O triste fim de uma lembrança

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O TRISTE FIM DE UMA LEMBRANÇA

K.S


I

Oi. Eu não sei como começar isto. Mudei-me recentemente. Não. Não comecei isso por ter me mudado. Ou algo ter mudado em mim. Estou nervosa. Deixe-me recomeçar. Oi. Talvez hoje você não se lembre de mim. Passaram-se muitos anos, muitos dias e poesias desde a última vez que nos vimos... Talvez você nem lembre meu nome, talvez já tenha me apagado da sua lembrança, é justo. Foi o que fiz com você quando me deixou... Relaxa. Não estou tentando fazê-lo recordar-se de mim com algum tipo de nostalgia. Há pessoas que nos marcam e isso é natural, há outras que infelizmente passam sem marcar ninguém. E esta pessoa sou eu. Eu sempre fui alguém cinza demais para que alguém se interessasse por minhas cores. Sempre fui uma lagoazinha onde pequenas pedrinhas provocavam ondas gigantescas. Sempre foi assim. Talvez você se recorde. Eu sou a pessoa que você não desejava mais ver. Nós tivemos algo. Algo pequeno pra você. Algo gigantesco pra mim... Eu sempre vi gigantes onde haviam anões. Recorda-se? Bem, talvez ainda não seja o suficiente para você se lembrar de mim. Nós namoramos. No final da década de 90... Em 1997. Eu tinha 18 anos na época. E começamos a namorar no dia do meu aniversário, você me deu um disco dos Beatles. Parece outra época não é? Um mundo muito antigo, um lugar que não devia existir mais. Mas o passado é um lugar que sempre vai existir, a persistência da memória em lembrar coisas que deviam ser esquecidas é incrível. Agora chove uma fraca chuva, uma chuva de saudade. Eu... Não estou com saudade de você. Eu só quero devolver seu disco dos Beatles. Como eu te encontrei? Minha irmã é médica, como você. Oh, soube que você se tornou médico. Ela simplesmente apareceu-me outro dia com um cartão nas mãos e me perguntou se eu não o conhecia, porque seu nome era muito familiar, então uma coisa leva a outra, e ela me trouxe seu endereço. Nada mais. Não quis saber nada mais. Porque sua vida não me interessa. Eu tenho apenas algumas lembranças para te devolver. Eu sofri, ou melhor, eu vivi algum tempo com elas... E acho que agora é seu momento de conviver com elas. Talvez eu esteja apenas sendo um pouco egoísta, mas essa sensação profunda de que algo estava errado permaneceu comigo por esses 16 ou 17 anos em que a vida nos separou. Hoje eu penso no destino com certa ressalva, com um pé atrás, ou eu o desafio sabe? O destino não existe. É isso


