentro do teu camarote, e depois leva as mulheres para baixo. — Se a levar sem dar nenhuma explicação, as mulheres quererão saber o motivo. Ajudamna sempre, quando precisa de ajuda. Esse era exactamente o problema. — Diga aquilo que te vier à cabeça, desde que não seja uma coisa que as enfureça. Mas a menina Willis vai ficar no teu camarote, pensem elas o que pensarem. Com aquela sentença, Gideon afastou-se do seu primeiro-tenente. Pela enésima vez amaldiçoou-se por ter tido a idéia genial trazer Sara para bordo do Satyr. Desde o primeiro momento em que aquela rapariga pisou o seu barco, só tinha trazido problemas. As mulheres dispersaram-se quando ele se aproximou de Sara, o que ele interpretou como um mau sinal. Um péssimo mau sinal. — O que estava conspirando neste momento? — Conspirando? — repetiu ela, com a inocente expressão de uma freira. Mas Gideon sabia que não podia confiar naquele rostinho. — Sim, com as mulheres. Estavam conspirando, senão, não se teriam afastado tão depressa quando me aproximei. Sara inclinou a cabeça para trás e o vento afastou as madeixas sedosas da sua cara, ressaltando ainda mais o seu rosto teimoso. — Estávamos apenas comentando a hora em que íamos começar as aulas amanhã. Afastaram-se porque têm medo de você. Gideon não podia argumentar contra isso, visto que acabava de ser testemunha da reação de Ann Morris perante ele. O fato de ter metade das mulheres com medo dele não o agradou. Meteu os polegares no cinturão e olhou para Sara altivamente. — E você? Os olhos dela brilharam sob a luz da lamparina, embora Gideon não deixasse de ver o seu queixo a tremer. — Já disse. não tenho medo de ninguém, e muito menos de você. Aproximando-se mais dela, ele baixou a voz. — É sério? Então não se importará de dormir no camarote situado mesmo em frente do meu. Durante um segundo, o medo apareceu no rosto de Sara, antes que conseguisse disfarçar. — O que... que quer dizer? Satisfeito por ver que tinha conseguido despertar o medo dela, Gideon agarrou-a pelo braço e começou a conduzi-la para a cabina. — Dormirá no camarote de Barnaby, até chegarmos a Atlântida. — Quando ela olhou para ele horrorizada, ele acrescentou: — Não se preocupe. Barnaby dormirá com o Silas. Terá o camarote à sua inteira disposição. — Mas porquê? — Tentou safar-se da mão dele e, quando o capitão continuou a empurrá-la para a frente, sussurrou apertando os dentes: — Quero ficar no porão, com o resto das mulheres! — Eu sei. Para as incitar a escapar ou a rebelar-se ou a alguma outra atividade fútil. — empurrou-a para a entrada da zona dos camarotes situados por baixo da cabina, e depois soltou-a. 74


— Pois para que saiba, não vou consentir. Até agora comandei um barco tranquilo, e não vou aceitar nenhum motim a bordo. Aparentemente os homens e as mulheres estão se dando bem, e a minha intenção, é que as coisas continuem assim. Ela virou-se para olhar para ele, encolerizada e com os punhos fechados de raiva. — E o que pretende fazer? Fechar-me naquele camarote durante o resto da viagem? — Não, só quero tê-la em algum lugar onde possa vigiá-la. — Quando viu as faíscas que nasciam nos olhos dela, tentou suavizar o tom de voz: — é livre para ir onde quiser durante o dia, para dar as suas aulas assim como para fazer o que apetecer, mas não a quero ali fechada, durante a noite, com as outras mulheres. Chame apenas uma medida de precaução, e posso garantir-lhe que não é uma medida severa. As palavras dele pareceram acalmá-la, visto que Sara relaxou o olhar. Gideon adiantou-se e parou à frente do camarote de Barnaby. — Além disso, ficará mais cômoda neste camarote do que no convés. — Abriu a porta e fez um gesto para que ela entrasse. — veja você própria. Sem afastar o olhar do dele, passou ao lado e entrou no camarote. Ele entrou depois, e acendeu a luz para que ela pudesse inspecionar melhor o aposento. O rosto de Sara mostrou primeiro surpresa, e depois uma satisfação contida. O camarote de Barnaby não parecia tão cômodo como o do capitão, embora não houvesse muita diferença. Era evidente que a pirataria os tinha recompensado a todos muito bem, a julgar pela enorme cama com o colchão de penas, o espelho de corpo inteiro que manifestava a vaidade de Barnaby, e o armário de ébano que Barnaby tinha adquirido na África. Claro que, Sara não tinha muita roupa para pendurar naquele armário. Gideon lamentou não ter dado a oportunidade de guardar os seus pertences antes de a fazer embarcar no Satyr. Uma das primeiras coisas que faria quando chegassem a Atlântida seria fazer alguma coisa para remediar as vestimentas horrorosas das mulheres. — Agrada-lhe? — perguntou enquanto cruzava os braços. Sara virou-se e olhou para ele implacável. Todo a satisfação desapareceu do rosto dela. — Suponho que conseguirei suportar. Mas Gideon sabia que estava satisfeita. Esforçou-se por não sorrir. Que moça tão orgulhosa... Devia ser pelo sangue nobre que corria nas veias. — Perfeito. Então deixarei que descanse. Quero garantir que as outras mulheres fiquem bem. Virou-se para sair, mas ela chamou-o. — Gideon? Ao ouvir como soava o se nome de batismo nos lábios de Sara, ficou paralisado. Oh, como desejava ouvi-lo de novo, que ela o dissesse outra vez, com aquela voz tão suave e sedutora que... Maldição! Já estava a pensar nela novamente como mulher. Uma mulher desejável, acessível. — Sim? — respondeu ele com um tom mais brusco do que tencionava. — Quando chegarmos à ilha, como nos organizaremos para... para dormir? Apesar de ser óbvio que se sentia incomodada com a pergunta, Sara não pestanejou quando ele a olhou fixamente. Até esse momento, ele não tinha pensado naquela questão, pelo que não respondeu imediatamente. Sara ergueu o queixo o suficiente para o atormentar com uma visão efêmera do seu longo e branco pescoço. — E então? «Tu vais dormir comigo.» o pensamento invadiu-o de uma forma tão brusca, que teve que 75


ralhar consigo próprio por ser tão irrefletido. Ela não dormiria perto dele em Atlântida, se o pudesse evitar. — Os homens dormirão no barco e as mulheres nas nossas cabanas até se casarem. Gideon sabia que os seus homens não iam gostar nada daquela decisão, mas foi a única solução que ocorrera naquele instante. Sara suspirou aliviada. — E posso... posso dormir com as outras mulheres? Lançando-lhe um olhar prolongado e malicioso, ele respondeu: — Só se se portar bem. De repente, os olhos castanhos de Sara iluminaram-se, mostrando o gênio que já tinha mostrado antes. — Quer dizer, se eu ficar quietinha, e o deixar fazer o que quiser com aquelas mulheres, não? — Exatamente. Ela apertou a mandíbula e levantou outra vez o queixo. — Nesse caso, acho que nunca me portarei bem. — Então, serei obrigado a agir consigo da mesma forma, embora isso signifique mantê-la fechada neste camarote até ao dia dos casamentos. Gideon sentiu-se plenamente satisfeito ao ver como o rubor se estendia pela pele de porcelana de Sara. Da próxima vez, aquela fêmea pensaria duas vezes antes de o provocar e exasperar. E sem dizer mais nada, virou-se e saiu do camarote assobiando. Capítulo 10 Sabia a Bíblia de memória, tal como os meus pais me ensinaram, mas enterrei-a na areia, quando me atirei ao mar... Balada do capitão Kidd, ANÔNIMO Na manhã seguinte, Sara levantou-se antes do sol nascer. Dedicou um tempo à sua higiene pôs um vestido sobre a camisa com que tinha dormido, mas conseguiu arranjar-se devidamente pela falta de um pente e de roupa limpa. No entanto, fez o que pôde: penteou-se com os dedos e lavou o rosto com água salgada do balde que algum pirata simpático tinha deixado atrás da porta. Então apressou-se a sair do camarote e dirigiu-se para o convés. Precisava de falar com Peter. Queria dizer que quando encontrasse uma oportunidade para escapar a aproveitasse, embora ela não pudesse ir com ele. Mas primeiro tinha que o encontrar. Antes de se separarem no dia anterior, ele dissera-lhe que era iria estar de vigia logo de manhã cedo. Talvez pudesse encontrá-lo antes do resto do barco despertar. Sara inspecionou o convés, aliviada por ver que a maioria dos piratas ainda deviam estar na cama, e os poucos à vista não prestavam atenção nela. Mas onde estava Peter? Talvez o tivessem enviado para o mastro, como normalmente fazia o capitão Rogers. Revirou os olhos contra o sol nascente, levantou o rosto e explorou os mastros. — Procura alguém? — perguntou uma voz profunda ao seu lado. 76


Ela deu um salto e virou-se para olhar para o intruso. Maldição, Gideon. Porque não estava na cama como o resto dos homens? Era óbvio que acabava de se lavar, visto que tinha o cabelo úmido e penteado para trás, afastado da testa; apenas as pontas secas começavam a encaracolar. O seu insolente brinco de ouro em forma de argola brilhava sob o tênue sol, como se apregoasse o desprezo pela civilização. Mas o mais chocante era que o capitão não usava camisa. Naquele dia estava vestido como muitos dos seus homens, apenas com um casaco de pele que só lhe cobria a parte superior do peito. Sara conteve a respiração. Havia algo tão escandalosamente íntimo num homem que mostrava o seu peito quase nu..., e o do capitão era tremendamente amplo e musculoso, com uma fina linha irregular de pêlo negro nascia por baixo dos fechos do casaco e se perdia dentro da fivela do cinturão dourado com a ónix incrustada. Era mais do que evidente que aquele homem não costumava usar camisa, visto que os braços estavam bronzeados até aos ombros, com a pele tão escura que quase não se distinguia do casaco castanho. Só percebeu que estava a olhar para ele descaradamente quando ele repetiu, roucamente: — De quem está a procura? As palavras dele exerceram o mesmo efeito do que uma repreensão, arrancando-a de repente do seu estado de transe. — Eu... eu... — Tentou procurar uma desculpa freneticamente, e murmurou a primeira coisa que se lembrou: — de você. Estava à sua procura. Os olhos do capitão, azuis como o mar, soltaram uma auréola de desconfiança. — Ali em cima, nos mastros? — Sim, porque não? — Ou realmente não sabe nada sobre os trabalhos de um capitão, ou está mentindo. Digame, qual das duas possibilidades é a correta? Sara tentou não prestar atenção à terrível sensação que sentia no estômago e esforçou-se por sorrir. — Sinceramente, Gideon, pensa muito mal de mim. Ontem à noite acusou-me de conspirar nas suas costas, e esta manhã acusa-me de mentir. A quem mais podia procurar senão a você? Embora os olhos do capitão continuassem a observá-la como se quisessem tirar-lhe a verdade, ela deu-lhe o olhar mais puro que conseguiu. Gideon meteu os dois polegares no cinturão, ainda a observá-la ceticamente. — E porque me procurava? Santo céu, e agora o que ia responder? — Porque... porque quero ir ao porão. — Sim, era uma desculpa lógica. — Quero ir ter com as mulheres para decidir quando começaremos as aulas. Suponho que necessito da sua autorização para descer, visto que colocou um dos seus homens de vigia... — Não parece que é muito cedo para começar as aulas? A maioria das mulheres ainda estão dormindo. As sobrancelhas elevadas do capitão evidenciavam que não acreditava nela. Sara sentiu como o seu coração se apertava. Não era boa mentirosa, tal como Jordan lhe recordara uns dias antes de embarcar no Chastity. Claro que, nunca antes se tinha visto numa situação tão desesperada. Ela virou-lhe as costas antes que o seu rosto revelasse a verdade. — Não tinha pensado nisso. É verdade, é muito cedo. Então... talvez seja melhor dar um passeio pelo convés. Entretanto, podia procurar Peter e desfazer-se de Gideon. — É uma excelente idéia. Está uma manhã deliciosa, e o calor ainda não aperta. Importa-se 77


que a acompanhe? — repôs ele, quase como se tivesse lido o pensamento. Maldição. o desconfiado capitão tinha a determinação de não a perder de vista. Sara reuniu forças para olhar para ele diretamente nos olhos. — Por acaso tenho escolha? — Você pode sempre escolher, Sara. A profunda voz dele provocou-lhe um calafrio de alerta que percorreu as costas. Pela primeira vez nessa manhã, Gideon deu-lhe um sorriso deslumbrante, e o pulso de Sara acelerouse, ao recordar como ele a tinha encurralado no dia anterior no camarote e a tinha beijado apaixonadamente. Aquele canalha era bonito demais para poder descrever com palavras. Porque é que Deus tinha que conferir um aspecto tão formidável aos homens mais abomináveis? Primeiro o coronel Taylor, e agora este pirata. Que grande injustiça! Sara emitiu um suspiro. Ele irritava-a tanto que até a incitava a amaldiçoar. Por todos os santos, onde acabaria toda esta historia? Gideon ofereceu-lhe o braço com um gesto educado que não encaixava em nada com a sua vestimenta indecente. Sara hesitou um instante. Ele tinha uma tendência execrável em pensar o pior dela, e naquele momento não queria iniciar nenhuma disputa. Por outro lado, sabia que não devia provocá-lo sem uma razão aparente, além da irritante sensação de debilidade que sentia perante a atraente figura do capitão. Tudo o que podia fazer era manter a calma. Depressa haveria momentos em que a luta seria justificada. Sara introduziu a mão na curva do cotovelo nu e deixou-se levar pelo convés. Os dedos dela tocaram a pele do braço nu do capitão de uma forma tão íntima da qual não estava habituada. Em Londres, quando apoiava a mão no braço de um homem, este usava várias capas de roupa, e ela usava luvas. Mas isto era diferente. Totalmente diferente. Sara sentia-o cada vez que ele flexionava um musculo, e o calor que irradiava aquela pele aquecia os dedos dela e descia pelo braço até aquecer o resto do seu corpo. Oh, como queria que as suas luvas não tivessem ficado no Chastity. Naquele momento teria dado qualquer coisa para ter o que uma ligeira proteção que luvas poderiam dar. Passearam em silêncio durante um tempo. Passaram diante de um pirata que estava limpando os acessórios de metal do cabrestante, mas quando Sara tentou ver a cara do indivíduo para confirmar se era Peter, Gideon prendeu-lhe a mão com mais força no cotovelo. — Explique-me uma coisa, Sara. O que impeliu uma moça como você a embarcar no Chastity. Porque é que se arrisca tanto numa viagem tão penosa e perigosa? — Não era perigosa até que você apareceu. Você e os seus piratas ansiosos — resmungou ela. — Teria ficado muito perigoso, garanto-lhe, se tivessem permanecido no Chastity por mais tempo. Mais do que um barco se afundou nas águas turbulentas do Cabo, incluindo um dos barcos de reclusos. Por isso é ainda mais estranho que uma mulher da sua classe aceite correr tal risco por um conjunto de pobres desgraçadas. — a voz dele ficou mais ofensiva. — realmente, se o que procurava era a diversão, podia tê-la encontrado nos numerosos bailes e festas de Londres, muito convenientes para entreter a filha de um conde. Que ideia tão absurda! Como é que se atrevia a expressar aquela espécie de conjecturas sem saber nada dela? Sara soltou-se do braço dele e afastou-se com o passo zangado até que se deteve em frente do varandim. Podia notar a presença do capitão nas suas costas, uma presença enorme, incômoda. — Toda a minha vida fui uma reformista, e a minha mãe também. O lema dela era: «Só é necessário uma alma caridosa para fazer as coisas como deve ser», e eu sempre tentei seguir esse 78


princípio de pés juntos. Fechou os dedos ao redor do medalhão. As suas memórias consistiam em ir dividir cestas de comida às prisioneiras e aprender a costurar confeccionando colchas de retalhos para os pobres. — E o seu pai? — perguntou Gideon. — O meu verdadeiro pai morreu na prisão quando eu tinha dois anos. Cumpria pena por causa de umas dívidas. Um silêncio incômodo invadiu o espaço entre eles. Quando Gideon falou, a voz dele traía uma genuína compaixão. — Sinto muito. Ela inspirou profundamente. — Não o conheci, mas a minha mãe amava-o loucamente. A morte dele afetou imensamente. Depois, ela dedicou-se a encontrar uma forma de melhorar a qualidade de vida daqueles que sofriam. Apesar de não dispor de muito dinheiro e não ter sonhos em relação ao seu futuro, intercedeu por alguns presos com as autoridades e apelou para a Câmara dos Lordes para mudar as leis injustas. Foi assim que conheceu e se casou com o meu padrasto, Lorde Blackmore. Gideon avançou até ela e colocou-se ao seu lado, apoiando-se no varandim com os braços dobrados. — Tenho a certeza de que o conde a fez abandonar as obras dela. Sara olhou para ele fixamente, mas ele estava com o olhar perdido nas luminosas águas do oceano, com os olhos cheios de ressentimento. — Não — respondeu ela suavemente. — apoiou-a nos seus esforços reformistas até ao dia em ela morreu. — Deslizou os dedos delicadamente pelo brilhante varandim. — a minha mãe levava-me com ela para todo o lado, e infundiu-me a crença de que se nós nos esforçássemos, poderia erradicar a injustiça do mundo. E suponho que... a única coisa que fiz foi continuar o que ela fez. — Esboçou um sorriso. — Agora que ela e o meu padrasto já não estão ao meu lado, sinto a responsabilidade de continuar com o legado da família, por assim dizer. — O legado da família? Enviar uma jovem de boa família com um monte de ladras e assassinas? Sara inclinou o corpo para ele e olhou-o nos olhos sem pestanejar. — Há poucos minutos chamou-as de «pobres desgraçadas». Durante um momento, Gideon não disse nada. Então um pequeno sorriso apareceu nos lábios dele, suavizando os traços duros do rosto dele. — Ah, sim, é verdade. Bom, no entanto, não posso crer que o seu meio-irmão concordasse com um projeto tão perigoso, embora fosse por uma causa justa. — Não, ele não concordava. — algumas nuvens atravessaram o céu e cobriram o sol, projetando uma fina sombra sobre todo o convés do barco. — Tentou dissuadir-me, mas foi em vão, claro. Tenho idade suficiente para ir donde quiser, com ou sem a autorização dele, então não teve outro remédio que aceitar a minha decisão. O sorriso de Gideon desapareceu tão depressa como o sol se tinha ocultado atrás das nuvens. — Parece que gosta muito de contrariar, não é? — Apoiou um cotovelo no varandim e colocou a outra mão sobre a anca enquanto olhava para ela fixamente. — Pois deixe que a avise, Sara Willis. A sua família pode ser indulgente com os seus planos e com as suas intenções, mas eu não. Não tolerarei nenhum dos seus caprichos no meu barco. Nem na minha ilha. — Sua ilha? Pensei que era uma utopia sem diferença de classes sociais, que não pertencia a ninguém. 79


Uma careta ensombrou as feições dele. — E é verdade. Mas alguém tem que elaborar as leis e zelar para que se cumpram, e os meus homens escolheram-me a mim. isso significa que seguiremos as regras que eu ditar na minha ilha. — fez uma pausa. — Suponho que para pessoas como você isso deve ser muito duro. Está acostumada a conseguir o que quer pelo simples fato de ser a filha do conde de Blackmore. Mas vá-se habituando, senão terá que arcar com as terríveis consequências por ir contra a autoridade. Sara ignorou a ameaça dele, mas a forma arrogante em que ele tinha pronunciado «a filha do conde de Blackmore» despertou a curiosidade dela. Aquele homem parecia ter um ódio visceral para com a nobreza, e ela suspeitava que não se devia ao mero fato de ser americano. — Pergunto-me — começou ela a dizer, com voz calma — quem ensinou a você «as terríveis consequências de ir contra a autoridade». pergunto-me que terrível cavalheiro inglês o ensinou a odiar «os da minha classe» de uma maneira tão visceral. Por um momento Sara pensou que tinha ido demasiado longe. Os olhos do capitão faiscavam rancor quando se separou do varandim. Cada músculo do seu peito comprimiu-se, como o de uma besta que se estivesse a preparar para saltar sobre a sua presa; e ela retrocedeu instintivamente enquanto cobria a garganta com a mão. — Não creio que você queira saber — disse ele, finalmente, com uma voz grave e seca. Depois virou-se sobre os calcanhares e afastou-se em direcção ao quarto onde dormia o resto da tripulação, deixando Sara atrás dele, a tremer. Gideon olhou a bússola atentamente e virou o timão noventa graus. Os raios do sol da tarde filtravam-se pela popa do barco, proporcionando-lhe uma agradável sensação de calor na cabeça e nas costas. Lamentavelmente, já se sentia demasiado quente, graças a Sara Willis. Tinha-a evitado durante todo o dia ordenando a Barnaby que a vigiasse, mas com aquela medida não conseguira deixar de pensar nela. a história acerca da mãe dela apanhara-o de surpresa. Uma mulher reformista casada com um conde. Surpreendente. Mas claro, provavelmente o conto não tinha sido tão romântico como Sara o narrara. Os esforços reformistas de sua mãe, e os de Sara também, deviam de ser limitados a situações que não tivessem riscos. Gideon enfrentara condes ingleses suficientes com a espada na mão para saber que eram um monte de arrogantes muito prudentes, que não permitiam que as suas mulheres viajassem por medo que sujassem as mãos com as preocupações dos pobres. No entanto, Sara tinha embarcado no Chastity. Tinha lutado por aquelas reclusas sem se preocupar com a sua própria sorte. Agora que pensava friamente, a única razão pela qual ela dissera que era a meia-irmã de um conde fora para tentar convence-lo para que não levasse as mulheres do Chastity. Não era a forma típica de agir de uma mulher tímida ou aborrecida. Desenhou um sorriso. Pois sim! Sara era tão tímida quanto um barco de guerra. Um Lino barco de guerra, com linhas sinuosas da popa à proa, mas um barco de guerra sem duvida nenhuma, desenhado para a batalha. Quando se tratava do bem-estar das reclusas, ela lutava como uma fragata bem armada. A coragem dela dava medo... dava que pensar. Nos momentos em que ele se sentia mais frustrado, ela ainda tivera a ousadia de questionar a decisão de assaltar o barco das reclusas. Evidentemente, aquela maldita soldadinha com saias faria com que qualquer homem questionasse as suas acções. Que Deus tivesse piedade do tipo que se casasse com ela. Iria martirizá-lo noite e dia, e nunca lhe daria um minuto de paz. Exceto quando estivesse fazendo amor... Gideon soprou. Porque é que cada vez que pensava em Sara a imaginava na cama, com os braços estendidos e os olhos misteriosos, como se 80


fosse uma sereia cantando para atrair a atenção de um marinheiro? Mas a ele não conseguiria atrair. Outro homem embarcaria naquela margem, mas não ia ser ele. Mas então... esse outro homem gozaria da possibilidade de a beijar, de tocar no cabelo sedoso de sereia, de acariciar o seu corpo nu... rebentou num sopro sonoro enquanto o seu corpo reagia instantaneamente. Se não deixasse de pensar nela, acabaria louco. Ou teria que passar o resto da sua vida a tomar banhos de água fria. — Capitão, será melhor que desça ao porão e ouça o que aquela mulher está ensinando nas aulas — proferiu uma voz atrás dele. Gideon virou-se e viu Barnaby, de pé no cimo das escadas da cabina, que mostrava uma careta divertida. Não era necessário perguntar quem era «aquela mulher». — Nada do que faça ou diga me surpreenderá. — Gideon virou-se novamente para o timão, dando as costas a Barnaby. Não pensava aproximar-se outra vez de Sara, e menos ainda no estado de excitação em que se encontrava agora. O melhor era que Barnaby se encarregasse dela durante o resto do dia. — Talvez não, mas isso não significa que não seja algo com que não deva preocupar-se. Você é mais instruído do que eu, mas a Lisístrata não é a peça de teatro em que as mulheres se negam a manter relações sexuais com os maridos até que os homens cedem a não ir à guerra? Gideon lançou um grunhido rouco e agarrou-se ao timão com uma força desmedida. Lisístrata era uma das obras literárias que o seu pai lhe tinha obrigado a aprender quando era grande o suficientemente para poder ler. — Sim, mas não tente me dizer que está ensinando essa porcaria. Pelo amor de Deus, é uma obra grega; não compreenderão uma única palavra, embora ela não a saiba tão bem para a recitar de memória. — Conhece-a tão bem para oferecer a elas uma tradução livre, garanto. Quando a deixei, estava narrando a história com um entusiasmo enorme. Barnaby chegou ao timão no momento em que Gideon deixava cair os braços ao lado do corpo com aspecto abatido. Então, sem conseguir conter-se, soltou um palavrão. — Nunca deveria tê-la trazido para o meu barco — rugiu enquanto se encaminhava para as escadas com passos resolutos. — Deveria tê-la enviado de volta para Inglaterra, atada e amordaçada! Sem dar atenção à gargalhada que Barnaby emitiu como resposta, desceu pelas escadas e dirigiu-se à escotilha que conduzia ao porão. Tinha que acabar com aquele quebra-cabeças de uma vez por todas, antes que aquela mulher incitasse as outras a tumultuar-se. Enquanto descia pelo buraco escuro, ouviu a voz animada de Sara pronunciar umas palavras estudadas, numa cadência lenta. Deteve-se a meio das escadas para a escutar; estava a relatar a cena em que Heraldo de Esparta conta ao magistrado de Atenas como os homens estavam desesperados por pôr fim à indiferença das mulheres. Gideon não conseguiu deixar de sorrir. Recitava a passagem sem nenhuma referência aos duplos sentidos que apareciam no original. Só Sara podia transformar Lisístrata, a mais perversa de todas as obras gregas, numa história íntegra. Com um palavrão, apagou o sorriso da seu rosto, acabou de descer os últimos degraus e viu Sara de pé, de costas para ele, do outro lado do porão. Um grupo formado por uma trintena de mulheres e crianças rodeava-a com a cara pasmada enquanto escutava cada palavra com grande atenção. Apesar do ar rarefeito por causa do calor tropical naquele porão sem janelas, só as crianças se mexiam inquietas, e as suas mães repreendiam-nos para que estivessem calados cada vez que os pequenos se atreviam a fazer algo mais do que sussurrar as queixas. O capitão franziu a testa. Sabia desde o inicio… aquela maldita mulher não fazia outra coisa 81


senão criar problemas. Como era possível que conseguisse manter na palma da sua mão uma audiência de mulheres acaloradas e fatigadas apenas com umas palavras? Aquelas não eram o tipo de mulheres que se deixassem dominar facilmente. Todas elas tinham sido testemunhas do lado mais desagradável da vida. E no entanto, Sara estava contando uma história naquela voz clara e cativante, e elas ouviam cada palavra e estavam prontas para a auxiliar em qualquer espécie de conflito. Pois bem, não permitiria que isso acontecesse. Outra vez não. A situação parecia seguir no bom caminho, e ela não estragaria com as suas contínuas tentativas de fomentar o mal-estar. Gideon avançou com passo firme, sem prestar atenção ao crescente murmurinho que se formou entre as mulheres quando o viram aparecer. Então Sara virou-se, e o seu olhar pousou nos olhos dele. No mesmo instante, um rubor de culpabilidade estendeu-se pelas faces dela, e isso foi tudo o que ele precisou para perceber a intenção dela. — Boa tarde, senhoras — saudou o capitão com voz inflexível. — a aula acabou-se por hoje. Porque não vão todas para o convés, para tomar um pouco de ar fresco? Quando as mulheres olharam para Sara, ela cruzou as mãos furiosamente sobre o peito e encarou Gideon, observando-o com pose beligerante. — Não tem direito nenhum a acabar com a minha aula, capitão Horn. Além disso, ainda não acabamos; estava a contar-lhes uma história... — Eu sei. estava narrarndo Lisístrata. Os olhos de Sara mostraram a visível surpresa, mas depois ergueu as costas e adotou o seu arrogante ar aristocrático, levantando o queixo com atrevimento. — Sim, Lisístrata — proclamou em voz doce com a qual não conseguiu enganar o capitão. — Certamente não terá problema nenhum em que as mulheres se familiarizem com as grandes obras da literatura, capitão Horn. — É evidente que não. — Ele apoiou as mãos nas ancas. — mas questiono a sua escolha do material. Não acha que Aristófanes é um pouco complexo para as suas alunas? Gideon sentiu-se extremamente satisfeito perante a cara de pasmo que Sara mostrou antes de conseguir recuperar a compostura. Ignorando os sussurros de fundo das mulheres, ela ergueu mais as costas. — Vamos, agora vai dizer que sabe muito sobre Aristófanes. — Não é necessário ser um Lorde inglês para ter conhecimentos de literatura, Sara. Conheço todos os malditos escritores que vocês, os ingleses, são tão orgulhosos. Qualquer um deles teria sido uma melhor escolha para as suas alunas do que Aristófanes. Enquanto ela continuava a olhar com cara de não estar de todo convencida, ele fez um exercício de memoria, tentando recordar as inúmeras passagens em verso que o seu pai inglês lhe tinha obrigado a aprender. — Podia ter escolhido A Fera Domada de Shakespeare, por exemplo: «Fora, fora! Apaguem da vossa cara esse gesto ameaçador e desprezível. / e não lancem olhares reprovadores por esses olhos / que possam ferir o vosso senhor, o vosso rei, o vosso governador». Há muito tempo que não recitava a passagem favorita do seu pai sobre Shakespeare, mas as palavras surgiram da sua boca com a mesma facilidade como se as tivesse pronunciado no dia anterior. E se de algo podia estar orgulhoso, era de saber usar a literatura como se fosse uma arma. o seu pai adorava atormentá-lo com versos sobre crianças reincidentes. Sara olhou para ele boquiaberta enquanto o resto das mulheres o observava com agitação. — Como... quero dizer... como é possível que saiba...? — Isso não importa. a questão é que você está contando a história de Lisístrata quando o que deveria contar seria algo assim: «o vosso marido é o vosso senhor, a vossa vida, o vosso 82


guardião. / a vossa cabeça, o vosso soberano; é quem se preocupa com vocês. / e para isso dedica o seu corpo e alma. / Trabalhando penosamente tanto em terra como no mar». A grata surpresa de Sara perante os extensos conhecimentos que o capitão parecia ter sobre Shakespeare desvaneceu-se quando reconheceu a passagem que ele estava a declamar: uma cena d'A Fera Domada em que Katherine aceita Petruchio como seu dono e senhor diante de todos os convidados do seu pai. Os olhos de Sara brilhavam quando se separou das mulheres e se aproximou mais de Gideon. — Ainda não somos vossas esposas, e Shakespeare também disse: «Não suspirem mais, senhoras, não suspirem. / os homens foram sempre impostores. / Um pé no mar, outro na margem. / Nunca estáveis em nada». — Sim, em Muito Ruído e Poucas Nozes. Mas até Beatriz muda de opinião, no fim: «Adeus, desprezo! Orgulho virginal, adeus! / Nenhuma gloria há que esperar de vós. / E tu, Benedicto, continua a amar. eu corresponder-te-ei, / Domando o meu coração selvagem ao amor da tua mão». — Ela foi vítima de uma burla, e por isso acabou por dizer essas fantochadas! Obrigaramna a deixar-se seduzir por Benedicto, do mesmo modo que você nos está a obrigar a nós! — Eu estou obrigando-as...? — gritou ele. — você não sabe o significado de «obrigar»! juro, se se atreve a... Gideon calou-se de repente quando percebe que as mulheres ofereciam uns ameaçadores rostos de poucos amigos. Sara estava a deturpar as palavras que ele dizia para o fazer parecer um monstro. E estava conseguindo o seu propósito. Maldita mulher. — Fora! — vociferou para as mulheres. — Todas para a rua! Saiam daqui imediatamente! Quero falar com a menina Willis a sós! Não foi preciso repetir a ordem. As mulheres estavam cansadas, acaloradas e assustadas e tudo o que necessitavam era receber uma ordem furiosa por parte do capitão para sair correndo. O porão começou a ficar vazio. — Voltem! Não pode obrigar-vos a sair! Não direito nenhum de... — Desculpe, menina — murmurou a última mulher, com um olhar nervoso. A seguir, baixou a cabeça e empurrou as crianças para a escada. Quando todas estavam na rua, Sara voltou-se furibunda e encarou-o, com os olhos brilhantes de raiva. — Como se atreve! Não tem direito nenhum de entrar aqui e despejar as minhas alunas... você… você é um ditador! O fato da acusação conter parte da verdade não conseguiu acalmar os ânimos do capitão, que se colocou ao lado dela apenas com um par de passos. — Estou farto de que me chame déspota, abusador e outras coisas parecidas, Sara. É verdade, assaltamos o seu barco, mas desde então não pode queixar-se de a termos tratado mal, pois não? Diga-me, violaram-na? Bateram-lhe? Encerraram-na no seu camarote? — Não, mas tenho a certeza que não demorará muito para fazer! E sim, você zangou-se ontem comigo! Sara arrependeu-se daquelas palavras logo a seguir de as pronunciar. Supunha-se que a essa altura ambos deviam ter esquecido o beijo do dia anterior. De todas as pessoas, ela era a menos indicada para o mencionar... especialmente com aquele ataque de raiva. O corpo de Gideon ficou tenso, a cicatriz da face ficou mais branca, num nítido contraste com a pele bronzeada. Com dois passos rápidos para a frente, agarrou-a pela cintura sem dar tempo de fugir. — Foi isso o que aconteceu ontem? Zanguei-me consigo, você sentiu-se obrigada a suportar 83


os meus beijos? Desculpe, menina, mas se me lembro bem, não foi isso que aconteceu. — Baixou a voz até a converter num murmúrio. — lembro-me que você abriu a boca sob a minha. Lembro-me que meteu as suas mãos no meu cabelo e me acariciou o pescoço. Essa não é a forma como a maioria das mulheres responde perante um assédio. Furiosa pelo fato dele estar dizendo as suas próprias debilidades na cara, fechou os punhos e tentou bater-lhe no peito, mas Gideon foi mais rápido: segurou-a pelos pulsos e puxou-a para ele, obrigando-a a colar o corpo contra as musculosas pernas e cintura. — Você não tem a mínima ideia do que significa a palavra «obrigar». Talvez tenha chegado o momento de lhe mostrar o que na verdade significa agir com força bruta. — Nããoooo... — resmungou Sara, enquanto ele inclinava a cabeça para ela, e com a boca sofucava todo o vestígio de mais protestos. Foi um beijo duro e inflexível, e ele agarrava-a de uma forma possessiva e implacável. Sara tentou safar-se dele, mas não conseguiu. Com os olhos brilhantes, ele respondeu sentando-a bruscamente sobre uma das arcas espalhados pelo chão. Então agarrou-a outra vez pelos pulsos e obrigou-a a colocar os braços atrás das costas, segurando-os com força com uma das suas mãos enquanto que com a outra a agarrava pelo queixo e a obrigava a levantar a cabeça para a poder beijar outra vez. Foi um beijo de castigo, com a intenção de conseguir que ela o odiasse. E foi isso o que Sara sentiu naquele momento. Gideon tentou meter a língua entre os seus dentes, mas ela manteve-os fechados, com a firme determinação de não permitir que ele ganhasse aquela batalha. Quando Sara percebeu que não tinha forma de escapar das garras dele, contra atacou da única maneira que se lembrou: mordeu-o no lábio inferior. Gideon inclinou a cabeça para trás ao mesmo tempo que proferia uma maldição, mas não a soltou, mesmo quando sentiu o sabor do sangue na boca. — Isto, minha querida Sara, isto é forçar alguém — rugiu. — e tenho a certeza absoluta de que não gostou nada, não é verdade? Ela percebeu um sinal de culpabilidade nos seus olhos, mas pensou que se enganava. Aquele… aquele bruto não era capaz de se sentir culpado de nada! Então o olhar de Gideon suavizou-se sob a luz fraca da lamparina de azeite que iluminava o porão sem janelas, e a sua voz alterou-se subtilmente até falar com uma cadencia mais simpática. — E não a culpo. Eu também não gosto. Não quero que lute contra mim. Os olhos de Gideon denunciavam a sua franqueza. Afastou lentamente a mão do queixo dela e acariciou suavemente a sua garganta com os dedos fortes. Enquanto Sara continha a respiração, ele colocou o polegar e os outros dedos de ambos os lados do pescoço dela. — Não... prefiro tê-la como ontem... excitada... com vontade... As palavras por si próprias eram uma caricia, e a forma como olhava a boca dela, como se fosse uma apetitosa sobremesa, provocou em Sara um delicioso calafrio que percorreu as costas. Teve que lutar contra aquelas sensações que a traíam. — Não serei sua. Nunca. — Porquê? Um sorriso desenhou-se nos lábios do capitão. Este inclinou mais a cabeça e ela preparou-se para receber outro beijo, mas em vez disso, ele apertou os lábios lábios sobre a veia que palpitava irregularmente na parte lateral do seu pescoço. Os lábios dele eram quentes e suaves como manteiga, nada parecido ao que tinham sido poucos minutos antes. Sara tentou manter-se firme, aparentar que ele não estava a excitando nem que estava fazendo-a tremer como um pudim. Uma sinfonia de necessidades e de sensações estavam a invadi-la, sem que ela pudesse fazer nada para remediar. A boca de Gideon moveu-se para cima; brincou com a orelha dela, e depois deu uns beijos úmidos ao longo da sua face, 84


fazendo-lhe cócegas com os pelos do bigode. Sara tentou não prestar atenção ao desejo irrefreável que a invadia, respirou profundamente e manteve-se tão distante como qualquer mulher podia quando um homem estava a lisonjear o seu corpo com mil carícias delicadas. Mas quando ele começou a beijá-la por todo o rosto exceto nos lábios, ficou surpreendida ao descobrir como ansiava sentir a boca dele sobre a dela. Oh, como desejava que a beijasse outra vez na boca. E como um bom safado que era, Gideon parecia saber exatamente o que ela queria. Afastou-se um pouco e fixou o olhar nos lábios a trémulos. Então cobriu-os com os dele. Foi um beijo suave, cauteloso, divino, delicioso. Ele avançou pela curva dos labios com a língua, e depois introduziu-a desavergonhadamente na boca dela. Sara pensou que devia reagir, que devia agir decentemente, como faria a verdadeira filha de um conde. Ele não deveria estar fazendo aquelas coisas. Mas a verdade era que tinha perdido as forças. Sentia-o tão forte, tão corajoso... o porão do barco era sua propriedade, escuro e secreto e cheio de tentações. Até o balançar do barco parecia conspirar com o capitão, obrigando-a a apoiar-se nele para manter o equilibrio e não cair da arca. Ele impelia a língua dentro da sua boca trêmula com golpes possessivos, e cada golpe conseguia debilitar mais os seus joelhos...e o seu ventre e as costas. Santo céu, ninguém a tinha feito sentir daquela maneira antes... com aquela agitação traiçoeira, aquela necessidade de responder a cada beijo com outro igualmente dedicado. Quando a mão de Gideon deslizou pelo pescoço, atravessou o esterno e foi poisar-se sobre um dos seus seios, Sara não tinha forças para opor resistencia. Não reagiu. Não fez nada, exceto arquear as costas para se colar mais à sua boca e continuar a saborear o beijo como uma mulherzinha descarada. Gideon percebeu a mudança em Sara de repente, especialmente quando soltou suas mãos, visto que em vez se o empurrar com elas, o separar, deslizou-as por baixo do casaco e agarrou-o pela cintura. Maldita mulher... aquela mulher era realmente incrível. Porque não o desprezava da maneira cruel como a tinha beijado ao princípio? Ele sentiu um enorme desprezo por si próprio por ter sido capaz de realizar tal feito, tanto que decidiu beijá-la novamente apenas para lhe provar que não era o monstro que ela pensava que era. Mas agora Gideon só conseguia pensar em tocá-la e acariciá-la. O seu corpo pensava por ele, e ele não podia fazer nada para o deter. A resposta por parte de Sara tinha sido tão inocente, tão pouco instruída... tão tentadora, que sentiu terríveis desejos de arrancar sua roupa, deitá-la sobre um dos colchões, e perder-se dentro do corpo dela. Gideon ofegou quando ela prendeu os braços ao redor da sua cintura. Tinha que se controlar. Tinha que se travar, acabar a demostração sobre como diferia a força bruta da satisfação mútua. Então podia afastar-se dela. Mas mais tarde. Muito mais tarde. Depois de ter tocado, de ter explorado aquele corpo que o tinha mantido acordado hora atrás da outra na noite anterior. As capas de tecido que separavam a palma da sua mão e o seio de Sara tornaram-no impaciente. Sem pensar, desapertou a simples peça de renda que fechava recatadamente a linha do decote do vestido de musselina. Ela afastou a boca dele, com os olhos dilatados, insegura. A peça de renda caiu ao chão, ele acariciou a parte superior mais avultada dos seus seios e esperou que ela, como uma boa moça, decidisse dar por concluída aquela loucura. Quando isso não aconteceu, quando ela ficou sentada, olhando para ele fixamente como uma pomba atordoada, Gideon introduziu a mão dentro do corpete para saborear o leve peso do seu seio. Tinha que lhe tocar. Ficaria louco se não o conseguise. A desfaçatez dele impeliu-a a reagir. 85


— Não deveria… tocar-me... dessa maneira. — Sara ofegou ao mesmo tempo que percebia como o mamilo ficava duro como uma pedra perante o contato com a mão dele. — Eu sei. — Gideon esfregou a palma da mão aberta sobre o seio e começou a acariciá-lo lentamente, habilmente. — mas você quer que eu continue, não quer? Deseja que eu continue. Conseguiria que ela admitisse que o desejava nem que fosse a última coisa que fizesse neste mundo. Não queria que voltasse a acusá-lo de ter zangado com ela. Sara virou o rosto para um lado, mas não o deteve. — Eu não… quer dizer, eu… não quero… eu… eu… Gideon beijou-a novamente, silenciando-a enquanto introduzia a língua na doçura e no calor da sua boca da forma que desejava introduzir-se noutra parte dela. Quando conseguiu que Sara se agarrasse a ele com os dedos contraídos, passou-lhe o braço por trás para alargar o corpete o suficiente para poder baixar-lhe as mangas e ver os seus ombros nus. Tentou desapertar os laços da blusa impaciente, e depois afastou a musselina e arrastou-a para baixo para deixar os seios a descoberto. Apesar de ela se assustar e lançar um gemido apagado, Gideon não se amedrontou. Por todos os Deuses, era tão doce; a mulher mais doce que alguma vez provara. Continuou a investir com a língua sem parar, abrindo caminho entre os lábios sensuais, ao mesmo tempo que enchia as mãos com os seios. A pele feminina era suave, muito suave. E ele tinha o membro viril tão duro como uma pedra. Quando é que uma mulher conseguira excitá-lo daquela forma? Enquanto Sara continuava a agarrar-se a ele com os dedos tensos, Gideon afastou os lábios dos dela, mas apenas para beijar um dos seus apetecíveis seios satinados. Sara abriu enormemente os olhos quando ele começou a chupar-lhe o mamilo com força, mas não tentou afastá-lo, arqueou-se mais para ele, e cravou os dedos na pele nua daqueles ombros tão fortes. As unhas deixariam marcas visiveis mais tarde, mas Gideon não se importava. Desejava-a. Alí mesmo. Naquele momento. Campainhas de alarme tocaram na sua cabeça, mas ele ignorou-as. O aroma dela, o gosto salgado da sua pele, o estava deixando louco. Gideon poderia ter resistido a ela se Sara tivesse sido a fria dama inglesa que ele pensava que era. Mas Sara era uma rainha guerreira e feroz, que recitava Lisístrata para incentivar as suas tropas. Não, não conseguia resistir a uma mulher assim. Desejava-a. E ela desejava a ele. Que mais podia importar? — Gideon! Santo céu! — ofegou ela enquanto ele lambia com ardor primeiro um seio e depois o outro, desejando devorá-los. — Mmm... Sim, é maravilhoso — murmurou ele colado aos seios. — Tu és maravilhosa. Sara era um anjo, aquela mulher inglesa, pela qual ele bramava ao ventos, a que incendiava o luxurioso coração americano. Tinha que a possuir. Tinha que fazê-la dele. Tinha que lhe pertencer. E ela também o desejava. Não importava o que Sara dissesse, o corpo dela atraiçoava-a. Ela desejava-o. Gideon continuou a repetir aquelas desculpas enquanto a beijava novamente, desta vez com uma sede que nem os prazeres da sua boca podiam saciar. Queria mais. Tinha que conseguir mais. Sentindo uma necessidade angustiante, levantou-lhe a saia e deslizou as mãos pelas pernas até aos joelhos dobrados. Continuou a avançar para cima, por baixo da musselina que cobria as pernas, acariciando a pálida e suave pele, até que chegou ao ângulo que formavam as pernas abertas. Ela seria sua e de mais ninguém. Ninguém a teria; só ele. Pensava demostrar-lhe o quanto ela também o desejava. Conseguiria que ela percebese, para que dessa forma nunca mais o desprezasse. E com aqueles pensamentos, deslizou a mão 86


entre as pernas dela. Capítulo 11 Na verdade não somos mais livres do que a rainha de paus quando vitoriosamente aprisiona a carta do copas. Carta de 13 de Janeiro de 1759, LADY MARY WORTLEY MONTAGU

O toque dos dedos de Gideon na sua parte mais íntima conseguiu que Sara desse um salto e despertasse do seu estado de fantasia. — Não! — sussurrou enquanto afastava a boca da dele. — Não faça! Gideon tapou a seu púbis com a mão, proporcionando a Sara um momento de alívio depois da doce tensão que tinha sentido por todo o corpo. — Mas tenho que fazer — sussurrou ele. o seu olhar era escuro, confiante, como se soubesse exatamente o que ela sentia. — Você me desejas. Deixa que te acaricie, Sara. Deixa que te demonstre o que nós poderíamos ter juntos. Acariciou-a de uma forma absolutamente fascinante, fazendo com que ela se sentisse úmida e quente, como as aguas do mar tropical aquecidas pelo sol. — Sim — ofegou ela, apesar de não ter a certeza. Sara fechou os olhos para não ver o olhar confiante de Gideon, aquela confiança de saber-se conhecedor das suas debilidades. Sentiu-se invadida por uma necessidade quase irresistível de se entregar a ele, de permitir que as suas mãos a possuissem, ao mesmo tempo que também sentia uma estranha necessidade de o tocar, de passar aquele corpo com as mãos dela e fazer o mesmo que ele estava fazendo com ela. Gideon continuou rodando a palma da mão com uma fascinante precisão naquele lugar tão íntimo que parecia desfazer-se pelas suas caricias. Sara deslizou os dedos pelas costelas musculosas e também começou a acariciá-lo; depois colocou-os no peito e com as mãos sem experiencia brincou com os pêlos mais rijos e encarcolados. A pele de Gideon, como veludo curtido, parecia ganhar vida sob os dedos dela. Ele suspirou sonoramente, com a respiração ofegante, e agarrou uma das mãos de Sara e colocou-a mais em baixo, passando por cima do seu enorme cinturão até a colocar sobre o vulto que emergia por baixo das suas calças. Sara voltou a abrir uns olhos dilatados. A expressão do rosto de Gideon já não projetava aquela plena confiança, agora era selvática, felina, sedenta, como um homem podia mostrar-se sedento. Ele emitiu um som gutural enquanto empurrava as ancas contra a mão dela. ao mesmo tempo, esticou completamente a sua mão sobre a sua pubis e uma onda de prazer inundou-a de repente, tão intensa que Sara quase caiu da arca. — Oh, meu Deus — sussurrou ela. Cada parte do seu corpo tremia e excitava-se. Cada parte dela queria mais. Sem ser consciente do que fazia, arqueou-se mais sobre a mão de Gideon, procurando novamente aquele prazer indescritível que acabava de sentir. Os olhos de Gideon brilharam. — Muito bem, linda. Deixe-se levar e aprecie. — Separou o pelo da seu pubis com os dedos experientes, e depois introduziu um na cavidade que ficava mais úmida e escorregadia, permitindo-lhe um fácil acesso. — Por todos os Deuses... Mmmm... estás tão úmida… — rugiu Gideon, com um grunhido parecido ao de um animal, antes de se apoderar da sua boca outra vez. Sara ouviu um ruído por cima da sua cabeça, como de um tronco de madeira a bater no 87


outro, mas afastou o som da sua mente. Então uma voz gritou de cima: — Capitão, capitão? Você está aí em baixo? Gideon separou a boca da de Sara atropeladamente e retirou a mão ao mesmo tempo que resmungava um palavrão. — Sim, Silas. Estou aqui. Já subo. Quando começou a recuperar do seu ardor sexual, Sara sentiu-se súbitamente asfixiada pela vergonha. Santo céu! Ainda tinha a mão sobre as calças dele! E ele tinha-lhe tocado de uma forma tão intima como só seria permitido a um marido! Afastou a mão rapidamente. No porão ressoou o som de uns passos que desciam pelas escadas. — Tenho que falar consigo — disse Silas, marcando as palavras com o ressoar da sua perna de pau em cada um dos degraus. — é sobre aquela mulher, Louisa... — Se der mais um passo, Silas, juro que te envio como aperitivo aos tubarões — ralhou Gideon. O ressoar dos ruidos cessaram de repente. Sara baixou a saia freneticamente, mas quando tentou saltar da arca, Gideon impediu-a. Com as mãos firmes, segurou.a pelas pernas. Olhou para ela fixamente nos olhos enquanto respondia a Silas: — Vai para o meu camarote. Vou ter contigo dentro de pouco tempo. Primeiro tenho que tratar de outro assunto. O coração de Sara batia ao ritmo do som da perna de pau de Silas enquanto este subia pelas escadas. Ela era o outro assunto, e se permitisse que ele tratasse dela, podia ter a certeza que ele a abandonaria como um trapo sujo depois de ter acabado com ela. Pois bem, não ia permitir que isso acontecesse. Não com aquele homem, com aquele pirata sem escrúpulos. A porta da escotilha fechou-se com força em cima das suas cabeças, e Gideon inclinou-se para a beijar novamente, mas desta vez Sara estava preparada. Cruzou os braços sobre o seu peito em forma de escudo e afastou o rosto. — Não — sussurrou. — já chega. A respiração de Gideon ficou mais audível e quente contra a sua orelha, enquanto com o braço a rodeava pela cintura. — Porque não? Por um momento, a mente dela ficou em branco. Que razão podia dar para o fazer ver? Se argumentasse que não eram casados, ele poria ponto final a essa objeção casando-se com ela, e isso seria um desatre. Então lembrou-se do plano de Peter. — Porque já estou prometida a outro homem. O corpo de Gideon ficou tenso contra o dela. Um silencio opressivo esmagou-os, rasgado unicamente pelo tilintar longínquo do sino do barco. Mas Gideon não se afastou, e ao principio Sara temeu que ele não a tivesse ouvido. — Disse... — começou a dizer. — Eu ouvi. — retirou-se, esboçando uma sombra de desconfiança nos olhos. — Que queres dizer com isso de outro homem? Alguém na Inglaterra? Sara lembrou-se por instantes de inventar uma historia acerca de um noivo em Londres. Mas isso não teria o peso suficiente para fazer com que Gideon desistisse da sua intenção. — Não, outro marinheiro. eu... aceitei casar com um dos homens da tua tripulação. A expressão no rosto de Gideon ficou mais áspera até que pareceu estar esculpida do mesmo carvalho com o qual tinham construído aquele barco formidável. — Está brincando comigo. 88


Sara sacudiu a cabeça energicamente. — Peter Hargraves pediu-me... que me casasse com ele, ontem à noite. E eu aceitei. Uma expressão de estupefação espalhou-se pelo rosto de Gideon antes que a raiva a substituísse. Colocou as duas mãos nas ancas de Sara e inclinou a cabeça até que a sua cara ficou a poucos da dela. — Não é um homem da minha tripulação. Por isso aceitou a proposta, porque não é um dos meus homens? Ou sente realmente algo por ele? Sara absorveu as últimas palavras, e a vergonha voltou a invadi-la. Sería difícil alegar que sentia algo por Peter quando tinha estado à beira de se entregar a Gideon. Mas aquela era a única resposta que conseguiria travar o capitão. Com as mãos trêmulas apoiadas no peito imutável de Gideon respondeu: — Eu... gosto dele. sim. — Da mesma forma que gostas de mim? Quando ela afastou o olhar, sem saber o que responder, ele agarrou-a pelo queixo e obrigou-a a olhar para ele. Apesar da tênue luz, Sara conseguiu ver o desejo que ainda fervia dentro dele. E quando Gideon voltou a falar, a voz dele denunciava a tensão da sua necessidade. — Não me interessa o que aceitaste ontem à noite. Agora tudo mudou. Não é possível que ainda queiras casar com ele, depois de ter reagido como reagiu às minhas carícias. — Foi um erro — sussurrou ela, tentando manter uma compostura fria para ignorar a chama de raiva que nascia dos olhos de Gideon. — Peter e eu fazemos um bom par. Já o conhecia antes, do Chastity. Sei que é um homem honrado, por isso quero casar com ele. Um músculo ficou tenso no queixo do capitão. — Não é um déspota, você quer dizer, não é? Não é um pirata perverso como eu, pronto para violar e saquear. — Separou-se da arca com um movimento brusco e dirigiu-se para as escadas. — Pois para que saiba, pense o que pensar, aquele tipo não é para você. E vou pôr fim ao vosso namoro absurdo imediatamente! De repente, Sara sentiu-se aterrorizada. Aquele homem era capaz de fazer qualquer coisa a Peter! Qualquer coisa! — Não! — gritou enquanto saltava da arca e corria atrás dele. — Não, Gideon! Não faça! Mas Gideon já ia a meio das escadas. Sara correu atrás dele, mas o vestido abriu-se pelo decote e os ombros ficaram nus. Parou para se recompor, contemplando angustiada como ele desaparecia pela escotilha. «Maldição!», pensou enquanto apertava os fechos do corpete. Se não subisse ao convés rapidamente, Gideon lançaria Peter pela borda fora ou faria algo pior. e não podia permitir que o fizesse. Peter era a sua única esperança para escapar, de maneira nenhuma ia permitir que aquele pirata sem piedade lhe fizesse mal! Peter acabava de descer do posto de guarda e acomodara-se no seu beliche, onde talhava uma imagem de um barco num pequeno pedaço de marfim envelhecido. O dormitório da tripulação estava deserto, visto que todos os homens se encontravam ou a namorar as mulheres ou a realizar as tarefas de vigilância. Por ele, estaria junto deles, a namorar com Ann. Mas isso era impossível, e o fato de saber que algum outro pirata estava naquele preciso momento a tentar ganhar o afeto dela, irritava-o. Por isso tinha escolhido a única via possível: fechar-se no dormitório, embora não agradasse nada pensar que a doce Ann Morris fosse uma mulher proibida para ele. De repente a porta do dormitório abriu-se, batendo contra a parede com tanta força que Peter quase caiu do beliche com o susto. Então apareceu o Lorde Pirata, furioso como um 89


demônio, com os olhos como duas brasas incandescentes e o rosto sulcado pelas cicatrizes e de raiva. Pousou o olhar sobre Peter com tanta violência que o coração do pobre marinheiro se encolheu. Peter levantou-se cautelosamente do beliche e rapidamente entrincheirou-se atrás dele para se proteger, quando viu que o capitão Horn avançava com grandes passos para ele. — Boa noite, capitão. Está tudo bem? O capitão agarrou-o pela camisa e elevou-o uns centímetros do chão até que o rosto de Peter ficou à mesma altura do seu. — Não pode tê-la. ouviu? Já não! Esquece-a! Peter sentiu um calafrio de pânico subir por cada uma das suas vértebras. Os joelhos e as pernas tremiam como gelatina. — A... quem se refere, capitão? — Você sabe a quem me refiro, inglês de merda. — Os olhos do pirata entrecerraram. — A menos que ela tivesse mentido quanto a ter escolhido você como marido. Ah, então o capitão Horn referia-se a isso. Peter engoliu a saliva. Que pesadelo... — A menina Willis não mentiu, capitão. eu... eu pedi que se casasse comigo, e ela aceitou. Enquanto o capitão deslizava uma mão desde a frente da sua camisa até à sua garganta e começava a apertar os dedos mais do que o necessário, Peter fechou o punho sobre a navalha. Se qualquer outro homem o tivesse agarrado pela garganta, Peter tê-lo-ia deitado ao chão ameaçando espetar a navalha nas tripas. Mas aquele era o capitão pirata. Tinha que ter cuidado com um louco de tal calibre. — Solte-o! — gritou uma voz atrás do capitão. Era Sara Willis, com o cabelo solto e despenteado, caindo-lhe pelos ombros e com a cara tão pálida como o bocado de marfim que Peter segurava na outra mão. — disse para o soltar! — Não se meta nisto, Sara! — ordenou o capitão imperiosamente, ao mesmo tempo que os seus dedos obstruíam mais a garganta de Peter. Agora Peter respirava com uma enorme dificuldade por causa da pressão que o pirata exercia no seu pescoço. Engoliu a saliva como pôde, tentando inalar ar através da pressão. Ignorando o aviso do capitão, a menina Willis colocou-se atrás dele e agarrou-o pelo braço. — está machucando! Solte-o! — Estou dando-lhe uma lição — rugiu capitão Horn. — precisa que alguém lembre a sua escala social, que neste barco está muito por abaixo do posto de grumete. — E é por isso que quer estrangular até o matar? — Sim, é por isso. E por se atrever a namorar contigo. — O capitão olhou para Peter com os olhos brilhantes. A respiração do pobre marinheiro era cada vez mais ofegante. — Não tem os mesmos direitos que os meu homens. Devia ter esclarecido antes. — Mas eu o escolhi! — Sara continuou a segurar o braço do capitão. — Disse que podíamos escolher os nossos maridos! E foi o que eu fiz! Escolhi o homem que queria! Um repentino e inquietante silencio inundou o camarote, rasgado apenas pelo ruído das redes ao som do movimento do barco. O capitão Horn alargou um pouco a sua garra sobre o pescoço de Peter, só um pouco, e virou a cabeça para olhar fixamente a menina Willis com olhos penetrantes. — Está dizendo que deseja realmente casar-se com um marinheiro de tão baixa posição? — Se a minha única outra alternativa é um pirata, sim! — rebentou Sara sem poder conter a emoção, mas ao ver que o capitão continuava sem afastar os olhos dela, acrescentou com mais firmeza: — é o que eu quero. E se negar o direito dele casar comigo, estará negando o direito que me concedeu. — inspirou profundamente. — Se só posso escolher um homem que a você pareça 90


bem, então não tenho o direito de escolher, não é verdade? O capitão olhou para ela com a testa franzida. De seguida, proferiu um palavrão bem alto enquanto empurrava Peter com tanta força que o pobre marinheiro foi cair de bruços no chão, enquanto a navalha saia da sua mão. Peter tentou recuperar o fôlego enquanto o capitão Horn se atirava sobre ele, com o olhar ressentido de um homem que acabava de receber uma pancada na cabeça com uma maça e que se preparava para despedaçar o seu agressor. Quando Peter viu que o pirata mexia os dedos e depois os fechava até formar um punho ameaçador, levantou-se de um salto e adotou uma pose de luta. Não queria lutar com o capitão, visto que a sua ideia desde o início tinha sido passar despercebido entre os piratas tanto quanto fosse possível. Mas agora percebia que não tinha outro remédio senão lutar com aquele titã, se queria manter-se – a ele e à menina Willis — a salvo. — Parem! — gritou Sara. — Parem imediatamente. Os dois! O capitão Horn ignorou-a por completo. Observando Peter com uma mistura de desprezo e de diversão, fez um sinal com um dedo. — Vamos, Hargraves, vamos ver se te atreve. Anda, estou à tua espera. Irritado com a atitude condescendente do pirata, Peter elevou a perna num movimento desenhado para tombar o adversário, mas de repente viu-se deitado no chão, de boca para cima, com o capitão de pé sobre ele. Um sorriso irônico desenhou-se no rosto do capitão enquanto este colocava o seu pé sobre o peito de Peter. — Muito bem, Hargraves. Uma manobra muito subtil. É uma pena que quem te ensinou a lutar dessa maneira não te ensinou a ignorar as provocações do teu adversário. A luta ao estilo japonês, requer que penses como um japonês, o que significa que não deve permitir que as tuas emoções te escureçam a cabeça. Peter olhou para ele estupefato. Nunca se tinha deparado com outro marinheiro que soubesse desses assuntos. Mas devia ter pensado que, se alguém podia saber, esse alguém seria o Lorde Pirata. Perante a surpresa de Peter, o capitão afastou de repente o pé e estendeu-lhe a mão. Peter hesitou um momento antes de aceitar a ajuda do homem para se levantar. Sara afastou o capitão com um empurrão e apressou-se a colocar-se ao lado de Peter, com o rosto perturbado enquanto passava as mãos delicadamente por cima dos braços e do peito do marinheiro. — Está bem? Não se machucou, pois não? — Não, menina; só me magoou no orgulho. — deu um sorriso brincalhão. — Não se preocupe comigo, é sério, estou bem. Então Peter reparou no olhar desconfiado do capitão Horn, e percebeu que estava a agir mais como um criado do que como um noivo. Passou a mão ao redor da cintura da menina Willis, ignorando a expressão surpresa dela, e olhou para o pirata que olhava para eles com interesse. — Que cena tão comovente. — a cara do capitão Horn demonstrava desconfiança e fúria contida. — e pensar que até agora não tinha percebido a grande paixão que existe entre vocês dois... — Tal como a menina Willis disse, foi ela que me escolheu. — Peter encheu o peito, tentando adotar uma postura protetora... um pouco tarde, infelizmente. — Ela provavelmente já contou como nasceu a amizade no Chastity. — Era a historia que ambos tinham acordado na noite anterior, apesar de terem percebido que muitos não acreditariam nela. E aparentemente, o capitão era um deles. — Sim, ela alegou algo parecido. 91


