Gentrificação: conflitos teóricos e ideológicos

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UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

KARLA REGINA TELES ANDRADE COUTINHO

Gentrificação: conflitos teóricos e ideológicos

NITERÓI – RJ 2016


Trabalho de Conclusão do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________ NOME DO ALUNO

Trabalho apresentado em ____/____/____

___________________________________________________ Orientador (a) Prof.(a). Titulação. Nome do Orientador

___________________________________________________ 1ª Examinador (a) Prof.(a). Titulação. Nome do Examinador

____________________________________________________ 2ª Examinador (a) Prof.(a). Titulação. Nome do Examinador


À memória de Célia Teles de Andrade e Milton Fernandes Coutinho.


Agradecimentos

Primeiramente, “Fora

Temer”.

Expressão que resume o atual cenário político

brasileiro, simbolizando a luta contra o fim da democracia. Pois sem a conquista desta há 31 anos, este trabalho talvez não existisse. Se agradecimento fosse que nem pedaço de bolo em festa de aniversário, faltaria bolo para as diversas fatias que aqui tenho para entregar. As primeiras fatias vão para minha mãe Sonia Regina, meu pai Carlos e minha irmã Fernanda Regina. Essas pessoas não só fazem parte de minha família, mas juntos compomos um time. Um time que todos os dias está lutando contra os obstáculos da vida. Um time que não tem medo de cair, pois sabe que a queda é mais um incentivo para caminharmos juntos, vencermos nossos medos e atingirmos nossos objetivos. E foi com eles que cheguei até aqui. Minha outra fatia vai para meu namorado, meu amigo e companheiro de meia década, Edson Mendonça, vulgo Edinho. Agradeço por todos esses anos juntos, que correspondem a quase todos os anos que cursei arquitetura! Nosso companheirismo e nosso amor construíram muitos momentos bons e hão de construir mais. Agradeço aos pais do Edinho, Edson e Rosilene, pela força e carinho. Ofereço também bolo para minha tia Lourdes, meu tio Vandro, meu primo Vandro Augusto, minha prima Marcela e meu afilhado Francisco! Obrigada por me acompanharem nessa caminhada. Agradeço a minha orientadora, professora e amiga Cristina Nacif por ter sido uma das principais influências para minha atual visão crítica do mundo que vivemos. Além de ter aceitado meu convite para participar dessa maratona de trabalho final de graduação. Agradeço também às professoras e professores: Sonia Ferraz, Juarez Duayer, Fernanda Sanchez e Adriana Caúla, por também participarem dessa maratona crítica. Por fim, agradeço a todos os meus amigos que participaram dessa minha caminhada. Muito Obrigada!


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.............................................................................................................. 5 1a PARTE: ELEMENTOS DE CONTEXTO Capitulo I Panorama geral da gentrificação............................................................................ 8 Sobre o termo “Gentrificação”.......................................................................11 Sobre o debate............................................................................................... 11 2a PARTE: CONFLITOS TEÓRICOS E IDEOLÓGICOS Capitulo I Teoria de David Ley................................................................................................ 15 A tese pós-industrial...................................................................................... 18 A tese pós-industrial na geografia de Vancouver.......................................... 21 A demografia de Vancouver......................................................................... 26 O novo estilo de vida cultural........................................................................ 26 Da teoria à ideologia...................................................................................... 27 História da cidade de Vancouver industrial................................................... 28 O discurso político e as intervenções urbanas............................................... 29 Os insucessos da nova política liberal........................................................... 32 Capitulo II Teoria de Neil Smith............................................................................................... 34 Um regresso desde os subúrbios................................................................... 37 O investimento no espaço construído........................................................... 41 O modelo cônico de Homer Hort e a inner city............................................ 43 Depreciação do capital na inner city............................................................. 46 Gentrificação: o diferencial potencial de renda (rent gap)........................... 49 Capitulo III Conflitos teóricos e ideológicos.............................................................................. 51 De uma anomalia local para uma estratégia urbana global...................................... 59 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 67 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................... 70


APRESENTAÇÃO

“Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.” Bertolt Brecht

A partir do início do século XXI, no Brasil, como também em muitos países capitalistas periféricos, uma nova fronteira tem sido conquistada por meio de uma forma alternativa de apropriação e transformação do espaço urbano, a partir da lógica de expansão do mercado e exclusão social. Essa conquista tem sido realizada através de um processo, onde, ultimamente, o termo que o denomina tem aparecido com muita frequência na mídia, em textos acadêmicos, discursos de ativistas e movimentos sociais, e até mesmo em materiais publicitários de agentes do mercado: Gentrificação. Esse termo tornou-se uma categoria central para se pensar as transformações vivenciadas nas cidades contemporâneas, em especial nos centros antigos urbanos. São transformações que, ao longo das últimas quatro décadas, inicialmente em países anglo-saxônicos e da Europa, converteram as áreas urbanas centrais deterioradas no que Smith


chamou de new chic, levando a expulsão da classe popular que ali residia para a “retomada” da classe média e média alta a essas áreas. O termo gentrification, foi utilizado pela primeira vez por Ruth Glass no início dos anos sessenta para descrever o processo mediante o qual famílias de classe média haviam povoado antigos bairros desvalorizados do centro de Londres, ao invés de se instalarem nos subúrbios residenciais, segundo o modelo até então dominante para essas classes sociais. Em meados dos anos setenta, o termo foi retomado e debatido por muitos autores, dentre eles estavam David Ley, o qual defendia que as escolhas individuais e culturais (consumo e demanda) possuíam um papel central na origem dos processos de gentrificação e Neil Smith, que defendia que o capital e a estrutura de produção social capitalista do espaço fossem os pontos centrais para a discussão. Contudo, este trabalho pretende apresentar os conflitos teóricos e ideológicos travados a partir de meados do século XX por esses autores, para melhor compreensão não só do motivo pelo qual o tema foi retomado com eficácia quase uma década depois da origem do termo, analisando o contexto socioeconômico da época, como também entender por que esse processo passou a ser discutido, posteriormente, nos países periféricos. O trabalho foi dividido em duas partes. A primeira contém os elementos do contexto em que a gentrificação se manifesta no cenário carioca, juntamente com a origem de seu termo. A segunda parte será dividia em três capítulos, onde no primeiro e no segundo apresento as teorias de David Ley e Neil Smith, respectivamente, e no terceiro as teorias serão analisadas, confrontadas e contextualizadas com o atual cenário global, permitindo entender o aparecimento dos estudos sobre a gentrificação nos países capitalistas periféricos.


1a PARTE

ELEMENTOS DE CONTEXTO

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CAPÍTULO I

PANORAMA GERAL DA GENTRIFICAÇÃO

Nos últimos anos, a disputa e a conquista dos Megaeventos esportivos no Brasil, a Copa do Mundo de 2014 e especialmente as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro, se apresentaram saturadas de polêmicas. Em discurso, o atual prefeito da cidade, Eduardo Paes, equivocadamente, exalta a transformação da cidade do Rio de Janeiro numa cidade global. Segundo ele “O Rio de Janeiro tornou-se uma cidade global, apta a competir por investimentos estrangeiros. A “descoberta” do Rio de Janeiro, proporcionada pelos megaeventos esportivos, é uma oportunidade única de promover a evolução no ambiente de negócios da cidade, suas vocações econômicas e oportunidades de investimento. Neste último ano antes dos Jogos, queremos concentrar a operação de atração de investimentos para a cidade e promover o networking entre empresas instaladas aqui com parceiros internacionais, para aumentar a criação de novos postos de trabalho. ” (PAES, Eduardo. Disponível em http://rio-negocios.com/um-minutocom-eduardo-paes-prefeito-da-cidade-do-rio-de-janeiro/. Acesso em: 17 de julho 2016)

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Tais investimentos, a princípio oriundos do capital privado, foram prometidos para proporcionar obras de infraestrutura viária e de transporte, construções de edifícios empresariais, equipamentos esportivos, arenas olímpicas, revitalizações e reestruturação de frações de bairros, ou até mesmo de bairros inteiros, com o intuito de comportar o novo modelo de cidade. Mas esse grande processo de transformação urbana corrobora com a ênfase da exclusão social, na legitimação de propostas de revitalização e reestruturação urbana com cunho higienista e, principalmente, com as remoções e políticas segregacionistas. Segundo Raquel Rolnick (AZEVEDO & FAULHABER 2015), As denúncias vindas de cidades que iriam sediar megaeventos esportivos na Índia, na China e na África do Sul serviram de alerta para o que poderia acontecer nas cidades brasileiras assim que o Brasil foi confirmado como sede da Copa do Mundo em 2007. Minha preocupação era de que a mesma história de remoções forçadas, despejos em massa e bloqueio dos canais de acesso à justiça para os afetados poderia vir a se repetir. A preocupação se agravava no caso do Rio: além da Copa, a cidade também seria sede das Olimpíadas em 2016. (AZEVEDO & FAULHABER, 2015, p. 9-10)

De denúncias tornou-se realidade. Nos último anos, a grande maioria das intervenções oriundas do planejamento estratégico, onde este é síntese de “um ideário político (...) que permitiria a execução de projetos que há décadas os administradores pretendiam concretizar na cidade” (AZEVEDO & FAULHABER, 2015, p. 29), desalojou “milhares de pessoas, sobretudo moradores de assentamentos informais (...), em completa discordância com o marco internacional que protege o direito à moradia adequada”. (AZEVEDO & FAULHABER, 2015, p. 10). O combate às remoções e desapropriações foi e ainda é a principal bandeira de luta não só na cidade do Rio, mas em São Paulo, Recife e outras capitais do Brasil que estão passando por semelhantes processos de “reestruturação” do espaço urbano, em especial nas suas áreas centrais. Ao apresentar o livro de Faulhaber e Azevedo, Rolnik aponta que os pesquisadores a partir de seus estudos sobre as remoções dos “pobres” urbanos no Rio de Janeiro, além de trazerem importantes informações sobre as pessoas que sofreram o processo, “mostram que as desapropriações e remoções têm uma geografia baseada num processo milimétrico de desconstrução de direitos e de abertura de uma área da cidade como nova fronteira de expansão do mercado imobiliário. ” (ROLNIK, 2015, p. 11).

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A partir do início do século XXI, no Brasil, como também em muitos países periféricos, outra nova fronteira tem sido conquistada por meio de uma forma alternativa de apropriação e transformação do espaço urbano, a partir da lógica de expansão do mercado e exclusão social. Essa conquista tem sido realizada através de um processo, onde, ultimamente, o termo que o denomina tem aparecido com muita frequência na mídia, em textos acadêmicos, discursos de ativistas e movimentos sociais, e até mesmo em materiais publicitários de agentes do mercado: Gentrificação. Esse termo tornou-se uma categoria central para se pensar as transformações vivenciadas nas cidades contemporâneas. (PEREIRA, 2014), em especial nos centros antigos urbanos. São transformações que, ao longo das últimas quatro décadas, inicialmente em países anglo-saxônicos e da Europa, converteram as áreas urbanas centrais deterioradas no que Smith chamou de new chic (SMITH, 1995 apud FREITAS, 2006), levando a expulsão da classe popular que ali residia para a “retomada” da classe média e média alta a essas áreas. Tal processo não se assemelha com o de remoção e desapropriação, pois a classe popular não perde suas casas por meio de ordens diretas de despejo, mas sim com a enorme pressão social, econômica e cultural provocada por muitos fatores, em especial o mercado.

Pensar sobre a atualidade desse conceito e sua possível contribuição para compreender e explicar a produção do espaço urbano nos dias de hoje traz alguns desafios. O primeiro deles é delimitar o que se entende por gentrificação, termo que chegou a ser qualificado como um "conceito caótico" em virtude da pluralidade de sentidos com que veio a ser empregado (Zukin, 1987, p. 132). O uso indiscriminado desse termo para fazer referência a qualquer experiência de transformação do espaço urbano de caráter socialmente excludente – embora possa fazer sentido como estratégia argumentativa – acaba por ofuscar suas especificidades, provocando seu esvaziamento como categoria de análise. A banalização de seu emprego em discursos críticos sobre as transformações observadas na cidade contemporânea dificulta a formulação de hipóteses acerca da dimensão e do papel dos processos de gentrificação e de suas conexões com tendências mais abrangentes que afetam o modo de produção capitalista em sua fase atual. (PEREIRA, 2014, p. 308)

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SOBRE O TERMO “GENTRIFICAÇÃO”

O termo gentrification, originado do substantivo inglês gentry que designava no passado pessoa de “classe social elevada”, foi utilizado pela primeira vez por Ruth Glass no início dos anos sessenta para descrever o processo mediante o qual famílias de classe média haviam povoado antigos bairros desvalorizados do centro de Londres, ao invés de se instalarem nos subúrbios residenciais, segundo o modelo até então dominante para essas classes sociais. (BIDOU, 2006). Tal processo levou a autora compreender a transformação da composição social dos residentes de certos bairros centrais, por meio da substituição de camadas populares por camadas médias assalariadas; e um processo de natureza diferente: o de investimento, reabilitação e apropriação, por estas camadas sociais, de um estoque de moradias e de bairros operários ou populares. Segundo Glass

Um após o outros, numerosos bairros operários londrinos foram invadidos pela classe média alta e baixa. Locais degradados ou com casinhas modestas, com dois aposentos no térreo e dois em cima, foram retomadas quando os contratos de aluguel expiraram, e se tornaram elegantes residências de alto preço. Residências vitorianas maiores, que tinham mudado de função – ou seja, haviam passado a ser utilizadas como pensões familiares ou sublocadas – recuperaram novamente um bom nível de status. Esse processo de gentrificação, uma vez começado em um bairro, se estendeu rapidamente até que quase todas as camadas populares que aí moravam originalmente tivessem deixado o lugar e que todas as características sociais tivessem mudado. (GLASS apud SMITH, 2006)

Até pouco tempo, devido a seu emprego tardio em países periféricos como o Brasil, o termo “Gentrificação” não fazia parte do vocábulo brasileiro. Hoje podemos encontrar possíveis significações em páginas na internet como Wikipedia e Priberam, inclusive a palavra em seu estado verbal: “gentrificar”. Mas o termo ainda não é encontrado em dicionários de maior confiança.

SOBRE O DEBATE

Em meados do século XX, especificamente a partir de meados dos anos 1970, muitos autores resgataram o termo com o intuito de analisar essa persistência do reencontro das classes médias altas nos centros urbanos de alguns países anglo-saxônicos e da Europa.

