Distopia

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ra lutar... Assim como vestidos para morrer!

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“NÃo esTaMos VesTidos PaRa LUTaR... assiM coMo NÃo esTaMos VesTidos PaRa MoRReR“


Copyright© Editora Literata 2015

Todos os direitos reservados pela Selo Editorial Literata. Nenhuma parte desta edição deverá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da editora. Produção Editorial Diretor Editorial: Design e Capa: Revisão: Impressão:

André C. S. Santos Bernardo Manfredi Letícia Godoy Meta Solutions

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação W323d Willians, Kate Distopia / Kate Willians. 1. ed. - São Paulo : Literata 2015 ISBN: 000-00-00000-00-0 1. Literatura Brasileira; 2. Romance; I. Título. 06-8255

CDD. 869.93 CDU. 821.13 Revisado conforme o novo acordo ortográfico

EDITORA LITERATA E-mail: literata@editoraarwen.com.br www.editoraarwen.com.br/Literata “a LiTeRaTURa eM Todos os seNTidos”


D edicatória R A N A N

econheço o quanto você foi importante, mãe, obrigada por acreditar em mim. té poderia deixar de te citar, mas sem a sua força eu jamais teria insistido, pai. em todas as palavras do mundo seriam suficientes para te agradecer... todos aqueles que contribuíram para a realização desse sonho, muito obrigada! ão consigo expressar isso de outro jeito, então, obrigada a você que está lendo isso agora. Sem você, isso com toda certeza não faria o menor sentido.



A gradecimentos

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á muitas pessoas a quem eu devo estes agradecimentos, então vamos começar pela mais importante de todas: agradeço a Deus por ter me presenteado com esse dom e amor pelas palavras, por ter me mostrado que, às vezes, as melhores coisas vêm para aqueles que mais persistem. Agradeço a minha mãe, Madalena, por ter despertado o amor pelos livros em mim quando eu ainda era pequena, comprando gibis, histórias infantis e incentivando a minha louca imaginação, a desenvolver personagens e a contar aventuras. Agradeço ao meu pai, David, por ter corrido atrás da publicação do meu primeiro livro “Debaixo das minhas asas” e por ter se sentido orgulhoso mesmo quando as dificuldades começaram a aparecer. Agradeço ao Ranan por ter estado ao meu lado nos melhores e piores momentos, por ter saído de uma sessão de “Divergente” no cinema e ter conversado comigo até altas horas da noite, analisando o contexto do filme e me dando ideias para uma possível história. Obrigada por ter lido capítulo a capítulo, conforme eu escrevia este livro e ter me incentivado a dar o meu melhor. Você sempre disse que eu conseguiria e aqui estou eu. Sem dúvida alguma, é quem eu quero ter ao meu lado até o fim dos tempos! Agradeço a equipe do Poliedro por ter me incentivado quando eu pensei em desistir, por ter me apoiado sem nem mesmo saber que esta publicação aconteceria. Em especial, agradeço a equipe de Marketing: Wanessa — por ter me dito que desistir era bobeira e que eu iria publicar este livro em 2015, custasse o que custasse —, Natália Jorge, por ter topado revisar Distopia, por tê-lo tornado ainda melhor e por ter me dito que a história era mesmo boa, Varão por ter desenvolvido