Alegou? Era evidente que aquele homem não acreditava neles. Então, o flagelo dos mares lançou à menina Willis um olhar lascivo e penetrante, fazendo-a tremer sob o braço de Peter. — Ela e eu também nos tornamos bastante amigos durante os dois últimos dias, não é verdade, Sara? Peter voltou seu olhar para ela, surpreendido ao ver como ela corava furiosamente, para em seguida baixar o olhar e cravá-lo nas suas mãos. — Não... não sei do que está falando. — Não, claro que não — grunhiu o capitão. — Devia ter pensado que uma hipócrita dama inglesa como você negaria a verdade acerca da nossa amizade. Bom, podes negá-la perante mim, e até podes negá-la perante o teu querido marinheiro. — baixou o tom de voz até a transformar num sussurro ameaçador. — mas vai custar imensamente negar a você própria. Com aquele comentário tão áspero, o capitão virou-se sobre os calcanhares e saiu com grandes passos do dormitório da tripulação, fechando a porta com força e deixando Peter com uma sensação de desagradável enjoo. Havia algo entre o capitão e a menina Willis, isso era mais do que óbvio. A menina Willis afastou-se de Peter. — Maldito canalha! Mas o que é que esse rufião pensou! Pela primeira vez desde que ela entrara no dormitório da tripulação, Peter observou o seu aspecto desalinhado. A modesta peça que brilhava sempre no peito tinha desaparecido, e um dos laços da blusa pendurava-se por fora do corpete. Ficou gelado, a observá-la fixamente. — O que é que quis dizer, com isso de vocês serem amigos? O que é que aquele pirata lhe fez? Por um momento Sara não pronunciou uma única palavra. — Nada que eu não tenha permitido fazer — murmurou por fim. Peter soltou um rugido. Se algum dia conseguisse tirar a menina Willis de toda aquela confusão, o seu meio-irmão iria matá-lo. — Então... tocou-lhe? Ele...quero dizer, já...? — Peter não sabia como continuar. Por todos os demônios. Como era possível que um pobre marinheiro como ele estivesse que interrogar a meiairmã de um conde com uma pergunta tão pouco delicada e insultante? Mas não precisou continuar. Pela forma como ela corou, adivinhou que tinha compreendido a pergunta. Sara ergueu os ombros e olhou para ele calmamente. — Não me... desflorou, se é isso que queres dizer. E não o fará. Nunca. — Quando Peter arqueou uma sobrancelha como resposta, ela acrescentou: — Não se preocupe comigo. Posso defender-me sozinha. — Já vi que sim. É por isso que tem o capitão colado nas suas costas como um gato de rua à caça da sua presa. Sara fulminou-o com um olhar de desprezo. — Posso tratar do capitão Horn, Peter. Concentre-se apenas em encontrar a maneira de fugir destes piratas sem piedade. Depois, Sara saiu precipitadamente do dormitório, deixando o pobre Peter a perguntar-se como raio se supunha que ia tirá-la daquele barco quando não podia mantê-la a salvo do Lorde Pirata... nem dela própria. Capítulo 12

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Oh, Inglaterra é doce com aqueles, que são ricos e gozam de uma elevada posição social, mas Inglaterra é cruel com os pobres como eu; e dificilmente voltarei a apreciar um porto como o da bela ilha de Aves, perto de Espanha. The Last Buccaneer, ANÔNIMO — O que acha? — perguntou Sara a Louisa, enquanto se encontravam de pé no convés observando o horizonte pouco depois do café da manhã, na manhã seguinte. Tinha passado quase meia hora desde que o vigia anunciara em voz alta «Terra à vista!», mas a única coisa que conseguiam ver era um bocadinho de cor castanha ao longe, no meio do mar cristalino. — Não sei. Ainda está muito longe para saber. Um enorme grupo de mulheres as rodearam, dando empurrões contra o varandim para poder obter uma vista mais privilegiada do que ia ser o seu novo lar. Ann Morris abriu caminho às cotoveladas e colocou-se ao lado de Sara, com os seus cabelos negros demarcando o rostinho corado e fascinado. — É aquilo ali? — Ann passou uma pilha de pratos de uma mão para a outra. – é Atlântida? — Não temos certeza — respondeu Sara, — mas é o que pensamos. Parece que o barco se dirige para ali. E o capitão disse que o trajeto duraria uns dois dias. Ann fixou toda a sua atenção no pontinho castanho. — Talvez devêssemos pedir a Peter que nos deixe dar uma vista de olhos com o telescópio. Aposto o que quiser em que ele é capaz de encontrar maneira de nos passar o telescópio. — Oh, tenho a certeza que se a menina Willis pedir, Peter não hesitará em satisfazê-la — disse Louisa com um tom ausente. — Agora que se vai casar com ele... O estrondo que os pratos provocaram quando caíram no chão fez com que Sara e Louisa se virassem para Ann rapidamente. a pequena mulher ficou olhando para a pilha de pratos partidos, com um punho apertado sobre a boca. — Ann? — disse Sara enquanto a galesa se inclinava para apanhar os pedaços quebrados e os colocava atrapalhadamente no seu avental. — Estás bem, Ann? — ajoelhou-se ao lado de Ann, que começara a chorar, com lágrimas grossas que rolavam pelas faces coradas. — Santo céu, o que é que aconteceu? — Nada — respondeu Ann, sem se atrever a olhar para Sara :. — Nada. Os pratos escorregaram das minhas mãos. — mas está chorando... A mão de Louisa sobre o ombro de Sara evitou de continuar a perguntar. Louisa inclinou-se para murmurar algo ao ouvido. — Deixe-a. Não devia ter feito aquele comentário diante dela, mas pensei que já sabia da notícia. — Que noticia? — Sara elevou a cabeça para perguntar. — De que você e Peter estão noivos, claro. Era verdade que Sara comunicara as notícias a tantas mulheres como pudera na noite anterior, quando saiu do dormitório da tripulação, mas não pensou que a notícia pudesse ser nefasta a nenhuma delas. Sara olhou para Louisa com a boca aberta, depois olhou para Ann, que tinha acabado de apanhar os últimos bocados da louça e agora levantava-se com a velocidade de um raio, com a intenção de se perder entre multidão. Foi então quando Sara compreendeu a verdade. Oh, como pudera ter sido tão cega? Não 93


tinha prestado atenção aos comentários sempre lisonjeadores de Ann acerca de Peter, ou às demonstrações da pequena galesa diante dele no Chastity. Ann estava apaixonada por Peter. E agora que acabava de saber do noivado entre ele e Sara, devia sentir-se mal. Provavelmente tinha feito planos de se casar com ele. Um terrível sentimento de culpa invadiu Sara com uma força devastadora. Engendrara um plano com Peter sem pensar se com isso podia ferir alguém. Pobre Ann. A crença de que Peter não partilhava os sentimentos da pequena mulher galesa não conseguiu aliviá-la, nem pensar que ele iria desaparecer de cana assim que encontrasse uma maneira de escapar da ilha. Não, não se sentiu mas aliviada. Ann nunca tinha possuído nada na sua vida, e agora, a única esperança para se agarrar iria desaparecer de repente. E a culpada era Sara, que a única coisa que quisera desde o início, era que aquelas mulheres fossem felizes. Sara observou como Ann entrava apressadamente na cozinha. De seguida levantou-se e voltou-se para Louisa. — Tu sabia que ela estava apaixonada por Peter? Louisa assentiu. — Mas não se preocupe. Eu percebo porque é que você e o Peter estão juntos, embora Ann não seja capaz de perceber. Entre este bando de pecadores, são os únicos que não são criminosos, ou qualquer coisa parecida. Não posso culpar Peter por não querer casar com uma prisioneira, e muito a culpo a si por não querer casar com um pirata. – encolheu os ombros. – normalmente, as pessoas tendem a procurar as pessoas da sua própria classe. Isso foi uma coisa que eu aprendi… há muito tempo. A tristeza na voz de Louisa fez com que se formasse um nó na garganta de Sara. Louisa nunca falara muito acerca do seu passado, mas Sara tirara as suas próprias conclusões. O homem a quem ela apunhalara era o filho mais velho de um duque. Fora muito fácil apaixonar-se de um homem assim, mas como preceptora, Louisa nunca teria podido sonhar casar com o herdeiro de um título nobre. No entanto, se estava realmente apaixonada por ele, o que é que aquele homem fizera para enfurecê-la tanto para o apunhalar? Uma simples recusa a casar-se com ela não parecia uma provocação suficiente para uma mulher com uma boa educação e a inteligência de Louisa. Devia ter acontecido mais alguma coisa, algo mais forte. Mas Louisa não era o tipo de mulher que falasse da causa da sua condenação como algumas das outras reclusas, pelo que Sara nunca insistira no assunto. Que pena. Como gostaria de ajudar. Ajudar Louisa... Da mesma forma que tinha ajudado Ann... Sem dúvida, Louisa ficaria melhor sem a ajuda dela. — Não vejo árvore nenhuma — comentou Louisa, obviamente determinada por dar o assunto por encerrado. Ainda abatida por aquela enorme sensação de culpa, Sara desviou o olhar para o horizonte. Agora o ponto convertera-se numa massa desproporcional parda, nada atraente. — é àquilo que Gideon chama de paraíso? — especulou em voz alta. Louisa observou-a com enormes mostras de curiosidade — Gideon? Trata pelo nome de batismo o nosso querido capitão? Um intenso rubor sufocante subiu às faces de Sara. — Não... queria dizer o capitão Horn. — Essa era outra questão pela qual também devia sentir culpada: o desastroso encontro com o capitão no dia anterior. Desde então, ele evitara-a, e com boas razões. Nunca devia ter permitido que tomasse aquelas liberdades. Certamente Gideon formara uma ideia absolutamente errada sobre ela. — Se fosse assim, eu não me aproximaria muito do capitão — avisou-a Louisa em voz baixa 94


e com um esgar premeditado. — Não tenho nenhuma relação com aquele homem. Louisa esboçou uma careta de incredulidade. — Perfeito. Então não se importará que ontem à noite tivesse enviado Barnaby ao porão à procura de Queenie para que a levasse ao camarote dele. Sara olhou para Louisa estupefata. — O que é que ele fez? — Você disse que não tem nenhuma relação com ele. Sara desviou o olhar para o horizonte e tentou esconder a sua raiva. — E não tenho. Só... só que me irrito saber que se atreveu a fazer uma coisa dessas quando ordenou os homens que se comportassem como cavalheiros até ao dia em que anunciassem os votos do casamento. «e depois de passar a tarde tentando seduzir-me», pensou. Apesar de todos as suas tentativas por manter a cabeça fria, os ciúmes invadiram-na. Levantou o olhar para onde Gideon estava manejando o timão e gritando ordens aos seus marinheiros, e observou-o atentamente. Embutido naquele casaco de pele escandaloso e naquelas calças tão apertadas, dava o aspecto do que realmente era: um cínico com vontade de seduzir qualquer coisa que usasse saias. Acertara ao não confiar nele. Porque apesar das suas doces palavras, as propostas fizera não eram sérias. Aquele tipo nunca tinha perseguido nada além de conseguir uma rápida sedução. E pensar que tinha estado quase se entregando a ele! Isso teria sido um erro enorme! Louisa encolheu os ombros. — É o capitão. Certamente não esperava que ele cumprisse as mesmas regras que estabeleceu para os homens dele. — Era precisamente isso que eu esperava — suspirou Sara. — aquele homem fala de constituir uma colônia e de converter num paraíso, mas o que na verdade quer é um harém para ele e para os seus homens. Quer converter-nos a todas numas prostitutas como Queenie. — Chisto! — disse Louisa. — falando do Papa de Roma... Sara disse a si própria que procuraria ignorá-la. Mas não conseguiu resistir olhá-la de lado para ver se tinha aspecto de ter passado a noite com o capitão. Não teve dúvidas a esse respeito. Queenie tinha passado a noite definitivamente com alguém. Sorria com ar de gatinha satisfeita enquanto pavoneava pelo convés em direção ao grupo das mulheres, e o seu rosto resplandecia literalmente um ótimo humor. — Booommm diiiaaa, a todasssss — saudou Queenie radiante. Espreguiçou os braços por cima da cabeça e bocejou exageradamente. — Huii, que pena ter-me levantado tão tarde esta manhã. Mas tive uma noite muuuito agitada. — Com uma graça que Sara desconhecia que aquela mulher possuísse, baixou os braços preguiçosamente, como se fossem um par de pétalas que acabavam de murchar, e de seguida adotou uma pose sedutora. — juro, meninas, não têm que se preocupar pelo tipo de maridos que hão-de ser aqueles piratas. A julgar pela noite passada, diria que não vos defraudarão… em nada, sinceramente. A maioria das mulheres desataram a rir às gargalhadas. Mas Sara não. Voltou a cara furiosamente para o horizonte e mordeu a língua para não soltar as palavras amargas que subiam pela sua garganta. Quem se interessava se Gideon se tivesse deitado com Queenie? Quem se interessava que aquela maldita prostituta tivesse agradado ao capitão foram feitos um para o outro. Queenie representava o pior das prisioneiras, e Gideon o pior dos piratas; formariam um par perfeito. Então Sara sentiu, mais do que viu, que Queenie abria caminho entre as mulheres até se colocar ao seu lado. Manteve os lábios fechados e continuou com o olhar fixo na ilha, agora mais 95


perto e maior. — É a ilha? — inquiriu Queenie, segurando-se ao varandim. — É Atlântida? — É o que pensamos — respondeu Louisa, para alívio de Sara. Sara não poderia ter respondido civilizadamente naquele momento em que sentia que a sua vida dependia daquilo. — Pois não parece — resmungou Queenie. — Não vejo nem uma árvore. E onde é que está a agua? Sara apertou os olhos para focar melhor a imagem que se abria diante dela. Queenie tinha razão. Não se via nenhum riacho, nem rasto de vegetação. Não, aquele lugar não podia ser o que Gideon denominava de um paraíso. E se na verdade o fosse, o capitão tinha uma estranha ideia do que era um paraíso. Um silêncio espectral abateu-se sobre todas as mulheres enquanto o barco se aproximava da ilha. «Depois de tudo o que estas mulheres tiveram de suportar, pelo menos Gideon deveria ter tido a decência de não as enganar mentindo sobre o que as esperava em Atlântida», pensou Sara. Enquanto continuavam a examinar a costa com interesse, o barco começou a virar para a direita. Ainda se dirigia para a ilha, embora agora parecia querer alcançar a ponta mais afastada. — Talvez não seja a ilha. — Aventurou-se a dizer uma das mulheres que estava de pé mesmo por trás de Sara. — apenas rodeamos esta ilhota e continuamos a navegar. — Não acredito — murmurou Sara, sentindo uma curiosidade crescente. — Se a quisessem evitar, não se teriam aproximado tanto. As mulheres precipitaram-se para o varandim com a intenção de obter uma panorâmica melhor da ampla extensão de erva morta e de rochas meio submersas. Estavam tão perto que até conseguiam distinguir as formas das gaivotas a voar entre os rochedos. O Satyr virou totalmente para a direita e começou a navegar paralelamente à ilha. Precisou de vários minutos para chegar ao extremo mais afastado da Atlântida. A ilha era maior do que esperavam. Mas quando o barco passou a ponta e começou a oferecer-lhes uma vista do outro lado da ilha, as mulheres proferiram em uníssono um grito abafado de espanto. Aquele lado era tão verde e com vegetação tão frondosa como o outro lado era seco e árido. os coqueiros alinhava-se na areia dourada da praia, e por trás das palmeiras nascia uma verdadeira selva exuberante de árvores exóticas misturados com vinhedos e um espesso matagal que se estendia pela colina até à zona mais alta da ilha, um pico que parecia entrar na terra ao longo de vários quilómetros. Então avistaram umas cabanas, todas diferentes, mas todas construídas com teto de cânhamo, aglomeradas na zona do bosque que ladeava a praia. Também viram um porto num dos extremos da lagoa natural, suficientemente amplo para acomodar o Satyr. Havia outro barco atracado na ponta mais afastada, uma corveta com metade do tamanho do Satyr, obviamente ainda em uso e provavelmente ainda capaz de carregar uma carga considerável. O barco começou a navegar mais devagar, e Sara descobriu um riacho de águas prateadas que ia morrer no mar. ao seu lado haviam um par de carruagens de madeira muito rústicas, que seguramente os piratas deviam usar para carregar os contentores de água. Até viu uns sulcos muito marcados ao longo da praia que devia ser a via que utilizavam para arrastar a carruagem. Um paraíso. Tinha que admitir. Aguas cristalinas de um azul intenso cheias de peixes tropicais, frutas de cores vivas penduradas nas árvores, e um clima quente e agradável. Sim, nada menos que um paraíso terreno. O som da madeira a chocar contra outros troncos tirou-a da sua distração. Tinham chegado ao porto. Os homens começaram a soltar a pesada ancora e a segurar o barco atando-o aos postes recém cortados, e as mulheres começaram a lançar suspiros enquanto apontavam para todos os 96


lados e falavam sobre o novo lar com uma patente excitação. — O que parece, senhoras? — ouviu-se uma voz atrás delas. — Cumpre as vossas expectativas? Um coro de mulheres desfez-se em elogios sobre a ilha, por sua vez Sara apertou mais os lábios. Gideon. Não demorara muito tempo depois de atracar o barco para vir gabar-se da sua preciosa ilha. Maldito pirata. Esteve quase gritando furiosamente que metesse o seu paraíso onde ele quisesse. Da sua posição elevada, Gideon contemplou as costas rígidas de Sara, perguntando-se que bicho tinha picado agora para se mostrar tão zangada. Tinha suposto que Sara se mostraria gratamente surpreendida com os encantos da ilha, não furiosa. «Mas pode-se saber porque me preocupo? Decidiu casar com o maldito Hargraves. Pois que assim seja», reprovou a ele próprio, envolto numa sensação de amargura ao ver que ela se negava a olhar para ele e a dirigir-lhe a palavra. O problema era que não pensava permitir que Hargraves a tocasse. Sabia que Sara era uma maldita alvoroçadora, com uma língua capaz de arrancar as santolas mais agarradas do casco que qualquer navio, mas não conseguiria esquecer a maravilhosa sensação que experimentara ao abraçá-la e beijá-la; como, durante só uns breves momentos, ela derretera-se docemente entre os seus braços. Maldita mulher... Por culpa daquele tipo de pensamentos tinha ficado acordado metade da noite, até que por fim chamou Queenie, mas rapidamente a ofereceu a Barnaby quando percebeu que aquela prostituta não era o que ele queria. Como se Queenie tivesse ouvido os seus pensamentos, aproximou-se dele e agarrou-o carinhosamente pelo braço. — Bom dia, capitão. Espero que esta manhã esteja tão bem como eu. Gideon olhou para Queenie incrédulo. A última vez que a vira, esta ficara a praguejar porque ele não queria deitar-se com ela. Fora necessária a intervenção dele e de Barnaby para a convencer a sair do camarote do capitão, depois do infeliz erro que Gideon cometera ao pedir que a chamassem. E a que brincava agora? Sabia que aquela mulherzinha tinha passado a noite com Barnaby, e a julgar pelo sorriso radioso do primeiro-tenente e da expressão de prazer que ela exibia, tinham passado a noite muito bem. O que pretendia agora, com aquele teatro com ele? Então Queenie olhou para Sara, que continuava de costas viradas, com uns olhos descaradamente provocadores, e Gideon compreendeu tudo naquele momento. Era evidente que Sara tinha sabido que ele chamara Queenie. E Queenie fizera Sara acreditar que tinha passado a noite com ele. Então… era por isso que Sara se negava a olhar e a falar com ele! Estava aborrecida por causa de Queenie. Tal pensamento deu-lhe uma imensa satisfação. Apesar de Sara ter garantido que não gostava dele, estava com ciúmes de uma miserável prostituta porque acreditava que ele se tinha deitado com ela. Depois pensou e moderou o entusiasmo. Sara podia estar apenas a fingir uma repulsa moral pela sua suposta lascívia. Claro, muito próprio de Sara, mostrar-se condescendente com ele para não se sentir culpada por tê-lo posto tão quente... e por ter negado a sufocar aquele ardor que ela tinha provocado. Enquanto Queenie se colava mais ao seu lado direito, Gideon observou Sara pelas costas. Maldita víbora. Não direito de zangar-se. Ele não tinha feito nada do que tivesse que se envergonhar e, mesmo que tivesse, toda aquela confusão era por culpa dela, por tê-lo excitado tanto. Gideon afastou Queenie levemente, mas depois parou. Porque tinha que fazer? Se Sara estava com ciúmes, seria muito divertido ver como saboreava a mesma amargura que ele sentira 97


no dia anterior quando a viu a fazer carinho em Hargraves, como uma galinha apaixonada pelo seu galito. Talvez então ela admitisse que não queria casar com aquele marinheiro tão feio. E se os ciúmes não eram motivo do seu patente aborrecimento, pelo menos ele ficaria feliz por mostrar a sua lascívia no rosto de Sara. As outras mulheres tinham desaparecido. Tinham-se apressado a pisar a terra firme, ajudadas pelos piratas, determinadas a explorar a ilha. Apenas Sara ficara apoiada no varandim. Gideon sorriu ironicamente enquanto rodeava Queenie pelo ombro com o seu braço forte. Então disse suavemente: — Bom dia, menina Willis. O que acha da nossa ilha? Ela virou-se para olhar para ele e empalideceu quando o viu agarrado a Queenie. Mas depressa recuperou a compostura. — Fantástica. — a voz dela ficara mais grave, denunciando uma ácida tolerância. — é o lugar ideal para você e para os seus lascivos companheiros, para que se sintam em casa com aquelas mulheres a quem obrigaram a ser suas amantes. Um leve sorriso apareceu nos lábios de Gideon. — Quer dizer que nos sintamos em casa com as nossas futuras esposas, não é? E garantolhe que nem todas se sentem obrigadas. — Lançou um ávido olhar aos monumentais seios de Queenie. — Algumas delas sentem muito felizes por estar aqui. A expressão no rosto de Sara não deixava margem para dúvidas. Gideon teria apostado o seu barco em como estava com ciúmes, embora soubesse que ela nunca o admitiria, nem mesmo a ela própria. Em seguida, Sara ergueu o queixo altivamente e comentou numa voz doce: — Algumas daquelas mulheres não têm respeito por elas próprias. Não me refiro àquele grupinho pequeno; depressa ficarão com consciência. Queenie deu um passo em frente, visivelmente ofendida. — Um momento... mas quem é que você acha que é, brux...? — Já chega, Queenie. — Gideon afastou o braço do ombro dela. — Porque não vai com o resto das outras mulheres? Quero conversar umas coisas com a menina Willis. Por um segundo ele pensou que Queenie ia recusar, mas aparentemente ela decidiu que não era uma batalha que valesse a pena lutar, porque encolheu os ombros e afastou a mão da cintura do capitão. — Se é isso que o senhor quer... morro de vontade de ver se as camas na ilha são tão cômodas como as camas em alto mar. E com aquele comentário mordaz, desceu alegremente até ao convés, abanando as ancas provocantemente. Gideon olhou de novo para Sara e, divertido, viu como fulminava Queenie com um olhar assassino enquanto esta se afastava. Sem se conseguir conter, soltou uma gargalhada. — Não gosta de Queenie, pois não? Sara penteou o cabelo com uma mão e virou-se furiosamente determinada a sair dali. — Não gosto nem deixo de gostar. E agora, se me perdoar, capitão Horn… Não conseguiu acabar a frase, porque ele agarrou-a violentamente pelo braço e obrigou-a a parar. — Não sente um pouco de curiosidade, Sara? Não interessa saber a minha opinião sobre como Queenie se portou ontem à noite? — Claro que não! — Uma fogueira vermelha espalhou-se pelas faces dela. — Solte-me! Gideon deslizou um braço ao redor da cintura dela e inclinou-se para ela para lhe sussurrar: 98


— Não quer saber o que fizemos juntos? Se a beijei como beijei a você? Se acariciei os seios e aquele lugar secreto entre as pernas...? — Cale-se! — o corpo dela tremia, colado ao de Gideon. — Deixe de dizer essas coisas! A expressão dela denunciava uma tristeza tão intensa que ele não conseguiu continuar a torturá-la por mais tempo. — Não a toquei, se queres saber. — a confissão escapou dos lábios dele antes que pudesse fazer alguma coisa para evitar. — passei-a para Barnaby sem a beijar sequer. Sara ficou tensa. — Não... não me importa o que fizeste com ela. Sinceramente, é um assunto só teu. Mas pela sua voz aliviada, ele sabia que Sara mentia. — Só quero a ti — continuou Gideon. — E será minha; custe o que me custar, será minha. O capitão dizia a verdade. a noite anterior tinha aprendido uma coisa: não conseguia imaginar outra mulher na sua cama que não fosse Sara. Tinha que fazer amor com ela, nem que fosse apenas uma vez. Devia fazê-lo, se com isso conseguisse afastá-la dos seus pensamentos. — Não... não serei tua — respondeu ela, gaguejante. — Estou noiva de outro homem. — Não me interessa. — depois das longas horas de insônia que tinha passado pensando nela na noite anterior, assumira aquela decisão: teria que a seduzir para afastá-la de Hargraves. — Será minha, apenas minha. E vou consegui-lo rapidamente. Não tenha a menor duvida. Capítulo 13 Oh! Como demora em acabar com a liberdade de uma mulher! Primeiros diários de viagem e cartas de Fanny Burney, romancista inglesa Sara só precisou de andar duas horas pelas praias de Atlântida para admitir, relutantemente, que o amor que Gideon professava por aquela ilha estava mais que justificado. A cada passo, os seus sapatos enterravam-se numa areia branca tão fina como pó. O ar cheirava a um aroma intenso, parecido ao do inverno de Londres o qual tinha entrado por acaso durante uma festa da alta sociedade. E as cores...! Rosas e amarelos brilhantes pintavam o bosque de salgueiros e carvalhos centenários. Barnaby explicara que embora a ilha estivesse situada nos trópicos, os ventos provenientes do sul e as frias correntes do Atlântico Norte ajudavam a manter a temperatura temperada, o que permitia que crescessem grupinhos de laranjais e de limoeiros entre as palmeiras e bambus. Segundo Barnaby, ali quase não existia o inverno, e os verões eram muito suaves. Isso explicava a exuberância da flora, mas e a diversidade da fauna? Até àquele momento, Sara tinha visto alguns coelhos e cabras montesas nos promontórios mais elevados. Tartarugas gigantescas passeavam preguiçosamente pela praia, e por onde passava, descobria faisões e galos da índia, que apareciam de repente entre os arbustos. Perguntou-se se aquelas aves eram autóctones ou se algum colonizador se animara a trazê-las em tempos memoriais. O que transformava aquele pequeno pedaço de terras num paraíso de uma ponta à outra? Bom, de uma ponta à outra, não; Sara lembrou-se da extensão árida e perda que tinham visto ao aproximarem-se da ilha. Quando perguntou a Barnaby sobre aquele assunto, ele explicou que se tratava do resultado de um estranho fenômeno atmosférico. Os ventos do sul que batiam contra a ilha naquele clima aprazível eram os mesmos que fustigavam contra o outro lado da ilha, açoitando-o com fortes rajadas de vento constantemente. Visto que o lado tão pouco atraente era o que os barcos que faziam a rota comercial avistavam, não parecia surpreendente que ninguém se 99


tivesse decidido a viver naquele lugar. Um ou outro barco que se tinha afastado da sua rota por causa do vento descobrira o outro lado de Atlântida, mas só tinha parado para recolher provisões e depois levantara ancora e desaparecera. A ilha era como um antigo jardim do Éden escondido num lugar onde ninguém podia encontrá-lo. Ninguém exceto Gideon, claro. Quem mais senão ele iria descobrir uma maravilha como aquela. Sara olhou furtivamente para o lugar da praia onde estava o capitão, vestido apenas com umas bermudas e com o sabre pendurado no seu cinturão. Gideon esticou o braço e agarrou um ramo carregado de frutas amarelas do que parecía ser uma estranha espécie de palmeira, com brilhantes folhas verdes e planas. Uma bananeira, era assim que chamavam. Observou como ele empunhava o sabre e o usava para cortar o cacho da árvore com um golpe letal. Enquanto Gideon retorcia cintura para depositar a fruta cortada numa carroça carregada até ao cimo daquelas exóticas frutas de cor amarela, Sara viu como se dobrava e esticava cada um dos seus músculos; também reparou na fina capa de suor que brilhava sobre o pêlo escuro do peito dele. Nesse instante, ele virou o rosto para ela e os olhares encontraram-se. Os olhos dele eram corajosos e impenetráveis, e ela notou a força do seu olhar como um sussurro sensual, sobre a sua testa... as suas faces... as ancas. Um repentino calor demasiado familiar invadiu-a, e sentiu um incómodo rubor nas faces. Que vergonha que ele a tivesse apanhado a observá-lo. Afastou-se dele, não sem antes perceber, durante um momento, como a boca daquele maldito canalha se curvava num ligeiro sorriso. Por todos os santos, aquele homem era um perigo andante para qualquer mulher! E ela, precisamente ela, deveria ser imune a ele, depois de ter conhecido tão grande número de delinquentes nas suas atividades reformistas. Sabia que havia de tudo na vinha do Senhor, então porque tinha que ser um pirata sem piedade o homem que a fazia corar e sentir aquele tremor nas pernas como se fosse uma menina ingênua saída do colegio? Sara sempre demonstrara ser demasiado pragmática com aquele tipo de palermices, à exceção do coronel Taylor, e mesmo com ele não tinha chegado a perder completamente o juízo da forma como o fizera com Gideon. Apesar de se ter precipitado para a praia determinada a afastar-se dele, não conseguiu ignorar o calor que nascia nas partes mais íntimas do seu corpo. Não tinha dúvidas: Gideon pertencia àquele jardim do Edén. Estava feito com um material tão tentador como Adão devia ter estado. Deus não fora invejoso quando decidira criar Gideon Horn. Isso era mais do que óbvio. De fato, Sara perguntou-se se Deus não teria exagerado, esmerando-se tanto naquela criação. O Senhor deveria ter dado àquele homem algo mais útil do que um aspecto tão atraente e umas artes tão sedutoras. Humildade, por exemplo. Tentou imaginar um Gideon humilde, mas foi impossível. Isso até seria impossível para os excelsos poderes imaginativos de Deus. Então avistou Louisa, sentada num tronco caído a poucos metros onde acabava a praia e começava a mata. Sara apressou-se para ela. — Do que está rindo? — resmungou Louisa. — Não, não me diga. Já caiu na influência sedutora que esta ilha exerce. «Sedução» era um bom termo para a descrever, pensou Sara. — Não é o que esperava, pois não? Vamos, admita. — Pelo contrário! é exatamente o que esperava! Já viu estas barracas? Sãn os habitáculos mais horrendos que um homem pode imaginar! Não têm persianas... o chão é de simples madeira… o teto é feito de palha. A única coisa positiva que têm são aquelas camas de penas, que parecem muito cômodas, admito. Mas que outra coisa se poderia esperar de um monte de piratas? 100


Claro que se preocupam que a sua cama seja cômoda; isso é tudo em que pensam. Homens! a rústica cozinha que Silas tem utilizado é tão primitiva quanto... — Silas? Olha, olha. De repente, parece que usa um tom muito familiar com o senhor Drummond. Louisa conteve a respiração e baixou a cabeça. — Que seja. Silas... quero dizer... o senhor Drummond e eu aprendemos a... nos toleramos mutuamente. Finalmente percebeu que precisava da minha ajuda, mas é apenas isso. A sua ajuda? A ajuda de Louisa tinha consistido em entrar na cozinha do pobre homem e ignorar qualquer tentativa do pirata para recuperar o poder. Se ele tinha aprendido a tolerar isso, então era um homem mais interessante do que Sara tinha pensado. — Bom, tenho que admitir que a comida melhorou consideravelmente desde que você ofereceu a tua ajuda. E tenho a certeza de que, com um pouco de esforço da nossa parte, conseguiremos que as cabanas se transformem numas casas adequadas. — Éssa é a única razão pela qual ele nos trouxe aqui, para limpar, cozinhar e remendar a roupa. — Oh, não, querem muito mais do que isso — disse Sara com amargura, lembrando-se do olhar confiante e sedutor de Gideon. Louisa ergueu as costas. — Tem razão; querem os nossos corpos, também. Pois a mim ninguém me vai pôr as mãos em cima; primeiro terão que me atar ao tronco de um árvore. — Não diga em voz alta; poderia dar idéias. — Sara olhou ao seu redor e observou algumas das mulheres que já tinham escolhido par. — Lamentavelmente, tu e eu não poderemos fazer valer o nosso desejo de continuar solteiras. Louisa observou-a, com curiosidade. — Mas você também já escolheu marido. Não se lembra? Sara revirou os olhos e reprovou-se a si própria por ter falado demais. — Ou já mudou de opinião e decidiu deixar o Peter para Ann? A sensação de culpa voltou a fazer presença. Pobre Ann. — Onde é que está a Ann? — perguntou Sara ignorando a pergunta de Louisa enquanto a procurava entre os grupos de homens e mulheres. Propusera-se ir conversar com ela antes, para tentar corrigir as coisas entre ela e Peter, mas ao começar a explorar a ilha voltara-se a esquecer das suas boas intenções. Louisa assinalou com a cabeça para o riacho que não estava muito longe delas. — Vi-a passeando por ali há uns minutos. Creio que queria estar sozinha. — Entendo. — Sara lançou um olhar preocupado para os dois lados do riacho e estremeceu quando não viu a mulher galesa. — É melhor ir dar uma olhada. Não deveria vagar tão longe do resto da comunidade. Ainda não conhecemos a ilha. Pode sofrer um acidente. — Como queira. Se não se importa, eu regressarei àquela diminuta pocilga que os piratas se empenham em chamar de cozinha. Depressa será hora do jantar. Os piratas mataram o vitelo mais gordo em nossa honra, bom, de fato é um javali com muita carne, e se deixar que Silas se encarregue de o cozinhar, aquele homem é capaz de torturar o pobre animal até o transformar no prato mais incomestível e duro que uma pessoa pode imaginar. Com aquele comentário, a jovem levantou-se e perdeu-se pelo mesmo caminho por onde tinham vindo, deixando Sara embriagada na intenção de trepar sozinha pelas pedras escorregadias do riacho. No momento em que começou a subida, percebeu que as suas botas, tão boas para passear pelas cobertas brilhantes do Satyr, não eram úteis para subir pelas pedras que 101


existiam no riacho. Precisou de se esforçar muito para não perder o equilíbrio enquanto agarrava a saia por cima dos tornozelos, e estava tão concentrada em procurar não cair que não ouviu as vozes suaves de um casal jovem que conversava entusiasmadamente no bosque até estar quase em cima deles. Então parou de repente, e aguçou o ouvido para ouvir melhor. Rapidamente descobriu a voz doce de Ann, seguida de uma profunda voz masculina. Por todos os santos, seria um daqueles homens abomináveis a aproveitar-se dos problemas sentimentais que Ann atravessava? Sara não ia tolerar. Ann já tinha passado o suficiente. Sara afastou com uma mão o mato espesso que se estendia ao longo da margem do riacho, e de repente encontrou-se numa clareira. O casal diante dela, derretido num abraço apaixonado, separou-se assustado. E para sua surpresa, Peter era o homem abominável que apertava Ann entre os seus braços. Sara ficou a observá-los com a boca aberta. — Oh... des... desculpem... pensei... Estava preocupada... — virou-lhes as costas, com o rosto corado. — Perdão. Se me desculparem, vou regressar à praia... — Espere! — chamou-a Peter quando ela já tinha começado a andar. Sara ouviu o ruído da folhagem por baixo das botas de Peter. — Por favor, menina Willis. Deixe-me explicar-lhe... Sara sacudiu a cabeça enquanto continuava a andar. — Não tem que me explicar nada. — mas desta vez ele conseguira alcançá-la. Agarrou-a pelo braço, obrigando-a a parar. — Escute, por favor. — Quando Sara elevou os olhos para olhar para ele acrescentou: — contei tudo a Ann... Sobre porque é que vou casar consigo e quem é você. Expliquei que trabalho para o seu irmão. Tinha que fazer. — Por favor, não o culpe a ele — rebentou Ann. Quando Sara olhou para ela, sentiu-se alagada por uma tremenda tristeza ao ver o nariz e os olhos vermelhos da jovem. Ann continuou a soluçar. — Eu... vim para aqui, sozinha, porque... bem... — Estava chorando — interveio Peter. — vi-a afastar-se do grupo e fiquei preocupado, pensando que poderia machucar-se, então segui-a e encontrei-a sozinha sentada naquele tronco, a soluçar. — olhou para Ann ternamente. — Ela achava que você e eu estávamos apaixonados. Não podia permitir que continuasse a acreditar, não quando isso lhe partia o coração. — baixou o tom de voz até a converter num sussurro. — Especialmente quando não é verdade. O olhar que Ann e Peter trocaram foi tão meigo que Sara sentiu um nó na garganta. De repente desejou ser ela e Gideon quem partilhava aquele tipo de olhar. Tão depressa como pensou, soltou um rugido. Gideon? Pois! Aquele homem não sabia nada sobre afeto ou ternura. Tudo o que queria era deitar-se com ela, e desejava-a tanto porque ela se negava a entregar-se a ele. No fundo era como uma criança que invejava os brinquedos do vizinho. Ann observava-a atentamente. — Já que Peter me contou tudo, menina Willis, compreendo o que tem que fazer. Sinceramente, eu compreendo. — o esclarecimento soava mais como se ela se estivesse a tentar convencer a si própria em vez de Sara. Baixou o olhar e alisou a saia com as mãos gordinhas e suaves. — Não tem outra escolha. O Peter tem que casar contigo para a salvar dos piratas. Eu compreendo. «Para a salvar dos piratas.» Ann não tinha dito nem uma palavra sobre o seu próprio sacrifício, sobre salvar-se a ela dos piratas. Apenas aceitava a ideia de que Sara era evidentemente alguém mais importante, um ser superior, que merecia mais protecção do que ela. 102


Sara nunca tinha sentido tanta aversão por si própria, nem tinha sido tão consciente da enorme injustiça do sistema inglês em relação à classificação de classes. Ali à frente tinha uma mulher à qual tinham roubado todas as possibilidades de ser feliz na vida, uma mulher cujo único crime consistira em roubar para poder comprar os remédios que a mãe precisava. Perdera a sua liberdade e a mãe antes de ter idade suficiente para arranjar marido ou ter filhos. Finalmente tinha encontrado um homem de quem gostava, um homem que correspondia seus sentimentos. E agora iam-lho tirar pela razão mais fútil que uma pessoa podia imaginar: para que Sara pudesse enfrentar o suposto escândalo se algum dia conseguisse escapar de Gideon e dos seus homens. Que ofensa. Apesar de falar tanto sobre justiça e igualdade, Sara aceitara implicitamente o sacrifício de Peter como se fosse a coisa mais lógica do mundo, sem pensar sequer no que realmente queria. Bom, pois acabara. — Peter não vai casar comigo. — a voz de Sara era firme. — Se eu soubesse o que vocês sentiam um pelo outro, não teria aceitado o seu plano. Agora que sei, não consigo continuar com esta farsa. — Mas menina... — começou Peter a dizer. — É a minha última palavra, Peter. Não sabemos o que acontecerá no futuro, e não vou obrigar você a casar comigo quando ama outra mulher. — Peter abriu a boca para protestar outra vez, mas ela cortou-o. — temos que ficar neste lugar durante muitos anos. Quem sabe. É um absurdo agir como se isto fosse acabar um dia destes. O rosto de Ann iluminou-se com um olhar esperançado, mas Peter cruzou os braços sobre o peito teimosamente. — E o que acontecerá com o Lorde Pirata? Ele deitou-lhe o olho; sei que se achar que você está livre... — Eu trato desse assunto à minha maneira — teimou Sara, esperando soar mais zangada do que na realidade se sentia. — Não, não concordo — resmungou Peter, que percebeu que o olhar esperançado no rosto de Ann tinha desaparecido. Aproximou-se mais dela e passou-lhe o braço pela cintura. — Não é que não queira casar-me contigo, querida. Só que tenho que cumprir o meu dever com a menina Willis. Sara suspirou. Peter nunca daria o braço a torcer enquanto pensasse que ela necessitava de proteção. E de fato, o capitão tinha deixado bem claro naquela manhã que tinha a intenção de seduzi-la, custasse o que custasse. Sara ficou tensa. Talvez pudesse utilizar aquilo a seu favor... — Já sei o vamos fazer. Podemos usar a teimosia de Gideon contra ele. Apesar de tudo, disse-me que fará o que for preciso para me conseguir. — Quando é que ele...? — começou a perguntar Peter. — Oh, isso não importa. — Sara apressou-se a responder. — a questão é que enquanto eu insistir em escolher a você, ele não me pode obrigar a escolhê-lo. — as suas palavras saíram da sua boca antes de acabar de imaginar a sua ideia por completo. — Claro, quanto mais eu resistir, mais probabilidades ele terá de atrasar a obrigação das mulheres escolherem marido, até que eu escolha a ele. E visto que esse dia nunca chegará, poderemos brincar com ele eternamente. — Eternamente? — a voz de Peter denunciava ceticismo. — desculpe, menina, mas não acredito que o Lorde Pirata fique à sua espera toda a vida. É teimoso demais. Que grande verdade, pensou ela. — No entanto, tudo o que precisamos é de ganhar tempo para organizar um plano, para encontrar a maneira de fugirmos, todos. — Sara deu ao casal um olhar cheio de carinho. — Pelo 103


menos, a minha ideia é melhor do que obrigar vocês os dois a ter que suportar uma situação insustentável. — Olhou para Ann. — o que acha? São capazes de fingir que não estão apaixonados diante dos outros? Ann assentiu efusivamente com a cabeça várias vezes seguidas. Era evidente que aquela moça faria qualquer coisa para continuar com Peter. — Perfeito. Então, é o que vamos fazer. Peter apertou o braço ao redor de Ann. — E se o pirata nos surpreende? E se ele se cansar de esperar por você e olhar para outra moça? E se dentro de uma semana decide negar às mulheres o direito a escolher marido? Então, e depois? — Então os dois casam, e eu defenderei o melhor que puder. — Quando Peter fez uma careta de desacordo, ela acrescentou em voz solene: — Sabe que é a única coisa que podemos fazer, Peter. Quer mesmo que Ann acabe nos braços de outro homem qualquer sem o seu consentimento? Porque é isso que o Gideon fará se ela não escolher marido. O argumento dela pareceu convencê-lo. Com uma voz rouca que denunciava o alívio que sentia, Peter concordou com o plano dela. — Bem. E agora porque não regressam antes que alguém perceba que desapareceram? E é melhor que se separem antes de chegar à praia. — Não vem connosco? — perguntou Peter. — Não, vou ficar aqui mais uns minutos. Quero explorar um pouco a área. Peter adotou uma aparência contrariada, como se fosse protestar, mas Sara olhou para ele zangada e ele limitou-se a encolher os ombros. Depois conduziu Ann para o riacho. A verdade era que Sara não estava preparada para ver Gideon novamente. Os olhos daquele pirata pareciam capazes de desvendar a verdade através da pose civilizada que ela tentava exibir, para demonstrar a pouca proteção que tinha, quando estava perto dele. Ainda estava se recuperando da confissão dele daquela manhã: que tinha recusado Queenie porque desejava a ela. Sara precisava de estar uns minutos sozinha para se preparar bem, com a finalidade juntar todas as suas forças e astúcia para as batalhas que ele a obrigaria lutar. Uns minutos, não era pedir muito. Mas devia ter percebido que Gideon nem isso permitiria a ela. — Formam um lindo casal, não acha? — comentou uma voz masculina e grave nas costas dela. Sara assustou-se. — O quê? — virando-se com a velocidade de um remoinho, viu o aborrecido objeto dos seus pensamentos de pé, sob um robusto carvalho que havia mesmo na ponta da clareira. No mesmo instante, o seu coração acelerou-se até bater a um ritmo frenético. Há quanto tempo é que estava ali? O que tinha ouvido? Sabia o que ela e Peter estavam planejando? — Quem... quem é que forma um li... lindo casal? — gaguejou Sara, tentando recuperar a calma enquanto estudava o rosto do pirata para obter alguma pista acerca do que tinha ouvido. Como era costume, Gideon conseguiu esconder os seus pensamentos com uma espantosa perfeição. — Ann Morris e Peter, quem mais havia de ser? — apoiou-se no tronco do carvalho, com um olhar irritantemente confiante. — acabo de os ver, a descer pelo riacho. Os débeis raios de sol que atravessavam os ramos davam ao seu cabelo negro uns belos reflexos dourados. Além disso, usava os calções descidos até à altura das ancas, deixando ver uma boa parte do seu ventre aveludado e musculoso. Se não fossem aqueles calções, Gideon teria parecido a imagem do primeiro Adão, com aquele corpo tão fibroso e a pele bronzeada. Sara 104


imaginou-o nu, com uma folha de figueira nas partes mais intimas, mas depressa ralhou consigo própria por ter aquele tipo de pensamentos. Afastou o olhar daquele corpo tão espectacular e olhou para a parte do bosque pela qual Ann e Peter tinham desaparecido. Oh, quanto gostaria agora de ter ido com eles. Dessa forma não teria que mentir acerca do casal a um homem meio nu que despertava nela aqueles pensamentos pecaminosos, tão impróprios de uma dama. — Ah, sim… a Ann e o Peter, são bons amigos. Ele vê-a como a uma irmã mais nova. Vela muito por ela. Gideon separou-se do carvalho. — Da mesma forma como vela por ti? — Sim, claro — balbuciou Sara, e de seguido corrigiu-se. — Não, quero dizer, não exatamente. Os sentimentos dele por ela são mais... mais fraternais. — Fraternais? — Gideon aproximou-se. As botas não faziam ruído sobre o manto de folhas e de mato que cobria o solo do bosque. Com ceticismo continuou: — é uma pena que ele não se sinta atraído por ela naqueles... digamos, naqueles termos. Sara olhou para ele perplexa. Maldito, como é que ele sabia? Perante o olhar de surpresa dela, Gideon encolheu os ombros. — Ann adora Hargraves. Disse-me ela própria há umas noites. Até fiquei com a impressão de que ela sonhava em casar com ele. — Gideon apertou os olhos e dedicou-se a estudar o rosto dela. — Deve ser horrível para ela, ver Hargraves contigo. Às vezes Gideon era perceptivo demais para o seu próprio bem. Sara esboçou um esgar de indiferença, embora notasse o pulso prestes a rebentar. Não podia permitir que ele descobrisse a verdade! — é evidente que não compreendeste bem o que Ann te disse. sinceramente, Gideon, ela vê o Peter como se fosse um irmão. Tenho a certeza absoluta. — Então, como é que ele a acompanhou até à praia, e não acompanhou a ti? Sara engoliu a saliva. A conversa estava cada vez mais complicada. — Eu disse-lhes que... que queria estar sozinha. — Pelo menos, isso era verdade. — Depois de tantos dias encerrada num barco com dezenas de pessoas, precisava de espaço para respirar. Tenho certeza que me compreendes. Com todas as exigências das mulheres e com as crianças sempre fazendo perguntas sem parar, percebi que já não aguentava mais. Refiro-me aos dias e dias de... — calou-se de repente. Por todos os santos, estava a falar como uma cotovia, e sempre que começava a falar assim, Gideon suspeitava que ela mentia. Sara olhou para ele incisivamente, mas ele não parecia prestar-lhe atenção. O olhar dele tinha-se desviado para um ponto por cima do ombro direito dela. — O que foi? — perguntou Sara, enquanto começava a virar-se. — Não se mexa! Apesar do capitão ter dado a ordem em voz baixa, pronunciou as palavras com tanto ímpeto que ela obedeceu sem hesitar. Quando a expressão dele se tornou taciturna e continuou com o olhar cravado num ponto por cima do seu ombro, Sara teve um desagradável calafrio de medo a percorrer-lhe as costas. — Diga o que se passa, Gideon — pediu ela, com a voz tão baixa como a dele. — Escuta com atenção, e não tenha medo. — Com os olhos ainda fixos naquele maldito ponto atrás dela, ele ergueu lentamente a mão direita até ao punho do sabre. — Do que é que não devo ter medo? — sussurrou ela. Gideon estava a assustá-la, e o mais provável é que não fosse nada sério. Gideon desviou o olhar e olhou para ela nos olhos durante um brevíssimo instante antes de 105


colocar os olhos de novo sobre o objeto que parecia captar toda a sua atenção. — Tem uma víbora negra atrás de você. — Sara abriu a boca, mas antes que pudesse formular a pergunta, ele disse: — é uma serpente venenosa. Ela empalideceu enquanto ficava petrificada. Uma serpente venenosa? Atrás dela? — Está... muito... perto? — O suficiente. — o rosto dele era inexpressivo, como se não quisesse assustá-la. Isso só por si aterrorizou-a. Movendo-se o mais lentamente possivel, ergueu a mão esquerda para ela. — Dême a mão. — Quando ela começou a mover a mão para ele, Gideon acrescentou: — Devagar, Sara, muito devagar. Enquanto levantava a mão lentamente, Sara percebeu como começavam a surgir umas úmidas gotinhas de suor no lábio superior. O vento açoitou as folhas das árvores sobre a sua cabeça, e ficou paralisada, com o coração encolhido. — Está fazendo muito bem — sussurrou Gideon para encorajá-la. — De momento, a serpente não parece muito interessada em nós. Esperemos que continue assim. Com a mão direita acabou de tirar o sabre do cinturão, com os movimentos muito controlados. O corpo de Sara começou a tremer violentamente. — O que... vai... fazer? — Degolá-la. — E se não acertar? — enormes gotas de suor começaram a escorrer pelas faces. — Reza para que isso não aconteça. Rezar era fácil; um milhão de preces estavam a escapar dos lábios dela. «Por favor, Deus, faz com que Gideon acerte. Por favor, Deus, não deixe que aquela serpente me morda. Oh, por favor, Deus, não me deixe morrer nesta maldita ilha sem ter a oportunidade de voltar a ver o meu lar.» De repente, a mão de Gideon agarrou a dela, e apertou-a com uma força descomunal. Depois disso, aconteceu tudo muito rápidamente. Com a mão esquerda, Gideon puxou-a para a afastar da serpente, enquanto que com a direita brandia o sabre num amplo arco em direção à árvore. Enquanto ela saltava para ele, conseguiu ver de lado uma cabeça negra elevada que parecia sair da própria árvore. Viu o brilho do aço, ouviu o zumbido do fio no ar e um sibilar horripilante. De seguida, percebeu que o sabre tinha cortado dividido a cabeça da serpente do seu corpo, e que as duas partes jaziam no solo. Sara soltou um grito e enterrou a cabeça no peito de Gideon, não sem antes ver como o corpo da serpente se movia convulsivamente no chão a um metro dela. — Meu Deus! — gritou enquanto se agarrava a Gideon tremendo. Sara notou mais do que viu como ele enterrava o sabre no solo. Então envolveu-a num abraço tão íntimo e protetor que teve muita dificuldade em respirar. — Já acabou, querida, já acabou. — tranquilizou-a Gideon enquanto a aninhava nos seus braços. — Está morta. Não consegue fazer mal. — Mas... mas podia ter... ter-me matado! — gaguejou ela a soluçar. — Estava tão perto... Estava aqui, ao meu lado! — Não era muito próprio dela mostrar-se tão nervosa, mas nunca tinha visto uma serpente venenosa, muito menos uma que a estivesse a ameaçar. O enorme susto foi a gota de água; ultimamente as suas experiencias tinham sido excessivamente fortes para ela, e de repente Sara desmoronou. — Se me... se me tivesse mordido... — Mas não te mordeu. — Gideon aprisionou o rosto assustado entre as suas mãos com força e levantou-o até a obrigar a olhar para ele. — Já passou. Garanto-te. Não teria permitido que 106


aquela serpente te fizesse mal. Sara estava tão desesperada que custava a respirar. Inspirava sem deixar de ofegar, e o pânico ainda apertava sua garganta. — E... se... tu... não estivesses... aqui — disse ela com a voz embargada. — e se... — Mas eu estava aqui. — o pânico de Sara parecia refletir-se agora nos olhos de Gideon. Estreitou-a entre os seus braços com mais força, acariciando-lhe as costas para a tranquilizar. — Estarei sempre aqui. Nunca permitirei que ninguém te faça mal. Prometo. — Tem... certeza de que está... está morta? — Sara sabia que era uma pergunta absurda, mas tinha que fazer. — Está morta. — Afastou-se um pouco dela e apontou para o chão. — vê? Não se mexe. Sara olhou de lado por cima do ombro de Gideon para onde os dois pedaços do animal com escamas negras jaziam sobre o manto de folhas e estremeceu de medo. — É... muito venenosa? — Isso agora já não importa. — Maldição, Gideon, diga a verdade! Podia ter me matado? Um musculo do queixo dele ficou tenso. — Digamos que nunca conheci ninguém que tenha sobrevivido à mordedura de uma vibora. A ironía da situação provocou em Sara uma gargalhada nervosa. — Devia ter imaginado que havia serpentes neste lugar. Como seria um jardim do Éden sem uma serpente? Gideon esboçou um sorriso. — Não sei, aborrecido? Aborrecido? Ela olhou para ele incrédula. Tinha dito... depois do que quase acontecera...? Mas claro, Gideon era assim. Sem conseguir esconder a sua irritação, Sara deu-lhe um murro no peito, apanhando-o de surpresa. — Para você é tudo uma brincadeira, não é? Não importa ter-nos tirado das nossas casas para nos trazer para este maldiito lugar cheio de serpentes venenosas e... e quem sabe que outras bestas monstruosas! Queria uma coisa, conseguiu, e não se preocupa com o que nos possa acontecer... com o que me possa acontecer! Sara desatou a chorar sem se conter, com o susto perante a proximidade da morte ainda muito presente. Tudo o que tinha acontecido nos últimos dias provocara uma fortíssima impressão. Desde que Gideon abordara o Chastity, ela não tivera tempo para se lamentar da terrível idéia de não voltar a ver Inglaterra nem Jordan nunca mais. Mas agora a realidade acertara com uma força vingativa tao virulenta, enquanto se encontrava de pé naquela estranha clareira, sitiada por aquelas plantas desconhecidas e por aquela serpente morta... De repente não era capaz de controlar as lágrimas que rolavam sem parar pelas suas faces. Emergiam dos seus olhos como se fossem duas fontes a correr. Não podia contê-las, e naquele momento nem tinha força para tentar. Preocupado, Gideon abraçou-a outra vez. Primeiro ela tentou afastar-se dele, com uma sensação de raiva lutando contra a necessidade que tinha que a consolasse, mas ele não a soltou e limitou-se a repetir, como se fosse um mantra de yoga: — Desculpe, querida. A sério, desculpe. Finalmente, ela deixou de forçar e deixou que as lágrimas caíssem no meio dos soluços. Quando passou a tempestade, acabou por apoair a cabeça no peito musculado, procurando consolo. Ninguém mais a conseguia consolar. Embora Gideon fosse seu adversário, era forte e 107


naquele preciso momento ela precisava da força dele. Precisava dela desesperadamente. Sara não percebeu quando é que o consolo começou a derivar em algo diferente. Foi, talvez, depois que os soluços se extinguiram até se transformarem num soluço intermitente. Ou foi, talvez quando se apercebeu de como Giden parecia alterado, e sentiu-se encorajada a consolá-lo. — Estou... estou bem, sério — ofegou enquanto limpava as lágrimas dos olhos com as costas da mão. Mas de repente a boca de Gideon pousou sobre a dela, suave, terna, como se implorasse perdão. Para vergonha de Sara, ela devolveu o beijo, procurando o consolo que só ele podia dar. Eram beijos ternos, cheios de apoio mútuo. Gideon atraiu-a para ele, apertando a sua mão contra a parte inferior das costas de Sara para que ela colasse as ancas às fortes pernas enquanto continuava a beijá-la sem parar nos lábios e no rosto, nas pálpebras fechadas, no cabelo despenteado emaranhado. — Devia ter-te deixado no Chastity — sussurrou Gideon sobre a boca dela. — Atlântida é um lugar adequado para as outras, mas não para ti. — Não é verdade. Não é um lugar adequado... «para nenhuma de nós» — teria dito ela, se ele não tivesse coberto a sua boca com a dele. Mas desta vez o beijo dele ofereceu mais do que alívio. Transmitiu paixão pura e ardente, um desejo esfomeado que depressa a invadiu a ela, até que Sara se encontrou a responder com a mesma fúria que ele mostrava. Não conseguiu resistir. Apesar de tudo, sabia que precisava de Gideon para superar o enorme susto, para esquecer da serpente. Como se ele compreendesse exatamente o que ela queria, lentamente começou a percorrê-la, a acariciá-la. Cobriu o seio com a mão e acariciou-o de uma forma tão louca que Sara se sentiu desmaiar. Parecia que os seus seios precisavam daquelas caricias; tinham estado a pedir durante o dia inteiro, desde que ele lhe tocou pela última vez. E aquela certeza fê-la derramar mais lágrimas. Ele beijou-as com uma ternura tranquila, e Sara notou o seu fôlego quente sobre as faces. — Não chore mais, Sara, minha querida Sara. Por favor, não chore. Não quero magoar-te. — empurrou-a suavemente até uma árvore perto, e de seguida juntou-se a ela, libertando as mãos para poder acariciar-lhe a cintura e as ancas. Quando Sara percebeu, Gideon estava a levantar-lhe a saia. — Só quero dar-te prazer. Apenas isso. Sara sabia que não podia recusar. Não, não era isso que ela queria. Achava lógico que aquelas mãos a tocassem, que aqueles dedos deslizassem pelas suas pernas nuas para a sua parte mais intima, aquela parte que Gideon tanto desejava... assustou-se com as mensagens que o seu próprio corpo lançava. O bosque também pareceu conter a respiração quando ele voltou a beijá-la, uma e outra vez, com uma necesidade agoniante, fundindo a língua cada vez mais profundamente na boca dela. Os dedos experientes de Gideon encontraram o ponto úmido entre as pernas, e com o dedo polegar começou a esfregar a pequena protuberância escondida pelas sedosas pregas de pele, fazendo com que Sara respondesse instintivamente arqueando-se contra a sua mão ao mesmo tempo que lançava um gemido de prazer. — Muito bem, linda — sussurrou ele sobre a boca dela. — Deixa que te dê prazer, nada mais do que prazer. Uma parte dela era consciente de que Gideon estava a comportar-se daquela forma para fazer que se esquecesse da serpente, para tentar corrigir todo o mal que ele tinha feito. E apesar da sua mente racional ansiasse gritar que aquilo não era o que queria, o seu corpo pedia-lhe o contrário. O seu corpo morria de vontade por experimentar aquela fascinante sensação de abandono. Morria de vontade que Gideon a tocasse, de sentir o corpo dele contra o seu. Sara sentiu-se 108


abatida: quanto mais ele a acariciava entre as pernas, mais desavergonhadamente desejava aquelas carícias… mais desejava a ele. — Assim, linda. — Ele respirou sobre a face dela. — aprecia. É para ti. Quero que sinta. Sara não precisou de perguntar o que é que ele queria dizer com aquilo de sentir. Uma tensão desconhecida invadiu-a, como a feliz antecipação que tinha sentido quando o Chastity abandonou o Tâmega e entrou no mar: a excitante incerteza diante do perigo... e a aventura. Agora podía sentir o mesmo... aquela embriagante sensação que a arrastrava, que a vencia. Cada sussurro das folhas das árvores, cada brilho de luz no cabelo de Gideon, cada delicioso aroma tropical conspirava contra ela, para a arrastrar. Ele já não a beijava; estava totalmente embriagado em acariciá-la para dar prazer. As feições dele ficaram tensas, os seus olhos queimavam com uma luz carnal e, no entanto, continuou a acariciá-la, manoseandoa-a, aumentando a tensão até que com uma rapidez inesperada algo descomunal rebentou dentro dela e aturdiu-a com uma onda atrás de onda de prazer. Um grito abafado escapou dos lábios dela enquanto se agarrava a Gideon com força, contraindo-se e tremendo contra ele. Oh, céus, céu santíssimo… era aquilo que acontecia entre um homem e uma mulher? Aquela... aquela aguda agitação... aquela fabulosa sensação de extrema intimidade? Nunca teria sonhado... nunca teria imaginado... ninguém tinha dito que aquelas coisas podiam acontecer. E agora que sabia, percebeu porque é que Gideon tinha oferecido como forma de calmante, porqué ele acreditava que conseguiria tentá-la para que se deitasse com ele. E aquela percepção arrancou-lhe novas lágrimas amargas dos olhos, que rodaram pelas suas faces mais uma vez. Capítulo 14 Por todo o lado da povoação portuária dedicam-se a cortejar jovens e velhas; enganam-nas; não acreditem nem por um instante na língua lisonjeira dos marinheiros. Conselhos às jovens donzelas na arte de encontrar marido, ANÔNIMO Gideon não sabia o que o impeliu a afastar-se dela. Sabía que lhe tinha dado prazer. Percebera as convulsões ao redor do seu dedo, sentira o tremor provocado pelos espamos do clímax. Teria sido muito fácil elevar-lhe as pernas e penetrá-la, fundir-se na suavidade dela como tinha desejado desde o primeiro dia que a viu. E no entanto, não o tinha feito. Aquele ataque violento de lágrimas travara-o completamente. Sara chorava como uma mulher que tinha perdido toda a esperança, que tivesse visto a cara da vergonha e se sentisse identificada com ela. Cada lamento atormenatva-o como nenhum outro lamento feminino o tinha feito. Não fazia sentido. Irritado consigo próprio pela sua reação, baixou sua saia e soltou-a, murmurando um palavrão ao mesmo tempo que se virava e se encaminha para onde jazia a víbora negra. Ficou de pé, observando o corpo rígido em forma de «S» da serpente sobre as folhas secas, mas não conseguiu isolar-se dos sons que vinham das suas costas. Os gemidos, os soluços, a ofegante respiração, transformaram-se num martelar que se instalara no seu cérebro, limpando-o de quaquer outro pensamento lascivo. Apenas uns minutos antes Gideon tinha o pênis tão duro como uma barra de metal, e desejava-a tanto que conseguia sentir as pontadas de dor que aquele desejo provocava nos lugares mais fundos do seu corpo. 109


