a vida das casas

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a vida das casas



a vida das casas

karin onuki kussaba orientador: luís antônio jorge fauusp trabalho final de graduação dezembro 2017

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As casas dos homens formam constelações sobre a Terra. (BACHELARD, 1957, p. 219)


agradecimentos

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ao querido orientador Luís Antônio Jorge, pelo acompanhamento dedicado, pelas conversas e referências precisas; muito desse trabalho só foi possível graças a você. a Priscila Yumi Endo e Claudia Kim Kim, pela amizade e companheirismo verdadeiro que transbordam os limites dessa graduação. a Caio Yuzo Higashino, pelo carinho e por participar de tanto o que foi essa caminhada. a Lucas Gustavo Anghinoni, pela identificação instantânea, pelo apoio, pelas aventuras vividas e por aquelas que ainda virão. a Denise Renata Ikuno Passos, pela espontaneidade, sensibilidade e riso fácil que soma a minha vida. a Eduardo Sung Do Kim, pela presença constante e imutável ao longo desses 12 anos de amizade. a Ruben Hiroaki Nakano, por ter permanecido ao meu lado mesmo nas horas mais difíceis. aos amigos de orientação Luiza Amoroso, Tomás Millan, Pedro Andrade, Naia Rozzino e Karina Vicente; foi um presente dividir esse ano e esse trabalho com vocês. aos queridos amigos do intercâmbio Camila Rocha, Clarissa Pessoa, Gabriela Rezende, Leda Marília, Vanessa Balbino, Fernando Ito, Rafael Amato, Kaio Fialho, Renato Freddi, Bruna Sato, Carolina Faustini, Paula Lobato, Lucas Terra e Vítor Marques, pelas memórias preciosas construídas ao longo desses 344 dias; em especial à


Ananda Nunes, pelas doses de café compartilhadas, por todas as conversas e pela companhia fácil. aos queridos amigos do Zoom - Rosa Clara, Mariana Poli, Ana Carolina, Bruno Spinardi, Mariane Takahashi, Kathleen Chiang, Vagner Leite, Jaqueline Silva, Pedro Borba e Ticiane Alencar pelo aprendizado diário e por tornarem o cotidiano mais leve; em especial a Guilherme Ortenblad, pelo coração enorme e postura sensível perante à profissão; obrigada por acreditarem no meu trabalho e me ajudarem constantemente a crescer. a todas as mulheres que me inspiraram na parte prática desse trabalho e àqueles que fizeram parte dessa graduação, ainda que breve ou indiretamente; também para todos os que me ofereceram ombro e conforto durante as aflições, meu sincero agradecimento. finalmente, agradeço aos meus pais, Celina Harumi Onuki Kussaba e Osvaldo Shigueru Kussaba e ao meu irmão, Gustavo Onuki Kussaba, pelo amor e apoio incondicionais - especialmente nos últimos momentos, em que tanto precisei de abrigo; obrigada por formarem a minha primeira casa no mundo. termino essa jornada de coração cheio por estar cercada de pessoas tão especiais. obrigada por tornarem tudo mais suportável.

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em memรณria de Katsumi Arima, querida vรณ Guida.


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A casa é o eu de cada um. Álvaro Siza


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índice

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i. introdução casa natal

casa genérica

casa quintal

ii.

introdução à casa

casa e lar

casa no mundo

casa e origem da arquitetura

iii.

sobre o exercício da tradução

sobre os artefatos e artesanias

definições gerais

diálogos da arquitetura

a. gênero no imaginário da casa

b. sobre a materialidade dos modelos

iv.

as três casas

a casa fenomenológica

a casa desconstrutivista

a casa existencialista

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v. representações

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vi.

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considerações finais

anexo lista de imagens bibliografia

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i. introdução

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introdução

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Esse trabalho coloca-se no mundo como uma jornada de autorreconhecimento. Marca, por um lado, o final do percurso dessa graduação e, pelo o outro, a afirmação de parte do que sou. O universo da casa tira o ser humano do estado de inércia. Desperta em nós o fascínio por evocar imediatamente emoções e memórias afetivas. Também desperta encanto pela familiaridade, identificação e preciosidade dos detalhes de seu espaço, graças à pequena escala na qual se configura e a proximidade com o nosso próprio cotidiano. Simultaneamente, instiga uma série de questionamentos quanto ao seu significado e interferência no mundo - a casa, enquanto objeto real, passa a ser campo das mais diversas disputas e o seu agrupamento compõe grande parte do espaço das cidades que habitamos. Permeando essa complexa temática, a partir de experiências pessoais, foram inicialmente eleitos alguns valores e modos de se pensar no espaço da casa. Assim, criamos as imagens das três casas projetuais: a casa existencialista, a casa fenomenológica e a casa desconstrutivista. Posteriormente, os seus aspectos são explorados nos seus respectivos modelos físicos - os objetos-casas. Através da confecção e materialidade desses artefatos, mobilizamos conceitos ora abstratos para estimular os nossos sentidos e percepções, dialogando com a origem de certas práticas manuais


na esfera doméstica e trazendo também reflexões acerca da formação dessa cultura material. Nas primeiras páginas desse trabalho discorro através de três casas da minha vida - casa natal, casa genérica e casa quintal - os espaços e vivências que me levaram até a escolha da casa como objeto de pesquisa. Julgo necessário introduzi-las para o completo entendimento da proposta de exercício.

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introdução

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casa natal


casa natal

No livro A poética do espaço, Bachelard afirma que todas as casas em que moramos durante a nossa vida são apenas reflexos da nossa casa natal. No momento em que nascemos a nossa vida já começa protegida, agasalhada pelo calor primeiro da casa. Assim, logo de início, a nossa experiência existencial estrutura-se através e mediante a arquitetura. Absorvemos os seus valores de abrigo e facilmente os encontramos pela simples evocação, mais do que se tentássemos descrever essa casa minuciosamente. A primeira casa nunca tem uma tonalidade objetiva; surge da poesia e guarda em si a sua penumbra. Torna-se ainda mais complexa porque é também uma casa habitada: os valores de intimidade e as narrativas da infância dispersam-se entre os seus seres dominantes. Ela permite que guardemos nossas lembranças iniciais e, desse modo, o calendário da nossa vida estabelece-se em sua imaginária. Para além das lembranças, a casa natal inscreve-se fisicamente em nós: é um grupo de hábitos orgânicos. Os nossos primeiros gestos ficam vivos nela para sempre. A casa natal inscreveu em nós a hierarquia das diversas funções do habitar. Somos o diagrama das funções de habitar aquela casa e todas as outras não são mais que variações de um tema fundamental. [...] A palavra hábi-

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introdução

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to é uma palavra usada demais para explicar essa ligação apaixonada de nosso corpo que não esquece a casa inolvidável. (BACHELARD, 1957, p. 207)

Mais que um protótipo de casa, a casa natal é um corpo de sonhos. Bachelard afirma que os sonhos são mais poderosos do que os pensamentos: são a união da imagem e da memória - através deles e somente em seu plano é que a infância e a casa permanecem em nós, mesmo quando já não existem mais. Para descrever essa casa, portanto, não nos interessa uma descrição minuciosa e detalhada. Para além das situações vividas é preciso também descobrir as situações sonhadas e lembrar das primitividades de refúgio imaginárias do seu espaço (encontrar nele os centros de fixação das lembranças deixadas na memória). Cada um desses redutos foi um abrigo de sonhos. E o abrigo muitas vezes particularizou o sonho. Nela aprendemos hábitos de devaneio particular. [...] Se damos a todos esses retiros sua função que foi abrigar sonhos, poderemos dizer, como eu indicava em livro anterior, que existe para cada um de nós uma casa onírica, uma casa de lembrança-sonho, [...] a cripta da casa natal. (BACHELARD, 1957, p. 207)


casa natal

É curioso pensar nas lembranças que guardo no espaço da minha casa natal. As memórias mais nítidas são das brincadeiras e dos cantos favoritos. A casa, apesar de pequena, era um grande lugar de brincar. No quarto que dividia com o meu irmão, tinha a cama mais alta da beliche: era como se lá ninguém me alcançasse. Da sala de estar, lembro-me das tardes assintindo tv e das brincadeiras de construir cabanas. Empurrávamos o sofá e estendíamos um cobertor até a janela, formando uma grande toca. Levávamos lanchinhos e lanternas para sobreviver em algum mundo imaginário. Da casa toda, acredito que o meu lugar preferido era a mesa da sala de jantar: uma base de mogno que sustentava um tampo de vidro redondo. Esse apoio central compunha-se por pequenos pilares que deixavam um espaço vazio no meio, no qual frequentemente me aninhava enquanto observava os adultos passarem. Nas tantas experiências e aprendizados durante a morada na casa natal, descobrimos essa que é a primeira essência do universo privado 1: percebemos a casa como o nosso lugar no mundo. Distintamente, ao saírmos para a rua, entendemos aquela como outra esfera do espaço - um espaço coletivo, compartilhado com outras pessoas, que não os nossos familiares. Dessa maneira, por essa casa também somos ensinados a nos comportar no

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introdução

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mundo, transicionando entre esses dois universos, ora íntimos, ora públicos. O espaço vivenciado nos primeiros anos de nossas vidas permanece conosco através dos sonhos e devaneios. O simples exercício de recordar dos corredores, dos cantos e dos cômodos da morada natal torna clara a intensidade de sua imagem inscrita em nós.