mesmo, o destino não existe. É tudo uma grande farsa para não nos sentirmos perdidos. Lembra-se que seu destino era ficar eternamente comigo?! Ironia. Ironia. E agora os trovões. A chuva ficou mais forte e eu nem vi. Parece uma multidão se aproximando, eu tenho a impressão de que os trovões movem o chão e numa noite dessas quando o céu era atravessado por relâmpagos e raios eu pensei: “não há distância alguma entre o céu e a terra, vejam só, os raios descem e encostam no chão fazendo o caminho de luz”. Nesses momentos eu não tenho certeza se o raio cai realmente do céu ou ergue-se da terra de encontro ao céu. Eu inventaria uma lenda que o raio, a chuva, esses fenômenos são os únicos meios pelos quais a terra e o céu se tocam. Eu fico abobalhada e temerosa olhando esse encontro de amantes. Mas eu sei que é assim. Ou não sei. Minha mente sempre foi muito fantasiosa lembra-se? Você enrolava os dedos nos fios dos meus cabelos fazendo pequenos cachos que se desmanchavam logo e dizia que eu devia ser escritora. Nós nos conhecemos num restaurante, era um lugar bonito. Ironicamente o lugar aonde nos vimos pela ultima vez também. Sabe, eu ainda vou àquele lugar, eu me tornei alguém que gosta de ver partidas e separações, eu me tornei um ser meio louco. Um pouco mais do que era antes, mas com um traço de sanidade. Voltei para esta cidade tem cinco meses. Eu tenho 35 anos hoje, precisava de uma pausa do trabalho, precisei. E vim a este lugar novamente. Eu soube de você pela minha irmã como já disse. Eu não estava te procurando, eu não estava perseguindo seus passos. Sempre acreditei que as pessoas ou ficam ou vão quando querem independente da nossa vontade interior. Mas voltando às lembranças. Conhecemo-nos naquele restaurante que também é palco de alguns shows bem legais, às vezes tocava tango e os bailarinos dançavam envolvidos com a melodia da música. Eu ficava observando e absorvendo aquele romance, a dança deles era um romance, e os bailarinos eram amantes clássicos, loucos para tocar-se sem poder e dançavam e lutavam para tocar-se e eu me emocionava. Eu lembro que você estava na mesa ao lado me encarando enquanto eu chorava silenciosamente envolvida na bela apresentação. Você me perguntou por que eu chorava e eu respondi que aquilo era mais lindo do que qualquer dramalhão shakespeariano. Você era um clássico amante de Shakespeare, gostava de tudo, e eu tinha certo não querer por aquela coisa forçada, obcecada e aqueles diálogos loucos do tipo... “ oh minha donzela” “Oh meu senhor”. Eu ria a beça! E desde aquele dia você me encheu a paciência com Shakespeare, que eu não podia chamar obras clássicas de dramalhão, que eu não podia. Então eu o convidei para ver a realidade. Eu lhe disse que Shakespeare não era real. Que aquilo não existia que aquilo era para menininhas. Você ficou bravo e não falou comigo por uma semana, depois me procurou e me trouxe o disco que te hoje eu te devolvo. Gostava do jeito que você me olhava. Era interessante, longe de qualquer dramalhão shakespeariano. Calma, eu respeito Shakespeare, eu ainda leio para os meus sobrinhos. Essas são boas lembranças. Fico aqui olhando a rua de paralelepípedos que corre faceira até encontrar-se com a avenida de asfalto ali no final da rua, eu conheço tudo por aqui. As coisas mudam, mas não mudam tanto. Essa rua ainda se chama Rio de Janeiro, é a rua da casa dos meus pais. Uma rua com o nome de estado, uma rua como qualquer outra, mais ainda de paralelepípedo, nós reformamos a casa faz algum tempo, mas não há reforma que mude o que houve aqui, não há tinta que apague o que esconde essas paredes, não há rumor que não chegue aos ouvidos de quem deseja saber. Eu vejo seu sorriso, sempre admirei seu sorriso, acho que me impressionei muito com isso porque desde que cheguei aqui, vejo seu sorriso nos lábios de todos os homens, acho que é normal, como


estou esvaziando minhas lembranças de você nessas linhas é normal que eu fique impressionada. Ficarei até a última palavra. Um dia houve nós, hoje somente há a lembrança de nós dois, que possivelmente somente eu recordo. Eu sei como é, os homens não tem muito isso de ficar recordando as mulheres de seu passado, eu queria que tivessem... Eu queria que os homens tivessem um pouquinho dessas recaídas de um dia olhar o céu e pensar: “ eu fiz mal àquela garota, como será que ela está?” Desejar pelo menos que ela esteja bem. Algo assim. Por outro lado eu também admiro essa sensatez de enterrar o passado, nós mulheres também fazemos isso, algumas conseguem, outras apenas aprendem a conviver com os fantasmas. Eu sinto a brisa do vento a deslizar pela rua escura, iluminada timidamente por pequenas luzinhas amarelas depois da tempestade. A tempestade passou, mas encharcou meus olhos. As tempestades são assim, provocam enchentes terríveis dentro do coração da gente, e a gente fica assim, tentando respirar, tentando voltar à superfície, realinhar os pensamentos. Eu desenterrei você, agora vejo um bilhão de fantasmas seus. Bem, mas é por pouco tempo que o fantasma do sentimento que tive por você vai me assombrar, acredito que seja assim, a gente tem de aprender a exorcizar os fantasmas um a um para que todos possam viver em paz.