Mas agora já não estava excitado. Como é que podia estar, com aquele pranto desolado? Pelo amor de Deus, não conseguia aguentar mais. Sara não tinha chorado quando a levara do Chastity à força, nem tinha chorado quando tinham lutado. Ouvir agora o seu pranto, quando se comportara com tanta coragem até àquele momento, recordou-lhe com que crueldade a arrancara do seu lar e da sua familia. Ela odiava-o por isso; podia ouvir o quanto ela o odiava. Mas também o tinha desejado. Agora chorava por tudo o que tinha perdido, mas uns minutos antes desejara-o. Os suloços começaram a desaparecer, e Gideon percebeu como mudava de posição, provavelmente arranjava a saia para esconder todas as provas do que acabavam de fazer. Mas que mais podia esperar que ela fizesse? Dona Reformista Perfeita considerava-se boa demais para cair nos braços de um pirata. Maldita fosse por pensar assim. Gideon lançou outro palavrão, recuperou o sabre que ainda estava enterrado no solo e limpou-o com algumas folhas. — É melhor regressar à praia. Eu vou dar uma vista de olhos para garantir que não há mais serpentes. Às vezes andam aos pares. Apesar do que acabava de dizer ser verdade, era apenas uma desculpa. Mas agora não se sentia capaz olhar para ela, não quando Sara estava tão abatida e ele se sentia tão culpado. — Andam aos pares? — a voz de Sara denunciava terror. Gideon enterrou as unhas nas palmas das mãos e resistiu à necessidade de regressar para o lado dela para a reconfortar. — Não se preocupe. Se não se afastar do riacho, não te acontecerá nada. Vamos. Eu desço dentro de uns minutos. Um breve silêncio interpôs-se entre eles. — Gideon, suponho que... que... — Sara calou-se por um momento. — obrigado por ter salvo a minha vida. — Não precisa de me agradecer — respondeu ele, incapaz de esquecer aquele pranto que tinha partido o coração. — Mas... — Volta para a praia, Sara. — Ele não sabia o que era pior, se os soluços dela ou o seu agradecimento. No mesmo instante ouviu os passos dela sobre a folhagem do chão, atrás dele, afastando-se rapidamente da clareira. Era obvio que Sara não ia ficar ali plantada para agradecer novamente. E aquilo irritou-o quase tanto como o seu agradecimento. Tudo o que ela fazia irritava-o, lamentou-se ele. bem, tudo, não. Não a forma como ela tinha respondido ás suas carícias, aquela pequena e doce boca abrindo-se ao seu... quente convite. O corpo dele voltou a excitar-se, e Gideon esboçou uma careta de aborrecimento. Não, não podia ser. Maldita mulher! Tinha mais coisas em que pensar acerca da nova situação na ilha para perder o tempo a preocupar-se por uma maldita mulher de nobre linhagem. Sem conseguir conter-se, lançou vários palavrões ao ar enquanto que com o sabre cortava o mato que o rodeava com golpes furiosos, aliviado por não encontrar nenhuma outra víbora. Infelizmente, não fora sincero com Sara sobre as serpentes que povoavam a ilha. Ele e os seus homens tinham tido mais do que um problema com alguns daqueles répteis desde que chegaram. Regressou para o lado da serpente e deu-lhe um forte pontapé. Se não fosse por aquele espécime, Sara não se mostraria tão adversa a Atlántida. Suspirou enquanto guardava o sabre. Não, isso não era verdade. Ela fora contra a ilha desde o inicio. A serpente só tinha ajudado a aumentar a repulsa dela. Olhou para as folhas brilhantes e banhadas pelo sol de uma bananeira situada do outro 110


lado da pequena clareira. Na sua parte central, os frutos penduravam-se pesadamente como uma corrente de jóias ao redor da barriga de um paxa. O cheiro a jasmim selvagem perfumaba o ar, um ar quente e agradavel, que carecía da umidade tão fria da sua Yorktown nativa. Por Deus, como amava aquele lugar. Se fosse capaz de transmitir a Sara o seu amor por aquela ilha... de conseguir que a visse com os olhos dele... Lançou um rugido. Sim, claro, conseguir que uma mulher rica e pertencente à nobreza inglesa apreciasse a beleza não adulterada de Atlântida. Não, isso nunca aconteceria. As senhoras do reino não passeavam tranquilamente pelas praias desertas, observando a paisagem. Aquelas mulheres olhavam os piratas com desprezo. Fariam qualquer coisa para regressar à fria Inglaterra. Se alguém sabia disso, esse alguém era ele. Os ingleses puros nunca eram o que aparentavam. Baixou o olhar e fixou-o no cinturão, no alfinete da mãe. Como odiava aqueles malditos nobres! Aqueles desgraçados pensavam que mereciam os privilégios que tinham. Achavam que eram os donos do mundo. Graças a eles, ele vira-se abandonado à mercê de um homem cruel que não tinha ideia de como tratar de uma criança. Ou qualquer outra pessoa, para ser sincero. Por isso uns anos mais tarde, quando rebentou a guerra de 1812, Gideon dispôs-se a combater pelo seu país. Depois, foi testemunha de como os barcos da Marinha inglesa aprisionavam os marinheiros americanos diretamente dos barcos americanos, alegando que eram desertores ingleses. Uma vez até ele próprio foi aprisionado. E sabia perfeitamente como os ingleses podiam ser cruéis. Mas vingara-se deles. Tinha-os colocado no seu lugar. Até que conheceu Sara. Passou a mão pelo cabelo. O que é que aquela mulher tinha feito com ele? Quase o fizera esquecer o que ela era e o que representava. Era apaixonada, exatamente o oposto do que um homem podia esperar de uma mulher inglesa. Mas não podia permitir que o seu temperamento apaixonado o enganasse. Quando as suas paixões tivessem acalmado e surgisse a sua vaidade inata de dama inglesa, se transformaria num pesadelo. Era o que sempre acontecia. Não podia dar a mínima oportunidade. Virou-se com uma velocidade de um tufão e encaminhou-se para a praia. Não, definitivamente, não ia dar uma única oportunidade. Claro que se deitaria com ela, mas isso seria a única coisa que faria com aquela mulher. Não permitiria que arruinasse sua vida, da forma como a sua mãe tinha arruinado a do seu pai. «Mas quem está arruinando a vida de quem? — perguntou uma vozinha no seu interior. — Sara tinha o privilégio de ser a meia-irmã de um conde e de uma boa posição social até que lhe roubaste tudo.» Gideon apertou os dentes, chegou ao riacho e começou a descer em direção à praia. De acordo, ele tinha roubado tudo, mas não tivera outra opção. O que mais podia ter feito, deixá-la naquele barco para que fosse buscar o irmão e o convencesse para que os perseguisse? «Isso é apenas uma desculpa. — Voltou a insistir aquela vozinha interior. — Não precisava a raptar, e você sabe.» Gideon deteve-se, com o olhar perdido num ponto diante dele. Há muito tempo que a sua consciência não o perseguia. No dia em que o seu pai morreu amaldiçoando a mãe, Gideon decidiu que ter consciência era um luxo que não podia ter. Obviamente, a mãe nunca ouvira a voz da sua própria consciência. E o pai ignorou a dele quando batia nele com tanta raiva. Gideon pensou que tudo seria melhor se ele também ignorasse a sua consciência. E porque é que aquela maldita voz tinha que o perseguir sem piedade? E tudo por culpa de uma mulher. Uma mulher e não apenas isso: uma mulher nobre e inglesa! Foram as lágrimas de Sara que provocaram esta reação, pensou amargamente enquanto continuava a sua descida seguindo o riacho. Esse era o motivo. E as mulheres usavam as lágrimas 111


para conseguir o que queriam. A sua mãe teria feito provavelmente o mesmo, então, o melhor que podia fazer era lembrar-se daquele ardil feminino de vez em quando, para não cair em tentação. — Capitão! — exclamou uma voz da praia aos seus pés, acordando-o dos seus pensamentos incômodos. Gideon olhou para baixo e viu Barnaby e Silas, que pareciam estar à espera dele. Barnaby fumava um charuto com ar aborrecido, e Silas murmurava algo para si próprio enquanto andava para a frente e para trás, levantando pequenas nuvens de areia com a perna de pau. Gideon apressou-se. — O que aconteceu? — Os homens estão indignados — esclareceu Barnaby. — lembra-se de ter dito que teriam que dormir a bordo do barco até celebrarem o casamento? Pois agora que estão na ilha, não querem dormir no barco. Querem voltar a instalar-se nas suas casas imediatamente. Gideon encolheu os ombros. — Bem, então colocamos as mulheres no barco. Não vejo qual é o problema. Barnaby e Silas trocaram olhares. Então Silas coçou a barba. — Isso também não vai funcionar. As mulheres também não querem ficar a bordo do barco. — Não me interessa o que elas querem! — gritou Gideon. — Ou ficam no barco ou escolhem marido imediatamente. E visto que ainda não estão prontas para escolher, terão que ficar no barco até a semana acabar. E ele seguramente não queria precipitá-las a escolher marido, ou empurraria Sara diretamente para os braços daquele maldito marinheiro inglês. Não queria casar com ela, mas também não queria que Sara se casasse com alguém; ainda não. Silas franziu a testa, com aspecto de quem não gostava da resposta de Gideon. — Mas as pobres mulheres... passaram varias semanas a bordo de um barco. Não é saudável para elas. Isso é um fato. — fez uma pausa e olhou para o mar. — Por exemplo, olhe para a pequena Molly, que vai ter o bebê. Não é bom que durma sobre um colchão quando podia dormir numa cama confortável. É o que a Louisa diz, as mulheres merecem um pouco de... — Deteve-se quando percebeu como Gideon e Barnaby olhavam para ele. — Porque é que estão a olhar para mim dessa forma como se eu fosse um animal raro? — Desde quando e importa que uma mulher grávida se sinta cômoda? — perguntou-lhe Barnaby, tirando as palavras da boca de Gideon. — e quando é que deixou de chamar Louisa de «aquela mulher»? Não me diga que a menina Yarrow conseguiu amolecer o teu coração de pedra. Uma intensa cor vermelha começou a se espalhar pelo pescoço de Silas até que o seu rosto barbudo pereceu mármore pintado de cor castanha e vermelha. — Ela não fez isso. Só porque me provou que tem um pouco de juízo de vez em quando... — Voltou a calar-se quando Gideon e Barnaby rebentaram em gargalhadas. Silas virou as costas e começou a caminhar com raiva pela praia. — Ao diabo com os dois. Não é vosso assunto se um homem decide pensar numa mulher. Não que eu… O seu murmúrio foi-se apagando, abafado pelo barulho das ondas. — Não posso acreditar — disse Gideon. — Silas Drummond conquistado por uma mulher? — Eu não diria conquistado. Parece-me que o pobre está é confuso. Nenhuma mulher tinha atrevido se a fazer a ele frente antes. Normalmente, mostravam-se aterrorizadas por ele... ou desprezavam-no pela sua perna de pau e pela impossibilidade de satisfazê-las na cama. Mas desde que Louisa começou a lutar com ele, transformou-se num homem diferente. Esta manhã até o surpreendi a paasar água-de-colónia atrás das orelhas. — Até os mais fortes caiem! — Gideon tinha a certeza de uma coisa: ele nunca agiria como um palhaço por Sara. Nunca. Observou Barnaby atentamente. — Suponho que tu não estás em 112


perigo de perder o juízo, pois não? — Já sabe, capitão. Eu gosto de mulheres, disso não tenha a menor dúvida, mas gosto que fiquem no lugar delas. — Sorriu ironicamente. — Se for possível, metidas na minha cama. Até há pouco, Gideon partilhava da opinião de Barnaby, mas agora achou o comentário de muito mau gosto, e aquilo incomodou-o. — Perfeito, vejo que vens incomodar-me com histórias sobre esposas durante algum tempo. Enquanto Queenie te dê o que quiseres sem te exigir nenhum tipo de compromisso. — É verdade. Mas garanto que há outros homens que farão a vida impossível até que se casarem, especialmente se você insistir em que durmam a bordo do barco. — Não tenho outra opção. A não ser que arranje maneira de convencer as mulheres para que fiquem no Satyr... uns dias. Pelo menos Sara ficaria encantada por dormir no camarote de Barnaby, especialmente depois ter esbarrado com aquela maldita serpente. A serpente. Um repentino esgar de malícia desenhou-se no rosto dele. — Barnaby, reúne os homens e as mulheres a frente da minha casa. Creio que posso convencer as nossas futuras esposas de que será melhor que não durmam sozinhas nas nossas casas da ilha. De seguida deu meia volta, e voltou para trás, seguindo o caminho do riacho. — Onde é que vai? — Já vai ver. Você limite-se a juntar toda a gente. Não demoro. Meia hora mais tarde, Gideon encontrava-se de pé na praia diante de toda a comunidade, Sob o sol do meio-dia, com uma bolsa de lona na mão. Todos os presentes tinham aspecto de estar aborrecidos, tanto com ele como com o resto dos companheiros. As mulheres e os homens permaneciam separados; os homens de pé perto da vegetação e as mulheres apinhadas perto do oceano. Os homens não se atreviam a olhar para ele, mas tinham uma aparência insubordinada. As mulheres, por outro lado, olhavam para ele desafiantes, sem dúvida encorajadas pela pequena alvoroçadora que estava de pé, no meio delas, com a cabeça erguida como Joana d’Arc. Como era possível que tivesse passado de chorar desconsoladamente a exibir aquele rosto de cruzado beligerante com a rapidez de um raio? Bem, isso agora não importava. Sara depressa perceberia com quem estava a lidar. Gideon levantou a mão para exigir silencio e obteve-o por parte da maioria do grupo, embora algumas das mulheres continuassem a murmurar numa voz demasiado elevada. Mas ele também pôs fim a esses murmúrios olhando para elas incisivamente. Limpou a garganta várias vezes antes de elevar a voz por cima dos sons provenientes das ondas do mar. — Barnaby disse-me que muito de vocês não concordam com os arranjos provisórios para dormir nos próximos dias. — os dois grupos começaram a falar ao mesmo tempo, mas ele silenciou-os com um grito: — Calem-se! Quando obteve toda a atenção, continuou: — Compreendo que nenhum de vocês queira estar a bordo do barco. E visto que as mulheres ainda têm quatro dias para escolher marido... — Cinco dias, capitão Horn — interrompeu-o uma voz feminina. Quando ele fulminou Sara com o olhar, ela apressou-se a acrescentar: — Ainda temos cinco dias. Era a primeira vez que se olhavam mutuamente desde os beijos roubados no bosque, e Gideon gostou de ver como ela corava quando ele manteve o olhar mais tempo do que o necessário. 113


— Se você diz... Não quero discutir consigo. — alargou o seu angulo de visão para incluir as outras mulheres. — e nenhuma de vocês tem de se preocupar, pensando que vou quebrar a minha palavra sobre a possibilidade de escolher marido. Enquanto o alvoroço crescia entre o grupo dos piratas e as mulheres relaxavam, Gideon olhou para os seus homens com um olhar dominante. — Daremos às mulheres o que quiserem, não é verdade, rapazes? — Era mais uma ordem do que uma pergunta. — Mas capitão — atreveu-se a dizer um ousado marinheiro. — Temos que abandonar as nossas próprias casas confortáveis só porque estas mulheres se negam a partilhar as nossas camas sem o devido cortejo? — É isso! Porque é que temos que fazer? — perguntaram os outros. Gideon compreendeu que todos eram da mesma opinião. Esperou até que as vozes deles se apagaram antes de continuar. — Essa é a questão pela qual vos juntei aqui. E creio que quando as mulheres ouvirem o que quero dizer, perceberão que o mais adequado para elas será dormir no barco. — Um momento! — gritou Queenie com voz beligerante. — os seus homens estiveram embarcados menos de uma semana; em troca, nós estamos há quase um mês a navegar. Garantiu à menina Willis que dormiríamos em terra firme, e é apenas isso que queremos! As mulheres murmuraram o seu acordo. Gideon apertou os dentes e olhou para Sara. Ela ergueu o queixo teimosamente. Era o que suspeitava: aquela mulher estava por trás daquele motim. Mas se ele não conseguisse convencer o grupo de mulheres, não mereceria o posto de capitão pirata, não era? — Compreendo como se sentem, senhoras. — Gideon recorreu a um tom de voz mais amável, apesar de se sentir terrivelmente irritado. — o problema é que esta ilha não é um lugar seguro para que as mulheres estejam sozinhas á noite. Há animais selvagens e outros perigos. — Quando as reclusas trocaram olhares, ele acrescentou: — Sem ir mais longe, a menina Willis pode contar-lhes acerca desse tipo de perigos. Há apenas uma hora, quase a mataram. Procurou dentro da bolsa de lona, tirou a serpente e mostrou-a a todos, na sua plenitude, deixando a víbora ao longo do chão. — Isto quase a matou. Um suspiro de horror coletivo escapou do grupo das mulheres. — Serpentes? — Uma mulher pôs-se a tremer ao ver o tamanho do repugnante réptil decapitado. — Por Deus! Há serpentes nesta ilha? As outras voltaram-se para Sara nervosamente, que, com fisionomia sinistra, não afastava o olhar do capitão. Gideon piscou um olho, sorriu, e depois continuou: — Felizmente, eu estava perto para a matar, mas se não fosse assim... — Não acabou a frase, como se quisesse acrescentar uma pitada se drama ao relato, para que as mulheres tirassem as suas próprias conclusões. — mas é claro, quando todos vocês estiverem casadas, os vossos maridos se encarregarão desse tipo de problemas. Entretanto, ficarão mais protegidas no barco, em vez de dormirem sozinhas nas nossas cabanas. — Lindo paraíso! — Queenie deu um pontapé na areia com raiva. — Está louco, capitão, se acha que vamos dormir num sítio cravejado de serpentes. — Sim — acrescentou Louisa. — prometeu-nos um lar, e em vez disso trouxe-nos para um sítio onde os bichos nos comerão vivas. Não vou pisar nesta ilha novamente até que não acabem com todas as serpentes. — Franziu a testa. — e enquanto tratam disso, de caminho também podiam dedicar um tempo a garantir que essas cabanas fiquem corretamente arranjadas. estão em 114


condições de ser habitadas apenas por uma pessoas, então, se querem que duas pessoas vivam ali... Encorajadas por Louisa, as mulheres começaram a murmurar sobre todas as coisas que não gostavam da ilha. Sara limitou-se a cruzar os braços e olhar para o capitão com um doce sorriso. — Não terão que se preocupar com nada quando estiverem casadas, senhoras — repetiu ele, sentindo como se alguém tivesse tirado o tapete debaixo dos pés. Supunha-se que aquelas reclusas iam atirar-se para os braços dos marinheiros à procura de proteção, em vez de ameaçar com motins. — os meus homens sabem como acabar com as serpentes. E quanto às condições das cabanas... — Sim, capitão Horn — interrompeu-o Sara com voz doce, — diga-nos que melhorias tem intenção de fazer. Tenho a certeza que não vai negar que estas casas não estão convenientemente construídas para nós. Pelo que pude ver, não têm quartos para acomodar as mulheres com crianças. Certamente não espera que as mulheres partilhem o leito do seu marido diante das crianças. — Sara... — começou ele em tom de aviso. Ela continuou alegremente, e as mulheres agruparam-se nas suas costas como se ela fosse a portadora do estandarte. — E também não podemos esquecer a necessidade de instalar portas e janelas seguras para manter todos os animais selvagens e serpentes afastados. Os seus intrépidos piratas terão de dormir de vez em quando, não? Como nos protegeremos das serpentes, então? Ah, e o vai fazer com as inadequadas instalações da cozinha e da falta de... — Silencio! — rugiu ele, fazendo com que até o coração de Sara desse um salto com o susto. Maldita mulher... teria que encontrar uma forma de calar aquela boca, nem que fosse a ultima coisa que fizesse! Secou o suor que escorria para os olhos, e voltou a falar, apertando os dentes: — Suponho que a cozinha na última morada das senhoras em Londres era muito mais inadequada. Felizmente, a referencia às prisões de Londres surtiu efeito e silenciou quase todas as prisioneiras. Até Sara não teve forma de debater aquele comentário. Mas no seu encontro anterior com ela tinha mostrado umas coisas acerca do inapropriado que era enfurecer aquela mulher. — No entanto, menina Willis, não queremos que você e as outras mulheres pensem que não estamos dispostos a fazer conceções. Terão uma boa cozinha e instalaremos portas e janelas nas casas. Olhe, há muito tempo que tinha pensado enviar os meus homens a São Nicolau na corveta para nos abastecer de provisões, isso quando determinemos o que é que as mulheres querem ou precisam. Se me entregar uma lista do pretendido, garantirei que um grupo dos meus homens vá buscar logo a seguir aos casamentos e… — Depois dos casamentos? — interrompeu-o Sara. — e o que é que nós fazemos, entretanto? — Dormir a bordo do barco. Sei que não é o local mais cômodo do mundo, mas com todos os perigos e com as preocupações óbvias das mulheres, é o melhor que posso oferecer. Se Gideon pensava que tinha vencido a batalha, o sorriso exageradamente doce de Sara fêlo reconsiderar. — Devido às circunstâncias, não temos outra alternativa. — Sara fez uma pausa, enquanto a sua expressão se tornava mais presunçosa. — De fato, a sua proposta tem tanto mérito que creio que o melhor será que fiquemos a bordo do Satyr indefinidamente... pelo menos até que os seus homens tenham arranjado as casas como deve ser. Ficaremos felizes por fazer esse sacrifício até acabarem as obras, não é verdade, companheiras? Enquanto as mulheres concordavam, uma nova onda de protestos emergiu do grupo dos 115


piratas. Gideon apertou os dentes. afinal, nada estava a sair como tinha planeado. Embora os seus homens fossem arranjar as casas, Sara tinha conseguido ganhar a batalha vitoriosamente. Poderia forçar as mulheres a viver nas cabanas com os seus maridos depois de ter celebrado os casamentos, mas começava a perceber que as reclusas se negariam a cooperar enquanto Sara continuasse a dar razoes para não fazer. A sua única alternativa era enviar alguns dos seus homens às ilhas tão depressa quanto fosse possível e atrasar as bodas até que regressassem. Talvez se as mulheres vissem que ele e os seus homens tinham verdadeiramente a intenção de fazer daquela ilha um lugar confortável para elas, se acalmassem. Pelo menos, se atrasasse os casamentos ganharia mais tempo para separar Sara daquele maldito Hargraves. Se pudesse enviar aquele marinheiro em particular para fora da ilha, com os outros homens... Os seus olhos iluminaram-se. Porque não? Hargraves não parecia entusiasmado com a ideia de viver na ilha. Mostrara-se muito mais interessado nas riquezas que ia obter como pirata. Talvez, se desse algum tipo de incentivo, aquele homem escolheria não regressar nunca mais. Gideon escondeu a sua excitação sob um olhar feroz quando voltou a olhar para as mulheres enquanto colocava as mãos sobre as ancas. — Façamos um acordo, senhoras. Vocês decidem o que é que precisam, e eu enviarei alguns dos meus homens a São Nicolau na corveta amanhã para comprar as provisões. Quando regressarem dentro de uns dias, teremos o material necessário para renovar as nossas casas. Em pouco tempo teremos renovado da forma como vocês quiserem. Creio que isso deve rematar as vossas expectativas, não? «E finalmente livro-me de Peter Hargraves — pensou alegremente enquanto Sara se voltava para comentar com as mulheres o possível acordo. — Pense o que pensares, ainda não venceram esta guerra, linda. Ganhaste em como nos organizaremos para dormir, mas acaba de perder o teu querido noivo inglês.» Capítulo 15 Apesar de todas as canções românticas dos poetas, o ouro, querida, é uma coisa muito útil. Mira To Octavia, MARY LEAPOR, poeta inglesa e ajudante de cozinha Tinha anoitecido, e Peter encontrava se de pé diante do buraco da porta da cabana do capitão Horn, torcendo nervosamente o chapéu entre as mãos. O lugar parecia deserto. a noite era cerrada, iluminada pelas poucas estrelas que brilhavam no firmamento. Deveria bater antes de entrar? Mas... onde demônios ia bater? Não havia porta. Apesar da cabana do capitão ser a melhor de todas, não tinha persianas nem uma porta com a sua devida campainha. Não se admirava nada que as mulheres se negassem a viver naquelas cabanas inacabadas. No entanto, o resto da ilha não era assim tão má. Durante o resto do dia dedicara-se a passear para se familiarizar com o lugar. Sem duvida nenhuma, era um bocado de terra acolhedor. Certamente podiam transformá-lo num lugar especial, se alguém mostrasse o interesse suficiente para conseguir. Mas essa não era a questão que o preocupava. Naquele preciso momento, o que mais importava era averiguar porque é que o capitão o tinha mandado chamar. a situação parecia um tanto alarmante, para não dizer muitíssimo alarmante. 116


Peter decidira manter-se bem afastado daquele homem desde o seu primeiro encontro. Os piratas esclareceram que o capitão Horn era um tipo justo, que não gostava de aplicar castigos irracionais, no entanto, não confiava no que aquele homem era capaz de fazer, agora que se tinha deslumbrado pela menina Willis. A menina Willis. Peter soltou um rugido. Essa mesma manhã a pequena menina conseguira colocar o capitão no seu lugar. Peter deveria estar agradecido por se esforçar tanto em atrasar as cerimônias nupciais. Apesar de tudo, ela faria para o ajudar a ele e a Ann. Mas a menina pressionara tanto o Lorde Pirata que no fim conseguira enfurecê-lo, e Peter não achava graça nenhuma nisso. Uma gota de suor escorregou por cima do nariz e ele secou-a com o polegar enquanto olhava cautelosamente para dentro do enorme buraco negro da cabana. O capitão devia estar dormindo, ou talvez tivesse saído para dar uma volta. Não valia a pena continuar ali de pé, à espera dele, arriscando-se a enfurecer ainda mais aquele homem. Virou-se, mas nesse momento ouviu uma voz profunda proveniente do escuro interior da cabana. — Não fique aí, homem. Entre. Peter assustou-se, depois engoliu o medo que sentia. Ali estava ele, de pé, hesitando como um tonto, enquanto aquele homem estivera a observá-lo durante o tempo todo. O capitão pirata conseguia enervá-lo. — Eh... desculpe... Não o tinha visto — balbuciou Peter enquanto entrava na escura cabana. Não teve resposta. Ouviu um ruído como se alguém estivesse a escavar, depois viu uma pequena faísca e então a tênue chama de uma lamparina de azeite, que se foi alargando à medida que o capitão aumentava mais a chama. Agora Peter podia ver o pirata, de pé, atrás de uma mesa. Pelo menos o sabre daquele homem não estava à vista, que era precisamente onde Peter gostava que estivesse: fora da vista. — Sente-se, Hargraves. — O capitão Horn assinalou para uma cadeira, depois agarrou uma garrafa do que sob a luz da lamparina parecia rum. — Quer molhar os bigodes? Peter tentou concordou com a cabeça. Precisava de alguma coisa que o ajudasse a suportar a enorme tensão. No entanto, não se sentou. Não gostava de se sentar na presença do inimigo, especialmente quando esse inimigo oferecia uma bebida forte. O pirata verteu uma quantidade considerável do líquido dourado num copo e entregou-o, e Peter não hesitou em beber um bom gole. Depois secou a boca com a manga da camisa. Incapaz de suportar o suspense por mais tempo, bebeu outro gole para ganhar forças e perguntou: — Queria me ver, capitão? O capitão Horn olhou para Peter friamente, depois colocou a garrafa de rum sobre a mesa e tapou-a com a rolha. — Acalme-se, Hargraves. Não vou passar por baixo da quilha. Só que, quero mostrar uma coisa que creio que te parecerá interessante. A informação colocou Peter de sobreaviso. Não havia nada que o capitão Horn pudesse mostrar que pudesse interessar, a menos que não fosse a afiadíssima folha do seu sabre. Que diabo estava ele tramando? Pretendia embebedá-lo com rum para depois o matar à traição quando estivesse menos atento? Peter abraçou-se a si próprio enquanto o capitão se dirigia a uma arca situada numa esquina e a abria. Quando o pirata tirou um objeto enorme e se virou, Peter quase desmaiou pela impressão, esperando ver o famoso sabre do pirata. Mas em vez disso, o homem segurava um cetro. Subjugado entre uma sensação de alívio e de susto, Peter ficou boquiaberto, observando a vara dourada incrustada com jóias que irradiava um brilho espectacular. 117


Como se percebesse exatamente o que Peter estivera a temer, o capitão Horn sorriu e brandiu o cetro no ar como se fosse uma espada. — Alguma vez viu algo tão belo, Hargraves? Incapaz de fazer outra coisa senão negar efusivamente com a cabeça, Peter continuou a observar o cetro com a boca aberta. Certamente era a luz da lamparina que o fazia brilhar como uma monte de estrelas caídas do céu. Peter sabia que aquele tipo de objetos existia, mas nunca pensou que veria um com os seus próprios olhos. Sem aviso prévio, o pirata atirou o cetro no ar em direcção a ele. Enquanto girava, as inúmeras facetas diminutas refletiam o brilho da lamparina. Peter agarrou-o no ar, evitando que caísse estrondosamente no chão de madeira. Sentiu o tato frio e pesado entre as suas mãos; o metal brilhava tanto que Peter não duvidou que se tratava de ouro maciço. Deslumbrado, esfregou o cetro com os dedos. Um diamante da medida da unha do seu dedo polegar marcava um dos extremos do cetro, e uma corrente quase interminável de pérolas perfeitamente redondas subia em espiral ao longo de todo o varão até ao remate cheio e circular, que estava adornado com rubis e esmeraldas do tamanho de uma noz. Peter estava tão extasiado que precisou de um segundo para perceber que o capitão Horn estava a falar novamente. — Adquiri-o durante os meus dias de corsário. — o pirata bebeu um gole de rum, sem afastar a vista de Peter. — Um dos teus embaixadores ingleses levava-o para o príncipe regente. Era uma lembrança de um rajá indiano, parece. Sem dúvida, o rajá pensou que com este belo tributo poderia apaziguar a sede inglesa por terra, mas ambos sabemos que necessitaria de muito mais riqueza para satisfazer a cobiça de um inglês. — O capitão deu um sorriso tão grande como perverso. — e visto que, segundo os rumores, o príncipe Jorge depressa teria o seu próprio cetro, decidi que não precisava de outro. Só com um esforço é que Peter conseguiu engolir o seu orgulho perante tal falta de respeito para com Sua Majestade. O pirata estava a provocá-lo, mas Peter não se atrevia a contra atacar. Brincando distraidamente com um dos rubis, perguntou: — Porque é que me mostra isto? — É teu. — Peter levantou a cabeça no mesmo instante e viu que o capitão já não sorria. — a sério. É teu. A mim não serve para nada. Para que serve um cetro no paraíso? Peter colocou o cetro sobre a mesa com muito cuidado e observou o pirata com receio. — E porque é que quer me dar? — Não adivinha? Quero que retire o pedido de casamento com a menina Willis. Perplexo, Peter sacudiu a cabeça várias vezes, como se quisesse acordar de um sufocante pesadelo. Aquele homem estava determinado a presenteá-lo com um cetro de ouro maciço para se deitar com aquela inglesa alvoroçadora? O pobre estava louco ou... ou era suficientemente rico para poder comprar dez cetros. Ou talvez fosse uma brincadeira sem graça o que, fizesse o que fizesse, Peter sairia sempre a perder. — E o que se supõe que posso fazer com isto? Tal como você disse, para que serve um cetro no paraíso? — Ah, mas é você quem não ficará no paraíso. Vai partir amanhã. Quando os meus homens zarparem para São Nicolau, você irá com eles. Uma luz de esperança começou a subir pelo peito de Peter, mas o marinheiro tentou conterse e não demonstrar a sua alegria. — Vai mesmo me deixar partir? O pirata encolheu os ombros. — E porque não? Se desistir da tua intenção de casar com a menina Willis, poderá abandonar a ilha e ir para onde quiser. Sei que disse que não pensava regressar a Inglaterra, mas 118


existe um sem fim de lugares onde poderá viver confortavelmente quando vender o cetro. Que Deus tivesse piedade dele. Aquele homem estava falando sério. Durante uns breves instantes, Peter considerou a possibilidade de aceitar aquele precioso objeto e perder-se em alguma parte desconhecida do mundo. Mas a sua responsabilidade impedia-o. O que obteria de todo aquele ouro todo se traísse a confiança que tinha depositado nele tanto a sua família como a menina Willis? Não, não poderia viver com o peso daquele sentimento de culpa. Que pena não poder usar a oferta do pirata para tirar a menina Willis da ilha, mas o capitão Horn, obviamente, não o permitiria. Sendo assim, ele também ficaria. Não podia abandonar a menina à sua sorte, com aquele cruel Lorde Pirata decidido a conquistá-la. Peter tentou devolver o cetro, depois hesitou. Ia deitar fora a possibilidade de escapar? Quanto mais tempo ele e a menina Willis permanecessem na ilha, mais possibilidades haveria para o pirata seduzi-la. a menina podia disfarçar que não se sentia atraída pelo capitão, mas Peter sabia que ela estava mais do que apaixonada por ele. O suave perfume do ar que os envolvia, a singularidade de viver naquela ilha isolada… tudo ao seu redor conspirava para conseguir que no final ela acabasse por sucumbir aos encantos daquele pérfido pirata, com ou sem Peter por perto. E se o capitão estava decidido a oferecer o cetro de ouro para o afastar dela, isso significava que nunca permitiria que se casasse com ele. Dadas as circunstancias… — E porque me dá a oportunidade de partir? Porque não me mata? Ninguém o deteria. — Quando o pirata olhou para ele sinistramente, Peter apressou-se a acrescentar: — Não me interprete mal; não é uma sugestão, é apenas uma pergunta. Parece-me que com a fama que os piratas têm de... — De assassinos cruéis, sedentos de sangue, quer dizer? — O capitão apoiou uma bota sobre a cadeira; os seus olhos brilhavam malevolamente. — Há muitas espécies de piratas a navegar pelos mares, assim como há muitas espécies de marinheiros. Não sei o que ouviu dizer de mim, Hargraves, mas não mato homens a sangue frio, e muito menos por uma mulher. Matei no calor da guerra, é verdade, mas isso foi antes de me converter em pirata, quando servia o meu país com uma patente. — Mas as coisas que ouvi, dizem que... — Que mais se poderia esperar de um miserável barão que provou ser um verdadeiro covarde? Disse que os piratas bebiam o sangue e esquartejavam inocentes e que por isso não levantaram um único dedo para os deter quando o barco dele foi aprisionado por aquele bando de bárbaros. — Havia um inconfundível tom de amargura na sua voz. — a verdade é que a minha reputação para adquirir tesouros, contra todas as expectativas durante a guerra, permitiu transformar-me depois num pirata muito facilmente. Quando os barcos mercantes viam a minha bandeira içada, não ofereciam resistência. Sabiam que os superávamos em canhões e em homens, e não queriam arriscar-se a perder a vida por uns poucos metros de seda. Se pensar bem, foi exatamente isso que aconteceu com o Chastity. Os seus olhos apertaram-se até adotar um ar ameaçador. — Mas isso não quer dizer que se recusar a minha oferta e ficar, eu aceite e te deixe casar com ela. Não vou deixar. No fim, acabará por perder, e nem sequer terá a satisfação do meu ouro. — Afastou o pé da cadeira e inclinou-se para a frente, colocando as duas mãos na mesa enquanto observava Peter receoso. — Porque faz tantas perguntas, Hargraves? Recusaria a possibilidade de enriquecer e de ter uma vida excitante cheia de aventuras apenas para se casar com a menina Willis? — Não, claro que não — respondeu Peter rapidamente, antes que as suspeitas do pirata 119


resultassem em mais alguma coisa. — garanto que prefiro este cetro e a possibilidade de sair desta ilha à menina Willis. — calou-se por um momento para medir as palavras que ia dizer a seguir: — o que não percebo é porque é que você não pensa da mesma forma. O capitão Horn ficou tenso, assim como um daqueles nobres que tanto desprezava. — Isso não te diz respeito. Queres o cetro ou não? Porque se não quiser... — Inclinou-se tentando tirar-lhe o cetro. Instintivamente, Peter agarrou o cetro com força e tentou escondê-lo nas costas. — Eu quero! — Não tinha a certeza se estava deitando bem as cartas daquela jogada, mas não tinha outra alternativa. — Eu quero. Saio da sua ilha amanhã. Por um momento, Peter teria jurado ver um esgar de alívio no rosto do capitão. Então a expressão do pirata endureceu. — Mais uma coisa: não diga uma única palavra sobre isto, entendeu? Tem que me prometer partir amanhã sem dizer uma única palavra a ela. — Mas ela merece... — O acordo é esse. Ou o aceita ou não. — De acordo. Não digo nada a ela. Mas essa era uma promessa que Peter não considerava cumprir. Londres nunca era assim, pensou Sara enquanto admirava a lagoa desde o olho-de-boi do camarote de Barnaby. Ali a calma era tão palpável que até os pensamentos de uma pessoa ecoavam como gritos na noite... os cheiros que tentavam os sentidos em vez de os ofender... o céu expunha-se como um espectacular mosaico de estrelas, em vez de estar manchado pela pestilenta fumarada negra que surgia das incontáveis chaminés. E o melhor de tudo, na ilha não se notava a influência da mão do homem. Há quanto tempo é que não via um lugar semelhante? Até o campo londrino exibia traços de civilização. Certamente ainda existiam lugares virgens nas ilhas britânicas, mas nunca os tinha visitado. Qualquer viagem a um desses lugares a teria afastado do seu trabalho, e o seu trabalho a teria conduzido inevitavelmente aos recantos mais imundos e complicados de Londres. Desde que embarcara no Chastity, tinha-se esquecido do que significava respirar sem reparar no cheiro nauseabundo do ar contaminado ou do cheiro que os excrementos dos cavalos exalavam e que assaltavam os seus pulmões. Sara inspirou profundamente, e olhou para a proa. distinguiu avistou o pirata robusto que estava de guarda, e todo o seu prazer por se encontrar naquele ligar paradisíaco desapareceu num abrir e fechar de olhos. O guarda era um deles, um daqueles malditos piratas. Gideon não era assim tão ingênuo para deixar que as mulheres ficassem sozinhas no barco. Apesar de Sara duvidar que ela e as outras pudessem içar a ancora e fugir com o Satyr, provavelmente teriam tentado se tivessem a oportunidade, e Gideon parecia ter adivinhado as suas pretensas intenções. Suspirando, virou as costas à janela e olhou para o luxuoso camarote que transformara agora na sua prisão. Pelo menos durante uns dias. Não sabia o que aconteceria depois, quando Gideon as obrigasse a escolher marido. Negava-se a escolher Peter, agora que sabia o que Ann sentia por ele. mas se não o fizesse… «Escolherá um marido.» Sara engoliu a saliva. O que é que Gideon ia fazer? Escolher a ele próprio como seu marido? Ou seria um vínculo forte demais com ela que ele não desejava? Às vezes parecia que tudo o que aquele pirata queria era deitar-se com ela para depois a abandonar como se fosse um trapo sujo quando tivesse conseguido. Mas outras achava que ele sentia mais alguma coisa, como hoje quando a reconfortou por causa da serpente... Um calafrio percorreu-lhe as costas. Aquela horrível serpente. E Gideon enfrentara aquele 120


réptil com tanta coragem, por ela… «Vamos, Sara — recriminou-se a si própria. — Está pensando nele como se fosse um cavaleiro errante que quer te salvar. Não é um cavaleiro. É um perverso que está obcecado por te seduzir; não esqueça disso.» Era uma pena que tudo o que se pudesse lembrar era a forma tão gentil como ele a rodeara com os braços enquanto ela chorava, o calor daquela boca sobre a sua, e o doce e quente tato daquela mão sobre os seus seios... «Já chega! — disse a si própria enquanto emitia um rugido. — tem que afastar aquela... aquela besta arrogante de tua cabeça.» Mas não conseguia. Infelizmente não conseguia. De repente ouviu umas pancadinhas suaves na porta. Pensou que tinha ouvido mal. As mulheres estavam todas no porão, e nenhum dos homens se atreveria a bater com tanto cuidado na porta do seu camarote. Exceto Gideon, claro. Sara sorriu perante aquela ridícula noção. Se Gideon quisesse entrar no camarote, abriria a porta, em vez de bater com educação. O ruído repetiu-se, e desta vez Sara teve a certeza de que eram umas pancadinhas na porta. Com curiosidade crescente, dirigiu-se à porta, abriu-a e deparou-se com Peter, de pé, que olhava furtivamente o escuro corredor do camarote que se abria agora diante dos seus olhos. Lamentavelmente, o camarote da frente era o de Gideon. Sara agarrou Peter pelo braço e puxou-o com força para o interior do quarto, depois fechou a porta precipitadamente. — Está louco, Peter? Se Gideon estiver aqui... — Não está no barco... está na cabana dele. Mas partilho da sua preocupação, menina, acredite. Especialmente agora. — Especialmente agora? O que quer dizer? Peter tinha o rosto abatido. — Pagou-me para que eu vá embora de Atlântida amanhã com os homens dele. Disse que posso ir para onde quiser, desde que não regresse à ilha. — Quando viu o olhar consternado de Sara, acrescentou: — aceitei ir, claro. É a única forma de regressar com o seu irmão. Sara precisou de um momento para perceber o que ele estava a dizendo, mas quando percebeu, o peito invadiu-se de uma esperança renovada. — É fantástico! Vai embora! Poderá trazer Jordan aqui, para que salve a todas! — Então, uma repentina dúvida assaltou-a. — achas que é capaz de encontrar o caminho de volta? Este lugar permaneceu isolado durante séculos. — Isso é apenas porque está longe da rota principal do comércio. — respondeu ele com confiança. — mas observei a bússola e tentei recordar o trajeto que fizemos desde que saímos das ilhas de Cabo Verde. Creio que poderei encontrá-la de novo sem nenhum problema. Tenho a certeza de que o capitão não espera que um pobre grumete como eu tenha prestado atenção à rota, visto que no nosso primeiro encontro disse que tinha escapado do Chastity porque não queria regressar a Inglaterra. Sei que essa é a razão pela qual me ofereceu a possibilidade de partir. Seria? Sara mordeu o lábio inferior, preocupada. Não compreendia como era possível que Gideon deixasse partir Peter tão facilmente. — Mas Peter, pode ser uma mentira maquiavélica. E se manda com que os seus homens te prendam e te abandonem em algum lugar perigoso? — Baixou a voz até a transformar num sussurro. — Ou... ou se manda que te matem? Peter levantou a cabeça com altivez e olhou para ela com a solene intensidade tão característica dele. — Acredita mesmo nisso? Acha mesmo que aquele homem é assim tão mau? A pergunta apanhou-a desprevenida. Seria Gideon um assassino? Claro que sim. Apesar de 121


tudo, era um pirata, não era? No entanto, o seu coração negava-se a acreditar, não depois do que tinha visto naquela manhã. — Não, suponho que não. — Quando Peter concordou, ela agarrou-o pelo braço. — mas posso estar enganada, e se estiver... — Não me matará. Ele próprio me confirmou. E não sei porquê, mas eu confio nele. — Franziu a testa. — Embora isso não signifique que aquele tipo não seja capaz de fazer outras coisas. Assim que eu tenha partido, tentará, seduzi-la, menina Willis. Isso é a única coisa que me preocupa no fato de deixar você sozinha. Também era a única coisa que preocupava Sara, mas não havia tempo a perder pensando naquilo. Se Peter não partisse à procura de ajuda, todas as mulheres se viam forçadas a casar, e ela negava-se a ser testemunha daquela barbaridade. — Não se preocupe comigo. Eu me arranjo com o capitão Horn. Ainda faltam uns dias antes de termos que escolher marido, e hoje consegui mais alguns. Apesar de tudo, os piratas vão precisar de bastante tempo para arranjar as casas deles e talvez, se continuarmos a resistir, Gideon concorde em… em… Sara ficou pensativa. Pela expressão de Peter, ele não acreditava numa única palavra do que ela estava dizendo. — Bom, não importa. Tem que ir. É a nossa última oportunidade. Peter passou as mãos pelo cabelo e concordou com ar triste. — Eu sei. Mas sinto muito por, de alguma maneira, esteja falhando. — a voz dele suavizouse: — Com você e a Ann. Sara voltou a morder o lábio inferior. Ann era outro assunto completamente diferente. — Sabe perfeitamente que vai esperar por ti. — Não lhe darão essa opção. — a expressão dele ficou tão triste que Sara colocou a mão à volta do seu ombro esquelético para o confortar. — eu a levaria comigo se pudesse, mas o capitão nunca permitirá. Além disso, com isso só conseguiria alertá-lo de que estive mentindo acerca do compromisso que tenho contigo. De qualquer maneira, Ann disse que não pode fugir, que agora é uma reclusa. Se ela regressar a Inglaterra, tal como eu vou fazer, correria o risco de a prenderem novamente ou de acontecer algo pior. Não tenho outro remédio senão deixá-la aqui, por agora. — Não se preocupe — consolou-o Sara, desejando poder falar mais esperançada — farei o que puder para que nenhum pirata a escolha como esposa. — Não conseguiria suportar a ideia de a obrigarem a... — Eu sei. Vai correr tudo bem, vai ver. Concentre-se apenas em fugir daqui e regressar com ajuda; eu trato da Ann. Para sua surpresa, Peter abriu os braços e abraçou-a subitamente com uma força descomunal. — Oh, menina Willis, você é tão boa. Eu falhei constantemente desde que saímos de Inglaterra e, no entanto, aqui está você, tentando ajudar-me, a mim e à mulher que eu quero. — Deixa de dizer que falhou. Não é verdade. Fez tudo quanto era humanamente possível e... Sara não conseguiu acabar a frase. De repente, a porta do camarote abriu-se vertiginosamente e deu uma estrondosa pancada na parede. Ela e Peter separaram-se no mesmo instante, mas era tarde demais. Gideon olhava para eles com raiva. — Você e eu fizemos um acordo, Hargraves. Mas estou vendo que não cumpriu a tua parte. Apesar do rosto de Peter ter ficado mais branco do que uma folha de papel, o marinheiro deu um passo em frente. 122


— Não teria sido correto ter partido sem dizer adeus. Um homem honrado não agiria dessa forma. — Um homem honrado não teria deixado comprar com ouro. Já lhe disse? Explicou que aceitou abandoná-la em troca de riquezas? Quando Peter se limitou a encolher os ombros, o olhar furibundo de Gideon fez com que Sara ficasse com o coração encolhido. Aquele homem era realmente terrível quando se aborrecia, embora não tivesse toda a certeza porque estava tão zangado por causa daquele assunto. Já os tinha visto antes, a ela e a Peter. — Rua! — disse Gideon numa sussurrante e ameaçadora voz. — saia deste camarote e do meu barco! Terá o teu ouro, embora devesse atirar-te aos tubarões. Quero te ver a bordo da corveta amanhã, ou juro que cumpro a minha ameaça sobre os tubarões. Peter olhou para Sara fugazmente, como se pedisse perdão, e passou entre ela e Gideon, depois saiu disparado do camarote. Por um momento, Sara ficou paralisada de terror, mas depressa recuperou a compostura. Não tiraria nada de positivo se deixasse que ele percebesse que tinha medo dele. Gideon aproveitaria da situação. Inspirou profundamente enquanto cruzava os braços sobre o peito para esconder o tremor que tinha invadido o corpo dela. — Suponho que pensa que ganhou a batalha. Se livrou de Peter, agora assume que cairei rendida aos teus pés. Com um olhar inescrutável, Gideon entrou no camarote e fechou a porta atrás dele. — Sei que contigo é melhor não assumir nada. É osso duro de roer. Mas pelo menos me livrei da tua melhor proteção. — olhou para ela com um olhar intimo demais que fez com que Sara corasse. — e juro, linda, que posso fazer frente a qualquer outra adversidade que lance para cima. Deu um passo em frente para ela, depois parou. O seu olhar tornara-se agora mais interesseiro. Estendeu a mão e acariciou-lhe a linha do queixo, deixando um rasto de fogo por onde passava. Aquela manhã tinha-lhe tocado com a mesma intenção, e conseguira que se escapassem gritos de prazer da sua boca. Mas agora Gideon comportava-se de forma diferente, embora Sara não pudesse descrever com exatidão em que é consistia a mudança. Dos olhos frios do pirata emanava o mesmo brilho calculista que ela vira no primeiro dia da sua captura. Aquele não era o Gideon que a tinha consolado enquanto chorava. Era o Gideon que só desejava o seu corpo, que queria deitar-se com ela sem qualquer espécie de consideração. Apesar de Sara achar esse Gideon tão sedutor como o outro, este aterrorizava-a como o outro não o tinha feito. E este tinha o poder de destruí-la. Afastando-se cuidadosamente da sua mão erguida, Sara sussurrou: — E o que acontecerá quando a guerra acabar, Gideon? Casar comigo? É isso que quer? Que te escolha como marido? De repente, a expressão do capitão ficou mais triste. Meteu o polegar no cinturão e olhou para ela enquanto se formava um sorriso irônico nos seus lábios. — Está dizendo que se casaria comigo? Com um asqueroso pirata americano, sedento de sangue? — Não é essa a questão, pois não? — Sara puxou para trás a madeixa, e os olhos de Gideon seguiram os seus movimentos com um olhar esfomeado, fazendo com que ela se arrependesse do seu gesto. Sara escondeu as mãos por baixo dos braços e apressou-se a dizer: — Não disse que pretende casar comigo, com uma nobre inglesa. — Porque não transpomos os pormenores acerca do nosso casamento até que saibamos se 123


fomos feitos um para o outro? — Com um movimento repentino que a apanhou de surpresa, agarrou-a pela cintura e apertou-a ao seu corpo. — em comparação com Hargraves, eu gosto de experimentar a mercadoria antes de pagar por ela... milady. Gideon pronunciou a última palavra com tanto sarcasmo que Sara ficou com o coração encolhido. Só a chamava de «milady» quando queria lembrar a ele próprio o quanto odiava «os da sua classe». E o resto das suas cruéis palavras, proferidas com a intenção de a humilhar, iam pela mesma direção. — Pois não vai experimentar esta mercadoria! — Ela colocou os punhos contra o peito dele. — Solte-me imediatamente... desprezível... — Acossador de mulheres? Perverso violador? Vá lá, Sara, pode dizer o que quiser, mas ambos sabemos que você quer que eu faça amor contigo. Esta manhã... — Esta manhã se portou de maneira diferente — respondeu ela. Quando ele a aqueceu com o olhar, Sara acrescentou velozmente: — estava mais preocupado comigo. E sim, queria que fizesse amor comigo, admito. Mas agora não, não quando age desta forma. Não quando demonstra que me odeia tanto. — Acha que eu ajo como se te odiasse? — Gideon colou as ancas contra o seu corpo até que ela conseguiu notar a grande excitação do seu membro viril. — acredita sinceramente que me comporto como um homem que te detesta? Sara voltou a colocar as mãos contra o peito dele, numa tentativa frenética por separar-se dele. — Não falo da atração que sente pelo meu corpo, Gideon. Estou falando da tua opinião sobre mim. Ouvi a raiva que emerge da tua voz quando fala das pessoas de minha classe e da minha posição social. Vi como olha às vezes para mim, com raiva e ressentimento, como se me odiasse pelo simples facto de ser inglesa e... de pertencer à classe privilegiada. — Isso não tem nada a ver. — Gideon agarrou-lhe o queixo, tentando obrigá-la a levantar a cabeça para poder beijá-la. — o teu corpo procura o meu, e garanto que o meu corpo fico louco pelo teu. Sendo assim, porque não satisfazemos as nossas necessidades mútuas e acabamos com esta maldita historia de uma vez por todas? — Não! — gritou ela, afastando o rosto da cabeça dele. — Não sou uma insignificante galinha gorda para que possa engolir só porque se sente esfomeado! Não consigo aguentar a ideia de me deitar contigo, sabendo a raiva que tem pelos «da minha classe»! Desta vez, quando ela não parou de forçar por se afastar dele, Gideon soltou-a, apesar da sua respiração continuar acelerada e forte enquanto a fulminava com o olhar de desprezo. — O que é que queres de mim? Amor eterno? Um voto de fidelidade? Uma proposta para que se case comigo? Qual é o teu jogo? — Essa é que é a questão, Gideon. Eu não estou jogando. E visto que não é capaz de acreditar em mim, não... não quero continuar com esta relação. Esquece-me. Se não consegue ver apenas como Sara Willis, então afaste-se de mim e deixe eu arranjar alguém que consiga fazer. — Está falando de Hargraves. — Refiro-me a um homem que não me odeie pelo que sou. — a tristeza invadiu a voz dela. — e acho que você não é esse homem. Uma repentina insensibilidade pareceu invadir o corpo de Gideon, visto que ficou tenso e pálido. — Tem razão. Não consigo. — Começou a caminhar para a porta, mas parou durante um minuto. — e duvido que aqui encontre alguém mais que cumpra as tuas expectativas, agora que o teu amigo Hargraves vai embora. Os meus homens odeiam os da tua classe tanto quanto eu. Além disso, os teus gostos são finos demais para eles. 124


A voz de Gideon baixou-se até se transformar num sussurro. — E ambos sabemos que eu sou o único que consegue satisfazer as tuas outras necessidades, as necessidades que teimas em fingir que não tem. Então… quem vai escolher como marido, Sara? Quem? A questão continuou a ecoar nos ouvidos de Sara quando Gideon inclinou a cabeça para sair do camarote e desapareceu. Sara lançou um milhão de maldições para aquele homem que parecia conhecê-la tão bem. Era verdade. A quem é que podia escolher senão a ele? A quem? Capítulo 16 Ela apaixonou-se perdidamente pelo marinheiro, e soube que o esperaria por ele para sempre. Amava-o tanto, que não hesitou em converter-se na esposa de um navegante. The Lady's Love for a Sailor, ANÔNIMO Louisa olhou furtivamente à sua volta para se certificar de que não havia ninguém e empurrou Ann para dentro da pequena cabana de Silas Drummond, situada a escassos metros da entrada da cozinha comunitária. — Pensei que Silas tinha dito que não podíamos pôr os pés na cabana dele — sussurrou Ann. — Não me importa o que ele disse. é evidente que aquele homem precisa de ajuda. — Louisa abanou a mão, como se tentasse abranger toda a habitação. — olha, é uma verdadeira pocilga. A roupa suja apinhava-se sobre as deterioradas tábuas de madeira do chão. os pratos gordurentos estavam espalhados por toda a casa. Era a prova que Silas não gostava de lavar, limpar nem de arrumar, apesar de ter uma bacia numa nas esquinas e um armário e uma arca na outra. A cabana parecia-se com uma gruta habitada por um ogro. Bem, Silas podia agir como um ogro, mas era apenas um pretexto. Louisa não ia permitir ele vivesse naquela pocilga por mais tempo. Enquanto ele saía para caçar um par de galinhas do mato com Barnaby, ela e Ann tratariam de arrumar sua casa. Embora ele protestasse mais tarde, tinha certeza que ele ia gostar da nova ordem quando se habituasse. Qual o homem que não gostava de um lugar limpo e arrumado? Além disso, ela conseguia aguentar o mau humor dele desde que ele não excedesse mais de uns rugidos. Nos cinco dias que tinham decorrido desde a captura, Silas tinha murmurado, gritado e lançado maldições, mas nunca levantara a mão para ela. Até houve momentos em que demonstrara uma faceta mais gentil, quando ela queimou a mão naquela maldita fornalha, e ele encontrou um unguento para acalmar a dor. Ou quando ela se queixou do colchão em que dormia era muito duro, e uma noite encontrou um colchão de penas no seu lugar. Naquele dia pensou que ele tinha sido o artífice da mudança, mas agora tinha a certeza, porque viu o colchão sobre a cama de Silas. Silas era assim: cão que ladra não morde. Logicamente, o mínimo que ela podia fazer para agradecer era arrumar sua casa. — Vamos, mãos à obra, Ann — encorajou-a Louisa ao mesmo tempo que arregaçava as mangas. — parece que temos muito trabalho para fazer antes que os homens regressem. Ann concordou com a cabeça e encaminhou-se para a suja mesa e com a mão varreu as migalhas de bolacha para dentro do seu avental. 125