A respeito da distinção (e não oposição) entre as esferas públicas e privadas: “As casas não se deixavam conhecer em seu interior, e talvez por isto, por serem um espaço de liberdade que as famílias se davam com exclusão das demais, pudesse ser entendida problemática a forma de seu relacionamento urbano [...]. A clara distinção dada entre interior e exterior em cada uma das casas, por si só, define um certo modo de relacionar-se. [...] São bem distintos os espaços internos dos externos, uma clara demarcação os separa. Mas, a mera existência de uma demarcação qualquer, do ponto de vista mais geral da arquitetura, não seria suficiente para definição de uma impermeabilidade”. (MALACO, 2002, p. 29-30). 1


casa natal

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introdução

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casa genérica


casa genérica

Entre 2014 e 2015 tive a oportunidade de fazer intercâmbio em Londres. Foi a primeira vez que morei sozinha, não na casa dos meus pais. Esse ano me marcou profundamente, tanto em aspectos da minha vida pessoal, quanto em relação ao modo que passei a olhar para a arquitetura. Por isso, indiretamente também me trouxe ao universo desse tfg. O prédio era parte de um imenso novo conjunto de acomodação estudantil localizado no oeste da cidade. Ficava ao lado da estação North Acton da linha Central do metrô. No meu flat, morávamos eu e mais 6 brasileiras em intercâmbio; cada uma tinha seu quarto com banheiro e dividíamos a cozinha e área social. Lembro-me da sensação de entrar no meu quarto – aquele que seria minha casa pelos próximos 344 dias. Estava abafado por causa do sol que entrava pela janela e não havia ainda nenhuma marca aparente do tempo ou de que havia sido habitado em algum momento anterior. Era fim de tarde e logo percebi que a janela também se abria para oeste, como meu quarto em São Paulo. O quarto era pequeno, branco, com carpete cinza escuro. Depois do corredor da porta havia um banheiro à esquerda, mais à frente, uma escrivaninha e do lado direito, a cama. A vista da janela dava para um outro prédio residencial - as janelas eram

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introdução

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bem grandes, o que permitia vislumbres do cotidiano dos moradores vizinhos. A vista para essas tantas janelas frequentemente me fazia imaginar sobre as vidas contidas naqueles apartamentos 2. Havia também outras casas que se extendiam esparssadamente pelo horizonte, juntamente aos longos guindastes vermelhos que se esticavam ao céu. Durante os quase 12 meses que se seguiram, esse espaço genérico foi se tornando meu refúgio e meu lugar seguro no meio de uma cidade da qual eu, em muitos aspectos, não fazia parte.

“E a fachada diz também: mas eu não vos mostro tudo. Certas coisas estão lá dentro e não vos dizem respeito. É assim com o castelo, mas é também assim num apartamento dentro da cidade, Marcamos posição. Observamos”. (ZUMTHOR, 2006) 2


casa genĂŠrica

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introdução

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Londres é uma das cidades com maiores taxas de diversidade étnica do mundo. Segundo o census de 2011 do Reino Unido 3, 44,9% de sua população é composta por brancos ingleses (white british), enquanto 37% não nasceram no país (incluindo os 24,5% que nasceram fora do continente europeu). Ainda que haja uma clara soberania branca europeia, a porcentagem de outras etnias é bastante relevante na composição populacional dessa cidade. Entretanto, apesar da sua usual imagem de tolerância e abertura, há uma preocupação crescente com as descrições negativas de sua atmosfera, tal qual a falta de pertencimento, atribuídas principalmenente pelos imigrantes e recém-chegados (conflitos que têm se tornado cada vez mais profundos e urgentes após a saída do Reino Unido da União Europeia e os recentes ataques terrosistas). No capítulo Gender and the City; The Different Formations of Belonging, a geógrafa Tovi Fenster define o pertencimento através de três esferas: 1. fazer parte de (ser membro de um clube, estado, sociedade, etc), 2. ser residente ou estar conectado à e 3. ser corretamente designado para uma atividade específica. Em seguida, também relaciona o pertencimento às experiências e vivências do ser em um espaço definido.

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disponível em www.ons.gov.uk


casa genérica

In many cases belonging is also associated with past and present experiences and memories and future ties connected to a place, which grow with time. (FENSTER, 2005)

A casa, portanto, assume um papel de acolhimento distinto, que não se obtém no espaço público. A minha casa ali era um local de paz e de refúgio. A essa percepção, somou-se a minha primeira experiência de ter um canto só meu, um local em que não dependia diretamente do cotidiano de outras pessoas para me locomover e realizar minhas tarefas diárias. Desse modo, a questão da casa logo tomou um espaço enorme dentro de mim. O quarto tornou-se uma materialização temporária de um momento específico da minha vida, absorvendo as experiências e vivências durante o ano que se passou. Lembro da última visão que tive do meu quarto, vazio e branco como no primeiro dia que o encontrei. O quarto, entretanto, já não era mais o mesmo.

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introdução

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casa quintal


casa quintal

O espaço contém o tempo reprimido. O espaço serve para isso. (BACHELARD, 1957, p. 202)

No final de 2015 a minha avó faleceu; a primeira pessoa realmente próxima que perdi. Ela era do interior, Pereira Barreto (uma pequena cidade localizada quase na divisa com o Mato Grosso do Sul), mas todo ano passava o verão conosco em São Paulo para exames de rotina. Os acontecimentos deram-se próximos ao natal. Ela tinha 81 anos e em uma das consultas descobriu que precisaria fazer uma cirurgia. Foi tudo muito rápido. A cirurgia havia ocorrido bem, mas ela não resistiu ao pós-operatório. Eu e minha família, então, voltamos para a sua cidade, porque seria bom que a cerimônia fosse realizada perto dos amigos e familiares mais próximos. A ida àquela casa que tanto visitei na infância me deixou com um enorme nó na garganta; uma triste sensação de estranheza tomou conta de mim. O lugar continuava o mesmo: os objetos eram os mesmos, o cheiro era o mesmo; as memórias estavam ainda todas lá, porém a casa já não era de mais ninguém. O lugar já não era mais igual. Essa vivência, distinta de todas as outras que tive na casa durante os anos, engatilhou uma série de questionamentos e reflexões acerca dos nossos espaços vividos, que eventualmente amadureceram e orientaram a eleição do tema de trabalho.

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introdução

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A casa da minha avó sempre foi a que evocou em mim as memórias afetivas com o espaço da infância mais nítidas, aquelas que Bachelard descreve como fixações de felicidade, que nos reconfortam quando revivemos os seus valores de proteção (1957, p. 201). Imagino que essa afeição nutrida pela casa deva-se principalmente a duas razões: a primeira, porque estar lá correspondia ao período de férias de verão, o que significava que a minha família também estava reunida para as comemorações de natal e a passagem do ano. A segunda, porque adorava a experiência de “morar” em uma casa, com direito a quintal, fruta no pé e cachorro, coisas que, embora simples, não tive a oportunidade de vivenciar durante a minha infância aqui em São Paulo. As viagens para lá aos poucos se tornaram fugas da vida corrida de cidade grande. Notamos que muito do que experienciamos desses espaços durante a infância é guiado pela forma em que se estruturam e se organizam as nossas próprias famílias. é este o espaço envolvente que se torna parte da vida, da minha ou, na maioria dos casos, da vida de outras pessoas. É um lugar que as crianças podem crescer. (ZUMTHOR, 2004, p. 65)

A casa quintal conserva-se lá, imóvel, mas com a partida da minha avó, parte das lembranças fixadas naqueles comôdos ga-


casa quintal

nhou uma nova tonalidade de melancolia, distinta daquela com a qual inicialmente apresentava-se a mim. Todavia, nos momentos de devaneio ainda me encontro sentada junto a ela na casa, como se tudo permanecesse igual. Vemos logo que as imagens da casa seguem nos dois sentidos: estĂŁo em nĂłs assim como nĂłs estamos nela. (BACHELARD, 1957, p. 197)

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introdução

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Os acontecimentos e espaços apresentados anteriormente foram os principais precursores para a escolha do tema de pesquisa. Passei a refletir mais a respeito das nossas relações com os lugares: como são criadas as nossas associações emocionais através e com o espaço e como nos conectamos com o que nos rodeia. Acredito que o meu laço com a arquitetura encontra-se no seu entendimento como uma disciplina que olha para os invólucros que contém as nossas vidas e as nossas experiências. Discutir como os espaços são projetados e organizados, se são bons, agradáveis ou belos, só faz sentido quando, de início, nos propomos humildemente a percebê-los com tal intenção sensível, compreendendo certa noção de responsabilidade ao colocá-los no mundo. Na produção desse trabalho não fujo do reconhecimento prudente e necessário de que a arquitetura tem uma função em sua essência; é um objeto real, que se coloca fisicamente no espaço. Isso por sua vez torna a casa imediatamente suscetível a outras diversas complexidades e disputas. Todavia, busco com esse trabalho mergulhar no campo poético desse espaço. Penso que a casa, como miniuniverso de cada um, nos fornece pistas de como pensamos, de como olhamos para o outro e para o mundo: nossos medos, sonhos e tudo aquilo que somente o ambiente íntimo permite acontecer.


Como um dos arquétipos fundamentais da arquitetura, proporciona-nos símbolos, significados e expressões de coisas que transcendem a própria disciplina. O trabalho também se apoia nos entrelaçamentos da arquitetura com outros domínios para existir. Atento-me às delicadas e complexas relações entre o espaço e o homem e à poética da casa, distanciando-me de certa forma da luz racional e objetiva sob a qual esse tema também poderia ter sido desenvolvido. Para o exercício proposto, volto o meu olhar ao universo das relações não-verbais, ao universo do não-fixo, muitas vezes deixado de lado pela rigidez exigida no mundo academicista e intelectual. Não é um trabalho cuja intenção é de fato intervir - propondo solução a um problema -, ou projetar a partir de condições pré-concebidas. Proponho-me a um exercício singelo, porém não menos cuidadoso, de pensar no espaço doméstico e nos seus significados a partir de 3 modos distintos e ao mesmo tempo me colocar nessa criação, uma tentativa de tornar perceptível a extraordinária vida das casas e dos nossos atos cotidianos.