a melhor capa “forever”. Você conseguiu captar a essência do livro sem eu precisar falar muito a respeito e mesmo que no final não tenha sido a arte escolhida, saiba que você contribuiu e muito para que eu finalmente acreditasse que meu sonho era possível. E minhas amigas, Carol e Lucila, simplesmente por estarem lá, por me fazerem acreditar em mim mesma. Agradeço ao Bernardo por ter se empenhado e tido paciência comigo ao desenvolver a diagramação, e eu jamais poderia me esquecer de agradecê-lo pela arte final da capa de Distopia, ficou simplesmente demais. Agradeço a minha “Best” Fernanda por ter acompanhado de perto esse meu sonho, desde quando ele começou a nascer e por ser simplesmente a melhor amiga que alguém poderia ter. Agradeço as minhas primeiras leitoras betas, Ana Cristina e Simonir, vocês simplesmente me fizeram acreditar no potencial de Distopia, e embora eu tenha enchido o saco de vocês durante o tempo que liam, mantiveram-me atualizada, sempre me dizendo, através de mensagens no facebook, o que estavam achando. Agradeço a minha revisora/amiga/beta/madrinha Letícia Godoy por ter lapidado a história de modo que eu parecesse uma escritora profissional e tornado o mundo que eu criei ainda melhor aos olhos dos leitores. Ao André, a Aline e a toda a equipe da Editora Arwen por levar este sonho para uma casa editorial e por ter apostado em mim e no potencial de “Distopia”. Obrigada a todos aqueles que contribuíram de alguma forma, para que isso fosse possível. Vocês sabem quem são.

Distopia agora é real!


“Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução.” Machado de Assis



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s soldados logo irão bater à porta e não me sinto preparada. Por mais que encare meu reflexo no espelho, não consigo me enxergar. Desde criança, ensinaram-me o valor da honestidade, gratidão e nobreza, porém, quanto mais os anos passam, mais vejo que, por trás de todas aquelas palavras amigáveis, o que eles realmente queriam era que eu fosse criada para me calar. Minha mãe sempre disse que eu deveria sentir orgulho, quando, às vezes, questionei as ações do Regimento. Costumava dizer que o coronel fazia o que fazia para que o mundo permanecesse na mais bela e harmoniosa paz, mas eu via que ela não trazia amor nos olhos ao falar sobre ele. Aliás, a falta de amor e de demonstrações de afeto em minha casa era algo quase palpável de tão real. Tenho quatro irmãos mais velhos e todos eles servem ao Regimento. Nós cinco sofremos a pressão de sermos filhos do coronel: o líder do Norte. Somos lembrados todos os dias, desde crianças, o quanto devemos ser leais às regras que regem o nosso mundo e a nossa casa. Às vezes, pergunto-me o que eles pretendem com isso. A sociedade do Norte é dividida em duas categorias: governantes e governados. Os governantes são os que vivem no lado de dentro do muro e os governados no lado de fora. A diferença é que aqui, no interior, tudo é bonito, colorido e cheio de vida. Todos nós nos fartamos com uma


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enorme variedade de alimentos, objetos e roupas. Mas, do lado de fora, todas as casas são cinza, as pessoas se vestem de acordo com a profissão que escolheram exercer e recebem a mesma quantia de dinheiro, independentemente de qualquer coisa. Nós também temos o direito de crescer na companhia de nossos pais. Lá fora, aos sete anos, eles são obrigados a se alistar ao Regimento, crescendo segundo as regras que o coronel criou e treinados nas mais diversas áreas. Aos vinte anos, todos têm que fazer uma escolha. Diria até que “a escolha de suas vidas”. Eles precisam optar por uma das seis profissões que devem ser seguidas até o fim de seus dias, vivendo do lado de fora do muro, ou podem se tornar um soldado do Norte, receber um salário melhor e escolher viver em um dos dois lados. Claro que isso é só depois de completar, no mínimo, vinte anos de serviços prestados. O número de soldados leais ao coronel aumenta a cada ano, o que diminui ainda mais as chances que temos de nos rebelar. Digo “nós” porque também não concordo com meu pai, nem com nada disso. Os soldados andam pelas ruas em grupos e armados para afugentar as pessoas. Lá fora, em número bem maior do que por aqui. Quem se atreveu a pronunciar em voz alta sobre discordar do Regimento, ou das regras ditadas pelo coronel, nunca mais foi visto.