— Pergunto-me se Peter já terá chegado a São Nicolau. Já passaram três dias desde que se foi embora. Já devem ter chegado, não acha? Louisa olhou para a galesa de lado, mas tudo o que viu no rosto de Ann foi um pesar melancólico, o que era melhor do que a horrível expressão de tristeza que a mulher exibira durante os primeiros dois dias de ausência de Peter. — O mais provável é que os homens já tenham estado e tenham partido. Chegarão a Atlântida em poucos dias. — Mas Peter não regressará. — Não — respondeu Louisa consoladora. — Peter não. Louisa ainda não compreendia porque é que Peter não tinha tido problemas em abandonálas. Sempre tinha considerado muito boa na hora de julgar as pessoas, e Peter não parecera o típico homem que sairia correndo na primeira ocasião que tivesse. — Agora que Peter já foi embora, quem é que acha que a menina Willis escolherá como marido? — inquiriu Ann. — Não sei. Sara sente uma profunda aversão por todos os piratas. — Por todos, não. Ela gosta do capitão. Suponho que ele será o único que se atreverá a escolher como marido. Louisa inclinara-se para apanhar umas cascas de banana podres, mas levantou-se rapidamente e olhou para Ann. — O capitão Horn e Sara? Está louca? Sara odeia o capitão. Ann sacudiu a cabeça efusivamente. — Pois eu creio que não, Louisa. Eles discutem, mas acho que ela gosta dele. E está mais claro do que a água que ele gosta da menina. Louisa soltou um rugido e continuou a apanhar com a pá os restos da comida. — Sim, claro. Por isso o capitão chamou a Queenie na noite em que chegamos... — Mas não fez nada com ela. Eu ouvi Queenie contar tudo às pequenas. Ele enviou-a ao senhor Kent. E aposto o que quiser em como a sua decisão tem alguma coisa a ver com a menina Willis. Louisa dirigia-se para a cama de Silas, para tirar os lençóis sujos, mas deteve-se. Sara e o capitão Horn? Que ideia tão absurda! Nunca funcionariam como casal. Sara estava mais do que enganada, se achava que conseguia manobrar aquele capitão pirata. Ele era o tipo de homem capaz de partir o coração a uma mulher, especialmente um que não estivesse duro como o de Louisa. — Se está certa, tenho de admitir que foram muito discretos com a sua história. Ele parece evitá-la, e ela age da mesma forma. — Sim, mas vigiam-se furtivamente quando acham que ninguém os vê. Um dia, ela estava rindo de alguma coisa que o senhor Kent contou e o capitão Horn olhou para eles com uma cara tão cheia de raiva que eu pensei que os dois iam arder em chamas. E depois disso, o capitão destinou o senhor Kent para ajudar os homens a trazer madeira da outra ponta da ilha. Está apaixonado por ela, e acho que ela também está por ele. — Oh, espero que esteja enganada. Ele não é o tipo adequado para ela. — Não sei. — Ann inclinou-se para apanhar o balde que estava debaixo da mesa. — Não é tão mau como pensa. Comigo foi muito simpático, quando falamos uma vez. Até me perguntou pela minha mãe. Quando o conhecer, vais perceber que não é assim tão má pessoa. — É precisamente isso que tento, não o conhecer — murmurou Louisa ao mesmo tempo que tirava os lençóis do colchão situado no meio de uma estrutura espartana de madeira. O capitão Horn aterrorizava-a. Para o seu gosto, parecia-se demais com o Harry, o filho do seu 126


antigo patrão. Apesar de nunca ter visto o capitão Horn abusar nem magoar ninguém, no conseguia evitar pensar que a sua mordedura devia ser muito mais letal do que os seus latidos, pela fúria que aparentava. De qualquer forma, não queria averiguar se era verdade ou não. Também não conseguia imaginar a doce Sara entre os braços daquele homem tão maleducado. Não interessava o que Ann dissesse, a ela parecia horroroso. Da próxima vez que estivesse a sós com Sara, tentaria falar com ela. De repente, Ann lançou um assobio do outro lado da cabana. — Ora, ora, mas o que é isto? — Deixou o balde que ainda segurava nas mãos e agarrou uma enorme estátua de madeira meio escondida no meio de uns horrorosos calções de lã que estavam enrolados. Louisa olhou para o objeto que Ann segurava e encolheu os ombros. — Parece uma figura feminina. — Sim, mas que grandes... quero dizer, alguma vez viste uma mulher com uns... uns...? — Seios — finalizou Louisa secamente. — Podes dizer a palavra, ninguém te come. Tirou a estátua das mãos de Ann e virou-a para a observar. Era verdade que a mulher tinha uns seios desproporcionados em relação ao resto do corpo. Pareciam um par de cabaças. Igualavam o traseiro descomunal da estátua, mas claro, uma mulher com aquelas dimensões descomunais precisaria daquelas enormes nádegas para não ir encurvada para a frente durante todo o tempo. Louisa examinou a pequena cabeça e os pés, e reconheceu o estilo de algumas coisas que tinha visto nos livros. — Parece que vem de um daqueles lugares africanos onde veneram a Deusa da fertilidade. Ann estava perplexa. — Deusa da fertilidade? — Li alguma coisa sobre esse assunto numa revista de viagens há muito tempo. «Quando ainda passava as noites lendo, quando tinha uma vida pela frente. Antes de Harry começar a mexer nos meus seios», pensou. — O que é uma Deusa da fertilidade? — insistiu Ann, afastando Louisa dos seus maus pensamentos. — e porque é que tem os... seios tão grandes? — Porque representa a fertilidade das mulheres. — Quando Ann olhou para Louisa com cara de não perceber nada, Louisa acrescentou: — As mulheres amamentam os seus filhos com o leite dos seus seios, então os escultores exageram-nos para mostrar as qualidades que as mulheres têm de oferecer vida. Era obvio que Ann não sabia nada sobre o conceito de simbolismo. A jovem voltou a agarrar na estátua. — E acha que Silas a venera? — Duvido — respondeu Louisa secamente. — A julgar pelo que o Barnaby nos contou, Silas não consegue... não consegue... engendrar filhos. Não, suspeito que o interesse dele é bem mais lascivo. — Sim, claro, e provavelmente asqueroso também. — Sim, provavelmente — disse Louisa, escondendo o sorriso. Ann estava agora a examinar a estátua. — Que forma tão esquisita, não? Só se vêm tetas e rabo, e mais nada. Pergunto-me se as mulheres em África têm este aspecto. — Não acredito. Se assim fosse, teríamos sido testemunhas de um êxodo massivo de homens ingleses com a intenção de povoar África. Ann sorriu com maldade. — Sim, mas ficariam decepcionados. Uma mulher assim nem conseguiria deitar, não é? Os seus seios são tão grandes que ficariam pendurados para os lados, e teria que fazer equilíbrio 127


sobre o enorme rabo para não cair. Nunca conseguiria dormir, e isso manteria o marido acordado toda a noite. — Não creio que a falta de sono fosse o motivo para manter o marido acordado toda a noite — murmurou Louisa. Ann olhou para ela com uma absoluta falta de compreensão, e desta vez Louisa não conseguiu conter o sorriso. sinceramente, às vezes Ann era como uma criança. Apesar de tudo o que tivera de suportar, ainda mantinha um olhar puro e fresco para o mundo. Louisa nunca tinha sido tão inocente. Não tinham permitido. — Silas não devia ter uma coisa tão indecente como esta por aqui — refletiu Ann. — Uma das crianças podia vê-la. — o rosto iluminou-se. — já sei! Vamos vesti-la! Vai ficar melhor, não acha? — Claro que sim. Vestir a estátua. — Louisa começou a rir sem conseguir se conter. Ann procurou pela cabana alguma coisa que fosse apropriada. — Ah, isto serve — comentou ela, virando as costas a Louisa. Começou a tarefa de vestir, e quando terminou, voltou-se e entregou-a a Louisa. Louisa só precisou de uns segundos para reconhecer a peça de roupa que Ann tinha utilizado para vestir a pobre Deusa da fertilidade assediada, mas quando o fez, rebentou numa sonora gargalhada. Os calções de Silas. Ann tinha vestido a estatua com uns calções sujos de Silas. Depois disso, Louisa não conseguiu parar de rir. Ann tinha tapado o pescoço da estátua com as pernas, pelo que a parte anterior dos calções cobria toda a parte da frente a figura feminina. Realmente a visão não tinha exuberância. E quando Ann olhou para ela inocentemente, obviamente inconsciente de que a vestimenta da Deusa era tão indecente como a própria Deusa, Louisa riu com tanta vontade que doeram suas costelas. — Está bem, Louisa? — perguntou Ann enquanto se aproximava da amiga. — sinceramente, hoje está a agindo de uma forma muito esquisita, muito esquisita mesmo. Louisa nem sequer conseguia falar. A única coisa que fazia era continuar a rir como uma possessa e a apontar para a estátua. — Isto? — perguntou Ann enquanto olhava aturdida para a estátua que segurava entre as mãos. — o que aconteceu? Não gosta do lindo vestido de lã? Louisa ainda riu mais. Lamentavelmente, nesse preciso momento em que Louisa se estava a partir às gargalhadas e Ann estava a revirar a estátua no ar, Silas escolheu fazer a sua inesperada aparição. — O que é que estãofazendo aqui? — a voz masculina rugiu da porta, fazendo com que ambas se assustassem. Ann soltou a figura de uma vez, observando com os olhos horrorizados como esta rolava pelo chão de madeira, despojando-se do seu vestido exótico no processo. Louisa tentou deixar de rir, apesar de lhe custar imenso. — Juro, não estávamos fazendo nada — balbuciou Ann. — a Louisa disse... bem... pensamos... — Calma, Ann. — Louisa encarou Silas, com os olhos ainda divertidos. Mas quando viu a expressão lívida e o rosto vermelho do seu interlocutor, ficou séria. — tenho certeza que Silas não vai culpar você de nada. — Só tentávamos ajudar. — Ann inclinou-se para apanhar a estátua e entregou-a a Silas. — a sério, senhor Drumm... Silas soprou quando viu o que Ann segurava nas mãos. — Fora daqui! — arrancou a figura e atirou-a para o outro lado da cabana. — fora daqui 128


imediatamente! Ann saiu como uma bala pela porta, e Louisa apressou-se a segui-la, mas ao passar ao lado de Silas, este agarrou-a pelo braço. — Tu não, Louisa... só ela. Quero falar contigo. Louisa sentiu como o coração se encolhia, e pela primeira vez desde que conhecera Silas, teve medo. Este não era o homem que auxiliara quando se tinha queimado. Este era um Silas diferente. Nunca o tinha visto tão zangado. As sobrancelhas formavam uma linha reta e tensa, e até a barba parecia estar eriçada. Devia estar louca por ter pensado que, na sua ausência, ele não se importaria que ela estivesse na sua cabana. Completamente louca. Bom, agora já não importava. Lidara com uma infinidade de homens zangados antes, e a melhor forma de os manter longe era não os deixar abusar. Louisa aprendera aquela lição à força. Safando-se da garra de Silas, encarou-o, com as costas erguidas. — Não ganha nada discutindo comigo, Silas. Não fiz nada de errado. Alguém tinha que limpar esta... esta pocilga a qual chama de lar, e visto que era obvio que não ia pedir a ninguém… — Decidiu fazer nas minhas costas. Havia uma nota de animosidade na sua voz que de repente fez com que Louisa recapitulasse e compreendesse a forma como ele via a situação. — Não exatamente. Só... pensei que saberias apreciar mais a limpeza se chegasses e encontrasses tudo arrumado. — Ah, então era isso o que pensava. Pensou que apreciaria que rissem das minhas coisas. Ela corou. — Não é o que está pensando. Só estávamos... — Não conseguiu continuar porque percebeu que não conseguiria explicar de uma forma que Silas considerasse satisfatório. — Não queríamos causar nenhum problema. Apenas queríamos ajudar... para... para pagar por ter sido tão amável conosco. Silas arqueou uma sobrancelha. — Conosco? Louisa ficou ainda mais corada. — Comigo. A declaração dela pareceu acalmá-lo. Silas observou-a durante um tempo, e então, para surpresa de Louisa, virou-se e atravessou a cabana. Tirou o cachimbo de uma prateleira e encheuo de tabaco. A seguir, acendeu-o e puxou um par de vezes antes de agarrar o cachimbo com a mão direita. O cheiro acre a tabaco inundou a sala. Quando voltou a olhar para ela, todo o seu rancor parecia ter desaparecido. Observou-a com os olhos entre cerrados, sombreados pelas povoadas sobrancelhas. — É uma intrometida, Louisa Yarrow, sabia? A mulher mais intrometida que já conheci. — fez uma pausa para dar uma longa tragada, sem afastar dela os olhos castanhos. — o que não consigo entender é porque se intromete na minha vida, quando há um monte de homens nesta ilha que podia escolher para fazer sua vida impossível. Isso é que eu gostava de saber. — Não me lembro de ter feito sua vida impossível. Silas ignorou o comentário sarcástico. — Porquê eu, Louisa? Porque é que sou o único? Ela sentiu-se incomodada sob o olhar intenso dele. Virou-lhe as costas e começou a apanhar a roupa suja espalhada pelo chão. — É o cozinheiro, apenas isso. Só queria ter certeza de que teríamos comida decente para variar. Admitiu que não é o melhor cozinheiro do mundo, Silas. Ele não protestou furiosamente ao insulto, como normalmente o fazia com todos os outros. 129


Louisa ficou estupefata quando ele respondeu. — Sim, tem razão. Trabalhei bem para Gideon como marinheiro antes de perder a perna; por isso é que Gideon suporta a minha comida. Ela não sabia. A descoberta fez com que repensasse a sua opinião acerca do capitão Horn. — Mas isso não responde à minha pergunta — continuou Silas. — Não que saiba mais de cozinha do que eu. Ouvi dizer que foi preceptora na Inglaterra, não cozinheira. — Exatamente. Mas durante os anos em que trabalhei para o duque de Dorchester, co... comecei a me interessar pelos fogões. Costumava passar muito tempo na cozinha. — Sim, muito tempo. Era o único lugar onde Harry não podia surpreendê-la sozinha, o único lugar em que se sentia a salvo das suas mãos. Além de ter aprendido algo acerca da preparação dos alimentos como beneficio adicional. — Ainda acho que não está me contando toda a verdade. Discuti e gritei contigo e, no entanto, não parece incomodada com nada disso. Porque é que não te assusta comigo como o resto das pessoas? — Porque sei que não vai me fazer mal! — rebentou ela, e depois desejou não ter dito. Porque é que ele tinha que fazer todas aquelas perguntas tão incômodas? — Ah, já sabia que tinha alguma coisa a ver com isso. — Quando Louisa olhou para ele surpreendida, ele acrescentou: — Quem é que te faz mal? Que homem te feriu de forma tão terrível para que só se sinta a salvo com um homem que não consegue deitar-se contigo? O rosto de Louisa ficou vermelho. — Não sei do que está falando. Silas baixou o cachimbo e olhou para ela intensamente. — Sabe, tenho a certeza que sabe. Estive pensando. A única razão pela qual uma mulher como você prefere estar comigo em vez de Barnaby é porque não quer estar com um homem que a toque. Louisa nunca tinha sido tão sincera consigo própria. Nunca pensara naquele assunto daquela forma. Mas no fundo, sabia que esse era o motivo pelo qual continuava colada a Silas. Ele era bom, simpático… e impotente. Nunca teria que se preocupar se ele a forçasse a... Louisa mordeu o lábio com força, tentando conter os sentimentos que sempre provocavam aquela imensa vontade de chorar. Silas aproximou-se, estudando-a curiosamente. — Não sou cego. Já vi como se assusta quando um homem te toca. Já vi o seu rosto cheio de terror antes de contra atacar e afiar tua língua para os manter afastados. — parou a poucos centímetros dela. — acha que se me provar que pode ser útil, caso contigo, mesmo que supostamente não consiga deitar-me contigo. — Isso não é verdade — protestou Louisa debilmente antes de pensar na palavra «supostamente» que Silas acabara de pronunciar. — o que quer dizer, com supostamente? — Então percebeu com a sua pergunta era impertinente e começou a gaguejar: — quer... quer dizer que... que... — Não quebre a cabeça com esse assunto. Já sei o que mentecapto do Barnaby te disse. Que não consigo fazer amor com uma mulher, não foi? Ela debateu-se entre admitir ou não, mas por fim decidiu ser honesta. — Sim. — Disse que não gosto de mulheres porque não consigo deitar com elas. Não é verdade? Não foi isso que ele te disse? Louisa desviou o olhar e concordou com a cabeça. 130


— Pois não é verdade. Com a velocidade de um raio, ela voltou a cravar os olhos no rosto dele. — O que... o que é que isso quer dizer? — Quer dizer que as minhas partes funcionam perfeitamente, como as daquele maldito inglês. — Mas porque é...? — É uma longa história. — os lábios dele ficaram tensos até formar uma fina linha sob o bigode. Quando ela olhou para ele com interesse, ele suspirou e afagou a barba. — Quando perdi a perna, tinha uma esposa numa das ilhas das Índias Ocidentais, uma crioula. Gideon levou-me para casa para ela tratar de mim, mas o fato de me ver sem uma perna provocou-lhe nojo. Ela tentou que eu não notasse a sua aversão, mas um dia apanhei-a na cama com um mercador. Foi nessa altura que percebi que ela não voltaria a querer nada comigo... se é que alguma vez quis, claro. Silas virou-se e dirigiu-se para a mesa; deixou-se cair pesadamente sobre uma cadeira e voltou a segurar o cachimbo. Louisa sentiu o desejo de segui-lo e de reconforta-lo. Pobre Silas. Não era justo; ele era um bom homem. Como é que uma mulher podia deixar de gostar do seu marido por algo tão vulgar, tão pouco importante? — Então nos separamos — continuou ele. — Ela partiu com o mercador, e eu regressei ao mar como cozinheiro do Satyr. Mas todos os homens pensaram que os problemas entre ela e eu vinham da cama. Pensaram que eu tinha ficado sem mais alguma coisa além da minha perna. — Contemplou o cachimbo. — e eu... eu deixei que acreditassem. Incomodava menos vê-los a cochichar que a minha esposa tinha me abandonado porque não podia satisfazê-la sexualmente em vez de admitir que ela não... não me queria. os homens pensaram que... que era uma tragédia, e eu deixei que continuassem a pensar. Gideon sabia a verdade, mas só ele é que sabe. E o capitão sempre guardou o meu segredo. Inspirou o tabaco do cachimbo, depois exalou o fumo, e este ficou suspenso à volta dele como se fosse incenso. — Verdade seja dita, depois daquela experiencia, as mulheres deixaram de me interessar. A minha esposa partiu o meu coração, e eu não acreditava que pudesse encontrar alguém que me quisesse de novo. Então… continuei a minha vida sem mulheres, exceto quando conseguia escapar em segredo e arranjar alguma prostituta em algum porto. Louisa sentia-se mal. Secou o suor das mãos na saia. Sabia como acabava aquela conversa. E não sabia como reagir. Silas levantou o rosto e olhou para ela, com olhos tão límpidos como o céu do exterior. — Então você apareceu, uma fera como nunca tinha visto nenhuma. Exercia a força tonificante que um homem precisa para se sentir vivo. E percebi que tinha de te contar a verdade. — Não continue, por favor... — Tinha que te contar, Louisa. Tinha que fazer. Você se colou a mim porque pensava que não era um homem completo, porque algum desgraçado te fez odiar os homens completos. Gostaria de acreditar que fazia por mais algum motivo... — E é verdade! — Louisa não podia permitir que pensasse que o tinha escolhido apenas porque pensava que estava a salvo com ele. Quando Silas a observou calmamente por cima do cachimbo, com uma expressão incrédula, ela disse suavemente: — a sério, havia algo mais. És bom, simpático e... — Vamos, mulher! Não sou bom nem simpático! — resmungou Silas enquanto se levantava da cadeira com um salto. — isso é precisamente o que estou tentando dizer. Quando te vejo de manhã, como a rosa mais fresca que alguma vez vi florescer nestas costas, sinto-me desfalecer. Te 131


quero tanto, quero te abraçar e te beijar sem parar. O que sinto por você... não é bom. — atirou com força o cachimbo no chão. Os seus olhos brilhavam agora estranhamente. — e você procura alguém bom e simpático. Quer um homem que te trate como se fosses uma delicada peça de porcelana, e... — Não, não é isso que eu quero. — Não que acredite que não mereça — continuou Silas, como se não a tivesse ouvido. — Sei que merece. Merece um homem completo... — Já chega! — Ela colocou-se ao seu lado. — Não diga disparates! Você é um homem completo! A única coisa que te falta é uma perna, mas isso não quer dizer nada. — Quando Silas a olhou surpreso, perante a paixão que surgia da sua voz, ela acrescentou: — pelo menos, não para mim. Isso não significa nada para mim. Ele entre cerrou os olhos enquanto acariciava a barba. — O que está querendo dizer, mulher? Tem que falar claramente comigo, porque não gosto nada de investigar o que pensa uma mulher. Isso é uma coisa que aprendi com a minha esposa. Louisa ficou calada por uns minutos. O que tentava dizer? Que não se importava se ele tocasse ou a abraçasse? Ou que até gostava da sensação? Oh, estava tão confusa. Depois da última vez que Harry a violou jurara que nunca deixaria que um homem a tocasse. Cravara no maldito patrãozinho a faca da cozinha na perna, esperando machucá-lo noutra parte mais íntima, e por aquele delito condenaram-na a catorze anos de exílio forçado. Mas Silas era tão diferente de Harry. Apesar de ambos serem arrogantes, a arrogância de Harry vinha da crença de que qualquer pessoa na terra tinha a obrigação de o servir. Nunca teria dito que ela merecia alguém simpático. Ele sempre pensara que ela devia sentir-se orgulhosa de a considerar digna de ser violada uma vez por semana. A arrogância de Silas, por sua vez, era uma defesa semelhante à que ela usava. Era uma forma de evitar que os homens rissem dele por ser um cornudo. Louisa sabia como um homem se sentia quando usava o orgulho e o desprezo como arma. O orgulho e o desprezo não a abandonaram quando foi julgada. Nem quando os piratas a capturaram. Ninguém parecia compreender aquela forma de defesa, além de Silas. Mas aquela compreensão seria suficiente? Se ele a rodeasse com os seus braços, sentiria como se quisesse morrer, da forma como se sentia quando Harry levantava suas saias e a penetrava sem piedade? Só havia uma forma de descobrir. — Creio que estou dizendo... — Deteve-se, insegura de como se expressar. — Ou seja, o que estou a dizer é que... se tenho que escolher marido, preferia ficar contigo em vez de ficar com outro. — Mesmo depois do que te contei? Tem que entender, Louisa, que não conseguiria viver na mesma casa contigo sem te tocar. — a voz dele tornou-se mais grave e profunda, impressionandoa tanto com medo como com excitação. — Quero fazer amor contigo. Não quero nenhuma das outras mulheres, sendo assim, se não for você, continuarei como até agora. Mas se casar contigo, não posso prometer que não te tocarei... — Então não prometa — respondeu ela, surpreendendo-se a si própria. Aproximou-se mais de Silas e colocou as mãos sobre os braços dele. Eram braços fortes, suficientemente fortes para a partir em duas, para a forçar... para fazer muito mal. No entanto, ela sentiu tremer sob os seus dedos, e isso apaziguou os seus temores. Seguramente um homem que tremia pelo mero fato de ela a tocar não faria mal a ela… pois não? Louisa levantou o rosto para o observar, e a sua coragem quase se desvaneceu quando viu o 132


enorme desejo que emergia dos olhos do pirata. A única coisa que evitou que saísse espavorada da cabana foi o fato de ele não a ter agarrado... pelo menos, ainda não. — Quero tentar, Silas. Contigo. Não importa o que disser, acredito que não vai me magoar. Não é verdade? — Nunca. — as mãos dele moveram-se para descansar suavemente sobre a cintura de Louisa. — mas se continuar tão perto de mim por mais tempo, juro que não poderei me conter e te beijarei. Apesar de todos os seus temores, Louisa sentiu como o pulso se acelerava. — Está bem. Ele olhou para ela como se não a tivesse ouvido corretamente. — O que é que disse? — Beije-me, Silas. Não precisou pedir novamente. Ele não pensou duas vezes. E enquanto a sua boca pousava sobre a dela, Louisa esqueceu-se de tudo que tinha acontecido com Harry, o herdeiro do ducado de Dorchester. Esqueceu-se da prisão, do julgamento e do rapto dos piratas. Tudo o conseguia pensar era que o mal-humorado do Silas beijava maravilhosamente. E há muito tempo que não sentia uma sensação tão próxima do paraíso celestial. O beijo prolongou-se e tornou-se mais insistente e mais íntimo, mas Louisa não conseguia separar-se dele. De repente, encontrou-se a agarrá-lo pelo casaco e a colar o seu corpo ao de Silas. Só quando percebeu a ereção é que deu um salto e soltou-se; o medo adormecido voltava a estar presente. Mas agora Silas sorria, algo totalmente fora do normal naquele homem. — Não se preocupe, amor. Não espero que se atire aos meus braços tão cedo. Mas agora que sei que consegue tolerar que te beije, sei que o resto virá por acréscimo. — Tem certeza? — Porque é que de repente sentia que a respiração ficara presa nos pulmões? E porque queria beijá-lo de novo? — espetei uma faca de cozinha ao último homem que... se deitou comigo. O sorriso de Silas desapareceu. — Ele merecia? — Na minha opinião, sim — respondeu ela solenemente, sem se atrever a olhar para ele. — ele… obrigou-me muitas vezes contra a minha vontade. Os dedos de Silas agarraram-na pela cintura com mais força. — Então merecia. Merecia isso e muito mais. — Os seus olhos eram respeitosos quando a segurou pelo queixo e a obrigou a olhar para ele. — e se alguma vez eu merecer, podes espetar-me uma faca na perna também. Até deixo que deforme a minha perna boa, se for isso o que tenho que fazer para te convencer a ser minha esposa. As palavras dele foram tão doces, tão crédulas, que os olhos de Louisa se encheram de lágrimas. — Oh, Silas — murmurou, rodeando-o pelo pescoço com os braços. — Não te mereço. — Não diga disparates. — Ele abraçou-a com ternura e apoiou o queixo sobre a cabeça dela. — o homem que te fez menosprezar tanto era um desgraçado, mas um dia me contará tudo dele para que eu possa fazer com que esqueça a sua traição para sempre. Então viveremos juntos, teremos filhos e seremos felizes, e ao diabo com quem tentar nos deter! «Sim, meu amor — pensou Louisa enquanto ele voltava a segurá-la pelo queixo para lhe dar outro beijo apaixonado. — Sim, oh, sim.»

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Capítulo 17 Um pequeno alarme pode evitar uma vida de estagnação. Camilla, FANNY BURNEY Sara encontrava-se no porão do Satyr, fazendo o inventário dos artigos que as mulheres tinham conseguido trazer do Chastity. os outros piratas iam regressar nessa mesma noite ou durante a manhã, e queria estar pronta para dividir os tecidos que traziam. Só quando esfregou os olhos é que percebeu de quanto a luz no porão tinha diminuído. Descera no início da tarde, que era quando as mulheres procuravam evitar estar no porão por causa do calor sufocante. Mas agora devia estar anoitecendo. Depressa teria que acender uma lamparina. De repente, ouviu a escotilha do porão se abrir e uns passos que desciam pelos degraus. Ficou imóvel. Provavelmente era uma das mulheres, mas surpreendeu-se a si própria desejando, ao mesmo tempo temendo, que fosse Gideon. Ele a tinha evitado desde aquela noite no seu camarote, tratando-a como se tivesse uma doença contagiosa. As vezes que ela se aventurara a falar com ele sobre alguma questão alusiva às mulheres, ele respondera com desprezo e continuara com os seus afazeres. Embora o comportamento dele a magoasse, disse a si própria que era para seu bem. Se Peter tinha conseguido escapar, ela depressa abandonaria aquele lugar, e devia fazê-lo tão livre como tinha chegado. Oh, se conseguisse encontrar a forma de deter Gideon para que não obrigasse as mulheres a escolher marido... na manhã seguinte era o dia em que deviam escolher, e Sara ainda não tinha a menor ideia de como evitar, de como ganhar mais tempo até que Peter regressasse com Jordan. Depois conseguiu distinguir as pernas da pessoa que descia pelas escadas. Não era Gideon, disso tinha a certeza. Gideon não usava saias. Não, era Ann Morris e quando a galesa chegou ao último degrau, Sara assustou-se ao vê-la a chorar. Assim que Ann a viu, correu para ela, com o rosto banhado por lágrimas que não paravam. — Oh, menina Willis. O que é que vou fazer? Como conseguirei aguentar? Sara envolveu a pequena mulher entre os seus braços. — Vá, tem calma, o que aconteceu? Sente falta de Peter, outra vez? Sara precisou de vários minutos para sacar a história de Ann, mas quando conseguiu, a sensação de alarme que sentia aumentou. Um dos piratas estava cortejando a moça, e quando chegasse a manhã seguinte, Ann temia que a obrigassem a casar com ele. — Parece agra... agradável... acho... — murmurou entre soluços. — mas... mas... — Não consegui terminar, desatou a chorar desesperadamente. — mas não é o Peter — sussurrou Sara. Ann assentiu, chorando sem parar. — Não vou permitir que se cases com um desconhecido — prometeu Sara enquanto a abraçava com mais força ao mesmo tempo que desviava o olhar para um ponto da parede do porão, abatida. — Este ridículo plano do Gideon de povoar a ilha já foi longe demais. Nego-me a deixar que continue em frente. Secando as lágrimas dos olhos com os pequenos punhos, Ann perguntou: — E o que pensa fazer? — Já vai ver. — Sara precipitou-se para as escadas. Chegara o momento de ter outra conversa com Gideon sobre aquela imprudência. Ele tinha que compreender que não podia entregar aquelas mulheres aos seus homens como se fossem mercadoria roubada. Não iria 134


permitir! Quando ela e Ann abandonaram o barco, não tiveram que ir muito longe para encontrar Gideon. Estava conversando com Barnaby e com Silas diante da sua cabana. Assim que ela se colocou no meio do trio, deixaram de falar. — O que quer? — resmungou Gideon, com voz tensa. Sara ergueu as costas e encarou-o com o rosto também tenso. — Quero que acabe de uma vez por todas com esta loucura de obrigar as mulheres a escolher maridos. Não acha que já foi suficiente, tu e os teus homens nos sequestrarem contra a nossa vontade? Tem que insistir em atormentar as mulheres obrigando-as a casar com uns homens que praticamente não conhecem? — Elas podem escolher. Sara soprou. — Sim, claro, a famosa escolha. Podem escolher um marido ou deixar que o escolham por elas. Mas não podem escolher ficar solteiras, não é verdade? — Acha que alguma delas anseia por essa ultima escolha, Sara? Sara voltou-se para Ann, que permanecia de pé, nervosa, atrás dela, e empurrou a jovem para a frente. — Algumas sim. Ann, por exemplo. Ela... ela... deixou um noivo na Inglaterra. Não está preparada para se apaixonar por qualquer homem à primeira vista. — Deixou um noivo na Inglaterra? — repetiu Gideon sarcástico. — é sério? Ou apenas perdeu um quando ele partiu há três dias? Quando Ann desatou a soluçar e saiu correndo, Sara olhou para Gideon com expressão acusadora. — Olha o que fez! Para sua surpresa, Silas lançou a Gideon um olhar de reprovação e depois inspirou profundamente o tabaco do seu cachimbo. — Não devia ter feito isso, capitão. Aquela moça é muito frágil, muito frágil. Barnaby esboçou uma careta de aborrecimento. — Louisa adoçou tanto o Silas que nem sequer o reconheço. — Um momento, maldito ingl... — começou a protestar Silas. — Eh! Vocês os dois! Já chega! — ordenou Gideon, antes de voltar a depositar toda a sua atenção sobre Sara. — Não vou mudar a minha opinião acerca deste assunto, Sara. Sinto muito se a Ann não é feliz, mas não acha ficará melhor com um marido e com filhos do que morrendo de pena por um noivo que provavelmente a esta hora já esqueceu dela? — Oh! Essa é a típica desculpa que um homem diria! — Sara cruzou os braços e olhou para ele desafiante. — Além disso, Ann não é a única, Gideon. Algumas das mulheres não têm vontade de se casar com um homem que praticamente não conhecem. Porque não dá mais tempo para elas? — Tempo para quê? Para que você lembre a elas do quanto seriam felizes agora, trabalhando como criadas naquele lugar esquecido por Deus, em Nova Gales do Sul? — Tempo para se prepararem para serem boas esposas. Uma mulher infeliz não é uma boa esposa, por mais que teime em não querer perceber. — Uma repentina inspiração passou-lhe pela cabeça. Gideon estava sempre a falar de como conseguiriam formar uma verdadeira comunidade em Atlântida, um lugar do qual todos se sentissem orgulhosos. E era evidente que precisavam das mulheres para conseguir, não? — mas claro, talvez não se importe se são boas esposas ou não. Desde que se portem bem na cama, não creio que tire o sono se cumprem com a sua parte do trabalho em Atlântida. 135


Os olhos de Gideon brilharam com raiva quando compreendeu o que ela pretendia dizer. — Sabes perfeitamente que me importo. Ela encolheu os ombros teatralmente. — Não para elas. Porque se deveriam esforçar em criar um lugar melhor quando as privou de todas as suas liberdades? Obrigá-las a casar com homens que dedicaram grande parte da sua vida a pecar, e que de repente anunciam que querem ter uma vida honesta. No entanto, esses mesmos homens não mostram nenhum tipo de interesse pelo que elas sentem ou acham. Só se preocupam com as suas necessidades, nada mais. Até Silas tossiu perante o comentário, e os olhos de Gideon brilharam enquanto comentava em voz sombria: — Está indo longe demais, Sara. Ela abriu a boca para responder, para protestar que ainda não tinha ido suficientemente longe, quando uma voz se interpôs no meio da tensão. — Fogo! — gritou um homem. os quatro voltaram-se e viram um dos piratas correndo pela praia, levantando nuvens de areia enquanto avançava o mais rápido que as pernas lhe permitiam. — Fogo na cozinha! Sara e Gideon viraram-se ao mesmo tempo. Sara viu primeiro, uma coluna de fumo, fina e cinzenta em contraste com a luz rosada do anoitecer. — Santo céu! Está ardendo! — Agarrou Gideon pelo braço e apontou para o lugar. — Maldição! — Gideon virou-se para Barnaby como um tufão e ordenou ao primeirotenente que reunisse os homens. — Subam ao Satyr e tragam todos os baldes que encontrem. Rápido! Se os tetos das outras cabanas se incendeiam, não conseguiremos fazer frente a este inferno! Barnaby saiu disparado como uma flecha para cumprir a sua ordem, e Gideon começou a gritar ao resto dos seus homens. Alguns piratas e mulheres já vinham da praia e Sara, Gideon e Silas mobilizaram-nos para que colaborassem. Ao seu lado, Sara ouviu como Silas murmurava: — Por favor, meu Deus, faz com Louisa não esteja na cozinha. Que esteja em qualquer outro lugar, mas não na cozinha. O pobre pirata estava esquadrinhando a praia enquanto corria, com uma expressão de profunda preocupação. Chegaram à cozinha e encontraram-na totalmente em chamas. — Louisa! — gritou Silas. Sem pensar duas vezes, o cozinheiro atirou-se para a porta da cozinha, mas Gideon o reteve. — Não pode entrar aí! É um forno infernal! De repente, Louisa apareceu ao seu lado e atirou-se nos braços de Silas. — Estou bem, Silas, juro. Não estava na cozinha quando começou o incêndio — disse ela, com a voz sufocada contra o peito enquanto ele a abraçava com força e agradecia a Deus por tê-la salvo. — Temos que apagar antes que atinja as outras cabanas! — rugiu Gideon. — É tarde demais. — Com o rosto angustiado, Silas apontou para a cabana ao lado da cozinha. Uma chispa tinha saltado e tinha prendido no teto da cabana. — o tempo foi tão seco esta semana que todas as cabanas se queimarão como simples fogueiras. — Onde estão aqueles malditos homens com os baldes? — gritou Gideon enquanto observava a praia. Sara seguiu o olhar dele, e viu os lençóis que ela e as mulheres tinham pendurado no início 136


do dia para que secassem. Algumas das mulheres estavam a choramingando junto da porta principal da cozinha, retorcendo as mãos. — Meninas! Vão buscar aqueles lençóis, molhem na água e tragam aqui! Rápido! Gideon deu a Sara um rápido olhar de aprovação. — Boa ideia. Podemos usá-los para apagar o fogo. — Enquanto tirava a camisa e se dirigia ao oceano, ordenou ao resto dos homens: — Ajudem as mulheres! Temos que apagar o fogo antes que se propague! Ann separou-se do grupo das mulheres colocou-se ao lado de Sara. O rosto dela denunciava uma enorme preocupação. — E as crianças, menina? O que fazemos com elas? — Leve para o barco e não deixe que saiam de lá até que tudo isto tenha acabado. Ann apressou-se a reunir as crianças como uma galinha apinhando os seus pintainhos. Depois disso, mais ninguém falou; todos estavam ocupados demais a encher qualquer recipiente que encontravam com água do mar e a atirá-la sobre o fogo, ou a molhar os lençóis e tentando sufocar o fogo dos telhados com eles. Lamentavelmente, os tetos de palha estavam muito secos e altos demais para poder chegar a eles com facilidade. As mulheres conseguiam alcançar os extremos inferiores com os lençóis, mas não chegavam às partes mais elevadas. e embora os homens fossem mais altos, mesmo eles não conseguiam atirar água àquela altura para empapar suficientemente os telhados e extinguir o fogo. Também não haviam muitos homens para atirar água, visto que pelo menos um terço da companhia pirata ainda estava em São Nicolau. Depois de horas intermináveis carregando baldes do oceano e a molhar os lençóis para combater as chamas, haviam dez cabanas incendiadas e a cozinha tinha ardido completamente. Sara sentia todos os músculos do corpo doridos, mas apanhou uma pilha de lençóis e começou a encaminhar-se para a praia novamente. Gideon agarrou-a pelo braço. — É inútil. Ela olhou para ele. a luz do fogo refletia-se no rosto desconsolado do capitão. A absoluta desolação na expressão dele gelou sua alma. Gideon contemplava o fogo com um olhar triste, tristíssimo, que transmitia a intensa dor que sentia. — Talvez se... — começou a dizer ela. — Não. É tarde demais. — E que acontecerá com o resto da ilha? O fogo arrasará tudo! A dor invadiu as feições de Gideon antes de poder escondê-la. — Não acredito que o incêndio se propague pela floresta. as cabanas estão construídas a uma distância considerável das árvores. Além disso, a floresta é verde e não se queimará tão facilmente. Mas perdemos as cabanas. Não temos outro remédio senão aceitar. De momento, tudo o que podemos fazer é subir ao Satyr e afastarmo-nos da costa, antes que também se incendeie o barco. A sua reação fez com que Sara desesperasse. — Não podemos deixar que tudo pereça nas chamas! — gritou Sara enquanto as outras mulheres amontoavam à volta dela. — O capitão tem razão, moça — interveio Silas. Colocou-se ao lado de Gideon. A barba castanha era agora cinzenta por causa das cinzas, e o suor escorria pelo seu rosto vermelho. — Não conseguimos detê-lo. Teremos que permitir que continue o seu curso e rezar para que não arrase o resto da ilha. — Talvez se molharmos bem as outras cabanas... — começou a dizer Sara. — Pois! Como se alguma de vocês se importasse com o que acontece com as nossas casas! 137


— explodiu Barnaby ao seu lado. Lutara contra o fogo corajosamente, e agora as suas roupas elegantes estavam manchadas de água e de fuligem. — Uma de vocês deixou o fogo aceso, e creio que todos sabemos quem foi, não, Louisa? — Deixa-a em paz — rugiu Silas, aninhando Louisa debaixo da curva do seu braço como proteção. — a moça não tem nada ver com isto. — Pois talvez tenha sido Ann — espetou Barnaby. — Não a vi por aqui em momento nenhum. Alguém a viu? Estava aborrecida porque não queria escolher marido. Provavelmente decidiu arruinar a festa aos seus inimigos. Os homens começaram a murmurar e a olhar para as mulheres com hostilidade. — Não seja ridículo. — Sara colocou a madeixa para trás com uma mão contraída. — Ann não seria capaz de fazer uma coisa destas. Sem se deixar intimidar, Barnaby olhou para Sara desafiante. — Bem, pois se não foi ela, foi outra. Foi uma destas malditas reclusas. Nunca tínhamos tido um incêndio nesta ilha. Uma destas mulheres incendiou a nossa cozinha, e provavelmente você incitou-a a fazê-lo. — Cala-te, Barnaby! — rugiu Gideon. — Não interessa quem provocou. Agora temos outras coisas mais importantes em que pensar... — Capitão? — interrompeu uma voz apagada entre o grupo dos homens. a multidão separou-se e deu passagem ao rapaz: o grumete de Gideon. — Foi tudo por minha culpa, senhor. O senhor Kent chamou-me para que o ajudasse a trazer lenha, e eu esqueci-me de apagar o fogo dos fogões. Estava cozinhando bacon na frigideira... pensei que se afastasse a frigideira... — Não importa, rapaz — disse Gideon tranquilamente enquanto passava a mão pelo cabelo emaranhado do rapaz. — foste muito corajoso em confessar. — Olhou severamente para Barnaby e para o resto dos homens. — e não percam mais tempo acusando as mulheres. o que temos que fazer agora é de despejar as cabanas, tirar qualquer coisa de valor que contenham, e salvar o Satyr. Os homens empalideceram. evidentemente nenhum deles tinha pensado no barco, mas agora começaram a trocar olhares de preocupação. Sara também olhou para eles preocupada; até ela sabia com que facilidade ardiam as velas de um navio. — Silas, encarrega-te para que os homens despejem o resto das cabanas — ordenou Gideon, — e depois subam tudos a bordo. — Voltou-se para Sara. — Reúna as mulheres e certifique-se para que todas subam no barco. E procure Ann. — Ann já está a bordo. Mandei-a para o barco com as crianças quando começou o incêndio. — Graças a Deus. Nem me lembrei das crianças. — Gideon passou os dedos pelo cabelo. — pois já é hora de nos unirmos a elas. Não sabemos até onde alcançará o fogo, antes que se apague por si próprio. — Mas Gideon! Não podemos deixar que as cabanas ardam! — Faça o que eu te digo, Sara! — espetou ele. Quando a viu retroceder angustiada, acrescentou em voz mais suave. — às vezes um homem tem de reconhecer quando perdeu. Parece que a mãe natureza nos arrancou o assunto das mãos. Agora tudo o que nos resta é rezar para que não nos arranque toda a ilha. Capítulo 18 «Ficarei ao teu lado para aliviar a tua dor, e rodearei a tua cintura com o meu braço.» E ao fim de um tempo, ela começou a animar-se com abraços e beijos, e quem sabe que outras coisas mais. 138


My Sunday Morning Maiden, JAMES N. HEALY Decorridas varias horas, Sara finalmente aventurou-se a sair ao convés do Satyr. Ela e as outras tinham caído exaustas nas camas, antes da meia-noite, quando Gideon garantiu que não era preciso que ficassem mais tempo acordadas. O fogo já estava praticamente extinto, mas ninguém teve a coragem de ficar para contemplar a cena até o fim. Sara abraçou-se a si própria e olhou para a praia que se estendia a poucos metros do barco. Então soltou um gemido de horror. Apesar de nada ter mudado desde a última vez que observara a ilha, a cena parecia mais angustiante depois de umas horas de sono. Todas as construções tinham sido destruídas: cada construção derrubara-se sobre o chão de madeira. A lua impassível brilhava sobre os escombros, iluminando uns amplos quadrados negros sobre a areia, como se fosse uma infinidade de remendos de um edredão de cor creme. O fumo ainda subia para o céu para envenenar o límpido ar da noite e dar uma imagem irreal do ambiente. Pelo menos Gideon acertara quando disse que a floresta não arderia com tanta facilidade, pensou ela. Apesar de algumas folhas secas das palmeiras terem queimado, o fogo não tivera força suficiente para se propagar e devorar a floresta verde e úmida, formada por uma vegetação tão espessa. O vento também tinha jogado a seu favor, já que empurrara o fogo para o rio, que agira como uma barreira protetora do bosque, embora algumas das árvores ao lado do rio mais próximas da praia tivessem sofrido irremediavelmente com a fúria do fogo. Sara avançou pelo convés para ter uma vista melhor, e foi então que viu Gideon. Estava de pé, de costas para ela, com as mãos coladas ao varandim, observando a praia. Obviamente, não se preocupara em vestir mais roupa depois dos banhos no oceano, que todos tinham tomado previamente com a intenção de se livrar da fuligem e das cinzas. Ainda vestia apenas os calções e o cinturão que brilhara durante todo o dia. Estava sem camisa, sem casaco e descalço. Nunca tinha parecido tão selvagem. Ou tão só. Uma repentina pontada de dor atravessou seu coração. Aquela era a sua ilha, o seu paraíso, o seu sonho. Um descuido momentâneo reduzira-a a cinzas em apenas algumas horas, e não tinha ninguém a quem procurar para encontrar consolo. Os seus homens dormiam há horas, assim como as mulheres. Mas de qualquer forma, ele nunca procuraria consolo em nenhum deles. Só restava ela , e apesar de saber que ele não gostaria da sua preocupação, não conseguia suportar a ideia de abandoná-lo naquele duro momento. Aproximou-se dele, e colocou a mão sobre as costas nuas. — Gideon? Os músculos do capitão ficaram tensos sob a mão dela. — Vai embora, Sara. Surpreendida elo tom feroz da sua voz, ela começou a retroceder tal como ele pedira, mas parou de repente. Dissesse o que dissesse, não era conveniente que ficasse sozinho naquele momento. Sara voltou a aproximar-se dele e deslizou a mão até ao ângulo reto que formava o cotovelo dele. — Não consigo. Sinto que... que devia fazer alguma coisa. — Não pode fazer nada. Volta para a cama e deixa-me sozinho. Sara observou o perfil do pirata, e viu como também estava tenso e retraído. Mas não havia uma gota de frieza nos olhos dele. Pelo contrário, os seu olhar estava triste, com a dor, uma dor tão profunda como a imensidão do oceano que embalava o barco para a frente e para trás. Não 139


conseguia deixá-lo sozinho quando era evidente que se sentia tão torturado. — Atlântida significa muito para você, não é? — sussurrou ela. — Sara... — começou ele a dizer em tom de aviso. — Não tem que ser o fim, sabe? Gideon deixou escapar um grunhido abafado enquanto se voltava repentinamente para olhar para ela, livrando-se da mão dela. — É o fim! Maldição! Será que não tem olhos na cara? Tudo se perdeu, tudo! — apontou com a mão como se quisesse abranger a praia que se estendia à frente deles. — Não sobrou nada, excetuando umas tábuas! — Mas podemos reconstruir, erguer novas casas, casas melhores. — Reconstruir? — ele olhou para ela com fúria e colocou as duas mãos por baixo das suas ancas. — Sabe quanto tempo precisamos para construir aquelas moradas tão sóbrias, para cortar as árvores e serrar e lixar as tábuas de madeira e encontrar palha suficiente para os telhados? Meses! — Mas desta vez não vão precisar de tanto tempo. Vocês contam com ajuda. Nós ajudaremos. Um músculo ficou rígido no queixo do capitão. — Sim, claro, vocês ajudarão. Vocês, que tanto nos odeiam. Mesmo antes de começar o incêndio, estava me ameaçando em renunciar de toda a responsabilidade para a colônia se não obtivesse o que queria. E olha para ali, de nada serviram as tuas ameaças. Foi tudo ao ar. E provavelmente todas vocês se riram às gargalhadas na cama por tudo quanto aconteceu. As palavras magoaram-na com a força de uma bofetada. Gideon tinha boas razões para pensar assim, no entanto... — Não é verdade. Sabe que fizemos tudo o que pudemos para ajudar a extinguir o fogo. — Talvez. — Quando ela olhou para ele indignada, Gideon retificou entre os dentes. — está bem, sim. Você e as outras ajudaram. Mas isso não significa que estejam dispostas a nos ajudar a reconstruir a colônia. Porque o iriam fazer? Não têm nada a ganhar de um monte de maridos que toda a sua vida não fizeram outra coisa senão praticar delitos. Sara pestanejou perante o eco sarcástico das palavras que ela própria proninciara umas horas antes. Não se arrependia de ter dito, de nenhum modo. Mas não gostou de ouvir de novo naquelas circunstâncias, quando ele e os seus homens acabavam de perder tudo. — A situação mudou — murmurou Sara. — Não gostaria... não gostaria de ver vocês sem lar. Tenho a certeza que podemos afastar as nossas diferenças para um lado durante um tempo para… para ajudar a que a ilha fique tal como estava. Ele apoiou as costas no varandim; a sua expressão era uma mistura de raiva e de frustração. — Sério? Que simpático! Sara sentiu que estava prestes a perder a paciência, mas conteve-se. Isso era precisamente o que ele queria, afastá-la para poder se consumir no desespero. Mas não era disso que Gideon precisava. — Sim, a sério. Quero ajudar, Gideon. Quero ajudar a reconstruir Atlântida. — Reuniu toda a sua coragem e acrescentou: — Bem, isso se demonstrar que quer lutar em vez de desistir. Os olhos de Gideon brilharam. — É a mulher mais hipócrita e mais chata que já conheci! — Afastou-se subitamente do varandim para a prender pelos ombros com tanta violência que até a machucou. — Nunca se dá por vencida? — Não. — Apesar da fúria que ela parecia ter despertado nele, Sara manteve o olhar firme e sereno. — acho que é este sangue reformista que corre pelas minhas veias. Não descanso até 140


mudar tudo. — depois acrescentou, quase desafiante: — e todos. Gideon censurou-a com um olhar gélido. — Pois é melhor não tentar comigo. Não gosto nada de mudanças. De repente, a sua fúria pareceu abrandar até se transformar em algo mais, algo escuro e perigoso e obviamente perverso. Fechou as mãos sobre os ombros dela, depois deslizou-as até rodear o seu pescoço, e colocou os polegares sobre cada uma das veias que a pulsação batia descontroladamente. Então, baixou a voz até a converter num sussurro e disse: — Talvez tenha chegado a hora de perceber. Gideon acariciou a parte posterior da cabeça com uma mão, e o pânico subiu à garganta de Sara enquanto ela levantava as mãos e as apoiava no peito dele para o separar. — Posso saber o que está fazendo? — Desde o primeiro dia tentou me mudar. — Os olhos dele brilhavam sob a luz da lua. — Pois só há uma forma de combater contra isso: te perverter, te corromper. Sara compreendeu o que Gideon queria dizer. Prendeu-a com a outra mão pela cintura e obrigou-a a colar o seu corpo ao dele. O alarme e apenas um pequeno tremor de excitação perante o desconhecido invadiu o peito dela. — O que... o que te faz acreditar que consegue me corromper? Gideon aproximou a cabeça até que os seus lábios ficaram apenas a uns centímetros dos dela. Sara conseguia notar a respiração devastadora dele através da sua boca tremula. — Pode-se corromper toda as pessoas, Sara, até você. Então a boca dele pousou sobre a dela, dura e implacável… e sim, corrupta. os bigodes arranharam-lhe a pele enquanto se apoderava completamente da boca dela, como um conquistador, da forma que um homem o faria com predisposição à corrupção. Ela tentou juntar as suas forças debilitadas, se obrigar a lutar contra ele, mas foi tudo em vão. A boca de Gideon seduziu-a, até que conseguiu que abrisse os lábios; então colou a língua dentro com lentas investidas que eliminaram qualquer pensamento na sua cabeça. Era um beijo perverso, meticuloso e calculista, com a intenção de ela também responder de uma forma perversa. E assim foi. Sara deslizou os braços ao redor do seu pescoço e devolveu-lhe o beijo com um vergonhoso abandono, consciente de que estava totalmente colada ao corpo meio nu de Gideon e que inevitavelmente se empurrava para o abismo, ao cair na sua própria perdição. Rapidamente as mãos de Gideon manuseavam o seu corpo, tateando ligeiramente as costelas até que pousaram sob os seus seios. A língua travessa continuava revolver uma e outra vez dentro da sua boca, enredando-se à sua língua, e enquanto isso, colocou os polegares sobre os mamilos e começou a acariciá-los através da fina camisola. Sara ofegou e enrijeceu os braços ao redor do pescoço dele. No mesmo instante, o beijo tornou-se mais feroz e mais urgente. Gideon desceu as mãos até as colocar sobre o traseiro e coloua mais a ele. Umn som proveniente de uma das escotilhas conseguiu que se separassem, ofegando como dois cavalos de corridas na reta final. Ela olhou à sua volta, e as faces coraram imediatamente. Felizmente, não havia ninguém. Quando voltou a olhar para ele, Gideon observava-a como um lobo observa um coelho. — Venha ao meu camarote, Sara. Agora. Fica comigo o resto da noite. Ela olhou para ele fixamente, ao princípio sem compreender, com a mente tão embriagada pelos beijos que custava saber onde estava. Mas quando compreendeu as palavras dele, abriu a boca para protestar. Depois reparou nos olhos dele. Denunciavam uma necessidade de carinho, não apenas lascívia. Negavam toda a insistência de que ele era imune a qualquer ato de mudança. Ele a queria, sim, mas também precisava dela, embora ainda não tivesse consciência disso. Sara hesitou uns minutos, e ele ficou tenso, apertou os lábios até formarem uma linha fina e 141


tensa. — Não, suponho que a recatada lady Sara não seria capaz de fazer algo parecido. Havia tanto orgulho ferido, tanta raiva na voz dele, que quando ele a soltou e começou a virar-se para se afastar, ele respondeu: — Se enganou. Gideon olhou para ela sem pestanejar, estudando o rosto dela. Ao sentir-se examinada, ela considerou as suas palavras. — Bem, quero dizer... que... — Não vou permitir que retire o que disse. Não esta noite. Depois daquela declaração, agarrou-a nos braços, sem dar oportunidade de protestar nem de responder. a luz da lua iluminava a cruel determinação da sua boca, o olhar sedento dos seus olhos. Sara continuou a observá-lo com a boca aberta, sentindo o coração bater descontroladamente no peito, enquanto ele a levava nos braços através do convés e da porta da cabina. Uns segundos mais tarde, quando ela viu a porta do camarote de Gideon entre aberta diante deles, ficou sem respiração. Por todos os santos, oque estava fazendo? Perdera completamente o juízo? Estava permitindo que um pirata a levasse para a cama dele! Sim, um pirata... que beijava maravilhosamente, que a fazia sentir coisas que nunca tinha sentido antes. Não estava louca; estava apenas cansada de lutar, cansada de resistir ao enorme desejo de que ele a tocasse. Gideon deu um pontapé na porta e entrou no camarote, depois deu outro pontapé para fechar a porta atrás deles. O trinco fechou-se automaticamente com um ruído cruel. Timidamente, ela contemplou o camarote que apenas tinha visitado duas vezes anteriormente. A chama da lamparina situada ao lado da cama tremeluzia graciosamente, seguindo o ritmo do balançar do barco: adquirindo de repente um brilho mais consistente para depois voltar a tremeluzir com uma tênue luz. Daquela forma conseguia iluminar o edredão escarlate sobre o qual provavelmente dezenas de mulheres se tinham deitado. O seu coração começou a bater mais descontroladamente. Não devia de estar ali, não com ele. Ela não podia ser uma daquelas mulheres. Ou era? Levantou o olhar e olhou para o rosto dele, procurando algum indicio que lhe desse a entender que aquilo significava mais para ele do que as suas anteriores conquistas. Mas quando os olhos se encontraram, aquela possibilidade deixou de a preocupar. Sentiu-se aprisionada na urgência que irradiava o corpo de Gideon, uma urgência que refletia a sua. Em desviar os olhos dela, Gideon colocou-a no chão e ela ficou de pé diante dele, tão perto da cama que roçou o edredão com o joelho quando tentou recuperar o equilibrio no chão. — Vire-se — ordenou ele. Sem saber porquê, Sara obedeceu. No mesmo instante, as mãos de Gideon começaram a desapertar-lhe o corpete, e ela sentiu-se invadida por um delicioso calafrio... un calafrio de anticipação. Despiu-a como um homem que sabia exatamente o que fazia. A camisola branca, virginal, caiu ao chão, e ficou apenas com a roupa interior. Foi então quando ele baixou o tecido que cobria os seus seios até os deixar a descoberto, que ela começou a sentir pânico. Apesar de Gideon já ter visto seus seios antes, nunca o tinha feito com tanto descaramento. E, evidentemete, nunca num cenário tão embaraçoso. Fazia com que a sua união fosse práticamente inevitável. Quando ele continuou a baixar a roupa interior e chegou às ancas, Sara agarrou-o pelos pulsos com as duas mãos. — Gideon, por favor... eu nunca... quero dizer... que sou... sou... 142


— é virgem. — Ele obrigou-a a virar-se para poder olhar para ela nos olhos. A expressão dele era tão sincera que Sara pensou que o coração ia arrebentar. — eu já sabia. Nenhuma mulher batalhou tanto para conservar a sua inocência. Mas não precisa de lutar agora. Gideon deslizou uma mão ao longo do corpo dela até alcançar o seio nu, e começou a acariciar o mamilo até Sara começar a respirar com dificuldade. — Está tão pronta quanto eu, linda. E se não acredita em mim, depressa vai acreditar. Prometo que nunca se lamentará por ter perdido a virgindade Embora ela suspeitasse que ele tinha razão, o seu rosto adquiriu uma profunda cor vermelha quando ele acabou de tirar a roupa interior, deixando-o tão nua como a sua mãe a trouxera ao mundo. Gideon retrocedeu uns passos e observou-a com um longo olhar sedutor, deleitando-se com os seios, o ventre… com o triângulo de pêlo encaracolado entre as pernas dela. Sara não conseguia acreditar que estivesse suportando aquele olhar indecente, que até lhe agradava. Mas claro, se alguém tivesse dito um mês antes que estaria nua ao lado da cama de um pirata, desejando que ele a tocasse como se fosse uma miserável rameira dos bairros pobres, teria morrido de rir. Uma mulher com caráter se taparia, mas estava farta de ser uma mulher com caráter. Nenhum homem a tinha examinado assim, e apesar da vergonha que sentia, também notou um certo orgulho feminino pelo fato de se sentir admirada. Sob aquele olhar, a sua respiração ficou tão acelerada quanto a dele. E assim continuou até que ele deslizou um dedo desde a parte inferior do seio e foi descendo até chegar ao ventre, e a seguir, às pernas. Então Sara deixou de respirar completamente. — Tem um corpo digno de ser corrompido — sussurrou Gideon. — e a minha intenção é corrompê-lo esta mesma noite. Sara estremeceu levemente perante aquelas palavras, um tremor que aumentou quando ele se sentou na cama, agarrou-a pela cintura e atraiu-a para ele até ela ficar de pé no meio das pernas dele. A boca sedenta de Gideon pousou sobre um dos seus seios e começou a chupar o mamilo com força; então ela começou a ofegar. Porque tinha que fazer de uma forma tão deliciosa? Porque não era um desajeitado ou agia de forma estranha ou cruel? Se assim fosse, ela conseguiria lutar contra ele. Mas Gideon era um mestre da sedução. Enquanto que com a boca lhe acariciava um dos seios, com os dedos manuseava o outro mamilo até que conseguiu que ficasse tão duro quanto uma pedra. Sara sentia uma insólita dor por cusa daquela boca tão quente e daqueles dedos tão experientes. Agarrou-se a ele com mais força e ele suspirou. — Mmmm... és tão doce — murmurou contra o seio. — te quero há tanto tempo... tanto tempo... Depois voltou a lamber o seio, distraindo-a enquanto deslizava uma mão pelas costelas, pela cintura, pelas pernas. Apanhou-a completamente desprevenida quando colocou as pernas entre as dela, e depois aproximou-a mais dele até ficar sentada sobre o seu colo, com as pernas dobradas e apoiadas na cama ao lado das ancas dele. O movimento obrigou-a a abrir-se de uma forma tão arrojada diante dele que se sentiu sufocada novamente e escondeu o rosto so ombro dele. Mas ele nã permitiu o luxo de se esconder. Agarrou-lhe o queixo e olhou para ela nos olhos, enquanto um sorriso perverso aparecia nos seus lábios. — Se lembra do que fiz no bosque? Quer que volte a fazer? Sara apenas conseguia olhar para ele num silêncio embaraçoso, incapaz de pronunciar uma palavra. Ele baixou a mão e colocou-a sobre a perna dela, e procurou a pele mais delicada da sua púbis. Um tremor de desejo embriagou-a, e para sua perturbação, a parte inferior do corpo dela, 143


balançou um pouco para ele. com olhar confiante, ele estendeu a mão até abranger todos os pêlos úmidos. Mas parou ali. Olhou intensamente para ela. — Quero te ouvir dizer, Sara. Diga o que quer. Diga que me quer dentro de você. As faces dela coraram ainda mais Oh, Gideon era demasiado cruel. Estava fazendo-a pagar por todas as coisas que tinha dito, por todas as vezes que o recusara. — Sei que é isso que quer — continuou ele, com uma provocante voz confiante. — mas quero que diga. Não quero que amanhã vá ter com as outras mulheres e digas a elas que te violei contra a tua vontade. — Com o polegar afastou o pêlo úmido e acariciou a pequena protuberância, e ela apertou-se mais contra ele de uma forma descarada. Mas Gideon afastou o polegar depois daquela breve carícia. — Diga que me quer, Sara — pressionou-a ele. — Diga! Nesse momento, com a mão, acariciava-lhe novamente a parte de dentro da perna, e Sara morria de vontade por sentir aquelas carícias tão eróticas um pouco mais acima. Ficou tensa, tentando aproximar-se mais daquela terrível mão e da sua tentadora oferta de prazer. Mas ele afastou a mão quando percebeu o que ela pretendia. — Por favor, Gideon... por favor... toque-me. — as palavras saíram da boca dela antes de conseguir evitar. A voz não parecia a dela, tão ofegante e erótica. Outra mulher possuía o seu corpo, obrigando-a a agir como uma rameira, e ela não conseguia detê-la. — Por favor... Gideon franziu a testa. — então, isso é tudo o que eu vou conseguir de você, não é? Muito bem. Acho que é o suficiente, por agora. Em seguida, deslizou um dedo dentro dela numa investida aveludada que conseguiu arrancar um gemido dos lábios de Sara. Gideon começou a mover o dedo lentamente... dentro... e fora... dentro... e fora. Ela seguiu o ritmo contra aquela mão-travessa, e quando o olhar sedento e devorador dele sobre ela se tornou insuportável, Sara escondeu o rosto no ombro dele. O cabelo de Gideon afagava-lhe a face. Cheirava a fumo e a cinza. Apesar dele ter tomado banho depois de lutar contra o fogo, ainda tinha o aroma do Príncipe da corrupção… cheirava a chamas, a cinza e a enxofre. Mas não importava. Ele estava às portas do inferno, convidando-a a entrar, e ela lançava-se para ele sem hesitar um segundo. Que Deus a perdoasse, mas desejava-o loucamente. Desejava-o mais do que a outra coisa no mundo. Estivera condenada à perdição desde aquele dia no bosque, e esta noite apenas selava o seu destino. Gideon esfregou-lhe a face com o nariz, depois procurou a boca dela e conquistou-a com uma fúria selvagem qua apenas aumentou a indescritível necessidade à qual Sara se sentia aprisionada. A língua dele imitava os movimentos do seu dedo, entrando e saindo. Ela sentia o pênis ereto no meio das suas pernas, mas também não se importava; a única coisa que importava era a revigorante sensação que ele despertava com aquelas investidas tão profundas e eróticas. Gideon interrompeu o beijo; a sua respiração era ofegante, gutural. Depois o cabelo de Sara tapoulhe o rosto enquanto uns novos e estranhos sons começaram a escapar dos seus lábios. A pressão do musculoso peito de Gideon contra os seios, agora tão sensíveis, só aumentava as deliciosas sensações. Gideon levou-a à beira do mesmo prazer que tinha dado antes, mas afastou a mão abruptamente. Sem conseguir conter-se, Sara protestou, olhando para ele com os olhos dilatados. Mas ele tinha uma expressão perversa. — Desta vez não, linda. Desta vez chegaremos juntos ao orgasmo. Ela olhou para ele confusa, sem perceber o significado daquelas palavras. Gideon ergueu-a 144


do seu colo e deitou-a na cama, enquanto ele ficava de pé na beira da cama. Começou a desapertar o cinturão, tirou-o e lançou-o para o lado. Sara ouviu como ele caiu no chão do camarote enquanto ele desapertava os botões dos calções e os despia. A boca dela formou um O silencioso ao vê-lo completamente nu. Então aquele era o aspecto que um homem tinha! Pensou que ninguém a poderia ter preparado para a visão de Gideon sem as roupas. O ventre liso e marcado pelas cicatrizes de muitas feridas... o umbigo rodeado por um pêlo escuro... as pernas fortes e musculadas que testemunhavam as intermináveis horas passadas tentando manter o equilíbrio no convés de um barco oscilante… tudo aquilo conseguiu excitá-la e assustá-la de uma só vez. Mas o que mais a impressionou era o que jazia entre as pernas dele. Completamente ereto, Gideon homem suficiente para impressionar qualquer mulher. E pensava meter aquilo dentro dela? Que barbaridade! Ia matá-la! — Não... não consigo. — Sara levantou o rosto e olhou para ele, desesperada porque ele a compreendera. — Não consigo fazê-lo! Sentou-se na cama e agarrou numa almofada para cobrir a sua nudez, mas ele foi mais rápido do que ela. Saltou para a cama, ajoelhou-se ao lado dela, e Sara esperou que ele ironozasse com as lágrimas dela. Mas em vez disso, Gideon agarrou a pequena mão fechada, e levou-a à boca e beijou os dedos até conseguir que ela relaxasse e a abrisse. Antes de ela perceber o que Gideon estava fazendo, ele agarrou a mão dela e colocou-a sobre o seu membro ereto. Sara tentou retirar a mão, mas ele fechou os dedos à volta dos dela. — Olha — murmurou ele com voz tensa, — não aconteceu nada. É apenas um bocado de carne. Um bocado de carne sensual que morre de vontade por estar dentro de ti, porque sabe que é esse o lugar que lhe pertence. Gideon moveu a mão dela sobre o pênis, deixando que ela sentisse a pele suave e aveludada que rodeava a sua ereção. Afastou os dedos, e ela continuou o movimento até que ele começou a ofegar e subitamente retirou-lhe a mão. — Vou ficar louco se continuar me acariciando assim, linda. Estou excitado demais, pronto para ti. — sorriu para ela. — e você está pronta para mim. Quando ela abriu a boca para protestar que nunca conseguiria estar pronta, ele beijou-a, apertando-a com tanta paixão entre os braços que Sara teve dificuldade em respirar. Antes que pudesse perceber, ele começava a deitar-se novamente, mas desta vez colocou-se em cima dela e abriu-lhe as pernas com os joelhos. Depois, começou a penetrá-la. Sara ofegou perante tal intrusão e afastou a boca dele; estava aterrorizada. — Não aconteceu nada — sussurrou Gideon com voz calma. — Relaxa, linda. Relaxa. — Como quer que eu relaxe? — respondeu ela com medo. Tinha consciência que ele estava dentro dela, sobre ela, à volta dela. nunca tinha se sentido tão desamparada, tão dominada. Uma madeixa de cabelo preto caiu sobre a testa de Gideon, dando-lhe um aspecto mais endiabrado, embora as palavras que disse a seguir não tivessem nada de perversas. — Não sei — murmurou com incerteza. — é a primeira vez que me deito com uma virgem. Ele afundou-se um pouco mais dentro dela, e Sara ficou tensa. — Fantástico! — disse Sara sarcasticamente, enquanto notava ainda mais a sensação de intromissão. — sendo assim, é um principiante. Os lábios de Gideon ficaram tensos, numa fina linha, tentando não desatar a rir. Ou a rugir. — Só sou principiante com as virgens. Mas vou corrigir essa situação. Afundou-se mais dentro dela, mas deteve-se abruptamente. os olhos dele observaram-na solenemente. — Sabe que vou te machucar quando romper o hímen, não sabe? 145