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ii. introdução à casa

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introdução à casa

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definições gerais

Assim como todos as coisas que nos estão mais próximas, definir a casa parece um tanto desnecessário. Ao mesmo tempo, qualquer síntese apresenta-se insuficiente frente à complexidade desse objeto. Em Qué es la casa, o arquiteto Eduardo Sacriste explica que isso se deve principalmente porque “a casa se relaciona com a vida e porque em si mesma contém um algo vital, que a distancia definitivamente de um objeto comum”. Isso é, “nossas vidas estão inevitavelmente ligadas à casa” (1968, p. 18). A palavra casa surge primitivamente no Império Romano como sinônimo à cabana, de característica essencialmente rural, em antagonismo à palavra Domus, que definia a habitação urbana. De Domus surgiu domicílio e também dominus, “senhor”, porque o dono da casa era o senhor. A casa configura-se, portanto, como o primeiro domínio do homem. Ao longo da história, a casa permitiu ao homem fixar-se sobre a terra, criando condições de segurança para a consolidação das suas relações familiares. Permitiu, desse modo, a sobrevivência da espécie humana e a sua adaptação às mais diversas e extremas


definições gerais

condições climáticas. Através da casa, estabeleceram-se dois antecedentes básicos ao assentamento humano: a comodidade e a privacidade para que as suas atividades cotidianas se realizassem. A comodidade seria entendida como um estado artificial criado pelos próprios homens, configurada por um conjunto de elementos facilitadores da vida humana. Não seria resumida à casa; a vestimenta, por exemplo, traz em si os mesmos valores de conforto da casa, amenizando a interferência do mundo externo no corpo humano. Portanto, da mesma forma que o homem necessita da roupa para se proteger, também concebe uma vestimenta para a sua vida íntima, outra para as suas atividades sociais, outra para o trabalho e assim por diante. Compreendemos, então, que a casa responde diretamente aos aspectos climáticos específicos do sítio no qual se localiza e às necessidades e modos de vida dos seus habitantes. Dessa maneira, ao relacionar-se fundamentalmente com o homem, o espaço da casa passa também a ter as suas proporções determinadas pela própria escala humana. A busca por proporções ideais do espaço dará origem, eventualmente, a definições mais passíveis de discussão, tais quais as fundamentadas por Le Corbusier em sua obra “Modulor”, por volta

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introdução à casa

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dos anos 30. Essa vertente racional da arquitetura defendia uma concepção mais intelectualizada e objetiva do espaço. Na obra de Corbusier, isso se demonstra através do estabelecimento de um conjunto de relações métricas e proporções que conceberiam uma espécie de gramática da disciplina. Desse modo, a casa seria “uma máquina de morar”, ou seja, um sistema eficiente dentro da produção industrial destinado exclusivamente ao habitar humano. A casa, entretanto, escapa dos limites dessa linha de abordagem, uma vez que não responde apenas à sua função material. O espaço doméstico é também o local em que se projetam as necessidades mais íntimas do homem. A casa nos toca em dimensões mais profundas - dimensões espirituais e afetivas. Assumindo que o espaço guia muito de como nos comportamos no mundo, a intimidade provida pela casa permite que a vida do homem ocorra em sua plenitude. Por isso a definição da casa parece, sobremodo, insatisfatória: nossas vidas associam-se profundamente ao seu espaço, que se torna, dessa maneira, subjetivo e pessoal, passando a assumir uma dimensão simbólica, sucetível às mudanças, a transitoriedade e a complexidade da existência humana.


definiçþes gerais

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introdução à casa

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casa e lar

Embora o uso das palavras casa e lar como definidoras do espaço privado por vezes se confunda, existem pontos fundamentais que as distinguem entre si. A partir do momento em que a casa é habitada, o seu espaço curiosamente começa a refletir o que se passa em sua intimidade as relações do plano físico e as trocas afetivas dos seus moradores podem, dessa maneira, fazer da casa um lar. Segundo Jorge Marão Carnielo Miguel em seu artigo Casa e lar: a essência da arquitetura, a palavra lar deriva-se da palavra lareira. Na cabana primitiva, o fogo era elemento fundamental, pois reunia e aquecia todos os moradores ao seu redor. A imagem orgânica desse elemento que cresce, move-se e anima-se, é geralmente associada também ao espírito humano e representa, seguindo a mesma lógica, a alma da casa. O lar, portanto, corresponde a uma condição complexa e coletiva da casa, que integra memórias, experiências, ritos, sonhos e tempos, refletindo e envolvendo o modo de vida de seus habitantes.


casa e lar

Define-se a casa como o objeto construído, o invólucro vazio, enquanto o lar, o conjunto das complexas relações humanas e vivências experienciadas em seu espaço. Acredito que, de modo geral, durante a graduação somos mais direcionados a pensar no projeto de casas e não de lares. A prática da arquitetura muitas vezes se distancia do emocional, da instabilidade e ambiguidade dos aspectos do lar e das necessidades de quem de fato habita o espaço. Preocupamo-nos mais com a hieraquia dos espaços, com estrutura, estética ou eficiência. No prólogo Habitar no espaço e no tempo, o arquiteto finlandês Juhani Pallasma critica a perda de empatia e distanciamento dos arquitetos pelo próprio habitante, momento em que a arquitetura passa a ser majoritariamente motivada por propósitos autorais e autorreferenciais. O lar é uma expressão da individualidade do morador e proporciona-lhe bases para que se apoie psiquicamente e emocionalmente em seu amplo terreno. Também media as complexas relações entre a vida pessoal, íntima, e a vida pública.

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introdução à casa

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O espaço pessoal expressa a personalidade para um mundo exterior, mas, de modo igualmente importante, reforça a imagem que o morador tem de si mesmo e materializa sua ordem do mundo. (PALLASMA, 1994, p. 21)

As delimitações e opacidade da vida íntima podem variar de acordo com as diferentes culturas e modos de vida. Todavia, a intimidade do lar permanece quase sagrada para nós. Notamos essa profunda necessidade da instância íntima pelo homem até mesmo em situações extremas ou de precariedade, nas quais a construção de um espaço privado reproduz certa noção de “normalidade”. Pallasma (ibid, p. 29) lista os elementos mentais ou simbólicos que julga necessários para uma concepção completa do lar: 1. Elementos fundamentados em um nível biocultural profundo e inconsciente (entrada, cobertura, lareira) 2. Elementos relacionados com a vida pessoal do habitante (objetos de valor sentimental, pertences, objetos herdados da família) 3. Símbolos sociais com objetivo de passar certa imagem ou mensagem às pessoas de fora (símbolos de riqueza, educação, identidade social, etc)


casa e lar

43 sistema de divisórias concebido a partir de tubos de papelão em abrigos emergenciais, Shigeru Ban, Japão, 2011

cena do filme Cronicamente Inviável de Sérgio Bianchi, 2000 (na cena, moradora de rua coloca o filho para dormir no sofá, que representa a noção de intimidade provida pela casa)


introdução à casa

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casa no mundo

Até o momento, tratamos principalmente dos aspectos interiores à casa. Sabemos que a casa é um objeto real, um invólucro e abrigo para a vida humana. Pode também assumir o valor de lar, dependendo da dinâmica das atividades e das relações afetivas dos habitantes com o seu espaço. Entretanto, a casa é ainda resultado de um conjunto complexo de fatores sociais, políticos, econômicos e técnicos, que irão influenciar diretamente na configuração do seu espaço. Isto é, não responde apenas a um modo específico de vida - seja de seus habitantes, de uma comunidade ou de uma região -, mas também se coloca como objeto sensível às mudanças históricas, tais quais avanços tecnológicos, alterações nos arranjos sociais, contexto econômico e político, dentre outras. Pode-se observar que técnicas construtivas mais complicadas e artesanais foram sendo abandonadas e substituídas por outras ao longo do tempo, mais simples e baratas. A indústria e a prefabricação permitiram a construção de moradias em larga escala, reduzindo o tempo de produção e custos. Entretanto, para sustentar o modelo de produção em série, foram deixadas de lado questões como a identidade e personalização da arquitetura, adotando-se


casa no mundo

padrões técnicos e até mesmo valores que poderiam ser considerados “universais”. Tais princípios defendidos em certo momento pelo modernismo extendiam-se à maior parte da produção arquitetônica ocidental no pós-guerra. Pouco a pouco o espaço das cidades conformava-se majoritariamente por uma arquitetura fria, carente de emoção, estéril e anônima, extremamente funcional. Embora participante da primeira geração de arquitetos argentinos modernos, Sacriste passa, ao longo de sua prática, a discursar a respeito de uma nova reflexão para a produção habitacional que vinha sendo produzida, focando em aspectos mais locais da arquitetura. Defendia, nesse sentido, o papel social do arquiteto, valorizando e compartilhando de seu interesse pela arquitetura popular e vernacular argentina. Em Que és la casa, observa que, como resultado do pensamento extremamente pragmático e funcional na conformação do espaço das cidades modernas, nos locais desprovidos de interesse econômico, a produção das habitações seguiria um padrão sistemático. As moradias tem dimensões e materialidade parecidas, utilizando-se geralmente da mesma técnica construtiva; uma arquitetura anônima, na qual a casa diz muito pouco ou nada de quem a habita. Nota-se que a crítica não está diretamente direcionada ao modernismo ou aos seus pressupostos, mas a sua generalizada utilização (e manipulação) como instrumento para viabilizar soluções habitacionais de baixo custo nas periferias - so-

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introdução à casa

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luções que, em sua grande maioria, serviram fundamentalmente ao favorecimento das classes dominantes. Apesar de esse tipo de pensamento ter tido o seu ápice durante o período moderno, os seus princípios ainda ressoam e persistem no presente. O artista e arquiteto austríaco Friedensreich Hundertwasser critica em seus manifestos os ecos dessa perversa lógica na contemporaneidade: Las viviendas no deben abandonarse a la mafia de la arquitectura internacional, que está motivada por una política cultural y que hace el juego al esteticismo nihilista, frente a las personas. [...] El sufrimiento obligado de los habitantes de estas casas dictatoriales forma la base de la miseria general, física y espiritual que sufre nuestra civilización occidental, el estado, la naturaleza y nosotros mismos. El arquitecto y el urbanista son hoy, más que nunca, débiles marionetas en manos de clientes sin escrúpulos. Son criados y verdugos de los poderes fácticos de la producción en masa, de la mafia del dinero y de la política de poder. (HUNDERTWASSER, 1987)

Todavia, cabe ressaltar que a ideia defendida não implica a concepção de cada casa em um estilo próprio ou que essa se


casa no mundo

destaque individualmente de todo o resto - o que muitas vezes é produzido pelas tendências autorais na prática da arquitetura. Todavia, é interessante que as casas possuam identidade e que sejam diversas 4, tais quais as pessoas as habitam, mas de forma sutil e coesa. Defende-se que a boa arquitetura - aquela que responde ao específico e individual, que oferece um espaço digno para se viver e que se insere responsavelmente no espaço - esteja disponível para todos.

