N° 11
ANO VI
Revista do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza Semestre 2008.2 - Abril de 2009
Universidade de Fortaleza - UNIFOR Comunicação Social
Jornalismo Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz CEP 60.811-905 - Fortaleza-CE, Brasil Fone 55 (0**85) 3477.3105 equipelabjor@yahoo.com.br
Gênero
lugares
Terceiro Sexo
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Travestis contam suas trajetórias
Donos da praia
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Assumir a diferença
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Duas mulheres, seus filhos e a felicidade
PAPÉIS
Dança do coco
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A arte biográfica de contar histórias
Covers
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Sem identidade
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A procura por um nome no papel
CORPO
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Quando a obesidade se torna um problema
Ao leitor
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O orgulho da cor e da cultura negra
A demonstração da personalidade na pele
Identidades e diferenças
Ensaio
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Tatuagem
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Paixão dentro e fora do campo
CONSTANTE
Etnia
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Fãs imitam os ídolos para viver
Torcedores
Mudança de forma
53
Pescadores do Iguape preservam dança
SINGULAR Vidas narradas
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Nativos e estrangeiros dividem espaço na Taíba
Registros das ambiguidades
Crônica
71
Um olhar estrangeiro sobre a realidade
ao leitor
Identidades e diferenças Lembro-me de quando um dos alunos sugeriu o tema desta edição da revista, inspirado em algumas leituras que fazia à época: “identidade”. Imediatamente, a turma toda pareceu se iluminar como em um fabuloso insight coletivo. O tema era ótimo e as pautas foram aparecendo, cada uma contemplando um aspecto da complexa construção das identidades e das diferenças no mundo contemporâneo. As reportagens aqui presentes refletem as mudanças em curso nas formas como os indivíduos constroem hoje suas noções de “eu” e de “outro”: gênero, “raça”, lugares, corpo, papéis sociais. Conhecer e respeitar a diversidade cultural e social é um dos princípios do jornalismo responsável e na faculdade também se deve aprender isso. Com esta edição particularmente bem sucedida, graças ao empenho das turmas de Jornalismo Impresso II do semestre 2008.2 e da equipe do Labjor, despeço-me da Ponte, revista que tive o prazer de coordenar por cinco anos. Porém o faço consciente de que ela ficará em boas mãos: com os jovens estudantes de Jornalismo da Unifor _ repórteres, fotógrafos, editores e designers _ que se mostraram nesta edição, mais do que nunca e não por acaso, os verdadeiros construtores da Ponte. Sigamos em frente, como disse o compositor Lenine em inspirada música, conscientes de que somos “efêmeros, fugazes e passageiros”, como nossas identidades e diferenças. Geísa Mattos Coordenação editorial
EXPEDIENTE Revista do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza Centro de Ciências Humanas - Universidade de Fortaleza - Fundação Edson Queiroz Diretora do Centro de Ciências Humanas: Erotilde Honório Coordenador do Curso de Jornalismo: Eduardo Freire Conselho editorial: Alejandro Sepúlveda, Eduardo Freire e Erotilde Honório Coordenação editorial: Geísa Mattos Coordenação de produção: Geísa Mattos Gerente do Laboratório de Jornalismo: Ricardo Sabóia Supervisão de produção gráfica: Aldeci Tomaz e Carlos Normando Supervisão de fotografia: Júlio Alcântara Revisão: Carlos Normando Suporte técnico: Aldeci Tomaz Supervisor da gráfica: Francisco Roberto Impressão: Gráfica da UNIFOR ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL / UNIFOR: Coordenação de equipe: Diego Benevides Editores assistentes: Renata Maia, Natália Évila, Júlio César e Monique Linhares Capa: Foto de Haroldo Saboia 2ª e 3ª Capa: Agência de Publicidade - NIC Projeto gráfico: Eduardo Martins Diagramação e tratamento de imagens: Felipe Goes Fotografias: Eduardo Mont’alverne, Haroldo Saboia, Jefferson Chaves, Joicy Muniz, João Luis, Lucas Benedecti, Natália Guerra, Natália Kataoka, Nathália Bernardo, Raphael Villar, Suzana Campos e Waleska Santiago. Redação: Alunos da disciplina Princípios e Técnicas de Jornalismo Impresso II de 2008.2 (Allana Alves, Aldeson Matos, Aline Farias, Altair Cruz, Amanda Nogueira, Átila Lopes,Gabriela Carvalho, Igor Medeiros, Ivy Ariane, Larissa Macedo, Luana Resende, Lucas Benedecti, Lucas Leitão, Mariana Fontenele, Mariana Penaforte, Michel Renan, Nathália Bernardo, Pedro Victor, Rafael Almeida, Thays Oliveira Lavor, Thiago Jorge, Valentino Kmentt e Wânnyfer Monteiro).
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Gênero
Identidade de gênero: um terceiro sexo? ·
texto
· nathália bernardo · fotos · raphael villar · nathália bernardo ·
São dois os gêneros: masculino e feminino. E eles estão em tudo. Nas roupas, cores, plaquinhas de banheiros, mídia, leis e até na gramática. Para alguns, nada mais natural. Os homens vão ao banheiro masculino e as mulheres ao feminino. E quem não se encaixa facilmente nessas definições? E quem está contrário ao que lhe é socialmente determinado? Um terceiro banheiro, uma terceira cor, uma outra gramática? Por meio de personagens, entenda o desafio de responder a essas perguntas
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Lena diante do espelho; atrás, o assistente de palco Ivan
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Lena Oxa - A entrevistada O ponto de encontro havia mudado. O restaurante onde marcamos era badalado demais. “Mulher, aí tá muito cheio e eu tô toda desarrumada, não quero que me vejam assim. Vamos pra pizzaria aqui em frente”, ela pediu com simpatia por telefone e nós fomos. A entrevistada chegou de moto, uma de suas paixões. Desarrumada nada! Básica, eu diria. Cabelos na altura dos ombros, presos em um rabo de cavalo, maquiagem e brincos discretos, camiseta branca e calça jeans justa e sandália baixa. No braço esquerdo, o terço de madeira que o pai lhe deu antes de morrer e uma pulseira com medalhas de Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora das Graças. “Estão sempre comigo”, revela. Ela deveria ter sido homem, foi assim que nasceu. Ganhou o nome de Afrânio Medeiros Fialho, que ainda está na carteira de identidade. Entretanto, o garotinho, filho de um mecânico do Exército e de uma costureira, nascido em Fortaleza em 1968, só existe no RG. Virou Lena Oxa, depois de ser Suzana de Medeiros, Tina Azevedo e Marta Elena. A Lena Oxa nasceu em 1990, em Milão, na Itália. O nome foi inspirado em Anna Oxxa, compositora de Donna Con Te. “Na Europa, quando eu ia me arrumar pra fazer programa, eu ouvia essa música e chorava. Ela me marcou muito, aí ficou Lena Oxa”, explicou.