II Começamos a namorar depois do presente. Eu ouvia aquele disco todos os dias, era um bom disco, eram boas músicas. Eu não consigo mais ouvir os Beatles, eu tentei porque a musica é boa, no começo eu via você e seu pequeno violão tocando a canção, uma canção qualquer e eu fingia que cantava. Era divertido, eu aprendi a tocar com você lembra-se? Torrei sua paciência durante dias... até que saiu o primeiro acorde. Eu já me sentia a melhor do mundo, eu poderia tocar qualquer coisa, eu poderia fazer concertos, era muito boba. Às vezes eu ficava em silêncio olhando aquelas cordas, contemplando e você não entendia, eu sempre fui mais para dentro de mim do que para fora, eu te olhava nos olhos e queria passar para você o que aquele violão significava! Como era maravilhoso que aquelas cordas e aquele corpo amadeirado emitissem som que me invadia de tal forma a me deixar sem palavras, você sorria, apertava meu nariz e dizia que eu sentia tudo demais e que estava ficando louca. Você tinha razão. Meu pai não ia muito com sua cara, você era mais velho que eu e já estava indo para a faculdade no ano seguinte, eu ainda estava pensando no que queria fazer. Mas meu pai era o tipo de cara que não se importava muito, ele olhava da fresta da porta enquanto eu e você ficávamos conversando no portão de casa e me mandava entrar em seguida. Eu combinava meu jeito introspectivo de ser com uma mistura de atrevimento, eu fui a primeira a beijá-lo. Eu queria sentir seus lábios e entender porque meu cérebro queria que eu o beijasse. Você ficou surpreso naquele dia. Eu acho, tinha algo que o fazia retroceder sempre um pouquinho, cautela, medo. Acho que era o fato de você ir embora no ano seguinte, mas eu não me importava, eu não tinha muitas ilusões, eu sabia que aquilo ia acontecer. Às vezes você aparecia para oferecer doces pelos meus pensamentos, e então eu te contava. Sabe todos aqueles questionamentos sobre a vida? Eu te perguntei por que isso, porque aquilo. Minha


voracidade te assustava, eu chorei sozinha depois que você se foi naquele dia, sob a mangueira do meu jardim. Algo quebrou dentro da minha mente e depois só foi quebrando... Mas você tinha mãos melodiosas, Você podia me fazer descansar com um toque de suas mãos, você podia fazer meu coração se acalmar lentamente, e meu choro cessar, mesmo que eu não soubesse explicar. Era mágico, você me dizia que eu não precisava explicar, eu deitava a cabeça no seu peito e deixava aquela coisa ruim, aquele peso no meu espírito ir embora, era o que eu sentia. Seu abraço era a chuva indo embora, eram as nuvens de raios impiedosos clareando, era a magia de um mundo que eu apenas podia inventar. Mas você não era invenção, você existia de uma forma ou de outra e não havia sido eu quem havia te criado. Era lindo. Você era, existia, não por minhas mãos. Eu me sentia feliz. Às vezes eu ria muito, você tinha esse jeito de me deixar à vontade, com você, apenas você e eu. Mas seus amigos não gostavam de mim, nem sua irmã, nem sua mãe, seu pai, nem seu cachorro. Sua mãe olhou para mim certa vez e disse que eu tinha a aura negra, eu nunca duvidei dela, acho que ainda tenho, mas tudo foi ficando mais cinza. Vivemos bons momentos, você ainda tentando me fazer gostar mais de Shakespeare e eu te envolvendo no beat, a poesia underground, o mundo abaixo do mundo, você era um clássico, eu gostava também. Lembra-se do dia em que você quebrou a maquina de refrigerantes do shopping? Eu ria tanto... Desculpe aquilo foi engraçado, você tentava desesperadamente conter o derramamento e eu ria demais, sequer podia ajudá-lo, era engraçado, muito cômico. Minha barriga ficou dolorida de tanto que eu ri. Poucas vezes ri assim na minha vida depois daquele dia, eu guardaria essa lembrança, porque era bonita, alegre e divertida, mas nem essa mesma eu posso manter comigo. Não é aconselhável. Então eu te entrego a gargalhada mais sincera que já dei em minha vida. Eu guardo a lembrança do seu beijo depois daquela chuva de refrigerantes. Eu guardei por muito tempo, para devolver um dia. Algumas coisas não devem ficar conosco para sempre e não ficarão comigo. Às vezes você ria muito comigo, eu adorava imitar vozes, a do salsicha, a do Fred dos Flintstone, tinha também a voz de um apresentador de TV, e você vinha e fazia cafuné na minha cabeça e dizia que eu era única. A única. Eu sempre fui muito única, sempre fui de uma unidade sem tamanho, uma única TV na minha casa, um único peixe no aquário, um único homem que amei de verdade. Depois de você minha unidade desapareceu, eu meio que me desfiz em pedaços definitivamente, na verdade a culpa não foi sua, eu já era pedaços, você era um tipo de imã que atraia todas as minhas partes e me tornava uma unidade, sem você eu voltei a ser plural. A ser muitas. A ser ninguém. Sabe, eu sinto algo dentro do meu peito agora, um tipo de nostalgia, um tipo único de sincronia. Estou me desfazendo dos meus pensamentos e dos meus sentimentos. Estou finalmente me destruindo, mas não se preocupe depois disso eu vou renascer, tenho o espírito da fênix. Agora pensando nisso meus olhos pesam e meus pensamentos vagam por lugares obscuros do meu ser, meus sentimentos borbulham, esta é a ultima vez que eu volto a sentir algo assim na vida. Eu deixei um soul tocando aqui no quarto, eu estou sozinha há algum tempo. Minha mãe já foi dormir, e