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lto! Preciso que você diga bem alto, soldado, para que todos nessa merda de lugar o escutem! — O sargento o esbofeteou mais uma vez com força. O soldado estava ajoelhado em frente a todos os demais, o rosto machucado e cansado, o olho direito começava a ficar roxo e dos lábios, sangue jorrava. — Ao coronel obedeço, ao Regimento sou fiel. — Gritou Thiago, o mais alto que podia. Mais um tapa, o soldado envergou as costas. O suor escorria por seu rosto e pescoço, ele já estava ali há quase uma hora, contava Laura escondida atrás de uma das poucas árvores do Regimento. Quase uma hora sendo espancado pelo sargento sem poder se defender. — Mais alto, maldito! Ainda não posso te ouvir! — O sargento gritou em frente ao seu rosto, fazendo com que gotículas de saliva lhe atingissem. — Ao coronel obedeço, ao Regimento sou fiel! — Thiago gritou. O sargento o chutou na coxa, fazendo com que ele caísse aos seus pés. Olhou então para a multidão de soldados enfileirados, com os rostos sérios e sem expressões. — Esse foi apenas um pequeno exemplo do que pode acontecer com qualquer um de vocês caso se atrevam a tentar fugir. — Disse ele com seu tom de voz imponente. — Entendam de uma vez por todas, não há como escapar do Regimento. Nós somos a lei. Nós somos a jus-


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tiça. Agora voltem para os seus quartos! E você soldado — Dirigiu-se a Thiago. —, espero que tenha aprendido a lição. — E voltando-se aos demais. — Não quero que ninguém o ajude. Ele voltará para o quarto com as próprias pernas! — O sargento riu antes de finalmente se retirar. Assim que ele saiu, os guardas se separaram para escoltar os adolescentes aos dormitórios. Quando enfim o pátio ficou vazio, Laura tomou coragem para sair de seu esconderijo. Os seus olhos estavam brilhantes à luz da lua, devido às inúmeras lágrimas que não parava de derramar. — Sinto muito. — Ela se ajoelhou ao lado do soldado que não devia ser muito mais velho que ela. Acariciou seus cabelos negros e molhados de suor, e Thiago levantou o rosto para olhá-la com algum esforço. A garota governante, com seu vestido cor-de-rosa esvoaçante, os cabelos longos e castanhos devidamente presos em uma trança, e os olhos cor de mel, encarava-o com pena. Um dos sentimentos que Thiago mais repudiava. — Não foi você quem me feriu. Não tem porquê se desculpar. — Disse ele, deitando a cabeça no chão e se sentindo mais vulnerável do que nunca. — Não fui eu, mas sinto como se tivesse sido. — Disse ela com certa angústia na voz. Thiago virou o rosto para encará-la, mais uma vez, antes de finalmente dizer. — Você é um deles. — Posso ser um deles, mas meu coração não pertence a nenhum dos dois lados. Meu coração pertence à ideia de um mundo em que as leis são as mesmas para todos. A um mundo sem esse muro, sem essa divisão. — Ela pegou um pequeno e delicado lenço feito de seda de um bolso oculto em seu vestido e o usou para limpar o rosto de Thiago, molhado de suor. — Por que tentou fugir? Sabe que é impossível! Os guardas estão por toda parte! — Ela não conseguia segurar as lágrimas que escorriam livremente por seu rosto. — Não sei. Estou começando a achar que infelizmente a minha vontade de sair daqui é maior do que a minha capacidade de pensar.


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— Respondeu sinceramente. — Ei, não precisa chorar. Eu sou mais forte do que aparento ser, não vou morrer só porque tomei uns tapas. — É que você está tão machucado. Não consigo ignorar isso. — Ele sorriu e se apoiou nela para que, com muita dificuldade, se levantasse. Ela percebeu que ele mancava devido ao chute que tinha tomado na coxa direita. — Já estou melhor, olha só: já consigo até andar sem fazer careta! — Ela riu. O riso dela era, de longe, a coisa mais bonita que ele já tinha escutado. Os dois se calaram ao ouvirem o som de passos e vozes cada vez mais próximos. — Eu preciso ir, estão me procurando. — Disse ela, arregalando os olhos. Ele sorriu. — Me chamo Thiago. — Disse, estendendo o lenço de volta para ela que o negou com um sorriso. — Eu sou Laura. — E correu em direção oposta a que os soldados vinham. Esperança, Thiago pensou olhando-a se afastar, ela representava esperança!