Sobre a diferenciação e igualdade entre as casas: “As casas aproximam-se, relacionam-se ao modo da contigüidade, sem que por isso os espaços individuais se confundam: permanecem, pelo contrário, em sua perfeita identidade no interior do conjunto que constituem. Umas se diferenciam bem das outras, mas a diferença específica de cada uma não se mostra exteriormente. Diferem entre si os invólucros exteriores das casas como diferem também os seus conteúdos. Todavia a diferença mostrada exteriormente não revela as casas em sua distinção. [...] Por isso, por esta diferenciação exterior, podemos inferir que os espaços por trás delas também serão diferentes, que não poderão ser iguais; mas não podemos inferir mais do que isso, não podemos dizer qual seja a específica constituição de cada uma das casas em seu interior. Mostram-se assim, as casas como distintas sem que precisem declarar a específica diferença de que se trata ”. (MALACO, 2002, p. 34-35). 4

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introdução à casa

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casa e origem da arquitetura

O homem nômade da antiguidade alimentava-se essencialmente através da caça, pesca e colheita de frutos, buscando regúgio eventual e provisório da ferocidade da natureza. Motivado pela caça, percebeu a necessidade de se estabelecer no mesmo local por um maior tempo, construindo para si abrigos mais permanentes. Com o desenvolvimento da agricultura, o homem finalmente cria raízes com a terra, tornando-se sedentário. Estabelece-se uma nova relação vital do homem com a natureza: antes hostil, a terra converte-se em mãe provedora. Sacriste define tal episódio como “momento transcedente da humanidade”, que impulsionará o homem à consquista do espaço. Tal mudança no modelo de vida criará as condições necessárias para o surgimento da casa. Dessa maneira, a casa aparece como um dos arquétipos 5 fundamentais da arquitetura. É retratada como um dos primeiros instrumentos sociais da humanidade e, tal qual a linguagem, como um dos fatores geradores da civilização. Por “arquétipo” utiliza-se da definição jungiana; não como noção de significado específico, mas como a tendência de uma imagem a despertar certas emoções. 5


casa e origem da arquitetura

A ideia de uma casa inicial e a busca por sua origem estão presentes no pensamento dos arquitetos de todos os tempos - desde os primeiros tratados e teorias da aquitetura até os escritos modernos. Essa procura, entretanto, apenas encontrou vestígios de um mundo idealizado e imaginado pelos homens. Atribuiu-se à primeira casa características de ordem natural, racional e até mesmo divina. De certo modo, seriam essas tentativas de domesticar o espaço natural através do emprego de símbolos. No artigo Casa e lar: a essência da arquitetura, Carnielo Miguel faz também uma pequena linha do tempo a respeito dos estudiosos que em certo momento discorreram acerca do assunto em seus escritos. Vitruvio foi pioneiro ao investigar as origens da casa. Esse abrigo chamou de “cabana primitiva” no seu tratado De architectura libre decem (em português: Dez Livros sobre a Arquitetura), escrito no século I a.C. Nesse tratado, Vitruvio inaugura a linha mestra que relaciona o descobrimento do fogo à origem da sociedade humana - elemento que então permitiria o início do desenvolvimento da atividade construtora do homem. Para Vitruvio a cabana primitiva e o fogo revelam-se inseparáveis. É o fogo o elemento protoarquitetônico, sendo a partir dele que a arquitetura nasce como mito, rito e consciência. (MIGUEL, 2002)

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introdução à casa

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A partir do Renascimento, a retomada da obra vitruviana é apenas um dos pontos de partida que embasará o desejo do homem por encontrar as definições e gênese da arquitetura. A imagem da cabana primitiva apresenta-se nessa busca não como ente ou objeto, mas como um repositório de segredos e princípios da Natureza que nos foram concebidos de modo divino. Outra vertente, na qual os escritos de Vitruvio não seriam referência, mais tarde defenderia como princípio básico da arquitetura um modelo antropomórfico, isto é, aquele em que o homem elege-se como escala em seu espaço.

A questão colocada é se existia ou não, para a arquitetura, regras que pudessem ser deduzidas da própria natureza e que, em conseqüência, seria obrigação complementar para os novos arquitetos da Razão. O aceite de semelhante hipótese implica, ao mesmo tempo, por parte dos teóricos ilustrados da arquitetura, uma revisão da história da mesma em função de maior ou menor aproximação a tais supostas regras naturais. Neste sentido haverá uma força renovada no século das Luzes, um mito bem mais antigo que a própria Ilustração: o da cabana primitiva, o primeiro edifício aonde seriam encontradas e sintetizadas as regras naturais da arquitetura. (ibid, 2002)


casa e origem da arquitetura

Ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX que se seguiram, a maioria dos tratadistas - dentre eles Leon Batista Alberti, Filarete, Andrea Palladio, Jacques-François Blondel, Jean-Nicolas-Louis Durand e Viollet-Le-Duc - desenvolveram o mito da cabana primitiva ao discorrerem sobre as origens da arquitetura. Já no século XX, o século racional e funcionalista, outros arquitetos também se utilizam da imagem do abrigo inicial como referência às tais discussões. Carnielo Miguel cita Oscar Niemeyer e seu croqui intitulado O abrigo, no qual a simples arquitetura representada remete à noção da cabana primitiva. Frank Lloyd Wright utiliza-se do mito da cabana primitiva - de uma arquitetura derivada de um certo simbolismo cósmico e universal -, como referência para a utopia de Broadacre City. Le Corbusier, encontra nas casas a mesma essência dos templos: “Olhem um desenho de tal cabana num livro de arqueologia, ali tem o plano de uma casa e o plano de um templo. É exatamente a mesma atitude que encontraram numa casa pompeyana ou num templo de Luxor. Não existe homem primitivo, há unicamente meios primitivos”. Esse homem ancestral via na geometria e nos traçados regulares um valor imprescindível para a arquitetura. o interesse do homem pelo espaço tem raízes existenciais: deriva de uma necessidade de adquirir relações vitais

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introdução à casa

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com o ambiente que o rodeia para aportar sentido e ordem a um mundo de acontecimentos e ações. (NORBERGSCHULZ, 1975, p. 48, apud CARSALADE, 2007, p. 25)

O mito da cabana primitiva então, explicitaria de alguma maneira a gênese de valores da arquitetura, fossem eles uma sintaxe construtiva, um paradigma para regeneração de sua essência divina, ou testemunho de sua consoância à Razão.


casa e origem da arquitetura

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imagem de Adão abrigando se da chuva, Filarete, Trattato d’architetura, séc. XV


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iii. diรกlogos da arquitetura

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sobre o exercício da tradução

Como o trabalho propõe-se a traduzir certos valores arquitetônicos em objetos físicos, faz-se necessário pincelar algumas questões a respeito do exercício de tradução. Por tratar de aspectos complexos da relação do homem com o espaço, muitas das referências bibliográficas que fundamentam o trabalho têm origem filosófica, tais quais os escritos de Heidegger e Bachelard que repetidamente aparecem ao longo dessa pesquisa. A utilização dessas referências (e tantas outras que se encontram fora do domínio da arquitetura) para a produção do trabalho não tem como objetivo o aprofundamento em tais campos de estudo, muito menos a sua aplicação direta, mas apresentam-se como repositórios de elementos passíveis da extração de valores. Toda e qualquer teoria já nasce a partir de analogias e associações, sendo elas uma forma de organização natural do pensamento humano. Heidegger em Construir, habitar, pensar, por exemplo, discorre que o próprio ato de teorizar é entendido em termos arquitetônicos. O uso de expressões como “estrutura”, “fundações” ou “solidez” e a forma com que se constroem argumentos na filoso-


sobre o exercício da tradução

fia para o estudo do ser-no-mundo a partir de conceitos arquitetônicos demonstram que a arquitetura legitimiza certas práticas e representações filosóficas. A discussão, por sua vez, dá-se em ambas as direções, uma vez que a própria arquitetura já nasce, da mesma maneira, procurando sentido em outros campos. Reconhecendo a arquitetura como um fenômeno da linguagem, o exercício proposto não possui um caráter arbitrário. Por arbitrário, deve-se entender que qualquer metáfora, analogia ou tradução orienta um caminho específico; nunca é inocente: tensiona, rearranja, nutre e enriquece a própria língua. Em sua operação, o tradutor transmite, mas também transforma. Por isso, ao me propor a criar três imagens das casas e seus respectivos artefatos, ou seja, transferir certos valores e relações entre diferentes domínios, não apresento um exercício de redução de uma coisa à outra. O exercício parte da seleção de propriedades como um modelo de entendimento. Seguindo essa lógica, é necessário reconhecer as suas limitações frente à totalidade e complexidade de projetos que abraçam o homem. Essa estratégia é sempre seletiva, as suas associações são sempre possíveis ou plausíveis e sempre constroem narrativas. Uma experiência arquitetônica autêntica e profunda não pode partir da intelectualização de um conceito ou da produção de objetos meramente estéticos e

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diálogos da arquitetura

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visuais, mas devem ser um eco de nossos primeiros e mais puros contatos com o mundo. Embora à primeira vista a arquitetura constitua-se em conhecimentos bastante objetivos e concretos, reconhecemos a sua alma formada por coisas intangíveis, capazes de se comunicar com a nossa própria alma e mobilizá-la de maneira igualmente ou até mais profunda. A criação das imagens poéticas do espaço não depende de um saber antecedente, dá-se antes do pensamento. Desse modo, essas imagens não projetam significados específicos ao mundo, mas evocarão em nós certas reações e emoções. Para determinar a sua alma é necessário senti-las em repercurssão de imediato em nós mesmos. A imagem poética reforça a nossa própria experiência no mundo. Todo os artefatos construídos são carregados de informações sensoriais e emocionais de natureza complexa. Configuram-se em experiências holísticas caracterizadas por informações dispersas como massa, textura, cheiro, valores imaginados e lembranças, que se misturam e são, de alguma maneira, assimiladas por nós através das diversas associações que engatilham. Assim, ao buscar nos artefatos uma materialização das imagens das casas criadas, o exercício define-se por um caráter essencialmente poético, fundamentando-se na liberdade que tal fenômeno lhe permite.