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En la década de 1970, la gentrificación comenzó a transformarse claramente en um entramado residencial integral en el marco de una reestructuración urbana mucho más amplia. (SMITH, 2012, p. 85)

Foi gerado um debate acadêmico denominado por Smith como “um campo de batalha teórico e ideológico” (SMITH apud BONAMICHI, 2016), pois passou a ser travado entre aqueles que defendiam que as escolhas individuais e culturais (consumo e demanda) possuíam um papel central na origem dos processos de gentrificação (LEY, 1986) e aqueles que defendiam que o capital e a estrutura de produção social capitalista do espaço fossem os pontos centrais para a discussão. (SMITH, 2006, 2012, 2015) Sob uma ótica praticamente excludente, as teorias formuladas pelos autores citados, abriram o debate e contribuíram lançando luzes sobre a questão. Suas reflexões ofereceram um amplo panorama, que convidou à reflexão e estimulou estudos posteriores aplicados a casos concretos, através dos quais a discussão se manteve acesa. Ao longo dos anos de 1980, as teorias iniciais desses dois autores foram flexibilizando-se, incorporando elementos de posturas defendidas por seus oponentes, porém sem mudar o eixo central do pensamento dos dois. Cabe mencionar que tanto Ley como Smith continuaram publicando trabalhos durante os anos de 1980 e 1990 (BATALLER, 2012, p. 17) Durante muito tempo, as discussões se limitavam a enxergar o conceito de gentrificação como um processo que ocorria apenas nas cidades anglo-saxônicas. O geógrafo Hamnett argumentava que isso provinha do fato de que “as outras cidades europeias ou latinas sempre tiveram bairros burgueses ou aristocráticos nos centros, e não haviam conhecido (ou conhecido pouco) os fenômenos de suburbanização que marcaram as cidades inglesas e americanas a partir dos anos cinquenta. ” (BIDOU,2006). Mas, recentemente, em meados dos anos 1990, o conceito passou a ser incorporado em debates que descrevem processos urbanos, semelhantes aos dos anglo-saxônicos, observados em cidades de países periféricos, como nos Latinos Americanos e na própria Europa, como na Espanha e Portugal. Cresce, portanto o número de autores que começam a fazer parte desse ciclo de debatedores interessados em entender e incorporar o processo em outras cidades. Segundo Bataller,

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Tomando como base a publicação Geographical Abstracts-Human Geography (NORWICH, 1989), entre janeiro de 1990 e dezembro de 1999 foram identificadas sessenta e nove referências sobre gentrificação. (...). Pode-se dizer que aproximadamente a metade dos trabalhos referenciados em Geographical Abstracts-Human Geography está dedicada a cidades europeias e, a outra metade, a cidades norte-americanas. Fora destes espaços, as publicações referem-se a Adelaide, Melbourne e Sydney, na Austrália; a Kyoto, no Japão; à capital da Coréia do Sul, Seul; à capital de Israel, Tel-Aviv; à caribenha Saint John, em Antigua e Barbados; e à Cidade do Cabo, na África do Sul. (...). Cabe ressaltar o fato de que o fenômeno foi identificado em cidades da Europa Oriental a partir da queda do comunismo, como Berlim, Magdeburgo ou Budapeste, devido à penetração da dinâmica capitalista em seu desenvolvimento urbano. (BATALLER, 2012, p. 2930)

Enquanto alguns estudos abordam processos tidos como de “requalificação” ou “revitalização” urbana na América Latina a partir da perspectiva teórica anglo saxônica da gentrificação, outros pesquisadores têm apontado para a necessidade de se construir novas abordagens que considerem as divergências sociais, econômicas, culturais e políticas deste novo contexto. (SOUZA, 2013 apud BONAMICHI, 2016). A ênfase em confrontar o debate sobre as divergências teóricas e metodológicas do processo de Gentrificação, a partir da ótica de Neil Smith e David Ley, nos permitirá entender, não só o motivo pelo qual o tema foi retomado com eficácia quase uma década depois da origem do termo, analisando o contexto socioeconômico da época, como também entender o porquê esse processo passou a ser discutido, posteriormente, nos países periféricos. A seguir, serão apresentados alguns trabalhos dos autores, onde neles são expostos os conceitos, métodos e teorias, acompanhados de divergências.

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2a PARTE

Conflitos teรณricos e ideolรณgicos

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CAPÍTULO I

TEORIA DE DAVID LEY

Professor de geografia da Universidade da Columbia Britânica (Canadá), o geógrafo David Ley, ao participar da Conferência Anual da Associação de Geógrafos Americanos, celebrada em Nova Orleans em 1978, apresentou as bases de sua teoria sobre gentrificação que foi sendo complementada posteriormente, através do artigo “Inner city resurgence units societal context”1 (LEY, 1978), onde faz de Vancouver seu objeto de análise. De uma maneira geral, Ley se apropria de três fatores, considerados fundamentais para o desenvolvimento de sua teoria: a economia, a cultura e a política (BATALLER, 2000). Em 1980, o autor publica o artigo “Liberal Ideology and the Postindutrial city”, novamente nos Anais da Associação de Geógrafos Americanos, onde faz uma leitura do desenvolvimento urbano das áreas centrais e periféricas ao centro (inner cities) de Vancouver, Canadá, baseando-se na influência de uma nova ideologia liberal na política e na estrutura socioeconômica e cultural da sociedade pós-industrial. Segundo o autor “A new ideology of livability in urban development changed the Vancouver landscape between 1968 and 1978. The agents of liberal ideology were a new elite of professional, technical, and administrative workers whose consolidation

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Texto de difícil acesso, portanto a exposição de sua teoria neste trabalho foi baseada em textos escritos a partir de 1980. 15


coincided with Vancouver’s transition toward a service oriented postindustrial city. ” (LEY, 1980, p.238)2

Neste texto, Ley ainda não utiliza o termo “gentrification”, pois sua análise quanto às transformações das áreas centrais está subordinada à atenção dos sucessos e insucessos da nova ideologia liberal no Canadá. Portanto, podemos dizer que o processo de “gentrification” aparece embaçado no cenário de Vancouver apresentado por Ley entre as décadas de 1960 e 1970. Esmiuçar o citado artigo nos permite observar quais foram os mecanismos adotados e influencias ideológicas do autor que serviram de ferramentas para, Ley desenvolver sua teoria sobre o processo de gentrificação. Segundo o geógrafo, o novo liberalismo foi anunciado no Canadá em 1968 com a eleição de Pierre Trudeau como o primeiro ministro liberal. Seu perfil e seu discurso estariam dentro dos padrões da nova ideologia que emergia: um profissional intelectual jovem, que estava em contato com a cultura dos anos 1960, com uma estética “simpática” e que prometia um governo participativo e mais aberto de pluralismo étnico e estilo de vida, característica que mostravam um desejo de ruptura com o conservadorismo do passado. Ley contextualiza o surgimento dessa nova classe com maio de 1968 na França, onde “Significantly, a number of the theoreticians of the French student riots identified precisely the emergent class of intellectuals, professionals, and technical workers represented by Trudeau as the potential agents of radical change in social life”. (LEY, 1980, p.283)3

No mesmo ano, foi fundado em Vancouver o Movimento de Ação Eleitoral (Elector Action Moviment - TEAM), um partido que visava a reforma municipal com as mesmas promessas centradas em torno de um novo estilo de vida, onde o consumo deveria passar a seguir os cânones do bom gosto. Suas lideranças, destacando Arthur Phillips (prefeito do conselho controlado pelo TEAM em 1974) apresentavam o mesmo perfil carregado pelo primeiro ministro: jovens, altamente qualificados, renda média e média alta e fortemente profissional. Segundo Phillips, “É difícil evitar liberais nos dias de hoje.” (LEY, 1980, 2

“A nova ideologia de habitabilidade no desenvolvimento urbano mudou a paisagem de Vancouver entre 1968 e 1978. Os agentes da ideologia liberal foram uma nova elite de trabalhadores profissionais, técnicos e administrativos, cuja consolidação coincidiu com a transição de Vancouver em direção a uma cidade pós-industrial orientada por serviços.” (Tradução nossa). 3 “Significativamente, um número dos teóricos das manifestações de estudantes franceses identificou precisamente a classe emergente de intelectuais, profissionais e trabalhadores técnicos representados por Trudeau como potenciais agentes de mudança radical na vida social.” (Tradução nossa). 16


p.238). Essa nova ideologia liberal trazia consigo a vontade de ruptura, segundo o autor, com a ortodoxia dos governos passados, onde no lugar de alimentar um constante crescimento ufanista de cidade com grande intervenção do mercado imobiliário e construção de autoestradas, seria implantada a noção liberal de “cidade habitável”, com uma paisagem harmônica, sensibilidade humana e com o discurso de que “Planning can be against growth, if that is society’s goal, rather than for it.”4 (LASH apud LEY, 1980, p.239). Segundo Ley, “A new ideology of urban development was in the making. Urban strategy seemed to be passing from an emphasis on growth to a concern with the quality of life; the new liberalism was to be recognized less by its production schedules than by its consumption styles. These changes were not of course unique to Vancouver, but were felt to a greater or lesser extent in every major city in North America.” (LEY, 1980, p.239)5

Em algumas áreas metropolitanas a ideologia foi expressa com mais força do que em outras, como é o caso de Society Hill, na Filadélfia. Os democratas liberais foram votos vencidos nas eleições cívicas em 1971 e 1975, por comunidades étnicas tradicionais, mas “Nevertheless, despite Mayor Rizzo’s conservative (if nominally Democratic) administration with its priorities heavily influenced by its ethnic constituency, the economic power of the center city professionals led to some private and public initiatives in central city land use development.”6 (LEY, 1980, p.239)

Portanto, Ley escolhe Vancouver como objeto de estudo por achar que a cidade seria um laboratório útil para examinar as origens, a evolução e efeitos dessa nova ideologia liberal de desenvolvimento urbano por um “interessante” grupo recém-emergente.

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“O planejamento pode ser contra o crescimento, se esse é o objetivo da sociedade, ao invés de a favor dele”. (Tradução nossa) 5 “Uma ideologia do desenvolvimento urbano estava em formação. A estratégia urbana parecia estar passando de uma ênfase no crescimento para uma preocupação com a qualidade de vida; o novo liberalismo estava para ser reconhecido menos por seus cronogramas de produção do que por seus estilos de consumo. Estas alterações não foram, naturalmente, exclusivas para Vancouver, mas fizeram-se sentir em maior ou menor grau, em todas as grandes cidades na América do Norte.” (Tradução nossa) 6 “No entanto, apesar da conservadora administração do prefeito Rizzo (embora nominalmente democrática) com as suas prioridades fortemente influenciados por seu eleitorado étnico, o poder econômico dos profissionais do centro da cidade, levou a certos projetos de urbanização de iniciativa privada e pública na região central da cidade o desenvolvimento do uso da terra.” (Tradução nossa) 17


Realça, também, que “A detailed interpretation of events in Vancouver raises theoretical questions of more general significance.”7 (LEY, 1980, p.240)

A TESE PÓS-INDUSTRIAL

Além das mudanças na política urbana proporcionadas pela nova ideologia liberal de cidade habitável, Ley acredita que existe outro fator que também influenciou na nova configuração urbana naquela época: a sociedade pós-industrial. Então, para melhor compreensão dessa sociedade, o autor considera importante usufruir das ideias de autores que pertencessem àquela sociedade ocidental moderna: Daniel Bell e Jurgen Habermas. Mesmo os dois apresentando linhas de pensamentos diferentes, onde Bell é conservador e Habermas mais radical, ambos possuem complementaridades em suas posições. Os dois veem uma transição decisiva entre a sociedade do século XIX e a sociedade do século XX, entre o período industrial e o pós-industrial de modo que os pensamentos originários no século XIX não são mais cabíveis diante da alteração das circunstâncias da presente era.8 As transformações a nível social e econômico na transição do período industrial para o pós-industrial são analisadas pelo autor a partir do uso do empirismo: “As significant are the empirical consequences.”9 Encontra-se aqui uma ferramenta muito importante para Ley para o desenvolvimento de suas teorias: a apropriação do empirismo e do uso da estatística. Um argumento importante sobre a diferença dessas duas “eras” e que o autor irá se apropriar no seu estudo empírico é o de que “In the economy, a major break with nineteenth century society has been the declining role of unskilled labor in the production process and the growing importance of technology, not only in the factory but also in service industries and administration.” (LEY, 1980, p. 240).10

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“Uma interpretação detalhada de eventos em Vancouver levanta teóricas questões de significado mais geral.” (Tradução nossa). 8 Esse argumento enfatiza a exclusão de teorias e conceitos como a de Marx (originárias do século XIX), os quais Neil Smith se debruça para desenvolver suas teorias de cidade e sociedade. 9 “Como significativas são as consequências empíricas.” (Tradução nossa). 10 “Na economia, uma ruptura com a sociedade do século XIX foi o declínio do papel do trabalho não qualificado no processo de produção e da crescente importância da tecnologia, não só na fábrica, mas também em indústrias de serviços e administração.” (Tradução nossa). 18


Com isso, a tecnologia pôde se desenvolver rapidamente, assim como a gestão técnica e a resolução de problemas, trazendo à tona uma notável transformação na força de trabalho deste século: o surgimento dos chamados “white collar” (colarinho branco), que representam a categoria dos trabalhadores profissionais e de serviços. Ley desenvolve análises percentuais para demonstrar a diferença entre o contingente de empregadores na ocupação de colarinho branco em relação aos que ocupam os “blue collar” (pessoas que trabalham no setor de produção, incluindo a agricultura, e utilizam a força manual) e descobre que: 

A proporção de trabalhadores de colarinho branco nos Estados Unidos aumentou de 18% em 1900, a 37% em 1950 e 49% até 1974. Enquanto o colarinho azul totalizou 35% da força de trabalho em 1974, sobre o mesmo nível que em 1900, embora a proporção tenha vindo a diminuir desde 1950;

No Canadá, enquanto a força de trabalho nacional expandiu em 8,5% de 1971 a 1975, o emprego de colarinho branco aumentou em 25%;

Entre as principais categorias de colarinho branco, o aumento foi mais acentuado nas ocupações profissionais e técnicos, que cresceu 33%, e nas posições gerenciais e administrativas que aumentaram 65%, no mesmo período.