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Desde então, é Lena em todas as horas. É assim que todos a chamam. “Até minha mãe me chama de Lena”, disse. Poderia até ser uma mulher: são oito litros de silicone industrial pelo corpo – quadril, queixo, testa, seios e glúteos – e anos de hormônios femininos que dão formas arredondadas ao corpo e feições mais delicadas ao rosto. Usa roupa, banheiro e provadores femininos, maquiagem e gosta de homens. Entretanto, Lena não é mulher, não se sente assim. “Sei que não sou uma mulher, tenho os pés no chão”, deixou claro. Existem, ainda, as questões burocráticas, nas quais prevalece o que está na carteira de identidade como em filas de embarque de aeroportos e consultórios médicos. “Se me chamam de Afrânio por causa da carteira de identidade, atendo da mesma maneira. Não me incomodo”, contou. Na Europa, Lena chegou a juntar dinheiro para fazer uma cirurgia para mudar de sexo, mas desisitiu. “Não era isso que eu queria. Só queria me operar para ter respeito. Mas vi que não precisava”, comentou. Lena é um travesti e o preconceito é outro motivo que a impede de ser uma mulher. O do pai, falecido há quatro anos, se manifestou desde o início. “Eu falava com ele, pedia a benção e ele dava, mas era rancoroso. Ele dizia que eu tinha era que trabalhar com uma enxada e eu dizia ‘pai, um dia o senhor vai me ver sentada
em uma cadeira segurando uma caneta, meu trabalho vai ser esse’”. Mas ela se mostra compreensiva: “Eu entendo. Era dificil pra ele ter um filho que vira um travesti de uma hora pra outra e ter que aceitar isso”. Da sociedade, o tratamento não foi muito melhor. “A sociedade é muito preconceituosa, mas camufla. Hoje, sofro pouco com isso, porque, quando as pessoas veêm que é a Lena Oxa da TV, tratam melhor”. Por ser travesti, Lena foi presa duas vezes por “vadiagem” na década de 1980 em Fortaleza. Na Europa, algumas vezes, também foi presa e espancada. Católica, Lena sente o preconceito de alguns seguidores da religião. “Vou sempre à igreja, mas procuro ir sem chamar atenção”. Solteira, Lena diz que já teve muitos amores. Sua grande paixão, entretanto, é sua carreira – “TV, palcos, luzes, aplausos”. Além disso, a profissão está ligada àquilo que ela tanto preza, respeito. “Eu só trabalho por respeito, pras pessoas me reconhecerem como artista. Não é nem pra ter uma vida boa”. O respeito que Lena conseguiu para si também conseguiu para outros discriminados pela orientação sexual. Recados como “você é o símbolo da luta gay” são frequentes em seu site. Mas Lena ainda tem metas e uma delas é ter um programa de TV próprio. O sonho ainda não realizado é ir ao Jô Soares. “Formar uma família? Não dá mais, não, mulher. Já tenho 40 anos e dedicação demais à minha carreira”. O grande lamento é não ter o pai vivo para ver seu sucesso como artista e o respeito que tem na vida que escolheu. Lena diz não ter arrependimentos, mas sua voz murcha quando falamos sobre sua escolha. “Não é que me arrependa, mas eu não precisava ter virado um travesti. A vida é mais fácil pra um transformista. Um travesti tem que dar uma volta cinco vezes maior para chegar em algum lugar. Quando paro pra pensar, vejo que eu poderia ter sido transfomista a vida toda”. A escolha não tem mais volta. Entretanto, quando morrer, Lena quer ser enterrada como nasceu. “Eu sempre digo isso aos meus amigos. Não quero ser enterrada pintada. Quero que tirem meu peito, o esmalte das minhas unhas, meu cabelo. Quero ser enterrada como vim ao mundo”.
Há quatro anos, Lena descobriu que um pedaço do silicone industrial que pôs no seio quebrou. Esse pedaço deveria ser retirado, mas a cirurgia seria muito perigosa. “O médico falou que eu tenho que tirar, mas não dá, porque em torno desse silicone tem vasos sanguíneos, veias... e quando for cortar, pode vasar. Ou seja, não tem jeito. Há quatro anos vivo com isso”, conta. Entrevistamos uma Lena tímida, que fala baixinho e se veste discretamente. Esta Lena se refere à Lena dos palcos em terceira pessoa. “A Lena Oxa é quando me monto. Ela é uma travesti fina, mas maluca, que faz palhaçada pro povo ri. Aqui, sou muito tímida”, ela explica. São mesmo diferentes, em comum, a simpatia e os fãs. Mesmo estando diferente da Lena da TV e em uma pizzaria com poucos clientes, ela foi reconhecida. Aí, não dá para separar as duas Lenas. Pausa na entrevista para autógrafos. “O Tiago e o Paulo César disseram pra eu te pedir autógrafo pra eles e eles querem que tu mande um beijo pra eles no programa”, disse uma garçonete.
A transformação “Vou mandar beijos pros garçons lá da pizzaria. Tem também os presos lá do IPPS, pavilhão sete, sela 46...”, lembrou a apresentadora. Era Lena lendo a lista de beijos que tinha que mandar no programa. Eram 7h45 da manhã e ela já estava pronta para gravar. A produção começa antes das sete horas. Chegou com os cabelos presos por uma piranha, calça e camiseta pretas e unhas vermelhas. Prendeu o cabelo com um toca, passou base e pó no rosto. Depois os olhos, a parte mais demorada. Enquanto isso, fotografamos. “Hoje, vou de rainha. Já contei a história da rainha de Nárnia?”, os interlocutores somos eu, o fotógrafo Raphael Villar e Ivan de Olveira, assistente de palco. Sombra e gliter pratas, delineador líquido preto na parte superior dos olhos e lápis preto para a sobrancelha. Primeiro o direito, depois o esquerdo, sempre. Aí, vem os cílios postiços. “Me fotografa com o leque”, pediu com extravagância. Leque vermelho e poses voluntárias. Depois dos clics, “vou pelo
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Lena Oxa e Ivan de Oliveira estão prontos para mais um programa de TV
menos pôr um batonzinho pra realçar”. O batom, rosa. Era hora de pôr a roupa. A deixamos no camarim com Ivan. Dois minutos e ela nos chamou. O vestido preto com dourado, decotado nos seios e nas costas, ainda estava aberto e ele ajudava a fechar. Depois, o sapato prata bico fino, com uns 12 centímetros de salto. Véus preto e dourado cobriam a cabeça e faziam moldura para o rosto. Uma coroa dourada com pedras verdes, vermelhas e azuis davam o toque final ao visual. No braço, enormes pulseiras douradas acompanhavam o terço e as medalhas das santas.
De Afrânio à Lena Afrânio quis ser mulher. O jeito afeminado e a atração sexual por homens já existia. “Sempre gostei de homem. Sempre fui feminina, mesmo quando criança”. Sua primeira experiência sexual foi aos 12 anos, quando foi estuprado por um desconhecido. O trauma durou até aparecer um garoto do bairro por quem se apaixonou. Sua outra atração, os palcos, foi fundamental em sua escolha. “Eu conheci as boates, achava tudo lá muito bonito e adorava as roupas das transformistas”. Afrânio quis fazer igual. As primeiras vezes foram no pátio do Liceu do Ceará, onde estudava. Lá, imitava o que via nas boates. Aos 14 anos, começou a tomar hormônios femininos e a deixar o cabelo crescer, o que despertou a raiva do pai. “Quando eu tinha 15 anos, meu pai me deu uma passagem de ida sem volta pra Salvador e eu fui”, relembra. Na capital baiana ela começou a fazer shows profissionalmente. Com o dinheiro que ganhava mal conseguia comer. O trabalho começava às 23h30 e ia até 4h. “Quando eu saía da boate, ia comprar pão e leite. Depois, chegava em casa e ia dormir. Dormia o dia todo, quando acordava eu comia o pão com leite e ia trabalhar de novo. Foram três meses assim”, lembra Lena. Mal alimentada, pegou uma furuculose - doença de pele causada por bactérias, que tem maior incidência em pessoas desnutridas. Com receio de perder uma perna, voltou à Fortaleza para se tratar. Curada, Lena teria de voltar para Salvador porque os pais só a queriam por perto se ela
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trabalhasse em algo que eles considerassem “sério”. Assim, Lena começou a trabalhar nas lojas Esplanada. Foram dois meses em Fortaleza. Depois, voltou para Salvador, trabalhando em outra loja da rede. Tinha jornada dupla, pois continuava nos palcos. Nessa época, colocou silicone industrial no corpo, por falta de dinheiro para pôr próteses adequadas. Passaram-se quatro anos. Depois, Europa – Itália – Milão. E as atividades foram muitas: estilismo, costura, cabelos, maquiagem, palcos e prostituição. “Me prostitui, mas não era isso que eu queria pra mim. Não queria essa de ficar esperando uma pessoa chegar e ficar com medo de morrer. Eu queria era fazer show”. Na Europa, seis anos. Tempo que serviu para que juntasse dinheiro para a compra de um apartamento em Salvador. “Sofri muito na Europa. Eu tenho vontade de voltar lá um dia de cabeça erguida, trabalhando”. De volta ao Ceará, Lena demorou até conseguir espaço no meio artístico. As portas se abriram para ela quando Paulo Diógenes – humorista que interpreta a personagem Raiumundinha – a ajudou a entrar no mercado. Foram aparecendo boates para Lena mostrar seu talento. Em sete anos, ela contabiliza 2.048 shows. O apresentador Eduardo Praciano a levou para a TV. Ela começou fazendo o programa Talentos da Terra e há quatro anos tem um quadro no programa Manias de Você, na
TV Diário. Desde 2001, participa ativamente da parada gay de Fortaleza e já conquistou o posto de madrinha do evento.