eu ainda continuo acordada com todos os sentimentos do mundo que rondam pelas ruas vazias e cobertas das lagrimas do céu. Não é terrível um dia em que até o céu chora?!

III Eu não consegui dormir novamente, o médico disse que eu preciso me acalmar, que o motivo da minha insônia e dos meus cochilos curtos é que eu tenho uma mente muito agitada, que eu penso demais, que eu sonho demais, até acordada, que eu lembro demais. É verdade, eu ando me deslocando de cômodo a cômodo, visitando, hóspede da saudade, criada da tristeza e da solidão, eu tiro o pó da mesa, dos móveis, eu deixo tudo brilhando para que as imagens que tem vida própria possam dançar, viver, dentro da minha cabeça, eu não tenho controle. Meu cérebro se divide em dois, o meu e o da minha saudade, dos meus sentimentos, esse age sozinho, independente do comando geral do outro. Dentro da minha cabeça a insubordinação dos meus sentimentos para com a minha razão é tamanha... Quando a gente é criança, quando a gente é adolescente tem-se outra visão de mundo. Que tudo vai dar certo, que tudo vai ser bonito, nós tínhamos planos juntos lembra-se? Você nunca iria me deixar, e eu iria te amar por toda a eternidade e além. Quanto dura a eternidade? Incrível como no mundo real até a eternidade tem fim! O além é um caminho comum cheio de pedras e verdades. A verdade é algo doloroso, escapa da ilusão, esfrega na nossa cara... que o chão de vidro quebra-se. Você me pediu em casamento oito meses depois. Foi bonitinho, até sorri agora. Claro que não foi um casamento de verdade, era uma prévia, era um momento de conto de fadas algo que deve ver como fantasioso, bonito de se ver e pensar, algo para contar aos netos. Você tem netos? Não, não importa. Você nos comprou uns anéis e houve algo de especial, você fez um contrato. De próprio punho. No contrato nós nos comprometíamos a jamais nos abandonarmos, a fazer o possível para estarmos sempre juntos, que teríamos filhos, você escolheu o nome deles. Ficaríamos juntos e nem a morte nos separaria.