Ela assentiu com a cabeça, sem dizer uma palavra. — Confia em mim, em como não te machucarei mais do que o necessário? Cada músculo do rosto de Gideon parecia prestes a rebentar de tanta tensão pelo fato de estar penetrando tão lentamente, e os olhos brilhavam de desejo. No entanto, conteve-se, esperando ouvir a resposta. Aquilo ajudou Sara a repetir-se como nada mais o teria conseguido. Gideon podia ser um pirata, mas não a magoaria deliberadamente. — Confio em você — sussurrou ela. — Está bem. — Ele afundou-se completamente dentro dela. Foi apenas uma pequena e fugaz explosão de dor, embora tivesse sido o suficiente para que ela soltasse um gemido. Gideon sufocou o grito com a sua boca, beijando-a até ela relaxar. Então começou a mover-se, deslizando-se dentro dela com investidas lentas e prolongadas. De inicio Sara notou uma pressão esquisita. Depois a fricção começou a aquecê-la, provocando novas sensações perturbadoras dentro dela. sentia-se aberta para ele, como uma vela disposta a aceitar o forte vento contra ela, dentro dela. Gideon parou por um momento e olhou para ela com aqueles olhos azuis como o céu e como o mar agitado. depois penetrou-a mais profundamente, mais vigorosamente, e Sara começou a desejar mais. A sensação era de como estar no paraíso celestial e sentir o suplício do inferno ao mesmo tempo. Ele era dela, mas não de todo... queria mais, queria muito mais dele. Estando apenas meia consciente dos seus atos, Sara agarrou-se aos braços fortes de Gideon para que ele a penetrasse mais profundamente. Gideon ofegou; o desejo tingiu visivelmente o seu rosto quando aumentou o ritmo das suas investidas. Agora penetrava-a como se tivesse medo de perdê-la, e ela espetou as unhas nos braços dele para afastar a agitação. Naquela altura, Sara viu como se ele tivesse alcançado o mais profundo do seu ser. O barco balançava a ele, e ele balançava a ela, investindo cada vez com mais força, aumentando a tensão dentro dela até que soltou um gemido por causa da urgência do desejo: desejava-o com todas as suas forças. — Por Deus — murmurou ele enquanto a penetrava selvagemmente, como uma mítica besta marinha cavalgando sobre as ondas. — Por Deus, Sara... minha Sara... sim, minha Sara... Ela tentou afundar a cabeça na almofada quando sentiu a explosao de tensão dentro dela, e gritou e ofegou, e agarrou-se a ele com mais força para se derreter com o corpo dele. — Sim... oh, sim… Sara! — exclamou ele, derretendo-se finalmente com ela. Espasmos incontroláveis invadiram o corpo dele enquanto se desfazia dentro dela. Sara perdera completamente a noção da realidade, e sentia-se como se voasse pelo espaço. Enquanto ela gritava de prazer debaixo dele, não teve outro remédio senão pensar por um momento, que no final, ele tinha feito exatamente o que prometera. Tinha-a corrompido. E embora custasse a aceitar, sentia-se em glória. Sim, realmente era corrupta, muito corrupta. E sabia tão bem ser corrupta! Capítulo 19 Basta uma pessoa abandonar o babete e a bata do colégio, as pessoas começam a gritar: «a menina depressa se casará!». Que ridiculo! Essas pessoas querem privar-nos de todos os prazres da vida, precisamente quando começamos a tomar-lhes o gosto. The Story of Miss Betty Thoughtless, ELIZA HAYWOOD, actriz e dramaturga inglesa 146


Sara estava sonhando. Gideon encontrava-se ao seu lado, no altar, com aspecto civilizado e o porte de um cavalheiro inglês. O seu cabelo preto estava agora curto, pela altura das orelhas, sob o chapéu de coco feito de feltro, e o sabre tinha desaparecido. Vestia um casaco da moda de um azul intenso, e ela brilhava num vestido branco de seda, com um bonito chapéu debruado com um laço e caules de flores de laranjeira. Olhou à sua volta. A igreja estava superlotada pelas reclusas e pelos piratas que se dedicavam a dançar, a beber e a profanar o local sagrado. Através das portas entreabertas conseguiu ver Peter e Jordan, mas parecia que eles não queriam entrar. Em vez disso, olharam para ela desaprovadoramente antes de lhe virar as costas. Ela tentou ir atrás deles, mas Gideon agarrou-a pelo braço e reteve-a. De repente, o casaco desapareceu, revelando a jaqueta de pele e o sabre que se escondiam por baixo, e ela percebeu que tudo fora um erro. — Agora pertence a este lugar. — a expressão de Gideon era rígida e distante, e espetavalhe cruelmente os dedos no braço. — nos pertence. É uma de nós. — Mas quero falar com o meu irmão… tenho que ver Jordan… por favor, me deixe ver o meu irmão… Sara acordou com o som da sua própria voz sussurrando o nome de Jordan. Precisou de uns minutos para perceber que estava sonhando, e outros tantos para se lembrar onde estava. Sacudiu a cabeça repetidamente para esclarecer as ideias, sentou-se na cama vazia e olhou para o camarote de Gideon, enquanto subitamente a vergonha que a invadia tingia as suas faces de rosa. Por todos os santos, estava nua na cama de Gideon. Um série de memórias da noite anterior surgiu de repente diante dos seus olhos: Gideon que a obrigava a admitir que o desejava… a segunda vez que fizeram amor, quando ele a colocara sobre ele e deixara conduzir o ritmo…a sensação de vertigem e de bem estar, e por fim, como adormecera enquanto ele a estreitava entre os seus braços. Pelo menos não tinha acordado nos braços dele. Não conseguiria suportar. A noite anterior parecera perfeitamente correto entregar-se a ele. A sua luta umas horas antes, o fogo, tudo tinha conspirado para lançar aos braços um do outro. Mas agora, sob a dura luz da manhã, sabia que fora um erro. Um erro colossal. Peter regressaria com Jordan. Como poderia olhar para eles, sabendo que se desonrara a si própria e à sua família? Era evidente que não podia dizer nada a Gideon. Não, não seria capaz de explicar… porque fora tão fraca na noite anterior... e porque não podia continuar a ser fraca. Ele não compreenderia porque não podiam continuar como amantes. Bom, isso se ele quisesse. Talvez não. Ainda não dissera que queria casar com ela. Sara franziu a testa. Mas ela também não queria casar com ele. não, de forma alguma. Tal como o sonho mostrara, casando com ele não faria mais do que confirmar o seu erro descomunal. Levantou-se rapidamente dos lençóis que ainda exibiam a mancha vermelha reveladora da perda da sua inocência. Deteve-se um momento a olhar para ela. Já não era virgem. Nunca voltaria a ser. Mas não havia tempo para se lamentar disso. Tinha que se vestir e sair dali antes que ele voltasse, antes que lhe fizesse esquecer todas as suas boas intenções. Completamente consciente da dor que sentia entre as pernas, procurou a sua roupa interior pelo chão, mas não havia rasto dela. Procurou freneticamente por todo o lado. Toda a sua roupa desaparecera. — estás à procura disto? — inquiriu uma voz da porta do camarote. Ela virou-se repentinamente enquanto sentia que o coração lhe ia rebentar. Gideon estava 147


apoiado no limite da porte, segurando a sua roupa interior com um dedo. Vestia uns calções cinzentos e uma camisa branca desapertada quase até à cintura. À luz da manhã, tinha um aspecto tão bonito, tão encantador e tão estrondosamente masculino que Sara ficou sem fala. Maldito fosse aquele homem! Porque tinha que ser tão bonito? — imaginei que tentasses fugir enquanto eu não estava, e tomei a liberdade de levar a tua roupa. — pousou o olhar sobre as sinuosas curvas do corpo nu. — Já percebi que foi um golpe de génio. Ela ficou vermelha como um tomate. Uma coisa era estar nua à frente dele a meio da noite, quando ela se sentia embriagada pela paixão, e outra bem diferente, era estar nua em plena luz do dia. Sara olhou furtivamente para a porta aberta. E se um dos seus homens entrasse no salão? Que vergonha! Levantou uma mão para Gideon. — Por favor, dá-me a roupa. Ele entrou devagar na diviao e fechou a porta. Sorrindo, pendurou a roupa interior no gancho da porta e depois aproximou-se dela. — Ainda não. Gosto de te ver assim pela manhã. Terás tempo de te vestir mais tarde. — mas... mas... Gideon rodeou-lhe a cintura e puxou-a para ele. aquela luz familiar que saía dos olhos dele era a mesma que tinha visto quando ele a observou nua na noite anterior. E para sua vergonha, ela sentiu-se novamente suave e líquida sob o fogo daquele olhar. — Bom dia — murmurou ele enquanto inclinava a cabeça para ela. — Por favor, Gideon... — Muito bem, linda. Diga: «Por favor, Gideon..., mais, Gideon... te quero, Gideon». — Sabe que quando quer consegue ser muito arrogante e...? Ele abafou as palavras dela com um beijo, um longo e esfomeado beijo que a deixou a tremer como um pudim. Quando por fim Gideon se afastou, ela ficara sem fala e ele sorria. — Está muito melhor. Vejo que segui o caminho errado contigo. Devia ter-te beijado cada vez que abria a boca. Sara ergueu o rosto como uma serpente que se prepara para atacar. — Olhe, capitão Horn... Desta vez, quando ele a calou com outro beijo, não se contentou apenas com isso. Desta vez ergueu-a nos braços e levou-a para a cama, fazendo amor com ela a cada passo com a boca. E quando finalmente ficaram deitados no leito, Gideon tirou rapidamente a roupa antes de lhe separar as pernas com os joelhos. A única coisa que Sara conseguiu fazer foi abrir-se para ele, preparar-se para recebê-lo, e ele penetrou-a com uma ferocidade que a deixou completamente intumescida. Desta vez fizeram amor de forma precipitada e selvagem, com a pressão de duas pessoas que temem nunca mais voltar a ter a oportunidade de unir os seus corpos. Sara assustou-se ao descobrir que tinha tanta vontade quanto ele. queria senti-lo dentro dela, ao seu redor, e que ele afastasse todos os seus medos. Queria que ele fosse dela, mesmo sabendo que nunca seria. Depois tombou ao lado dele exausta, embalada pelos braços deles. Apesar dos sons de passos pelo convés mesmo do outro lado da parede, e de Barnaby a dar ordens aos marinheiros, Sara sentia-se repousada e satisfeita entre os braços de Gideon. Como permitira que voltasse a acontecer? Que diabo perverso se apoderara do seu ser, fazendo-a esquecer todas as suas boas intenções no segundo em que ele a tinha tocado? Agora não tinha duvida nenhuma, Gideon era verdadeiramente um sátiro, um sátiro com um enorme talento, que conseguia conquistá-la sempre que tivesse vontade. E o pior de tudo era que sabia disso. 148


Beijou-a na orelha, e o fôlego fez cócegas nas faces coradas. Então, ele esticou os dedos provocantemente sobre o seu ventre. — O que diz a canção de Salomão? «o teu ventre é como um monte de trigo, rodeado lírios.» Por todos os santos, agora o maldito estava a recitar poesia bíblica no contexto mais ofensivo. Era efetivamente perverso. — «E os seus seios...» — continuou ele. — Gideon! — protestou ela, retorcendo-se para olhar para ele enquanto notava como corava. — sinceramente, essa passagem é muito indecente. Não foi escrita para ser... repetida em voz alta. Ele sorriu-lhe, com expressão de quem não estava arrependido. — Sou um pirata. Supõe-se que devo dizer coisas indecentes. — piscou-lhe um olho e começou a brincar com as madeixas do cabelo dela, depois colocou-as sobre os ombros e sobre os seios. — mas se insiste em ser ponderada, falarei de algo menos... indecente. Como o seu cabelo. — pigarreou com uma delicadeza que ela não teria esperado da parte dele. A voz era suave, quase como um sussurro. — gosto do teu cabelo. É como as moedas de cobre e a seda selvagem das cortinas da menina Mulligan. — A menina Mulligan? — Sara olhou para ele receosa. — e pode-se saber quem é a menina Mulligan, e o que fazia com as cortinas dela? — Vá, menina Willis, não me diga que está com ciúmes. Maldito canalha. Claro que estava com ciúmes. Mas não ia admitir. Ergueu o queixo e respondeu na voz mais indiferente que conseguiu: — Provaria ser uma pobre louca, se estivesse com ciúmes de um pirata que provavelmente se deitou com metade das mulheres de toda a cristandade. O comentário apagou o sorriso do rosto de Gideon. Lançou um suspiro, deitou a cabeça para trás e apoiou-a na almofada. — Nem tantas. Provavelmente só um quarto das mulheres de toda a cristandade, embora tente deitar-me com uma mulher, mais ou menos, de meia em meia hora. É uma atividade que me mantém jovem. Sara ignorou o sarcasmo e respondeu: — E a menina Mulligan era uma delas, suponho. — Claro. Deito-me com velhas de setenta e dois anos sempre que tenho oportunidade. De repente, Sara sentiu-se como uma completa idiota. — Ah. — Está com ciúmes, não está? — Gideon levantou-se um pouco, apoiando-se num cotovelo. — e sem necessidade nenhuma. A menina Mulligan era uma velha solteirona que administrava uma das pensões em que o meu pai e eu passamos. Sara ergueu o olhar para ele, e percebeu que ele tinha o olhar perdido. — Nem sequer tinha sete anos quando fomos viver lá — continuou, — e só ficamos seis meses. Foi mais tempo do que ficamos na maioria dos lugares. — brincou outra vez com o cabelo dela, deixando que a madeixa escorregasse por entre os seus dedos para voltar a cair sobre o ombro de Sara. — mas tenho uma imagem muito nítida das cortinas da salinha de estar. Eram feitas de um material sedoso e de cor carmim, e quando o sol brilhava através delas, pareciam que eram de fogo. Eu pensava que eram de fogo. Um sorriso desenhou-se nos lábios dele antes de continuar. — Fascinavam-me. Quando o meu pai estava bêbado e me batia com o cinto por não ter feito os deveres corretamente, corria e escondia-me atrás daquelas cortinas da salinha de estar, 149


esperando que o fogo me protegesse. — Os seus olhos colidiram com os de Sara. — Suponho que, de certa forma, era assim, visto que ele nunca me encontrou quando me escondia atrás daquelas cortinas. E quando a menina Mulligan me descubria lá, dava-me leite e bolachas e deixava que me deitasse na cama dela enquanto o meu pai curava a bebedeira. Para uma criança de seis anos, isso era o mais parecido com o paraíso. Aquela velha era amável e maternal, e cheirava a água de rosas. Durante muito tempo encantei-me com esse cheiro Sara notou que formavam um nó na sua garganta. Não custava nada imaginar Gideon em pequeno, a esconder-se assustado atrás das cortinas de uma salinha de estar, procurando um ponto amigo, um ponto de apoio, numa anciã. Acariciou-lhe a face com os dedos e depois aventurou-se a perguntar: — O teu pai... batia frequentemente em você, com o cinto? Gideon olhou para ela, pasmo, e depois mostrou-se retraído, da mesma forma que um sonâmbulo olharia para a pessoa que o acordasse. Voltou a deitar-se na cama, passou um braço por trás da cabeça, e ficou a observar o teto. — O suficiente para me provocar uma forte impressão, se é isso que quer dizer. — olhou para ela friamente. — Provavelmente pensa que devia ter me batido mais algumas vezes, até conseguir incutir-me algo de bom. O que é que diz a biblia? «Evita a vara e conseguirá perder a criança.» — Oh! Não cite esse verso tão nefasto! É horrível como as pessoas o usam para justificar atos cruéis. Bater numa criança não mostra ao pequeno nada mais do que humilhação e medo. Ele olhou para ela ela fixamente, como se tentasse entrar na sua cabeça. — Sim — disse por fim. — é exatamente isso que mostra. Sara notou que o coração dele se encolhia dentro do peito. Pobre Gideon. Agora percebia porque queria tanto criar o seu próprio paraíso. O mundo em que ele tinha crescido parecia estar muito longe do paraíso; certamente, estaria muito mais perto do inferno. — E onde estava a tua mãe durante os fatos? — Não conseguiu evitar perguntar. — Aceitava que o teu pai... te batesse? A expressão de Gideon tornou-se mais impenetrável. Levantou-se da cama abruptamente e vestiu os calções. — Não estava perto. Sara sentou-se na cama, tapando os seios com os lençois. — O que quer dizer? Tinha morrido? Ele cruzou os braços sobre o peito nu e apoiou uma anca no canto da mesa. A sua expressão era tão distante e gélida como a da figura da proa do seu barco. — Algo parecido. Mas também não importa, pois não? A questão é que não estava lá. Ela soprou. — Se não quer falar dela... — Não, não quero. — Quando Sara lhe deu um olhar magoado, ele acrescentou: — Temos coisas mais importantes para falar. Como por exemplo, o que vai acontecer hoje. A abrupta mudança de assunto apanhou-a desprevenida. — Hoje? — Quando as mulheres escolherem os maridos. Ou já tinha esquecido? Oh, sim, isso. A verdade era que, por causa do incêndio e da noite que tinham passado juntos, tinha esquecido. Gideon continuou sem esperar pela resposta. — É evidente que não podemos demorar para construir as novas casas. Esse trabalho vai durar semanas. Os homens que foram a São Nicolau regressaram esta manhã, e sendo assim, não 150


há razão nenhuma para atrasar a escolha. Preciso de saber... — calou-se durante um momento, e uma expressão esquisita surgiu no seu rosto. — Bom, quero saber quem é que vai escolher. — Para quê? Para me dar a tua aprovação ou não? — espetou ela. — Pode-se saber que diabos significa isso? Sara teve que fazer um enorme esforço para se acalmar e falar com voz mais tranquila. — A última vez que falamos do assunto, deixou bem esclarecido que não queria casar comigo. — Não é verdade. Se bem me lembro, disse que primeiro queria examinar a mercadoria. — Ah, sim, já me lembro. — Ela acomodou-se entre os lençóis para cobrir completamente a sua nudez, incapaz de reprimir por mais tempo os seus azedos pensamentos. — e agora que examinou a mercadoria, passei no exame com boa nota? A quantas mais examinou com a intenção de encontrar a mulher perfeita na cama? — Maldição, Sara! Sabe que não toquei em nenhuma mulher desde que te conheci. — passou a mão pelo cabelo. Sara nunca o tinha visto com um aspecto tão desagradável. — o que fizemos ontem à noite... não foi um exame. Mas serviu para me demonstrar uma coisa. Se fosse eu que tivesse que escolher, escolheria a você e a mais ninguém. Lamentavelmente, segundo os termos do nosso acordo, não sou eu que devo escolher. És você. E a questão é, quem é que vai escolher? Confusa e abatida, Sara afastou o olhar dele. Casar com ele? Como podia? Embora seguramente ainda passasse mais de um mês antes de Peter e Jordan chegarem à ilha, eles viriam, não tinha dúvida nenhuma. E quando o fizessem, a sua intenção era partir com eles. Por outro lado, a ideia de ficar com Gideon naquela ilha tão misteriosa, ajudando-o a construir um novo mundo, parecia-lhe bastante tentadora, tanto que podia dizer que sim a qualquer coisa que ele lhe pedisse. Que pensamento tão disparatado. Ela não pertencia àquele lugar. E de qualquer forma, ele apenas procurava uma mulher que fosse conveniente para se casar. Por alguma razão tinha escolhido a ela, mas isso não queria dizer nada. — Também não tenho outra escolha — disse ela evasivamente. — Preferia não casar com ninguém, mas você não vais permitir. Se não escolher a você, já me deixou bem claro que escolherá por mim, e isso significa que ou te escolho como marido ou deixo que você próprio se nomeie como meu marido. Não há outra alternativa, pois não? Com os olhos faiscando, Gideon fechou as mãos num punho dos dois lados do corpo. — Escolheria não se casar em vez de casar comigo? Mesmo depois do que partilhamos esta noite? Acha que não sirvo para casar contigo? — Não é isso! — Mas quando ele olhou fixamente para ela, à espera de uma explicação, percebeu que não sabia o que dizer. Não podia contar a verdade... que esperava ser resgatada da ilha muito proximamente. — é que... é que... ainda não estou pronta. O casamento é algo sério e determinante. Se pudesse escolher, não me casaria tão cedo. — Tens uns critérios muito estranhos — disse ele. — ou seja, entregar a tua virginidade a um homem não é determinante, mas casar é. — observou-a durante longos minutos, com olhos cansados e com expressão aborrecida. Depois ficou tenso. — Muito bem. Não terá que casar a curto prazo; não vou te obrigar. Gideon atirou a saia para ela e encaminhou-se para a porta. — Espera! O que quer dizer? O que está insinuando? Sem dizer mais uma palavra, ele saiu pela porta e apanhou um embrulho de roupa que atirou para dentro do camarote. — Estas são as roupas que pedi aos meus homens que trouxessem para você de São 151


Nicolau. Vista. Te espero no convés daqui a meia hora. E antes que ela pudesse perguntar mais alguma coisa, partiu. Sara ficou olhando para a porta, sentindo uma incômoda sensação de vazio no peito. O que tinha feito? E Gideon, o que pensava fazer? Não devia ter-se deitado com ele na noite anterior. Que desgraça! Como é que sairia daquela confusão? Meia hora mais tarde, Gideon encontrava-se no cimo da cabina, com o rosto cabisbaixo enquanto examinava a multidão à procura de Sara. Onde diabos ela estava? Era importante que ela estivesse presente para ouvir o que ele tinha para dizer. Se ia fazer aquele sacrifício, queria tê-la como testemunhar. Apesar de tudo, só o fazia por ela e por aquelas corajosas mulheres. Sabia que mais ninguém ficaria contente com a sua decisão. Os seus homens uivariam indignados. Mas não se importava. Tomara a decisão, e iria até ao fim, embora isso significasse encolerizar os seus homens. Além disso, pensassem o que pensassem, a sua decisão seria muito conveniente dada a nova situação. Pelo menos seria muito conveniente para ele. era a única solução para o seu caso. Contemplou de novo a multidão. Todos tinham um aspecto muito diferente desde a ultima vez que subira à cabina para falar aos homens e às mulheres. os ânimos eram tão escuros como na altura, tudo por culpa do incêndio do día anterior. Mas, por outro lado, o fogo conseguira uni-los. As mulheres pareciam estar mais felizes com os homens, e os homens mostravam-se mais simpáticos com elas. Alguns dos homens e das mulheres já tinham escolhido par, e aquele fato deu-lhe um enorme prazer. Sara não o aceitaria, mas pelo menos o seu plano estava funcionando. De repente, o assunto dos seus pensamentos apareceu por baixo da cabina, olhando para cima para o observar, com uma expressão de pavor. O pulso de Gideon acelerou-se quando a viu, como se fosse um pobre grumete diante da primeira mulher da sua vida. Vestia uma típica blusa branca das ilhas, bordada, e uma saia comprida e muito rodada que tinha pedido aos seus homems que comprassem para ela. Estava linda, como cabelo pelos ombros, solto e livre, e o vento brincando maliciosamente com o fino algodão que lhe cobria as pernas, deixando pouco espaço para a imaginação. Deitar-se com ela devia ter posto fim ao intenso desejo que sentia por ela. Mas não foi assim. Só tinha piorado mais aqueles sentimentos atrevidos. Desejava-a outra vez, naquele preciso momento. Deu-lhe uma enorme vontade de rir por causa da ironia da situação. Depois de todos aqueles anos amaldiçoando as mulheres nobres inglesas, agora desesperava por uma, e isso era uma golpe baixo para o seu orgulho. Mas nunca fora tão burro para permitir que o orgulho se intrometesse na hora de conseguir o que queria, e queria Sara... na sua casa e na sua cama. Escolhera-a como esposa. Agora tudo o que tinha que fazer era conseguir que ela escolhesse a ele. Afastou o olhar dela e observou o grupo todo. Chegara o momento de transmitir a eles o seu novo plano. — Bom dia. Tenho o prazer de anunciar que todos sobrevivemos ao incêndio. Não houve nenhuma baixa. — Inclinou-se para afrente para apoiar a mão no varandim. — é verdade que ontem à noite perdemos as nossas casas, mas não vou permitir que isso nos detenha. Alguém… — calou-se por um instante, olhou para Sara fugazmente e depois voltou a dirigir-se à multidão. — Alguém me fez ver que vale a pena lutar por Atlântida. Houve um murmúrio de aprovação entre os seus homens, seguido em mais pequena escala pelas mulheres. — Agora que o resto dos homens regressaram de São Nicolau — continuou, — dispomos 152


de quase todos os materiais para reconstruir o povoado. E o que eles não trouxeram, certamente, podemos encontrar na ilha. Elevou os ombros. Agora vinha a parte mais dolorosa. — A menina Willis disse-me que as mulheres ficarão encantadas por nos ajudar na reconstrução. Sendo assim, decidi dar-lhes uma compensação pela preciosa ajuda delas. — fez uma pausa. — dou-lhes outro mês para escolher marido. Primeiro reinou um silencio palpável no convés. Então começou a nascer um crescente murmúrio entre os homens, que o observavam com os rostos enevoados e irritados. Barnaby olhou para ele como se estivesse louco, por sua vez, Silas parecia surpreendentemente calmo. Gideon ergueu a mão para exigir silencio. — Sei que algumas mulheres já encontraram maridos potenciais, e se quiserem continuar com os planos do casamento, podem continuar. Mas no que diz respeito ao resto das mulheres, todos estaremos muito ocupados reconstruindo o povoado, pelo que não seria justo que se sentissem pressionadas a enfrentar as complicações adicionais que pode acontecer na vida de casada, enquanto nos ajudam. Finalmente, atreveu-se a olhar para Sara. Ela estava boquiaberta. Ann apressou-se a colocarse ao seu lado, com o rosto iluminado e sorridente, mas Sara continuava sem afastar os olhos dele. Para sua surpresa, a cara dela não acusava um pingo de triunfo; era apenas uma expressão perplexa, que pouco a pouco foi mudando até se transformar em agradecimento. Gideon afastou o olhar dela. Sara não tinha que agradecer nada, embora ela não soubesse. De uma forma ou de outra seria dele. Provavelmente ficara louco por querer casar com ela, se pensasse no seu passado. Mas era a única forma de tê-la. Era mais do que evidente que ela se sentia culpada pelo que tinha acontecido na noite anterior. Conseguira ler nos olhos dela naquela manhã. A única via para apagar aquele tipo de culpa numa mulher era casando com ela. — Agora todos dormiremos no barco — continuou, — a menos que alguns de vocês queiram montar tendas ou passar as noites deitados na praia debaixo das estrelas. Por conseguinte, tudo fica como antes. Os homens tratarão as mulheres com o devido respeito e dignidade. Estão todos de acordo? Ficou em silêncio, esperando uma avalanche de protestos. Mas à exceção de algumas queixas insignificantes, os homens pareciam aceitar a novidade. Talvez eles também tivessem percebido a jogada. Alguns começariam a lutar irremediavelmente com as suas próprias mulheres. Talvez todos necessitassem um pouco mais de tempo para terem a certeza das suas decisões. — Barnaby irá atribuir os trabalhos de reconstrução, e Silas coordenará a descarga da corveta. Quanto às mulheres, combinarei com a menina Willis qual a melhor maneira de nos ajudarem. É tudo. Podem sair. Enquanto descia pelas escadas até ao convés, procurou Sara, mas esta estava rodeada pelas mulheres, que a crivavam com mil e uma perguntas. Então viu Barnaby que caminhava para ele, com um olhar cheio de reprovação. Gideon esperou que o seu primeiro tenente se colocasse ao seu lado. — Pode-se saber que bicho te mordeu? — explodiu Barnaby, usando um tom de voz nada próprio dele. — Primeiro concorda em enviar metade dos homens para comprar provisões, e agora adia os casamentos. Pois eu acho que o melhor seria que nos casássemos com as mulheres, esquecermos este assunto de uma vez por todas, e depois nos dedicássemos a reconstruir as casas. — Sim, claro, ambos sabemos a longa experiencia que tens com as mulheres — resmungou Gideon. — se deitou com elas e depois afastaste-as da tua vida. Isso está certo com uma amante, Barnaby, mas não podes fazer o mesmo com uma esposa. — E desde quando é que você sabe tratar de uma esposa? Quando foi a ultima vez que teve 153


uma amante que durasse um mês? — É verdade, eu sei. — Gideon olhou por cima do ombro de Barnaby para Sara. O cabelo dela brilhava sob o sol matutino como mil chamas de fogo. — mas isso é uma coisa que tenho a intenção de remediar. Barnaby seguiu o olhar dele com a testa franzida. — Eu sabia. É aquela mulher outra vez. Já o dominou. — Quando Gideon não respondeu, Barnaby acrescentou: — é com ela que quer casar? Acha mesmo que aquela mulher tão hipócrita e complicada o escolherá? Gideon sofocou um sorriso perante a descrição tão pouco precisa de Sara por parte de Barnaby. — Se lhe der tempo, vai-me escolher. Pode ter a certeza disso. — Ah, então foi por isso que mudou os seus planos. Está a conceder tempo a si próprio para cortejar a milady. Suponho que isso significa que o resto de nós não devemos nem de olhar para ela. Gideon respondeu sem hesitar: — Não acabaste de a definir como hipócrita e complicada? — Alguns homens gostam das hipócritas, se não sabia. Gideon olhou olhou para Barnaby com um olhar inflexível. — Não vou permitir que ninguém a corteje. Diz aos homens que a Sara Willis é minha. Ninhum deles tem autorização nem para a beijar na face, compreendido? Barnaby levantou a mão em sinal de rendição. — Claro, capitão, claro. Não se zangue. Ninguém é louco para tentar roubar a sua mulher. «Sua mulher», Gideon pensou que gostava do som. — Perfeito. e agora, se me perdoares, quero trocar umas palavras com a minha mulher. Em seguida, afastou-se de Barnaby e encaminhou-se para Sara, que naquele momento falava com Louisa. — Louisa, se importa de nos deixar um pouco a sós? — disse ele quando as duas mulheres se viraram para olhar para ele. — Quero falar com a Sara um minuto. — Claro que sim — murmurou Louisa, embora Gideon percebesse que a reclusa não afastava os olhos dele, nem sequer quando se afastou o suficiente para não ouvir o que diziam. Gideon olhou desafiadoramente para ela, e ela apressou-se a afastar-se até que se perdeu no convés. Depois virou-se para depositar toda a sua atenção em Sara. — Aquela mulher nunca te perde de vista. Quem é? A tua protetora? — Só se preocupa comigo, mais nada. — Bom, pois já não terá que se preocupar mais contigo. A partir de agora, eu te protegerei. Um suave sorriso desenhou-se nos lábios de Sara. — Sim, já percebi. Sinceramente, Gideon, foi muito simpático conceder-nos mais tempo. Não se arrependerá. Será melhor para todos. Vai ver. Ele olhou para ela fixamente. — Para você também? Ela corou. — Claro que sim. — Desviou o olhar, e com os dedos acariciou o medalhão que sempre usava. — Há uma coisa que te queria dizer. eu... bom... o que aconteceu ontem à noite... creio que... bom, creio que não devia repetir-se. — Refere-se ao incendio? — inquiriu ele, mostrando-se deliberadamente ignorante. Não podia acreditar que ela lhe estivesse dizendo aquilo, especialmente depois do seu grande gesto! Sara voltou a olhar para ele, seriamente. 154


— Sabe perfeitamente que não me refiro ao incêndio. Refiro-me a deitarmos juntos. Não é correto para... — Olha, já é tarde para se preocupar com as aparências, não acha? — Talvez. Mas... acho que não deviamos... repetir esta noite. — Quando ele olhou para ela incrédulo, ela disse apressadamente: — se vamos considerar a hipótese de nos casarmos, então precisamos nos conhecer melhor. E não me refiro na cama. Não... não consigo pensar com coerência quando fazemos amor... — Ótimo. — Não, não é ótimo. O casamento é uma decisão para toda a vida. Quero casar com as coisas bem esclarecidas. — Eu posso esclarecer as coisas para você— murmurou ele enquanto tentava abraçá-la. Mas ela esquivou-se dos braços dele. — Não! É precisamente isso que quero dizer. Você quer que me esqueça de tudo e que pense apenas em você. Dessa forma, um dia levanto-me casada contigo e pergunto-me como é que aconteceu. Não é isso que quero; quero ter certeza absoluta quando aceitar casar contigo. Maldita fosse aquela mulher. Porque tinha que estar sempre pensando em tudo? Porque não conseguia ser como as outras mulheres, feliz ao ver um homem prostrado aos seus pés? Gideon ficou quieto durante uns minutos. Aquilo era o que a sua mãe teria feito... e o que tinha terminado num estrondoso desastre. Não, Gideon não queria que a historia se repetisse com ele. Queria que Sara não tivesse queixa nenhuma quando aceitasse casar com ele. No entanto, sabia que ficaria perdido se isso significasse não poder tocar-lhe, nem beijá-la nem dormir com ela. Concedera-lhe tempo suficiente para pensar... mas isso não queria dizer que não pudessem desfrutar um do outro de vez em quando. Tinha que conseguir que ela percebesse que o desejava tanto quanto ele a desejava. E só havia uma forma de conseguir. — Está bem, Sara. Vamos dar um tempo para nos conhecermos. Podemos reconstruir Atlântida e conversar sem nos tocarmos, se é isso que quer. — perante o olhar surpreso dela, Gideon baixou a voz. — Não acredito que seja realmente isso que quer. Mas estou disposto a deixar que descubra por você mesma. Calou-se durante um momento, dando a Sara o tempo necessário para pensar sobre o que acabara de dizer a ele. Quando continuou, a sua voz transformou-se num suave sussurro. — No entanto, deixe-me te avisar: quando mudarde opinião — e sei que o vai fazer — vai ter que se aproximar de mim. Porque da próxima vez que fizermos amor, terá que me pedir para o fazer. Em seguida, reunindo todas as forças para contrariar a sua vontade, virou-lhe as costas e afastou-se. Capítulo 20 Con la debida perícia, elegante y delicado, agradamos mucho a as mulheres. Sabemos lo que les falta a las desesperadas, oh, seguro que lo podemos averiguar. The Jovial Marriner, JOHN PLAYFORD

Sara conseguiu superar surpreendentemente bem a primeira semana. Durante o dia havia 155


muito trabalho para fazer, tanto que começaram a surgir algumas disputas entre as mulheres para decidir quem devia fazer o quê, pelo que restava apenas tempo para respirar. Tinham que trazer a água, preparar a comida, cortar a erva e secá-la para depois a utilizar para montar os telhados das casas, e tinham que coser os colchões com os diversos tecidos que os homens tinham trazido de São Nicolau. Contudo, via Gideon frequentemente, tanto que não esquecia a noite que tinham passado juntos. Ele procurava-a para pedir opinião sobre como planejar as casas. Quando precisava alguma coisa das mulheres, falava com ela primeiro, e depois passavam imensas horas a discutir a melhor maneira de distribuir os parcos recursos. Ela também encontrava desculpas para estar com ele. Embora tentasse conter-se, adorava vê-lo trabalhar, com os músculos brilhando de suor sob o calor do sol. Costumavam comer juntos debaixo de uma árvore. Ele oferecia-lhe bananas, aquela fruta à qual ela se tinha habituado, e pedaços de carne de javali recém assada na fogueira improvisada de Silas, escavada a alguma profundidade. Às vezes os dedos dele roçavam acidentalmente com de Sara quando partilhavam a comida, mas para além disso, mantinha as mãos afastadas. O seu comportamiento exemplar devia ter facilitado as coisas. Mas não foi assim. À noite, Sara ficava acordada no camarote, pensando nele e na enorme cama do outro lado do corredor. Às vezes fechava os olhos e imaginava-o deslizando os dedos sobre os seus ombros, sobre os seios, sobre as ancas. Outras vezes ia mais longe com a fantasia e tocava-se, e isso era o pior de tudo… a certeza de que ele tinha o poder de fazê-la comportar-se daquela forma tão indecente. A segunda semana foi mais facil. Nessa altura, depois de umas quantas disputas, todos tinham entrado numa rotina. Cada um tinha assumido os trabalhos que mais gostavam, e trabalhavam arduamente para reconstruir Atlântida. Isso significava ter menos tempo para esclarecer os detalhes com Gideon e menos desculpas para o ver. Pior que isso, às vezes ele não tinha nem tempo para comer, apesar de continuar a comer com ela sempre que podia. E no entanto, Sara tinha consciência da presença dele, estivesse onde estivesse, mesmo quando estava planejando os edifícios ou supervisionando o corte das árvores. Ela arranjava sempre desculpas para vê-lo, e depois mentia a si própria para não ralhar consigo mesma por procurar desculpas para vê-lo. Um dia roçou o braço com o dele, outro dia o ombro, depois o cotovelo…não que o fizesse de propósito, claro. Simplesmente acontecia. E quando isso acontecia, ele ficava muito tenso, e olhava para ela com um olher esfomeado que sempre a fazia afastar a mão rapidamente. Ele começou a levar-lhe presentes à noite: um sabão perfumado, um bocado de tecido de cetim para um chapéu, uma peça esculpida de coral cor de laranja que tinha encontrado quando ele e os homens estava pescando. Nunca ofereceu nada que ela pudesse pensar que era roubado, e isso fazia-a feliz, porque sabia que ele devia ter uma infinidade de jóias que podia lhe oferecer. Depois começaram a passear pelo convés, e Gideon falou das esperanças que tinha acerca da ilha. Apesar da determinação de Sara de não deixar que as palavras a afetassem, faziam-no inevitavelmente. Como não ia afetar ouvir os sonhos dele sobre uma sociedade na qual os homens e as mulheres pudessem trabalhar e viver em liberdade, longe das crueldades dos governos sem piedade? Uma sociedade na qual os castigos se adaptassem à importância dos delitos, e na qual as pessoas como Ann não se vissem privadas do que mais precisavam. A pior parte da noite chegava depois, quando ele a acompanhava até à porta do seu camarote. Sara esperava que ele a beijasse, e sentia-se frustrada quando não o fazia. Já na cama, a sua imaginação segurava as rédeas, e começava a sonhar. Para trás ficavam os pensamentos das mãos de Gideon sobre o seu corpo. Agora sonhava em sentir aquela boca outra vez sobre a dela. Começavan por se beijar, mas a historia progredia até que aquela boca endiabrada acabava por lhe 156


beijar os seios e o ventre, e até a parte mais intima. Aquelas fantasias eram terrivelmente escandalosas, e faziam com que Sara se sentisse envergonhada. Às vezes até acordava e descubria a si própria a tocar-se com uma luxúria que nunca teria imaginado que fosse possível. À noite consumia-se de paixão. E durante o dia também. Mas Gideon, maldito fosse, parecia decididamente determinado a não lhe tocar. No fim da terceira semana, no entanto, algo mudou. Gideon começou a tocar-lhe quando ela menos esperava. De repente, ele erguia a mão e afastava-lhe o cabelo dos olhos, ou agarrava-a pelo braço e levava-a até à prancha do barco. Quando comiam juntos, que agora era praticamente todos os dias, ele parecia contente por roçar acidentalmente os seios enquanto se inclinava para a frente para apanhar alguma coisa, ou sentava-se tão perto dela que as pernas se tocavam cada vez que se mexiam. Se Sara tivesse o mínimo senso de decência, teria dito a Gideon que estava saltando a promessa de não a tocar. Mas há muito que tinha perdido a cabeça. Vivia para aqueles toques furtivos. Sentia um enorme prazer com os presentes que ele lhe dava e com a forma como ele dava o seu braço a torcer em determinados assuntos que discutiam. Pior do que isso, as suas fantasias durante a noite tinham progredido até se derreter com as memorias que guardava do dia em que fizeram amor. Depressa deixou de suprimir a sua imaginação, pelo contrario, dava-lhe asas. E as suas mãos, as suas traidoras e malandras mãos, ficaram completamente incontroláveis. Infelizmente, não conseguiam satisfazer a crescente necessidade que Sara sentia no ventre, a necessidade de que ele a beijasse e a abraçasse e… sim, fizesse amor com ela novamente. Todas aquelas coisas se acumularam dentro dela na ultima manhã da terceira semana. Era cedo, ainda não tinha amanhecido, e Sara tinha abandonado o barco quando todos dormiam. Precisava de um lugar onde poder pensar, então deambulou pela praia até ao rio. Tinham determinado umas pequenas leis na pequena colônia, e uma delas dizia respeito ao habito do banho. Visto que a água do rio era muito fria para tomar banho de manhã cedo, as mulheres podiam tomar banho durante a tarde, e os homens ao anoitecer, depois de acabar as árduas tarefas diárias. O processo dera às mulheres a privacidade que precisavam, especialmente àquelas que não tinham escolhido marido. Quando Sara chegou ao rio, surpreendeu-se ao ver Gideon de pé, nu, no meio da água gelada. Escondeu-se rapidamente atrás de uma árvore para que ele não a visse. Não podia acreditar. Vinha para aqui todas as manhãs? E porquê?, quando a água estava mais quente ao fim do dia? Devia me afastar e deixar que tome banho sozinho, pensou Sara seriamente. Mas os seus sonhos eróticos da noite ainda estavam muito frescos na sua cabeça. Ainda não podia ir embora. Olhou furtivamente para a praia para se certificar de que ninguém a tinha visto, e depois voltou a fixar o olhar sobre Gideon escondida atrás da árvore. O rio era tão pouco profundo que a água dava-lhe quase pelos joelhos. Gideon estava de costas viradas, enquanto deitava água pelos ombros e lavava o corpo. Tinha um corpo magnífico… com o cabelo escuro caindo sobre as costas largas cheias de cicatrizes, as nádegas firmes que se retesavam a cada movimento que fazia, e as pernas musculadas ligeiramente separadas para o ajudar a manter o equilíbrio no fundo rochoso do rio. Sara sentiu o seu corpo excitado; dentro dela tudo fervia, desde as costelas até aos seios e até o rosto, enquanto o observava. O que faria Gideon de ela saísse do seu esconderijo atrás da árvore e estendesse os braços? Não, não devia fazer. Não. De repente, ele virou, mas não a viu. Sara conteve a respiração. Por todos os santos. Gideon estava completamente excitado. Murmurava algo com a testa franzida e lavava o peito com um 157


pedaço de tecido impregnado de sabão. Então, para seu absoluto horror, ele colocou a mão no seu pênis e começou a agitá-lo. Sara pensou que o melhor que podia fazer era afastar-se, mas os seus pés estavam enraizados no bosque. Estava completamente fascinada. Afinal era daquela forma que ele conseguia manter-se afastado, quando ela quase morria de vontade de se deitar com ele. Mas se isso era verdade, porque franzia a testa? Porque é que os seus movimentos eram quase violentos, como se não conseguisse se masturbar com vigor suficiente ou rapidez. Talvez acontecesse o mesmo que a ela. O fato de tocar a si própria dava um prazer tão insignificante como deitar água sobre as cabanas incendiadas. Não era suficiente. Nunca era suficiente. De repente, ele ergueu o olhar e a viu. Os seus olhos cravaram-se nos dela, cheios de calor, urgência e avidez. Por um momento, ela ficou quieta, desesperada, com a boca aberta e incapaz de mexer os pés. Depois entrou em pânico. Deu um grito de vergonha, levantou a saia e saiu disparada como uma bala, correndo tanto quanto as pernas permitiam. Quando chegou à praia precipitadamente, começou a barafustar com dureza consigo própria. Nunca deveria ter ido ao rio. E pior do que isso, nunca deveria tê-lo observado enquanto ele tomava banho… ou se masturbava. No momento em que percebeu do que Gideon estava fazendo, deveria ter escondido o vulto. Agora que ele sabia que ela estivera espionando, certamente pesquisaria o seu vergonhoso segredo: que o desejava tanto quanto ele a desejava a ela. Abafou um soluço e correu para a prancha do Satyr, passando diante dos sonolentos e curiosos olhares dos piratas que dormiam no convés. Olhou de lado para trás, com medo que ele a tivesse seguido. Mas felizmente Gideon não estava à vista. No entanto, chegar ao seu camarote e se fechar por dentro, correndo o ferrolho, não se sentiu completamente segura. E mesmo assim, precisou de vários minutos para acalmar o seu coração desenfreado e deixar de ouvir o som das botas de Gideon sobre as tábuas do outro lado da porta. O resto do dia, ela evitou-a. Não conseguia olhar para a cara dele depois do que tinha presenciado. Era impensável. Envolveu-se em mil e uma tarefas no barco, como ajudar as mulheres a arrastar os colchões desde o porão até ao convés superior para os arejar. Mas não conseguia deixar de pensar nas imagens eróticas que a consumiam. O que se passava com ela? Como podia ser que aquele homem não lhe tocasse e, no entanto, não conseguia deixar de pensar nele nem por um segundo? Não era justo. Mas quando começou a anoitecer, Sara sentiu-se completamente cansada de se mostrar tão evasiva. Procurou Louisa, esperando que a língua viperina daquela mulher lhe desse juízo. Louisa não gostava do capitão. Lembraria a ela todos os defeitos dele, e isso era precisamente o que Sara precisava. Mas em vez de encontrar Louisa na cozinha do barco, encontrou Silas. Ao entrar viu o cozinheiro a erguer uma enorme quantidade de massa de pão, fazendo-a cair sobre a superfície da mesa. — Louisa... — começou ele a dizer, mas depois calou-se quando ergueu os olhos e viu Sara. — Oh, Sara, bem, tu também serve, penso eu — disse na habitual voz mal humorado. — Ajuda-me a amassar este pão. Tenho de ver se a carne não queima. — Onde é que está a Louisa? Ele encolheu os ombros. — Quem sabe por onde andará aquela mulher? Ele volta depressa, penso eu, mas tenho que amassar o pão agora. Faz sempre o mesmo: desaparece precisamente no momento em que mais preciso dela. 158


As queixas dele não consegiram enganar Sara. Aquele homem estava totalmente apaixonado por Louisa. A verdade era que os dois tinham ficado inseparáveis nas últimas duas semanas. Tinham pedido autorização a Gideon, como capitão do navío, para se casarem, e estavam tão orgulhosos como qualquer casal recém casados. Sara não conseguia evitar sentir um pouco de inveja. — Anda, moça, ajuda-me com o pão. — repetiu Silas, fazendo um gesto com a mão para que ela se aproximasse da mesa. — Não sei amassar. Não sua casa de Londres, os criados faziam aquelas tarefas. Mas em Atl ântida, onde não havia criados, aprendera uma quantidade de habilidades que nunca tinha posto em prática anteriormente. Hoje, no entanto, não se sentia com vontade para aprender nada... exceto como conseguir afastar Gideon da sua cabeça. — Oh, é muito fácil — continuou Silas, ignorando o protesto dela. Manoseou a bola de massa até que esta ficou plana, depois dobrou-a e repetiu o movimento. — Vês? — Mas eu vou estragar tudo. — Bobagem. — Silas agarrou-a pelo braço com os dedos cheios de farinha e aproximou-a da mesa. — Não pode estragar a massa. Quanto mais bater, melhor fica. Quanto mais força usar, mais crescerá. Acredite. Reagirá perante qualquer coisa que lhe faça. Sara olhou para a massa com ceticismo, mas fez o mesmo que ele fizera, primeiro timidamente, depois com mais confiança. A massa era tão elástica que parecia que não podia partir. E ele dissera que reagiria perante qualquer coisa que ela fizesse. Enquanto continuava com os movimentos, lembrou-se de Gideon. O que ia fazer com ele? Como ia superar a frustração que sentia cada vez que estava perto dele? Supunha-se que as damas respeitáveis não caiam naquelas armadilhas amorosas. Os homens desejavam as mulheres, claro, mas só as mulheres lascivas desejavam os homens. Isso era o que tinham ensinado a ela. Começava a duvidar de tudo o que lhe tinham ensinado. Senão, como fora capaz de passar tão bem nos braços de um pirata? E na verdade, gostara de estar nos braços dele; não podia negar. Mas agora, o que se supunha que tinha que fazer? Gideon disse que teria que ser ela a pedir para que a tocasse. Não conseguia imaginar-se a fazer uma coisa dessas. Além disso, provavelmente, ele já não estava apaixonado por ela. Talvez tivesse decidido que não valia a pena perder tempo com uma mulher de classe. Aquele pensamento fê-la ficar aterrorizada. Bateu furiosamente na massa com os punhos. Não importava se ele pensava de uma forma ou de outra. Ela regressaria a Londres sem ele. Era inevitável. A voz de Silas tirou-a dos seus pensamentos. — Tem calma, moça; eu sei que te disse que não pode se partir, mas não é preciso assassinála. Sara percebeu que estivera a bater na massa com força excessiva, e engoliu em seco. — Desculpe… eu... estava perdida nos meus pensamentos. Silas afastou o pão das mãos dela, enrolou-o com um pouco de gordura e colocou-o num tabuleiro para o forno. —Pois, claro, como sempre: procurando confusão para poder meter o nariz. Porque está tão nervosa? Ela olhou para ele receosa. — Por nada... importante. Ele continuou a tarefa de cobrir a carne com o molho. 159


— É por causa do nosso querido capitão, não é? Incomodou você outra vez. — Sim... bom, não. Não da forma em que está pensando… — Quando ele fez um esgar curioso, Sara virou as costas e brincou com o fecho da despensa. — Ele… ele foi incrivelmente educado. — E é isso que te preocupa? — Não, claro que não. É que... não sei o que esperar do comportamento dele. Às vezes acho que me aborrece. Outras vezes... ele... «Outras vezes, faz amor comigo com paixão e com uma ternura incrível», pensou, mas não podia ser tão sincera com Silas. — O capitão não te aborrece — esclareceu Silas numa voz calma. — o que acontece, e que é muito difícil para Gideon confiar numa mulher. Especialmente com uma da tua classe. La vinha de novo aquela frase horrível: as da tua classe. Voltou-se bruscamente para Silas para olhar diretamente para ele. — Porque é que odeia tanto as da minha classe? Por acaso alguma delas o magoou? Silas pousou a colher do molho e observou-a por um momento enquanto afagava a barba pensativamente. — Se te contar o que sei, juras que manterá o segredo? A curiosidade de Sara disparou, e concordou vigorosamente com a cabeça. Ele apontou para uma cadeira. — Então é melhor que sente, moça. É uma longa história, garanto; muito longa. Mas se alguém deve saber, esse alguém é você. Sara sentou-se diante da mesa, colocou uma mão sobre a outra e olhou para ele avidamente. — A mãe dele. Foi ela que o magoou. Sara franziu a testa, perplexa. — Não entendi. — A mãe de Gideon era filha de um duque. Uma senhora muito rica proveniente de uma familia inglesa muito poderosa. Uma sensação horrível começou a invadi-la. Gideon era inglês? A mãe dele pertencia à nobreza? Amãe de Gideon? — Parece surpresa. — Silas agarrou no cachimbo, encheu-o com tabaco que guardava num saquinho no bolso do casaco. — Suponho que não estava à espera disto. Os piratas não costumam vir de familias aristocráticas. — Mas como? Quem? Silas inseriu um troço de palha no fogo do forno, e depois usou-a para acender o cachimbo. — não consigo dizer como. E é claro, muito menos ele. — atirou a palha ao fogo e puxou várias vezes seguidas. — contou quase toda a historia uma noite em que estava bêbado. Tínhamos abordado um barco nesse dia, e no barco havia uma mulher idosa que se chamava Eustacia. Ao ouvir pronunciar o nome dela, ele alterou-se, e por isso decidiu embebedar-se. Já percebeu que Gideon não costuma beber muito. Acho que tem medo de acabar como o pai dele. Bom, mas continuando, nessa noite disse-me que a mãe se chamava Eustacia, ou pelo menos era como o pai a chamava quando estava bêbado. — Gideon contou-me alguma coisa sobre o pai dele. Parece que era uma pessoa horrível. — Sim, é verdade. O Gideon odeia-o. Mas ainda odeia mais a mãe. Culpa-a de o ter abandonado ao cuidado do seu desprezível pai. — Não percebo. Como é possível que a filha de um duque conhecesse um homem como o pai de Gideon? O pai não era americano? 160


— Não. O pai dele era inglês como você. Aparentemente era o tutor de Eustacia. Devia ser um grande sedutor, porque incitou-a a fugir com ele. — a expressão de Silas ficou cabisbaixa. — mas depois do nascimento de Gideon, ela cansou-se da vida humilde que tinha com Elias Horn. Implorou à sua família que a admitissem de novo, e a família aceitou-a. — olhou fixamente para ela por cima do cachimbo. — mas obrigaram-na a deixar o filho. Sara soprou estrondosamente. — Não é possível! — Quando ele assentiu, ela perguntou: — porquê? Silas encolheu os ombros. — Não sei. Talvez para esconder o escândalo. Ou talvez esperassem que se Elias e Gideon não estivessem perto, poderiam serenar os falatórios mais facilmente. Quem sabe o que se passa dentro da cabeça de um nobre inglês? Ela pestanejou várias vezes seguidas. Sabia que ele não tinha dito com a intenção de criticála, mas o comentário demonstrava os receios de toda a tripulação do Satyr para os seus compatriotas. E para os da sua classe. Sem duvida nenhuma, aquele ódio tinha se alimentado da guerra da independencia americana, que provavelmente acabou precisamente quando Gideon nasceu. Mas para Gideon, havia mais coisas do que o ressentimento daquela guerra. Recordou a voz extremamente triste que Gideon falou da sua mãe e sentiu-se mal. Agora percebia porque é que odiava tanto as mulheres da sua classe. Por isso não conseguia confiar nela. No entanto, aquela desconfiança não era justa. Ela nunca abandonaria o seu próprio filho, por muito que a sua família pedisse. Não conseguia perceber como Eustacia tinha sido capaz de fazer tal atrocidade. — E ele alguma vez foi procurá-la, ou tentou ouvir a versão da mãe sobre essa história? — perguntou Sara. — Se o fez, nunca me disse. embora pareça que isso era praticamente impossível. O pai levou-o para a América quando era ainda muito pequeno. Disse queria uma nova vida para eles. Mas a esposa continuava a atormentar a sua cabeça, e tentou afogar as mágoas na bebida, todas as noites. Gideon contou-me uma vez, que viveram em quinze localidades diferentes. O pai não conseguia manter a posição de professor por causa do vício da bebida. Isso explicava porque Gideon se agarrava a Atlântida desesperadamente. Nunca tinha tido um lar, e estva determinado a transformar Atlântida no seu lar. Queria uma casa e alguém que tratasse dele, apesar de nunca o admitir em voz alta. — E o que o fez refugiar-se no mar? As surras do pai? Silas abanou a cabeça. — Não teve outra alternativa. O pai morreu pelo excesso do álcool quando Gideon ainda não fizera os treze anos, então alistou-se num barco como grumete para não morrer de fome. — Aos treze anos? Só tinha treze anos quando se fez ao mar? Sara sentiu uma pontada de dor no coração. Quando ela tinha treze anos, encontrava-se tranquilamente segura, ao abrigo de uma mãe que a adorava e de um amável padrasto que lhe dava tudo o que ela queria, enquanto Gideon tivera que sobreviver sob a chuva fria no convés de um navio, fazendo recados e limpando as botas dos homens. Os sentimentos dela deviam refletir no seu rosto, porque a voz de Silas foi mais suave quando respondeu: — Também não foi uma infância assim tão má, moça. As tarefas de grumete ajudaram-no a transformar-se num homem feito e correto, e isso é bom, não acha? As lágrimas começaram a rolar pelos olhos, e Sara virou a cara para escondê-las. Recordou todas as vezes que tinha acusado Gideon injustamente por ser cruel. Se alguém conhecia na pele a 161


crueldade, esse alguém era Gideon. E no entanto, ele não era cruel. Pelo contrario. Sim, raptara-as contra a vontade delas, e ela ainda achava que tinha sido um erro gravíssimo. Mas Gideon fizera-o pensando que fazia algo indiscutível. Fizera-o por amor à sua amada colônia, um lugar onde conseguiria aniquilar a crueldade. Seguramente, Sara fora testemunha de como ele governava bem. Ouvia sempre as duas partes de uma disputa e estabelecía uma solução justa. Mantivera a promessa de que as mulheres seriam tratadas com o devido respeito, reforçando a regra com mão de ferro. Quando ela quis começar novamente a dar aulas às mulheres, ficou surpreendida ao ver que ele cedia. Até fora dormir para a sua cabana meio construída para acomodar Molly na cama do seu camarote, a mulher grávida que estava num avançado estado de gestação, e a sua filha Jane. Gideon não era o perverso tipo horroroso que pensou de início. E isso transformava-o num homem muito mais perigoso para ela do que antes. — Preocupa-se com o capitão, não é, Sara? — inquiriu Silas, tirando-a dos seus pensamentos. Sara secou as lágrimas e concordou lentamente. —Mas ele me odeia por ser nobre e por ser inglesa como a mãe. — Que idéia — respondeu ele com afetuosidade. — Gideon pode parecer amargo, mas não é assim tão tonto. É capaz de distinguir uma boa mulher quando põe as mãos em cima. Eu acho que ele está apaixonado por você. — Então, porque não me contou sobre a mãe dele? — respodeu Sara. Sentia-se aflita ao pensar que ele não tinha confiado nela para falar daquela parte da historia. — contou-se sobre o pai, mas negou-se a falar da mãe, mesmo depois de termos feito... — calou-se instantaneamente, e as suas faces coraram. — é porque pensa que sou como… como ela, não é? Pensa que só me preocupo com a minha familia e com as regalias que tinha em Londres. Por isso não me fala desse tipo de coisas. — Não é verdade. Talvez ele pensasse que era como a mãe dele o principio, mas agora não pensa da mesma forma. Tenho a certeza disso. Vê tal e qual como é. — Ah, sim? E como é que eu sou? — A mulher gentil que ele precisa... alguém capaz de abrandar a dureza que a mãe dele colocou no seu coração. «Não o consigo fazer — Sara queria desatar a chorar. — Embora ele me deixasse fazer, não ficarei aqui assim tanto tempo para ser o que ele quer. Abandonarei, assim como a mãe dele o fez. Abandoná-lo-ei quando Jordan chegar.» Mas ela não queria partir, não queria abandoná-lo. Pela primeira vez desde que Peter partira, reconheceu a verdade. Não queria regressar às tristezas e às penúrias de Londres. Queria ficar ali, dar aulas às mulheres, ser testemunha de como a colônia crescia e, sim, estar com Gideon. Ansiava poder ser um bálsamo para ele, curar-lhe as feridas e sanar o seu coração. Mas não podia contar aquilo a Silas. — Se ele não te conta essas coisas, então talvez convenha que fale com ele sobre esse assunto — concluiu Silas. — Falar com ele? O que quer que o diga? — Como se sente. O que quer. Eu precisei arranjar coragem para falar com Louisa sobre... bem, sobre uns quantos assuntos. Mas graças a Deus que o fiz, porque senão, agora não estaria casado com ela. — Não consigo falar com Gideon. Como lhe podia dizer o que queria se nem ela própria o sabia? E como podia dizer como se 162


sentia, sabendo que ia abandoná-lo quando ele menos esperava? Levantou-se rapidamente da cadeira e encaminhou-se para a porta. — Desculpe, Silas, tenho que ir. — Espera! — Quando ela parou e se virou, ele segurou num balde e entregou a ela. — Se não se importar de me fazer um favor, preciso levar isto para a nova casa de Gideon. Pediu-me esta manhã, disse-me que precisava para obter um bom barbeado. — Já disse, Silas. Não consigo falar com o Gideon agora. — Mas não precisas fazer. Não terá que falar com ele. Não está na casa dele. Está ajudando o Barnaby a pescar do outro lado da ilha. — Quando ela hesitou, olhando para ele com receio, ele apontou para a sua perna de pau. — a casa dele é muito longe, e para mim é um esforço enorme ter que ir até lá, com esta perna. — Está bem. — Sara segurou no balde. Faria qualquer coisa para se livrar de Silas. Tinha que ir embora antes que não se conseguisse conter e soltasse todo o seu pranto. Silas pretendia consolá-la, mas não conseguia ajudá-la a decidir o que tinha que fazer com Gideon. Só ela podia fazer. Capítulo 21 Agardeço às Deusas que me sorriram ao nascer, e me transformaram, naqueles dias cristãos, numa feliz criança inglesa. Child’s Hymn of Praise, ANN AND JANE TAYLOR, Escritoras inglesas de historias infantis Gideon encontrava-se sentado num banco em sua casa meio construída, lixando as pontas da tábua que pensava usar como prateleira na pequena cozinha que estava construindo para Sara. Quando começara com aquela peça da casa, pensara que ela gostaria de dispor da sua própria cozinha, em vez de partilhar a comunitária. Quisera fazer uma surpresa, mas agora comaçava a ter sérias duvidas. Tinham passado três semanas, e o seu objetivo de conquistar Sara não estava tão próximo como esperara. Não que ela não tivesse amolecido com ele. Às vezes portava-se praticamente como uma esposa. Duas noites antes, ele regressou a casa e encontrou toda a sua roupa lavada e remendada. Sabia que fora ela que o fizera, porque Barnaby vira-a entra em casa dele nessa manhã. Se Sara o visse a trabalhar arduamente sob o sol escaldante, levava-lhe um balde de água fria quando pensava que ele não a via, e Silas revelara-lhe que ela pedia sempre a Louisa que preparasse a comida favorita de Gideon. Nunca tinha sentido aquele tipo de atenções femininas que a maioria dos rapazes recordavam das suas mães ou que tinham obtido das suas esposas. Era uma experiencia nova, ter alguém que se preocupasse tanto pelo seu bem estar. E ele gostava. Gostava imenso. O problema era que Sara não se decidia conversar sobre a intenção de Gideon casar com ela, nem sequer quando ele falava do assunto. Obviamente, as suas intenções de a cortejar não tinham causado o efeito desejado. Mas o que sabia ele da arte de cortejar uma mulher? Nunca tivera noiva, apenas uma aventura passageira com uma ou duas mulheres de má vida que o tinham deixado insatisfeito e mal humorado. No entanto, com Sara tinha algumas esperanças. Aquela manhã, quando ela o vira enquanto tomava banho, por um momento pensou que finalmente tinha conseguido romper as 163


suas sensatas maneiras de donzela. Mas não, ela saíra correndo e evitara-o durante o dia inteiro. A mão esquerda escorregou súbitamente, e arranhou os nós dos dedos da mão direita com a pedra de lixar. Proferiu um palavrão entre dentes, e atirou a pedra e a tábua para um lado. Maldita fosse aquela mulher e todas as suas incertezas. Estava a habituar-se aos banhos frios. Se ia para a cama excitado, acordava ainda mais excitado. Não pensara que seria tão difícil. Estava habituado a passar meses inteiros em alto mar sem uma mulher e sem cair naquela desagradável frustração que sentira mas ultimas três semanas. Mas uma coisa era estar rodeado de mar, e outra bem diferente era contar com a presença da única mulher que desejava tocar. Os banhos frios eram tudo o que podia fazer para evitar agarrá-la e beijá.la apaixonadamente quando se despedia dela à noite na porta do camarote. Mas sabia que se tentasse seduzi-la também não conseguiria nada. Não funcionara antes, assim, não havia razão para acreditar que funcionaria agora. Não, devia continuar fiel ao seu plano e rezar para que ela cedesse antes que o mês acabasse. Levantou-se e esticou os músculos e voltou a segurar na tábua. Foi então que a viu, de pé, diante da porta da sua casa, surpreendida e com um balde vazio na mão. — O que faz aqui? — perguntou ela. A confusão dela fez com que ele sorrisse. — É a minha casa, lembras? — Sim, mas o Silas disse... — calou-se de repente. Soltou o balde e murmurou. — Maldito mentiroso. — Quem é que é mentiroso? — Silas. É um maldito mentiroso. Disse-me que precisava deste balde. Pediu-me que o trouxesse a tua casa, e disse-me que estava pescando com Barnaby. É obvio que mentiu, e que a única que coisa que queria era que tu e eu nos encontrássemos. «Obrigados, Silas», pensou Gideon. Deu um passo para ela, aliviado ao ver que Sara não tinha saído espavorida desta vez como o fizera de manhã, e tentou encontrar alguma coisa para dizer para a reter. — E porque quereria Silas que você e eu nos encontrássemos? Nunca tentou antes. A pergunta dele não teve a reacção que ele esperava. Ela ficou corada. — Porque eu, porque eu e ele estávamos… a falando sobre você. — ergueu a cabeça e olhou para ele. — contou-me sobre a tua mãe. Gideon ficou tenso. Todo o prazer que sentia portê-la ali à frente desapareceu abruptamente. A sua mãe? Silas contara-lhe sobre a sua mãe? Maldita raposa velha. Quando pusesse as mãos em cima, arracar-lhe-ia até o ultimo pêlo da barba. Como se atrevera a contar aquela historia a Sara? Deu meia volta com uma enorme rapidez, apanhou a pedra de lixar e entrou furiosamente para dentro da outra divisão, o seu quarto. Ela nunca tinha atrevido a entrar ali antes, e ele rezou para que não o fizesse agora. A ultima coisa que queria era falar com Sara sobre a traição da sua mãe. Mas Sara seguiu-o, sem mostrar nenhum tipo de remorso. — Não mentiu acerca dela, pois não? A tua mãe pertence mesmo à aristocracia inglesa? É filha de um duque? — Sim. — Dirigiu-se à janela e cravou o olhar num ponto, completamente perdido. — É verdade que abandonou, a você e ao teu pai? Gideon rugiu maldição. Agarrou a pedra de lixar com mais força até que os nós dos dedos ficaram brancos. Podia sentir a pena que emanava dela sem sequer olhar para ela. Por isso não queria contar a historia. Não queria que Sara soubesse o seu infame segredo, nem que tivesse pena dele, quando o que ele queria dela era uma coisa completamente diferente. 164