Yohanna Braccio Se para os travestis o gênero não é pré-determinado, para outros, ele sequer é definitivo. Alguns são capazes de mudar de gênero toda semana ou alterná-lo em segundos, quando se referem a si próprios como homem e menos de um minuto depois, como mulher. Thiago é assim. O cabeleleiro Thiago Café é bonito, tem 24 anos, por volta de 1,80m de altura, corpo esguio, cabelos pretos, olhos castanhos claro e pele morena. A boca carnuda e bem delineada se destaca no rosto. As sobrancelhas também chamam atenção, são desenhadas a lápis, vestígios de Yohanna Braccio. Yohanna é a drag queen em que Thiago se transforma. Yohanna tem beleza própria. De Thiago, só o corpo esguio, que fica bem marcado pelo macacão marrom e pelo corselet preto, que de tão apertados quase a impedem de calçar as botas. Um sutiã com esponjas lhe dão seios médios. A altura deve ser 1,95cm, pois os 15cm do salto agulha da bota preta se somam à altura de Thiago. Nos olhos, lentes brancas com um líquido verde que dá um efeito fluorescente. A peruca preta chega à cintura. Alguns truques lhe deixam com o nariz menor,
Thiago Café se transforma em Yohanna Braccio dos pés à cabeça
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a boca maior e os olhos mais puxados que os de Thiago. A tranformação leva aproximadamente 1h30, mas Thiago gosta do trabalho de “se montar”. Ele também gosta dos palcos em que sobe Yohanna, foi por isso que começou. “Eu via meus amigos fazendo show e tinha muita vontade, mas era menor de idade e não podia. Isso ficou na minha cabeça direto, mas eu também morria de medo por causa dos meus pais”, revela. Há oito anos, Thiago vestiuse de mulher pela primeira vez para ir a uma boate. No fim de semana seguinte, procurou alguém que lhe ajudasse a subir nos palcos. Sua madrinha foi Lena Oxa. O que era paixão, chegou a ser profissão. “Os cachês foram aumentando. Boates grandes me chamaram e eu viajei pra fazer show em vários lugares. Teve um tempo que fiz isso por dinheiro também”. Hoje, isso mudou. Ele começou a trabalhar em um salão de beleza, a quantidade de shows caiu e Yohanna é vista fora dos palcos com mais frequência. “Se você quiser crescer como drag queen, não serve pra nada. Não tem futuro. Agora, quando eu faço show é só por gostar mesmo. E, às vezes, me monto só pra sair”. O valor de seus cachês varia entre R$100 e R$300. “Não cobro mais cachê alto, porque vou por prazer”. A maior barreira à carreira artística de Thiago foi o pai. “Meu pai é daqueles que odeia bicha, eu morria de medo”. Ele começou a se montar escondido da família, mas o segredo não durou muito. Um tio o viu em uma boate gay vestido de mulher e ligou para sua mãe contando. A mãe achou que o filho estava se prostituindo. “Mas eu fui criando um nome, ganhando concursos, aprendendo sobre maquiagem e roupas, ela viu uns vídeos meus e foi tendo outra imagem”. Com a compreensão da mãe, ele ganhou uma aliada. “Meu pai dava escândalo no começo. Ele e minha mãe até brigaram muito porque ela dizia que ele não tinha que se meter na minha vida. Ela dizia pra ele não falar nada sobre o que eu fizesse porque quem cuidava de mim era ela, não ele”. Funcionou. Hoje o pai aceita e admira o filho. “Ele até pega foto de quanto tô montada pra mostrar pros amigos dele”. Escandalizados também ficavam os vizinhos de Thiago quando viam Yohanna. “Eu não podia
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sair pra rua porque ficava um monte de gente esperando pra ver. Aí, eu saía e dava tchau pra todo mundo. Hoje, eu me monto, saio e ninguém tá mais nem aí”. Ele diz ter aprendido que o melhor é não se esconder, assim todos se acostumam e passam a achar natural. Desde pequeno, Thiago encara os problemas causados por sua identidade sexual e de gênero. “Sou gay desde criança. Hoje, eu lembro de coisas que eu fazia com seis, sete anos e eu sei que já era. Eu já tinha todo o jeito, mas eu não me tocava que eu era”. Aos oito anos, Thiago foi violentado por um homem que trabalhava em sua casa. “Minha primeira relação não foi porque eu quis. Foi uma coisa forçada. Eu odiei muito”. Aos 13, ele contou à mãe, por meio de uma carta, o que havia acontecido anos antes. A intolerância às orientações de Thiago vêm principalmente daqueles que nada têm a ver com elas. O comportamento hostil da sociedade se manifesta em olhares e cochichos, mas, às vezes, ultrapassa essa barreira. “Uma vez, eu tava de drag num restaurante e não me deixaram entrar no banheiro feminino. Aí quando entrei no masculino, foi tanto bofe atrás de mim pra falar, frescar”. Mas os problemas não vêm só dos heterossexuais, pois é comum a rixa entre drag queens. “Quando eu comecei, tinha bichas que tacavam o leque na minha cabeça, colocavam o pé pra eu tropeçar, até já queimaram minha peruca com isqueiro”. Histórias como essa Thiago tem de monte, mas ele conta entre sorrisos e gargalhadas. Parece não se importar. Às vezes, encabula-se e fala baixinho, mas tem o cuidado de repetir em voz alta para certificar-se de que foi tudo gravado. Assim, como ele diz, sem frescuras. “Eu sou bem resolvido”!
Kelly Silva João* tinha nove anos quando seus pais decidiram que ele se tornaria uma menina. Tudo começou com um castigo. Os pais o obrigavam a encerar o chão, junto com sua irmã. Ele não gostava, achava que aquilo não era coisa de menino. Mas no ano de 1966, em São Paulo (SP), “a gente não tinha que querer, a gente tinha que fazer”, diz em entrevista por Internet. Ainda assim, ele tentou argumentar. Foi dizer à mãe que não queria fazer serviço de mulher.