É interessante pensar numa promessa dessas, você compromete sua vida e seu futuro de um jeito único, você não sabe as palavras que está jogando para o universo, não tem ideia de quem está iludindo, cuidado com as promessas. Não prometa. Alguém um dia pode ficar muito triste com essas promessas não cumpridas, existem pessoas que vivem à espera, não era meu caso, no meu íntimo eu sabia que você era uma borboleta, um pássaro. Aprendi com o tempo que pessoas que nascem pássaros mais cedo ou mais tarde voam. Mas é bom passar algum tempo com elas, aprendemos muito do que significa liberdade com esses espíritos livres, mas eu também era um pássaro e a eternidade não existia no espaço de um vôo. Naquele dia nos demos as mãos, mas como dois pássaros nunca nos daríamos as asas. Mais tarde em casa eu chorei bastante, porque eu ao contrário de você ainda vivia numa gaiola. Eu fiquei com uma das vias do contrato de casamento, você com outra. Fomos felizes. Havíamos casado, pensamos na lua de mel, fingimos ir a Paris e fomos ao shopping e comemos um crepe. Assistimos um lançamento de filme no cinema, nos perdemos nos beijos. Sua boca, seus sentidos tornaram-se meus sentidos. Cada vez mais um único ser, mais uma vez você me tornava uma unidade, una, única. Átomo. Olhei lá fora. O dia já clareou. Você se casou? Sim provavelmente. Vejo umas mulheres passando pela rua, a caminho do supermercado. Há um grande supermercado na esquina da minha casa. Qual delas será a sua? Será que seu cheiro está em alguma delas? Quero expulsar da minha mente também todas as perguntas. Todas as minhas duvidas sobre você, sobre o percurso da sua vida. Não importa muito com quem está eu só queria saber... tolice. O vento sopra-me os fios que ficaram soltos quando prendi os cabelos, arrepiei , um sopro de um sussurro, às vezes o vento fala comigo, sim eu continuo sentindo muito... Tudo. Mas isso logo vai acabar. Desci até a cozinha, apanhei uma xícara de café. Lembra-se da minha mãe? É claro que se lembra! Ela estava fazendo tricô lá na sala. A vida da gente é isso, não é? Fios de tricô emaranhados. Não bonitinho do jeito que é. Não delicioso do jeito que parece, não do jeito que parece. A casualidade dos dias que passam, da morbidez do meu coração me faz parecer um ser humano que precisa de uma peça de tricô no corpo, algo pesado que me torne mais corpórea, mais real. Eu estou me tornando uma recordação de mim mesma. E para quê? Quem haverá de me lembrar? Quem haverá de me contar? Não quero ser uma recordação que anda, fala e respira, uma recordação viva! Não. Não. Não. Meus olhos pesam novamente, a tempestade agora é interna. Eu estou chorando. Eu quero que saiba que estou chorando, talvez eu não volte mais a chorar, talvez me tirem junto com as recordações que tenho de ti essa faculdade humana. Eu sempre choro. Sempre chorei. E foi com uma lágrima que as paredes do nosso mundo começaram a ruir. Uma lágrima que não era minha, mas que aos poucos se tornou minha chuva particular. Nós fomos um casal durante algum tempo. Na caixa junto com o disco estão também o contrato de casamento que você escreveu a próprio punho e minha “aliança” em pouco tempo eu não recordarei nenhuma dessas coisas.