sobre o exercício da tradução

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diálogos da arquitetura

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sobre os artefatos e artesanias a. gênero no imaginário da casa Tratamos brevemente sobre a criação de um imaginário doméstico em casa e lar. A casa configura-se, portanto, em um complexo de relações socio-espaciais e sensoriais, um espaço que segundo Bachelard apresenta-se como “um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade” (1957, p. 208). A ideia do conforto, de um local estável e refúgio na construção desse imaginário é, entretanto, orientada primordialmente por questões de gênero. Logo no primeiro capítulo, Bachelard afirma que para tratar da plenitude do ser da casa, é necessário voltar a falar sobre a maternidade da casa (ibid., p. 202). Mais tarde, ao discorrer sobre a preciosidade dos cuidados interiores ao seu espaço, conclui: “pode-se dizer que tomamos consciência de uma casa construída por mulheres. Os homens não sabem construir as casas senão a partir do exterior.” (ibid., p. 241) No livro Home, Blunt e Downling (2006, p. 208) discorrem sobre as noções dualísticas que estruturaram o pensamento e compreensão da casa ao longo do tempo, ilustradas na tabela ao lado:


sobre os artefatos e artesanias

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compreensão dualística da casa

casa

trabalho

feminino

masculino

privado

público

doméstico

civil

emoções

racionalidade

reprodução

produção

tradição

modernidade

local

global

estático

mudança


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Esse pensamento binário seria, então, caracterizado pela valorização de um lado em detrimento do outro. O público, o trabalho e a cidadania são geralmente enfatizados como superiores ao privado, à casa e ao doméstico. Esse tipo de pensamento desconsidera a porosidade e interdependência dessas categorizações, reforçando a reprodução de determinados papéis da mulher na sociedade patriarcal. O imaginário do lar é comumente associado a uma figura feminina 6 ou materna, responsável por nutrir a esfera doméstica (a prática do homemaking). As mulheres por muito tempo foram exclusivamente criadas para cuidar do lar, realizar as tarefas domésticas cotidianas e zelar pela família; do outro lado, o homem seria o provedor da casa. Assim, a ideia de lar perfeito nasce também a partir de uma estrutura familiar específica, composta por um casal heterossexual e filhos. Por isso, o imaginário da casa pensado através das noções de refúgio e local de paz foi predominantemente construído sob a ótica masculina: o homem, cansado após um longo dia de trabalho, encontrava na casa o seu descanso. A mulher, por outro lado, via-se confinada nesse espaço diariamente.

Héstia, na mitologia grega (Vesta, a equivalente romana), é a deusa virgem do lar e da vida doméstica; representa o fogo da lareira. 6


sobre os artefatos e artesanias

As she made the beds, shopped for groceries, matched slipcover material, ate the peanut butter sandwiches with her children, chauffeured Cub Scouts and Brownies, laid beside her husband at night, she was afraid to ask even of herself the silent question - ‘Is this all?’ (SCHNEIR, 1996, p. 50, apud BLUNT e DOWNLING, 2006, p. 15)

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diálogos da arquitetura

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Nesse sentido, a criação das artesanias propostas também dialoga com as questões expostas anteriormente. No segundo volume de O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir narra o tédio das mulheres dentro da casa e o surgimento dos trabalhos femininos (artesanias) como forma de dissimular a ociosidade.

Com a agulha ou o crochê, a mulher tece tristemente o próprio vazio dos seus dias. A mulher desocupada não tenta, entregando-se a isso, adquirir um domínio sobre o mundo, busca apenas desentediar-se. (BEAUVOIR, 1967, p. 359)


sobre os artefatos e artesanias

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Foi a mulher que fabricou os primeiros recipientes, teceu cestas e deu forma aos primeiros vasos de barro. Na forma, o lar é criação sua... era o lar o ninho coletivo para o cuidado e nutrição dos filhos. (MUNFORD, 1982, apud MIGUEL, 2002)


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Não desejo que o tema da casa apresente-se aqui de maneira negativa. Entretanto, acredito que como mulher, minha visão é influenciada por aspectos específicos da experiência feminina do espaço doméstico. Ao longo da história, a nossa existência em seu âmbito lidou com condições que, de maneira geral, não fizeram parte da vivência do homem nesse espaço. A espera e a ausência, por exemplo, frequentemente fazem parte do imaginário da mulher na casa 7. Dessas condições, aprendemos a expressar muito do que somos e sentimos através de atos criadores. Durante a minha vida, sempre tive uma grande familiaridade e afeição a trabalhos manuais. Quando lembro da minha avó Katsumi, imagino-a sentada no sofá tricotando e até hoje guardo uma coleção de cachecóis que me foram presenteados ao longo dos anos. Minha mãe sempre gostou de pintar e de tudo o que pudesse ser feito com as mãos; com ela, fui incentivada a dar os primeiros rabiscos e a criar. Minha vizinha Cristina, também cozinheira de mão cheia, me ensinou os primeiros pontos de tricô.

Na música Cotidiano de Chico Buarque (1971), por exemplo, enquanto o homem passa o dia fora, o cotidiano da mulher resume-se a esperar : Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar | E essas coisas que diz toda mulher | Diz que está me esperando pro jantar | E me beija com a boca de café | [...] Seis da tarde como era de se esperar | Ela pega e me espera no portão [...] 7


sobre os artefatos e artesanias

Hoje, percebo essas e outras figuras femininas que me inspiraram ou me ensinaram de alguma maneira a me interessar pelo fazer manual. Apesar de vivenciar a persistência histórica de um passado dominativo e excludente para as mulheres, reconhecendo também que ainda há muito para ser conquistado por nós, acredito que o futuro seja mais otimista, nesse sentido. A minha própria experiência nesse espaço, ainda que imperfeita (e provida de certos privilégios), já apresenta muitos avanços em relação à realidade doméstica vivida pelas mulheres em 1949, ano em que o primeiro volume de o Segundo Sexo originalmente foi publicado por Beauvoir. Por isso, apresento nesse trabalho a vontade de produzir esses artefatos como também uma maneira de nos retratar no universo da casa partindo de uma ótica mais ativa, criadora e livre, colocando-me por inteiro nesse exercício.

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b. sobre a materialidade dos modelos Optando por trabalhar com a confecção de modelos para as casas, busco também reconhecer o papel de artesão do arquiteto no mundo. Acredito que o tensionamento simultâneo criado entre o material e o criador está profundamente ligado à essência desse trabalho. Isso é, não apenas o material responde imediatamente ao fazer, mas ele próprio é recurso que mobilizará e estimulará o sentido do homem. Dessa maneira, ativamos também a nossa própria memória sobre as coisas, processo que Zumthor acredita ser fundamental no discurso, na prática e na percepção da própria arquitetura. And building the atmosphere, the one that we want, is even more difficult, [laughter] I think that this combination of ideas, moods and emotions with the physical properties of materials, their weight, warmth, hardness, softness, humidity, is very important. It is obvious that, when you take two materials and put them together, you create something between them, some energy. You put them close to each other and see that there is an approximation point at which they begin to interact. Beforehand, they are indifferent, then they connect, but tension arises between the indifference and the connection.


sobre os artefatos e artesanias

The energy, tension and vibrations, the harmony between materials - this is what architecture is to me. (ZUMTHOR, 2004, p. 25)

No artigo Corpoescultura: o olhar, a metáfora, o abismo, Vera Pallamin faz uma interessante análise e reflexão sobre o trabalho corpoescultural da artista francesa Louise Bourgeois. Embora aqui tenha optado por me distanciar da questão artística na confecção dos artefatos, aproprio-me de certas considerações feitas por Pallamin a partir de conceitos enunciados anteriormente por Merleau-Ponty a respeito da experiência holística promovida pelos objetos e pelo espaço ao ser: Nesse terreno, que é aquele do sensível, não se está no domínio de uma “pura exterioridade”. Pelo contrário, há aí uma interioridade que percorre os corpos, as coisas, as significações, entrelaçando-os, de modo que um passe pelos poros do outro incessantemente, perfazendo o que filosoficamente foi denominado como “carne do mundo”. Nesta tecitura, uma escultura é coisa, mas é também tempo, passagem, por um lado é concretude, por outro brotamento: um escultor não cessa de “dar forma a”, de “espacializar”. (PALLAMIN, 2006)

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sobre os artefatos e artesanias

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modelo para restaurante de verĂŁo, Peter Zumthor, 2001


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iv. as trĂŞs casas

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as três casas

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Na abertura introdutória desse caderno tratamos das três casas biográficas que nortearam a eleição do tema de pesquisa - casa natal, casa genérica e casa quintal. Tal momento, de cunho intimista, é embasado pelas minhas próprias vivências e experiências nos espaços selecionados. A partir desse repertório de imagens construído, introduzo algumas das inquietações que me acompanharam ao longo dos últimos anos, especialmente agora em que me deparo com o final desse ciclo acadêmico. No capítulo atual, trataremos das três casas que orientarão a proposta de exercício prático, sendo elas a casa existencialista, a casa fenomenológica e a casa desconstrutivista. Assim como hoje me lanço ao mundo na condição daquela que pensa o espaço, reconheço também que muito da prática da arquitetura vai de encontro à interpretação de demandas externas a nós mesmos. Por isso, nesse momento em que opto por operar no campo da tradução, tal qual apresentado no capítulo anterior, volto o meu olhar não mais as minhas casas, mas para fora, às casas imaginadas. Cabe ressaltar que nesse exercício não aponto propriamente ao objeto ou a uma arquitetura específica, apegando-me a determinada formalidade ou tipologia enunciada, mas a três experiências e percepções distintas do ser no espaço. Esse exercício, portanto, não deve ser percebido através de lentes objetivas e intelectuali-


zadas, mas se deve permitir (naquele primeiro e puro instante de contato entre o ser e as coisas) que as imagens das casas criadas repercutam dentro de nós. Tais imagens, bem como os artefatos concebidos, operam no campo poético e subjetivo do fazer arquitetônico, em uma tentativa de nos sensibilizar frente a multidimensionalidade das nossas relações com o espaço que nos toca.