A solução encontrada por ela foi vesti-lo de menina, para que encerasse o chão. “Imagina eu de vestido e calcinha de renda, de quatro, limpando o chão, virado para a rua... A rua inteira viu”. No dia seguinte, no colégio, onde cursava a 3ª série do primário, quando voltava do recreio, o colega Roberto passou a mão em sua bunda. Para se defender, João partiu para a briga. Ganhou três dias de suspensão. Três dias em casa, vestido de menina por determinação dos pais. No dia em que retornou às aulas, quis vingar-se deles. Vestido de menina, foi procurar Roberto. “Falei pra ele que se ele queria uma menina, fosse me encontrar no matão (uma espécie de bosque perto de casa). Só não houve penetração porque naquela idade era super difícil”, contou. Naquele dia, abrindo a pasta do filho para ver se tinha lição de casa, a mãe encontrou uma calcinha e descobriu o acontecido. De noite, ela e o pai de João decidiram que o filho seria uma menina. Assim foi feito. “Isso aconteceu no começo do ano. Nas férias de julho, eu já tava acostumado”. João foi morar com uma tia, que tinha um salão de beleza. Ele, então, aprendeu a produzir-se. Roupas bonitas e caras também lhe estavam à disposição. Ele gostava de vestir-se como as chacretes. A tia, que era mãe de dois meninos, havia perdido uma filha que se chamaria Márcia. Logo, João virou Marcinha. Quando a puberdade foi lhe dando traços masculinos, por iniciativa da família, começou a tomar hormônios femininos. “Eu gostava muito dos hormônios por causa dos seios e da pele”. Aos 17 anos, João foi para uma nova escola onde Márcia não foi aceita. Os pais, então, o levaram ao médico para que tomasse hormônios masculinos. De volta à identidade
masculina, casado, aos 24 anos, João teve sua primeira relação sexual com uma mulher. Casou-se outras duas vezes, teve dois filhos e criou o filho de sua terceira esposa como se fosse seu. Suas duas primeiras mulheres e seus filhos não conhecem seu passado como Márcia, nem seu presente como Kelly. João tem 52 anos e é assessor tributário. Há 22 anos, Kelly é um meio para João não largar de vez a identidade feminina. Ela é uma crossdressing (CD), um homem que casualmente se veste de mulher. No dia a dia, a CD porta-se de acordo com o sexo biológico. Elas não usam hormônios femininos, nem fazem cirurgias plásticas para ficaram mais femininas, o que as diferenciam de travestis e transexuais. “A CD é um homem normal que quando é possível se monta de mulher. Nela, tudo é falso: seios, bunda, cabelo. A CD não se hormoniza, tem pelos etc... A gente dá um jeito em tudo”, explica Kelly Silva, que é presidente do Brazilian Crossdressing Club (BCC) desde 2001. A CD se veste de mulher por prazer. Isso não interfere em sua orientação sexual. Segundo Kelly, a maioria das CDs não sente atração sexual por homens. Muitas são casadas. Algumas esposas sabem do fetiche dos companheiros e há aquelas que colaboram, as S/Os (Supportive Other ). Qualquer mulher que apóie e dê suporte à prática CD é uma S/O. Ainda assim, a prática crossdresser é algo que acontece entre quatro paredes. Poucas se expõem como mulheres. Kelly não tem o perfil clássico de uma CD. Além de familiares e amigos conhecerem sua dupla identidade, ela se relaciona com homens e mulheres. “Sou hétero por um único detalhe: quando estou de João, somente mulher. Quando de kelly, somente homem”, brinca.
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Assumir faz a
diferença · ·
· larissa macedo · luana rezende · fotos · wasleska santiago · texto final · diego benevides · texto
Em pleno século XXI, casais homossexuais ainda enfrentam inúmeros obstáculos para assumir suas reais identidades. Mas ir à luta é essencial, afinal os preconceitos são muitos e ainda se fazem presentes em nossa sociedade. A recompensa não vem a curto prazo, no entanto, cruzar os braços não parece ser a melhor solução
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Nirvana Dias casou com 21 anos de idade. Com quase quatro anos de casada, era mãe de dois filhos: Yuri e Iorram, e estava grávida de Yago. Quem via de fora, enxergava uma família ideal: um homem, uma mulher e seus filhos. Mas não era assim tudo tão perfeito como parecia. Nirvana não se sentia realizada e via que faltava algo para que ela fosse realmente feliz. Foi o teatro que trouxe para a vida de Nirvana o que faltava para sua felicidade. Nos palcos, ela conheceu Helô Sales. As duas, em apenas um ano, firmaram uma amizade verdadeira. As afinidades eram muitas. “Por diversas vezes saímos juntos, eu, meu marido, Helô e nossos amigos em comum”, diz Nirvana. O tempo possibilitou uma surpresa. Aos poucos, entre a ficção e a realidade, ambas perceberam que o amor era o real sentimento que havia entre elas. Gestos e palavras nutriam a relação das duas, que tentavam encenar uma amizade, mas na realidade, era uma verdadeira paixão. Depois de pouco tempo, Nirvana tomou uma decisão. Foi a mais difícil de toda sua vida. “Eu não conseguia entender o porquê daquela situação. A razão e a emoção disputavam lugar no meu coração. De um lado, um marido e três filhos; de outro minha paixão por Helô”, lembra Nirvana.
Nirvana, nesse período, ficou muito confusa, afinal não conseguia entender exatamente o que passava pela sua cabeça. “Eu sentia receio de deixar o lar e o marido para ir morar com outra mulher”, diz ela. Tudo era muito novo e era de se esperar que surgissem dúvidas e receios quanto ao passo que estaria dando. Sua própria família reprovava a atitude. Vários questionamentos eram feitos, diversas pessoas a condenavam. O ex-marido de Nirvana não aceitava a separação e demonstrou ser bastante preconceituoso ao afirmar que Helô só queria se aproveitar, e que logo a deixaria por outra, pois era assim que funcionava com os casais homossexuais. O psicólogo e professor acadêmico Georges Brito relata que essa ideia do relacionamento homossexual vem mudando, mas que não é uma mudança que acontece verticalmente. “Frequentemente você tem momentos de avanço e recuo, de retomada, de perspectivas conservadoras, momentos em que essas situações alavancam, posições que facilitam a vida das pessoas nesse tipo de situação”, conta. Por mais que o pensamento da sociedade tenha procurado se adequar, Brito ressalta que é importante não globalizar tais mudanças, até porque cada pessoa reage de uma forma ao tema e ainda é possível encontrar desde
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Nirvana Dias e Helô Sales são casadas há 17 anos e criam seus três filhos juntas
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aqueles mais conservadores aos mais liberais. “Essas mudanças nunca podem ser generalizadas. Hoje nós vivemos um momento em que a diversidade é muito grande, não só nas experiências nesse campo do gênero, sexualidade e afetividade, mas em termos de posição em relação a isso”, afirma o psicólogo. O desejo falou mais alto e no dia 21 de julho do ano de 1991, Nirvana, ainda grávida, juntamente com seus dois filhos, resolveu sair de casa e ir morar com Helô. Abandonou o marido e, de uma vez por todas, assumiu o novo relacionamento. Ela já previa o que estava por vir: preconceitos, discriminações e constrangimentos seriam, a partir desse dia, obstáculos frequentes em sua vida. Mas o amor prevaleceu e, em busca da felicidade, elas lutaram e enfrentaram tudo e todos. O casal vive junto há 17 anos e mantém uma relação estável. Nirvana não culpa Helô pela separação. “Antes de nos interessarmos uma pela outra, meu casamento já não estava bem”, diz Nirvana. Na época, Helô não se surpreendeu tanto com o desenrolar dos acontecimentos. Afinal, desde seus 15 anos, percebera sua verdadeira orientação sexual. Por diversas vezes até tentou recuar e esconder. Relacionou-se com alguns garotos, mas em nenhum momento se sentia realmente atraída pelo sexo oposto. Vinda de uma família tradicional, Helô não tinha coragem para expor o assunto com seus parentes e, somente aos 21 anos, já independente financeiramente, conseguiu dar um basta na situação e assumir perante os familiares que era homossexual. “Foi uma fase muito delicada da minha vida. Por alguns meses fiquei distante da família, pois ninguém compreendia o porquê da situação. Nesse período, vivi uma crise de identidade, pois não me aceitava e nem conseguia me ver como um ser humano normal, justamente pelo fato de na minha família haver preconceito e discriminação”, diz Helô. Já pensando nisto, Helô e Nirvana criaram os três meninos, educando e orientando cada um de maneira não-homofóbica, mostrando sempre a realidade e deixando claro que os cinco constituíam uma família normal, como qualquer outra, e acima de tudo feliz. Atitudes como esta podem evitar possíveis crises de
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identidade. “E foi assim que eles cresceram, sempre sabendo lidar muito bem com a questão da sexualidade”, diz Nirvana. “A atual sociedade ainda é muito preconceituosa e machista. Muitos jovens estão mais abertos à diversidade, mas ainda há mitos que precisam ser eliminados”, diz Nirvana. Devido aos paradigmas ainda dominantes sobre a questão da sexualidade, é constante a descrença, por parte da sociedade, de que é possível um casal do mesmo sexo constituir uma família, um lar perfeito.