IV

Um dia. Foi nesse dia que as coisas começaram a mudar. Não com você. Comigo. Foi comigo primeiro que o mundo veio sacanear. Foi dentro da minha casa que as portas do inferno foram abertas, o clima se tornou estranho, pesado, soturno, escuro, e eu cada vez mais cinza. Lá dentro de casa não existia mais riso, e o meu sentir se encheu de dor. Uma dor que começou a me dilacerar. E seu sorriso começou a perder o brilho para mim. Naquele tempo eu não deixei de te amar. Não. Eu continuei com todos os meus sentimentos, mas a tristeza que chegou dentro da minha casa fez morada, nós não pudemos mandá-la embora, pelo contrario ela saía, mas quando voltava trazia mais dos seus. Minha casa se tornou um labirinto, um minotauro monstruoso morava lá dentro, e eu estava me convertendo em sua prisioneira. Você estava prestando vestibular numa porção de universidades. Você tinha sua própria vida. E não estava envolvida na minha. Sorte sua. Num desses dias em que o céu e a terra se tocavam, minha mãe descobriu que meu pai a estava traindo e tentou se matar. Eu fiz o mesmo em seguida. Seriam duas mortes sem propósitos, mas a dor de pensar em perdê-la foi tão grande que meu recipiente não suportaria permanecer também. Você já sentiu uma dor tão grande, mais tão imensa dentro da sua alma a ponto de rasgar sua carne. A dor engole a gente, a dor nos come vivos. E onde você estava? Onde estavam as promessas? Onde? Minha mãe foi internada longe do meu convívio. Disseram que ela não seria boa influência para mim. E eu comecei a beber. Eu queria estar sempre dopada. Embora meu corpo não quisesse o


álcool, eu me embebedava, dentro de casa, todos os dias, sem parar. Meu corpo rejeitava, não queria. Mas não importava. Onde você estava? Não estou te culpando, eu culpo a sua lembrança, eu culpo as suas palavras... tanto tempo tanto tempo... prometendo nunca me deixar, na saúde e na doença, na tristeza e na alegria... Uma farsa juvenil. Eu afundei no mais profundo da minha alma. Todos os dias eram sóbrios para umas noites de embriaguez. Eu odiava tudo ao meu redor. Eu odiava a lua, odiava a tristeza, a escuridão, a saudade, odiava o tempo, as horas, odiava viver. Você voltou dois meses depois. Você voltou. Não devia ter voltado. Você voltou para me olhar com aqueles olhos. Para querer me salvar. E pela primeira vez eu te odiei de verdade.

V E foram dias olhando suas mudanças, e foram dias vendo você ser moralista, e foram dias em que eu mandei Shakespeare se foder. Nesse dia você me olhou como se não me conhecesse. Você não me conhecia mais... Eu também não. Eu voltei para a garrafa. Eu voltei para a solidão. Cada vez mais distante, cada vez mais perdida, longe de você. Longe daquelas promessas que você fazia, enquanto me beijava. Tudo estava se tornando pesado para mim. Muito triste, doentio. Calamidade. Não sei se as pessoas realmente precisam de outras, eu acho que não. O que me atormentava era a tua lembrança e a saudade que quando não estava entorpecida sentia, e quando estava entorpecida sentia em dobro. Meu pai fazia minhas vontades. Álcool e mais álcool. Sabe, a culpa destrói um ser humano, e um erro, um único erro destrói tudo e não deixa nada. Eu fui arrastada. E ele se sentia culpado, e supria meu estado. Eu não era dependente. Nunca fui. Eu fazia porque queria, eu me embebedava até não poder mais. Eu via você cada vez mais distante. Eu queria te alcançar mais não dava. Acho que você começou a ter vergonha de mim. A cidade inteira falava do episódio. Minha mãe internada numa casa de saúde mental, eu entregue ao álcool. Nessas horas eu pensava no amor. Que amor você sentia? Amor. Sabe, eu sempre soube que isso era uma ilusão, mas um dia até o próprio ilusionista quer provar de sua própria ilusão. E foi assim que aconteceu, foi assim que sucedeu. Era assim... eu quis provar da minha própria ilusão só para comprovar que assim o era. Tudo bem, eu repeti para mim mesma.


Eu lembro a última vez que eu te vi de perto. Você veio na minha casa. Você gritou comigo. Você dizia que eu não era nem sombra do que um dia havia sido, suas palavras reviravam o meu cérebro. Você me puxou os braços, me gritou para reagir, depois caiu a um canto. Chorou. Chorou muito. Eu queria ter feito algo. Mas eu precisava de mim. Não de você. Você partiu. Você levou meu coração. Eu chamei seu nome, baixinho, eu pedi perdão. Você disse que me perdoava, que me amava e que esperaria por mim. Eu nunca mais te vi. Mas acreditei na sua espera. Aquela era a vida real. Você nunca tinha visto aquilo de perto, você nunca tinha tocado no espectro da dor, eu compreendo, eu sempre compreendi. Estou expulsando essas memórias também. Por dias eu acreditei no seu retorno. Quando minha mãe saiu da casa de saúde mental e voltou para casa, eu acreditei mais em você. Acho que fiz de você minha luz. Fiz de você o meu farol. Fiz da sua imagem tudo que eu precisava. Pessoas precisam não de pessoas, pessoas precisam de caminhos, de objetivos, de metas, de querer levantar. Eu quis. Eu bem que quis. VI

