Edição02 | Tempo
d` ZINE
Editorial 18h50: Todos conhecem aquele tipo de relógio que o ponteiro dos segundos se movimenta de modo contínuo, e não em intervalos? Ele anda sem parar de casa em casa e, apesar de ser programado para operar igual aos outros tipos de relógio, olhando seus movimentos temos a noção de que ele anda muito mais rápido. De certo modo essa é a receita pronta da agonia, já que somos levados a acreditar que a passagem do tempo indica, necessariamente, a degradação. 18h54: Durante nossas reuniões constatamos, sem grande espanto, que o tempo não significa desgaste e sim transformação, seja para o lado positivo ou negativo. E daí vem o gancho essencial do tema desta edição com nossas intenções: a transformação de quem nos encontra, se assim tiver que ser.
Expediente
CAPA E CONTRACAPA Patrícia Jenny EDITORIAL Carol Magalhães NAQUELA CASA Luiza Marçal NÃO QUERO SER UMA FORMIGA Caroline Magalhães AS BOAS MEMÓRIAS Patrícia Jenny RESIGNAÇÃO Karina Parra
naquela casa
Naquele tempo, naquela casa tinha gente. Tinha sorrisos, crianças correndo, cheiro de mato, de café e de névoa logo pela manhã. Naquela casa tinha primo que colocava sapo no banheiro, tinha chuveiro que dava choque,
tinha comida feita no fogão a lenha. Naquela casa tinha tempestades e acabava a luz, tinha mãe que nessas situações abraçava os três filhos juntos para passar o medo, tinha pai que soltava papagaio no vento.
Naquela casa tinha passeio a cavalo, tinha vento no cabelo, tinha medo de cobra. Naquela casa tinha rede de balanรงo, tinha cachorro, tinha amoreira, jabuticabeira e manga.
Naquele tempo aquela casa já tinha histórias, já teve morte, já teve choro, já teve fé. Aquela casa tinha cheiro de infância, de família e de fim de semana.
“Não quero ser uma formiga”
Diálogo extraído do filme Waking Life (EUA, 2001), de Richard Linklater.
- Desculpe.
- Desculpe.
- Podemos começar de novo? Sei que não nos conhecemos... Mas eu não quero ser uma formiga.
- Passamos pela vida esbarrando uns nos outros, sempre no piloto automático, como formigas... Não sendo solicitados a fazer nada de verdadeiramente humano: “Pare”, “Siga”, “Ande aqui”, “Dirija ali”. Ações
voltadas apenas à sobrevivência. Toda comunicação servindo para manter ativa a colônia de formigas, de um modo eficiente e civilizado: “O seu troco.” “Papel ou plástico?” “Crédito ou débito ?” “Aceita ketchup?
- Não quero um canudo. Quero momentos humanos verdadeiros. Quero ver você. Quero que você me veja. Não quero abrir mão disso. Não quero ser uma formiga, entende?
- Sim, não... Eu também não quero ser uma formiga. Obrigado pela sacudida. Tenho andado feito um zumbi... No piloto automático. Não me sinto como uma formiga, mas pareço uma.
- D.H. Lawrence teve a idéia de duas pessoas se encontrarem... E, ao invés de apenas passarem, aceitarem “o confronto entre suas almas”. É como libertar os deuses corajosos e inconsequentes que nos habitam.
- Parece que jรก nos conhecemos!
As boas memórias
Lounge
De quais momentos você se lembra com um sorriso no rosto? De quais momentos você se lembra? Acordar com meu computador do lado e correr para ver a lista de aprovados da Unicamp, meu nome lá, e começar a pular feito um doido sozinho no quarto. Eu e ela em Buenos Aires, almoçando à beira do rio. Aquele momento é sinônimo de paz de espírito para mim. O dia em que compramos a nossa cachorrinha, ela era muito pequeninha e tinha medo de tudo - você foi levando ela no colo na volta? Uma parte, minha irmã possessiva levou o resto. Dava para pegá-la com uma mão só.
A minha mãe quando me levava para escolinha todo dia parava no mercado, comprava um suco de embalagem de arminha/dinossauro/bicho e uma tortuguita. Dava o tempo certinho de comer a tortuguita e chegar na escolinha com meu lanche completo. Comendo, obviamente, a cabeça, patas, rabo e corpo, nessa ordem. E na rua do mercadinho tinha um parque gigante de eucaliptos
Resignação Insetos sempre me trouxeram sensações estranhas. Desde uma certa repulsa, até uma falta de compreensão de como seres com vidas tão efêmeras executam sua função na natureza. Mas não sei explicar. Só sei que esta certa repugnância contra os pequenos era algo que cresceu em mim desde a infância. Herdado talvez de minha mãe, e suas atitudes de pavor em relação às criaturas – especialmente as de asas.
Eu nunca havia visto uma mariposa colorida.