“Final” feliz... Helô e Nirvana se consideram felizes. Os filhos Iorram, Yuri e Yago acreditam que os cinco representam uma família, que pode até não ser a que a sociedade está acostumada a ver, mas que significa muito para cada um deles e é um referencial em suas vidas. Dos três filhos de Nirvana, Yuri, o filho do meio, que tem hoje 18 anos, é o único homossexual. “Desde criança, eu percebia uma maior atração por meninos. Até me relacionei com algumas meninas, mas depois percebi que esse não era realmente o meu desejo”, conta o adolescente. Yuri acredita que o fato de ter sido criado por um casal homossexual não influenciou na sua orientação, até porque seus dois irmãos são heterossexuais. Nirvana e Helô também concordam com o pensamento dele e afirmam terem criado os três da mesma forma, fato que elimina a hipótese de uma possível influência. Brito conta que, na Psicologia, existem muitas correntes que estudam e questionam a homossexualidade, porém ainda não têm como se posicionar em relação a se os pais homossexuais influenciariam ou não na escolha sexual do filho. “A psicanálise tem trabalhado a fundo essas questões, mas requer um certo cuidado porque não dá para generalizar. Existem casos em que isso aconteceu de uma forma mais ou menos tranquila, mas eu acho que as pessoas são mais fortes que muitas vezes a gente pensa. O complicado é viver no conflito, em uma situação de mentira. Os filhos precisam do sentimento de que são protegidos e amados. Mesmo em um casal heterossexual que se separa e constitui outras famílias, frequente-
mente surge esse sentimento de abandono, ou traição, ou as crianças se sentem responsáveis pela separação dos pais. Em situações como essa, que envolvem um novo relacionamento, no caso homossexual, eu acho que também é algo que requer tempo para ser digerido e é uma coisa que vem acontecendo com uma certa tranquilidade”, afirma o psicógolo. Yuri tem um namorado há um ano e oito meses. Ambos possuem a mesma idade e também grandes afinidades. “Eu e o Elton somos muito felizes, e pretendemos futuramente oficializar essa união e, provavelmente, adotar uma criança”, diz Yuri. O casal admira a relação de Helô e Nirvana e tem o amor das duas como referência. “Diversas vezes saímos os quatro e é sempre muito divertido”, comenta Elton.
O antes e o depois... Até algum tempo atrás, para encontrar amigos e namorar sem ser incomodados, casais homossexuais se isolavam em guetos. Confinavam-se normalmente em um trecho de praia ou em pequenos bares, saunas e certos cinemas não muito frequentados. A discriminação sexual, ainda persiste, mas há sinais de que a luta contra o preconceito atravessa uma fase de transformação significativa. Atualmente, ao invés de manter o confinamento como técnica de defesa, eles começam a emergir na sociedade, principalmente por meio de movimentos como as Paradas Gays. É fácil perceber que algo de diferente está acontecendo no universo homossexual e isso não se materializa apenas nas paradas. No shopping center, na academia de ginástica, no bar, no restaurante, na fila do cinema, na galeria de arte, na livraria, na danceteria, eles parecem estar em toda parte. Não se trata de uma falsa impressão. Embora alguns achem tratar-se apenas de “sem-vergonhice” e exibicionismo, na verdade busca-se apenas não mais viver à sombra. Pelo que se observa, os tons do arco-íris delineiam novidades na sociedade brasileira: os homossexuais já comemoram algumas vitórias importantes e se mostram mais livres das amarras do preconceito. Nos últimos anos, alguns casais já conseguiram adotar crianças, deixar pensão para os companheiros e desfilar pelas ruas, sem esconder sua orientação. Em graus
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Nirvana, Helô, Yuri e Elton: o amor e a felicidade que os unem
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variados, a maioria dos países adotou leis de proteção às diferenças. A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais estima que no Brasil, até o ano de 2007, existiam mais de 18 milhões de brasileiros homossexuais assumidos. Já estava mais do que na hora da diversidade ganhar espaço na sociedade. Quem sabe assim muitos mitos e paradigmas sejam banidos de uma vez por todas da contemporaneidade. Helô e Nirvana, como também Yuri e Elton, acreditam que a diversidade não é apenas marca registrada dos homossexuais. Acreditam que é um símbolo da sociedade contemporânea. O mundo tem sofrido grandes transformações em diferentes aspectos. Como exemplo, é possível citar as famílias, sejam estas heterossexuais ou homossexuais, que há muito tempo deixaram de ter um modelo padronizado e estão ficando cada vez mais diversificadas.
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O processo de mudança é geral. Muitos homens, atualmente, estão se preocupando mais com a beleza, fato que confunde muitas vezes a sociedade, a qual rotula essa atitude como identidade homossexual. Para Brito, “boa parte da vida em sociedade requer tolerância, tanto uma tolerância com aquilo que eu não aprovo, mas que eu posso aceitar, de uma parte e de outra também”. Por isso as modificações acabam conquistando seu espaço. A sociedade em geral tem passado por diversas modificações, mas isso é um fato novo e só será possível avaliar melhor as consequências daqui a uma ou duas gerações. No momento, é praticamente impossível determinar se essas mudanças foram boas ou ruins. A verdade é que tem realmente surgido uma maior visibilidade à diversidade, seja entre heterossexuais ou homossexuais. Ambos estão tendo vidas cada vez mais semelhantes.
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O jornalista Lira Neto é responsável por biografias, como a da cantora brasileira Maysa
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“A biografia é, por natureza, um gênero transgressor” – assim fala o jornalista e biógrafo Lira Neto sobre essa modalidade literária. Escritor de várias biografias, Lira fala da arte de narrar e das dificuldades em escrever uma biografia - área que desperta cada vez mais leitores e biógrafos. No Brasil, muitos personagens históricos foram biografados. Alguns são ídolos, outros polêmicos, contudo, como chegar à essência de tais personagens? Como resgatar suas estórias sem perder o compromisso com a realidade? Muitos são os questionamentos que permeiam a biografia que, como Lira Neto costuma dizer, é um flerte explícito entre o jornalismo e a literatura. A biografia, gênero literário cada vez mais popular no Brasil, propõe uma construção textual da vida até o momento em que se inicia a obra. Em outros casos – quando o biografado já morreu – procura-se fazer um registro de sua vida a partir de documentos escritos e depoimentos de pessoas conhecidas. Antigamente, esta missão era atribuída aos historiadores que valiam-se do rigor acadêmico e construíam
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narrativas frias. Foi na década de 1990 que o mercado editorial descobriu o potencial deste gênero, que ganhou impulso no Brasil e passou a ser escrito por jornalistas. Neste sentido, as biografias ganham uma pitada de humanidade e as idiossincrasias do autor passam a fazer parte da obra de maneira a envolver o leitor, trazendo-o para dentro da narrativa. Ao ser questionado a respeito da participação do autor na obra, Lira Neto nos diz que cada biografia é fruto do olhar de quem a escreve.“Se a gente negar essa subjetividade inerente à biografia, a gente vai negar que possam existir várias verdades. Quando um fato ocorre e ele é contado, muito daquele fato se perdeu. A narrativa tem sempre muito do narrador”, declara Lira. As construções biográficas começam desde a escolha das palavras e temas a fazerem parte da história narrada até a fonte que se consulta para escrever uma biografia. Não se trata de uma tarefa simples. Afinal, são indivíduos circunscritos social, cultural e economicamente em tempo e espaço. Tratamos de biógrafos
que se identificam com a personagem a ser biografada e, além de tudo, do valor simbólico presente na biografia. Este é um gênero de fronteiras, que dialoga com a história, mas vale-se muito da imaginação. Daí surgem outros problemas com as biografias. Historiadores e jornalistas biógrafos possuem visões diferenciadas, sob determinados aspectos. Enquanto os primeiros reafirmam a idéia de que a biografia distorce a imagem de tal personagem histórico, os jornalistas se consideram aptos a contar uma história. “Há minúcias que só o jornalista vê”, declara o escritor Fernando Morais. São exatamente nessas minúcias, nesse olhar que é sempre carregado de subjetividade que reside o conflito entre jornalistas e historiadores, que possuem o pressuposto de que a verdade é algo imóvel e que pode sim ser desvendada e revelada. Um outro aspecto delicado, nas narrativas desse estilo, diz respeito às relações existentes entre biógrafo e biografado ou com a família deste. Uma das biografias mais polêmicas do mercado editorial brasileiro foi lançada pela Editora Planeta, “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo César Araújo. A biografia levou 16 anos de pesquisa e mais de 200 pessoas foram entrevistadas. O livro não foi autorizado pelo cantor e compositor. Roberto Carlos repudiou a obra, disse que havia inverdades nela e que sua intenção era tirá-la de circulação, o que de fato foi feito. Recentemente, outro caso curioso está sendo discutido. Trata-se da autobiografia de Roberto Midani. O problema é que a família de um dos personagens, que já está morto, quer tirar o livro das livrarias porque Midani se referiu ao personagem de uma forma não muito edificante. Os biógrafos mostram-se preocupados com esse tipo de atitude. Lira Neto nos fala, em tom de brincadeira, que se fosse o Roberto Carlos não teria se queixado da biografia, mas aproveitado a vinda do papa Bento XVI ao Brasil para entregar-lhe um exemplar para que desse início ao processo de canonização.“Quem faz uma opção por uma carreira artística, uma carreira política está dando a sua vida para a história. Então não tem como se recusar ou querer impedir que alguém escreva sobre
Adísia Sá, primeira jornalista cearense, e sua biografia feita por Luiza Helena Amorim
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eles. A biografia é um gênero transgressor”, conta Lira. Como a relação entre biógrafo e biografado nem sempre é amistosa, Lira Neto diz que a sua preferência em biografar apenas pessoas mortas está no fato de que “Os mortos incomodam menos”. O jornalista diz concordar com o escritor Ruy Castro quando este afirma que “biografado bom é biografado morto”.