Dois importantes corolários contribuíram no aumento numérico dos empregados de colarinho branco. O primeiro, na categoria de profissionais e seniores, consideradas ocupações de mais elevado prestígio social, foram feitas avaliações a partir de indicadores de renda e educação ou a partir de ocupações de trabalho. Entre estas posições são favorecidos sobre os cargos de proprietários, gerentes e administradores ocupações profissionais altamente classificadas, particularmente, médicos, professor universitário, juiz do tribunal do condado, e advogados. Tais posições, segundo e Ley, irão conter uma parcela desproporcional dos formadores de opinião do estado pós-industrial, corroborando por papéis de liderança no movimento de reforma urbana de Vancouver. O segundo corolário é a transição econômica de um produtor de mercadorias a uma sociedade produtora de serviços:

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“Over seventy percent of the nonagricultural jobs in the United States were service-related by 1977 while less than thirty percent were goods-related, a reversal of the proportions in 1900. In the postindustrial city the office tower rather than the factory chimney dominates the downtown skyline.” (LEY, 1980, p. 241). 11

Portanto, segundo Ley, os trabalhadores de colarinho branco em ocupações profissionais, técnicos e administrativos representando mais de vinte por cento da força de trabalho da América do Norte formam um contraponto teórico para noções do século XIX de capital e trabalho: como uma classe emergente, eles têm que receber uma considerável atenção. Grande número dos serviços ocupados pelos colarinhos brancos é público, não privado. Para Ley, isso mostra o papel ativo do governo como uma característica que se distingue a sociedade pós-industrial da industrial. A seguir há uma tabela onde mostra a diferenças nas principais relações sociais das eras industrial e pós-industrial, na qual Ley enfatiza as questões econômicos, políticos e culturais, baseado nas ideias de Bell e Habermas. (Tabela 1) Tabela 1

Outro fator de distinção é que os interesses particulares da classe emergente liberal têm ganhado cada vez mais espaço na política, não mais só a execução do poder do mercado. Como Bell observou

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“Mais de 70% dos postos de trabalho não agrícolas nos Estados Unidos foram em 1977 relacionados a serviço, enquanto menos de 30% foram relacionados com produção de bens, uma inversão das proporções em 1900. Na cidade pós-industrial, a torre de escritórios, em vez de a chaminé de fábrica, domina o horizonte da cidade.” (Tradução nossa) 20


“we have become a communal society, in which many groups now seek to establish their social rights - their claims on society - through the political process.”12 (BELL apud LEY, 1980, p. 241)

Habermas, ao defender a necessidade da preservação do mundo pessoal de valores e significados contra o ataque racional burocrático e da secular visão de mundo, mostra que foi na década de 1960 que esses interesses e valores particulares ganharam impulso, através da contraofensiva cultural, mais conhecida como contracultura. “In contrast to the rational world view it challenges, the cultural resurgence is characterized by its promotion of alternative values which emphasize the realm of experience, man’s emotional, spiritual, and aesthetic nature.” (LEY, 1980, p. 242)13

Essa filosofia da contracultura foi apropriada, principalmente, pela classe ociosa da América do Norte, onde em British Columbia (província do Canadá, na qual se localiza Vancouver) a satisfação do estilo de vida é mais desejada que o sucesso econômico. Ao mesmo tempo, estas características não se encontram uniformemente distribuídas; há uma geografia da sociedade pós-industrial.

A TESE PÓS-INDUSTRIAL NA GEOGRAFIA DE VANCOUVER

Ley desenvolve uma seção onde examina contextos da geografia de Vancouver que, para o autor, foram capazes de sugerir que a tese pós-industrial apresenta algumas categorias uteis para examinar a mudança social e o desenvolvimento urbano dentro da cidade desde o final dos anos 1960. A partir da análise da tabela (Tabela 2) de “Índice de Empregos na Indústria da Columbia Britânica”, observou-se que o período que mais houve aumento de empregos fora da área de produção foi entre 1972 e 1974, que, segundo o autor, coincide significativamente com o pico do boom de desenvolvimento urbano e a quase duplicação

12

“nós nos tornamos uma sociedade comunal, em que muitos grupos agora buscam estabelecer os seus direitos sociais - as suas reivindicações sobre a sociedade - através do processo político.” (Tradução nossa) 13 “Em contraste com a visão de mundo racional que ele desafia, o ressurgimento cultural é caracterizado pela sua promoção de valores alternativos que enfatizam o domínio da experiência, a natureza emocional, espiritual e estética do homem.” (Tradução nossa). 21


dos preços de habitação da Grande Vancouver (região metropolitana que pertence à província Columbia Britânica – Figura 1).

Tabela 2

Em 1971, a Grande Vancouver era a área metropolitana responsável por mais de 50% da força de trabalho da província. A cidade de Vancouver (Figura 2), com quase ¼ dos postos de trabalho provinciais nesse ano, é sobre-representado nas categorias de mais rápido crescimento no comércio, nas finanças e em serviços, onde 70% dos trabalhadores da cidade eram da categoria de colarinho branco. Ley ainda completa que entre 1951 e 1971 a proporção da força de trabalho da cidade envolvendo serviços e administração pública aumentou mais que a metade e que essas tendências se aceleraram devido ao boom de escritórios que estavam sendo construídos no centro da cidade, adicionando quase três mil postos de trabalho entre 1968 e 1975. Nesse período crescia o horizonte de arranhacéus de escritórios e apartamentos no centro da cidade de Vancouver. (Figura 3) “Between 1967 and 1977 downtown office space doubled to fourteen million square feet. Eight thousand new jobs a year were added in Vancouver from 1971 to 1975 (forty percent of the metropolitan total) and seventy-five percent of these were generated by new office construction.”14 (LEY, 1980, p. 244)

14

“Entre 1967 e 1977 o espaço de escritórios no centro da cidade dobrou para quatorze milhões de metros quadrados. Oito mil novos empregos por ano foram adicionados em Vancouver entre 1971-1975 (quarenta por cento do total metropolitano) e setenta e cinco por cento destes foram gerados pela construção de novos escritórios.” (Tradução nossa). 22


CANADÁ COLUMBIA BRITÂNICA

Figura 1 - Columbia Britânica

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Figura 2 - Grande Vancouver

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Fairview

Grandview

False Creek

Figura 3 - Bairros de Vancouver - Em destaque os bairros da inner city

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A DEMOGRAFIA DE VANCOUVER

Outro fator que Ley considera importante no processo de desenvolvimento urbano, principalmente nas áreas centrais, são os dados demográficos dessa classe emergente. Notou que entre 1971 e 1976, enquanto as grandes famílias15 deixavam Vancouver, estas eram substituídas por um ou dois agregados familiares16. Segundo o autor “One persuasive inference is that conventional households with children and a single wage earner were being displaced by one or two person households without children and with both spouses working. Support for this contention is provided by the construction of over 5,000 condominium units in inner city Vancouver between 1970 and 1976. A survey of condominium households in Greater Vancouver and Victoria conducted in 1977 showed that seventy percent of households contained no children, that in half of them household heads were aged under forty years, that a quarter of households earned over $24,000 and that the dominant employment categories were professional and managerial occupation.”17 (LEY, 1980, p. 244 245)

O NOVO ESTILO DE VIDA CULTURAL

A cultura também possui um grande peso, se não um dos principais, nos estudos do geógrafo. Ele procura analisar as influências culturais de outras cidades no dia –a- dia dos moradores de Vancouver. Dentre elas está o padrão de vida “relaxado” da Califórnia. Esta região era considerada a região chefe do novo estilo de vida norte americano, onde se cultuava a gratificação individual, a saúde física e o exercício. São Francisco também influenciava como centro de estilo de vida e inovação e, ao longo de duas décadas, teria sido sede de movimentos ecológicos. Vancouver projeta tais padrões de vida em suas casas (principalmente inspiradas nas casas californianas) e na grande circulação de uma revista norte americana chamada 15

Grandes famílias para Ley são as famílias que são compostas por pai, mãe e filhos. Agregados familiares são os casais sem filhos. 17 “Uma inferência persuasiva é que as famílias convencionais com crianças e um único assalariado estavam sendo substituídas por um ou dois agregados familiares sem filhos e com ambos os cônjuges trabalhando. O suporte para esta afirmação é fornecido pela construção de mais de 5.000 unidades de condomínio na área urbana de Vancouver entre 1970 e 1976. Um levantamento das famílias do condomínio na Grande Vancouver e Victoria realizado em 1977 mostrou que setenta por cento dos agregados familiares não continha crianças, que metade dos chefes destas famílias tinham menos de quarenta anos, que um quarto dos domicílios ganhou mais de $ 24.000 e que as categorias de emprego dominantes foram profissionais e ocupação de gerência.” (Tradução nossa). 16

26


“Gourmet”, a qual sua compra representa um conjunto distinto de valores de consumo e tais valores são mantidos mais amplamente na Columbia Britânica. Esses estilos são refletidos no surgimento de associações informais e no vigoroso setor de varejo que serve uma busca por lazer e estilo de vida também orientado para o consumo. Uma transição acentuada de tipos de loja tem ocorrido em muitos bairros em resposta aos novos clientes.

DA TEORIA À IDEOLOGIA

Ley defende que a tese pós-industrial influenciou cada etapa do desenvolvimento das esferas políticas, econômicas, culturais e sociais de Vancouver. Segundo o autor “Like all theory, the postindustrial thesis is not politically mute. Though it may develop as a description of societal change, it may subsequently become an instrument in the promotion of change. I have suggested that in the late 1960s the thesis found its historical moment, and that in the service-dominated professional and executive city it found its geographical moment. In Vancouver the thesis also became a political instrument as it was self-consciously appropriated as the slogan of urban reform. In TEAM’s view Vancouver’s “destiny” was as a postindustrial city; the purpose of the political movement was then to hurry the urban development process toward this goal.” (LEY, 1980, p. 245 - 246)18

Portanto, foi baseado nessa tese e na ideologia liberal que o Movimento de Ação dos Eleitores (Elector Action Moviment - TEAM), juntamente com a liderança de Arthur Phillips, traçou o destino da cidade de Vancouver, resistentes ao racionalismo cartesiano que governava a cidade até o final dos anos 1960.

18

“Como toda teoria, a tese pós-industrial não é politicamente silenciosa. Embora possa desenvolver-se como uma descrição da mudança da sociedade, pode, posteriormente, tornar-se um instrumento na promoção da mudança. Sugeri que no final de 1960 a tese encontrou o seu momento histórico, e que na cidade profissional e executiva, dominada por serviços, encontrou o seu momento geográfico. Em Vancouver, a tese também se tornou um instrumento político, à medida que era auto-conscientemente apropriada como o slogan da reforma urbana. Na visão de “TEAM”, o ‘destino’ de Vancouver era como uma cidade pós-industrial; a finalidade do movimento político foi, em seguida, para se apressar o processo de desenvolvimento urbano em direção a esse objetivo.” (Tradução nossa) 27


HISTÓRIA DA CIDADE DE VANCOUVER INDUSTRIAL

Vancouver era uma cidade industrial e portuária desde a sua fundação, em 1886. Em 1936, a cidade adota o modelo progressivo clássico de governo apartidário no grande sistema de administração. No ano seguinte, a Associação Apartidária (Non-Partisan Association - NPA) foi formada e dominou o conselho da cidade até 1968. Durante este período de 30 anos, 90% dos seus candidatos foram eleitos para cargos políticos. Segundo o autor, tal política progressiva de reforma municipal, era marcada por racionalizar a aparência de um governo mais empresarial e com menos representatividade cívica. Descreve também que a burocracia centralizada de especialistas exalava racionalismo e administração científica, para que a mente tecnocrata fosse a ideologia dominante nos serviços públicos municipais. Um exemplo para esse argumento, foi a iniciativa do conselho NPA e sua equipe técnica em 1967 em aprovar um sistema de autoestrada para restaurar a rede de transporte, diante do aumento e dispersão da área metropolitana, que levou um crescente congestionamento do tráfego e atrasos. “In a proposal typical of an ideology where plans came before people, efficiency before equity, and economic costs before social costs, the freeway alignment would have resulted in the destruction of a substantial portion of Vancouver’s Chinatown.” (LEY, 1980, p. 247)19

Uma vez conhecido, o plano foi alvo de críticas de acadêmicos e arquitetos. Poucos meses depois, o TEAM foi fundado; a contraofensiva da mente tecnocrática foi agora formalizada e a ideologia da “cidade habitável” era agora a política da maioria do conselho. Depois de oito décadas de dominação por empresários, durante a nona década de Vancouver, de 1966 a 1975, cerca de 60% dos vereadores eleitos eram profissionais ou semiprofissionais.

19

“Uma proposta típica de uma ideologia em que os planos vieram antes das pessoas, eficiência antes da equidade, e os custos econômicos antes dos custos sociais, o alinhamento livre teria resultado na destruição de uma parte substancial da Chinatown de Vancouver. ” (Tradução nossa) 28


O DISCURSO POLÍTICO E AS INTERVENÇÕES URBANAS

Em cada uma das cinco eleições entre 1968 e 1976, as frases-chaves nos discursos do TEAM, demonstravam a ânsia por um novo desenvolvimento urbano seguindo o novo ideal liberal: “(...) the livable city,” “people before property,” and “the quality of life.” “What unites us,” announced party election literature in 1970, “is a common concern for the quality of life in our city”; in 1976 TEAM was “for people, not concrete and asphalt.”20 (LEY, 1980, p. 250).

Sua ideologia do desenvolvimento influenciou outras áreas da estratégia de reforma como: a defesa consistente de transporte público; unidades de paisagem, passarelas e ciclovias; política de controle de poluição; preservação da beleza cênica; a antipatia para com o automóvel particular foi relacionada também à sua destruição ecológica; preservação do parque e expansão do paisagismo cívico e embelezamento. Em 1972, Arthur Phillips assume a prefeitura e seu foco para o desenvolvimento da cidade habitável seria, segundo Ley, nos lugares mais críticos da cidade: nos núcleos centrais e em seus bairros periféricos. Uma lista de transformações foi realizada: 

No distrito central de negócios a principal rua comercial foi fechada para todos, no qual onde era para transporte público, apesar da oposição dos varejistas, foi transformado em uma zona de pedestres paisagístico;

Preservação de edifícios históricos;

Em Gastown (bairro periférico do núcleo central de Vancouver) – os edifícios históricos foram renovados para um novo centro de artes de espetáculos com uma galeria de arte em separado;

20

"a cidade habitável", "as pessoas antes de propriedade", e "a qualidade de vida." "O que nos une", anunciou literatura na eleição partidária de 1970, "é uma preocupação comum para a qualidade de vida em nossa cidade"; em 1976 o TEAM foi "para as pessoas, não concreto e asfalto. ” (Tradução nossa) 29


Nos bairros residenciais centrais as densidades foram regulamentadas através de downzonings; 21

Árvores e arbustos foram plantadas;

Novos parques foram adicionados;

O acesso do público à beira-mar foi melhorado;

Espaços públicos foram protegidos, animados, e humanizados.