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Interlúdio P e Q U e N o G oV e R N a d o

dia parecia ter amanhecido cinza, combinando com o cenário que não era de maneira alguma digno de pintura ou nota. Afinal, aquele era só mais um dia, entre muitos outros, igualmente cinzas e monótonos. O inverno chegaria em breve e o frio já começava a dar as caras. Por todos os lados via-se governados vestidos numa espécie de “manto” muito parecido com um vestido, cujas cores variavam de acordo com a pessoa que os vestia. Era quase impossível impedir o clima de nostalgia que inevitavelmente se apossava de cada casa, cada rosto. Ninguém concordava com aquilo e tampouco tinham o poder de mudar ou sair daquela situação.


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O exemplo vivo disso eram os corpos putrefatos que formavam montes, jogados aos cantos do muro. Os governantes faziam questão de deixá-los à mostra para lembrá-los o que acontecia quando alguém ousava questionar suas ações. Há mais ou menos 50 metros de distância do muro, as casas começavam a aparecer, uma ao lado da outra, nem um quarto a mais ou a menos. Eram todas do mesmo tamanho e com o mesmo tom pálido de cinza. Todas tinham um número em suas portas, número este que servia como forma de, não apenas demarcar casas, mas também pessoas. Ninguém no Norte possuía sobrenome. Todos eram chamados por seus primeiros nomes e a única coisa que os definia era o número da casa em que moravam. O número que representaria sua família, parentes e futuras gerações. Esta era uma das leis que servia até mesmo para os governantes, mas para eles não era o número que importava e sim o título de poder que carregavam. Thiago era um 6. A sua família foi uma das primeiras a existir de acordo com os padrões daquela sociedade. Antes dele e de seus pais, seus avós ali viveram e antes deles, seus bisavós. Assim ditava a hereditariedade. Lembrava-se muito bem do dia em que as trombetas dos soldados soaram, convocando a todos que completassem sete anos naquele ano para além dos portões que os separavam dos governantes. Eram 20 crianças. Os pais ficavam em frente às suas casas consolando uns aos outros. Algumas crianças choravam e faziam birra, porém, instantaneamente eram chutadas ou levavam tapas dos soldados que os conduzia, e seus pais eram obrigados a assistir a tudo aquilo calados. Aquele que se atrevia a partir para cima de um dos soldados do Regimento, era instantaneamente imobilizado e forçado a se ajoelhar diante de todos os outros. Geralmente ganhava um tiro na testa. Às vezes no coração. Thiago era o primeiro da fila organizada por ordem crescente; tinha as bochechas rechonchudas e rosadas, os cabelos negros e grandes olhos castanhos. Ele tentava não chorar, apesar de os olhos estarem brilhantes