Inspiração “Uma identidade construída a partir da fala”. Foi assim que pensou Luiza Helena Amorim enquanto escrevia seu livro “Adísia Sá – Uma biografia” (OMNI, 2005), que relata a história de vida da primeira jornalista a trabalhar oficialmente na imprensa cearense. A idéia surgiu por acaso, enquanto pensava em seu tema para a monografia, Luiza lembrou de Adísia, uma personagem ainda não biografada e com muitas histórias para contar. “Praticamente inexistia algum registro sobre a vida pessoal dela. E isso poderia tornar a tarefa mais difícil ou não” – afirma a biógrafa. Foi assim que Luiza decidiu encarar a tarefa com a determinação e a prática do observador participante inspirada no Novo Jornalismo norte-americano. Uma tarefa dificil para quem teve menos de seis meses para terminar seu livro. Na biografia de Adísia, a biógrafa mostra-se sempre muito presente na narrativa. Percebe-se até mesmo um certo encantamento da autora com a personagem biografada. Luiza nos diz que, por vezes, sentia-se confusa. Via-se diante de uma “grande figura humana”, uma “senhora amável” e não sabia se deveria estreitar os laços ou permanecer com a postura de mera observadora, indiferente. Por se tratar de uma
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personagem viva e fonte principal de todos os relatos, Adísia também gozou de ampla participação. É como se a personagem fosse conduzindo a autora. O resultado é uma obra criada quase em co-autoria, em um pacto entre biógrafo e biografado. Luiza conta que Adísia parecia esperar por tal momento, que algum dia iriam lhe biografar, colocar suas memórias no papel, sua identidade não só como profissional, mas como pessoa. Em sua casa, Adísia guarda em uma estante uma pilha de recortes de jornais com suas matérias, revistas em que ela aparece e documentos sobre sua carreira. Tudo bem organizado com números, em pastas. Uma pilha grande de material para ser consultado. “É um material para não só aqueles que querem estudar minha pessoa, mas a cidade de Fortaleza também.” afirma. Perto dos 80 anos, Adísia Sá, jornalista, escritora e professora, trabalha em três livros que pretende publicar em breve: “uma possível biografia de três personagens femininas de romances famosos (Capitú, Madame Bovary e Ana Karenina), um livro sobre o judaísmo (pois diz ser apaixonada pelo tema) e outro sobre ética e jornalismo, dedicado aos estudantes da profissão”. Sempre muito objetiva em suas ideias, Adísia conta suas lembranças com ênfase nos detalhes. Organiza tudo na sua memória e não sente saudades de nada. “Eu me entrego tão absolutamente ao que faço e vivo, que não fica vazio para se lamentar, relembrar, chorar... Não sinto falta daqueles tempos”. Fatos são fatos que já passaram. Adísia fala com uma tridimensionalidade indissolúvel entre passado, presente e futuro. E que tudo deve ficar onde está, sabendo distinguir os três e relacionálos. Quando questionada se sua memória
não seria próxima da de um jornalista ideal, ela responde: “Interessante, pois nunca tinha pensado nisso. Mas acho que sim. É como uma tridimensionalidade da notícia. Fatos cada um no seu tempo” - conclui. Talvez por isso guarda tanto material a seu respeito. Pensa que tudo virará documento, fonte de pesquisa. “Não darei trabalho quando morrer” – diz sorrindo, olhando para todo seu arquivo organizado. -Porque uma biografia sua? E ainda mais por uma estudante perto de concluir o curso? “Simplesmente porque foi a primeira pessoa que chegou com a proposta”. E Adísia sabia que esta viria. Diz que um pouco por orgulho – “pois todos somos um pouco orgulhosos, isto é necessário.” – e por ter consciência que fez parte da história do Jornalismo e da Cidade. E isso não há de se negar: são 50 anos de profissão, com o título de primeira jornalista cearense e fundadora do curso de Jornalismo na Universidade Federal do Ceará (UFC). São histórias que não cabem em uma biografia, mas ficarão registradas ali para sempre, quando escritas. “Quem é Adísia Sá?” – perguntara Luiza na última entrevista. “Minha filha, eu sou tudo o que você está registrando, ninguém fez meu retrato melhor do que você” – respondeu. As biografias, entretanto, são narrativas que permitem caminhos divergentes. Biografar é, de certa maneira, perseguir a vida de alguém. A vida, no entanto, não parece querer deixar-se ser apreendida. Com seus movimentos inquietos e insistentes não pára, está em constante mudança e por mais que tentemos contê-la, ela vai escapando de nosso domínio feito areia por entre os dedos. Talvez resida nesta incessante busca pelo que escapa, por aquilo que não se alcança, a força e o encanto deste gênero.