Ley, juntamente com informações oriundas do departamento de urbanismo de Vancouver, argumenta que questões negativas que as áreas centrais da cidade traziam foram tratadas como um problema humano, como a “inconveniência”22 da jornada de trabalho. Segundo o autor, esta estaria ameaçando as amenidades ou habitabilidades da região, permitindo um crescimento não gerenciado “by unwelcome commuter intrusion on inner residential districts.”23 (p.251) Outro incentivo no desenvolvimento das áreas centrais foi a transformação do uso das indústrias já desativadas em áreas residenciais ou de uso misto24, além de incentivar a substituição das indústrias poluentes por indústrias tecnológicas e limpas. Segundo Mayor Volrich “(...) that we can easily identify financial institutions as being a very desirable kind of business to encourage, and technological industries and many other ‘clean’ industries. ” 25(LEY, 1980, p. 252)

Um exemplo apresentado por Ley dessa iniciativa foi o “Redevelopment False Creek”(Figura 4). False Creek era um grande parque industrial da zona em transição adjacente ao núcleo central que cobria 500 acres26 de terra de cada lado da entrada do mar. Em 1968, a política de desenvolvimento do TEAM incluiu uma proposta inovadora para transformar essa área de uso puramente industrial no maior projeto construído no Canadá, 21

Downzoning – “A decisão de limitar o número ou o tamanho dos edifícios em uma área da terra, ou para limitar o tipo de negócios ou atividades que podem ocorrer lá” (http://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/downzoning - Acessado em 11/08/2016). 22 Grifo meu. 23 “pela intrusão de um comutador indesejável em bairros residenciais centrais.” (Tradução nossa) 24 Em quase todos os casos os downzonings foram apoiados por grupos de cidadãos locais em oposição à indústria de desenvolvimento de terra. 25 “(...) que podemos facilmente identificar as instituições financeiras como sendo um tipo muito desejável de negócios para incentivar, e indústrias tecnológicas e muitas outras indústrias” limpas.” (Tradução nossa) 26 Correspondente a 2023430.00 m². 30


com uma combinação criativa de residências para diferentes rendas, juntamente com outros tipos de uso, como as indústrias limpas. Segundo o autor “The False Creek redevelopment is perhaps the most dramatic landscape metaphor of liberal ideology, of the land use implications of the transition from industrial to postindustrial society, from an ethic of growth and the production of goods to an ethic of amenity and the consumption of services.”27 (LEY, 1980, p. 252)

Figura 4 - Planejamento da cidade habitável: Redesenvolvimemto da False Creek.

Mesmo na base de críticas quanto a inovadora proposta28, a remodelação de False Creek representou a grande realização do planejamento da cidade habitável, demonstrando o que poderia ser realizado em terras públicas por iniciativas políticas criativas. Nessa época, os principais promotores se recusaram a se envolver com o projeto e credores hipotecários eram lentos a participar. Então, este vácuo foi preenchido por apoio dos departamentos de habitação dos governos seniores.

27

“A remodelação de False Creek é talvez a mais dramática metáfora na cena da ideologia liberal, das implicações do uso da terra na transição da sociedade industrial para a pós-industrial, de uma ética do crescimento e da produção de bens para uma ética de lazer e o consumo de serviços” (Tradução nossa) 28 “low income housing ghetto” (gueto de habitantantes de baixa renda) (LEY, 1980, p. 254) 31


OS INSSUCESSOS DA NOVA POLÍTICA LIBERAL

Segundo Ley, numa época em que as comodidades foram um fator significativo não só da migração pessoal, mas também da localização industrial e de escritório, a estratégia de cidade habitável do TEAM ajudou a aumentar as pressões de demanda habitacional no centro da cidade. Ao mesmo tempo, tanto suas políticas de desenvolvimento, quanto as da província e do governo federal, contribuíram para limitar a oferta de habitação. Os proprietários de imóveis e desenvolvedores capitalizados29 aproveitaram esse gargalo e os preços da terra dispararam, onde no mercado de terras privadas a ideologia liberal promoveu um novo elitismo. Essas relações foram ilustradas pelo autor a partir de três intervenções proporcionadas pela política urbana do TEAM, levando a consequências sociais indesejáveis. A primeira foi com o plano para embelezar a Granville Street (principal avenida comercial da cidade) e transformá-la em um calçadão de pedestres, o qual foi resistido pelos lojistas locais. Tal resistência era coerente, pois logo após o “facelift”30 da avenida os proprietários elevaram substancialmente o aluguel das lojas muitos do comércio varejista foram obrigados a mudar. Uma segunda questão foi a valorização da área central com o apoio do TEAM no desenvolvimento de um jardim botânico de cinquenta e cinco acres na primeira em mais prestigiada área residencial de Vancouver. A terceira intervenção foi o projeto de remodelamento e mudança de uso de False Creek, no qual durante sua construção foram removidas habitações populares nas áreas adjacentes ao bairro. Ley argumenta que “But redevelopment of False Creek has replaced a noxious area by a highly desirable one, and the old residences of the Fairview Slopes have been demolished and replaced by expensive townhouses. In each instance an action stemming from liberal ideology has disfavored a vulnerable income group and favored the more privileged.”31 (LEY, 1980, p. 256)

29

“developers capitalized” Tratamento de fazer algo visual mais atraente, por exemplo, um edifício. (http://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/downzoning - Acessado em 11/08/2016). 31 “Mas a remodelação de False Creek substituiu uma área poluída por uma altamente desejável, e as antigas residências de Fairview Slopes foram demolidas e substituídas por moradias urbanas caras. Em cada instância uma ação decorrente da ideologia liberal tem desfavorecido um grupo de renda vulnerável e favorecido os mais privilegiados. ”. (Tradução nossa) 30

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Diante deste cenário, o autor ainda acrescenta que “The unintended elitism of livable city policies pointed to the biased distribution of TEAM’s power base and the interests it represented.”32. Em nenhuma eleição cívica fez os candidatos aldermanic33 do TEAM ganharem metade do voto popular. O autor alega que, após todas essas intervenções, noventa e oito conflitos pelo uso da terra foram relatados em jornais de grande circulação da cidade. Um partido de oposição que surgiu no final dos anos 1970, o COPE (Committee of Progressive Electors) acusava o TEAM de divulgar propagandas elitistas e serem negligentes com as necessidades dos menos favorecidos. Por fim, o autor conclui que o TEAM não era uma apologia de soluções técnicas ou de interesses econômicos. Ele teria intitucionalizado os valores de um movimento social de profissionais trabalhadores de colarinho branco, que foram atraídos por questões ligadas às necessidades urbanas de vidas mais elevadas. E essa representação e promoção desses valores socioculturais teria tido mais sucesso no desenvolvimento publico, principalmente na criatividade do redesenvolvimento da False Creek. . Mas, em sua interação com os interesses privados, em particular no mercado de terras, o movimento de reforma foi, talvez, muito ingênuo, em não reconhecer que a sua filosofia humana não seria cooptada pelo cálculo do mercado, conduzindo assim a um resultado desigual onde as vulnerabilidades dos pobres estariam expostas.

32

“O elitismo involuntário das políticas da cidade habitável apontou para a distribuição desigual de poder de base do “TEAM” e os interesses que representava. ” (Tradução nossa) 33 Nos EUA, na Austrália e no Canadá, um membro eleito de um governo da cidade. (http://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/downzoning - Acessado em 11/08/2016). 33


CAPÍTULO II

TEORIA DE NEIL SMITH

Outro enfoque conceitual e metodológico a respeito da gentrificação é proposto pelo geógrafo Neil Smith34, professor e catedrático de geografia na Rutgers University de New Brunswick (Nova Jersey). Dentre uma respeitável produção acadêmica sobre o processo de gentrificação, a publicação de "Toward a theory of gentrification: a back to the city movement by capital, not people" no Journal of the American Planning Association (SMITH, 1979) e traduzido para o espanhol como “Hacia una teoría de la gentrificación. Un retorno a la ciudad por el capital, no por las personas”35 foi, em parte, a resposta ao primeiro trabalho de David Ley - “Inner city resurgence units societal context” - de 1978. Por ser uma resposta à Ley, nos argumentos iniciais do artigo acima citado, Smith já expõe suas inquietações quanto à teoria do referido autor: como a origem das pessoas de classe média e média alta que passaram a ocupar as áreas centrais da cidade e sobre os impactos sócio espaciais nessas áreas. Para Smith, a gentrificação é um resultado esperado pela atuação relativamente livre de obstáculos dos mercados de terra e de habitação, a qual

34 35

Falecido em 2012. Traduzido por Núria Font. 34


ocorre onde há uma depreciação econômica do capital investido nos bairros centrais degradados do século XIX e o aumento simultâneo dos níveis potenciais de renda da terra, possibilitando uma renovação urbana rentável (SMITH, 2015). Nessas condições, argumenta que para a gentrificação constituir uma reestruturação básica do espaço urbano independe de onde provêm os novos habitantes, mas sim de quanto capital produtivo retornará à região desde os subúrbios. Mais tarde, o autor dirá que as questões demográficas e o estilo de vida dos habitantes serão fundamentais na determinação da forma que o processo de reestruturação urbana assume, mas não para sua origem (SMITH, 1996). Baseando-se no histórico de degradação de algumas cidades americanas, Smith percebeu que muitas delas, haviam experimentado a gentrificação de certos bairros centrais da cidade. “Las primeras señales de recuperación aparecieron durante la década de 1950, se intensificaron em los años 1960, y para la década de 1970 ya constituían um movimiento de gentrificación generalizado presente em la mayoría de las ciudades más antiguas del país. Um estúdio reciente, realizado por el Urban Land Intitute (1976) señala que casi la mitad de lãs 260 ciudades com uma población mayor de 50.000 habitantes están experimentando rehabilitaciones em sus áreas centrales.” (SMITH, 2015, p.78)36

Mesmo que esse processo representasse uma pequena parcela das primeiras novas habitações, comparadas com as novas construções a nível nacional (no caso os EUA), a gentrificação é muito importante nas cidades mais antigas no nordeste do país, embora não se limitasse a elas. Juntamente com a expansão do processo, era produzida, simultaneamente, uma vasta bibliografia a respeito, que segundo o autor havia poucas tentativas de construir explicações históricas sobre o processo, de estudar a causa no lugar dos efeitos ou dos processos contemporâneos. A maioria das investigações era focada nas características socioeconômicas e culturais da classe imigrante, nos deslocamentos, no papel do governo federal com a renovação urbana, nos benefícios para a cidade, assim como na criação e 36

Em seus escritos posteriores, a gentrificação durante a década de 1970 será marcada pela transição de um processo considerado esporádico, o qual precedeu a crise financeira fiscal dos anos 1970, para sua fase de consolidação, que termina dos anos 1980. Nessa ocasião, a gentrificação generalizada representa o bem tardio renascimento econômico da cidade, entre 1994 e 1996. (SMITH, 2006, p.63)

35


destruição das comunidades. São fatores que eram consideradas evidentes pelos pesquisadores e que se dividiam apenas em duas categorias: Cultural e econômica.37 Segundo Smith, os fatores considerados culturais seriam: 

A mudança do estilo de vida dos jovens, a qual teria sido significativa para diminuir a atração às habitações unifamiliares suburbanas (GREGORY apud SMITH, 2015, p.79)

Tendência a ter menos filhos;

Tendência e atrasar a maternidade;

Crescimento da taxa de divórcios;

Busca por comunidades socialmente diferentes, que ofereçam entornos favoráveis para a auto expressão individual (WINTERS apud SMITH, 2015, p. 79);

Além dos princípios que Ley defendia sobre a sociedade pós-industrial, onde as pautas do consumo ao passar a condicionar as pautas da produção guiam as decisões sobre o solo no centro da cidade.

Os fatores econômicos eram relativos às diversas condições que levavam ao custo de vida aumentar nos subúrbios. Portanto “A medida que el coste de construcción de las nuevas viviendas continúa creciendo y su distancia respecto al centro de la ciudad aumenta, la rehabilitación de edifícios en el centro de la ciudad y em los barrios periféricos deprimidos comieza a ser vista como económicamente viable.” (SMITH, 2015, p.80)

O autor questiona o fato dessas investigações, tanto culturais como econômicas, enfatizarem a preferência do consumidor e as limitações de suas escolhas. Argumenta também que tais aspectos compartilham o campo mais geral da teoria neoclássica sobre o uso do solo residencial. Para essa teoria a suburbanização é um reflexo da preferência pelo espaço e de uma capacidade crescente para pagar por ele, devido à redução das limitações de transporte e custos baixos das terras: já a gentrificação seria a mudança das preferências pessoais ou modificações das restrições, que iriam determinar como essas preferências poderão ser efetuadas.

37

Nota-se que todos os fatores citados serviram como ferramentas para as o desenvolvimento da teoria de Ley. 36


Contudo, ao longo de seu artigo, Smith, procurou apresentar dados do bairro Society Hill (Filadélfia – EUA) que entram em conflito com a afirmação de Ley quanto à origem das pessoas que passaram a ocupar os centros urbanos38; Para tanto, examinou a importância desse resultado em relação à teoria da soberania do consumidor; e procurou aumentar o conhecimento teórico sobre as causas da gentrificação.

UM REGRESSO DESDE OS SUBÚRBIOS?

Uma breve história de Society Hill é relatada pelo autor a fim de contextualizar o bairro perante as análises até então realizadas. Até meados do século XIX, o bairro abrigou a alta burguesia da Filadélfia, mas com a industrialização e o crescimento urbano aquela burguesia, juntamente com a ascendente classe média, mudou-se para o Oeste de Rittenhouse Square, para os novos subúrbios do Noroeste ou para o outro lado do rio Schuylkill. Desde então, Society Hill passou por um processo de degradação, mantendo-se como um bairro marginal até 1959, ano em que se pôs em prática o plano de renovação urbana. Desde então, o bairro passou a abrigar as novas classes média e média alta da cidade. Houve uma grande repercussão sobre o plano na mídia, com depoimentos como “Después de todo, la remodelación de casas antiguas es uno de los desportes de interior favoritos de la Antigua Filadélfia, y ser capaces de remodelar y al mismo tempo servir conscientemente a la causa del renacimiento cívico se há subido a la cabeza de las clases altas como el champán.” (SMITH, 2015, p.82)

Diante das repercussões, observou-se que no imaginário popular estaria sucedendo um retorno da classe alta ao centro da cidade. Quanto à origem desses imigrantes, Smith constatou, através de dados oficiais registrados pela Redevelopmente Authority da Filadélfia, que de 1964 até 1975 menos de um terço das famílias que compraram propriedades no centro para reabilita-las provinham dos subúrbios (Tabela 1). Em comparação com outros bairros de cidades que estavam passando pelo mesmo

38

No artigo de David Ley apresentado anteriormente, o autor não levantou essa questão, apenas no texto ““Inner city resurgence units societal context”. A partir dos contrapontos que Smith aborda quanto a origem da classe média e média alta, constato que Ley defendia no referido texto que essas classes teriam saído dos subúrbios para ocupar as áreas centrais urbanas. 37


procedimento, como Baltimore e Washington DC, o resultado teria sido semelhante (Tabela 2). Com esses dados, Smith afirma que, de fato, ocorria uma consolidação de residências da classe branca média e alta nos centros das cidades, mas não um regresso desde os subúrbios.