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devido ao acúmulo de lágrimas. Afinal, prometera aos pais que seria forte. Que não choraria. Não importasse o que acontecesse. Quando todas as crianças por fim passaram, os soldados, mais uma vez, trancaram os portões. As crianças ergueram os olhos para a imensidão a sua frente e muitas não conseguiram deixar de sorrir. Eram cores! Nunca haviam visto nada tão colorido e alegre. Aqueles que choravam pararam no mesmo instante e com a boca aberta, não conseguiram esconder o espanto. Eram campos verdes repletos de flores, árvores e casas enormes; uma maior e mais bonita que a outra. Os soldados os empurravam impacientes em direção ao moderno, porém nada colorido, ônibus que os esperava. O que aquelas crianças, de fato, admitiram para si mesmas ao se acomodarem no ônibus, foi que nunca antes tinham se sentado em bancos tão confortáveis. O único meio de transporte que tinham do lado de fora, era um micro-ônibus enferrujado e de bancos duros que os levava e buscava do “Centro de Profissões”, onde seus pais trabalhavam e onde passavam a maior parte do tempo. Os soldados os seguiram para dentro do ônibus, entediados e nada simpáticos. As crianças cutucavam umas as outras apontando para fora da janela, empolgadas. As pessoas também se vestiam de forma diferente, constataram animadas. A maioria começou a acenar para aqueles que passavam, recebendo algumas caras feias e poucos sorrisos acolhedores. Thiago demonstrava estar tão ou mais fascinado que os demais. O pai o havia alertado sobre isso. Disse que em um primeiro momento, a beleza das cores seria tudo o que ele veria. Thiago estava sentado próximo a um soldado bigodudo e mais velho que todos os outros e resolveu acenar para ele, chamando sua atenção. O soldado abriu um sorriso franco, ao contrário dos demais, cujos olhares repreensivos pareciam recriminá-lo. O bigodudo acenou de volta e Thiago sorriu. Um de seus dentes da frente estava faltando. Ele era tão pequeno e rechonchudo que chegava a ser a criança mais encantadora do ônibus. Dez minutos se passaram e então as crianças notaram a mudança


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de cenário, que fora do colorido para o cinza novamente. O ônibus havia entrado em uma enorme e imponente construção. Os soldados os mandaram fazer fila para descer e assim eles o fizeram, um pouco receosos. Estavam em uma garagem que guardava muitos outros ônibus iguais aquele, assim como algumas motos e jipes. Passaram por todos os automóveis, até chegar a uma enorme porta de aço. O soldado bigodudo digitou algo no teclado eletrônico em frente à porta e a mesma se abriu, fazendo um barulho que chamou a atenção dos pequeninos. Eles adentraram, seguindo o soldado gentil. Não era tão feio por dentro, como era por fora. Muitos equipamentos de última geração preenchiam os cômodos que possuíam, cada um, uma tonalidade diferente de verde. O Quartel General do Regimento era enorme e as crianças foram instruídas a não saírem andando sozinhas nos primeiros dias justamente para não acabarem se perdendo. Foram divididas em cinco grupos de quatro e cada grupo seguiu um soldado, rumo a um corredor diferente. — Você tem um bigodão! — Um dos meninos do grupo de Thiago falou para o soldado. Ele gargalhou alto. — Um dia você também vai ter um. — Os meninos riram alto. — Mas então, quais os nomes dos pentelhos que irei supervisionar pelos próximos anos? — O soldado se virou, parando em meio ao corredor e colocando as mãos na cintura. Os meninos se acotovelaram para ver quem falaria primeiro. Thiago tomou a frente do grupo e estendeu a pequena mão para o soldado. — Eu sou Thiago, filho de Victor e Jussara, da casa 6. — Muito prazer Thiago. — Respondeu o soldado, apertando sua mão. — Lucas, filho de Carlos e Marina, da casa 10. — O menino loiro e menos rechonchudo do grupo estendeu a mão em seguida. — Nicolas, filho de João e Helena, da casa 2. — Disse o mais alto do grupo. — Ângelo, filho de Rodrigo e Carolina, da casa 20. — Por fim, o menino negro, de olhos grandes e sorriso sapeca respondeu, batendo