— É verdade? — insistiu Sara. A pedra caiu no chão quando ele olhou novamente para ela. — Sim. Tal como Gideon esperava, ela parecia abatida, e os olhos denunciavam tanta tristeza que até ele se assustou. — Alguma vez a procurou? — perguntou Sara. — Talvez ela tivesse arrependido mais tarde. Talvez... — Olha, garanto, ela nunca se arrependeu. — Como pode ter tanta certeza? — Porque sei. Sara esboçou uma careta de frustração. — Pois, como te abandonou uma vez, decidiu não voltar a ter contato mais com ela… — Ela escreveu-me uma carta, está bem? — a dor invadiu-o de novo. Àquela altura Gideon acreditava que deveria estar imune, mas porque doíam tanto, ainda, aquelas recordações? Continuou, porque sabia que Sara não o deixaria em paz enquanto não lhe contasse: — Quando tinha dez anos, perguntei por ela no consulado britânico. Só sabia o seu nome de batismo, então pensaram que eu estava mentindo... ou que o meu pai tinha mentido quando me contara coisas sobre ela. Deixaram-me bem claro que nenhuma senhora inglesa seria capaz de fugir com o seu tutor. Gideon recebera uma tareia ainda mais forte do o normal por ter ido ao consulado. O cônsul falara com Elias Horn e referira a visita secreta de Gideon, pensando que Elias tinha enviado o rapaz com algum propósito maquiavélico, e avisara o homem para manter o seu pequeno safado afastado do consulado. — O meu pai recebeu uma carta do consulado uns meses mais tarde — continuou com voz gélida. — Não sei, talvez o cônsul a tivesse procurado.. Era da minha mãe. Disse que não queria manter nenhum contato comigo. — Gideon tinha dificuldade em falar naquele momento. — Uns anos mais tarde, o meu pai recebeu outra carta notificando que... que ela tinha morrido e que a familia não queria manter nenhum tipo de vínculo conosco. E depois o meu pai começou a beber até que se afogou no álcool. Naquela época, Gideon tinha enterrado toda a esperança de encontrar a mãe e de a convencer para que voltasse para o seu lado. Suportara os açoites do pai bêbado em silencio, sabendo que Elias só o açoitava porque Gideon era filho dela, tal como lembrava a ele com frequência. Foi então que Gideon começou a jurar que um dia faria os ingleses pagar… todos os seus delírios de grandeza e a sua falta de moral, por pensar que podiam fazer o que lhes conviesse com absoluta impunidade. E tinha mantido a palavra, não era verdade? Rira-se de todos os nobres que cruzaram no seu caminho, rezando para que um deles fosse um parente da sua mãe. Sentira-se transbordante de alegria cada vez que arrebatara as jóias do pescoço a alguma arrogante harpia inglesa. Até que conhecera Sara. Sara mudou tudo. — Mas não te deixou nada? — insistiu ela. — um testamento? Algum... algum sinal que se arrependesse das suas acções? Gideon irritou-se ao ver que Sara se negava a acreditar que uma mulher inglesa fosse capaz de cometer semelhante monstruosidade. Com movimentos enérgicos, tirou o cinturão e atirou-o aos pés dela. — Essa fivela do cinturão foi a única coisa que me deixou, e tenho a certeza que ela não tinha intenção de me deixar. Era um dos seus alfinetes e eu transformei-o numa fivela. Sara ajoelhou-se para apanhar. Olhou para ele detalhadamente, vezes seguidas. Gideon viu 165


como ela olhava detidamente a argola de diamantes e a impressionate figura no centro, esculpida em forma de cabeça de cavalo. — Certamente já viu uma infinidade de alfinetes tão caros como esse ao longo da tua vida — disse ele, incapaz de conter a amargura que sentia. — Provavelmente tens alguns. — Sim, e verdade. No entanto, não os pedi. Não esperava tê-los. Deram-mos pelo simples fato de ser... a enteada de um conde. — Ela ergueu os olhos, que revelavam uma enorme tristeza. — Porque o conservou se a odeias tanto? Gideon fez um movimento como se quisesse encolher os ombros, mas as perguntas de Sara eram como uma navalha a abrir uma velha ferida, e era difícil manter-se imperturbável. — Quando tinha cinco anos perguntava porquê não tinha mãe, até que um dia o meu pai contou a historia toda. Uns dias mais tarde, roubei dele esse alfinete que ele guardava e escondi-o. Está vendo, nunca quis acreditar... — calou-se de repente. Nunca tinha querido acreditar que a sua mãe o tinha abandonado de uma forma tão cruel. Para uma criança de cinco anos, pensar naquele assunto era muito doloroso. — Uns anos depois, quando soube que ele dizia a verdade, fiquei com ele para que me servisse de recordação pelo que ela me tinha feito e pelo tipo de mulher que era. — Não entendo. Como é que uma mulher consegue abandonar o seu filho? — a voz de Sara irradiava tanta tristeza que era difícil para ele suportar a incômoda situação. Gideon voltou a falar, com a voz mais zangada do que pretendia. — Não sei. Suponho que sentia falta dos criados, que faziam tudo por ela, ou de ver todos os seus desejos realizados. Devia sentir falta dos vestidos caros, do champanhe e das belas carruagens. E com certeza, das jóias que brilhavam nos dedos, também... Gideon não conseguiu continuar. Sentia que a raiva o consumia. Virou as costas para Sara e contemplou a ilha. A sua ilha. Inspirou profundamente diversas vezes, deixando que o ar puro de Atlântida entrasse nos pulmões e o acalmasse. Só Atlântida tinha o poder de purgar a dor que lhe provocava o fato de recordar a traição da sua mãe. Quando voltou a falar, regozijou-se de o conseguir fazer com a voz mais calma. —Meu pai não tinha muito para dar, garanto. Conseguia viver decentemente, mas nada parecido ao nível ao qual ela estava habituada. Quando ela o conheceu, ele não era bêbado, ou pelo menos foi isso que ele me disse. Só começou a beber depois de ela o ter abandonado. — a raiva voltou a aparecer na voz dele. — aparentemente, ele não conseguia entender porque é que um marido e um filho não se podiam equiparar a uma mansao com cinquenta criados e com alfinetes de diamantes do tamanho do delicado punho aristocrático da minha mãe. Sara manteve-se em silêncio durante um tempo. Quando finalmente decidiu falar, o seu sussurro foi lacinante. — Não sou como ela, Gideon. Sei que pensas que sim, mas... — Não ponha na minha boca o que nunca disse, Sara! — reprovou ele, apertando os punhos. — Maldita seja! Já sei que não é como ela! Não se parece em nada com ela! Em nada! Acredita, a minha mãe nunca teria embarcado com um grupo de prisioneiras. Nem teria citado Aristófanes na frente de um pirata. Teria desmaiado ao ver uma serpente, e nunca teria se incomodado em ajudar a extinguir um incendio! Gideon proferiu uma sonora exalação enquanto olhava para ela implacavelmente. — Mas também não conheci nenhuma outra aristocrata inglesa que fizesse essas coisas. A maioria das esposas e das filhas dos condes que viajavam nos navios que abordei demostraram ter pouca garras e ainda menos inteligencia. — E se atreve a culpá-las? Certamente estavam aterrorizadas. Ela disse as palavras como defesa, o que conseguiu arrancar um sorriso dos lábios de Gideon. Sara era assim, capaz de se colocar ao lado de um grupo de mulheres que nem sequer 166


conhecia. — Talvez. Mas você não estava. Me ameaçou com punho e disse o que pensava. Admite, Sara, você não é a típica aristocrata inglesa. — Mas se você não me... odeia pelo que sou, porque é que não… quer dizer...? — Não conseguiu continuar. As suas faces coraram de um vermelho vivo. Ele olhou para ela fixamente. Não podia acreditar que ela estivesse querendo dizer o que ele pensava que queria dizer. — Porque não fiz o quê, Sara? — perguntou-lhe numa voz cuidadosamente tranquilizadora. — Nada. Gideon ficou desanimado. — Porque é que não consegue admitir? Porque é que finge que não gosta de mim e nos obriga a passar por esta tortura infernal? — Porque não devia gostar de você! — Ela olhou para ele desconsolada. — Não é correto! Não devia gostar de você! — Porquê? Porque é a filha de um conde e eu sou apenas um pobre pirata de baixo nível? — sentia-se como se ela o tivesse escavado com aqueles dedos delicados até chegar às suas entranhas. Voltou-se para a janela e colocou as mãos no parapeito. — Talvez me tivesse enganado contigo; sim, é possivel. Com as mulheres, consegue esquecer que são delinquentes e que pertenecem a um baixo nível social, mas comigo... — Não foi isso que eu quis dizer! É só que... Quando ela não continuou, ele sentiu-se pior o que antes. Reparou que Sara se aproximava dele. De seguida, sentiu a mão dela sobre o seu braço e deu um salto. — Não me toque — sussurrou ele entre dentes. — Se não consegue deitar comigo, então é melhor não me tocar. — Mas Gideon... Gideon virou-se, segurou-a pela mão e retorceu-a nas costas, obrigando-a a colar o corpo dela ao dele. — Lembra do que viu esta manhã, Sara? Do que estava fazendo no rio? Aquilo é o que um homem faz quando precisa de uma coisa com tanta intensidade que é incapaz de se sentir saciado, quando deseja uma mulher que não o quer. — Eu te quero — sussurrou ela sinceramente enquanto sentia como as faces coravam. — falo sério. Tem razão. Te quero tanto que quase não consigo suportar. — Mas preferia que não fosse assim — respondeu ele. — Sim, não posso negar. Condeno absolutamente o que fez até agora na tua vida, os barcos que abordou à força, e sim, a forma como nos sequestrou a todas. Não consigo evitar. Me educaram a acreditar que tais atos não são corretos. Gideon observou-a sem pestanejar, incapaz de dizer uma palavra. Pela primeira vez na sua vida sentiu-se culpado das suas ações. Tivera motivos suficientes para ter aquele tipo de vida, era verdade, e durante a maior parte daqueles anos, o seu governo aprovara as suas ações. Mas isso não as convertia em menos desonrosas aos olhos de Sara. E de repente desejou poder apagar todos aqueles anos, embora fosse apenas por ela. — Mas não importa quantas vezes repita que não devia gostar de você — continuou Sara suavemente. — Não consigo evitar. É tão natural para mim como... como... — Um leve sorriso apareceu nos lábios dela. — Como ralhar com as pessoas sobre os pecados delas. Te quero, Gideon, mais do que a qualquer coisa no mundo. E por esse sentimento tão intenso que sinto, quero te perdoar por tudo. 167


Apesar de Gideon sentir uma enorme pressão no coração perante tais palavras, não se atreveu a acreditar. — Diz isso apenas porque tem pena de mim, pelo que a minha mãe me fez. Já me deixou bem claro que não quer deitar com um criminoso, um homem que teve que sequestrar um grupo de mulheres para poder encontrar esposa, um homem que se diverte roubando jóias… Ela atacou as amargas palavras com um beijo, pressionando o seu delicado corpo contra o dele enquanto o abraçava pelo ombros. Gideon ficou tenso, sentindo as batidas desenfreadas do seu próprio pulso ecoar nos seus ouvidos. — Sara — avisou-a, quando ela se afstou dele. — Não faça isso. Não sabe o que quer. — Eu sei o que quero. — Deslizou os dedos ao longo da pele nua dos ombros dele, com os olhos iluminados sob a tênue luz do anoitecer. — Quero que faça amor comigo. Disse-me que da próxima vez teria que ser eu a pedir. Pois bem, eu peço. — a voz dela tremeu. — faz amor comigo, Gideon, por favor. O pedido quase o convenceu. O seu sangue fervia dentro dele, mas não moveu um dedo. — Isso já não é suficiente para mim. Te quero como esposa, Sara. É isso o que quero. E se não puder ser… — Mas pode. — Ela própria pareceu surpreendida pela sua resposta, mas apenas por um instante. Olhou para ele seguramente. — eu faço. Casarei contigo e ajudarei – a transformar Atlântida no tipo de colônia que merece ser. Gideon não conseguia acreditar no que ouvia. Quantas vezes tinha sonhado com aquele momento? Estaria a sua cabeça a armar-lhe uma armadilha? — Case-se comigo, Gideon Horn, cruel capitão pirata e senhor dos mares? — perguntou ela com um solene sorriso nos labios. Naquele instante todo o controlo de Gideon desmoronou. A sua resposta foi abraçá-la e beijá-la com um beijo que ele sabia que era efusivo demais, selvagem demais. Mas não conseguiu evitar. Finalmente era dele! Sara era dele. E desejava-a tanto que não sabia como era capaz de estar em pé sem se atirar sobre ela e possui-la ali mesmo. Mas não precisou de se preocupar. Sara parecia ter uma enorme vontade por ser possuída. Rodeou-o com os braços ao redor do pescoço, e inclinou o corpo elegante contra o dele enquanto procurava a língua dele para brincar loucamente. Embora a boca dela fosse doce e quente, Gideon sentiu que não conseguia saciar a sua sede precisava de mais. Mordiscou-lhe o lábio inferior e depois lambeu-o como se quisesse acalmar a pequena dor que tinha provocado. Gideon esmagou os seios com o seu peito robusto, e achou que enloquecia com o mero contato. Baixou-lhe o colarinho da bluda que pedira que comprassem para ela, e encheu as mãos com os seios, apertando-os e acariciando-os até que a ouviu ofegar. Então afastou a boca dos lábios dela e começou a beijá-la pelo pescoço, deleitando-se com o sabor salgado da sua pele na suave curva dos seios, culminados pelos mamilos completamente eretos. Chupou-os com força, e sentiu como ela se arqueava para a sua boca com um pequeno gemido. — Gideon... Oh, Gideon, sim — sussurrou, excitando-o ainda mais, e ele precisou de recorrer a todas as suas forças para não a despir ali mesmo. — Vamos para o barco, para o teu camarote... — insinuou ele. — Não! — Ela deixou escorregar as mãos até aos botões das calças dele e forçou energicamente para os desapertar. — Não! Fazemos amor aqui, na nossa casa! Nossa casa. Afinal não era um sonho. Ela estava ali com ele, prometendo que ficaria para sempre. Gideon apressou-se a desapertar a blusa e depois baixou-lhe o tecido até os seios ficarem 168


completamente livres. Entre beijos, caricias e palavras carinhosas passaram mais tempo a despir-se do que queriam, mas ele não se importava, porque ela olhava para ele com olhos radiantes e entregavalhe o corpo com visível desejo. Quando ficaram nus, mantiveram-se de pé junto do colchão que ele trouxera do porão. Gideon conteve-se, tentando travar a impaciente luxúria que sentia. — O que aconteceu? — sussurrou Sara. — Não quero te possuir como se fosse um javali na época do cio. — ajoelhou-se sobre colchão , ofereceu-lhe a mão e convidou-a a aproximar-se até ficar a poucos centímetros dele. — Quero que lembre deste dia eternamente. — Qué quer dizer? — Os olhos de Sara dilataram-se enquanto os dedos de Gideon separavam os pêlos úmidos e encaracolados entre as suas pernas. Tremendo, ela agarrou-se aos ombros dele e observou-o com medo. — o que vai...? — calou-se quando ele a beijou entre as pernas, nas suaves pregas de pele, e um longo suspiro escapou dos lábios dela. — Ohhhh... Gideon... Gideon... Ele acariciou-a lenta e meticulosamente de inicio, explorando cada parte dela com a língua, os lábios e os dentes, quando sentiu que Sara se agarrava com mais força à sua cabeça, aproximando-o mais dela, deu-lhe prazer com tudo o que possuía até que pensou que explodiria perante a iminente necessidade mergulhar algo mais do que a sua língua dentro dela. Estava úmida e quente e o sabor do sexo dela deixava-o louco. Agarrou-a pelas pernas com mais força. Queria tanto estar dentro dela, mas também queria algo mais... enlouquecê-la, para que nunca se arrependesse por o ter escolhido. Assim, continuou e continuou até que sentir a crescente tensão do corpo dela sob a sua boca e ouviu-a ofegar com mais força até soltar um gemido de prazer. Só então a deitou sobre a cama e penetrou-a, enrijecendo todos os músculos enquanto mergulhava dentro dela, até ao fundo. Queria que ela perdesse o mundo completamente de vista por ele, para que nunca o abandonasse... Sara seria sua para sempre. Faria tudo quanto fosse possível para conseguir. Ela arqueou-se contra ele, inclinou a cabeça para trás e agarrou-se aos braços dela para o apertar mais a ela. Por Deus, sentia-a tão tensa, tão quente e tão deliciosamente apetecível, pensou Gideon enquanto ambos desabavam num selvagem ritmo erótico. O sangue fervia, e sentia que estava prestes a explodir, mas aguentou-se até que sentiu que ela começava a ter convulsões. Então perdeu a noção de onde estava e desabou dentro dela enquanto lançava um gemido gutural de pura satisfação. Não sabia quanto tempo estivera deitado sobre ela, dentro dela.. deviam ter sido apenas uns breves segundos, mas pareciam ter decorrido horas inteiras, afastando-se da terra com o corpo dela colado ao seu, ouvindo a respiração rápida e superficial dela e sentindo o suave aroma da sua pele serpentear sob a dele. Quando conseguiu erguer-se, Gideon afastou-se para se deitar ao lado dela e observá-la. Ela aninhou-se contra ele como uma vela recolhida depois de ter passado a tempestade, com o braço dobrado sobre o seu peito e com as pernas entrelaçadas entre as dele. Depois colocou uma mão sob a cabeça e com a outra começou a acariciar os caracóis de pêlo que revestiam o peito plano e robusto de Gideon. O olhar dele posou sob o medalhão de prata que Sara usava pendurado ao pescoço, e invadiu-o uma repentina curiosidade por saber tudo sobre ela. Tocou ternamente no medalhão. — Que medalhão tão bonito. Quem te deu? — A minha mãe. — nos lábios dela desenhou-se um tímido sorriso. — contem uma 169


madeixa do cabelo dela. Sei que provavelmente acha um absurdo que use uma coisa desta, mas... — De forma nenhuma. Devia estar muito unida à tua mãe, para não o tirar nunca do pescoço. — invejou-a por isso, apesar da dor da traição da sua mãe parecia atenuar-se de repente. — Sinto falta dela. Podia confiar sempre nela; ouvia-me sempre e dava-me conselhos. Gideon observou a primitiva divisão em que se encontravam, e subitamente ansiou que fosse mais pomposa, melhor. — O que teria pensado a tua mãe disto... de nós? Sara deslizou um dedo sobre o peito de Gideon. — Acredite ou não, diria que o teria aceitado. A mamã tinha um coração muito generoso, e era muito boa na hora de julgar as pessoas. Quando caí em desgraça om o coronel Taylor, desde o inicio me avisou que ele não era o homem adequado para mím. Mas creio que gostaria de ti. O prazer que lhe provocaram as suas ultimas palavras misturou-se com uma sensação de ciúmes. Sara caira em desgraça com mais alguém? Estivera com outro homem? Enrijecendo os braços possessivamente à volta dela, perguntou-lhe: — Quem era o coronel Taylor? Ela escondeu a cabeça, mostrando-se repentinamente incomodada. — Um homem com o qual estive prestes a fugir. A minha família não o aceitou. — Porque não era um duque ou algo parecido, suponho. — Não. Porque perceberam que andava atrás de mim pela minha fortuna. Jordan investigara um pouco sobre o seu passado e descubriu que não tinha um único centavo. Contou ao meu padrasto e o meu padrasto ameaçou deserdar-me se não interrompesse a relação com aquele homem. Gideon ficou rígido, lembrando-se do seu próprio pai. — Porque aquele homem não tivesse dinheiro não significa que não estivesse apaixonado por ti. — Eu também pensava assim. — surpreendeu-o com aquela declaração. — então, fiu ver o coronel Taylor e ofereci-me para fugir com ele. Disse a ele que não me importava de me deserdassem. — a voz dela ficou mais tensa. — mas aparentemente, ele se importava. Respondeume que não tinha dinheiro para manter uma esposa, que não podia, tal como ele disse, «trazer nada mais do que o seu rosto bonito para matrimonio». Gideon ouviu a dor na voz dela, e sentiu vontade de encontrar o coronel Taylor e dar-lhe um par de açoites, fustigando-o com o chicote até que implorasse perdão. — Esse tipo era obviamente um idiota, para deixar escapar a oportunidade de ficar contigo. Graças a Deus que o teu meio-irmão descubriu as verdadeiras intenções desse homem antes que fosse tarde demais. Sara ficou muito tensa nos braços dele. — Sim, graças a Deus. — depois de um momento, acrescentou em voz baixa. — Gideon, o que aconteceria se... o meu irmão aparecesse aqui, na ilha? Já tinha dito, ele não vai descansar até me encontrar. Um alarme insustentável invadiu-o antes que conseguisse recuperar a compostura, lembrando-se que não tinha nada a temer. — Nunca encontrará Atlântida, não sem um guia. Nem os habitantes de Cabo Verde conhecem este lugar. — Mas se o fizesse — insistiu ela. — o que faria? Gideon olhou para ela solenemente. — Não permitiria que ele te tirasse do meu lado, se é isso que quer saber. Lutaría contra qualquer homem que tentasse tirar-te dos meus braços. — a desconfiança que antes sentira voltou a invadir-lhe a cabeça, e embora não quisesse, acrescentou amargamente: — Ou talvez seja isso 170


que espera, que o conde venha te resgatar? — Não, claro que não! — Uma nota de culpabilidade apareceu por instantes nos olhos dela, mas desapareceu rapidamente, pelo que Gideon não teve a certeza se teria imaginado. Ela acariciou-lhe a face suavemente e continuou: — Quando disse que queria casar contigo, falei sério. Mas tenho saudades do meu irmão. gos... gostaria que soubesse que estou bem. Aquelas breves palavras surtiram o efeito de uma estaca cravada no coração de Gideon. Soltou-a de repente e deitou-se olhando para o teto. — Claro, voces as aristocratas inglesas, têm vínculos muito fortes com as vossas famílias. — Gideon! — Ela aproximou-se e apoiou a cabeça sobre o peito dele. — Deixe de me comparar com a tua mãe. Não vou deixar-te, não se puder evitar. A única coisa que quero dizer é que não aconteceria nada se enviasse uma carta ao meu irmão, tranquilizando-o e explicando-lhe que estou felizmente casada com um... — Com um pirata? Sim, tenho a certeza que isso conseguiria fazer o teu irmão saltar de alegria. — Com um ex pirata. — as fissuras dos lábios dobraram-se para cima. — Pelo menos não é um caça dotes. Nunca me permitirá voltar para minha casa, e muito menos reclamará o meu dote. Gideon debatia-se entre um sentimento de culpa e de vingança. — Nunca mais volte a mencionar o regresso a tua casa. Sabe que não o consigo fazer. Fariam perguntas. Tentariam desconbrir onde é que estamos. — quando ela olhou para ele com ar de ter sido insultada, ele apressou-se a acrescentar: — Não é que dissesse alguma coisa, mas mesmo não o fazendo, tentariam te reter até que dissesse. Eu não poderia ir buscar-te, porque me enforcariam. Sara empalideceu. — Não tinha pensado nisso. — Então tentou animar-se. — Talvez pudéssemos ir juntos a Inglaterra, disfarçados. Nunca teve vontade de ver o país onde nasceu? Encontrar a tua familia... — Não, nunca. Não depois do que fizeram ao meu pai e a mim. — Mas há outra coisa... não sente curiosidade por saber se o teu pai te contou toda a verdade? E se há outra versão da historia? E se a tua mãe o abandonou porque era maltratada ou algo parecido...? — Abandonando a mim com ele, para que fosse eu o maltratado? — grunhiu. — isso seria pior do que ele me contou. A reação dele pareceu alterar Sara. — Bom, sim, mas pode ter sido por qualquer outra questão… — Não. Vi a carta da minha mãe. — Agarrando o queixo de Sara, obrigou-a a levantar os olhos até que ela o olhou no rosto. — Porquê tantas perguntas acerca deles? E porquê todas esta obsessão por ir a Inglaterra, se parece tão feliz de poder casar comigo? Um sorriso forçado apareceu nos lábios de Sara. —Desculpe, Gideon, mas não consigo deixar de sofrer ao pensar no meu irmão e em como ele deve estar agora. Não que queira te abandonar. Mas quero dizer a Jordan que estou bem. Ele olhou para ela fixamente. Um medo profundo de perdê-la invadia-o lentamente como se fosse um angustiante veneno. Se a proibisse de se comunicar com a família dela, ela acabaria por odiá-lo. Não se tratava de uma necessidade que fosse desaparecendo com o tempo. Por outro lado, se a deixasse enviar aquela carta, se sentiria completamente satisfeita ou então exigiria mais? — Se disser que estou a salvo — insistiu ela, — talvez não tente sair à minha procura. — Tenho tenho tanta certeza disso. Se eu fosse teu irmão, não descansaria até que te encontrasse e cortaria o desgraçado que se tivesse aproveitado de você Ela empalideceu, tapando a boca com os dedos. 171


— Não diga uma coisa dessa. Não permitirei que ninguém te faça mal, especialmente o meu irmão. O repentino terror nos olhos dela conseguiu acalmar a preocupação que Gideon sentia. — Está bem. Pode enviar uma carta ao teu irmão. Suponho que isso não fará mal a ninguém. Ela rodeou-o com os braçose fez festa carinhosa. — Obrigado, Gideon, muito obrigado. Sentindo-se generoso, ele sorriu e acariciou a despenteada cabeleira ruiva. — Suponho que o mais justo será que as outras mulheres também escrevam para as familias, se assim quiserem. Sara levantou a cabeça para revelar uma expressão de puro prazer. — Oh, Gideon, isso significaria tanto para elas! A maioria não tem ninguém, mas outras ficarão contentes por poder contactar com a familia; tenho certeza. — Farei com que um dos homens leve as cartas a São Nicolau esta semana, quando forem buscar o sacerdote. — Qual sacerdote? Ele deu-lhe um beijo no nariz. — Bem, eu não posso oficializar a cerimonia do nosso casamento, não acha? Há um pastor anglicano que vive em Sao Nicolau que tem vontade de passar uns dias na ilha. E é provável que algumas das outras mulheres também prefiram que um sacerdote as case. — Ah, isso não sei. — Ela deslizou um dedo por uma das cicatrizes do peito dele. — eu diria que metade das mulheres nunca cruzaram o umbral de uma igreja. — Não me diga, menina Willis, que está admitindo nem todas prezadas reclusas são damas castas e puras? — brincou ele. Sara franziu a testa com porte beligerante enquanto espetava um dedo no peito. — Olhe, senhor pirata, você é o menos indicado para criticar alguém de não ser casto e puro. Abordando barcos e sequestrando mulheres e... Gideon calou o sermão com um beijo, obrigando-a a colocar-se em cima dele até ficar gloriosamente estendida sobre ele. Decorreram apenas uns minutos antes que ela respondese ao beijo dele, abrindo a boca docemente perante as investidas da sua língua. Sim, pensou ele enquanto o seu membro viril voltava a ficar duro e sentia como ela abria as pernas determinada. Aquele era maneira de manobrar Sara: beijá-la até a fazer esquecer porque motivo estava zangada. Fazer amor com ela até se esquecer de todas aquelas malditas reclusas, da Inglaterra e do seu meio-irmão. Especialmente do seu meio-irmão. Porque Gideon sentia uma desagradável sensação que a conversa sobre aquele maldito inglês não tinha resolvido. Capítulo 22 Por Deus! O ouro não significa nada para mim. O meu coração está completamente angustiado, o desejo da tua doce companhia provavelmente será o meu desânimo: por isso, meu amor, não me deixe aqui, martirizado na margem; não nos separemos nunca, amor, nunca, a menos que não te possa ver mais! The Undaunted Seaman, ANÔNIMO — Outra historia, conte-nos outra historia! — gritavam as crianças sentadas na praia ao 172


redor de Sara. Tinham passado dois dias desde que ela aceitara casar com Gideon, dois dias maravilhosos, inesquecíveis. As crianças sentiam o seu estado de animo, claro. Como não podiam sentir, quando ela exibia aquele sorriso pateta durante todo o tempo e deambulava como se estivesse num sonho? Por isso naquele dia conseguiram convecê-la para que não desse aulas e contasse histórias. E ela não pareceu incomodada. Naquele momento sentia-se tão feliz, que teria oferecido com enorme prazer ao diabo, chá e bolachas se este tivesse pedido educadamente. Ann, no entanto, estava mais pragmática do que ela pela primeira vez na vida. Estalou a língua e olhou para as crianças. — Vamos, crianças, a menina já vos contou três historias. Já chega, por hoje. — Não me importo... — começou Sara a dizer. Uma profunda voz masculina interrompeu-a. — Eu conto uma historia às crianças, se quieserem. Sara virou-se e viu Gideon de pé trás dela, desinibido e alegre como nunca o tinha visto antes. Gideon apressou-se a colocar-se ao lado dela, sorrindo maliciosamente com o rosto bronzeado. O vento soprava e agitava o cabelo preto como o carvão, empurrando-o para as faces e suavizando as linhas duras do queixo. Quando piscou o olho para Sara, ela sorriu. Às vezes, aquele homem parecia uma criança. — Tenho certeza que vão gostar de ouvir uma das tuas histórias, Gideon — disse ela. — Não é, crianças? Diante dela formou-se um silêncio horroroso. Ela observou as crianças, que olhavam para Gideon com admiração e medo. Até agora, ele não tinha tido interesse nenhum pelas crianças, provavelmente porque estava demasiado ocupado supervisionando a reconstrução da ilha. Como resultado, elas não sabiam nada dele, exceto que ele e os seus homens os tinham capturado, a elas e às suas mães. Se fossem mais velhos, certamente não teriam ficado tão intimidados com ele. mas a verdade era todos eram muito novos. A criança mais nova tinha apenas seis anos, e a mais velha, tinha nove. Ann rompeu o incômodo silencio com um suspiro. — Não sejam tímidos agora. Sei que morrem de vontade de ouvir uma historia do capitão. Certamente, já devem estar cansados de ouvir a menina Willis e a mim durante todo o tampo, não? Sob o olhar firme de Ann, as crianças começaram a assentir uma a uma, embora com mais medo do que entusiasmo. Gideon sentou-se ao lado de Sara com o rosto relaxado, enquanto oferecia aos miúdos um sorriso cúmplice. — Olhem, sei que ouviram coisas terríveis sobre mim. E não vou mentir. Algumas delas são verdades. Roubei uma ou outra jóia, lutei contra muitos homens em batalhas navais, quase sempre em defesa do meu país. As crianças olhavam para ele com os olhos bem abertos. Ele continuou, elevando um pouco mais o tom de voz para se fazer ouvir sobre o barulho das ondas. — Mas muitas das coisas que acreditam sobre mim não são verdade. O meu barco chama-se Satyr, e não Satã. — sorriu maliciosamente. — e embora seja parecido com ele em alguns aspectos, não sou o diabo. — levantou-se, inclinou-se para a frente e afastou o cabelo com as duas mãos. — vejam bem. Vêm algum corno escondido no meio do meu cabelo? — sentou-se novamente na areia e tirou uma das botas, então mostrou-lhes o pé descalço e mexeu os dedos. — e o que parecem os meus pés? Vêm algum casco? Eu não. — agarrou o pé como se ele mesmo quisesse inspeccionar. 173


Depois enrugou o nariz. — Não há casco, mas cheira mesmo mal. A filha de Molly, Jane, que estava sentada à frente de todos, soltou uma gargalhada, e depois cobriu a boca com a mão. Tentando tomar vantagem do momento de diversão, Gideon colocou o pé diante de Jane e começou a mexer os dedos outra vez. — Quer cheirar o meu pé? — Quando ela sacudiu energicamente a cabeça com outra gargalhada, ele revirou o pé no ar diante dela. — aparentemente quer ter a certeza de que não há nenhum casco escondido em lado nenhum. Atrás dos dedos, talvez? Debaixo do calacanhar? Um par de crianças também desataram a rir. — Vamos, vejam se encontram os meus cascos. — Jane ergueu uma mão tentando tocar nos dedos. — mas não me faças cócegas, está bem? — avisou-a ele. — Tenho muitas cócegas. Sara sofocou um sorriso. Aquele homem não tinha cócegas em lado nenhum do corpo, tinha a certeza disso, depois de ter explorado intimamente cada centímetro da sua pele. Jane esfregou o calcanhar comos dedinhos, e ele rebentou numa gargalhada fingida. — Pare, por favor! Pare! — exclamou com falso temor. — já te disse que tenho muitas cocegas! Aquilo, evidentemente, encorajou-a a tentar fazer-lhe mais cócegas, e depressa as outras crianças se uniram a ela, tentando fazê-lo rir. Não demoraram em ficar todos em cima dele; uma massa de crianças brincalhonas, rindo, gritando e a fazer cócegas uns aos outros. Sara contemplava-os enquanto sentia que se formava um nó na garganta. Gideon seria um pai extraordinário. Conseguia imaginá-lo fazendo cambalhotas pela praia com o seu próprio filho com uma mata de cabelo preto, ou com a filha com olhos grandes. Que feliz estava por casar com ele! Se pudesse ter a certeza de que Jordan não ia estragar tudo... Tentou animar-se. Apesar de tudo, havia possibilidades de que o seu irmão não viesse. Graças à repentina mudança no coração de Gideon, pudera enviar uma carta a Jordan pedindolhe que não o fizesse. Com um pouco de sorte, o irmão receberia a carta a tempo e conseguiria convecê-lo de que estava bem e que não precisava que fosse resgatá-la. Tinham passado apenas três semanas desde que Peter partira, e provavelmente a essa altura ainda não teria encontrado um barco em Cabo Verde que o levasse até Inglaterra. Talvez a carta acabasse por viajar no mesmo navío que Peter! E embora a carta chegasse a Inglaterra depois de Jordan ter partido, e embora Jordan aparecesse na ilha, de todas as formas seria tarde demais. O sacerdote estaria ali por uns dias, e então ela e Gideon ficariam casados pela igreja. Ninguém podería separá-los. Nem mesmo Jordan esperaria que ela partisse com ele e abandonasse o marido, o homem que amava. O homem que amava. Sara sentiu uma pontada de dor no coração. Amava Gideon, tanto que por vezes parecia que não conseguia aguentar o peso daquela sensação. Soube na noite em que ele falou da sua mãe, na noite em que fez amor com tanta ternura que quase lhe partira o coração. Tinha desejado dizer, mas os sentimentos eram tão novos, tão frescos, que pensou não conseguir suportar a idéia de ser sincera com ele se ele não dissesse as mesmas palavras. uma parte de Gideon ainda não confiava nela, por muito que o tentasse convencer, e ele não teria a certeza absoluta enquanto não estivessem casados. Como tinha acontecido? Desde quando o fato de fazer feliz um antigo capitão pirata se convertera na coisa mais importante da sua vida? Não sabia; e o que era mais importante, também não lhe interessava. Os seus sentimentos não iam mudar. Foi quando aceitou casar com ele. Não fazia sentido continuar a fingir que ela poderia partir tranquilamente com Jordan se este a viesse buscar. Era impossível separar-se de Gideon, da 174


mesma forma que era impossível deixar de respirar. Além disso, não tinha vontade nenhuma de mudar a serenidade de Atlântida por Londres. Em Londres sempre tinha se sentido como se tivesse que ligar com os dedos uma brecha para conter a maré de pobreza, de crimes e de morte, para que essa maré não inundasse a cidade. Obtivera pouca ajuda das pessoas que se supunham ser suas amigas, e não tinha dúvida nenhuma de que tinham rido dela por todos os esforços que dedicava à sua causa. Por mais que tentasse, acabava sempre por perder mais do que ganhava. Em Atlântida, contudo, podia realmente ajudar as pessoas. Por um lado, graças a ela, as mulheres tinham começado a confiar em si próprias. Os homens tinham começado a mostrar um novo respeito pelas mulheres, a perguntar-lhes o que queriam e a fazer pequenos gestos de cortesia que os engrandecia perante os olhos das suas amadas. Eram uns tipos verdadeiramente extraordinários, a maioria deles. Juntos, os homens e as mulheres, estavam construindo algo estável. Gostava de ver como as pessoas que tinham sido expulsas do seu país recuperavam a auto estima e encontrava uma razão para a vida. Todas as manhãs se levantava com vontade de enfrentar o novo dia que nascia, com vontade de explorar mais a ilha e descobrir novas alegrias para partilhar com Gideon. Só havia uma coisa pela qual se sentia culpada: não ter exercido pressão suficiente com Gideon a respeito das mulheres. Ambos tinham evitado o assunto das ceremonias nupciais, com medo de quebrar o frágil fio de felicidade que os unia. Mas Sara sabia que depressa teria que falar no assunto. O mês que ele tinha oferecido às mulheres acabaria em dois dias, e apesar da maioria das mulheres já ter escolhido maridos, algumas ainda hesitavam em casar, particularmente aquelas que tinham deixado para trás maridos devotos ou noivos na Inglaterra. Seguramente, quando expusesse as suas razões a Gideon, ele faria uma uma exceção com elas. Nas últimas semanas tinha percebido que Gideon era um homem razoável, com um coração muito generoso. Embora as vezes se mostrasse cínico, a verdade era que ele queria melhorar as coisas e estava determinado a lutar por consegui-las. Gideon compreenderia o seu ponto de vista, quando ela o partilhasse com ele, perceberia que era a decisão mais sensata para a colônia. Observou-o enquanto ele tentava acalmar as crianças e começava a contar uma historia acerca de Jack o Torto, o papagaio que gostava de comer carne salgada. Sara deslizou a mão pela areia fina da praia e contemplou-o com o coração apertado, tentando memorizar todas as suas feições. A face marcada pela cicatriz, que ao principio lhe pareceu horrorosa e que agora a agradava tanto... os dedos longos e firmes que tinham proporcionado aquele prazer por várias vezes durante os últimos dias... os pés absurdamente descalços; os dedos salpicados por um fino pêlo negro... Sim, amava-o da cabeça aos pés. E o fato dele ainda não ter se declarado, sabia que no fim o faria. Tinha que o fazer. Não permitiria que ele não a amasse. Gideon acabou a história e as crianças pediram-lhe outra, mas ele ergueu as mãos como se se rendesse. — Desculpem, meninos, mas não posso. Agora não. Silas e os outros estão à minha espera. Vamos caçar. Quando se levantou um coro de descontentamento, ele disse: — Todos gostam de javali assado, não é? As crianças assentiram. — Pois é por isso que tenho que ir. — levantou-se e sacudiu a areia dos calções. — Temos que conseguir um pouco daquela carne deliciosa para vocês. Mas regressaremos antes que anoiteça, e depois conto outra história, de acordo? — Siiimmm! — gritaram as crianças em uníssono. 175


Quando se aproximou de Sara, Ann levantou-se, dedicando ao casal um sorriso tolerante enquanto tentava captar a atenção das crianças. — Venham, crianças, vamos passear pela praia. Acho que vi um ninho de tartaruga não muito longe daqui. Sara deu à sua amiga um sorriso de agradecimento enquanto as crianças se afastavam saltando pela praia, deixando-os, a Gideon e a ela sozinhos. — Vai estar fora o dia todo? — perguntou-lhe quando as crianças tinham se afastado, incapaz de esconder a decepção na sua voz. Gideon sorriu enquanto a rodeava com os braços. — Fala como uma esposa, e ainda não estamos casados. — E se importa? — perguntou-lhe ela com altivez. — Não, não me importo nada. — Gideon deu-lhe um beijo sonoro enquanto lhe acariciava certas partes que não devia; pelo menos não no meio de uma praia aberta. Quando ele se afastou, ela agarrou-se a ele sentindo-se de repente, sem saber porquê, incapaz de deixá-lo partir. Normalmente não passavam todo o dia juntos, mas por alguma razão inexplicável, naquele dia Sara não suportava afastar-se dele. — Podia ir contigo. Gideon soltou uma gargalhada. — E o que faria? Carregaria as armas? Cortaria a carne e e temperava? Trazia a carne para o povoado? Tem coisas mais interessantes para fazer do que se arrastar entre os arbustos com um grupo de homens malcheirosos numa caçada. — Sabe perfeitamente que esse não é o motivo pelo qual não quero que vá — acusou-o ela. — Você e outros quem estar sozinhos para rugir e encher a barriga a beber pela garrafa sem ter que se preocupar com o que as mulheres pensam de vocês. — Pois olhe, agora que fala nisso... — Oh! Não tem vergonha! — disse ela num fingido tom de voz desgostosa enquanto dava um leve empurrão nele. — mas não se atreva a voltar esta noite para a cama a cheirar a álcool e a sangue de javali. — Não se preocupe, depois de meio-dia a grunhir, a encher a barriga e a beber pela garrafa, estarei pronto para um banho. — brincou com o colarinho da blusa com um dedo, puxou-o e olhou para dentro maliciosamente. — lembrei-me neste momento de outros prazeres. — Gideon! — protestou ela, enquanto a vergonha fazia corar as suas faces. Alguma vez se habituaria ao comportamento escandalodo dele? Provavelmente não, pensou ela. Entretanto, ele ficou olhando para ela eroticamente, agarrou-a pela cintura e Sara começou a tremer em anticipaçao ao seu beijo. — Capitão! Vem ou não? — gritou uma voz do bosque. Gideon soltou um rugido e largou-a. — Já vou, maldiçao! Estou aí dentro de um minuto! — gritou como resposta. — Não se preocupe comigo. Ficarei bem. — Sara colocou-se em pontas dos pés para beijá-lo na face. — vai e se divirta. E traz um bom javali para a festa do nosso casamento. — Essa é exatamente a minha intenção, meu amor — respondeu ele sorrindo. Em seguida, virou-se e correu pela praia para a vegetação. O coração de Sara batia desenfreado enquanto observava como ele parava para dizer adeus e depois desapareceu no bosque. «Meu amor», chamara-lhe «meu amor». Provavelmente não significava nada, mas a expressão deu-lhe esperança. Depressa diria muito mais do que isso, tinha a certeza. Dificilmente conseguiria esperar até que o fizesse, então ela também poderia declarar os seus sentimentos para ele. 176


Emitiu um suspiro, levantou um pouco a saia e passeou pela praia. Estava tão absorta nos seus pensamentos apaixonados sobre Gideon que não percebeu do quanto se afastara do resto do grupo. Até que alguém a agarrou pelas costas, tapou-lhe a boca e arrastou-a até às arvores. Sara sentiu-se aterrorizada, e começou a lutar furiosamente para escapar daqueles braços masculinos. — Solte-a, Peter! — sussurrou uma voz enquanto ela e o sequestrador entravam no bosque. — está a assustando! — Não grite, menina, está bem? — murmurou uma voz familiar ao ouvido dela. — vou soltá-la. A única coisa que Sara se lembrou como resposta foi dar ao individuo uma forte cotovelada nas costelas. — Ai! — gritou ele enquanto a soltava. — Porque diabo fez isso? Ela voltou-se como um furacão e com olhar furioso. — Maldito! Por me dar um susto de morte, seu estúpido! — Maldito? — repetiu outra voz familiar. Jordan apareceu por trás de uma arvore, com o rosto pálido e com aspecto desalinhado, vestido com uma jaqueta e uns calções apertados. — parece que o teu vocabulario mudou imensamente desde a ultima vez que te vi. — Jordan! — exclamou ella. — Oh, Jordan! Está aqui! Sara temeu que o coração saltasse do peito quando viu o seu querido meio-irmão . Atirou-se sobre ele e mergulhou num profundo abraço enquanto apoiava o rosto no seu ombro. — Sim, bonequinha, estou aqui. — ele apertou-a com força. — Está bem? Aquele rufião te machucou? — afastou-a um pouco para a examinar da cabeça aos pés. — Tem bom aspecto, embora saiba que isso não quer dizer nada. — Estou bem — sussurrou ela. — é sério. Jordan afastou-lhe o cabelo da testa, como se quisesse estudar o seu rosto. — Não imagina a minha preocupação durante todo este tempo, pensando nas atrocidades... — calou-se, mas o seu rosto denunciava o seu cansaço e desânimo. — bem, isso agora já não interessa. Finalmente te encontrei. Agora está a salvo. Sara sentiu uma crescente sensação de culpa. A salvo? Como ia dizer que estivera a salvo durante o tempo todo? Que tinha passado bem no mar, que iniciara uma nova vida e que se apaixonara, enquanto Jordan tinha sofrido tanto. Mas nem toda a culpa era dela, pensou. Oh, se Gideon pudesse ver o seu irmão agora, naquele momento, compreenderia o erro que cometera ao sequestrá-las todas. Gideon! Por todos os santos! O que ia fazer com Gideon e com Jordan? Separou-se do irmão e tentou esconder a confusão com perguntas enquanto procurava a forma de contar a historia, de explicar como tudo mudara no ultimo mês. — Como é que chegou tão depressa? — Quando o Chastity regressou a Londres, o capitão veio me contar diretamente a historia do sequestro. Embarquei sem perder um segundo para Cabo Verde, em direção ao último porto onde o barco das prisioneiras tinha atracado. Enquanto navegava para as ilhas, à espera de obter alguma informação sobre o paradeiro dos piratas, encontrei Peter em São Nicolau, que tentava embarcar num navio que o levasse de volta a Inglaterra. Foi ele quem me trouxe até aqui. Sara não considerara que tal coisa pudesse acontecer; mas claro, era previsível que Jordan partisse assim que o Chastity chegasse a Inglaterra. Agora ele estava aqui. E ela não tinha tido tempo de se preparar para o receber como era devido. — Onde está o teu barco? — Peter explorou bem a ilha antes de desembarcar. Escondemos num porto afastado onde 177


os meus homens pudessem esperar enquanto ele e eu viéssemos buscá-las, a você e à noiva dele. — E falando na minha noiva, senhor... — começou a dizer Peter. Jordan fez-lhe um sinal com o braço como forma de autorização. — Sim, vai buscá-la. Mas depressa, antes que descubram o barco. Sara e eu esperamos aqui por você. Bem, pensou ela enquanto Peter desaparecia apressadamente. Precisava de ficar uns minutos sozinha com Jordan sem a intrusão de Peter. Ele virou-se e olhou para ele com o rosto cabisbaixo. — Já sei que quer que resgatemos o resto das mulheres, Sara, mas primeiro tinha que salvar a ti. Quando Peter encontrar a noiva, regressaremos ao Defiant. Ela olhou para ele surpresa. o Defiant era o orgullo da frota dele. Custava-lhe a acreditar que o seu irmão tivesse arriscado aquele navio por causa dela. — Teria vindo com a frota inteira — continuou ele, — mas sabia que se o fizesse, a tua reputação ficaria arruinada para sempre. Paguei muito bem ao comandante do Chastity para que mentisse acerca do que aconteceu durante a abordagem dos piratas, então pensei que seria melhor trazer um dos meus próprios barcos e não me arriscar a provocar um escândalo. — mas Jordan... — Não se preocupe — continuou Jordan, como se ela não tivesse falado. — tenho suficientes homens armados e canhões para fazer explodir este ninho de piratas. Podemos afundar o Satyr antes que aqueles rufiõs percebam do que aconteceu. E depois podemos... — Não! Não faça! Ele olhou-a desconcertado, como se pensasse que ela tinha ficado louca, e o seu rosto alterou-se com uma angustia visível. — Oh, sim, claro. Tinha-me esquecido. O Peter disse-me que as mulheres dormem no barco. Bom, então, teremos que rebocar o Satyr para o mar alto para as manter a salvo antes de iniciar o ataque. Tenho homens suficientes... — Jordan, por favor! Não faça! — Porque não? Sara começou a retorcer os dedos, procurando a melhor forma de explicar. — Porque eu não vou permitir. Não vou deixar que machuque Gideon. — Gideon? — repetiu ele, com os olhos brilhando. — Não está falando do capitão Horn, pois nao? O Lorde Pirata? O homem que causou enormes prejuízos nos mares ingleses durante a última década? Um criminoso cruel com... — Não é cruel! E também não é um criminoso. Pelo menos já não é. — Diz isso porque ele se gaba de ter deixado a pirataria e se estabeleceu nesta ilha? Peter falou-me desse tipo, que parece admirar disparatadamente. Mas eu não me deixo enganar por essas historias românticas de piratas, Sara, eu vejo o homem pelo que ele é. — Mas ele não é como você pensa! Não é... aquela criatura horrível que os jornais descrevem. É inteligente e atento e... — e rapta mulheres por prazer. Ela engoliu a saliva. Aquela acusação era difícil de justificar. — Não é por prazer. Mas tem razão, raptou-nos. Foi uma loucura, e se me der um tempo com ele, consigo convencê-lo a soltar as reclusas que queiram abandonar a ilha. — Dar mais tempo? — Jordan agarrou-a pelo ombros com força. — olha, desta vez não se trata de tentar convecer um grupo de anciãos do Conselho Naval com as tuas palavras agradáveis para que façam o que quer! Estamos falando de um crimonoso de guerra! — Você não o conhece! 178


— e você? — Os seus olhos se apertaram enquanto a estudava de cima abaixo, observando a roupa informal e os pés descalços. — até que ponto conhece aquele pirata? Ela tentou não corar e ergueu o queixo com orgulho. — O suficiente. Eu o amo, Jordan. Pediu-me em casamento,e eu aceitei. Casamos depois de amanhã. — Pois para casar terá que passar por cima do meu cadaver! — explodiu ele. — Se pensou que vou te apoiar nesta loucura e que deixarei cometer um erro tão monstruoso... Sara fulminou-o com olhos faiscantes. — Não é um erro! Sei muito bem o que faço! — Sim, claro, assim como sabia que se apaixonou perdidamente pelo desprezível coronel Taylor! Ela retrocedeu ofendida. — Como se... Como se...! — calou-se por um momento e inalou profundamente várias vezes seguidas tentando controlar os nervos. — como se atreve a compará-los! O coronel Taylor queria a minha fortuna! A única coisa que Gideon quer de mim é o meu amor! Jordan fechou a palma da mão num punho ameaçador que parecia determinado a dar um murro na cara de alguém. Provavelmente na de Gideon. — Olha para você, Sara. Estás defendendo um homem que tem um ódio visceral pela aristocracia inglesa desde o primeiro dia que se faz ao mar. Tem idéia de quantos ingleses esse pirata robou? A quantas mulheres violou, a quantos…? — Nunca violaria uma mulher... a menos que ela pedisse — explodiu Sara. Em seguida, as faces dela coraram de um vermelho colérico, e desviou o olhar. Maldição, não devia ter dito aquilo, e muito menos a Jordan. — Quero dizer que... que... — Quer dizer que ele te enfeitiçou — rematou ele, levantando a voz. Meteu a mão no bolso do peito e tirou uma pistola. — Agora terei que matá-lo. Sara atirou-se a ele, agarrando-o pelo braço com todas as suas forças. — Se tocaR num só fio de cabelo, nunca te perdoarei! — Não me importo — gritou ele enquanto tentava desenvencilhar-se dela. — Vejamos, onde está aquele desgraçado? — Nem pense! de... denuncio você aos piratas antes de abandonar a ilha! Juro que o farei! — os homens de Gideon não fariam mal a Jordan a menos que ela pedisse. Agora já confiavam em Sara, e até a respeitavam. No entanto, não podia a mesma certeza sobre Gideon. Se Gideon acreditasse, por um minuto, que Jordan viera para levá-la de volta a Inglaterra, Gideon o cortaria em pedacinhos. Tinha que fazer o possível para manter aqueles dois homens afastados. Jordan olhou para ela com a boca aberta de espanto. — Me denunciaria aos piratas? É sério? — Não posso deixar que faça mal a ele! Não percebe? Não posso permitir que venha aqui e destrua Atlântida! Trabalhamos arduamente para que destruam tudo de uma vez. Agora isto é um verdadeiro povoado, um lugar onde as pessoas vivem, trabalham e formam famílias. Não pode trazer os teus... os teus canhões e arrasar tudo. Não vou permitir! — Este lugar significa muito para você, não é verdade? — Significa tudo para mim — respondeu ela com voz mais calma e absolutamente sincera. Jordan afastou o olhar dela e guardou a pistola no bolso do peito. — Muito bem. Vou fazer a tua vontade. Sara olhou para ele receosa. — O que quer dizer com isso, que fará a minha vontade? 179


— Não trago os meus canhões. Vou-me embora sem que os piratas percebam que estive aqui. — depois ergueu o olhar o poisou-o no dela: — mas com uma condição. — Uma condição? — Tem que vir comigo. Sara sentiu que seu coração se partia em mil pedaços. Devia ter previsto a reação do irmão. Jordan estava sempre a protegendo,mesmo tendo que fazer chantagem. — Pense — acrescentou ele quando viu a expressão de tristeza no rosto dela, — os meus homens têm ordens para atacar a menos que eu regresse ao Defiant antes do meio dia. E eu não me vou embora semvocê, embora isso signifique que tenha que assistir à destruição da ilha deste local. Ela sentiu um calafrio de angústia. — Jordan, não me peça isso. Há mulheres que querem ir embora, e devia levá-las, para a própria segurança delas, mas quanto a mim... — Você é a única que me interessa, Sara. Não vou embora sem você. — Mas eu não quero ir! Não ouviu o que te disse? — Ouvi. Mas acho que não sabe o que está dizendo. — a voz dele tornou-se inflexível. — os soldados conhecem este fenômeno. Acontece sempre aos homens que ficam em cativeiro. Ao quebrar os laços com a sociedade, perdem a noção e começam a compreender e a confiar nos sequestradores. No entanto, quando são resgatados, percebem que não estavam no seu juízo perfeito. «Claro que não estavam no seu juízo perfeito!», pensou ella. — Oh, como é que posso fazer você compreender? Eu estou no meu juízo perfeito. Eu sei o que estou fazendo! — Então prove. Vem comigo para Inglaterra, Sara. Separa-se destes canalhas e da terra deles. — colocou as mãos nas ancas. — Se depois de várias semanas continuar a sentir o mesmo, eu mesmo te trago de volta. — Não, não fará. Eu te conheço, Jordan. Mesmo que perceba que está errado, não reconhecerá. Vai me levar daqui e inventará uma desculpa qualquer para não me trazer de volta. — olhou para ele suplicantemente. — Se me obrigar a ir embora, me matará, percebe? Te odiarei eternamente por isso. Estou falando sério. As palavras dela conseguiram que Jordan refletisse, mas apenas por um segundo. O rosto dele recuperou a expressão inflexível. — é melhor que me odeie agora do que ter que viver para se arrepender de ter ficado aqui. Se não vier comigo, juro que prenderei cada um daqueles piratas e os levo para a Inglaterra, e às mulheres também. Tenho homens e armas suficientes para fazê-lo. Ela estremeceu perante a idéia dos estragos que os homens e os canhões de Jordan poderiam causar na ilha. Como conseguiria detê-lo? Como poderia fazê-lo entender que ela sabia perfeitamente o que estava fazendo? De repente, o som de passos de alguém se aproximando sob a vegetação fez com que ambos se assustassem. Peter aproximou-se através das árvores, levando Ann pela mão. — Finalmente, está aqui — suspirou Jordan. — Vamos, não podemos perder tempo. Temos que ir embora. Peter olhou para Ann, e ergueu os ombros. — Nós ficamos.Eu e Ann queremos ficar. Não queremos voltar a Inglaterra contigo, senhor. Jordan apertou ainda mais os punhos. — Ficaram todos loucos? Mas o que é que aquele pirata fez a vocês? Enfeitiçou a vocês ou quê? 180