Serviço Selecionamos algumas biografias. Dentre elas, estão algumas mais famosas como “Chatô, o rei do Brasil”, de Fernando Morais. As obras são reflexo da crescente produção de biografia dos anos 1990 até hoje:
Adísia Sá: Uma biografia (Luiza Helena Amorim, OMNI, 2005) Maysa: Só numa multidão de amores (Lira Neto, Editora Globo, 2007) O Inimigo do Rei: Uma biografia de José de Alencar (Lira Neto, Editora Globo, 2006) Castello: A marcha para a ditadura (Lira Neto, Contexto, 2004) Chatô, o rei do Brasil (Fernando Morais, Companhia das Letras, 1994) O Anjo Pornográfico: A vida de Nelson Rodrigues (Ruy Castro, Companhia das Letras, 1992) Estrela Solitária: Um brasileiro chamado Garrincha (Ruy Castro, Companhia das Letras, 1999) Carmem: Uma biografia (Ruy Castro, Companhia das Letras, 2005) Mauá: Empresário do Império (Jorge Caldeira, Companhia das Letras, 1995) Olga (Fernando Morais, Editora Ômega, 1985) O Mago (Fernando Morais, Planeta, 2008)
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Em busca da
IDENTIDADE ·
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· aldeson matos · rafael almeida · fotos · jefferson chaves ·
O que é simples para muitas pessoas como retirar um documento em órgão público, para outras torna-se um grande desafio. Os brasileiros menos instruídos são os que mais sofrem com a burocracia. A revista A Ponte acompanhou D. Maria de Fátima e sua neta Eliene, de 14 anos, na difícil missão de retirar um documento de identidade para receber a herança do pai falecido
Eliene e Dona Maria chegam em casa, acompanhadas por nós, aliviadas depois de quase uma tarde inteira na Casa do Cidadão. Não se continham de alegria. Faziam muitos planos: as paredes, que haviam sido pintadas uma única vez, precisavam de uma nova cor e a cozinha necessitava de um fogão a gás, já que o fogão a lenha espalhava fumaça e escurecia ainda mais a velha casa que era o reflexo da vida humilde que viviam. A rua em que moravam, nem no mapa constava. Era a última travessa do último conjunto habitacional do Parque Jarí, em Maracanaú. Eliene dos Santos Jardim e, agora da Silva, viveu em poucos meses mais emoções que durante seus 14 anos de vida. A jovem de olhar baixo e triste buscava agora encontrar um rumo para sua vida, ser alguém. Ao nascer foi abandonada pela mãe, Luiza Alves, que a deixou aos cuidados do
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Eliene na segunda tentativa de tirar o documento de identidade
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pai, Marcos dos Santos Jardim. Ele registrou a menina somente como sua filha e colocou apenas o nome dos avós paternos. Com quatros meses de vida, no entanto, a pequena Eliene passou a morar com a avó materna, Dona Maria de Fátima, que decidiu cuidar da educação da menina. Com a morte do pai em janeiro de 2008, as famílias conversaram a respeito dos direitos que a pequena Eliene teria, mas a família do falecido disse que a menina não poderia ficar com nada, alegando que seu pai havia deixado uma mulher e dois filhos. Dona Maria, mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, aceitou a imposição e resolveu seguir a vida ao lado da neta que considera filha. Quatro meses depois da morte do pai de Eliene, chegou uma carta do órgão de previdência da Prefeitura de Fortaleza onde
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ele trabalhava e se aposentou. Eliene deveria comparecer à sede do órgão com seus documentos para que a aposentadoria do pai fosse transferida para seu nome como forma de pensão no valor de 900 reais a ser paga até completar 22 anos. A carta era a oportunidade de mudar de vida, afinal de contas, Dona Maria sempre trabalhou fazendo faxina e ganhava mensalmente, no máximo, 400 reais. Começava aí, mais um martírio em suas vidas. Era necessária a apresentação da carteira de identidade da menina para que a transferência fosse realizada. Dona Maria e Eliene, então, foram encaminhadas à Casa do Cidadão do Shopping Benfica, onde as conhecemos. Haviam chegado às cinco e meia da manhã, para conseguir uma das cem senhas distribuídas por dia. Lá, descobriram que a menina não po-
deria retirar o documento de identidade. Como era menor de 18 anos, precisava de um responsável da família acompanhando a garota e sua avó materna não poderia se responsabilizar por ela perante o Estado Brasileiro, pois não constava na certidão de nascimento da neta. Dona Maria de Fátima ficou desesperada por ter que provar que era a avó de sua neta que criara como filha. A revolta das duas foi imediata. Aquilo tudo era muita injustiça e só porque eram pobres não lhes eram assegurados seus direitos, falava Dona Maria. Fomos com as duas ao Conselho Tutelar onde contaram a história e foram orientadas a irem em busca da mãe de Eliene para que o nome dela e dos avós maternos fossem incluídos na certidão de nascimento da menina, resolvendo assim o problema. Mas ninguém fazia ideia de onde estava a mãe de Eliene. Nos arquivos, os funcionários do Conselho acharam várias Luiza Alves da Silva, nome da mãe de Eliene. Mesmo assim, Dona Maria resolveu ir atrás, pegou o endereço e o telefone de algumas e foi em busca de sua filha. Não via a hora de resolver tudo aquilo. A sorte, enfim, estava do lado daquela senhora. Na segunda ligação que fez, Dona Maria reencontrou sua filha. Explicou tudo que se passou com ela e com sua neta e marcaram um reencontro. Eliene, retraída, nos contou que sua mãe pareceu indiferente no reencontro, tinha outros filhos, outra família. Luiza Alves explicou à filha que abandonou tudo porque era muito nova, tinha apenas 16 anos e não queria ter a responsabilidade de criar uma criança. A jovem nos disse que não a perdoa por tê-la abandonado. No entanto, não conseguiu esconder, por trás da mágoa, a alegria por conhecê-la. Acertaram de ir ao cartório no dia seguinte incluir na certidão de nascimento de Eliene, o nome da mãe e dos avós maternos. Segundo Dona Maria, no cartório, o procedimento foi rápido. Nenhuma troca de carinho entre mãe e filha, apenas troca de endereços para futuras visitas. Dona Maria, apesar de triste com a atitude da filha, se sentia aliviada e principalmente feliz porque
oficialmente era avó de Eliene e, finalmente, resolveria o problema da pensão de sua neta.
Sem documentos Esse assunto é mais recorrente do que pensamos. A população mais carente do país, principalmente das cidades pequenas do Norte e Nordeste, tem muitas dificuldades em conseguir documentos, seja pela distância, pelas condições sociais e econômicas ou pela falta de cultura. Através dos documentos, as pessoas adquirem personalidade jurídica, que lhes confere direitos e deveres civis baseados no ordenamento jurídico do país e constitui sua identidade como cidadãs e parte da sociedade brasileira. Um relatório produzido pela Commission on Legal Empowerment of the Poor (Comissão sobre Habilitação Jurídica dos Pobres), organismo independente apoiado pela ONU (Organização das Nações Unidas), estima que 4 bilhões de pessoas, ou seja, 2/3 da população vivam na ilegalidade por não possuírem algum tipo de documentação. No Brasil, o governo planeja erradicar esse problema até 2010. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em seis anos o percentual de sub-registros de nascimentos caiu de 21,9% para 12,7%. Em 2000 eram 800 mil e em 2006 o número caiu para 400 mil.
Minha Identidade
O nome, como símbolo de identidade, além de ser uma exigência no convívio social em que o indivíduo está inserido, integra a autoimagem e a maneira como se identifica. Além dele, o sexo, a nacionalidade, o parentesco e a impressão digital são elementos que permitem uma distinção no coletivo social, compondo a diferenciação entre o “eu” e o “outro”. O documento de identidade carrega em seu conteúdo todas essas características. O direito a ele é fundamental ao homem e é regulamentado pela Lei de Registros Públicos e é tutelado, desde janeiro de 2002, pelo novo Código Civil Brasileiro. Se antes, as pessoas tinham prazer em
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tirar o registro de identidade para tornar-se um “cidadão brasileiro”, hoje, as razões são outras. As imensas filas na frente dos órgãos públicos revelam muito mais uma obrigação civil. A maioria retira a identidade para conseguir trabalho, fazer inscrições em instituições de ensino, e até mesmo, para comprovar a idade na entrada de festas. A estudante Juliana Lima, de 21 anos, nunca desejou possuir o documento, até se deparar com a exigência de uma faculdade. Eram 6h10m da manhã e a estudante já estava na fila da Casa do Cidadão, um dos postos de atendimento que emitem o documento em Fortaleza. Seus pais sempre insistiam para ela tirar o documento, mas a acomodação não a deixava. “Falta de interesse. Nunca senti necessidade. Por mim, tão cedo vinha tirar”, disse a garota que, às 7h10m, desiste de esperar. No entanto, alguns minutos depois Juliana retorna, afirmando que havia esperado tempo demais e seria bobagem ir embora. RG Apesar de tudo, o documento de identidade não é tão importante quanto se pensa. O advogado e professor de Direito Civil da Unifor, Sidney Guerra, ressalta que “se o indivíduo quer comprovar sua identidade pelo nome, ele pode fazê-lo pelo registro de nascimento e se ele deseja fazer alguma compra, não consegue somente com a identidade, precisa do CPF. Hoje nós temos o nome, mas em matéria jurídica o mais importante não é o seu nome, é o número do seu CPF”. Para ele, o documento serve, na verdade, como um cadastro de controle da população brasileira. “Os cidadãos brasileiros são como sócios de uma grande empresa chamada Brasil. Essa empresa precisa ter a identidade de seus sócios. Precisa conhecer todos para saber se estão contribuindo ou não com a sua participação no contrato social firmado com o país”, afirma. Ainda de acordo com ele, “essa exigência do Estado para que todos possuam a carteira de identidade, surge da necessidade de cobrar do cidadão o cumprimento dos deveres sociais, que sem essa forma de identificação não é possível”.