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continência para o soldado. — Tenho muito prazer em conhecê-los meninos, e é uma honra poder ser seu instrutor durante os próximos anos. Porém, como minha primeira lição, sugiro que se esqueçam de seus pais e de onde vieram. Aqui dentro estas informações não serão necessárias e para o seu próprio bem, é bom não mencioná-las. — Por quê? — Perguntou Ângelo. — Tenho muito orgulho dos meus pais e de quem sou, por que não falaria? — É claro que você deve se orgulhar dos pais que tem, garoto, não estou dizendo nada disso. É só que o sargento tem métodos um pouco cruéis de educar seus soldados. Estou apenas tentando preveni-los, afinal, daqui a pouco irão se apresentar a ele. Não falem de seus pais ou de suas casas, isso costuma aborrecê-lo. — Explicou o soldado de forma paciente. — E a propósito, meu nome é Enzo. Podem me chamar assim quando estivermos sozinhos, porém, lá fora me chamem apenas de instrutor. Agora vamos nos apressar, o alarme tocará daqui a exatamente 10 minutos. Enzo caminhou mais um pouco até chegar a uma porta também feita de aço, digitou a senha e ela abriu com um estalo. As crianças o seguiram, entrando e se deparando com mais uma surpresa. Eram dois beliches, cada um com lençóis de cama confortáveis e de um tom verde oliva que os meninos acharam incrível. — Eu fico com a de cima! — Gritou Ângelo, já subindo a curta escada que o levaria à cama escolhida. Thiago foi igualmente esperto e fez o mesmo com o outro beliche. Subindo na cama e fazendo uma dancinha de vitória. Os outros dois ficaram emburrados, mas logo desmancharam a carranca ao ver o que os esperava em cima da cama. Pequenas peças de roupas na cor preta; calças, camisa, um colete de material firme e rígido, um casaco, meias e coturnos. — Que legal! — Gritou Lucas. — Finalmente algo que não seja cinza! — Troquem de roupa meninos, caso alguma peça fique apertada ou folgada demais vistam mesmo assim, só para ficarem apresentáveis.


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Se necessário, quando a apresentação terminar, arrumo peças novas para vocês. Vou estar aqui do lado de fora, aliás, a senha para entrar no quarto é o número 1 cinco vezes. Vocês são o grupo número 1. — Uau! — Os meninos disseram em uníssono. O soldado bateu a porta rindo. Os pequenos então passaram a tirar as roupas simples na cor cinza que vestiam para colocar as novas. O sinal não demorou a tocar e os cinco grupos logo desceram para o pátio principal, acompanhados por seus futuros instrutores. A enorme quantidade de soldados enfileirados atrás do homem pequeno e magro, vestido com roupas militares muito mais sofisticadas que a dos demais, com um bigode proeminente e pose rígida, os assustou. — É ele o tal coronel? — Perguntou Thiago, não conseguindo conter sua curiosidade. O soldado Enzo apenas deu de ombros. — Não, mas é tão importante quanto. Esse ai é o sargento. — Sejam bem vindos jovens soldados, espero que tenham sido devidamente recepcionados por seus instrutores. Daqui para frente vocês irão se dirigir a mim como sargento, e como na maior parte do tempo o coronel se encontra em seus aposentos, cuidando de assuntos bem mais complexos, serei eu quem colocará a devida ordem por aqui e quem ministrará suas missões e atividades. — As crianças foram orientadas por seus instrutores a se organizarem em filas. — Estão vendo esses soldados postos atrás de mim? É neles que devem se espelhar. Vocês serão treinados nas mais diversas áreas; irão aprender a ler e escrever, a planejar estratégias e implantá-las, a lutar, manejar armas e a atirar com precisão. Mas, mais importante do que isso, vocês aprenderão a seguir ordens. — Por quê? — Perguntou um garotinho que Thiago cogitou ser do grupo 2, pela forma com a qual estavam organizados em filas. — Bem, vejamos... Venha aqui garoto, isso ande, venha até mim. — O garoto caminhou hesitante até ficar de frente para o sargento. — Você sabe o que significa “obedecer a uma ordem”? Vamos, responda. — Significa fazer o que mandam. — O sargento bagunçou seus cabelos que tinham um tom de ruivo semelhante ao cobre.