— Não posso regressar a Inglaterra, senhor — sussurrou Ann, dirigindo-se a Jordan educadamente. — Voltariam a enviar-me para Nova Gales do Sul. Ou então, um magistrado me mandaria outra vez para a prisão. E Peter não quer correr esse risco. — sorriu timidamente para o noivo. — Prefere ficar aqui comigo a ter que voltar a Inglaterra sem mim. — Olhe, menina Morris — disse Jordan, — tenho a certeza que posso falar com certas pessoas para que não voltem a enviar você para Nova Gales do Sul. — Mas não é só isso, senhor — respondeu Peter. — é… bom, é que este é um bom lugar para viver. Só estive aqui um dia, mas foi o suficiente para ver que pode ser um lugar agradável. Não deixei nada na Inglaterra. O Tommy não precisa de mim. Ele tem a família dele. Teria que trabalhar como marinheiro toda a vida para conseguir poupar o dinheiro suficiente para poder comprar uma casinha, e ficaria separado de Ann durante muito tempo. Mas aqui, se não me importar de trabalhar arduamente, poderei ter tudo o que quiser. — Olhou para Ann com adoração. — Tudo o que quero. — E o que acha que aquele capitão pirata fará a você quando te apanhar depois de termos partido? — disse Jordan. Os olhos de Peter dilataram-se. — Sinceramente, senhor, não sei. Mas ele é um homem razoável. Quando explicar que tinha que cumprir com o meu dever para com a menina Willis, ele compreenderá. Sara não tinha tanta certeza, mas não queria assustar Peter. — Vê? Nem o teu empregado quer sair de Atlântida — disse ela ao irmão. — Atlântida. — Jordan emitiu um rugido aborrecido. — grande nome para o covil de um pirata. Muito bem, fiquem, se quiserem. Só espero que amanhã a esta hora estejam vivos para contar. Virou-se e olhou para Sara. — Mas você, querida irmã, regressará comigo. Ou juro que perseguirei aquele maldito capitão pirata e separo a magnífica cabeça do seu corpo traidor! Sara analizou o rosto do seu meio-irmão com o coração apertado. Falava realmente sério. Se não conseguisse tirá-lo dali, acabaria por matar Gideon ou fazia-o prisioneiro, o que seria tão ruim como matá-lo. E também não podia esquecer o que os homens de Jordan fariam com a ilha e com os seus habitantes. — Se for contigo, jura que não fará mal a ninguém? Nem que revelará a ninguém onde se encontra esta ilha? — Não era o acordo ideal, mas era o melhor que Sara podia fazer, dadas as circunstâncias. Ter trazido Peter para ali tinha sido como abrir a caixa de Pandora, e não podia corrigir o erro. — Não posso te prometer que os meus homens não revelem a localização da ilha — respondeu ele. Ela olhou-o fixamente. — Se o conde de Blackmore não pode fazer, então não sei quem poderá. — Sara, a minha paciência está acabando... — Aqueles homens não sabem quem vive nesta ilha, menina — interveio Peter, ganhando um dos olhares furiosos de Jordan. — o senhor não disse quando estavam chegando às ilhas de Cabo Verde, porque não queria que mais tarde falassem sobre o senhor. E depois continuou sem dizer nada com receio que alguns dos seus homens abandonassem o barco em Santiago com medo de conhecer o Lorde Pirata. A maioría dos marinheiros têm pavor do capitão Horn. — Muito bem, então espero que continue tudo na mesma, em segredo — disse Sara com uma careta de alivio. Se Peter dizia a verdade, talvez pudesse evitar que os outros homens regressassem mais tarde para capturar ou para matar os piratas. Cruzou os braços, olhou para o 181


irmão e acrescentou: — Não me vou embora enquanto não me jurar que não fará mal a nada nem a ninguém na ilha, e que manterá silêncio sobre ela, principalmente com os teus homens. Jordan observou-a calculista. — Se fizer, regressará a Inglaterra? Esquecerá desta loucura? — Regressarei a Inglaterra, mas nunca esquecerei um lugar tão especial. Além disso, tenho a tua palavra quanto à tua oferta de me trazer de volta quando conseguir te convencer de que os meu sentimentos não mudarão. — Maldição, Sara... — Esta é a minha condição, Jordan. aceita? Ele desviou o olhar e depositou-os nas árvores mais afastadas banhadas pela cintilante luz do sol. A seguir, moveu rapidamente a cabeça para a sua meia-irmã e voltou a olhar para ela. — De acordo. Faria qualquer coisa para te tirar desta maldita ilha. — Quero a tua palavra de honra, percebeu? Não quero ouvir como expressa uma ladainha de pistas aos teus amigos na Marinha sobre onde podem encontrar o esconderijo de um pirata. — Sabia que é mais teimosa do que uma mula? — Tive um bom professor; o meu próprio irmão. Jordan suspirou e passou as mãos pelo cabelo ruivo. — Isso é verdade. Bom, está bem, juro pela minha honra que não revelarei a localização desta ilha. Podemos ir agora? — E o que acontecerá com as outras mulheres? As que não querem ficar? — Oh, pensava que eram todos muito felizes no teu paraíso — disse ele sarcasticamente. Sara baixou os olhos. — Algumas mulheres... não foram feitas para este lugar. Podem vir connosco? — Não, a menos que queira alertar os piratas sobre a nossa presença. Tivemos sorte por te encontrar sozinha. É preciso apenas uma mulher para dar o alarme. — baixou a voz. — mas claro, se me deixar dar a ordem aos meus homens para que desembarquem, poderíamos resgatar as mulheres com facilidade espantosa... Sara abanou a cabeça efusivamente. — De maneira nenhuma. — Então, vamos; vamos embora deste maldito lugar de uma vez por todas. — Dê-me um minuto. — Sara voltou-se para Ann. — Diga às mulheres que voltarei para buscá-las. Quando voltar, as que quiserem ir embora poderão fazê-lo. — tirou o medalhão do pescoço, segurou-o entre as mãos por um momento, beijou-o e entregou-o a Ann. — E dê isto a Gideon. Diga que voltarei para ele me devolver. Diga isso, por favor? — Sara — disse Jordan, — esse medalhão era da tua mãe. — Precisamente. — formou um nó na garganta de Sara, mas tentou ignorá-lo. Depressa recuperaria o medalhão. Sabia que o faria!. — Gideon sabe o que significa para mim, e também sabe que nunca me desligaria deste medalhão. Não encontro outra forma mais explícita de garantir a ele que volto. Que gesto tão inadequado, que maneira de recordar a ele a traição da sua mãe. A única coisa que conseguiria ao desaparecer furtivamente seria arruiná-lo. Ele nunca a perdoaria e Sara sentiu vontade enorme de chorar perante aquela possibilidade. Olhou para Peter, com a intenção de dizer que dissesse a Gideon que não tivera outro remédio do que partir à força. Mas conteve-se. Não, se Gideon soubesse que a tinham obrigado a partir, nada o deteria para a segui-la até a Inglaterra. Não podia correr esse risco. Gideon tinha que acreditar que ela tinha ido por vontade própria. — Diga a Gideon que voltarei, custe o que custar, mas não lhe diga uma única palavra 182


sobre o meu acordo com Jordan, ouviu? Me seguiria até a Inglaterra e a única coisa que conseguiria era que o enforcassem, a ele e ao que o acompanhassem. Jurem que não dirão o verdadeiro motivo pelo qual fui embora. Os dois, jurem. Depois de uns minutos de hesitação, Peter assentiu. Depois Ann fez o mesmo. O coração de Sara doía pela tremenda situação que tinha diante dos seus olhos. Ao fazê-los jurar que não diríam nada, estava a sentenciando Gideon a sofrer imenssamente. Mas preferia que ele sofresse agora do que o fizessem prisioneiro no momento em que entrasse em águas inglesas. Em Inglaterra, o seu destino seria curto, cruel e funesto. Não suportava sequer pensar nisso. — Vamos, Sara — apressou-a Jordan impaciente. — os meus homens têm ordens para atacar se não regressar ao Defiant antes do meio dia. — Está bem. — deu um abraço a Ann e outro a Peter. — eu volto — declarou com lágrimas nos olhos. — Talvez demore uns meses, mas voltarei para Atlântida tão depressa quanto puder. Enquanto se afastava com Jordan, ele olhou-a aborrecido. — Está se portando como se fossem te executar, em vez de estar regressando aos braços da tua família e ao teu verdadeiro lar. — Aos braços da minha família? Antes achava que você era a minha família, Jordan. — Sara manteve o olhar pétreo para a frente, sem ver onde pisava. — mas agora? Agora te vejo como o meu carcereiro. E tenho medo de te ver assim até ao dia em que me traga de volta. Pela primeira vez o seu irmão teve a discernimento de não responder. Capítulo 23 Se todos os homens nascem livres, então, como é possível que as mulheres nasçam escravas? Prefacio to Some Reflections Upon Marriage, MARY ASTELL Poetiza e feminista A meio da tarde, os homens que tinham saído para caçar regressaram à praia absolutamente eufóricos. Vinham carregados com várias carcaças de javali e até tinham abatido várias perdizes. Entre as algazarras e as brincadeiras, aproximaram-se da enorme fogueira da comunidade e pediram cerveja. Gideon, contudo, não mostrou interesse pela bebida; só queria estar com Sara. Morria de vontade de contar a ela sobre a cascata que tinham descoberto por acaso no final de um laranjal. Já estava fazendo planos para regressar com ela na manhã seguinte. Podiam tomar banho na cascata e depois comer laranjas como dois pombinhos, um prelúdio perfeito de uma tarde fazendo amor no meio da solidão do bosque. Gideon passou a bolsa de lona de uma mão para a outra, pensando nos presentes que trouxera: um pedaço de uma estranha rocha brilhante, diversas laranjas e um fragmento de ébano esculpido do tamanho do seu dedo polegar. Estava especialmente orgulhoso daquele último presente; era uma miniatura perfeita da praia de Atlántida que tinha trocado com um dos seus homens pelo sua melhor faca de caça porque parecera a coisa mais bela que alguma vez tinha visto. Mas onde é que Sara tinha se metido? Supunha que estaria ali à espera dele, com os outros. Olhou para a sua cabana e viu luz através da janela. Aparentemente tinha ido descansar. Sim. Devia de estar em casa, à espera dele impaciente, como ele estava dela. então olhou para Louisa, que se encontrava de pé, em silêncio, junto do fogo, e fez um gesto aos homens que carregavam os javalis para que se aproximassem. Com grandes vênias, colocaram os animais mortos diante dela 183


como se fossem um grupo de fidalgos a oferecer jóias a uma imperatriz. — Esta noite comeremos como reis, Louisa. — Gideon atirou a outra enorme bolsa de lona que estava pendurada no ombro aos pés da cozinheira. — Primeiro asse as perdizes. Nós a comeremos enquanto esperamos que o javali fique pronto. E não deixe que o desastrado do teu marido estrague o manjar, percebe? É muito boa em cozinhar carne de javali; vejamos o que é capaz de fazer com este bicho enorme. — Muito engraçado — disse Silas ao lado de Gideon, com ótimo humor. O cozinheiro tinha bebido demais, e estava tão animado que não parecia importar-se que criticassem as suas artes culinárias. — Então a minha moça é muito boa em cozinhar carne de javali, não é? — olhou para Louisa com um olhar lascivo. — pois garanto-vos, rapazes, que não é a única coisa que sabe fazer bem. Os homens começaram a dar cotoveladas de cumplicidade, trocandos guinchos e risadas, e depois olharam para Louisa atentamente para ver a reação dela. Normalmente, uma insinuação daquela natureza teria provocado um bom sufoco, seguido de um comentário cáustico. Visto que a sua língua viperina era uma fonte de entretenimento para os homens, divertia-os sempre ver como ela os enfrentava.. — Basta de brincadeiras, Silas — respondeu ela nervosa. Os homens a observaram, esperando uma reação mais violenta. Ao ver que não dizia mais nada, Silas provocou-a: — Isso é tudo que vai dizer, moça? — apoiou-se no ombro de Gideon para não cair no chão. — o que acham, rapazes? Acham que finalmente consegui domar um pouco esta ferinha? — Silas, por favor, se cale — pediu-lhe Louisa. Algo na sua voz triste, na extraordinária falta de raiva do seu tom, chamou a atenção de Gideon. Quando Silas começou a murmurar qualquer coisa mais, Gideon ordenou que se calasse. Em seguida, olhou para Louisa. — O que aconteceu? Os olhos angustiados da mulher pousaram nos homens localizados atrás do capitão. — Talvez fosse melhor que falasse com você a sós... — Porquê? — Gideon sentiu um súbito calafrio enquanto mil temores invadiam a cabeça dele; mas, sobretudo, havia um que o preocupava mais do qualquer outro, e que quase não se atrevia a imaginar. — É Sara? Aconteceu alguma coisa com ela? Louisa depositou os olhos na areia. — Não, não aconteceu nada. Bem... — Onde ela está? — Gideon desviou o olhar para a cabana sentindo como o pulso se acelerava. Se alguma coisa tivesse acontecido... começou a correr para a sua casa, mas ao ouvir uma voz familiar nas suas costas deteve-se de repente. — ela foi embora, capitão. Lentamente virou-se e viu Peter Hargraves de pé, no meio da aureola de luz que a fogueira projetava. — Que raio está fazendo aqui? — murmurou Gideon desconcertado, enquanto tentava compreender as palavras que acabara de ouvir. — e o que é que quer dizer com, ela foi embora? Foi para onde? Peter começou a retorcer os dedos das mãos nervosamente, pelo que Ann Morris se colocou ao seu lado e depositou a mão sobre o braço dele tentando sossegá-lo. — Bom, capitão, veja... eu... — tentou continuar ela. — Partiu para Inglaterra com o irmão — disse Queenie, surgindo subitamente por entre o 184


grupo ali reunido. — E foi Peter que trouxe aquele tipo até aqui para que a levasse. — Sorriu, com cara de satisfação. — já tinha dito, a você capitão. Perdia o seu tempo com aquela moça suscetivel. — Feche a boca, Queenie — admoestou Louisa enquanto Gideon empalidecia. Gideon cravou Peter com o olhar. — Pode me explicar que raio é que Queenie está dizendo? Louisa deu um passo em frente, e o observou com o rosto angustiado. — Aparentemente, Peter trabalhava para o irmão da menina Willis, o conde de Blackmore. Foi Peter quem trouxe o conde e os seus homens até aqui esta manhã, a bordo do barco do conde, o Defiant. Depois de encontrar a menina Willis, regressaram a Inglaterra. Gideon sentiu que o sangue gelava em suas veias. Sara tinha ido embora? O conde a tinha levado? Devia ter sido à força, porque Sara nunca o abandonaria. Não depois de tudo o que tinham dito um ao outro, da forma como tinham feito amor e planejado o seu fututro e... Emitiu um rugido, recordando a conversa que mantiveram acerca do irmão e de quanto ela sentia a falta dele. Sara dissera que não partiria de Atlântida, mas também dissera que queria regressa a Inglaterra para visitá-lo. Apertou os punhos e tentou recordar tudo o que ela tinha dito para ele, como a sua preocupação pelo que aconteceria se o irmão aparecesse na ilha. Isso significava que esperava que Hargraves regressasse, não? Se Hargraves trabalhava para o conde, então Sara devia saber desde o principio que o seu irmão viria salvá-la. Enquanto faziam amor, ela contava os dias que faltavam para fugir de Atlântida. Não, não podia acreditar. Sara não podia fazer uma coisa daquelas com ele. — Ela sabia que trabalhava para o irmão dela? — perguntou a Hargraves, agarrando-se a tênue esperança que o marinheiro confessasse que ela não sabia o motivo pelo qual Hargraves estava a bordo do Chastity. Hargraves pareceu perplexo perante a pergunta. — Sim, capitão. Gideon sentiu a punhalada da traição a mergulhar lentamente no seu coração, até mais profundamente do que a da traição de sua mãe. Ele sabia. Desde o princípio que tinha razão. As aristocratas inglesas não queriam conviver com tipo da sua raça. Mas seguramnete fariam o que fosse preciso para sobreviver até que as resgatassem, mesmo que fosse preciso deixar que um fogoso pirata se deitasse com elas. Durante uns instantes refletiu sobre tudo o que tinha acontecido no ultimo mês e meio. — Foi por isso que aceitou casar contigo, não foi? — Desviou o olhar para o mar, tentando não perder a compostura diante dos seus homens, apesar de se sentir como se o estivesse a fustigar com um chicote com a intenção de não parar até que o seu coração sangrasse e se partisse em mil pedaços. — os dois planejaram mantê-la a salvo até que viessem salvá-la. Mas quando te dei a oportunidade de partir, não hesitou um segundo. E ela ficou aqui para me enganar, para satisfazer os meus desejos enquanto imaginava como fugir. Gideon atirou a bolsa dos presentes ao mar enquanto que proferia um enormíssimo grito de raiva. — E pensar que cheguei a acreditar que gostava de viver aqui, que ela desejava realmente transformar Atlântida num lugar especial. Fui tão burro! Estúpido! Idiota! — Tenha calma, Gideon — disse Silas com voz preocupada. — Sabe perfeitamente que aquela moça não mentia quando dizia que queria transformar Atlântida num lugar especial. Todos pudemos ver que ela amava este lugar, tanto quanto ama a você. Gideon voltou-se para ele como um furacão. — Então, porque é que foi embora com o irmão assim que teve a possibilidade? 185


— Não pode culpá-la por isso! — protestou Hargraves. — Ela não queria partir. Ele obrigou-a. Gideon olhou fixamente para Hargraves. — O que quer dizer com obrigou-a? Por Deus! Juro que se esse desgraçado a levou à força, o perseguirei e me certificarei para que nunca mais volte a roubar nada que me pertença! Ann colocou-se entre Gideon e Hargraves, com o rosto totalmente desfigurado. — Peter não quis dizer precisamente isso, capitão Horn. A menina Willis partiu porque quis, é sério. — Quando Gideon a censurou com um olhar desconfiado, ela apressou-se a dizer: — mas não foi embora para sempre. Pediu-me que dissesse a você que voltará o mais depressa que puder. Ah, e também me pediu que lhe desse isto. — Ann procurou no bolso do avental, tirou um pequeno objeto de prata e estendeu para ele. — Disse que isto serviría para que você acreditasse na sua intenção de voltar. Gideon agarrou o objeto e reconheceu o medalhão de prata de Sara. Por um momento, uma faísca de esperança iluminou o seu coração. Sara nunca se separaría do medalhão; ele o quanto significava para ela. Decididamente, não o teria dado a Ann se não tivesse intenção de voltar. Mas claro, a sua própria mãe também se separou de um valioso alfinete quando os abandonou, a ele e ao pai. Fechou os dedos ao redor do medalhão e olhou para Hargraves. — Se esse maldito conde não a obrigou, então, porque foi embora? Não tinha motivo nenhum para ir com ele. Nós íamos casar. Disse que queria ficar comigo. Hargraves e Ann trocaram olhares. — Não sei, capitão — respondeu Hargraves visivelmente incomodado. — Talvez... se calhar tinha que resolver algum assunto na Inglaterra, antes de ficar vivendo aqui. Mas o olhar incerto de Hargraves demonstrava que nem o pequeno marinheiro acreditava naquela desculpa. De repente, Gideon lembrou-se de outra interpretação por ela ter dado o medalhão, uma interpretação tão dolorosa que quase não suportava pensar naquela possibilidade. — Ou talvez não tenha intenção de regressar — expresou friamente. — se calhar este medalhão é apenas um pretexto para que não vá atrás dela e aborde o barco do irmão. O alarme intrometeu-se no rosto de Ann. — Isso não é verdade, capitão. O irmão veio com um montão de homens e de canhões. Se quisesse destruí-lo e aos seus homens, teria feito. Mas não o fez. Ela não deixou. Pediu que não lutasse contra você, e ele aceitou. — Sim, claro! Ele aceitou porque sabia que me ofereceria de bandeja aos seus marinheiros num abrir e fechar de olhos! Covarde! Vir às escondidas até Atlântida e roubar a minha futura esposa sem se atrever a olhar para a minha cara! Se eu estivesse no lugar dele, não teria cedido aos pedidos de Sara tão facilmente! Teria lutado com qualquer homem que se atrevesse a ... Calou-se de repente, lembrando-se subitamente do que tinha dito a Sara duas noites antes: «Não permitiria que te levasse do meu lado, se é isso que quer dizer. Lutaria contra qualquer homem que tentasse te roubar dos meus braços». Obviamente, ela também teria recordado daquelas palavras e levou-as a sério, certificando-se que Gideon não tivesse a oportunidade de pôr as mãos em cima do seu irmão. A raiva invadiu-o, uma raiva tão incontrolável como a pior das tempestades que pudesse desencadear no mar. Aquilo era tudo que preocupava Sara: proteger o seu irmão, provavelmente um patético tipo requintado que tinha das armas de fogo e não sabia lidar com uma espada. Por mais que Ann e Hargraves tentassem defendê-la, a verdade é que Sara tinha escolhido a sua família. Ela podia contar histórias sobre mudar o mundo e transformar a Atlântida numa colônia da qual pudessem se sentir orgulhosos, mas não seriam mais do que palavras. Senão, 186


nunca teria lembrado de o abandonar pelo irmão. Apertou o medalhão com uma força descomunal e estudou os rostos das pessoas reunidas ao redor da fogueira. E eles? O que aconteceria com os outros habitantes de Atlântida, pelos quais Sara parecia preocupar-se tanto? Tinha lutado pelas mulheres e oferecera-se para dar aulas aos homens. Todos tinham confiado nela. Mas quando se apresentou a primeira oportunidade de recuperar a liberdade, fugiu sem se despedir de ninguém. Sara afirmava que as mulheres tiveram a possibilidade de escolher, mas não tinha levado nenhuma das prisioneiras com ela. Em vez disso, tinha partido secretamente da ilha com o covarde do irmão, abandonando o resto sem ter nenhum tipo de consideração. Maldita fosse aquela mulher! Tinha se enganado com ela desde o princípio! Aquelas fidalgas eram todas feitas da mesma massa: eram traiçoeiras, fracas e demonstravam uma clara determinação para fazer qualquer coisa para regressarem aos braços das suas familias ricas e poderosas. Como era possível que a tivesse visto com outros olhos? — Por favor, capitão Horn. — a voz suave de Ann tirou-o dos pensamentos. — tem de confiar na menina Willis, ela volta. Sabe perfeitamente que ela nunca prometeria uma coisa se não pensasse cumprir. Gideon olhou para Ann com olhos tristes. — Você pode acreditar, se isso te alivia, mas eu não. Ela partiu sem mostrar o mínimo interesse por nenhuma de vocês, e muito menos por mim. Não voltará. E em Atlântida ficaremos melhor sem ela. — Mas não foi isso que aconteceu... — Hargraves começou a protestar. Gideon calou-o com um olhar furioso. — E quanto a você, Hargraves, não quero ouvir uma única palavra a mais dos teus lábios. Dei mais ouro a você do que alguma vez tinha visto na tua vida para que partisse daqui, e me pagou conduzindo os lobos até à porta da minha casa. — De repente, lembrou-se de uma tremenda possibilidade Avançou com passos largos para Hargraves e agarrou-o pela camisa. — e agora todos sabem onde se localiza esta ilha, não é? Suponho que o conde espera apenas que a irmã esteja a salvo, longe daqui, antes de enviar a frota de Sua Majestade para arrasar tudo e todos. A partir de agora, somos homens mortos. E tudo graças a você! Hargraves abanou a cabeça furiosamente. — O senhor conde não quis envolver a frota inglesa porque queria proteger a reputação da menina Willis, juro-lhe. Não contou nada aos seus homens sobre quem vivia nesta ilha com medo que abandonassem o barco em Santiago tão depressa quando ouvissem o seu nome. E a menina Willis negou-se a ir embora antes do irmão prometer manter o silêncio sobre Atlântida. Gideon olhou fixamente para o marinheiro que, apesar de ser tão pequeno, sempre tinha demonstrado ter uma grande coragem. — E porque acreditaria em você? — Se soubesse que a Marinha ia arrasar a ilha a qualquer momento, capitão, eu próprio não teria ficado. Partiria no Defiant e teria levado a minha noiva comigo. A explicação parecia lógica. Gideon ainda era capaz de raciocinar para perceber isso. Desviou o olhar e fixou-o em Ann, cujo rosto mostrava todo o medo que Hargraves tentava esconder. — Por favor, senhor — implorou ela num fio de voz, — não faça mal a Peter; ele ficou aqui por minha causa. Ele acredita em Atlântida tanto quanto eu. Não aguentaria que... que acontecesse alguma coisa. — Não se preocupe, Ann — interveio Silas. — O capitão não fará mal a Hargraves, a menos que não ele se porte como deve ser na ilha. 187


— No se metas nisto, Silas — avisou-o Gideon. Olhou para Hargraves duramente outro longo momento e pensou no prazer que obteria se castigasse aquele macaco de feira por ter ajudado na fuga de Sara. Mas nunca fora a favor dos castigos, e obviamente não podia fazer em frente da pequena e doce Ann, que estava visivelmente angustiada e que lhe pedia que tivesse piedade pelo seu noivo. Além disso, Hargraves limitara-se a cumprir a sua responsabilidade. Sara é quem o tinha traído; ela é que o tinha abandonado. Gideon emitiu um rugido e soltou Hargraves de má vontade. — Muito bem. Você e a Ann podem fazer o que quiserem. Mas fique longe da minha vista; é o meu conselho, se realmente sabe que mais te convém. Virou-se para a sua cabana, agora vazia e incômoda, mas outra voz imobilizou-o. — E o que acontecerá com os casamentos? — perguntou Queenie. — Ainda temos que escolher marido daqui a dois dias? Gideon olhou para Queenie com desprezo. Queria tanto dizer que sim, que exigia que escolhesse um marido dali a dois dias... aquilo obrigaria aquela rameira a submeter-se ao jugo de um dos seus homens. Mas mesmo antes de Sara partir tinha percebido a loucura de tentar ditar quem devia casar com quem, especialmente se quisesse que as mulheres e os homens sentissem um verdadeiro afeto comum. Isso era uma coisa que Sara tinha ensinado nem o desejo podia substituir o respeito e o carinho de um casamento, e os sentimentos nunca poderiam existir se as pessoas fossem obrigadas a casar à força. Ele obrigara-a a estar com ele, e agora estava pagando um preço muito elevado pelo seu erro. — Não haverá casamentos, exceto para aqueles que quiserem casar. Todas as mulheres ficaram boquiabertas e Louisa deu um passo em frente. — Obrigado, capitão. É um gesto que o honra. E, em nome das mulheres, quero expressar que agradecemos a sua compreensão. — Compreensão? Não faço por isso! Faço porque é o mais conveniente para Atlântida. É a única coisa que importa, e isso não mudará pelo fato de Sara já não estar aqui. Ela deixou-nos, mas este lugar continuará em frente... todos continuaremos em frente. Com ou sem Sara, conseguiriam fazer de Atlântida um lugar digno de ser invejado. Então, um dia ele a encontraria e atiraria na cara; mostraria com orgulho tudo o que ela tinha abandonado. Porque agora já não era uma criança incapaz de julgar e de raciocinar depois de uma mulher o ter abandonado. Desta vez não ia ficar indiferente. Não, senhor. Capítulo 24 Ela disse: Nunca esquecerei o meu amado, embora tenhamos que ficar separados durante um ano. The Sailor and His Love, ANÔNIMO Já tinha passado quase uma semana desde que Jordan e Sara tinham chegado a Inglaterra, depois de um mês em alto mar. Anoitecia, e Jordan estava de pé nas escadas da casa que possuía em Londres, passeando e olhando furtivamente para o relógio de cinco em cinco minutos. Sara chegava tarde. Aceitara ir ao baile dos Merrington com ele naquela noite, mas há mais de meia hora que esperava por ela e ainda não tinha aparecido. Não sabia como conseguira convencê-la para que aceitasse ir ao baile. De manhã respondera-lhe com um cortante «não», reagindo como se ele tivesse pedido para que passeasse 188


nua pelas ruas. Mas à tarde, quando ele chegou a casa depois de ter passado todo o dia no Parlamento, ela tinha mudado de opinião. Graças a Deus. Já era hora de Sara sair de casa e esquecer-se daquele maldito pirata. Alguns bailes com alguns homens da sua própria posição social, e ela perceberia da insensatez de se ter apaixonado por um capitão pirata. Além disso, precisava de se deixar ver na sociedade para pôr fim aos rumores. Só Deus sabia quanto ele fizera para proteger a reputação da sua irmã. Com a finalidade de ocultar o encontro de Sara com os piratas, tinha subornado os donos do Chastity com uma substancial quantia em dinheiro para que espalhassem que ela tinha escapado milagrosamente da abordagem dos piratas e que tinha regressado com o resto da tripulação. Ele próprio se encarregara de espalhar que a sua irmã ainda estava se recuperando do trauma por causa da inconcebível experiência, e fizera-o de uma forma tão convincente que todos pareciam ter acreditado na historia. Thomas Hargraves entrou e gaguejou sonoramente enquanto Jordan iniciava o enésimo passeio pelo vestíbulo. Apesar de Jordan não estar com humor para aguentar o mordomo, procurou esconder a irritação. Apesar de tudo, Hargraves perdera o seu irmão para sempre, graças a Jordan, e por isso ele sentia que tinha que o recompensar de alguma forma. — O que se passa, Hargraves? — perguntou enquanto olhava disfarçadamente para as escadas. — Trata-se da menina Sara, senhor. Você me pediu que o informasse dos seus movimentos enquanto o senhor está no Parlamento durante o dia, e achei que agora é o momento mais indicado para dizer, antes que saiam esta noite. Jordan olhou novamente para o relógio e suspirou. — Continue. Não tenho nada melhor para fazer. — De acordo, senhor. — Hargraves tirou uma folha de papel e inclinou a cabeça para a ler. A cabeça calva brilhou sob a luz das velas. — às nove e um quarto desta manhã, depois de tomar o café da manhã consigo, a menina Sara tomou um banho, auxiliada por Peggy. Depois a Peggy ajudou-a a vestir-se. A menina escolheu o de cambraia cor de rosa, creio eu, e depois, às dez e cinco, desceu para o andar inferior. Ouviu-se um leve barulho de papel antes do mordomo continuar. — Depois entrou na sala de música e ficou tocando piano. Parece-me que a primeira música que tocou foi Down by the Banks of Clandy. — bateu no queixo, pensativo. — Ou era Down by the Sally Gar...? — Pelo amor de Deus, Hargraves! Não me interessa o que tinha vestido ou que música tocou — explodiu impaciente. — apenas quero saber o que fez. — Sim, senhor — respondeu Hargraves, incômodado. — tocou piano até às dez e meia, e então pediu-me uma copia de Debrett's Peerage, sabe, aquele gazeta que fala da nobreza. Ficou lendo até ao meio dia e vinte. Devo dizer que parecia muito interessada naquela gazeta. Para comer, levei uma bandeja com uma empada de frango que a cozinheira preparou expressamente para ela — o prato favorito de Sara, como o senhor bem sabe — uma salada com seis nozes, duas fatias de... — Hargraves... — avisou Jordan. — Quero detalhar exatamente o que servi porque a menina não provou nada. E como o senhor sabe, a menina Sara nunca salta a refeição, especialmente quando esta é de empada de frango. Jordan olhou para ele com a testa franzida enquanto reiniciva o seu passeio pelo vestíbulo. — Sim, já sei que não comeu muito desde que regressamos. — Também não comeu muito a bordo do barco. E aquela manhã observara-a enquanto untava uma torrada com manteiga com o 189


rosto abatido e afastava a torrada sem a provar. Mas isso não era o pior. Sara dormia muito poucas horas durante a noite e passava o resto da noite perambulando pelos corredores como um fantasma. Evitava qualquer contato com ele, e quando não tinha outro remédio, respondia às suas perguntas com monossílabos. Exceto quando essas perguntas se referiam àquele maldito pirata. Então Sara contava a Jordan muito mais do que ele queria ouvir, tudo sobre os sonhos que aquele sujeito tinha por uma utopia e a sua gentileza com as crianças e uma quantidade de outras maravilhosas qualidades, até que ele se sentia doente por ouvir o nome de Gideon Horn. Mas agora tudo isso tinha acabado. Ela aceitara ir ao baile com ele. Era o sinal de que estava se recuperando da sua cisma pelo capitão Horn. Já era hora, pensou Jordan. — Depois da refeição, a menina Sara saiu de casa — continuou Hargraves. Jordan virou-se de repente e olhou para ele fixamente. — Saiu de casa? Eu disse que não a deixasses sair sem mim! — Desde que tinham voltado, Jordan vivera todos aqueles dias com o medo de que ela embarcasse tentando regressar àquela maldita ilha. Hargraves ficou corado. — Ela... ela... saiu às escondidas, sem que ninguém a visse. — Quando Jordan olhou para ele com desdém, o criado apressou-se a acrescentar: — mas regressou ao fim de duas horas. Disse que tinha ido visitar uma das suas amigas do Comitê de Senhoras. Tinha bom aspecto, e perguntou imediantamente por você. Devia ter sido quando Sara entrou na biblioteca para anunciar que ia ao baile com ele. O que teria acontecido naquelas duas horas para fazê-la mudar de opinião? Bom, não importava. O importante era que Sara tinha aceitado ir; isso era o que realmente importava. No andar superior abriu-se uma porta, e Jordan pensou que finalmente ela estava pronta, e fez um gesto a Hargraves para que se calasse. — Amanhã de manhã me conta o resto — sussurrou enquanto se virava para as escadas. — vai buscar a Sara... Ficou em silêncio quando viu a sua irmã no alto das escadas. Pouco a pouco foi abrindo a boca, mas sem dizer uma única palavra. Por Deus, que bicho a mordera agora? Sara tinha-se encaixado num horroroso vestido de noite, com um decote tão escadaloso que quase deixava ver os seus seios, e o traje era tão apertado que marcava cada uma das suas curvas do seu corpo. E o pior era o tecido. Dourado e tão fino como o papel, era o tipo de vestido que apenas as mulheres francesas — ou uma das suas amantes — se atreveriam a usar. Quase se via o umbigo! Ficara louca ou quê? Sara nunca tinha vestido uma coisa daquelas! Até uma mulher inglesa casada se negaria a aparecer em público vestida tão provocantemente, e muito menos o faria uma jovem solteira e respeitável. — Pode-se saber de onde é que tiraste esse vestido? — resmungou ele enquanto se aproximava das escadas. — Volta para o teu quarto e se troque imediatamente! Não vai a casa dos Merrington vestida assim! Ela olhou-o desafiante. — Porque não? A tua intenção ao levar-me ao baile é para que encontre um sustituto do Gideon, não é? Limito-me a cooperar contigo. Com este vestido, devo ser capaz de atrair algum pobre infeliz, não acha? — Sara atreveu-se a dar outro passo. — mas depois de o conseguir apanhar, terá que imaginar a forma de o enganar para que não perceba de que eu já não sou casta e pura. Mas claro, ele nem deve se importar. Apesar de tudo, possuo uma fortuna. Com isso posso comprar um marido apresentável, se o vestido não causar o efeito desejado. 190


— Um caça dotes? Um libertino? — rugiu Jordan ao mesmo tempo que começava a subir as escadas. — é esse o tipo de marido que quer? Ela encolheu os ombros, baixando ainda mais o decote — se é que era possível — para dar uma melhor perspectiva dos seus seios. — esse detalhe é importante? Qual é a diferença entre um homem ou outro? Não deve te importar, visto que me separou do único homem que amava com o propósito de encontrar outro pretendente que esteja mais à minha altura. Jordan deteve-se a meio das escadas e apertou os olhos. — O que é que está tramando, Sara? Pretende fazer com que me sinta culpado pelo que fiz? — Tramando, eu? — replicou ela inocentemente. — engana-se. Tento apenas te ajudar. Já que decidiu que vai ser você a pessoa que decidirá com quem devo me casar, faço o que posso para caçar um homem. O que acha? — alisou o finíssimo tecido e este colou-se ainda mais ao corpo. — O lorde Manfred vai gostar do meu vestido? Ouvi dizer que está à procura de esposa. Jordan apertou os dentes. Lorde Manfred tinha sessenta anos e era um libertino e um caça dotes sem escrúpulos. Há anos que aquele canalha andava atrás de Sara, e ela odiava-o quase tanto quanto Jordian o odiava. —Já chega, Sara — repreendeu ele. — Agora vai para o teu quarto e veste outro vestido. — Oh, mas Jordan, não tenho nada melhor para seduzir... — Imediatamente, Sara Willis! Ou juro que eu próprio te visto! — Está bem — suspirou ela com ar ofendido. — Se insiste, mas não me culpe se não conseguir arranjar um marido conveniente. Ergueu o queixo descaradamente, deu meia volta e voltou a subir as escadas. — E não pense que isto vai servir de desculpa para não ir ao baile comigo — gritou Jordan. — espero aqui em baixo por você em menos de meia hora! — Sim, Jordan — respondeu ela solenemente. Sara entrou no seu quarto e sorriu para si própria. «Aguenta, irmãozinho!», pensou enquanto corria para agarrar o vestido que Peggy segurava, o que realmente tinha intenção de vestir nessa noite. A criada não fez nenhum comentário enquanto a ajudava a tirar o escandaloso vestido francês que Sara tinha pedido emprestado à sua amiga do Comité de Senhoras. Santo céu, nunca tinha se sentido tão nua na sua vida, e ainda por cima diante de Jordan. Mas talvez agora ele compreendesse como ela se sentia por culpa do seu comportamento arrogante. Tinha a certeza de que até àquele momento, Jordan não se percebera. Embora no Defiant ela tivesse chegado a ficar histérica, não conseguira que o irmão mudasse de opinião. Para ser um homem com a reputação mais conhecida de toda a Inglaterra, estava se comportando como um verdadeiro hipócrita. Ela estava ficando louca, porque em cada minuto que ele a mantinha afastada de Atlântida, sabia que Gideon construía outro tijolo no muro da sua desconfiança contra ela, acreditando que ela o tinha abandonado de uma forma tão cruel como a mãe dele. Não conseguia suportar aquela sensação! Sara esboçou um esgar indignado enquanto Peggy a ajudava a colocar o outro vestido mais respeitável. Oh! Se conseguisse regressar a Atlântida pelo seu próprio pé! Mas não se atrevia a fazê-lo sem a autorização de Jordan, porque sabia que ele a seguiria e desta vez seguramente levaria a frota inglesa, para destruir a ilha e todos os seus habitantes. Que desnaturado! Naquela mesma manhã, quando ele teve a ousadia de propor que fossem ao baile juntos, como se nada tivesse acontecido na sua vida nos últimos meses, Sara decidiu fazê-lo compreender que estava se portando de uma forma absolutamente cruel com ela. Talvez agora ele a ouvisse. 191


Mas primeiro tinha que ir ao baile, e por uma razão da mais alta importância. Nessa manhã tinha se lembrado que enquanto permanecesse na Inglaterra, o melhor que podia fazer era tentar descobrir alguma coisa sobre a familia de Gideon. Por isso tinha lido o Debrett's Peerage, aquela gazeta em que apareciam todas as famílias nobres. A gazeta citava a filha de um duque chamada Eustacia que devia ter mais ou menos a idade da mãe de Gideon. E o mais surpreendente era que aquela mulher ainda estava viva. Era a esposa do marqués de Dryden. E o melhor de tudo, era que lady Dryden ia ao baile naquela noite, se a informação que a sua amiga do Comité de Senhoras lhe dera fosse correta. Mas evidentemente, o mais certo era que lady Dryden não fosse a mãe de Gideon. O resto dos detalhes que a sua amiga lhe contara daquela senhora não coincidiam com a imagem da mulher que Sara tinha formado da mãe de Gideon. Lady Dryden e o seu marido não gostavam da vida social, e tinham uma vida tranquila, recolhidos na sua quinta em Derbyshire. Eram um casal de humanitários que realizavam doações econômicas a várias casas de caridade, e aos quais não parecia gostar que o público fizesse alarde dessa generosidade. E lady Dryden tinha reputação de ser uma senhora amável e gentil. Não fazia sentido. Supunha que aquela mulher fosse egocêntrica e egoísta. Além disso, supunha que estava morta, pelo amor de Deus. Mas Sara lera cada página da gazeta com grande interesse e não encontrara mais nenhuma mulher que coincidisse com a descrição da mãe de Gideon com tanta exatidão. Talvez Elias tivesse mentido ao filho no que dizia respeito à morte da esposa. Ou talvez Gideon tivesse interpretado mal ou não tivesse entendido bem o nome. De qualquer forma, nessa noite Sara pensava descobrir a verdade. Depois de atormentar Jordan um pouco mais, claro. Quando desceu as escadas pela segunda vez, o seu irmão deu-lhe um olhar de aprovaçao antes de pedir que se apressasse. Só quando ficaram sentados na carruagem da familia Blackmore, a caminho de casa dos Merrington, é que Jordan se aventurou a falar com ela. — Não vejo como o que fiz por você seja tão ofensivo. Só quero que seja feliz. Ela manteve o olhar fixo para a frente, sem olhar para ele. — Evitando que me case com o homem que amo? — Tu acha que o ama. Mas à medida que os dias forem passando, vai perceber que apenas se tratou de um capricho momentâneo… — Obrigado pela sua consideração pela minha pessoa. Jordan olhou-a surpreso. — Pode-se saber o que raio quer dizer com isso? Sara desenhou com os lábios um sorriso rude. — Não percebe, né? Sei que há mulheres com esse tipo de personalidade tão fútil como imagina; quer dizer, que são capazes de se apaixonar e depois mudar de opinião com a rapidez do vento. — Sara pensou na mãe de Gideon, que o abandonara sem nunhuma espécie de consideração. — mas com certeza não acredita que eu seja assim. Se fizesse o que espera e esquecesse Gideon em apenas uns dias depois de regressar a Inglaterra, não estaria demonstrando que tenho o caráter mais instável e traiçoeiro que um homem pode imaginar? — Demonstraria que é uma mulher sensata — rebateu Jordan, apesar de, pela primera vez desde que tinham saído de Atlântida, parecia inseguro da sua opinião. — Sensata? Não concordo. Uma mulher sensata não entrega o coração, e depois esquece-se do que fez num abrir e fechar de olhos. Precisei de uma semana para afundar a imagem agressiva que Gideon aparentava e encontrar o verdadeiro homem que se escondia por baixo, e mais três semanas para aceitar casar com ela. Não foi uma decisão que tomei sem pensar. Não entende? Sabia que iria me resgatar. Se quisesse resistir a Gideon, poderia tê-lo feito. — a voz dela 192


suavizou-se enquanto recordava o rosto de Gideon quando pediu para casar com ele. — mas não queria resistir, e continuuo a não querer. Por isso é que tenho que regressar. Jordan pronunciou um palavrão entre dentes. — Pede-me o que quiser, Sara, te darei. Pelo amor de Deus, juro que te deixarei recomeçar as tuas tarefas e os teus esforços reformistas até onde quiser, a qualquer hora. Mas não me peça que te leve de volta para aquele lugar! Ela deu um valente pontapé no chão da carruagem. — Não quero mais nada! Que tipo de mulher pensa que eu sou, que acha que aceitarei a tua oferta em vez de querer estar com o homem que amo? Jordan apertou os dentes e olhou para a janela; caía a noite, e uma névoa densa começava a se espalhar pela cidade. — Não se perguntou o motivo pelo qual aquele pirata odeia tanto os aristocratas? Como sabe que não mudara de opinião sobre você num destes dias, graças ao seu ódio irracional? — Não é irracional. É... é... — Sara conteve-se para não revelar ao irmão o passado de Gideon, tal como Gideon tinha feito tantas vezes antes. E por um bom motivo. Jordan nunca acreditaria naquela história. Pensaria que era uma armadilha que Gideon tinha inventado com o fim de ganhar o afeto dela. O fato de Gideon nunca ter averiguado sobre a familia da sua mãe teria parecido a Jordan inacreditável; nunca acreditaria que um pirata pudesse ser tão orgulhoso para não querer arriscar-se a descobrir se a familia da mãe continuava a recusá-lo. Por isso tinha que investigar a verdade antes de contar alguma coisa a Jordan. Sara brincou com a alça da sua mala. — Acredita quando te digo que tem todos os motivos do mundo para nos odiar. Continuaram o trajeto em silêncio durante um tempo antes dele se decidir a falar novamente. — Então não mudou de opinião, ainda quer se casar com aquele pirata. — Sim, e garanto que os meus sentimentos não vão mudar, por mais que me arraste a mil bailes. — Então, porque aceitou vir a este? Ela evitou o olhar dele. — Tenho... tenho uns assuntos para resolver. — Assuntos? Que tipo de assuntos? Sara debateu-se entre contar a verdade ou não, e finalmente decidiu que o melhor era revelar parte da verdade. — Quero conhecer lady Dryden, e disseram que vem ao baile esta noite. Tenho de falar com ela sobre certos assuntos. — Assuntos sobre o Comité de Senhoras? Essa senhora é uma reconhecida humanitária. Com um enorme alívio, Sara agarrou-se a essa desculpa. — Exatamente, é por causa do Comité de Senhoras. — Pois vai ter problemas para a encontrar. A festa vai estar abarrotada de gente. — Não me importa; hei-de encontrá-la. Sim, havia de encontrá-la, mesmo que tivesse que se apresentar a todas as senhoras convidadas para o baile. Porque de uma forma ou de outra, tinha que descobrir se lady Dryden era a mãe de Gideon. Era o mínimo que podia fazer pelo homem que amava. Gideon passeava pelo convés do Satyr, e deteve-se diante do pedaço do varandim onde tinha beijado Sara na noite do incêndio. A noite em que ela tinha entreguado a ele com tanta doçura. 193


Uma forte dor, pesada e incômoda, instalou-se no peito dele; era a mesma dor que o acompanhara constantemente desde que ela desaparecera. Quanto tempo tinha passado? Três semanas? Quatro? Nem sabia. O ultimo mês tinha decorrido como um um pesadelo, cheio de noites de insônia e de dias frenéticos. Tinha obrigado os seus homens a trabalhar arduamente, até que um dia Barnaby se aproximou-se e pediu que abrandasse o ritmo. Mas Gideon queria ver as cabanas todas acabadas e depois, quando terminaram com aquele trabalho começaram a construir uma escola e uma igreja. A sua vida regia-se agora com um único propósito: transformar Atlântida num lugar perfeito em todos os sentidos. Então o mundo inteiro conheceria a sua utopia, conheceria o lugar onde os homens e as mulheres viviam livremente, uns ao lados dos outros, sem a tirania de um governo injusto. O mundo inteiro saberia, e ela também. Ela saberia que ele tinha conseguido, e então, certamente se amaldiçoaria por ter partido. Fechou os olhos e deu um murro contra o varandim. A quem queria enganar? Ela não se importaria com nada do que acontecesse em Atlântida. Agora estava longe daquele lugar daquele sonho; isso era precisamente o que ela queria. Tudo quanto dissera sobre a sua vontade por contribuir na reconstrução e na colonização… tudo aquilo não foram mais do que palavras vazias para o distrair, para que ele não se percebesse o que ela tramava. E ele mordera o anzol! Como um pobre tonto apaixonado, acreditara em cada uma das suas palavras! Começou a separar-se do varandim, depois observou a sua própria cabana. Era o único edificio na ilha por construir. Não a tinha tocado desde o dia em que ela partira. Que sentido fazia? Sem Sara, não havia razão nenhuma para que ele dispusesse de uma cabana. a única mulher com a qual tinha querido casar fora com ela, e agora já não estava... Agora que já não estava, não se importava com o aspecto da sua sua casa, nem se comia, ou se Atlântida melhorava dia a dia. Nada importava. Maldição, porque não conseguia apagar aquela mulher da sua cabeça? Tudo o que fazia trazia recordações dela. Quando cortava um cacho de bananas, recordava o quanto Sara gostava daquela fruta. Cada vez que via uma blusa branca bordada ou uma cabeleira ruiva, o seu coração saltava. Até que percebia que não era ela. Nunca seria. Ela tinha partido, e por mais desculpas que tivesse dado, não pensava regressar. Era um absurdo sonhar o contrário. Tirou o medalhão do bolso e observou-o. Não sabia porque é que ainda o conservava. Virou-o sobre a palma da mão, e lembrou-se de como ela costumava brincar com ele enquanto falavam animadamente, com os delicados dedos retorcendo a corrente de um lado para o outro. Por um momento considerou a possibilidade de atirar o maldito objeto no oceano. Representava uma mentira, a mentira de que ela regressaría, uma das muitas que tinha dito para o satisfazer até que a foram resgatar. Depositou o medalhão sobre o varandim e observou a água, que era profunda o suficiente para as suas intenções. Tudo o que tinha que fazer era soltá-lo, deixar que escorregasse entre os seus dedos. Mas não conseguia. Em vez disso, um inexplicável impulso sentimental levou-o a guardar o medalhão no bolso dos calções, enquanto dizia um palavrão em voz baixa. Soltou um rugido, cruzou o convés em direção à entrada do salão, e encaminhou-se para o seu camarote. Molly e os filhos ainda dormiam ali à noite, mas ele usava-o durante o dia. E precisamente naquele momento tinha uma vontade enorme de se fechar ali dentro. Queria pegar na garrafa de rum e embebedar-se. Não costumava fazê-lo, mas hoje planeava beber até cair redondo no chão. Por uma vez, queria livrar-se do fantasma de Sara. Abriu a porta e entrou no camarote. Então ouviu um gritinho e viu uma cabeça loura desaparecer debaixo da colcha. 194


— Maldição! Vamos! Sai daí! Quem quer que seja! — gritou ele. — Pode-se saber que diabos está fazendo no meu camarote? No dia em que se estabeleceram em Atlântida, Gideon comunicou ao seu grumete que já não precisava dos seus serviços, portanto não podia ser ele, e tinha visto Molly conversando relaxadamente com Louisa há pouco tempo, por isso também não podia ser ela. Esperava que não fosse nenhuma das outras mulheres. Não estava com disposição para manter uma conversa com nenhuma delas. E se fosse a rameira da Queenie, não teria problemas nenhuns em expulsá-la aos pontapés. Mas naquele momento reparou que o vulto que tremia debaixo dos lençóis era obviamente menor que a figura de uma mulher. Suspirou. Devia ser Jane, a filha de Molly de cinco anos. Esforçou-se por falar com voz mais amável. — É você, Jane, pequenina? Vamos, já pode sair. Não te acontecerá nada. Não te farei mal. Uma cabecinha loira surgiu lentamente por baixo da colcha de cetim, primeiro os olhos vermelhos e dilatados, e depois a boquinha firmemente apertada, como se estivesse a se conter para não chorar. — Gritou! E disse palavras muito feias! Gritou! Gideon suspirou e sentou-se na cama. — Eu sei, linda. Não o devia ter feito. Perdoe-me, mas é que ultimamente estou bastante mal humorado. Jane se atreveu a levantar-se da cama um pouco mais. Tirou os braços gordinhos, apoiou-os na colcha, e olhou para ele solenemente. — É porque a menina Sara foi embora? Ele ficou tenso. — Não, a menina Sara não tem nada a ver com isto. — Ah, pensei que ia casar com ela. — Onde é que está a tua mãe? — perguntou, tentando mudar de assunto. A sua intenção tinha sido refugiar-se no camarote para esquecer Sara, não para que uma criança a fizesse recordar ainda mais. — Porque é que a Molly te deixou aqui sozinha? — Disse que tinha que falar com a menina Louisa. Pediu-me para dormir um pouco. — apertou os lábios novamente. — mas eu não gosto de dormir a sesta. Esforçando-se para não sorrir, ele aproximou-se mais dela e revolveu-lhe o cabelo. — Pois, mas as sestas são muito benéficas para as meninas pequenas. Porque não te deita outra vez? Eu vou embora e te deixo dormir, está bem? Jane deitou-se obedientemente sobre as almofadas, mas Gideon sentia os olhos da pequenita seguindo-o pela divisão, quando se levantou e se dirigiu para a mesa. Abriu a gaveta e tirou a garrafa de rum, desejando poder escondê-la em algum lugar para que ela não a visse. — É genebra? — perguntou Jane lamuriosa. — Não, e agora tenta dormir. — O meu papá, às vezes quando estava triste bebia genebra. E depois punha-se a cantar canções divertidas e me fazia rir. Gideon ficou olhando para ela. Apesar de Sara ter dito que algumas mulheres tinham os seus maridos na Inglaterra, nunca tinha pensado naquele assunto detalhadamente. Apesar de tudo, se tivessem maridos decentes, elas não teriam acabado metidas em confusões criminosas, não era? — Tenho saudades do meu papá — disse Jane com toda a autenticidade infantil. — tenho muitas, muitas saudades. Gideon sentiu uma pontada de remorso. 195


— Porque é que não ficou com ele na Inglaterra? — Ele e a mamã disseram-me que tinha que vir com ela. O papá disse que os marinheiros não fariam mal à mamã se vissem que eu estava com ela. — Os seus olhos iluminaram-se. — o papá disse que viria nos buscar quando tivesse dinheiro. — Então o seu rosto voltou a apagar-se. — mas agora... agora a mamã diz que ele já não pode vir buscar-nos, agora que vivemos na ilha. A mamã diz que agora terei que ter ouro papá. Gideon sentiu na garganta o sabor amargo que a intensa sensação de culpa lhe provocava. Tentou ignorá-la. Provavelmente, o marido de Molly nunca teria conseguido chegar a Nova Gales do Sul, e ela teria sido obrigada a casar com outro homem, embora fosse apenas para poder sobreviver, tanto ela como os seus filhos. Mas aquela desculpa não conseguiu aliviar a sensação de culpa. A pequena Jane não comprrendia as circunstâncias, pois não? Apenas sabia que antes tinha a esperança de se juntar com o seu pai e, no entanto, agora não. Pela primera vez, Gideon compreendeu o que Sara tentara fazê-lo compreender. Nem todas as mulheres se sentiam contentes por estar ali. Nem todas estavam felizes com a idéia de ter um marido... à força. Não, claro que não. Algumas eram realmente muito infelizes. Algumas tinham que aceitar que nunca voltariam a ver a aqueles que amavam e que tinham deixado para trás, na Inglaterra. E tudo graças a ele e aos seus magníficos planos para conseguir uma utopia. Utopia? Quando referiu que Atlântida era uma utopia diante de Sara há muito tempo atrás, ela respondera: «Uma utopia onde os homens têm o direito de escolher e as mulheres não». Era exatamente o que era, e toda a culpa era dele; tinha criado assim. Mas estava descobrindo rapidamente que uma utopia onde só metade das pessoas têm escolha não é verdadeiramente uma utopia. — A mamã disse que tenho que me portar como uma menina mais velha — continuou Jane, com lágrimas nos bonitos olhos verdes. — Disse que tenho que aprender a gostar do meu novo papá. — Levantou os olhos e olhou para ele, e Gideon sentiu como o coração se encolhia. — mas tenho saudades do meu verdadeiro papá. Não quero um papá novo. Gideon colocou rapidamente a garrafa de rum na mesa e dirigiu-se à cama para se sentar ao lado de Jane. Rodeou os pequenos ombros da pequena com os braços musculados e apertou-a afetuosamente. — Não se preocupe, linda. Não terá que ter um novo papá se não quiser. Eu trato disso. Ela encostou a cabecinha no seu ombro e soluçou. — Não me importava muito se você fosse o meu novo papá. Mas você vai casar com a menina Sara, não vai? Quando ela voltar. A pequena disse com tanta certeza que o coração de Gideon quase se partiu. — Sim, quando ela voltar — repetiu como um autômato. De repente, Barnaby entrou precipitadamente no camarote. — Capitão, é melhor vir comigo, e depressa. Molly está parindo. — O primeiro-tenente olhou para a pequena, fez um gesto para que Gideon se aproximasse da porta. Enquanto Gideon se aproximava, Barnaby disse num sussurro: — e infelizmente, há complicações. Não acreditamos que Molly sobreviva, e pediu para ver a filha, portanto é melhor que a leve consigo. Naquele instante, Gideon esqueceu-se da garrafa de rum que tinha ido buscar no camarote. Esqueceu da traição de Sara e da sua própria tristeza. Com uma sensação de asfixia angustiante, agarrou na pequena Jane entre os seus braços e seguiu Barnaby até à porta.