No meu aniversário de 19 anos disseram-me que você estava na cidade. Veja, não foi nem você que mandou me avisar. Você não me deu um telefonema, não me escreveu. NADA. Você sabe que diabo é a esperança? Sim. A esperança é um diabo, a esperança de vê-lo novamente fez meu coração palpitar. Olha, não quero resgatar fantasmas. Eu estou dando a você a historia que me deu. Eu estou devolvendo o que me deu, quero dizer. Se havia tanta promessa, porque não foi capaz de estar comigo? Fraco! Porque era um fraco. Eu te procurei. Eu. Naquele restaurante onde nos conhecemos, em meio a dançarinos de tango, em meio a brilhos de estrelas e chão de cerâmica preto e branco. Um chão que me lembrava pierrôt. Naquele dia algumas vozes cantavam, os instrumentos sofriam, e quando meus olhos te encontraram, você segurava as mãos dela. Eu não sabia quem era ela... Fiquei parada um bom tempo, observando. O garçom passou e fez cafuné na minha cabeça, um dos dançarinos me deu uma rosa, e a música tocou para mim a melodia mais dilaceradora que podia haver, e quando seus olhos e encontraram os meus foi doloroso. Foi o céu tocando a terra pela última vez, o último raio caindo, a última tempestade. Ficamos nos olhando. Nos encarando enquanto o tempo corria sem misericórdia. Eu acenei e parti. Você ficou surpreso. Esperava mais. Uma cena. Um adeus. Eu não ia fazer nada... Não fiz.


Eu apenas vi o Adeus.

VII E por que te envio isso? Porque vou te apagar da minha memória. Existem pessoas por aí que fazem isso. Eu suspeito que elas não sejam desse mundo. Também não sei como funciona. Se é hipnose, ou se através de um programa de computador, nanotecnologia, mas eles me garantiram que eu não lembraria de nada mais. Que eu seria um caderno novo. Que eu não teria mais histórias dolorosas, nem saudades do que um dia existiu, porque todas essas coisas deixariam de existir. E quem não quer isso? Quem por deus não quer em algum momento apagar as coisas, certas coisas da memória? Não sei. Eles vão apagar tudo. Depois vão manter apenas o que se referente à minha profissão e a minha infância. Eu selecionei para lembrar apenas o que foi bom, razoavelmente bom. Bom. Você não foi razoavelmente bom. E eu te apagarei. Oi. É isso. Fique com as lembranças que você me deu. Eu não preciso mais...

Bem. Agora você se lembra de mim?!


Epílogo. Após receber a caixa, com o disco dos Beatles, o contrato de casamento, o então médico, o protagonista daquelas lembranças tão dolorosas que aquela jovem teve um dia, procurou a irmã dela que não sabia do procedimento que seria feito. Apagar a memória? Tolice! Não existia isso. Mas com uma ponta de remorso o outro a convenceu. Ambos a procuraram como loucos pela cidade. Pessoas sem lembranças, sem memórias não podem viver bem na sociedade. Todo mundo tem uma história, alguém sem história é alguém sem passado. Já era bem tarde da noite, quando exaustos da busca cada um voltou para casa. Ele a encontrou na avenida que dava para a rua de paralelepípedos de nome Rio de janeiro, nome de um estado para uma rua, naquela esquina onde havia um grande supermercado... e onde a chuva repentina havia encharcado a rua. Ele a chamou. Ela parou olhou para trás. Ele tentou...


Ela perguntou: “Quem é você”? Ele era um fantasma, apenas um fantasma de uma história que não existia mais.


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