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— Isso mesmo! Vejam só como é fácil. — Comemorou o sargento. — Agora vamos ver na prática... Como se chama garoto? — Manuel. — Respondeu, um pouco mais confiante. — Pois bem Manuel, se eu te mandasse dar cinco voltas neste pátio agora mesmo, você me obedeceria? — O garoto assentiu. — Certo. E se eu dissesse que você teria um cachorro em seu encalço e que caso diminuísse apenas um pouco o ritmo, este mesmo cachorro o atacaria? — O garoto não respondeu. — Vamos Manuel, estou falando com você. Soldado Matheus, por favor. — O soldado em questão deu um passo à frente, se colocando bem ao lado do sargento. — Traga a Lolita! Thiago viu o soldado caminhar na direção contrária à que estavam e não precisou se virar para saber o que aconteceria a seguir. Os músculos de seu instrutor, e de todos os demais soldados ali presentes, se contraíram. Thiago notou isso através de sua postura que passou de tranquila para tensa quase que imediatamente. Cinco minutos de um longo e apavorante silêncio se passaram até que o soldado voltou, segurando uma coleira. Presa ali, estava a cachorra mais pavorosa que já tinha visto. Era uma pastor alemão enorme, com dentes pontiagudos do tamanho do polegar de Thiago. O menino Manuel começou a tremer assim que o soldado, de rosto inexpressivo, se postou à sua frente. — Pois bem Manuel, este será o seu primeiro desafio. Caso se recuse a seguir minhas ordens, será exilado no “quarto escuro” sem comida e água durante uma semana inteira. Quero que dê cinco voltas neste pátio agora mesmo, sem olhar para trás. Lembre-se de que qualquer hesitação fará com que minha Lolita o ataque. Estamos entendidos? — Ninguém disse nada. Thiago engoliu em seco. O menino Manuel concordou e Thiago sentiu o próprio coração pulsar mais forte. Estava apavorado, o rosto de seus colegas tampouco aparentava outra coisa. Manuel era mais magro que Thiago e mais alto também, torceu para que isso servisse a ele de vantagem. — Então estamos combinados. Te darei 10 segundos de vantagem antes de soltá-la. Um... Dois... — Manuel saiu correndo, rente às pa-


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redes que cercavam o pátio, o desespero estava presente em cada traço de seu rosto. O sargento contava devagar, aproveitando cada momento daquilo. — Três... Quatro... Cinco... — Manuel era rápido e não demorou a completar a primeira volta. — Seis... Sete... Oito... Nove... — O sargento parecia estar se divertindo. — Lolita, atrás dele! — A cachorra avançou assim que o soldado a soltou. Ele não olhava para trás, porém quando passou próximo a Thiago, fechando a segunda volta, todos puderam ver as inúmeras lágrimas que escorriam por suas bochechas. Thiago quis chorar junto com ele. Manuel fechou a terceira volta com esforço e Lolita estava a apenas três ou quatro passos atrás dele. Manuel correu ainda mais depressa, conseguindo completar a quarta volta com alguma vantagem. A cachorra o alcançou no exato momento em que completou a quinta. Manuel caiu no chão, urrando de dor. Lolita tinha seus dentes cravados em seu tornozelo. O sangue começava a sujar seus dentes e o garoto chorava. O sargento então se deu por satisfeito e fez um sinal para o soldado Matheus, ele correu para pegar a cachorra e levou-a para longe. Thiago estava chocado, os lábios levemente abertos em forma de “o”. Os outros não estavam muito diferentes. — Parabéns, Manuel. Você se saiu muito bem! Assim que sair da enfermaria, poderá voltar ao seu quarto e seguir com suas atividades normais. Agora por favor, vocês, levem-no. — Apontou para dois soldados atrás de si. — Espero que tenham entendido o significado da palavra “obedecer”. Eles tinham entendido. Afinal, aquilo tudo não era um conto de fadas. Não estavam ali para desfrutar as cores ou as regalias, estavam ali para servir. A mensagem havia sido passada com muita clareza. Aquilo que havia acabado de acontecer sim, aquilo era o Regimento.




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