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a casa existencialista


as três casas

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A casa existencialista olha para as primeiras perguntas relativas ao sentido do ser e coloca-se como objeto essencial e primário para a sua existência, sustentando a função do habitar. É em seu espaço que o homem alcança a sua plenitude e o autêntico habitar. Habitar es la manera como los mortales están en la tierra (HEIDEGGER, 1951, apud ÁBALOS, 2013, p. 46)

Entretanto, esse habitar não é um ato simples: o pensamento existencial está profundamente ligado ao tema metafórico da casa. Segundo Heidegger, somos seres pré-intelectuais: a interpretação do ser parte do fato de que, primeiramente, somos. Logo, a condição humana de habitar o mundo - de ser-no-mundo -, coloca-se como condição anterior a qualquer arquitetura. Essa, por sua vez, surge como resposta à nossa intenção inicial de habitar o espaço. Habitar é bem mais um demorar-se junto às coisas. Enquanto resguardo, o habitar preserva a quadratura naquilo junto a que os mortais se demoram: nas coisas. (HEIDEGGER, 1951)

Os hábitos cotidianos, os movimentos dos corpos de seus habitantes e os rituais dão à casa a sua vitalidade fundamental. Esse vazio habitado é o percurso introspectivo em direção ao conhecimento


a casa existencialista

de si próprio, à autêntica existência, um espaço de plenitude do ser. Heidegger em certo momento afirma que “o próprio martelar é que descobre o manuseio específico do martelo“ (2006, apud. FERREIRA, 2007, p.4). Ou seja, é em e através do martelar que o martelo é entendido pelo que é e não pela simples soma de suas peças. Assim também, somente pelo habitar humano faz-se a ligação entre o cheio e o vazio: através dele o espaço da casa - o seu “nada” - tem de fato uma função. Essa relação entre o cheio e o vazio no espaço doméstico é explorada nas obras da inglesa Rachel Whiteread. Em sua obra House (1993), utilizando-se da própria casa como forma para o concreto, a artista explora a materialização do ausente, do vazio. A ausência torna-se, desse modo, presente; um fantasma e uma mera impressão do que fora o seu espaço original. Esses volumes, ainda que apresentem alguma espacialidade, não nos fornecem pistas suficientes que induzam a qualquer narrativa sobre o espaço ou o habitar que estava outrora contido nele. Nossa percepção e relação com o espaço é corrompida. Através dessa inversão, todas as camadas das sobreposições de vivências são retiradas e o espaço torna-se uma massa uniforme. Esse espaço doméstico e íntimo do lar que se associa habitualmente à mulher, como abordado no capítulo anterior, é externalizado e re-contextualizado, posicionando-se na esfera política e pública.

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as trĂŞs casas

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a casa existencialista

House, Rachel Whiteread, Londres, 1993

Imbued with a sense of melancholy and loss, the work traces the presence of absence. The issue of gender can be perceived in House in the fact that the interior, a space traditionally associated with women, is now externalised. (University of Sussex Arts Society Journal, 2012)

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as três casas

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A casa existencialista também toma uma posição defensiva frente ao mundo: a natureza, o público e o externo aparecem como elementos agressivos. O seu espaço traz a noção primitiva de abrigo que protege o ser de uma exterioridade nociva; esse espaço protetor também é refúgio frente a um universo externo mundano, artificial e superficial e aos agentes violentos da natureza. Por isso, muitas vezes a primeira imagem da casa evoca as noções dos abrigos construídos pelos animais - colméias, formigueiros, tocas. No romance A vida modo de usar, Georges Perec escreve sobre a vida dos moradores de um edifício pariesiense na década de 1970. A trama desenrola-se sem uma ordem cronológica clara, sugerindo a simultaneidade ou até mesmo a desconexão entre os acontecimentos narrados. Perec constrói a imagem do edifício, do seu interior e do seu “habitar” através de uma descrição requintada e precisa de certos fragmentos e das coisas que enchem o seu espaço. Em determinado momento, uma das personagens, Emilio Grifalconi, um restaurador de móveis italiano, descobrira no sótão de um palácio uma mesa de tampo oval, cuja base encontrava-se bastante fragilizada, internamente corroída pela ação dos cupins. Como a base já não aguentava mais o peso do tampo, Grifalconi teve a ideia de injetar uma mistura líquida de chumbo e compostos químicos no interior dos canais, agindo como reforço para a estrutura depois que secasse:


a casa existencialista

A operação deu resultado mas

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logo deixou ver que, mesmo assim consolidado, o pé continuava muito frágil e Grifalconi teve de se resignar a substituí-lo inteiramente. Foi então que lhe ocorreu a ideia de dissolver a madeira que restara, fazendo aparecer assim essa magnífica arborescência, a impressão exata do que fora a vida do inseto nesse pedaço de madeira, superposição imóvel, mineral, de todos os movimentos que haviam construído sua existência cega, essa obstinação única, esse itinerário opiniático, essa materialzação fiel de tudo aquilo que comera e digerira, arrancando à compacidade do mundo à sua volta os imperceptíveis elementos necessários à sua sobrevivência, imagem explícita, visível [...] (PEREC, 1978, p. 157)

formigueiro preenchido com mistura líquida de gesso


as três casas

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Assim como nas obras de Whiteread, Perec explora a materialização do ausente, o positivo do que precisamente fora a vida dos cupins contida nos canais. O vazio habitado, que tomamos aqui como a imagem da casa existencialista, confunde-se com a própria experiência do viver: vivemos, na tentativa de preencher o oco ilimitado (e, por vezes, insaciável) de nós mesmos.


a casa existencialista

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a casa existencialista

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a casa fenomenolรณgica


as três casas

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Chamamos a casa fenomenológica de a casa para mim. Desse modo, não tratamos propriamente do objeto casa em si, mas do fenômeno “para mim”. Essa casa é um corpo de imagens, o espaço percebido. Como explica Bachelard, a abordagem fenomenológica do espaço compreende a dimensão pré-científica da arquitetura, isso é, não nos é necessário um saber anterior ou quaisquer pré-condições para experienciá-la. Interessa-nos o momento em que o espaço é sentido, antes propriamente de pensá-lo. A casa apresenta-se a nós como registro e evocação de um instante sublime, como objeto e lugar dos nossos devaneios. Segundo Ábalos (2001, p. 94-95), esse tipo de percepção está atravessada por dois tipos de relação eu-mundo, que se alimentam de maneira mútua: a primeira, mencionada anteriormente, é a relação instantânea, que se dá pela simples presença simultânea do ser frente às coisas e tudo aquilo que lhe rodeia; a segunda, ativa-se pelo tempo (um tempo individual e particular a cada um, composto por um infinito de momentos justapostos) através das suas memórias e do devaneio. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de uma duração, concretizados em longos estágios. As lembranças são imóveis, e tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas. (BACHELARD, 1957, p. 203)


a casa fenomenológica

Quando Bachelard afirma que o espaço habitado transcende o espaço geométrico, quer dizer que todo o espaço com o qual criamos vínculos afetivos e que tomamos como lugar de intimidade é facilmente transportado para outros tempos e outros planos. Dessa maneira, o seu espaço não tem um caráter finito, mas um caráter transicional, tal qual o de uma ponte - entre o homem e o mundo, o divino e o mortal. Esse espaço percebido não está em nenhum lugar, a não ser em si mesmo; é através dos sonhos que a casa permanece em nós. Também ao olharmos para ela, não somos necessariamente fiéis ao espaço real - filtramos o que vemos através das lentes sensíveis das nossas emoções. Beauty comes with time. At first, there’s the process of talking, feeling, evoking images and questions: What emotions are inspired by this image? And that one? What recollections does it call up? It has to be asked over and over again - what emotions are brought about by a specific thing. Forget about intellect. [...] The next question is: what? What is the thing that is wrong, that bothers you? The first question pertains to the first emotion, and only the next one to intellectual reflection. The sphere of emotions is much larger, more spacious than intellect. You think and consequently another thought emerges as a logical continuation of the first one, so there’s a line-

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as três casas

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ar interdependence of cause and effect, of question and answer. While intuition, feelings, emotions, associations are a huge story, a vast space with a dense cluster of lines, also... The intellect needs time, but in the meantime, in order to survive, you need to react immediately. Spontaneous emotion defends life. [...] I think that it is very important for a design project to be stuck in the emotional space, which is vast and complex. It’s not just thinking! Yes, there is a soul in us: there is the soul, not just the knowledge. (ZUMTHOR, 2004)

Essa casa configura-se, portanto, em um espaço vivido. Apesar da realidade tangível da casa, o contato com o homem faz com que esse invólucro imediatamente lhe absorva os valores. O habitar humano torna precioso aquilo que a princípio era genérico e ordinário. Ao habitá-la, o ser funde-se ao seu espaço concreto: tocamos a casa e somos tocados de volta. Zumthor afirma que existe um efeito recíproco entre as pessoas e as coisas. Assim, o espaço inorgânico habitável é, na realidade, o mais orgânico de todos, cedendo às nossas emoções , desejos, afetos e sonhos , embebendo-se de nossa umidade sensível. Da mesma forma que as nossas emoções contêm um espaço habitável, também são


a casa fenomenológica

contidas por um. O espaço deixa de ser compreendido como extensão puramente neutra e científica, passando aqui a ser entendido como extensão da nossa própria pele, uma expressão autêntica do que somos. Citando o filósofo francês Jules Michelet, Bachelard em certo momento nas suas reflexões evoca tal valor da casa como proteção ajustada ao nosso corpo: A casa é a própria pessoa, sua forma e seu esforço mais imediato. (MICHELET, 1858, apud BACHELARD, 1957, p. 263)

Em um de seus escritos, Hundertwasser discorre acerca das cinco camadas que sucedem o homem avançando em direção ao mundo: a primeira é a epiderme, a mais próxima da nossa essência; a segunda, o vestuário; a terceira, a arquitetura; a quarta o meio social e a identidade; e finalmente a quinta, o meio global. Entendendo tais camadas em sua totalidade, mas também de maneira individual, a casa que se lê como extensão do próprio corpo humano, configura-se como microcosmo particular a cada um, a terceira pele do homem. Assim funciona também a arquitetura e assim tento pensá-la. Corporalmente, como uma massa, como membrana, como tecido ou invólucro, pano, veludo, seda, tudo o que me rodeia. (ZUMTHOR, 2006)