Tabela 1

Tabela 2

A afirmação não desmentiria a hipótese da soberania do consumidor, mas sugere algumas limitações e melhorias. Smith reconhece que existiam casos que poderiam expressar tal regressão, como os jovens que saem da cidade para sua formação acadêmica e profissional e decidem não voltar para os subúrbios. Mas a questão enfatizada pelo autor é que tais fatores teriam sido analisadas como explicações definitivas para um processo que não é unicamente norte americano e que estava acontecendo em muitas cidades de toda a

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Europa, “aunque allí la existencia de uma clase media suburbana sea mucho menor y la relación entre los suburbios y el centro de la ciudad sea sustancialmente diferente.” (SMITH, 2015, p.85) Portanto, a hipótese sobre a cidade pós industrial de Ley é abrangente demais para explicar a gentrificação a nível internacional. Ainda sobre a tese quanto a soberania do consumidor, Smith a problematiza proferindo que se tal tese, juntamente com a da cultura, realmente explicassem a gentrificação, equivale aceitar a hipótese de que as preferências individuais estariam mudando em harmonia a nível nacional e internacional, o que seria uma visão deprimente sobre a natureza humana e a individualidade cultural. Portanto, “El concepto solo puede considerado viable teóricamente si se utiliza para referirse a la preferência social coletiva, pero no a la individual. Esta refutación de la aproximación neoclássica a la gentrificación es solo un resumen crítico y de ningún modo exhaustivo.” (SMITH, 2015, p. 86)

Uma teoria mais ampla da gentrificação tem que levar em conta o papel tanto dos produtores como dos consumidores e, diante disso, segundo o autor, são evidentes que as necessidades de produção – em particular , a necessidade de obter lucro – são aspectos mais decisivos para a gentrificação do que as preferências do consumo. Isso não significa entender que o consumo seja uma consequência automática da produção, ou como algo totalmente passivo causado por esta, pois “Esto sería plantear una teoría sobre la soberania del productor, casi tan parcial como su contraparte, la teoría neoclássica.” (SMITH, 2015, p.86) A relação entre a produção e o consumo seria simbiótica, onde a produção dominaria e o consumo seria primordial na determinação da forma e no caráter final das áreas revitalizadas, como é o caso da diferença entre Society Hill e Soho em Nova Iorque. (Figuras 1 e 2)

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Figura 5 - Nova construção em Society Hill - Nova Iorque, 1973 - Fonte: http://philadelphiaencyclopedia.org/archive/gentrification/

Figura 6 - Feira de arte em Soho - Nova Iorque, 1976 – Fonte: https://sohomemory.com/tag/gentrification/

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Mesmo o chamado “renascimento urbano”39, que tanto foi divulgado pela mídia na Filadélfia, é mais estimulado pelas forças econômicas que culturais. Nesse caso, a preferência do consumidor tende a prevalecer mais que as outras quando, na escolha por reabilitar um edifício no centro da cidade, o consumidor prioriza a rentabilidade, ou mais concretamente, o bom investimento financeiro. Portanto, Smtih argumenta que “Uma teoría de la gentrificación deberá, por lo tanto, explicar por qué em algunos barrios la rehabilitación resulta rentable y em otros no. ?Cuáles son las condiciones de la rentabilidad? Las explicaciones sobre la soberania del consumidor daban por sentado que se debía a la disponibilidad de zonas maduras para la gentrificación pero esto es precisamente ló que debía ser explicado.” (SMITH, 2015, p.87)

A partir desses questionamentos, o autor irá esmiuçar sua teoria, mas para melhor coerência, dará um passo atrás e examinará a gentrificação em um contexto estrutural e histórico mais amplo de investimento de capital no espaço construído e desenvolvimento urbano.

O INVESTIMENTO NO ESPAÇO CONSTRUÍDO

Partindo do pressuposto de que numa economia capitalista, a terra e tudo que se constrói sobre ela se converte em mercadoria, Smith ressalta três particularidades que serão relevantes para o debate:

1ª) Os direitos de propriedade privada concedem ao proprietário um controle quase de monopólio sobre a terra e suas melhorias, e um controle de monopólio sobre os usos que se destina um determinado espaço. Desta condição que se deriva a função da renda da terra.

2ª) Embora a terra e suas melhorias tenham uma localização fixa no espaço, seu valor não é fixo. As melhorias sobre a terra estão sujeitas a todas as influências normais sobre seu valor, embora com uma diferença fundamental. Por um lado, o valor das melhorias construídas em um pedaço de terra, assim como os seus 39

Grifo do autor. 41


arredores, influência sobre a renda da terra que podem exigir seus proprietários; Por outro lado, uma vez que a terra e os edifícios que estão nela são inseparáveis, o preço dos edifícios, mudando de mãos, reflete no nível de renda da terra. Entretanto a terra, ao contrário das melhorias construídas sobre ela, "no requiere de un mantenimiento para seguir teniendo su potencial de uso" (HARVEY apud SMITH, 2015, p.88) e, assim, mantém o seu valor potencial.

3ª) Enquanto a terra é algo permanente, as melhorias construídas sobre ela não são, embora geralmente tenham um período de rotação muito longo, tanto em termos físicos como de valor. “El deterioro físico de un edifício difícilmente ló destruirá antes de 25 años, normalmente dura mucho más, y puede llevar esse tiempo recuperar su valor em términos econômicos (no em términos contables)” (SMITH, 2015, p.88)

Diante dessas questões, o autor constatou que, numa economia capitalista bem desenvolvida, grandes investimentos iniciais serão necessários para produzir uma inversão no entorno construído. Portanto, as instituições financeiras desempenharão um papel importante no mercado de terra urbano e, em termos de depreciação do capital, serão uma variável que determinará se, até que ponto, o preço de venda do edifício reflete no nível da renda da terra. Nesta mesma economia, o lucro constitui uma medida de êxito e a competência é o mecanismo pelo qual o êxito ou o fracasso se traduzem em crescimento ou colapso. Deste modo, a busca pelo lucro crescente se converte num crescimento econômico ao longo prazo, pois a fim de atingir o êxito, uma estabilidade econômica geral é então sinônimo de crescimento econômico generalizado. Visto isso, o processo de suburbanização, que ocorreu na maioria das cidades norte americanas e na Europa, é um exemplo de como o entorno construído se converte em objeto de investimento muito mais rentável, especialmente quando o crescimento econômico encontra dificuldades em outras partes do setor industrial. Diante à crise naquela época, a resposta para a necessidade contínua de acumulação de capital foi a expansão espacial e não a expansão in situ.

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A suburbanização, entretanto, ilustra a dupla natureza do investimento no entorno construído, tanto podendo facilitar na acumulação, como se tornando uma barreira para tal fim. Nas três particularidades mencionadas anteriormente, tal barreira pode ser vista em cada uma delas:

1ª) O controle , quase que monopólio, dos proprietários sobre o espaço pode impedir a venda da terra para sua urbanização;

2ª) A imobilidade de investimentos numa área obriga que os novos desenvolvimentos urbanos caminhem para outras localizações menos favoráveis, retardando a renovação naquela área até que o capital anteriormente investido chegue ao fim de sua vida;

3ª) O longo período de recuperação do capital investido no ambiente construído pode desencorajar o investimento sempre que outros setores da economia com períodos de retornos mais curtos acabam sendo mais rentáveis. O MODELO CÔNICO DE HOMER HOYT E A INNER-CITY40

Na década de 1930, Homer Hoyt , a partir de suas pesquisas sobre Chicago, propôs um clássico modelo cônico que mostrasse a variação de valor da terra conforme a distância em relação ao centro da cidade. O modelo, no final do século XIX, apresentava um formato de cone: o vértice sobre o centro urbano, com um declive gradativo em direção às periferias. Mas, no final dos anos 1920, Hoyt identificou uma anomalia no comportamento do gráfico, pois um vale começou a se formar entre o cume do cone e as áreas periféricas. (Gráfico 1) Smith observou que esse vale se relacionava com o processo de desinvestimento da inner city, juntamente com o deslocamento do capital e das classes média e média alta em direção aos subúrbios, onde as taxas de lucratividades eram maiores. Segundo o autor

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Áreas próximas ao centro, habitadas por populações mais pobres. 43


“De hecho, a lo largo de las décadas com uma suburbanización más prolongada, desde 1940 hastala década de 1960, este valle em la curva del valor del suelo se profundizó y se amplió por la contínua ausência de inversión del capital productivo.(...) La evidencia em otras ciudades sugiere que esta depreciación del capital, así como la ampliación consiguiente del valle em el valor del suelo, ocurrió em las ciudades más antiguas del país(...), dando pie a barrios marginales y ghettos(...).” (SMITH, 2015, p. 91-92)

Gráfico 1 Evolución delos valores del suelo em Chicago (em Hoyt, 1933)

Com tudo, diante desse movimento de transformação, Smith irá explicar a formação das inner-cities, através dos mecanismos históricos de depreciação do capital nessas áreas. Mas antes disso, para uma melhor compreensão de sua teoria, o autor detalhará a relação entre o valor da terra e o valor da edificação, decompondo-as em quatro categorias (valor da edificação, preço de venda, renda da terra capitalizada e renda potencial da terra), mas que se relacionam entre si.

Valor da edificação: Em oposição à teoria neoclássica, que ao enfatizar a preferência do consumidor, explica o preço como uma relação entre oferta e demanda, o autor seguirá a tradição marxista da teoria valor-trabalho para distinguir o valor da edificação do seu preço. Se o valor de uma mercadoria é medido pela quantidade de força de trabalho socialmente necessária para produzi-la, uma edificação também pode ter seu valor mensurado pela força de trabalho empregado na sua construção. Apenas no mercado 44


imobiliário que o valor se converterá em preço. Embora o preço de uma edificação reflita seu valor, ambos não podem ser assimilados automaticamente, pois o preço também é influenciado pelas condições de oferta e demanda. O mercado imobiliário apresentará uma particularidade que tornará essa relação mais complexa: as edificações, periodicamente, retornam ao mercado através de revenda. Portanto, o valor das edificações também dependerá de sua taxa de depreciação, devido ao uso cotidiano ao longo dos anos, e da taxa de apreciação, quando se agrega mais valor a partir de investimentos em manutenção, reformas, etc. (SMITH, 2015, p.93-94)

Preço de venda: A categoria preço ainda exige mais algumas considerações. O preço de venda da edificação representa não somente o seu valor, mas também um componente adicional da renda, já que a terra é geralmente vendida com a sua estrutura. Portanto, aqui é preferível falar em renda da terra em vez de valor da terra, já que seu preço não reflete a quantidade de força de trabalho aplicado nela, como no caso do valor de uma mercadoria. (SMITH, 2015, p.94)

Renda da terra e renda terra capitalizada: A discussão a respeito da renda da terra possui uma longa tradição no campo da economia política, tendo recebido contribuições teóricas de A. Smith, Malthus, Ricardo e Marx. (MARTINS, 2015, p. 203) Segundo o autor, a renda da terra é uma reivindicação feita pelos proprietários pelo uso de sua terra e que representa uma redução da mais-valia criada além do preço de custo dos produtores sobre o terreno. A renda da terra capitalizada se refere à real quantidade de renda da terra apropriada pelo proprietário, dado seu atual uso. No caso de aluguel imobiliário, as funções de produção e propriedade estão combinadas, e a renda da terra se torna uma categoria ainda mais intangível, embora possua uma presença real. A renda da terra capitalizada do proprietário retorna principalmente na forma de aluguel pago pelo inquilino. No caso da ocupação do edifício pelo próprio proprietário, a renda da terra é capitalizada somente quando o imóvel é vendido e quando aparece como parte do preço de venda. Desse modo, preço de venda = valor da edificação + renda da terra capitalizada (SMITH, 2015. p. 94-95).

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Renda potencial da terra: De acordo com seu atual uso da terra, um terreno ou um bairro, por exemplo, é capaz de capitalizar uma certa quantidade de renda da terra. Por razões de localização, geralmente, uma área pode capitalizar maiores quantidades de renda da terra sob um uso diferente. A renda potencial da terra é a quantia que pode ser capitalizada sob o “maior e melhor uso” que se faz dela. Esse conceito é particularmente importante para explicar a gentrificação. (SMITH, 2015. p. 95). A partir desses conceitos, segundo o autor, será possível delinear o processo histórico que possibilitou a gentrificação em alguns bairros.

DEPRECIAÇÃO DO CAPITAL NA INNER-CITY

Smith demonstra que a deterioração física e a depreciação econômica da inner-city constituem um resultado estritamente lógico e racional do mercado imobiliário. Não se trata de uma mudança natural, já que o próprio mercado é um produto social. O declínio de um bairro é resultado de decisões de um conjunto de atores – privados e/ou governamentais. O autor irá identificar alguns processos destacados na sessão anterior que caracterizem as distintas fases do declive, tomando como pressuposto que os bairros que mencionou durante seu artigo são relativamente homogêneos quanto a antiguidade e qualidade de seus edifícios. Mas ciente de que as dinâmicas cotidianas de deterioração são complexas e diferentes entre os bairros em geral.

Nova construção e o primeiro ciclo de vida

Após a construção de um novo bairro, durante seu primeiro ciclo de vida, a renda da terra geralmente aumenta na medida em que o desenvolvimento urbano continua crescendo, mas o valor do edifício começa a cair lentamente, caso isso aconteça. Porém, o preço da venda aumenta. Smith afirma que a depreciação do valor do edifício pode ser consequência: das melhorias da produtividade do trabalho (devido às inovações tecnológicas e as mudanças na organização do processo de trabalho); da obsolescência do estilo (estimulado pelo mercado ao promover novos estilos); e a deterioração física (quando o edifício passa a necessitar de manutenções regulares, tanto menores quanto maiores). Essa depreciação

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levará a um declínio do preço em relação às novas edificações, mas essa dimensão dependerá das mudanças na renda da terra ao longo do tempo.