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Capítulo 25 A educação que prevalece numa época depende muito mais do que acreditamos ou do que estamos dispostos a consentir, na conduta das mulheres, este é um dos principais eixos em que a grande máquina da sociedade humana se apoia. Essays on Various Subjects... for Young Ladies, HANNAH MORE Jordan tinha razão, pensou Sara enquanto controlava o enxame de pessoas que passeavam pelas salas da luxuosa mansão dos Merrington. Encontrar lady Dryden entre aquela multidão ia ser uma tarefa impossível. Passara as últimas duas horas a procurá-la, sem êxito. Visto que lady Dryden não era vista com muita frequência na sociedade, pouca gente sabia quem ela era. Quando por fim Sara conseguiu falar com alguém que a conhecia e pediu que a apontasse com o dedo, esta pessoa indicou que lady Dryden acabava de sair da sala. Aquela senhora era tão difícil de encontrar como uma brisa de vento num dia sereno e sossegado. Sentindo-se frustrada, dirigiu-se à varanda para refletir um pouco a sós. Lamentavelmente, uma mulher também saiu para a varanda ao mesmo tempo que ela. Ambas se saudaram com educados acenos de cabeça, mas respeitaram a intimidade de cada uma ficando em silêncio uns minutos. a outra mulher acabava de se virar com a intenção de regressar à sala de baile quando uma tocha iluminou o medalhão que usava pendurado ao pescoço, e este conseguiu captar a atenção de Sara. Era uma figura em forma de cabeça de cavalo, rodeado de diamantes. Apesar de ser menor do que o de Gideon, parecia uma copia exata da que ele usava no cinturão. Sara sentiu como o pulso se acelerava. — Lady Dryden? A mulher deteve-se e olhou para ela surpreendida. — Sim? Desculpe, nos conhecemos? Sara observou a mulher com excitação disfarçada. Era ela. Tinha que ser. Usava uma jóia com o mesmo desenho, e embora o seu cabelo estivesse marcado por madeixas cinzentas e os olhos fossem da cor dos jacintos silvestres, lady Dryden podia ser a mãe de Gideon. Mas por onde começar? Sara ensaiara aquele encontro vezes sem conta e, contudo, agora que estava ali, sentia-se completamente perdida. Não podia deixar que a mulher fosse embora; disso tinha certeza. — Chamo-me Sara Willis. Sou a meia-irmã do conde de Blackmore. — Sara engoliu a saliva. — Estava... estava admirando o seu alfinete. — o melhor era ir diretamente ao assunto, pensou — Há pouco tempo vi um muito parecido. A mulher ficou visivelmente tensa. — Ah, sim? Onde? — a sua voz não era indiferente. De repente, parecia estar muito interesada no que Sara queria dizer. — Sei que vai parecer estranho, mas era um pirata que o usava. Tinha-o transformado na fivela do seu cinturão. — Um pirata? Está brincando comigo, menina? — inquiriu lady Dryden, decepcionada. Antes que Sara pudesse protestar, a expressão de lady Dryden alterou-se e disse: — Um momento, você deve ser a jovem que viajava a bordo do Chastity. A minha amiga no Comité de Senhoras falou-me de você. O navio foi abordado pelos piratas e voce conseguiu escapar por milgre. — Sim, sou eu — respondeu Sara secamente. A historia de Jordan espalhara-se tão depressa como pólvora mas talvez tivesse chegado o momento de alguém saber a verdade, especialmente 197


aquela mulher. — Bem, de fato não consegui escapar. Passei um mês com os piratas, numa ilha perdida no atlântico. Cheguei a conhecê-los muito bem, particularmente ao capitão. Lady Dryden parecia impressionada e apenas um pouco surpresa pela forma que uma completa desconhecida estava revelando um segredo daquela importância. — Lorde Pirata? Passou um mês com o próprio Lorde Pirata? — Sim. Sabe o seu verdadeiro nome? Lady Dryden negou com a cabeça, confusa perante a pergunta de Sara. — Chama-se Horn. Gideon Horn. A cor desapareceu do rosto de lady Dryden. Por um momento, Sara pensou que a mulher ia desmaiar, pelo que se apressou a colocar-se ao lado dela. — Oh, sinto muito por tê-la aborrecido. Está bem? — Di... disse Horn? Aquele chamava-se Horn? Tem certeza? — Sim. Conheci o capitão Horn muito bem durante a minha estadia na ilha dele. — hesitou sobre se devia continuar, ao ver o quanto a senhora estava perturbada. Mas apesar de tudo, a mulher tinha abandonado o filho, talvez merecesse sentir-se perturbada. A voz de Sara endureceu. — fiquei muito surpresa quando soube que não era americano. Nasceu na Inglaterra; era o filho da filha de um duque. Aparentemente a mãe fugiu com o seu tutor, um inglês chamado Elias Horn, e depois abandonou o filho quando a família pediu que regressasse. — Não! — protestou lady Dryden. — Não é verdade! Não foi isso que aconteceu! Eu nunca... — A mulher desmoronou, com lágrimas nos olhos. — então foi esse o motivo pelo qual o meu filho nunca entrou em contato comigo. Todo este tempo deve ter pensado que... — Ficou em silêncio, enquanto a confusão se espalhava pelo seu rosto. Sara estava tão confusa como lady Dryden. Aquela não era a reação que esperava. — Lady Dryden, está me dizendo que você é a mãe de Gideon Horn? A mulher olhou para ela desconcertada. — É claro! Certamente você já sabia, senão não teria me falado dele. Sara conseguia ouvir as batidas do seu próprio coração a ecoar nos ouvidos. Tinha encontrado a mãe de Gideon. — Não tinha certeza. Elias Horn disse a Gideon que a mãe tinha morrido, mas só aparecia uma filha de um duque que se chamava Eustacia na gazeta Debrett's Peerage: a senhora. Então vi o seu medalhão e... — Pressentiu. — Lady Dryden olhou furtivamente para a sala de baile. As lágrimas rolavam pelas suas faces enquanto observava a sala abarrotada de gente. — Oh, menina Willis! Temos que encontrar o meu marido! Tenho que dar a notícia! Sara não percebia nada. Lady Dryden não parecia comportar-se como uma mulher que acabava de saber que o seu filho, que tinha repudiado, fosse um pirata. Como era possível que, depois de todos aqueles anos sem mostrar nenhum interesse por ele, de repente estivesse tão emocionada ao ouvir as notícias sobre o filho? e porque queria contar ao marido o seu sórdido passado? — Lady Dryden — murmurou Sara preocupada, quando a mulher começou a arrastá-la para a porta. — tem certeza que quer contar ao seu marido sem... sem o preparar antes? — Oh, sim, claro! — Então, como se de repente refletisse no sábio conselho de Sara, lady Dryden olhou para ela com os olhos muito abertos, visivelmente alterada. — mas você deve pensar que... se o meu filho acredita, então você deve acreditar que... Bem, não faz mal. Não importa. Compreenderá tudo quando ouvir a minha história. Mas menina Willis, primeiro temos que encontrar o meu marido! Garanto que ele vai querer ouvir tudo o que tenho para contar. Tudo! 198


— Está bem, minha senhora — respondeu Sara, incapaz de dizer mais alguma coisa. No entanto, enquanto a mulher a arrastrava até à sala de baile, prometeu uma coisa a si mesma: depois de ouvir o que lady Dryden queria dizer ao marido, seria a sua vez de perguntar sobre aquela história complexa. Gideon passeava nervosamente pela salinha de estar da cabana recem construída de Silas. Tinham acomodado Molly no quarto de Louisa e de Silas, e a pobre moça não parava de gritar por causa do sofrimento e da dor que a consumia. Por todos os diabos; nunca teria imaginado que o ato de dar à luz fosse tão horroroso. Era a primeira vez que estava perto de uma parturiente. Quase não conseguira suportar os breves minutos que permanecera com ela no quarto, e quando se apressara a sair depois de levarem Jane para fora da cabana, Louisa murmurara algo sobre a pouca resistência dos homens em desaprovação. Não tinha se ofendido perante o comentário. Como ia fazer? Os gritos de Molly furavamlhe o cérebro, depois de aguentar horas e horas de dor, e tudo para dar à luz um filho sem ter o marido ao seu lado. Naquele momento, sentiu o mais profundo respeito pelas mulheres, e um enorme desprezo por si próprio e para com o sexo masculino. Ann surgiu à porta do quarto com o rosto visivelmente aflito. — o bebê vem de nádegas, capitão. Por isso é que a Molly está passando tão mal. — De nádegas? — Quando um bebê nasce, supõe-se que a cabeça tem de sair primeiro. Mas este quer tirar primeiro o rabinho e não pode ser assim. A Louisa e eu não sabemos o suficiente para decidir o que fazer, e não há nenhuma parteira entre as mulheres; já perguntamos. — Mas tem de haver alguém que possa ajudar — protestou Gideon. — Há cinquenta mulheres nesta ilha. — É verdade, mas a maioria sabe tão pouco sobre este assunto quanto eu: apenas o básico para ajudar num parto normal. Mas para um como este, precisamos de uma parteira, e não a temos. Não há nenhum médico na ilha? Ele abanou a cabeça com uma enorme sensação de culpa. Não tinham nenhum médico. Nem uma parteira. Tinha pensado em tentar convencer algum médico para que viesse viver em Atlântida, mas ainda não o tinha feito. Contudo, devia ter pensado em trazer uma parteira para as mulheres. De repente, uma voz estridente chegou da entrada da cabana. — Muito bem, onde está ela? Onde está a parturiente? Os dois viraram-se e viram Queenie, de pé, no umbral da porta, com as mangas arregaçadas e uma clara determinação no seu rosto. — Não pode incomodá-la, Queenie — disse Ann firmemente. — as coisas não estão como se esperavam. O bebê vem de nádegas. A Molly precisa estar tranquila até que saibamos o que podemos fazer. — Precisa de uma mulher que saiba como a ajudar, isso é o que ela precisa — replicou Queenie. Então ouviram outro grito dilacerante proveniente do quarto e, sem perder um segundo, Queenie apressou-se a entrar. Ann bloqueou-lhe o caminho, e Queenie olhou para ela com raiva: — Afaste-se, menina da aldeia. Quem é que pensa que ajudou a nascer todas as crianças no bordel? Eu! Não podíamos arriscar a trazer um médico com medo que nos levasse diante do juiz, por isso era sempre eu a fazê-lo. Trouxe ao mundo mais bebês do que provavelmente viste em toda a tua vida. E hei-de trazer este, se me deixar passar. Ann hesitou, olhando para Queenie com receio, como se não acreditasse na mulher. 199


— Deixe-a passar — interveio Gideon. — Por Deus, se ela diz que consegue, então que vá em frente. Não temos outra alternativa. Quando Ann se afastou, Queenie ergueu as costas e entrou no quarto, deixando a porta aberta. — Queenie! — exclamou Louisa dentro do quarto. — Pode-se saber o que pensa que está fazendo? — Tenha calma. — Ann tentou acalmar a sua companheira enquanto entrava na divisão atrás de Queenie. — Diz que está habituada a assistir em muitos partos. Louisa perdeu a cabeça. — Pois sim! Provavelmente viu mais coisas a entrar no corpo de uma mulher do que a sair dele. — Isso também é verdade — respondeu Queenie indiferente. — mas sei uma ou duas coisas acerca do que precisa ser feito para que nasça uma criança, e de momento, parece que não tem muitas opções, não é? Senhora Sargento? Gideon aproximou-se do umbral e olhou para o interior, mas a única coisa que conseguiu ver foi Ann, Louisa e Queenie curvadas sobre a cama. E por baixo delas, viu o rosto pálido da pobre Molly e o seu cabelo encharcado de suor. Queenie colocou-se na beira da cama enquanto murmurava algo. Gideon não conseguia ver o que a mulher fazia, mas quando acabou, limpou as mãos ao avental e disse: — Têm razão, o bebê vem de nadegas. Tenho que virá-lo. — Virá-lo? Pode fazer isso? — perguntou Louisa angustiada. — Sim, pode-se fazer. Às vezes. Eu já tentei algumas vezes antes. — Queenie não parecia muito otimista. — Só correu bem uma vez; às vezes é impossível. — Maldição! Faz o que tiver que fazer! — a dilacerante voz de Molly ouviu-se por cima do murmúrio das outras. — mas tire este bebê de dentro de mim! Pelo amor de Deus! De repente, Ann e Louisa afastaram-se dos pés da cama e colocaram-se ao lado da cabeça de Molly, para lhe acariciar o rosto e encorajá-la. Então foi a primeira vez que Gideon viu as pernas separadas de Molly, e ficou mais branco do que uma folha de papel. O sangue e a água ensopavam as pernas da mulher quase até aos joelhos. — Santo céu! Faz alguma coisa! — exclamou ele, desesperado. — Já trato disto, capitão — replicou Queenie. — Traga agua fervendo, e peça a Silas que prepare um chá extra forte. a pobre moça vai precisar depois deste mal estar. Não precisou de pedir duas vezes. Gideon saiu disparado como uma flecha, amaldiçoandose por ser tão covarde. Molly era tão pequena, tão frágil… Como ia conseguir dar à luz? E o que seria do bebê e da pequena Jane, se Molly falecesse durante o parto? Encontrou Silas na nova cozinha comunitária e transmitiu-lhe as ordens de Queenie. Silas já tinha um tacho de água fervendo. Afastou-o do fogo e aproximou-se de Gideon com ele. — Capitão, tem o rosto verde, como se estivesse prestes a vomitar. a pobre moça está a passndo mal, não é? Gideon olhou o velho com os olhos dilatados. — Pode morrer! O bebê também pode morrer! — deu um forte murro na mesa, com raiva. — e tudo por minha culpa, sabe? Devia ter trazido médicos e parteiras para a ilha. Mas o que sei eu sobre o que tenho fazer para cuidar das mulheres? Não sei nada! Absolutamente nada! Sara tinha razão. Nem sequer pensei nas necessidades delas, nem por um segundo! Não me admira que tenha me abandonado! Silas colocou o tacho sobre a prateleira e deu umas palmadinhas no ombro de Gideon, depois aproximou-se de um dos armários, tirou uma garrafa de whisky e serviu um copo ao 200


capitão. — Acalme-se, sente-se e beba isto. Vai tudo correr bem. E a menina Sara não o abandonou por você não ter trazido nenhum médico. Partiu porque tinha que tratar da família. Mas ela volta. Disse que voltaria, e eu acredito nela. — Não, não vai voltar — lamentou-se Gideon amargamente. — ela me odeia, e na verdade eu mereço. — Deixe de falar assim. Não vai resolver nada pensar nessas coisas, especialmente quando não são verdade. — Silas agarrou novamente no tacho. — olhe, fique aqui sentado e beba um pouco enquanto eu levo isto à Louisa. E talvez, quando voltar, traga boas notícias. Boas notícias? Que boas notícias podia Silas trazer? Mesmo que Molly sobrevivesse, o que ele duvidava, a pobre mulher tinha passado mal, e tudo por culpa dele. E além disso, ele continuava sem Sara. Obrigava-se a sair da cama todos os dias, a trabalhar arduamente, a comer e a continuar vivo, mesmo sabendo que Sara não o tinha amado o suficiente para ficar ao seu lado. Nem sequer tinha a certeza se ela tinha chegado a amá-lo. Nunca lhe dissera. Mas claro, ele também não tinha declarado os seus sentimentos, por medo que ao expressá-los com palavras ficasse mais vulnerável do que já era. Mas no final, a tinha perdido, e agora era tarde demais para dizer que sem ela, ele não era mais do que um barco à deriva, sem rumo, indiferente, sem sentido. Não se admirava que o seu pai tivesse bebido até cair inconsciente, todas as noites, depois de perder a mulher que amava. Era uma forma de sobreviver às noites silenciosas e aos dias frios e vazios. Mas Gideon não cometeria o mesmo erro. Era orgulhoso demais para isso. Não, apenas se limitaria a... existir. Continuaria em frente. Mas por muito que tentasse, não conseguia apagar a imagem de Sara da sua cabeça. Lançou um gemido e escondeu a cabeça entre as mãos. Se ela tinha querido castigá-lo por todos os pecados que ele tinha cometido, realmente acertara em cheio na forma de fazer. Gideon não percebera a enorme influência que ela tinha exercido na sua vida até que Sara lhe tirou tudo, sem dar a ele a oportunidade para pedir apenas para que ficasse. Levantou-se, deu um pontapé na cadeira e contemplou como esta saía voando pelo ar até se estatelar contra o novo chão de madeira. Aquilo era o que mais doía nele: que ela não tivesse esperado, que não tivesse se despedido dele, nem com um simples «adeus». Tinha fugido como se não conseguisse esperar pelo momento de se livrar da presença dele. E tudo depois do que ela tinha dito acerca de ajudá-lo, depois do que dissera naquela noite no convés do barco... Recordava tão nitidamente aquela noite... a forma como ela tinha dado esperança a ele, como o tinha tirado do desespero, convencendo-o de que juntos podiam reconstruir Atlântida... Maldição! O que é que dissera? «isso se demonstrares que queres lutar em vez de desistir.» Talvez não tivesse lutado o suficiente por ela. Sara tinha ido embora, e ele deixara que ela partisse; sentia-se tão furioso pela traição dela que não agiu quando devia. Mas agora que olhava para trás, agora que recordava aquelas semanas que tinham passado juntos — e especialmente os últimos dias — não conseguia acreditar que ela tivesse mentido quando disse que queria casar com ele e ajudá-lo a reconstruir Atlântida. Apesar de tudo, ninguém a tinha forçado a aceitar a casar com ele. E sabia que o seu irmão vinha resgatá-la, porque não tinha se limitado a recusar as intenções de Gideon por seduzi-la até que o seu irmão chegasse? Gideon sentiu que o sangue gelava. Talvez tivesse se precipitado ao assumir que ela queria partir. Tentou recordar o que Ann e Peter lhe disseram naquela noite na praia. Peter tinha comentado que Sara partira à força, antes que Ann o calasse. E o que dissera Ann sobre o que Sara 201


pedira ao irmão para que não atacasse a ilha? Provavelmente Sara não estava preocupada com o irmão, mas sim com ele. Abanou a cabeça repetidamente. Estava depositando todas as suas esperanças em algumas palavras, tentando distorcer o seu significado. No entanto, não conseguia afastar a sensação de que naquele dia trágico tinha acontecido mais alguma coisa, algo que obrigara Sara a partir, sem se despedir. — Capitão. A Molly acaba de dar à luz uma menina sã e salva — declarou uma voz da porta. Gideon virou-se e viu Ann, de pé no umbral, olhando para ele tão aliviada que se comoveu. — E ela? Está bem? — Sim, as duas estão bem. Queenie surpreendeu a todos. Sabia perfeitamente o que estava fazendo, e cuidou tanto de Molly como do bebê. — Graças a Deus que alguém sabia o que fazer. — passou a mão pelo cabelo com ar abatido. — eu não saberia por onde começar. Ann tentou ir embora, mas ele a reteve. — Ann? — Sim, capitão? — Quero que me diga exatamente o que aconteceu no dia em Sara foi embora. Ela baixou o olhar e cravou-o no chão. — Mas eu já... já lhe disse. — Não me disse tudo, estou errado? Parece que há alguma cois que não me contou. Ela desenhou um círculo no chão com o sapato. — Não importa o que aconteceu naquele dia, capitão. a menina Sara voltará tão depressa quanto puder. Eu sei que ela voltará. — Não consigo esperar. — Gideon soprou e pensou em como Molly estivera perto de perder a sua filha e até a própria vida. — vou para Inglaterra. Levarei todas as mulheres que queiram regressar. Não quero sentir esse peso da consciência nas minhas costas. — fez uma pausa sentindo-se mais aliviado como há muito não se sentia. — e penso encontrar Sara, e convencê-la que o seu lugar é aqui, nesta ilha. Tenho que a encontrar. De dizer que preciso dela... que a amo. Ann levantou os olhos e olhou para ele fixamente. O seu rosto expressava uma mistura de preocupação e de medo. — Mas capitão, não pode fazer! Não faça! Se for buscá-la, tudo o que ela fez terá sido em vão! A menina Willis nunca me perdoará, se deixar que vá à procura dela. Nunca! Ele ficou paralizado. — O que quer dizer? Ann levou as mãos à boca, e olhou para ele aterrada. — Ann, diga-me a verdade. Porque é que não te perdoará? A Sara... me odeia? — Oh, não, capitão! Como é que pode pensar uma coisa dessas? — Ann retorceu as mãos no avental, como se estivesse se debatendo por contar algo. depois suspirou. — o irmão, o senhor conde, ameaçou-a em explodir toda esta ilha pelo ar se ela não regressasse com ele a Inglaterra. E ela tinha medo que o senhor cumprisse a palavra. Tinha chegado com um grupo de homens e de canhões, portanto podia fazê-lo; além disso, mostrava-se absolutamente convencido de que o faria. Só cedeu quando ela aceitou partir com ele. Então Sara não o tinha traído. Sara agira como sempre: sacrificando tudo por aqueles que amava. De repente sentiu-se furioso com o irmão de Sara, com Ann e com Peter por terem mentido para ele... e sobretudo, furioso consigo próprio, por acreditar que Sara seria capaz de o abandonar por vontade própria. 202


— Porque me fez acreditar que ela queria ir embora? — perguntou Gideon com voz seca e cheia de dor, enquanto avançava lentamente para Ann. — Porquê? Porque que o fizeste, sabendo o que eu sentia por ela? O rosto de Ann refletiu o sentimento de culpa. — Eu não queria. Mas tive que fazer. Ela me fez prometer que não contaria a verdade a você, porque ela tinha medo que você a perseguisse até Inglaterra e que o prensessem e o enforcassem. Ela temia pela sua vida, capitão, demais para querer correr esse risco. — Como se a minha vida tivesse sentido sem ela! — rugiu ele. — Agora não tenho duvidas: tenho que ir. Não posso deixá-la com a besta do irmão. — Não! Não pode ir buscá-la! Ela morreria se o prendessem! Disse que faria tudo o que estivesse nas suas mãos para regressar, e sei que ela... — Acha mesmo que o irmão a deixa voltar? Um tipo que ameaçou destruir tudo o que ela ama para conseguir que regressasse com ele para Inglaterra? — fechou o punho, desejando poder esmagá-lo na cara do irmão de Sara. — Não a deixará voltar! Se eu fosse ele, também não deixaria. — Mas capitão — lamentou-se Ann, — se os ingleses o prendem, o enforcam! — Os ingleses não conseguiram me apanhar até agora — rugiu ele com fúria, — e não deixarei que me apanhem desta vez. — Mas... — Vou para Inglaterra. Acabou-se, Ann. Não quero ouvir nem mais uma palavra. Diga às mulheres que levarei todas as que quiserem regressar ao seu país. Ou se tiverem medo de voltar para Inglaterra, deixo-as em Santiago, e pagarei a passagem até onde quiserem ir. O rosto de Ann refletia a sua surpresa. — Algumas vão querer partir, mas acho que a maioria prefere ficar. Gideon suavizou a voz. — Temos todo o gosto em aceitar todas aquelas que quiserem ficar, evidentemente, tanto se decidirem casar como não. Acabou essa historia de encontrar esposas para os meus homens. A partir de agora, terão de se arranjar para encontrar a pessoa que realmente queiram casar com eles. Ann aproximou-se e deu-lhe um carinhoso beijo na face. — Capitão Horn, você é um bom homem. Sei que a menina Willis estaria aqui, contigo, se pudesse. — Vai estar aqui comigo. Regressará, nem que tenha que procurar por todas as malditas ilhas britânicas até a encontrar. Capítulo 26 Para mim o teu amor é mais precioso do que a vida, E estou feliz por se tornar a minha esposa, E enquanto me encontrar em terra firme, ficarei contigo, Saborenado os teus encatos, amor, de noite e de dia... Billy the Midshipman's Welcome Home ANÔNIMO Com um leve ruído, as velas do Satyr encheram-se de vento, e o barco zarpou de São Nicolau. De pé diante do leme, Gideon rumou para a Inglaterra com impaciência. Precisara praticamente de três semanas para chegar àquele ponto. O barco não estava preparado para uma 203


viagem tão longa, pelo que passaram um tempo precioso a arranjá-lo e a olear os aparelhos antes de terem a certeza de que estavam prontos para abandonar a ilha. Depois, uma vez em Santiago, tiveram que comprar mais provisões e mais um carregamento que os permitisse fazer-se passar por um navio mercante quando navegassem por águas inglesas. Também tiveram que tratar das necessidades das onze mulheres — junto com os filhos — que tinham optado por sair de Atlântida. Oito delas tinham aceitado uma passagem para outros destinos a partir de Santiago, pelo que Gideon teve que procurar alojamento e organizar as passagens noutros barcos. Todas aquelas tarefas tinham levado tempo. As outras três mulheres ficaram a bordo do Satyr. Tinham insistido em regressar a Inglaterra apesar do risco de serem enviadas de novo para a prisão. Entre elas encontrava-se Molly, a pequena Jane, e o bebê recém nascido de Molly. Gideon queria ver Molly unida com o seu marido, e pensava fazer tudo o que fosse preciso para conseguir. Ela queria regressar a Atlântida com o marido, e Gideon aceitara a proposta, desde que o marido de Molly quisesse ir viver na ilha. No fim, Gideon não se sentiu tão mal. Apenas onze mulheres tinham expressado a vontade de partir. a maioria, no entanto, ficara muito satisfeita por ficar, apesar do mal estar que ele as tinha feito passar no início. E quase todas as que tinham ficado em Atlântida, tinham escolhido marido. Apertou os olhos diante do resplandecente brilho do sol matinal e observou o horizonte, fixando-se na direção do vento. Esperava poder chegar a Inglaterra em menos de duas semanas, apesar de ter que navegar contra os ventos alísios. Por sorte, o Satyr deslocava-se com agilidade graças à leve carga que levavam e à pouca tripulação. Gideon não tinha querido expor nenhum homem que não fosse necessário, se o barco fosse capturado ao chegar a Inglaterra. Os poucos homens que aceitaram embarcar naquela aventura, não se importavam com o risco. Eram tipos cheios de coragem que, por um motivo ou outro, queriam ver a Inglaterra. Alguns até tinham a intenção de encontrar esposas e levá-las de volta para Atlântida. — Que agradável voltar a navegar, não é? — manifestou Barnaby ao seu lado. Gideon observou o seu primeiro tenente. Barnaby era um dos homens que tinha se juntado à viagem porque adorava os perigos e as aventuras. Às vezes Gideon não tinha certeza de que aquele homem fosse capaz de assentar a cabeça. — Sim, muito agradável — concordou Gideon, embora só meio convencido. Apesar de amar o mar tanto quanto qualquer outro marinheiro, tinha-se habituado a Atlântida. Sentia falta da agradável sensação que tinha ao sentir a areia debaixo dos seus pés descalços, e das risadas das crianças brincando no rio, e do cheiro da madeira que provinha do bosque. Mas talvez sentisse falta de todas aquelas coisas só porque as tinha partilhado com Sara. E era de Sara que sentia mais falta. — O que pensam os homens sobre o fato de ter mudado as regras no que diz respeito a casar com as mulheres? — perguntou Gideon. Nenhum dos seus homens tinha tido a coragem suficiente para falar no assunto, especialmente diante do tremendo mau humor que o capitão tinha demonstrado desde que Sara partira. Barnaby apoiou-se no varandim pensativo. — Bem, creio que os homens tem o coração mole, como você. E a verdade é que estão de acordo com as novas regras. Suponho que perceberam que você tinha razão; que uma vida inteira ao lado de uma esposa que não os ama não é um prato muito apetecível. — Gostaria de ter percebido isso antes. — Antes de ter induzido Sara a abandoná-lo. Antes de ter se apaixonado por uma reformista teimosa que provavelmente queria castigá-lo com um bom número de açoites por ter sequestrado as mulheres em vez de se casar com ele. 204


Mas não se importava. Sería capaz de suportar os açoites que fossem precisos, desde que ela aceitasse casar com ele depois do castigo. E se não aceitasse? E se demonstrasse ser uma mulher banal, apesar de tudo? E se recusasse a sua proposta de casamento e dissesse que preferia livrar-se dele? O que faria então? Aquela possibilidade o tinha torturado durante as últimas três semanas. Não tinha parado de interrogar Peter e Ann sobre o que realmente tinha acontecido entre Sara e o seu irmão, e apesar da constante insistência por parte do casal de que Sara se vira obrigada a partir, não se sentia tranquilo. Embora o irmão a tivesse obrigado, naqueles dois meses em que tinham estado separados podiam ter acontecido uma série de coisas. Uma vez longe da ilha e de novo imersa no seu círculo social, Sara podia ter decidido que a sua vida em Atlântida não tinha sido nada mais do que um sonho incômodo. Provavelmente não queria voltar a vê-lo. No entanto, tinha que arriscar, embora pudesse acabar como o seu pai: atormentado pelas memórias de um amor perdido durante o resto da sua vida. De repente, Barnaby assobiou, conseguindo despertar o capitão dos seus pensamentos agitados. — Olhe, capitão. Que pena que já não exerçamos a pirataria. Aí temos um bonito troféu: um barco mercante inglês. Gideon seguiu o olhar de Barnaby. Um barco imponente, com a bandeira inglesa, navegava para as ilhas de Cabo Verde. Deslizava suavemente sobre as aguas, e tinha um aspecto doce e delicioso, convidando a ser abordado. — É, tem razão. É muito bonito, mas não o suficiente para me tentar; já acabei com a pirataria, Barnaby, para sempre. — É sério? — Barnaby apertou os olhos. — Talvez aquele barco o faça mudar de opinião. — Nada conseguirá me fazer mudar de opinião — respondeu Gideon com arrogância enquanto se virara para o leme. — Não desista. Olhe para o nome do barco, e depois diga-me se não quer abordar aquele navio em particular. Com impaciencia, Gideon inspecionou a parte lateral do barco. Ali no meio, numas simples letras douradas, estava escrito o nome Defiant. Gideon ficou tenso e agarrou o telescópio. — Não era esse o nome do barco do conde de Blackmore? O que levou a menina Willis? — murmurou Barnaby. Gideon assentiu com a cabeça enquanto inspecionava o casco do navio, depois olhou para o convés. Não viu nada significativo, mas não conseguiu esconder a esperança de que Sara se encontrava a bordo. Seria possível que ela...? Não, não tão depressa, pensou. Não com um irmão como o dela. — Duvido que existam dois barcos que se chamem Defiant e que tenham motivos para navegar por estas aguas. Tem que ser ele. aposto o que quiser em como aquele desgraçado veio rematar o trabalho que fez da última vez que esteve em Atlântida. Já que Sara não o deixou afundar a ilha então, provavelmente deixou-a na Inglaterra e agora regressou para o fazer sem que ela seja testemunha. — Um sorriso retorcido nasceu nos lábios dele. — Quer apanhar-me de surpresa, não é? Pois apoderarei do seu barco antes que se aproxime a menos de uma milha de Atlântida. — Apoderar-se daquele barco? Com o quê? Se nem contamos com tripulação suficiente nem para conversar! — Desde quando paramos perante um imprevisto? — Gideon estudou a tripulação do outro barco com o telescópio, perguntando-se porque haviam tão poucos marinheiros. — temos 205


um bom numero de canhões, e não parece que haja muitos homens a bordo daquele barco. aposto o que quiser em como não nos custará nada derrotá-lo em alto mar. Se não se rederem, juro que furarei aquele casco com cinquenta tiros de canhão, até consiguir que aquele covarde saia do seu esconderijo. Se estiver a bordo, obrigarei a dizer-me onde está a Sara. Se não estiver a bordo, ficarei com o barco e peço que me entregue Sara em troca. Seja como for, me apoderarei daquele navio. — Está efetivamente louco. Já disseram a você? — disse Barnaby com absoluta franqueza. Depois encolheu os ombros. — Bom, que seja; apesar de tudo, tenho que admitir que sinto falta de uma boa batalha no mar. Gideon observou a bandeira inglesa do Defiant e murmurou: — Que pena termos queimado a nossa bandeira pirata. Houve um longo silencio antes que Barnaby murmurasse; — Pois... bem... a verdade é que... não o fiz... quero dizer... Gideon afastou o telescópio do rosto e olhou fixamente para o primeiro-tenente. — Pensei que tinha dado a ordem de queimá-la depois da nossa última viagem. — E deu. mas... bem... pensei que mudaria de opinião, portanto fiquei com ela. Está no meu camarote. Gideon esforçou-se por não sorrir. — Senhor Kent, devia castigá-lo a lavar o chão do convés durante uma semana inteira por ter desobedecido às minhas ordens. Mas acho que desta vêz posso ignorar essa transgressão. — Voltou a observar o Defiant com o telescópio. — Sabes se alguma vez abordamos um dos barcos de Blackmore? Barnaby ficou pensativo. — Não, não me lembro de ter ouvido esse nome, entre as tripulações que... pois... com as quais confraternizamos. — Então já está na hora de abordarmos um, não acha? — Sim, claro, capitão. Não podemos permitir que aquele conde fique demasiadamente vaidoso, e continue a gabar-se da sua coragem no mar. — Exatamente. — Gideon baixou o telescópio enquanto desenhava um sorriso audacioso. — Sem dúvida nenhuma, aquele conde precisa que alguém lhe baixe a estima. e quem melhor do que te e eu para o fazer? Sara encontrava-se sentada no salão do Defiant, tomando o café da manhã com Lorde e lady Dryden e com Jordan. Picava a comida com ar ausente; sentia-se excitada demais para comer. Estavam se aproximando das ilhas de Cabo Verde, e isso queria dizer que só faltavam dois dias de navegação para chegar a Atlântida. Custava a acreditar que Jordan finalmente tivesse acedido a levá-la para a ilha. Mas o seu irmão não tivera outra alternativa, depois do marquês e a sua esposa o terem pressionado para que o fizesse. Se ele não tivesse concordado, o marquês teria alugado um barco para ir até à ilha, e Sara teria vindo com ele. E Jordan não gostava nada de perder o controle da situação. Durante a viagem, Sara tinha-se afeiçoado muito a lady Dryden. E também ao seu marido. Apesar de obviamente aquele homem ser bastante mais velho que a sua esposa, Lorde Dryden não mostrava o típico ar vaidoso dos homens da sua classe e sua idade. O seu comportamento, as feições aristocráticas e o sorriso quente faziam-na recordar imensamente o seu falecido padrastro. E finalmente ali estavam os quatro, navegando para Atlântida. Os outros tres conversavam animadamente sobre algum assunto que certamente teria captado a atenção de Sara se a sua cabeça não estivesse ocupada a pensar em Gideon. Tinha-o praticamente ao seu alcance! Tinha 206


tantas coisas para lhe contar, que nem conseguia conter a sua impaciência. O seu único medo era que Gideon não quisesse falar com ela. Oh, se ele se negasse a vê-la, a ouvi-la, não conseguiria suportar. Não, não conseguiria. A porta do salão abriu-se subitamente, e o primeiro-tenente do Defiant entrou com o rosto nervoso. — Senhor! Temos um barco a estribordo a nos seguir! E está içando a bandeira pirata! Enquanto Jordan murmurava um palavrão entre dentes, Sara levantou-se da cadeira com tanta força que a derrubou. Correu para o seu camarote, e os outros a seguiram. Olhou através do olho de boi do compartimento, tentando obter um bom plano do barco que os seguia. Então viu a figura da proa. Sim, era o Satyr, agora não tinha dúvidas. — Gideon — suspirou, enquanto começava a sentir acelerar o pulso. Lorde e lady Dryden começaram a sussurrar excitados atrás dela, e Jordan colocou-se ao seu lado. — Pensei que tinha dito que o Lorde Pirata tinha abandonado a pirataria. — E é verdade. — Sara olhou para todos. Lorde e lady Dryden pareciam preocupados, e Jordan ficou completamente branco. Cruzou os braços com ar teimoso. — é verdade! — repetiu com mais firmeza. — garanto. — Então, o que faz aqui, nos perseguindo e içando a bandeira pirata? — inquiriu o irmão. — Não sei. — Sara elevou o queixo com altivez. — mas deve ter uma boa razão para fazêlo. — Bom, vamos descobrir rapidamente, não é verdade? — Jordan virou-se e passou ao lado de Lorde e lady Dryden em direção ao salão. Sara correu atrás dele enquanto os marqueses faziam o mesmo. — O que é que vai fazer, Jordan? — Vou ver até que ponto o teu capitão pirata é «amável» e «íntegro». — O que quer dizer? O que...? Sara calou-se quando o capitão do Defiant entrou no salão, exibindo um semblante absolutamente indignado. — è o Lorde Pirata, senhor, ou pelo menos é o que dizem alguns dos meus marinheiros. Acabam de nos ordenar que nos rendamos sem oferecer resistência. Com o devido respeito, senhor, eu não importaria de lutar. Creio que podemos ganhar, embora não disponha de todos os homens que gostaria de ter neste momento. — Não! — gritaram três vozes em uníssono. Quando o capitão olhou boquiaberto para Sara e para os seus companheiros, Jordan esboçou uma cara de aborrecimento. — Acho que lutar fica rejeitado, capitão. Veja, a minha irmã tem a intenção de casar com o Lorde Pirata, e Lorde e lady Dryden estão aqui para garantirem que assim seja. Embora desejasse ordenar que fizesse saltar o Satyr pelos ares, não posso. Se o fizer, um deles provavelmente acabará com a minha vida enquanto durmo, e então não haverá ninguém que possa pagar os seus honorários. O capitão olhou para o seu patrão com ar incrédulo. — Então quer que nos rendamos? — Sim — respondeu Jordan de má vontade. — mas mantenha os seus homens prontos, armados e escondidos, se for preciso. É melhor estarmos preparados se alguma coisa correr mal. O capitão assentiu com um efusivo aceno de cabeça e abandonou o compartimento. Jordan voltou-se para Sara. — Quero que fique aqui até que eu tenha conversado com ele. 207


— Não! — protestou ela. — eu te conheço, Jordan! Vai matá-lo, e eu não vou deixar que o faça! — Sara, até agora aceitei todas as tuas condições. o mínimo que pode fazer como sinal de agradecimento é me dar a oportunidade de decidir se as intenções do teu capitão pirata são honestas. Este súbito ataque ao meu barco não me dá a confiança necessária para acreditar que realmente quer «retirar-se» da pirataria. E nego-me a te entregar àquele tipo a menos que tenha a certeza de que te tratará como é devido. — Mas Jordan... — O seu irmão tem razão — interrompeu-os Lorde Dryden. — Creio que o mais conveniente será que fiquemos aqui até que tenhamos a certeza de que não há perigo. Sara sentia apreço por Lorde Dryden, mas naquele momento não gostou da sua intervenção. E aparentemente, a sua esposa também não. — Aquele que está ali fora é o meu filho, Marcus, e eu não vou ficar aqui em baixo, com os braços cruzados, agora que tenho a oportunidade de o abraçar novamente! — Partilho dos teus sentimentos, querida. Mas não importa o que sintamos, ainda não conhecemos aquele homem. É imprevisível, e segundo a menina Willis, está muito ressentido. Considero que o mais conveniente é que tenhamos calma, por assim dizer, antes de revelar quem somos. — Então não se fala mais nisso. — Jordan dirigiu-se ao marquês. — fica aqui com as senhoras? Procurará que não lhe aconteça nada, se alguma coisa correr mal? — Nada vai correr mal a menos que tú estragues tudo! — ralhou Sara, mas tanto Jordan como Lorde Dryden ignoraram as suas palavras. Quando Lorde Dryden concordou, Jordan saiu pela porta. — Jordan! — gritou ela nas suas costas. — Nem se atreva a machucá-lo! Ouviu? Lorde Dryden colocou-se ao lado dela e deu-lhe uma palmadinha no ombro. — Tenha calma, menina Willis, vai tudo correr bem. O seu irmão pode ser muito impulsivo, mas importa-se com o que você pensa. — Se põe a mão em cima de Gideon, estrangulo-o — proclamou ela furiosa. — Não se preocupe — interrompeu-a o marquês com um sorriso quente. — Se ele puser a mão em cima de Gideon, a minha esposa e eu seguramos o seu irmão enquanto você o estrangula. Gideon pisou o convés do Defiant com um grupo de seus homens, com uma desagradável sensação de rigidez no estômago. A abordagem tinha sido fácil demais. Tinham ordenado ao capitão do barco para se renderem, e este concordara sem dar a menor resistência. Fez um sinal a Barnaby, que entrou no barco sem que o capitão do Defiant o visse, acompanhado pelos melhores quinze homens de Gideon. Então Gideon empunhou o sabre e olhou para o capitão do barco, um homem com a pele tão curtida e enrugada com uma passa de corinto, que se apoiava no mastro principal do navio. O tipo não tinha aspecto de estar assustado. — Não temos nada de valor que possa ser do seu interesse, nem a você nem aos seus vilãos, senhor. — Não estou aqui por causa disso. Procuro o conde de Blackmore. Está a bordo? — Está a bordo — respondeu outra voz afastada do mastro principal. O desconhecido deu um passo em frente, exibindo uma pistola na mão. — eu sou o conde de Blackmore. Gideon estudou o seu inimigo com olhos enfurecidos, procurando algum sinal de covardia ou debilidade que esperava encontrar. Mas apesar do sujeito estar finamente vestido e ser mais 208


jovem do que Gideon esperava, não se parecia em nada com o tipo de nobres com os quais Gideon tinha abordado nas suas abordagens anteriores. Aquele homem destilava uma frieza e um orgulho intransigente que Gideon achou admirável. E estava apontando-lhe a pistola, e parecia determinado a disparar. — O que quer de mim? Procura ouro? — Só há uma coisa que me interessa de você: Sara — proclamou Gideon com altivez, ignorando a pistola. — Quero a minha noiva. Ou me leva até ela, ou os prendo a você e ao seu barco até que se decida a fazê-lo. — Ou eu podia disparar, para você e para os seus malditos piratas. Estão rodeados pelos meus homens. Não nos custará nada desarmá-los, se der a ordem. Gideon olhou para ele com desprezo. — Barnaby! — gritou. — Tem os homens do conde? Barnaby e os quinze piratas surgiram por trás da cabina, empurrando um grupo de marinheiros desarmados e assustados. — Sim, capitão. Quanto às suas armas, digamos que hoje realizamos uma substancial colheita para o nosso arsenal. O conde cravou Gideon com olhos beligerantes enquanto este o observava com um sorriso provocador. — Fui pirata durante muitos anos, Lorde Blackmore, demasiados para cair numa emboscada tão facilmente. — Ainda não disparei com a minha pistola — replicou o conde em voz desafiante. — Sim, claro, e os meus homens disparam com as deles. Bom, voltemos ao nosso assunto, quanto à sua irmã… — Deixe de fazer disparates, Jordan! Baixe a pistola imediatamente! — gritou uma voz familiar feminina. Sara saiu correndo pelo convés e colocou-se à frente de Gideon, encarando o conde. — se atrever a disparar, não te perdoarei! Gideon sentiu que faltava o ar nos pulmões quando viu a cabeleira ruiva e o corpo delgado. — Sara! Ela virou-se e olhou para ele, resplandecente. — Eu disse que voltaria! Eu disse! Gideon não deu a ela oportunidade de dizer mais nada. Soltou o sabre e estreitou-a entre os seus braços, apertando-a fortemente contra o seu peito. Era ela! — Sara, minha Sara — sussurrou ele enquanto mergulhava o rosto no seu cabelo. — Não tem idéia do que passei sem você. — Não mais do que eu, garanto. — Sara afastou-se um pouco para trás, e com os olhos alagados pela lágrimas observou o rosto do seu amado com uma incrível ternura. — está muito pálido e magro, querido. desculpe. Não queria te abandonar, juro, não queria. — Eu sei. — Ele deslizou a mão pela cintura e pelas costelas, incapaz de acreditar que estava realmente a tocando com as suas mãos. — é por isso que estou aqui. Ia para Inglaterra determinado a te encontrar quando avistei o barco do teu irmão. De repente, Sara ficou contrariada. — Ann te contou o que aconteceu? Oh, quando a apanhar... — Não, não a culpe por ter me contado, meu amor. De qualquer forma, já tinha tomado a decisão de ir para Inglaterra, para levar as mulheres que não queriam ficar em Atlântida. Sara ficou visivelmente emocionada. — Você... Você...? ia fazer o quê? — Tinha razão sobre muitas coisas — anunciou ele solenemente, — mas especialmente 209


sobre as mulheres. Finalmente percebi. Que espécie de paraíso é um lugar em que as pessoas não são livres? — Oh, Gideon! — exclamou ela, comovida. Ele continuou a falar com um evidente orgulho. — Sendo assim... decidi levar as mulheres para Inglaterra, bom, aquelas que quisessem voltar. — a sua voz adotou um tom mais sincero. — e a minha intenção ao chegar lá era te encontrar e te pedir para que regressasse. Por isso é que Ann me contou a verdade sobre o que aconteceu contigo e com o teu irmão. Ela queria apenas evitar que eu partisse à tua procura. Disseme que se me prendessem, todo o seu sacrifício teria sido em vão. — Devias tê-la ouvido — ralhou Sara. — por acaso não acreditavas que eu regressaria? Devia ter esperado por mim, especialmente depois de ela ter contado a verdade. — Não é que não confiasse em você. — Elevou o olhar e fixou-o no irmão de Sara. O conde já não apontava a pistola, mas olhava para ele com uns ameaçadores olhos desconfiados e enevoados. A voz de Gideon ficou mais inflexível. — Tinha medo que o desgraçado do teu irmão não te deixasse regressar. O conde cruzou os braços sobre o peito, insolentemente. — Tinha pensado nessa hipótese, Horn. — Cala-se, Jordan — ordenou Sara ao ver que Gideon se colocava à defesa. Olhou para ele e disse: — o que o meu irmão fez é absolutamente reprovável, eu sei, mas tem que o perdoar. Apesar de tudo, é meu irmão. — Não é teu irmão de sangue — resmungou Gideon, sem afastar os olhos do conde. — e realmente não merece que o considere como tal. — Conheço a Sara desde que criança, e cuidei dela muito melhor do que um maldito pirata chamado Horn o fez — espetou o conde. Avançou uns passos, com os punhos fechados, mas deteve-se ao deparar com a pistola de Barnaby, que o mirava diretamente no peito. Sara fulminou Barnaby com o olhar. — Baixa isso imediatamente, Barnaby Kent! Ou juro que nunca mais voltarei a te dirigir a palavra! Barnaby olhou para Gideon, esperando uma confirmação sobre o que devia fazer. Quando Gideon hesitou, Sara encarou-o com os olhos brilhantes. — Não vou deixar que mate o meu irmão, Gideon, embora morra de vontade de fazer. Sei que não se portou bem, mas tu também não é um santo. Não deixaría que ele te matasse por ter me sequestrado, por isso também não vou deixar que mate a ele pelo mesmo motivo. entendeu? Gideon fez um esfoço para não sorrir enquanto ela dava um esgar desafiante. Era tão teimosa, tão mandona e tão leal como se lembrava. Graças a Deus algumas coisas nunca mudavam. — Muito bem, querida. Não deixarei que Barnaby mate o teu irmão. Além disso, também não fazia sentido matar um conde, agora que decidi me retirar da pirataria, não acha? Ela sorriu aliviada, e aproximou-se mais para o beijar suavemente nos lábios. Então Gideon voltou a abraçá-la e deu-lhe um longo e apaixonado beijo, sem dar atenção aos gaguejos nervosos que Jordan lançava sem parar. Quando finalmente conseguiu separar-se da boca da sua amada, Barnaby ainda estava apontando a pistola para o conde, se bem que a cara do primeiro-tenente exibia um sorriso de orelha a orelha. — Baixe a pistola, Barnaby — ordenou Gideon jovialmente. — Parece que Sara decidiu regressar para o meu lado apesar de todas as tentativas do Lorde Blackmore. Portanto já não faz sentido dar-lhe um tiro, não acha? — Não, suponho que não. — Barnaby guardou a pistola no cinturão. 210


— Então, suponho que ninguém pensa disparar, correto? — perguntou uma nova voz. Barnaby virou-se com rapidez e exclamou: — Pode-se saber quem demônios são vocês? Gideon olhou para o lugar onde acabava de aparecer um casal e avançou até ficar ao lado de Barnaby. Os dois anciãos tinham o olhar cravado nele, e embora parecesse estranho, não pareciam estar assustados. Sara voltou a cabeça e observou-os, depois olhou para Gideon enquanto se sentia invadida por uma repentina sensação de angustia. — Gideon... vim acompanhada de alguém que... que creio que... vai querer conhecer. O casal, ricamente vestido, estudava-no de uma forma tão pormenorizada que conseguiu incomodá-lo. — Ah, sim? Sara deu um passo para trás e abanou a mão em direção ao casal de anciãos. — Gideon, te apresento a lady Dryden, Eustacia Worley. A tua mãe. Visivelmente desorientado, Gideon observou a mulher magra e com o cabelo oscuro. — A minha mãe está morta, Sara. A mulher pestanejou e avançou, insegura, mas o homem alto que estava a seu lado reteve-a. — Não, a tua mãe não está morta — disse Sara suavemente, obrigando Gideon a depositar nela toda a sua atenção. — Está viva. — Sara suspirou. — Elias Horn mentiu. A única verdade na sua historia era que foi o tutor da tua mãe e que tiveram uma breve aventura amorosa; mas o resto do que te disse era mentira. Quando ele pediu à tua mãe para fugir com ele, ela negou-se. Nunca fugiu com Elias Horn. Por sua vez se casou com o teu pai. Gideon ainda estava recuperando do choque ao saber que Elias tinha mentido, quando as últimas palavras de Sara o golpearam com a força de um furacão. — O que disse... o meu pai? — Voltou a olhar para o casal que estava de pé atrás de Barnaby, e desta vez observou o homem erguido e com aspecto imperturbável... o homem alto, com o cabelo cinzento e os olhos azuis... e o mesmo rosto de Gideon. O coração de Gideon começou a bater tão depressa que teve que se segurar ao braço de Sara para não sucumbir à insuportável sensação de desmaio que o invadiu. — Olá, filho — saudou o homem com voz firme e olhos brilhantes pelas lágrimas contidas. Gideon abanou a cabeça várias vezes, mas continuou agarrado a Sara, completamente petrificado. — Tudo isto é um erro. O meu pai está morto. A minha mãe está morta. — A tua está à sua frente — disse Sara. — Depois de conhecer Lorde Dryden, percebeu que Elias Horn não era o homem adequado para ela. Já tinha percebido a sua tendência para beber demais, e disse da forma mais diplomática que conseguiu que não queria casar com ele. — a voz de Sara endureceu. — mas parece que a resposta não agradou a Elias. Depois de ter casado com Lorde Dryden, ele continuou a enviar-lhe cartas, tentando vê-la novamente. E quando Lorde Dryden pôs fim àquela infeliz historia, Elias quis magoá-los onde mais doía: robando-lhes o filho. Mas quando te raptou, não soube o que fazer contigo. Gideon apertou os punhos enquanto recordava todas as vezes que Elias o reprovara por ser tão altivo e orgulhoso como a sua mãe. Pensou em todas as surras que lhe dera, na falta de afeto familiar que sentira em Elias desde o início. Sentiu como o sangue fervia com raiva crescente, uma raiva selvagem que precisava de uma válvula de escape. Voltou-se para os seus pais, confuso. — Se sabiam que Elias tinha me raptado, porque não me procuraram? Porquê me deixaram com aquele... aquele monstro? — Oh, meu pequeno! Nós te procuramos! — lamentou-se lady Dryden. — mas nunca 211


pensamos que ele te levasse para a América; não pensamos que tivesse dinheiro suficiente. Além disso, a guerra com a América ainda estava ativa, portanto não pensamos que se atreveria a levá-lo para lá. Lorde Dryden deu um passo em frente, com o rosto obscurecido. — Procuramos pela Irlanda, Inglaterra e Escócia; até por outros países da Europa. Cada vez que recebíamos a notícia de que tinham encontrado uma criança abandonada que coincidia com a tua descrição, nos deslocávamos até onde fosse necessário para ver se era você. Nunca pensamos que Elias te manteria preso. Porquê iria fazer? Não sabia nada sobre bebês. — Em absoluto — disse Gideon com amargura, depois olhou para a mãe. — Creio que não me abandonou porque representava um vínculo contigo. Ele sempre te amou, sabia? E talvez até chegou a acreditar que era realmente meu pai. — o seu rosto ficou mais triste. — Conhecendo o Elias, não me admira que pensasse que, me castigando, castigava a você. Sempre me disse que me parecia muito contigo, cada vez que... — Não, Gideon — interrompeu-o Sara em voz baixa ao seu lado. — Não conte sobre as surras. Os teus pais sofreram o inimaginável, pensando onde em como devia estar, não é justo que os atormentes mais. Gideon observou o Lorde e lady Dryden e percebeu que Sara tinha razão. Nunca tinha visto com o olhar tão triste e os rosto tão cheios de expectativa. Não podia culpá-los pelas ações de um homem que nunca tinha estado no seu juízo perfeito. E se soubessem de todas as barbaridades que Elias tinha feito a ele, provavelmente morreriam de tristeza. Os pais. Que sensação tão estranha... Estava diante dos pais. Como se ia habituar à ideia de ter pais reais? — Filho — disse a mãe com voz trêmula enquanto se aproximava mais dele. — passei... trinta anos à espera do momento de te abraçar. Acha... acha que pode... dar essa alegria a uma pobre anciã? As lágrimas surgiram nos olhos de Gideon enquanto contemplava o rosto da mulher que praticamente não conhecia, a mulher que tinha odiado toda a vida sem motivo nenhum. E de repente, sentiu enorme desejo de conhecer. — Mãe... — Foi tudo o que conseguiu dizer, com a voz cortada pela emoção. E a seguir, os dois mergulharam num abraço. Sara observou-os com um nó na garganta. Agora percebia que não podia ficar zangada com Jordan por ter obrigado a regressar para Inglaterra, não quando tinha desencadeado um final tão comovente. Depois foi a vez de Lorde Dryden, de abraçar o filho, com os olhos vermelhos pelas lágrimas contidas enquanto apertava o jovem entre os seus braços. Quando finalmente os pais o soltaram, Gideon tinha o aspecto de uma criança que acabava de receber a chave de uma loja de goluseimas. — Uma mãe e um pai. Custo a acreditar. — Separou-se dos pais e virou-se para Sara. — e tudo graças a você. Você os encontrou, não foi? Fez por mim. Ela baixou a cabeça timidamente. — É que... não conseguia acreditar na versão de Elias. Não fazia sentido nenhum que uma mulher abandonasse o filho de uma forma tão cruel. Gideon rodeou-a pela cintura e atraiu-a para ele. — Sempre teve mais confiança nas pessoas do que eu. Até nisso tinha razão. Se pensar em todos os anos que podia ter estado com os meus pais, se não tivesse acreditado em Elias com tanta obsessão. — segurou-a pelo queixo com um dedo. — Talvez se tivesse conhecido antes. Os olhos de Sara brilhavam de alegria quando olhou para ele e acariciou sua face. 212


— Bem, aqueles anos já passaram. o que importa agora é o futuro que temos pela frente. — Acha mesmo que temos futuro, juntos? — sussurrou ele. — casa comigo? Voltará para Atlântida? — Para Atlântida? — interrompeu-os Lorde Dryden. — mas filho, é o meu herdeiro. O teu lar é na Inglaterra. Quando Gideon se mostrou visivelmente incomodado, Sara disse num tom brincalhão: — Sim, Gideon. Parece que o Lorde Pirata é realmente um Lorde, um daqueles horríveis nobres que tanto gostava de atormentar. É o conde de Worthing. Possui um título e inúmeras terras na Inglaterra. O olhar de Gideon enevoou-se enquanto a observava; voltava a sentir sensação de desmaio a invadi-lo. — Nada disso me importa, Sara. Para mim não significa nada. — a sua voz ficou tensa. — mas sei que para você é muito importante. Por isso, se não quiser viver em Atlântida... Ela colocou um dedo nos lábios de Gideon para o silenciar. — Não seja ridículo. O meu lar é Atlântida; não conseguiria viver noutro lugar. Com os olhos radiantes de alegria, éle murmurou: — Te amo, Sara. Te amo tanto que até estou disposto a ir para Inglaterra e transformar-me no... no... — Conde de Worthing. — Sim, no conde de Worthing, se é isso que quer. Se for isso que preciso de fazer para ficar contigo. Sara pensou que ia rebentar o coração ao ouvir o incrível sacrifício que Gideon estava disposto a fazer por amor a ela. — Te amo, Gideon. E por isso não vamos para Inglaterra até se sentir pronto... se algum chegar a sentir. — Então, isso quer dizer que vou perder o meu filho tão depressa? — exclamou lady Dryden desolada. — precisamente agora que acabei de o encontrar? Apertando Sara pelo ombro, Gideon voltou-se para a mãe. — Não me perderás, mãe. Garanto. — Sorriu. — apesar de tudo, sou o capitão de um barco, pelo que suponho Sara e eu realizaremos muitas viagens futuramente a Inglaterra. — Te enforcam se te apanharem! — interveio Barnaby espantado. — Não, não ao meu filho — replicou Lorde Dryden. — Pode ter certeza que com a minha influencia e com a de Lorde Blackmore, conseguiremos o indulto para o conde de Worthing. Quando Jordan gaguejou exageradamente, todos desataram a rir. — Ouviu isto? — disse Gideon a Barnaby. — vão perdoar-me e ainda por cima me fazer conde. Que final tão atraente para o Lorde Pirata, não acha? — Sim, vencido pelo amor de uma mulher — resmungou Barnaby. — os rapazes não vão acreditar quando lhes contar. ____— Claro que vão acreditar — contra atacou Sara enquanto contemplava o seu futuro marido. Nunca tinha se sentido tão feliz. — apesar de tudo, cada um daqueles piratas foi vencido pelo amor de uma mulher. — Sim, tem razão. — murmurou Gideon enquanto a estreitava entre os seus braços para a beijar novamente. — e se quer a minha opinião, não me parece um castigo muito severo para um grupo de corsários, um grupo de rufiãos americanos. Não, não é um castigo nada severo.

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Epílogo Março de 1918 A sala de baile na mansão dos Dryden de Derbyshire estava abarrotada de pessoas curiosas, que morriam de vontade de ver o herdeiro dos marqueses que estivera ausente tanto tempo. O marquês organizara um baile de máscaras para dar as boas vindas ao filho, e agora Sara e Gideon dançavam alegremente pela sala, depois de terem sido apresentados a practicamente todos os habitantes do condado. Graças a Deus que estavam mascarados, porque a máscara proporcionou a Gideon um tema de conversa com aqueles que não conhecia. Seguras de que seria uma boa ideia, Sara e lady Dryden tinham convencido Gideon para que se vestisse de sir Walter Raleigh, o famoso pirata e cavalheiro inglês da época isabelina, para não destoar com o fato da rainha Isabel que Sara tinha escolhido. Até permitiram usar o seu brinco. Tal como lady Dryden tinha expressado: «Parece um pirata mesmo quando se veste de forma civilizada, então é melhor que se vista como um pirata». Com a sua mascara negra, a pele bronzeada, e o cabelo negro e agora curto, Sara pensou que o marido era o homem mais bonito da festa, e não lhe escapou que mais do que uma mulher o observava com fascinação. Gideon, no entanto, parecia não perceber nada. Nunca se sentira tão incomodado, nem quando pisara Inglaterra pela primeira vez, duas semanas antes. Na altura tinha apenas sentido uma enorme curiosidade pelo seu regresso, e ficara divertido diante o fato de ser agora um membro respeitado da alta sociedade à qual ele tinha feito a vida impossível durante tantos anos. Aquela noite, por sua vez, parecia muito consciente do que se esperava dele como herdeiro do marquês de Dryden. — É preciso que todas as mulheres se inclinem diante de mim como se fosse um Deus? — resmungou. — Sim é pela tua posição social. — Sara esboçou um sorriso travesso. — Nem sequer teve que brandir o sabre diante delas para conseguir. Não acha divertido? Deve ser uma nova experiencia para você. Ele fez uma careta de aborrecido. — Se não me mostra o devido respeito, querida esposa, terei que brandir o... meu sabre perante você mais tarde, quando estivermos sozinhos. — Não me diga. E acha que com isso ganhará o meu respeito? Gideon sorriu brincalhão. — Aparentemente no passado foi uma técnica muito persuasiva. Ela deu-lhe uma palmadinha carinhosa com o leque. — Senhor, você é respeitável demais para a sociedade educada. — Não me chame assim — lamentou ele ao mesmo tempo que a admoestava com um olhar asfixiado. — Não gosto que se dirijam a mim com tantos formalismos. — Pois é melhor que te vá se habituando, se tem a intenção de passar algumas temporadas na Inglaterra. — Não estaríamos aqui se não fosse por estar grávida do nosso primeiro filho. — Gideon olhou para a avultada barriga de Sara, que não se disfarçava por baixo do disfarce tão volumoso, e a sua expressão suavizou-se nesse instante. — Depois de ver como Molly dava à luz, nego-me a correr algum risco com o nosso primeiro filho. — Mas esse não é o único motivo pelo qual viemos, e sabe muito bem disso — acrescentou ela tranquilamente. — Também queria ver com os teus próprios olhos, como teria sido a tua vida 214


se Elias Horn não tivesse cruzado no teu caminho, não é verdade? Ele encolheu os ombros e dirigiu o olhar para a multidão. — Talvez. Sara abriu a boca para dizer algo mais, mas antes que o pudesse fazer, o seu meio-irmão aproximou-se dela. Também tinha sido convidado para a festa pelo marquês e pela sua esposa, apesar da evidente oposição de Gideon. Como era habito, Jordan não tivera tempo para escolher um disfarce, assim como muitos outros homens ali presentes, usava simplesmente mascara e um elegante casaco. — Como está a futura mamã? Não deve fazer muito esforço, você sabe. Não quero que o meu sobrinho nasça antes do tempo. Gideon colocou as mão na parte inferior das costas da sua esposa com um gesto protetor que ela conhecia muito bem. — Está sugerindo que sou o tipo de homem que permitiria que a sua esposa fizesse mais esforço do que o devido? — Se a carapuça te serviu... — Já chega! Não quero ouvir mais nada! — ralhou Sara enquanto Gideon ficava aborrecido e Jordan olhava para ele desafiante. — juro que quando estão juntos, agem como duas crianças que lutam por causa de um centavo. — Oh, tu vale mais do que um centavo — replicou Jordan. Antes que Gideon pudesse replicar, acrescentou: — Bom, de qualquer forma, não vim te incomodar, bonequinha. Vim apenas dizer que vou embora. — Perfeito — murmurou Gideon. Sara deu um toque com o leque antes de se virar para o irmão. — O que quer dizer? Porque é que vai embora? Pensei que tinha vindo para passar uma semana! — Oh, não vou para Londres. Vou embora da festa. Encontrei alguém que quer que eu a acompanhe aemcasa. — Aquela moça? — perguntou Sara, curiosa. — Pensei que não conhecia ninguém em Derbyshire, exceto o Lorde e lady Dryden, evidentemente. Jordan sorriu maliciosamente. — É verdade. Mas quando uma intrigante viúva me pede que a acompanhe em casa, não consigo negar. — Olha, Jordan... — avisou ela. — O que posso fazer, se as mulheres me acham tão fascinante? — Sorriu outra vez e olhou para Gideon. — pelo menos não sou da estirpe do teu marido, que tem que raptar uma mulher para estar com ela. Gideon olhou para ele beligerante. — Ouve, Blackmore, não estou com vontade de... — Cala-se, Gideon. Não vê que está tentando te provocar? — Sara fulminou o irmão com o olhar. — quanto a você, se não se porta como deve ser, regressarei a Atlântida antes que o bebê nasça, e você não o verá durante um ano. Jordan olhou para ela com receio. — Lady Dryden anseia tanto ver a carinha do recém nascido que não te permitirá que vá embora antes. — Pois eu levo a ela e ao marido conosco. Há tempo que querem voltar à ilha. Adoraram as duas semanas que passaram lá, depois que Gideon e eu casamos… Sara sabia perfeitamente que Gideon não a deixaria viajar no seu estado de gestação tão 215


avançado. Jordan franziu a testa. — Muito bem. Vou tentar me portar como deve ser. — olhou de lado para a porta, onde se encontrava a jovem vestida de negro rigoroso. A sua expressão alterou-se subitamente. — Esta noite me portarei como deve ser, desde que me deixem acompanhar aquela beldade a casa dela. — Inclinou-se para Sara e sussurrou: — Boa noite, bonequinha, não se deites muito tarde, está bem? Depois deu meia volta e caminhou elegantemente para a jovem. Quando se afastou deles o suficiente para não os poder ouvir, Gideon rebentou numa sonora gargalhada. — Pode-se saber o que é tem tanta graça? — perguntou-lhe Sara. — O teu irmão, querida; acho que se engana com as intenções «daquela beldade». E acho que rapidamente vai receber um enorme bofetão, que é o que verdadeiramente merece pela sua desfaçatez. Sara olhou para ele sem entender. Os olhos de Gideon brilhavam de diversão através dos buracos da mascara. — Apresentaram-me aquela jovem há pouco. Sabes quem é? É a filha do reitor, e não uma viúva alegre. Está de luto pela mãe, e não pelo marido. Veio acompanhada à festa por um primo, que está vestido de uma forma muito semelhante ao teu irmão, e aposto o que quiser em como ela lhe pediu que a acompanhasse edm casa porque o confundiu com o primo. — Santo céu! — exclamou Sara enquanto se emcaminhava para avisar Jordan. Mas Gideon reteve-a, agarrando-a pelo braço. — Nem penses. Merece que o humilhem um pouco, depois do que nos fez passar, não acha? Ela hesitou, observando o seu irmão enquanto este oferecia o braço à jovem e a conduzia para a porta. Rapidamente arrastou Gideon até à varanda para ver o que ia acontecer a seguir. Os seus olhos apertaram-se quando Jordan convidou a jovem para subir à carruagem dos Blackmore. A filha de um reitor? Uma doce e disciplinada moça? Sara começou a sorrir. — Talvez seja o tipo de mulher que o meu irmão precisa. — Estamos falando do mesmo homem? Do conde de Blackmore, que tem fama de ser um mulherengo? Não, não consigo imaginar o teu irmão casado com a filha de um reitor. — Pois, já provou ter muito pouca imaginação. — Sara afastou-se da varanda e olhou para ele com ternura. — Há um ano não teria imaginado que Barnaby estaria felizmente casado com uma prostituta como Queenie e à espera do seu primeiro varão. Ou que Silas, o velho malhumorado, seria capaz de gerar gêmeos e encarregar-se de Atlântida na tua ausência. Nem que estaria casado com a meia irmã de um conde. Ou imaginava? — Não. — Um sorriso desenhou-se nos lábios de Gideon. — Muito bem, ganhou. Suponho que se um pirata sedento de sangue foi capaz de encontrar uma mulher decente, o teu irmão também pode. — agarrando-a de suprpresa, apertou-a entre os seus braços e deu-lhe um beijo tão apaixonado que a deixou sem fôlego. — mas pela impressão que a filha do reitor me deu durante os poucos minutos que conversei com ela, o teu irmão vai ter que lutar arduamente para a conseguir. Enquanto um leve sorriso se desenhava nos lábios de Sara, ela elevou os braços e rodeou-o carinhosamente pelo pescoço. — Melhor ainda. É o que sempre disse: as melhores mulheres — e homens — são aquelas pelas quais vale a pena lutar.

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Fim

Nota autora

da

Apesar de Gideon e Sara serem dois personagens de ficção, a captura do Chastity é baseada numa historia real. Em 1812, o Emu, um navio que transportava quarenta e nove reclusas, foi capturado por um barco corsário americano, o Holkar. As mulheres foram libertadas na ilha de São Vicente e nunca mais se soube delas, enquanto que o Holkar regressou para a América com o seu troféu. Um pirata francês também capturou um barco de reclusas, mas libertou-o quando descubriu que não levava nenhum saque substancial a bordo. A minha historia tenta revelar da forma mais fiel possível as verdadeiras condições a bordo dos barcos de reclusas naquela época. Atlântida fica perto das ilhas de Santa Helena e Ascençao, perto da costa de África. a ilha de Ascençao manteve-se desabitada até 1815, apesar de estar na rota tão utilizada pelos barcos mercantes. Informação bibliográfica Sabrina Jeffries Pseudônimos: Deborah Martín, Deborah Nicholas, Deborah Gonzáles. Se ter tido uma vida cheia de aventuras te transforma numa escritora, então era evidente que tinha que ser o meu destino. Quando os meus pais decidiram ser missionários na Tailandia (eu tinha sete anos), toda a minha vida mudou. Antes dos dezoito, tinha provado raros manjares como cabeças de frango e de medusa, tinha sido perseguida por uma “cria” de elefante, visto inúmeras cobras e pitons, vacinada com todo o gênero de injeções contra a raiva (sim, aquelas antigas no estômago com as longas agulhas), e visitado chuvosas florestas tropicais e plantações de borracha. Mas se perguntar como é que a filha de uns missionários se tornou numa escritora de historias românticas, então deixa-me explicar. Quando está longe, num país estrangeiro e apenas com os teus incômodos irmãos por companhia, dedicas-te a ler imensamente. E quando digo “imenso” quero dizer exatamente isso. Li quase tudo — clássicos, livros para crianças, suspense, ficção cientifica, até comédias... mas, principalmente, li historias românticas. Aprendi com as historias de Cherry Ames, progredi com Grace Livingston Hill e Emilie Loring, graduei-me com Barbara Cartland, depois envolvi-me com as difíceis matérias na faculdadecoma minha primeira historia de Rosmary Rogers. Tentei deixar as historias românticas durante os seis anos de licenciatura, mas foi impossível. Woodiwiss e Lindsey gritavam por mim. Finalmente, deixei de lutar. Deixei o doutorado em literatura inglesa e rendi-me ao impulso de escrever uma história. e... aqui a têm… acabava de nascer uma escritora de histórias românticas! Agora vivo na Carolina do Norte com o meu marido e o meu filho. Escrevo livros a tempo inteiro. Graças à minha vida de aventuras tenho muito material para as minhas histórias, de maneira que tenho em mente continuar a fazer por muito, muito tempo. A vida não é extraordinária?

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