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as trĂŞs casas

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a casa fenomenolรณgica

As cinco peles do homem, Hundertwasser, 1998

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Essa percepção do espaço resgatada por Zumthor no trecho anterior também é explorada em um dos delicados trabalhos da brasileira Lucia Koch, em Sala de Exposição, de 2006. Nessa mesma Bienal fiz um trabalho que chamei de Sala de exposição, que era uma sala temporária, construída com estrutura de madeira e revestida de painéis Eucatex perfurados e pintados de branco. Marta Bogéa, a arquiteta daquela edição da Bienal, não tinha desenhado uma sala-tipo para exposição, todas tinham dimensões diferentes. E a ideia era construir uma sala que fosse “como as outras”, mas vazia de objetos. Então acabamos desenhando juntas uma sala que tinha a entrada igual à da sala vizinha e com dimensões iguais às da sala que ficava do outro lado. Uma sala “sem nada”, só com aquela perturbação visual – uma espécie de moiré em padrão. [...] As reações das pessoas foram muito diversas. Assim como algumas nem entravam no espaço porque “estava vazio”, outros ficavam se movendo e testando os efeitos, girando sem parar… (KOCH, 2010)

O espaço, a princípio genérico, torna-se singular a partir do que individualmente experenciamos nele. São as nossas vivências que camada por camada, tecem, preenchem e sustentam esse invólucro.


a casa fenomenológica

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Sala de Exposição, Lucia Koch, 27 a Bienal de São Paulo, 2006


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a casa desconstrutivista


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A casa desconstrutivista é a casa em expansão. Ela parte da condição de porosidade do espaço íntimo em meio ao mundo, na qual os limites entre o público e o privado confundem-se. O conceito de desconstrução aqui colocado contempla o questionamento de certas convenções e construções a respeito da casa, do espaço doméstico e do habitar ao longo da história. Tais construções serão consolidadas na formação desse espaço por meio do seu contato com o homem - esse, produto social, carrega em si e responde a certas relações de poder na sociedade, que lhe determinam os comportamentos e formas de ver o mundo. Assim, a casa que em um primeiro momento aparece a nós como lugar íntimo, fechado em si, aqui se revela como modelo reduzido de mundo, tão bem ilustrado quando afirmamos que “a cidade é como uma casa grande e a casa, por sua vez, é como uma cidade pequena” 8. But the nature of deconstructive thinking is not to set out to destroy what has been taught in the past but instead to develop and revisit those values by analysing them in detail, hence the description deconstruction. The general assumption of a house is that it is construcO antigo dictum “As cidades como as casas” aparece em diversas variações desde a Antiguidade, sendo usualmente atribuído a Platão, Leon Battista Alberti, Aldo van Eyck, Martin Heidegger e João B. Vilanova Artigas. (RAMOS, 2015) 8


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ted of walls, floors, ceilings, living room, bathroom, and bedrooms. Deconstruction is concerned with the in-between of those already established attachments of the house more than dealing with issues that have already been established. In philosophy the matter under the spotlight has evolved around providing generalised answers to questions troubling humanity. In the past we were accustomed to establishing something as true or definite. Deconstructive thinking scans through those predetermined thoughts and values by challenging them to be interpreted in a new form. (RYAN, 1982, p. 1 apud GËRMIZAJ, 2009, p. 5)

Assim, revisitamos certos valores latentes ou manifestos - esses, respostas a determinados contextos e modos de vida ora estabelecidos como verdades -, que muitas vezes serão reproduzidos, regulando as nossas vidas cotidianas sem que haja, de fato, grandes ou quaisquer questionamentos a seu respeito. Como mencionado anteriormente em casa e lar, a organização do espaço doméstico, de modo geral, estruturou-se em torno do modelo de família tradicional, utilizando-se dessa como referência primária tanto para a construção do seu repertório físico e

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material (como a casa, de fato, organiza-se espacialmente e formalmente), quanto para o seu repertório simbólico (isso é, quais imagens serão associadas a esse universo e que valores regularão os ritos e cotidianos). A respeito do que eventualmente se tornaria a vida íntima, Sennett, na década de 1970, discorre sobre o seu desencanto por uma sociedade que abandona a instância pública, hipervalorizando e recluindo-se em sua intimidade. Esse esvaziamento de sentido do espaço público dá-se nos dois sentidos: uma vez que o homem acredita que apenas nos lugares íntimos e junto aos seus semelhantes poderá expressar-se de maneira autêntica e verdadeira, procurará habitar também uma cidade que tenha as mesmas características de sua própria intimidade. A formação dessas pequenas comunidades identitárias, nas quais as diferenças são vistas como ameaça, será reproduzida em um processo de condominização das cidades, isso é, processo em que o indivíduo recusa-se a participar do pensamento político que se refere ao coletivo e nega a relacionar-se com o que lhe é estranho. Simultaneamente a essa reclusão criticada por Sennett, outras relações e modos de vida têm surgido e vêm sendo estabelecidos devido às rápidas transformações resultantes da vida na sociedade contemporânea. Dessa maneira, torna-se cada vez mais clara a


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existência de um descompasso entre as necessidades dessas novas relações que se dão nos âmbitos sociais, econômicos e políticos (isso é, em todas as esferas que influenciam de alguma maneira na cosntrução do espaço doméstico) e os valores relativos ao universo da casa consolidados ao longo das últimas décadas. É importante compreender o compromisso ético- político da desconstrução num universo acadêmico de arquitetura onde se continua a formar arquitetos para trabalharem em escritórios, no âmbito privado e comercial, produzirem arquitetura como mercadoria, treinados para projetar espaços para diferenciar hierarquicamente os seres humanos, projetando sutis campos de isolamento, tais como, condomínios, shoppings, espaços de consumo, e treinados, de certo modo, a ignorarem a pobreza que perambula pelas cidades e pelo mundo, enfim, a perpetuarem a sociedade de controle e exclusão. O discurso de Derrida revela novos horizontes para a educação onde se recoloca a dimensão ética como sentido. (SOLIS e FUÃO, 2015)

No modo de vida contemporâneo, cada vez mais a família e a razão doméstica perdem o protagonismo e a importância que outrora tiveram, dando lugar para outros modelos de organiza-

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ção das relações sociais. Se antes a vida era pautada por valores permanentes e estáveis, a nova forma do ser expressa-se através de materializações temporárias, provisórias e descartáveis. Tais aspectos já apareciam nos manifestos mais radicais de grupos como o Archigram nas décadas de 1960 e 1970, que sugeriam projetos utópicos de casas-cápsulas e cidades infláveis descoladas da noção do lugar fixo, recaracterizando os seus significados. Mais sutilmente, materializam-se na atualidade em projetos como a Casa Moriyama de Ryue Nishizawa (2005, Tóquio), que explora delicadamente os tênues limites entre o espaço público e o privado dentro do próprio terreno da casa, tensionando questões de flexibilidade de uso dos cômodos e repensando o programa e a própria relação da casa com o mundo. Embora o conceito da desconstrução da casa a princípio pareça apontar para resultados puramente formais ou estéticos, aqui contemplamos uma visão anterior a qualquer repercussão. Tomamos a casa e voltamos o nosso olhar para os valores e elementos passíveis de ressignificação, frente a sua própria realidade e contexto. Desse modo, reforçamos essa condição que está na essência da casa: de objeto sensível, íntimo e recíproco ao homem, cuja complexa existência por sua vez, é marcada pela constante mutação e transitoriedade.


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A desconstrução é um processo de ler a arquitetura, de fazer arquitetura e de viver nessa arquitetura. Derrida apontou para uma arquitetura que aceita e integra as diferenças, uma arquitetura do acolhimento, da reflexão e da convivência, que não é bela nem feia. (DORFMAN, 2009, P.326, apud SOLIS e FUÃO, 2015)

A casa desconstrutivista, representa, portanto, a mutabilidade e suscetibilidade da casa frente ao homem e ao mundo, a porosidade na qual o seu espaço configura-se e as reflexões colocadas quanto ao seu repertório consolidado de valores e aquele que se encontra continuamente em formação.

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Casa Moriyama, Ryue Nishizawa, Tรณquio, 2005


as trĂŞs casas

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v. representaçþes

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representações

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As ilustrações textuais e gráficas apresentadas anteriormente são essenciais à compreensão final do exercício de tradução proposto. Esse exercício culmina aqui com as possíveis representações materializadas em modelos físicos de objetos-casas. Neste capítulo apresentaremos brevemente o fio condutor das interpretações desses signos, que resultaram nas escolhas apresentadas para o exercício final. Como não há intenção de induzir interpretações específicas, mas sim de ampliar o campo interpretativo, reduziremos os textos a um breve relato do processo compositivo, que apresenta valores como a qualidade, quantidade, força e imaginação, bem como aspectos relacionados à textura, cor, visibilidade ou peso desses artefatos. O registro impresso das representações que apresento nas próximas páginas também se faz necessário para estreitar a distância existente entre os modelos e um possível leitor que não tenha tido a oportunidade de experimentá-los e percebê-los fisicamente, isto é, em sua natureza.


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forma para o concreto, casa existencialista


representações

a casa existencialista

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A representação da casa existencialista buscou estabelecer a ponte entre o cheio e o vazio, da mesma forma que o fazem os hábitos cotidianos e movimento dos corpos que preenchem o vazio habitado. Atitudes como a de Whiteread e da personagem Grifalconi apresentadas anteriormente são resgatadas na eleição do concreto como material para a construção dos modelos dessa casa, estruturados através do preenchimento. Todo aquele que já experimentou ou tem familiaridade com o processo empreendido na produção de um artefato em concreto compreende que o resultado desejado deriva inicialmente do preenchimento de seu negativo, de seu inverso. O peso físico do material também retoma a enorme quantidade de hábitos e temporalidades acumuladas com o demorar junto às coisas e à casa.


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representações

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Para além dessa perspectiva, o segundo modelo da casa existencialista vale-se do concreto para se constituir como casca, forma, molde, que dá conformação ao espaço fechado, passível de habitação. Praticamente não possibilita a visualização de seu interior, que só pode ser revelado através do seu negativo, apresentado no primeiro modelo. Dessa forma, justifica-se o sentido em compor essa casa em dois e não em um modelo. Ainda, é a aparência de rigidez, força e permanência que se alinha à ideia da sua capacidade protetora contra as forças da natureza - o abrigo, a toca e o refúgio.