Locadores e proprietários

Após o primeiro ciclo de uso, os bairros que não realizam as reparações necessárias tentem a deixar de ser unicamente familiar, para moradias de aluguel. Assim, surgem pautas de manutenção diferentes, dado que os locadores utilizam os edifícios com propósitos distintos que os dos proprietários. No mercado imobiliário, os proprietários que moram em suas próprias habitações são ao mesmo tempo consumidores e investidores e, com isso, sua principal renda provém do aumento do preço de venda sobre o preço de compra. Já o locador, recebe sua renda principalmente em forma de aluguel, mas enquanto continuar recebendo este, pode estar menos propenso em continuar realizando as reparações. Segundo Lowry “la falta de mantenimiento es uma respuesta perfectamente razonable de los propietarios ante um mercado en declive” (LOWRY apud SMITH, 2015, p. 99) e, a transição de proprietário para locador, segundo Smith, é geralmente associado a mercados em declínio. Nessas condições, torna-se difícil para os proprietários e locadores lutarem contra a deterioração. O valor dos edifícios continua diminuindo e os níveis de renda capitalizada da terra na região caem para baixo da renda potencial da terra. (Gráfico 2) Dependendo do estado de degradação que o bairro se encontrar, muitas instituições financeiras se rejeitam a investir na região e caminham a procura de lucro nos subúrbios.

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Gráfico 2 El ciclo de depreciación em los Barrios centrales deteriorados

Abandono

Quando os locadores não conseguem mais obter uma renda suficientemente necessária para cobrir os custos necessários, os edifícios são abandonados. Não seria algo que ocorresse em propriedades individuais, como em outras áreas mais estáveis, mas é um fenômeno que ocorre em escala de bairro. Segundo Smith “(...)muitas das viviendas abandonadas conservan uma estructura em buen estado. Y es que los edifícios no son abandonados porque no Sean útiles, sino porque su uso no resulta rentable. El momiento final de abandono puede ser desencadeado (aunque no causado) por circunstancias diversas, incluso por parte del Departamento de Vivienda dela ciudad, a través de uma aplicación estricta del código técnico de edificación.” (SMITH, 2015, p.103)

GENTRIFICAÇÃO: O DIFERENCIAL POTENCIAL DE RENDA (RENT GAP)

Smith, ao logo de seu trabalho, apresentou situações que, possivelmente, levariam ao processo de deterioração das inner cities, além de apresentar os possíveis agentes e forças do mercado que corroboram para tal processo. Esse conjunto de informações teria

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sido um resumo de um processo comum do mercado de habitação que, embora não seja universal, afetou muitos bairros: o filtering.41 Segundo o autor, o filtering seria um processo que quase sempre precede a gentrificação, mas para essa acontecer, não é necessário que o processo tenha acabado. O filtering é precedido pela depreciação e desvalorização do capital investido nas inner cities. Essa depreciação gera as condições econômicas objetivas para que o aumento do valor do capital (gentrificação) seja uma resposta racional do mercado. Neste caso, Smith à teoria do diferencial potencial de renda (rent gap). O rent gap é a disparidade entre o nível de renda potencial da terra e a renda capitalizada da terra, dado o atual uso da terra. Já o rent gap do filtering é produzido por uma depreciação do capital, assim como através de um desenvolvimento e uma contínua expansão urbana. Dessa maneira, o “vale” identificado por Hoyt pode ser interpretado como uma ampliação do rent gap. A gentrificação está estreitamente relacionada ao rent gap, pois aquela só se realiza quando este é amplo o suficiente para que os investidores comprem imóveis e terrenos a preços reduzidos, paguem os custos e o lucro dos construtores para a requalificação urbana, cubram os juros sobre hipotecas e empréstimos de construção e, posteriormente, vendam o produto final por um preço capaz de lhes deixar uma satisfatória margem de lucro. “A partir de ese momento toda la renta del suelo, o una gran parte, está capitalizada; el barrio se há ‘reciclado’ y empieza un nuevo ciclo de uso.” (SMITH, 2015, p.105) Na medida que as primeira áreas são renovadas, os investidores buscam outras mais distantes das inner cities, que estejam em processo deterioração e oferecendo rendimentos baixos para iniciar um novo ciclo Smith enfatiza o papel do Estado nesse processo. Durante sua pesquisa sobre os primeiros casos de gentrificação nos EUA, o Estado se encarregou de reunir as propriedades com preços de mercado e devolvê-las aos investidores a um preço com taxação inferior. Logo, o Estado suportou os custos nos últimos estágios de desvalorização

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O filtering, ou filterin down, como já foi chamado no passado, é o oposto da gentrificação. Ocorre quando as famílias que se mudam para determinado bairro são de nível socioeconômico mais baixo que o daquelas que se movem para fora. Entendido como um processo de mudança espacial, social e urbana, ele é associado à Escola de Chicago, particularmente ao modelo de zonas concêntricas de E. Burgess e, mais ainda, ao modelo setorial de uso da terra de H. Hoyt (CLARK apud MARTINS, 2015). 49


do capital, garantido aos investidores elevados retornos financeiros, sem os quais a requalificação urbana da área não teria acontecido. O autor acrescenta que, “Atualmente, com o Estado menos involucrado en este processo, los promotores son obviamente capaces de asumir los costes de devaluácion del capital que aún no se ha depreciado totalmente.”(SMITH, 2015, p.108)

Uma vez alcançada a gentrificação, Smith retorna à relação de produção e consumo. Para o autor, o processo não se inicia através de atuações das preferências de consumo individual, segundo prezam os economistas neoclássicos, mas sim através de uma ação coletiva em nível de bairro. Mas, até mesmo no processo de reabilitação de edifícios e na transformação dos bairros, a ação coletiva dependerá do capital hipotecário e dos empréstimos financeiros. Smith afirma que mesmo o filtering constituir uma causa essencial para o rent gap e abrindo caminho para a gentrificação nos Estados Unidos, tal processo pode não ser semelhante em outros lugares. Isto pode acontecer porque a participação do Estado contempla numa grande diversidade de ações nos episódios de gentrificação em todo o mundo. O autor ainda enfatiza a questão de que a gentrtificação constitui um movimento de retorno de capital à cidade, não das pessoas. Essas, por sua vez, como já comprovado, após o processo já realizado, viriam da própria cidade não dos subúrbios. Um movimento de reestruturação espacial urbana, com o retorno às cidades da classe média e média alta, enquanto que os pobres e a classe trabalhadora herdariam os velhos e deteriorados subúrbios, “en una irónica e cruel continuación del processo de filtering.” (SMITH, 2015, p.110) Finalmente, Smith conclui que “La inversión en el espacio construído es el mayor medio para la acumulación del capital, tal y como se puso de relieve al hablar de la suburbanización. Este processo es cíclico y, dada la larga vida y el carácter fijo de estas inversiones, los nuevos ciclos de inversión van a menudo asociados a crisis y câmbios em la localización de la acumulación. Em este contexto, la gentrificación, así como otros tipos de renacimiento urbano, podrían ser la punta de lanza (...) de uma estructuración espacial más amplia (...) aunque que podrían estar acompanãda e influenciada por uma restructuración de la cultura de clase media, esta solo sería secundaria.” (SMITH, 2015, p. 110-111)

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CAPÍTULO III

CONFLITOS TEÓRICOS E IDEOLÓGICOS

Após a publicação da teoria de Smith, em menos de uma década as análises acadêmicas sobre gentrificação passaram a ser comuns, a fim de desvendar como muitos bairros da classe trabalhadora nas cidades em todo o mundo capitalista avançado foram transformados em reservas da classe média. Duas abordagens distintas dominaram o tema na literatura naquela época: uma era altamente empírica, que enfatizava a coleta de informações descritivas sobre casos específicos de gentrificação e, ocasionalmente, comparava o resultado dos diferentes estudos (muitas vezes através de econometria, um estudo bastante utilizado nas ciências econômicas); a outra, e em parte como resposta à abordagem empírica, teria uma abordagem mais teórica preocupada com a explicação das causas subjacentes da gentrificação, em vez de descrever suas instâncias. Havia também um número grande de pesquisadores que enfatizava a necessidade de preencher a lacuna entre as abordagens empíricas e teóricas. Em geral, muitos pesquisadores adotaram a teoria de Neil Smith sobre rent gap como objeto de análise em cidades, principalmente, de países centrais. Muitas críticas 51


foram levantadas também, levando o próprio Smith a reconhecer a importância de algumas e analisá-las em estudos posteriores. David Ley, por sua vez, era um desses pesquisadores que se enquadrava nos estudos com abordagens empíricas. Após suas análises descritivas do contexto político, econômico e cultural de Vancouver, além do uso de indicadores para a formulação de sua teoria sobre gentrificação, quase dez anos depois da publicação da teoria de Smith, o autor resolveu unir as quatro principais explicações sobre o processo de “revitalization (or gentrification)” (LEY, 1986, p. 521) oriundas de estudos de casos realizados em cidades ou bairros diferentes (SMITH, 1979; SMITH E WILLIAMS, 1986; GALE, 1984; PALEN E LONDRES, 1984; HOLCOMB E BEAUREGARD, 1981; LASKA E ESPANHA, 1980; SCHILL E NATHAN, 1983; HARTMAN, KEATING E LEGATES, 1982) e relacioná-las em uma análise de correlação e regressão (econometria) da gentrificação do centro da cidade no sistema urbano canadense entre 1971 e 1981. As quatro grandes explicações são: as mudanças demográficas, a dinâmica do mercado imobiliário, as amenidades urbanas, e as mudanças na base econômica. Após operacioná-las, o autor descobriu que os fatores econômicos e amenidades urbanas possuíam uma performance muito forte na análise, mas os fatores demográficos e imobiliário tinham menor efeito. Na descrição dessas explicações, Ley reforçava alguns de seus fatores que já foram mencionados anteriormente nesse trabalho, com mais alguns acréscimos de outros estudos:

Mudanças demográficas: aumento da demanda gerada pelo baby-boom do pós-guerra; forte redução no tamanho da família; estilos de vida mais plurais em um ambiente de mudança de oportunidades; crescente população e extensão espacial das áreas metropolitanas (não mais dos subúrbios). “Moreover, surveys of inner-city gentrifiers have shown repeatedly that only a small minority are returning suburbanites; their previous addresses are primarily in the center city or in distant metropolitan áreas.” (LEY, 1986, p. 523)42

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“Além disso, as pesquisas de gentrificação nos centros da cidade têm mostrado repetidamente que apenas uma pequena minoria é suburbana que regressa; seus endereços anteriores são principalmente no centro da cidade ou em áreas metropolitanas distantes.” (Tradução nossa) 52


Dinâmica do mercado imobiliário: a inflação das novas casas no subúrbio, juntamente com as altas taxas de juros hipotecárias levaram as pequenas famílias (solteiros ou sem filhos) comprarem apartamentos menores nas inner cities ou as renovadas casas vitorianas; novas iniciativas realizadas pelo governo e pelo setor privado proporcionando habitação a preços acessíveis nas inner cities; a teoria do rent gap, o qual interpreta como “An alternative conceptualization of the housing market thesis identifies supply rather than demand criteria as uppermost in triggering gentrification” (LEY, 1986, p. 523)43; o autor ainda constata que a convergência temporal do baby-boom, a inflação dos preços dos imóveis e a revitalização do centro da cidade parecem oferecer um pacote casual estreito. Amenidades urbanas: Sugere que os primeiros estágios da gentrificação podem ser associados aos estilos de vida contra culturais, como comunidades gays, associações ativistas e movimentos de vanguardas; sugere que o consumo de cultura é uma das principais características de uma grande cidade, mais comumente é o consumo expressivo do estilo pessoal; em outras cidades, a história substitui o ambiente físico como um componente valorizado da paisagem do centro da cidade, como as empenas vitorianas e torres de Toronto e San Francisco, os terraços de arenito de Nova York, e outros elementos arquitetônicos valorizados consistentemente para identificar os primeiros distritos do centro da cidade e atrair reinvestimento; muitas administrações municipais tem, vigorosamente, promovido uma paisagem de alta comodidade. “Though many urban administrations have committed public funds to cultural amenities and environmental aesthetics as an inducement to prime both consumer demand and private sector reinvestment in the inner city, not all have been equally successful.”44 (LEY, 1986, p. 524)

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“Uma conceituação alternativa da tese do mercado imobiliário que identifica a oferta ao invés de critérios de demanda como predominantes no desencadeamento da gentrificação.” (Tradução nossa) 44 “Embora muitas administrações urbanas comprometessem os fundos públicos para equipamentos culturais e estéticas ambientais como um incentivo à demanda inicial do consumidor e do reinvestimento do setor privado no coração da cidade, nem todos têm sido igualmente bem sucedidos.” (Tradução nossa) 53


Mudanças na base econômica: Segundo Ley, um dos primeiros estudos de revitalização das inner cities mostrou que um crescimento nas famílias de maior status no interior da cidade esteve intimamente associado com uma base econômica urbana dominada pelos serviços; alega que nos mercados de trabalho metropolitanos, os serviços e as atividades de fabricação repelem-se (BURNS e PANG apud LEY, 1986, p. 525); no Canadá, o crescimento do emprego percentual no setor de serviços entre 1971 e 1981 foi quatro vezes maior do que o crescimento do emprego em indústrias de recursos e manufatura. Após chegar ao resultado de que as relações mais fortes de correlação que existiam entre o índice de gentrificação seriam as variáveis que representavam a amenidade urbana e as dimensões econômicas, Ley ainda assegura que, a partir da pouca influência das mudanças do mercado imobiliário para o processo de gentrificação, a teoria do rent gap não teria feito sucesso. Alega que a gentrificação ocorreu quando nas inner cities as taxas de preços de imóveis já estavam elevadas. Para a formulação de seu estudo, Ley comparou dados de imóveis da região metropolitana de Vancouver com os das inner cities. O autor observa que o pouco impacto que a geração baby-boom proporcionou para a densidade das inner cities foi um dos fatores que influenciou no insucesso da explicação sobre mudança demográfica. Observa que a faixa etária que estava ocupando os cargos de empregos de colarinho branco não correspondia a tal geração. Ley percebe que a orientação de cidades canadenses em direção a uma economia de serviços baseada em escritórios é uma dimensão fundamental. Isso sustentaria a tese mais defendida por ele da economia pós-industrial. Quanto às explicações sobre as amenidades urbanas, o autor especula que cidades com economia de serviços, por este resultar em um trabalho “limpo”, seria mais susceptível a ter ambientes urbanos mais atraentes. Além disso “(...) the continued enhancement of those environments commonly becomes a political imperative, both of politicians and of articulate residents of inner-city

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neighborhoods who are employed in downtown offices and white-collar institutions.” (LEY, 1986, p. 532)45

Ley finaliza sua pesquisa alertando que “From these systemwide effects it is then a logical step in a research program to return to an interpretation of the diversity of inner-city change in particular cities and particular neighborhoods, with a better understanding of the general processes of which any single case is in part an expression.” (LEY, 1986, p.533)46