Entretanto, em um dia comum, uma certa contradição entre meu sentimento e atitude ocorreu. Como disse, era um dia normal, em que realizava algumas tarefas domésticas. De repente, fui surpreendida por um inseto que é quase uma contradição em si mesmo: a mariposa. Deixe-me explicar. Não possuo conhecimentos científicos sobre o animal em si. Mas como toda pessoa que estudou um pouco de biologia na vida, a velha história do casulo, lagarta e borboleta fica presente em nossa memória. A história sempre fala da borboleta, mas esquece da mariposa. E nesse dia, uma bela mariposa aterrissou no meu quintal. A beleza dificilmente é um fator associado a este animal. De cor cinza, porte médio, revela ao se aproximar uma asa brevemente decorada nas cores vermelho e preto. Eu nunca havia visto uma mariposa colorida. Quase uma borboleta. Mas se fosse uma borboleta, eu não teria a sensação de associação a inseto. Mas com ela, sim. Como isso se deu em minha mente? Dois animais que se tanto se parecem, de repente, produzem reflexos tão distintos em meu comportamento? Mas essa mariposa mudou meu conceito. Mas por quê? Permita-me descrever o ocorrido. Ela pousou no meio da porta de passagem para o quintal. Como o acesso é estreito, minha primeira intenção foi de removê-la com
uma vassoura. Pois bem, foi o que fiz. Com ela em mãos, iniciei o processo de remoção. Aí veio a surpresa. Ao invés de sair voando, se deslocar, ou ter qualquer ação de fuga, a mariposa nem sequer se moveu. Aceitou pacificamente a remoção, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Não havia medo, somente resignação. Nunca havia presenciado atitude tão pacífica. Nesse momento, todo o medo, asco, repugnância que eu pudesse sentir por aquele ser, se esmaeceu e se tornou admiração. Como eu poderia ter alguma repulsa por aquele ser que nada faz, além de, na sabedoria popular, trazer uma novidade para seu lar? Fiquei ali, parada, observando-a. E poderia ficar horas, e ela mal iria se mover. Minha vontade era de ser como ela. Quieta, tranquila. Saí, voltei várias vezes para vê-la, e ela continuava lá. Bela e estática. Fiquei a tarde toda pensando sobre qual seria a novidade que ela me trouxe. Talvez o cinza de suas asas fosse mais bonito se ela estivesse pousando em alguma folha verde ou flor. Pois na cidade tudo é cinza, até mesmo a mariposa. E o que somos além de mariposas, ocupando um espaço nesse infinito cinza, tentando trazer alguma vida para a cidade?
Descrição dos projetos Eu não quero ser uma formiga Caroline Magalhães O suporte para criação desta matéria foi um diálogo do filme Waking Life, de 2001. Os personagens discorrem sobre a automatização das relações humanas e como isso se reflete na vivência e na passagem do tempo do dia-a-dia. Para deixar bastante clara a passagem do tempo no período automatizado da vida e como essa passagem pode, até certo ponto, ser controlada por nós (na medida que cada pessoa define como usar seu tempo) foram usadas as imagens dos relógios gigantes e dos homens caminhando, estes em tamanho bem menor que o dos relógios, passando certa impressão de aperto ou opressão. A técnica utilizada foi a xerox por representar uma sociedade automatizada e apenas produtora de cópias idênticas, sem a troca de informações necessárias (que é exatamente o que propõe o diálogo). Além disso, essa é a técnica original utilizada nos primeiros fanzines produzidos da história.
Resignação - Karina Parra A técnica utilizada foi fotografia e macro. Esta matéria nasceu de forma espontânea, como um fato verídico ocorrido em minha casa. É um depoimento das sensações e do ocorrido. As fotos foram tiradas aproximando a câmera da mariposa.
Naquela casa - Luiza Marçal A matéria “naquela casa” se enquadra na fanzine com o tema “tempo”. Ela nasceu das minhas lembranças da minha infância, na qual eu visitava com uma grande frequência a casa da fazenda da minha família. Contudo a casa deixou de ser frequentada, em parte porque fomos crescendo e perdendo a vontade de passar o fim de semana fora da cidade e em parte pela fazenda que deixou de ter gado para ser arrendada para a cana, o que tornou bem mais fácil sua manutenção e necessitava de menos visitas. As imagens foram geradas a partir de fotos da própria casa, hoje abandonada. A foto em sim já passava a imagem de tempo, mas para ter o caráter da lembrança, comprei uma revista da década de 80 para pegar uma imagem antiga. Assim as imagens foram recortadas e coladas nas fotos. Posteriormente as imagens foram impressas e recortadas com estilete. A primeira intenção era deixar as mulhes “em pé” nas fotos. No entanto o efeito não ficou muito bom. Foi feito outro estudo com a imagem contra a luz, na janela, o que fez com que os lugares recortados ficassem iluminados e remetessem a uma imagem com áurea, o que acentuou a idéia de lembrança.
As boas memórias - Patricia Jenny Meu objetivo era falar sobre as memórias boas que gostamos de recordar e também de como acabamos esquecendo destas memórias e de muitas outras ao longo de nossas vidas. Nas páginas estão escritas algumas memórias queridas que pessoas próximas a mim disseram ter quando perguntei à elas. Para isso, experimentei pela primeira vez fazer gravuras em linóleo, pois esta técnica traz modificações na gravura a cada vez em que ela é aplicada, como nossas memórias que se modificam ao longo do tempo, muitas vezes ficando quase apagada. O processo foi bem dificil, já que eu não possuia o conhecimento da técnica, mas foi prazeroso pois a quantidade de possibilidades que ela traz é muito grande.