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representaçþes

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o negativo


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o positivo


representações

a casa fenomenológica

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O caráter transicional apontado pela casa fenomenológica relaciona-se com a característica translúcida da tela metálica escolhida como elemento básico de sua construção. Essa tela, que aqui entendemos como espécie de tule ou tecido arquitetônico, remete às noções de membrana, camada e pele mobilizadas anteriormente. Existe aí uma transposição de diferentes planos, que aponta também à transposição de mundos. Para além da experiência tátil, a característica sensível peculiar a este modelo encontra-se na percepção do espaço ativada pela visão: criam-se infinitas imagens construídas pela relação permeável do modelo com o ambiente em que se insere - com diferentes cores, formas e intensidades de luz. É essa mesma permeabilidade que admite a compreensão das distintas camadas, das diferentes vivências, as quais são precisamente os elementos responsáveis por estruturar o modelo e sua volumetria.


a casa fenomenolรณgica

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representaçþes

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a casa fenomenolรณgica

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representações

a casa desconstrutivista

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Constituída por diferentes módulos que agrupados conferem a sua forma, o modelo para a casa desconstrutivista evidencia o caráter de transição entre as esferas pública e privada, na medida em que seus módulos não têm qualquer tipo de fixação, possibilitando que o objeto seja remodelado e sofra inversões em sua aparência. A escolha do material determina essa múltipla leitura formal até mesmo sem a movimentação das peças, já que embora à primeira vista a sua conformação apresenta-nos um único prisma, as diferenças entre os veios e anéis da madeira insistem em apontar para a possibilidade de desmembramento e reformulação. A madeira, em contraponto à rigidez do concreto, apresenta-se como material muito mais suscetível às mudanças, à temporalidade e ao mundo exterior à casa.


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representaçþes

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vi. consideraçþes finais

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considerações finais

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Ao olharmos para a casa, perguntamos: o que torna esse objeto, ora selvagem, em expressão e expansão de nós mesmos no mundo? O que torna a casa genérica em casa de alguém? Voltando a Heidegger, compreendemos que a presença em seu momento fundamental (o habitar o mundo ou ser-no-mundo) é definida pelo demorar do homem junto às coisas. Esse demorar mostra-se necessário para que experienciemos o espaço e, a partir desse engajamento, tornemo-nos íntimos a ele. Analogamente às primeiras reflexões colocadas, poderíamos nos perguntar: quando um jardim fica pronto? Tal qual o jardim, executado projetando-se uma situação futura, há a necessidade de tempo para que as coisas tomem forma. Assim também é com a casa. É preciso que a casa envelheça para virar algo além do invólucro, algo além da arquitetura. É preciso de tempo para que os cômodos e corredores absorvam as nossas experiências e as paredes ajustem-se aos nossos corpos. De mesmo modo, é necessário que em nossa prática estejamos cientes da temporalidade da própria arquitetura, por mais concreta e duradoura que inicialmente apresente-se a nós. Assim como o jardim sensibiliza-nos frente à transitoriedade e fugacidade da condição humana, também é necessário compreender o tempo de vida da arquitetura, da vida das casas que habitamos.


O trabalho aqui apresentado surge a partir de reflexões pessoais a respeito da prática e percepção da arquitetura. Voltar o olhar para o tema da casa - tão primário e fundamental para a disciplina e à própria existência humana - foi um processo pessoal importante e necessário para a conclusão dessa graduação. Um universo tão vasto como esse é passível de ser abordado de infinitas maneiras e, ainda assim, nenhuma delas contemplaria o assunto em sua totalidade. Portanto, foi imprescindível o limitante do tempo e a escolha da narrativa para o desenvolvimento desse trabalho. Reitero novamente as limitações de um exercício nesses moldes, uma vez que são pincelados assuntos bastante complexos para a construção de certo modelo de entendimento. Embora se tenha optado por delimitar a casa através de imagens individualizadas e definidas, tal escolha pautou-se em grande parte por motivações de caráter estratégico, já que a casa contempla simultaneamente as questões apontadas e tantas outras. Tentei, de modo sucinto, desenvolver os conceitos mais relevantes eleitos para a sua elaboração, trazendo também experiências e reflexões pessoais para o enriquecimento das discussões. A produção de artefatos que mobilizassem tais imagens reforça o valor dos materiais como recurso para sensibilização do homem

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considerações finais

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no mundo e parte de uma vontade criadora que atribuo à vivência das mulheres no espaço doméstico e à consequente gênese do fazer manual em seu âmbito. Finalmente, fazendo uma analogia à própria casa, acredito que parte essencial desse trabalho foi tornar um tema abrangente e genérico em algo pessoal e precioso para mim.


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anexo

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a casa (Álvaro Siza)

A casa é o abrigo. A coisa principal da casa é o telhado e depois a chaminé. Dentro somos independentes ou quase. Estamos protegidos da cidade e do mundo inteiro. Os que podem usam tranquilamente a internet. A casa tem janelas: é preciso respirar, mesmo quando o ar está poluído. É bom ir à janela. Vê-se a rua, a vizinha sai e fecha a porta, há gente a passar e motos e animais e automóveis, comboios, autocarros e aviões, do ar chega o ruído dum avião, passa uma gaivota. Não estamos sozinhos, felizmente não estamos sozinhos, bate à porta o carteiro, chega o jornal. O sol entra pela janela e pinta a parede em frente, a chuva martela os vidros, zumbe o vento. Sabemos que a rua vai por aí fora, ramifica-se e sai da cidade, liga a Norte a Sul a Leste a Oeste e a todos os espaços intermédios, tece uma manta sem princípio nem fim porque se torce sobre si própria, mesmo ao cruzar o mar (com grande dispêndio e dificuldade).


A Aventura apetece. A coisa principal da casa é a porta, mais do que a janela porque não tem peitoril: só um degrau de poucos centímetros para o mundo ou para fugir ao mundo (sempre se pode fechar a porta ou não a abrir ou escancarar as folhas da porta). O esgoto da minha casa percorre o mundo inteiro e transforma-se juntamente com o dos outros. A casa é o eu de cada um. Contudo no espaço e no tempo as casas são praticamente iguais, na horizontal como na vertical. Quando têm demasiadas escadas inventam o ascensor, mas mantêm-se iguais ou quase, porque nós os que as ocupamos somos quase iguais. A casa é parte de uma quadrícula imensa, rota aqui e ali, emendada por muralhas por rios por fronteiras imaginárias, por longas protuberâncias, por pontes e por túneis e por nós imateriais. A casa é eu e nós, conforme se queira. Distinguimos uma de outra, com dificuldade, por números e por pormenores irrelevantes, por estarem em ruínas e escuras ou limpas e polidas como um vidro. Sou dono da casa, sou dono do mundo, ou inquilino dos

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dois, o que é rigorosamente o mesmo e nada. A menos que não consiga ter casa e então uso uma gruta, ou uma tenda, ou uma estação de metropolitano ou o pórtico do Palácio da Justiça (casas menos confortáveis e sobretudo inaceitáveis: as possíveis). Temos por hábito roubar as casas uns aos outros, ou simplesmente roubá-las. Construímos, vendemos, derrubamos, compramos. Às vezes as casas são bombardeadas e às vezes há gente lá dentro e há terramotos e outros acidentes naturais. Pobre vida das casas. A casa é de carvão e a porta é de prata. Há sempre um vulto em contraluz. Perigosas são as portas das palafitas. LC arregaça as calças, apoiado na tíbia e no perónio constrói os cabelos do Toit Terrasse os pilotis e os miosótis. Casas dispersas como ovelhas perdidas e casas aconchegadas umas às outras. Correm em bicos de pés espreitando e voando sobre os vizinhos. Casas subterrâneas miseráveis, nas colinas, pintadas de azul e de lilás. Porto, 1 de Março de 2006.


Texto propositadamente escrito para a exposição desenhos de construção com casa . e céu, de Carlos Nogueira, Porto, 1 de março de 2006, In Carlos Nogueira, desenhos de construção com casa . e céu, Almada, Casa da Cerca - CAC, Maio 2006, p. 59-60.

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lista de imagens

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PÁGINAS 3, 16, 22, 28, 63, 86, 87, 98, 99, 110, 111; Ilustrações diversas, ilustrações pessoais PÁGINAS 8, 21, 25, 31, 115, 117, 119, 120, 121, 123, 124, 125, 127, 128, 129; fotos diversas, acervo pessoal PÁGINA 43; divisórias para abrigo emergencial, Shigeru Ban, Japão, 2011 acessado em 30/10/2017, disponível em: www.archdaily.com/489255/the-humanitarian-works-of-shigeru-ban PÁGINA 43; cena do filme Cronicamente Inviável de Sérgio Bianchi, 2000 acessado em 30/10/2017, disponível em: bits.productions/2015/09/03/cronicamente-inviavel-de-sergio-bianchi/ PÁGINA 53; imagem de Adão abrigando-se da chuva acessado em 30/10/2017, disponível em: www.bncf.firenze.sbn.it/Bib_digitale/Manoscritti/II.140/main.htm PÁGINA 70; modelo para restaurante de verão, Peter Zumthor, 2001 acessado em 09/11/2017, disponível em: www.flickr.com/photos/orppo/6528838415/in/album-72157628460679121/ PÁGINAS 80 e 81; House, Rachel Whiteread, Londres, 1993. acessado em 30/10/2017, disponível em:


classconnection.s3.amazonaws.com/608/flashcards/1179608/png/ 11335384185756.png PÁGINA 83; preenchimento de formigueiro com mistura líquida de gesso. acessado em 30/10/2017, disponível em: www.bio.fsu.edu/~tschink/publications/2003-3.pdf PÁGINA 94; As cinco peles do homem, Hundertwasser, 1998. acessado em 30/10/2017, disponível em: theinterfaceeffect.weebly.com/hundertwasser-and-the-five-skins.html PÁGINA 97; Sala de Exposição, Lucia Koch, 27 a Bienal de São Paulo, 2006. acessado em 30/10/2017, disponível em: www.premiopipa.com/pag/artistas/lucia-koch/ PÁGINAS 108 e 109; Casa Moriyama, Ryue Nishizawa, Tóquio, 2005. acessados em 08/11/2017, disponíveis em: iwan.com/portfolio/sanaa-moriyama-houses-tokyo/ metalocus.es/en/news/moriyama-house

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