Diante dos resultados elaborados por Ley, Smith aponta diversos equívocos na aplicação da teoria do rent gap, mesmo ela ocupando uma parte pequena da pesquisa. Além disso, o autor ergue questionamentos que vão desde os princípios e teses adotados por Ley em seu estudo sobre gentrificação até as influências desses no uso errôneo da teoria mencionada. Um dos seus primeiros questionamentos é sobre a insistência de Ley em ainda se guiar pelas doutrinas das cidades pós-industriais. Ele alega que muitas limitações a respeito dessa doutrina já foram demonstradas por outros autores (WALKER e GREENBERG, 1982). Inicialmente, o autor contesta quanto ao estágio de discussão sobre gentrificação realizado por Ley. Aponta que o processo, ao ser apenas definido como a transformação da inner citiy da classe trabalhadora e de bairros vizinhos, para os usos residenciais, recreativos e outros pela classe média e média alta, seria claramente um meio pelo qual a teoria do rent gap perderia significado, total ou parcialmente. Portanto, afirma que o problema do professor canadense está antes de tudo, não com a tese rent gap e nem com as cidades do Canadá, mas com a compreensão de Ley e a operacionalização dos conceitos de gentrificação e do rent gap. Smith regressa aos estudos iniciais de Ley e contesta o fato do autor ter concebido a gentrificação simplesmente como uma “change in household social status” bastante

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“(...) a ampliação contínua desses ambientes geralmente torna-se um imperativo político, tanto dos políticos quantos dos residentes articulados de bairros do centro da cidade que são empregados em escritórios do centro da cidade e instituições “colarinho branco.” (Tradução nossa) 46 “A partir desses efeitos em todo o sistema é então um passo lógico em um programa de pesquisa para voltar a uma interpretação da diversidade de mudança do centro em particulares cidades e bairros particulares, com uma melhor compreensão dos processos gerais dos quais qualquer caso único é, em parte, uma expressão.” (Tradução nossa) 55


“independent of the housing stock involved”.47 Deste modo, Ley estaria recorrendo a um índice simples ao combinar as mudanças na ocupação profissional e na educação a partir dos setores censitários. Afirma que esta medida seria tão grosseira que muitas áreas de expansão suburbanas poderiam ser identificadas como exemplo de gentrificação por excelência, seria uma explicação geograficamente não restrita a inner city. Um exemplo seriam os bairros Harlem e Lower East Side de Manhattan, em Nova Iorque, onde medidas educacionais e ocupacionais foram descartadas como indicadores de gentrificação, porque parecia haver uma relação errática com a reabilitação, a reconstrução e a imigração de grupos com altos status. (SMITH, 1987, p. 463) Para Smith, “The crucial point about gentrification is that it involves not only a social change but also, at the neighborhood scale, a physical change in the housing stock and an economic change in the land and housing markets. It is this combination of social, physical, and economic change that distinguishes gentrification as an identifiable process or set of processes.” (SMITH, 1987, p. 463)48

O autor ainda acrescenta que os emigrantes da classe média e média alta de um bairro degradado não se movem para as favelas, mas se alojam ou se deslocam para edifícios já fixados ou recém-construídos, envolvendo, portanto, um substancial investimento de capital na gentrificação da vizinhança, junto com a mudança social. Outro problema identificado por Smith está na conceituação de rent gap por Ley. Segundo ele, o geógrafo a redefine como uma característica da “dinâmica do mercado imobiliário”, sem fazer referência direta ao mercado de terras. Ley ainda a divorcia dos processos econômicos mais amplos (investimento e desinvestimento em lugares e setores do ambiente construído específico) em que o rent gap está incorporado e a partir do qual se desenvolve. Tal erro entraria em conflito com uma das principais definições da teoria, onde o rent gap “(...) refers to an economic gap between actual and potential land values in a given location; it is also a historical gap in that it results from a complex pattern of 47

“mudança de status social das famílias” e “independente do parque habitacional envolvido” (Tradução nossa). 48 “O ponto crucial sobre a gentrificação é o que envolve não apenas uma mudança social, mas também, na escala dos bairros, uma mudança física no estoque habitacional e uma mudança econômica nos mercados imobiliários. É esta combinação de mudança social, física e econômica que distingue a gentrificação como um processo de identificação ou conjunto de processos.” (Tradução nossa) 56


investment and disinvestment in the built environment and can be closed through gentrification (among other processes).” (SMITH, 1987, p. 463)49

A aplicação da teoria no estudo foi feita em cima dos preços de locações de casas ou apartamentos, não aos valores da terra em absolto. Além disso, a lacuna, neste caso, ao invés de representar a renda da terra real e a potencial, ela está localizada geograficamente, não em locais determinados, pois as taxas analisadas medem a diferença entre a inner city e os custos de locação na região metropolitana. Smith alega que os valores estimados para fins de taxação são muito ásperos e arbitrários para ser útil. A crítica em questão é contestada por Ley, pois o rent gap foi usado por ele com o intuito de relacionar a renda da terra capitalizada da inner city, com a dos subúrbios, ou seja, com rendas mensuráveis. Algumas questões são levantadas por Smith sobre a aplicabilidade de sua teoria, em geral. Argumenta que o rent gap exigirá uma abordagem histórica e uma sensibilidade comparável à formação do lugar. Isso porque certas áreas onde o ren gap é mais profundo, podem não ser as primeiras a experimentar o processo, como em alguns bairros habitados por negros, por exemplo. Tal processo teria sido relativamente lento devido a uma mistura de medo e racismo entre ambos, os brancos e as instituições do mercado imobiliário, onde as diferenças raciais e étnicas parecem ser mais profundamente enraizadas e mais difundidas como característicos do território social. Por fim, diante do avançar dos anos e da diversidade de explicações para gentrificação, principalmente em países capitalistas centrais (ou avançados), o autor chama a atenção de que, após a inicial literatura sobre o processo ter enfatizado estritamente ou o lado do consumo ou as explicações sobre produção, naquele momento já era evidente a relação entre o consumo e produção para explicar a gentrificação. Segundo ele “The restructuring of the city, of which gentrification is only a part, involves a social and economic, spatial and political transformation.” (SMITH, 1987, p. 464)50

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“(...) refere-se a uma lacuna econômica entre os valores reais e potenciais de terra em um determinado local; é também uma lacuna histórica na medida em que resulta de um complexo padrão de investimento e desinvestimento no ambiente de construção e pode ser fechada por meio de gentrificação como um processo identificável ou conjunto de processos.” (Tradução nossa) 50 “A reestruturação da cidade, da qual a gentrificação é apenas uma parte, envolve uma transformação social e econômica, espacial e política.”(Tradução nossa) 57


DE UMA ANOMALIA LOCAL PARA UMA ESTRATÉGIA URBANA GLOBAL

Durante os anos de 1970, os trabalhos a respeito da gentrificação pretendiam esclarecer a origem do processo, levando a uma polarização das teorias: do consumo (celebrada por neoliberais) e da produção (adotada por defensores de teorias sociais marxistas). Hamnett argumentava que as duas teorias, apesar de focarem em diferentes aspectos, não são antagônicas, pelo contrário, são complementares, embora este apresentar algumas críticas ao trabalho de Smith. Alegava que a relutância do autor em aceitar o papel da nova classe (média e média alta), das características culturais e do consumo dela, assim como em enxergar qualquer papel significativo dos atores individuais limita o valor de sua abordagem para explicar a gentrificação. (HAMNETT apud MARTINS, 2015. P 206) Assim, entre as décadas de 1980 e 1990, muitos autores, inclusive Neil Smith, passam a defender uma abordagem que reconhecesse a complementaridade das teorias de consumo e produção. Smith foi um dos teóricos que defendeu que as teorias que consideravam somente práticas de consumo ou de produção estavam perdendo relevância e que eram necessárias abordagens que unissem o lado cultural e capital (BONAMICHI, 2016, p. 40-41) Segundo Clark, a teoria do rent gap de Smith não teria sentido sem a existência de uma demanda potencial. Em seus estudos, Clark propôs a realização de um teste empírico do rent gap, a partir da experiência de seis localidades em Malmö, Suécia. Após análises dos dados demográficos e do mercado imobiliário local, ele concluiu que “os seis casos revelavam um quadro bastante claro de rent gap”, e que, além disso, “as evidências empíricas dos casos estudados apoiavam a visão destacada por Smith.” (CLARK apud MARTINS, 2015, p. 206). O autor ainda afirma que parece plausível sugerir que o rent gap se constitui como uma importante condição para decisões e ações das formas de requalificação urbana, mas que não pode cumprir o duvidoso desejo de ser uma explicação completa para as várias formas de requalificação urbana, como o próprio Smith já havia admitindo. Redfern afirma que para que a gentrificação aconteça é preciso combinar certos fatores: em primeiro lugar, é necessário que exista segregação social e residencial. Neste sentido, podem-se estudar as propriedades individuais, mas é preciso levar em conta que a gentrificação repercute em toda uma área ou todo um bairro. Ou seja: metodologicamente, 58


é preciso trabalhar tanto na escala das propriedades individuais como na escala mais geral para analisar seus efeitos. Em segundo lugar, é necessário partir do requisito de que as moradias e as áreas suscetíveis de experimentar a gentrificação devem ter sido inicialmente concebidas para serem ocupadas pelas classes médias, que as abandonaram em algum momento e passaram para a mão das classes populares. Outro aspecto a considerar é que a fonte básica de financiamento para reabilitar as moradias são empréstimos e hipotecas ― mais do que as poupanças. (REDFERN apud BATALLER, 2012, p. 24) Smith, por sua vez, passou a elaborar uma explicação do fenômeno de modo mais global, sem mudar seu próprio enfoque, mas com uma visão mais contextual da gentrificação e do processo de reestruturação do espaço urbano. Segundo o autor, a reestruturação do espaço não é um fenômeno novo, já que “todo o processo de crescimento e desenvolvimento urbano consiste em um constante arranjo, estruturação e reestruturação do espaço urbano.” Alega que “o que é novo, hoje, é a intensidade em que esta reestruturação do espaço se apresenta como um componente imediato de uma ampla reestruturação social e econômica das economias capitalistas avançadas.” (SMITH, 2007, p. 20). Para o autor, tanto a gentrificação, quanto a renovação urbana são expressões espaciais da acumulação de capital. O autor argumenta que a observação da escala espacial é muito importante, não basta, de antemão, apenas examinar as tendências exatas que estão conduzindo o processo de reestruturação. Smith reconhece que tal processo pode ser produto de todo um conjunto de forças como o desenvolvimento desigual do capitalismo ou da operação de um rent gap; de uma economia de serviços em processo de desenvolvimento ou de mudança das preferências por estilos de vida; da suburbanização do capital ou da desvalorização do capital investido no ambiente construído. Mas, alega que todo o problema da explicação sobre reestruturação espacial, consequentemente a gentrificação, reside não em identificar fatores, como fez David Ley, mas em compreender a importância relativa e a relação estabelecida entre eles. Para o autor, a questão da escala espacial é importante porque a partir dela que poderão ser distinguidos os fatores que são predominantemente responsáveis pela ocorrência da reestruturação urbana e aqueles responsáveis pela forma que o processo assume. Como exemplo, Smith afirma que

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“Por si só, os processos de desindustrialização e crescimento do emprego nos serviços não explicam, de modo algum, a reestruturação dos centros urbanos. Na verdade, esses processos ajudam a explicar, em primeiro lugar, os tipos de estoques de edifícios e usos do solo envolvidos no desenvolvimento do rent gap e, em segundo lugar, os novos usos do solo que devem surgir quando houver a oportunidade para o redesenvolvimento.” (SMITH, 2007, p.22)

São desses princípios supracitados e desse processo metodológico que o autor irá se apropriar para o aprimoramento de sua teoria em relação a complementaridade das teorias de consumo e produção da gentrificação.51 A metodologia utilizada por Smith origina-se da adoção da tradição marxista para seus estudos sobre desenvolvimento desigual urbano, no qual corrobora a gentrificação. Para Marx “(...) a teoria não se reduz ao exame sistemático das formas dadas de um objeto, com o pesquisador descrevendo-o detalhadamente e construindo modelos explicativos para dar conta – à base de hipóteses que apontam para relações de causa/efeito – de seu movimento visível, tal como ocorre nos procedimentos da tradição empirista e/ou positivista. (...) o conhecimento teórico é o conhecimento do objeto – de sua estrutura e dinâmica – tal como ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva, independentemente dos desejos, das aspirações e das representações do pesquisador. A teoria é (...) a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta reprodução (...) será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto.” (NETTO, 2011, p.20-21).

A apropriação por Smith da metodologia de Marx justifica todas as divergências metodológicas entre Smith e Ley, onde este, por sua vez, continuou desenvolvendo seus estudos, basicamente, através das “hipóteses que apontam para relações de causa /efeito.” Importante ressaltar que o momento em que os autores iniciam seus estudos sobre gentrificação (década de 1970), os países capitalistas centrais atravessavam uma profunda crise econômica, de acumulação do capital. Tal crise, além do setor econômico, afetava o social, o cultural e, principalmente, o político. Diante deste contexto, no final dos anos 1970, muitos países irão adotar as práticas e o pensamento político-econômico daquela nova ideologia e doutrina que Ley não só apenas estudava, mas também usufruía: a Neoliberal. Segundo Harvey: 51

Ver: SMITH,Neil. Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano. GeoUSP, São Paulo, 2007. 60


O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político- econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. (HARVEY, 2005; p.12)

Além disso, se não existirem mercados em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental, estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado.

Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio beneficio. (HARVEY, 2005, p.12)

Sob a influência dessa ideologia, Ley desenvolve sua metodologia, baseando-se na teoria econômica neoclássica, a qual, dentro da ideologia neoliberal, é caracterizada pelos princípios de livre mercado e que emergiu na segunda metade do século XIX, em oposição à economia política de Adam Smith, David Ricardo e de Marx (HARVEY, 2005, p. 29-30). Uma comprovação disso é quando Ley adota a tese da cidade pós-industrial em seus estudos, alegando que os pensamentos originários no século XIX não são mais cabíveis diante da alteração das circunstâncias daquela época. É importante destacar que nos últimos 40 anos, a teoria neoliberal permanece vigente. Entender a influência dessa teoria no contexto capitalista nos permite situar o debate entre os autores, assim como entender a repercussão dessa nos estudos posteriores sobre gentrificação para além das cidades dos países capitalistas centrais. O estudo de Smith nos bairros de Nova Iorque nos transparece uma maior coerência diante desse contexto, tanto em questões teóricas quanto metodológicas. Sua preocupação em relacionar os fatores que corroboram tanto para a manifestação da gentrificação, como para a 61


reestruturação do espaço urbano (dentro da ótica norte americana), com a necessidade do capital se encontrar em constante movimento a fim de sua acumulação, se encaixa com os anseios neoliberais. Smith acreditava que desde a década de 1950 até os dias atuais52, houve um processo evolutivo da gentrificação. Na sua opinião, as primeiras manifestações da gentrificação eram esporádicas, pois as instituições financeiras no final da década de 1950 até meados de 1970 não mostraram interesse em importantes investimentos nas áreas centrais, por estarem deterioradas. Portanto, o processo era basicamente realizado por pequenos grupos de pessoas que reabilitavam casas para morar e as áreas centrais eram marginalizadas pelo mercado. A partir do final dos anos 1970, a gentrificação começou a se consolidar, muito por conta da profunda mudança estrutural causada pela crise fiscal53 na cidade de Nova Iorque. Nessa época que a teoria do rent gap foi por ele originada. O geógrafo afirma que “Segundo a teoria da renda diferencial (rent gap), as causas originais da gentrificação estavam na mobilidade geográfica do capital e nos modelos históricos do investimento e desinvestimento no campo urbano: o investimento nas áreas periurbanas em detrimento da região central, dominante no século XX, criou condições espaciais de reinvestimento sobre locais específicos do centro, tomando a forma de gentrificação.” (SMITH, 2006, p. 66)

Diante dessas condições, a política urbana da municipalidade legitimou o processo aprofundando e intensificando os níveis de desinvestimento no centro e no pericentro, reduzindo os preços de terrenos e edifícios dos bairros degradados. Assim, pequenos proprietários venderam seus imóveis para grandes promotores imobiliários. A gentrificação deixou de ser promovida por atores individuais e passou a ser administrada pelo poder político municipal e pelo mercado imobiliário. Mas é nos anos 1980 que ocorre uma avalanche imobiliária, onde o processo de gentrificação iria encontrar sua própria dinâmica e, por falta de alternativas, seria a principal política de habitação de Nova Iorque. Observam-se os primeiros passos da política e da economia neoliberal, onde o mercado financeiro e imobiliário começaria a se manifestar de uma forma mais intensa. Enquanto a intervenção política estaria em prol dos interesses do mercado. Dessa forma, o

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Até seus últimos estudos, pois o autor veio a falecer em 2012. Ver: HARVEY, David. As raízes urbanas das crises capitalistas. Cidades Rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2014 53

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processo de gentrificação se expandiu para bairros que não haviam passado pela fase esporádica, mas já eram alvo de investimentos e lucros no mercado habitacional. “A gentrificação não era mais uma anomalia local do mercado imobiliário de uma grande cidade, ela se desenvolvia como um componente residencial específico de uma mais ampla reformulação, econômica, social54 e política do espaço urbano. Enquanto a cidade Nova Iorque consolidava seu domínio sobre todas as funções de comando relacionadas às cidades globais, a gentrificação oferecia, de modo crescente, habitações para as novas gerações de profissionais em ascensão, aqueles que operavam nos setores de finanças, das organizações e de inúmeras pequenas empresas da cidade.” (SMITH, 2006, p. 69)

Segundo Smith, foi em meados dos anos 1990 que o processo de gentrificação alcançaria seu estágio generalizado. Antes de atingir esse estágio, uma depressão econômica que começou em 1989, depois do crach da Bolsa de 198755, provocou uma grande freada do capital investido no mercado imobiliário, levando à um princípio de desgentrificação em todos os bairros da cidade. Mas como no capitalismo, o capital necessita estar em constante movimento, em 1993 em Lower East Side, “a reabertura de um Tompkins Square reabilitado e estritamente policiado relançou uma nova onda, se bem que localizada, de gentrificação”. A gentrificação se generalizou em termos de localização e setores. Ao mesmo tempo em que o processo começou a emergir em bairros mais afastados do centro, a gentrificação não se limitava mais a reabilitações de edifícios e reforma de apartamentos, ela passou a abranger setores gastronômicos, comerciais, áreas de lazer (parques, cinemas, museus), locais turísticos, edifícios de marcas famosas, complexos culturais, “em resumo todo um leque de grandes operações na paisagem das áreas centrais”. (SMITH, 2006, p. 71-72) “Essa renovação representa a gentrificação da cidade como uma conquista altamente integrada do espaço urbano, na qual o componente residencial não pode ser racionalmente dissociado das transformações das paisagens do emprego, do lazer e do consumo.” (SMITH, 2006, p. 72)

A gentrificação deixa de ser uma simples estratégia residencial e aparece na proa da mudança metropolitana nas áreas centrais da cidade. Além disso, assim como antes, ela corresponde a uma conquista classista da cidade e sua generalização causa um fetiche 54

Nos anos 1980, “a linguagem e a realidade da gentrificação haviam invadido a mídia, e novos jovens urbanos das classes médias passavam a ser chamados de yuppies (...)” (SMITH, 2006, p. 68) 55 Crise da poupança e do crédito de 1987 que teve ramificações globais. (HARVEY, 2014, p.75) 63


quanto a democratização do espaço. Em sua aparência, a gentrificação produz paisagens urbanas que as classes médias e médias altas podem consumir, mas para isso tiveram que evacuar com a classe trabalhadora e os sem teto. “De modo que a televisão popular faz as massas acreditarem que as vidas das pessoas ricas e célebres representam a norma social à qual todo mundo pode aspirar, a gentrificação produz agora uma paisagem urbana que veicula as mesmas aspirações. Nessa paisagem aparentemente democrática, a extraordinária desigualdade do consumo exprime o poder redobrado das classes que fizeram a linguagem da ‘gentrificação’ chegar ao primeiro plano.” (SMITH, 2006, p. 73)

Esse processo evolutivo da gentrificação foi estudado por Smith com um olhar na cidade de Nova Iorque, mas essa evolução, segundo o autor, se evidencia de diferentes maneiras, em diferentes bairros e cidades, e segundo ritmos temporais diferentes (SMITH, 2006, p. 73). Dentre as cidades exemplificadas pelo autor, estão São Paulo no Brasil e Seul na Coréia do Sul, nas quais o processo de gentrificação estaria isolado e se encontrava praticamente no início. Mas o estudo da evolução da gentrificação à luz do caso nova-iorquino, para Smith, pode ser muito válido. Nele o autor pôde mostrar todo o processo de implementação da política neoliberal após a crise. As mudanças políticas modificaram os ordenamentos das políticas públicas sobre a gentrificação e encorajaram o financiamento habitacional para o setor privado. (SMITH, 2006, p. 75) Portanto, no final do século XX, essa nova fase da gentrificação – considerada como uma aliança concertada e sistemática do urbanismo público e do capital privado e público preencheu o vazio deixado pelo retraimento das políticas urbanas progressistas. Em outros lugares, isto é, nas cidades que não conheceram tais políticas progressistas durante o século XX, a trajetória da mudança é muito diferente, embora conduza a uma mesma direção, se considerarmos a gentrificação no sentido amplo dos centros antigos participando de uma estratégia urbana competitiva no mercado global. (SMITH, 2006, p. 75). Tal estratégia, influenciada pela ideologia neoliberal vigente até hoje, se insere na rede de convergência entre as experiências urbanas nas grandes cidades dos países capitalistas centrais e periféricos. O autor, ao desenvolver esse raciocínio, mostra cautela em afirmar o processo de gentrificação em países periféricos. Segundo ele “Os países do velho primeiro mundo continuam sendo a localização principal da gentrificação nestes primeiros anos do século XXI, e ainda não podemos vislumbrar

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claramente como o processo se desenvolveria na Ásia,na América Latina e em certos países da Africa” (SMITH, 2006, p. 75)

Apesar deste posicionamento de Smith, alguns estudos recentes relatam a manifestação do processo de gentrificação em algumas cidades das grandes metrópoles nos países periféricos, onde a gentrificação se encaixa dentro dos moldes da última fase descrita pelo autor. Tal registro pode ser verificado nas cidades do México, Santiago do Chile, Buenos Aires, Madrid (HIDALGO & JANOSCHKA, 2014), Recife (LOUREIRO & AMORIM, 2013), Rio de Janeiro ( BONAMICHI, 2016 e MARTINS, 2015) entre outras. Até mesmo em cidades de países capitalistas avançados a gentrificação tem se manifestado recentemente, como Lisboa (MENDES, 2013). No Rio de Janeiro, por sua vez, os estudos realizados por Nayana Bonamichi sobre o possível processo de gentrificação nas favelas do Vidigal e Cantagalo mostra de maneira expressiva essa generalização da gentrificação, atingindo setores turísticos, habitacionais, culturais, etc. Além de ter se manifestado em regiões longes dos centros urbanos, mas essa questão, como o próprio Smith coloca, faz parte das particularidades locais de cada cidade. Renato Martins, ao estudar o Porto Maravilha, a partir da ótica do rent gap, apesar desta não ter feito sucesso em sua pesquisa, o autor alega que “A generalização da gentrificação, argumenta Smith (...) possui algumas características centrais interligadas, como o novo papel do Estado, o protagonismo dos governos locais e a parceria com o capital privado – características que se destacam como elementos comuns em diversas experiências internacionais. O caso carioca é um bom exemplo, já que o projeto tem sido conduzido por um consórcio do qual participa a prefeitura municipal e algumas empresas privadas. Vê-se a presença do capital financeiro e do novo papel desempenhado pela globalização do capital. Nesse ponto, a intenção de construção das Trump Towers no Rio é emblemática. Há diversas empresas internacionais envolvidas no projeto, conforme mostra a página eletrônica do empreendimento.” (MARTINS, 2015 p. 212) Por fim, podemos entender a afirmação do prefeito Eduardo Paes, na qual o Rio de Janeiro teria se tornado uma cidade global, apta a competir por investimentos. Tal pensamento se encaixa com a estratégia urbana competitiva no mercado global. Mas, como qualquer processo de reestruturação do espaço, renovação e desenvolvimento, dentro de 65


uma economia capitalista, sua finalidade serรก o crescente lucro e seu espaรงo serรก sempre desigual.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, partindo do pressuposto de que a gentrificação é um processo que converte bairros da classe trabalhadora em bairros de classe média e média alta, as teorias formuladas por David Ley e Neil Smith, para esclarecer a origem do processo, abriram o debate e contribuíram lançando luzes sobre a questão. Na teoria de Ley, as causas da gentrificação em Vancouver, estariam relacionadas com as questões econômicas, culturais e políticas. O autor se baseava na tese da soberania do consumidor (demanda), dentro do marco da sociedade pós-industrial. Para o autor, a gentrificação era consequência de processos recíprocos de reestruturação econômica, sociocultural e demográfica. Um elemento importante considerado por Ley é a transformação da mão-de-obra na sociedade pós-industrial, onde, com a introdução de tecnologias modernas, os postos de trabalho eram ocupados cada vez mais por mão-de-obra especializada, ao mesmo tempo em que a sociedade deixava de ser basicamente produtora de bens e passava a ser importante produtora de serviços. Com isso, surgiria a nova classe social: os trabalhadores de colarinho branco. Essa classe, por sua vez, se sente atraída pelas possibilidades da vida urbana e pelas vantagens de viver no centro das cidades. Assim, relacionada a fatores socioculturais tais como a importância do papel do individualismo e a invasão de novos estilos de vida, fazem com que uma parte das classes médias se desloque aos centros urbanos.

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Já Smith, por sua vez, baseia sua teoria conforme o ciclo de vida do capital investido no ambiente, originando assim o conceito do diferencial de renda (rent gap), que para ele seria o principal fator para a manifestação da gentrificação. O autor defende também que a gentrificação tem que contemplar tanto a oferta (a produção) quanto a demanda (o consumo) - embora dê prioridade à oferta em sua explicação, de modo que os fatores econômicos são preponderantes em relação ao culturais. Smith, considera diversos agentes que corroboram tanto para a degradação da inner city quanto para a gentrificação: o Estado, os promotores imobiliários, o mercado financeiro e os proprietários de terra. Argumenta que a ação da nova classe média e média alta seria essencial para o processo de reestruturação do espaço urbano. Seu grande argumento quanto ao processo de gentrificação e reestruturação do espaço é que, assim como a o desenvolvimento urbano, são expressões espaciais da acumulação de capital. As reflexões dos autores ofereceram um amplo panorama, que estimulou estudos posteriores aplicados a casos concretos, através dos quais a discussão se manteve acesa. Ao longo dos anos de 1980, as teorias iniciais desses dois autores foram flexibilizando-se, incorporando elementos de posturas defendidas por seus oponentes, porém sem mudar o eixo central do pensamento dos dois. Mas, diante do contexto econômico do capitalismo neoliberal, a metodologia e os argumentos de Smith são mais plausíveis. Os estágios evolutivos dos processos de gentrificação observados pelo autor, mesmo baseado nos bairros de Nova Iorque, nos demonstram que as diferentes manifestações do fenômeno caminhavam junto com a necessidade do capital se renovar após os períodos de recessão. E é a partir de sua fase generalizada, moldado pelos ditames da expressão urbana do neoliberalismo, que a gentrificação deixou de ser uma anomalia local, decorrente de acontecimentos do mercado habitacional e passou a ser uma expressão sistemática da mudança social e econômica global. Através dessa ótica, pôde-se justificar a manifestação da gentrificação em cidades de países periféricos, até mesmo capitalistas centrais, assim como a localização do fenômeno e os setores beneficiados pelo capital investido. Importante ressaltar que o processo será diferente para cada cidade, pois sofrerão influência de suas particularidades sociais, econômicas, culturais e política. Segundo o autor “As cidades, tornando-se globais, se é que podemos usar essa expressão, também levam algumas de suas dimensões a se globalizarem. A globalização emergente da gentrificação, como a das próprias cidades, representa a vitória de certos interesses

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econômicos e sociais sobre outros, em geral de dimensão classista e, em alguns casos mesmo, racista.” (SMITH, 2006, p. 80)

Diante desse complexo fenômeno que travou um importante debate que perdura até os dias atuais, atravessando fronteiras espaciais e econômicas, é importante relembrar que a gentrificação continua sendo um processo que converte bairros da classe trabalhadora em bairros de classe média e média alta. Mas pouco se falou dessa classe excluída e segregada. Para onde vão esses trabalhadores que constantemente são afetados pelas constantes transformações urbanas em prol da classe dominante? Como eles se organizam para resistir aos diversos processos que os segregam?

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Publicado originalmente na Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales (ISSN 1138-9796), Universidad de Barcelona - nº 228, 3 de mayo de 2000, com o título El estudio de la gentrificación. Tradução de Maurilio Lima Botelho (UFRRJ).

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