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Qual seu nome mesmo? Diferente de Portugal, onde o governo permite apenas o registro de nomes contidos em uma lista oficial, no Brasil, os pais têm mais liberdade na escolha das graças dadas aos filhos. Mesmo com a Lei Federal de Registros Públicos de 1973, na qual os cartórios não podem registrar crianças com nomes que as exponham ao ridículo ou a situações humilhantes, as crianças são registradas com os nomes mais diversos possíveis. Artistas, lugares, cometas, santos, tudo vira inspiração no cartório, por exemplo, Michael Jackson, Washington ou Austin. No entanto, existem aqueles nomes que superam o limite do aceitável. Segundo o Guia dos Curiosos da Língua Portuguesa não faltam exemplos que contradizem a lei. Nomes como: Lança Perfume de Andrade, Bemvindo o dia do Meu Aniversário Cardoso, Himalaia Virgulino Janeiro Fevereiro de Março Abril e Naida Navinda, Navolta Pereira e Última Delícia do Casal Carvalho são colocados em crianças. No Nordeste, a prática de nomear o filho com a união do nome do pai com o da mãe gera alguns
nomes estranhos também, como: Valdineide, mistura de Valdir com Neide e Vanelssom, mistura de Vanessa com Nelson. Jerônimo Rosado, farmacêutico de Mossoró, cansado de escolher nomes para a grande quantidade de filhos, a partir do sexto passou a batizá-los com números, primeiro em português e depois em francês. O nome nunca incomodou a família dos Rosado. Graças ao sucesso político de Jerônimo, Rio Grande do Norte tem um município chamado Dix-Sept Rosado, em homenagem ao décimo sétimo filho, que foi prefeito de Mossoró. O mais novo, Jerônimo Vingt Un Rosado Maia, é conhecido como “seu 21”. Hoje já existem Dix-Sept Sobrinho, Vingt e Vingt Un Neto. Mas calma! A Lei de Registros Públicos dá direito a pessoas com nomes como esses a requerer na justiça a troca por um mais “normal” e atualmente alguns juízes começam a intervir na hora dos registros. Nomes como: Bin Laden e Sadam Husseim são proibidos e nomes como Raimunda, por ter em grande quantidade, também vêm sendo impedidos.
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Identidades Falsas por Igor Medeiros Gomes
Você já tentou pagar meia-entrada no cinema ou estádio com uma carteira de outra pessoa? Você já pagou meia passagem no ônibus com uma identificação que não era sua? Tais atitudes bem frequentes em nosso dia-a-dia são consideradas crime perante a lei. A carteira de Identidade é o documento nacional de identificação civil no Brasil. Com o nome, data de nascimento, filiação, foto, assinatura e impressão digital do polegar direito do titular. A carteira serve para mostrar que você é realmente você. Na teoria, isso é o que deveria acontecer, na prática temos visto coisas bem diferentes. No futebol, por exemplo, isso é bem presente. Na gíria futibolística, o “gato” é aquele jogador que falsifica sua identidade para jogar em uma categoria mais jovem que a sua, com isso ele terá melhor desempenho nas partidas e consequentemente influirá no resultado. O auxiliar técnico e treinador de goleiros do BNB Clube, Fabiano Silva, conta que os “gatos” já fazem parte da cultura do futebol: “ É muito comum. Os times pegam atletas mais velhos, falsificam as identidades e colocam para jogar com os mais novos. A vantagem é grande, o porte físico, a estrutura óssea dos mais velhos é bem mais desenvolvida”. Com a promessa de um futuro promissor e de muito dinheiro, empresários conseguem convencer crianças a adulterarem suas identidades. No campeonato cearense de futsal, Fabiano afirma conhecer um jogador de 18 que joga na categoria até 15 anos. Por medo de processo, já que o jogador tem uma identidade que mostra ter 15, Fabiano prefere ficar em silêncio. Mas o que é mesmo falsidade ideológica? Falsidade ideológica é um tipo de fraude criminosa que consiste na adulteração de documento, público ou particular, com o objetivo de obter vantagem, para si ou para outrem ou mesmo para prejudicar terceiro. Casos de falsificação, como o do garoto do campeonato cearense de futsal, devem ser levados a delegacia de defraudações. A delegacia é responsável pela investigação e apreensão de portadores de identidades falsas. O delegado Nestor Moreira diz que um dos maiores casos que a delegacia já enfrentou foi o de Joceclan da Silva, em 2001. O criminoso se passando na época pelo Governador do Estado, Tasso Jeiressati, tentou tirar um cartão de crédito em nome da autoridade. Depois de fornecer todos os dados pessoais do governador ele pediu um novo cartão, alegando que havia perdido. O golpe não deu certo, Joseclan acabou preso e junto com ele toda uma qua-
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drilha especializada nesse tipo de golpe. Atualmente, um criminoso com o nome de Michelangelo fez uma verdadeira obra de arte e conseguiu clonar o cartão da apresentadora, atriz e cantora Maria da Graça Meneghel, a Xuxa. Conforme o Inspetor Isaac Filho tudo em uma carteira pode ser falsificado, menos a digital. “Derrubamos muitos golpistas pela digital”, comenta o inspetor. No mundo inteiro, não existem duas digitais iguais e quando o portador tem sua digital comparada com a da carteira se coloca à prova a autenticidade do material. Existem várias maneiras de se falsificar uma identidade. Uma delas é simplesmente a troca da foto da carteira por uma foto de outra pessoa. A mais usada é a chamada “espelho”, os criminosos de posse do papel que é usado na impressão da carteira, fazem sua identidade falsa colocando seus dados. As identidades falsas também podem ser compradas, em feiras como a da Parangaba, onde o material pode ser facilmente obtido. Para que a ação dos criminosos seja combatida, as novas identidades serão digitalizadas. O Instituto de Identificação do Estado do Ceará é o responsável pela emissão das carteiras de identidade em todo o estado. O Instituto emite cerca de 60.000 carteiras de identidade por mês. E foi lá que conversamos com Alberto Belchior, perito criminal. Ele diz que a falsificação das identidades é atividade comum no Estado, e que para quem não trabalha no ramo, perceber uma identidade adulterada é tarefa quase impossível. “A diferença é grotesca da original para a falsificada, mas só quem está no ramo há muito tempo que nota”. Em uma carteira de identidade, existem oito indícios para provar que ela é verdadeira, os quais não iremos citar aqui por pedido das autoridades. Para os peritos, falsificação perfeita não existe. Outro grave problema são as pessoas que chegam com certidões de nascimentos falsas e pedem para tirar uma carteira de identidade. Com um documento falso, se faz um verdadeiro e qualquer um pode sair por aí com uma identidade “legal” perante a lei. De acordo com o servidor federal da Justiça Antônio Thirso Medeiros a pena para o crime de falsidade ideológica é de reclusão, de um a três anos, e multa. Ele também nos conta que traficantes utilizam muito desse artifício para fugir da polícia. Como a justiça é “cega”, a pena para o traficante de drogas que pratica o crime de falsidade ideológica é a mesma para qualquer um que tente se passar por outra pessoa. Por isso, cuidado!
Lugares
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texto
· mariana penaforte · lucas leitão · fotos · eduardo mont’alverne ·
arte
· felipe goes
A vinda massiva de estrangeiros para o litoral brasileiro chegou também à praia da Taíba, no litoral oeste do Ceará, e mudou bastante o lugar nos últimos sete anos. Alguns estrangeiros já são integrados à comunidade, pois chegaram lá há mais de 20 anos, mas esta nova migração, segundo constatamos, divide opiniões. Há desde os que vêem grandes oportunidades aos que temem pelo fim do comércio e da cultura locais ABrIL 2009
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Claudine (de lenço na cabeça) veio da França e abriu um restaurante na Taíba
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Era uma tarde de sábado, a rua estava sem movimento. Alguns nativos andavam e poucos pescadores voltavam do mar no final de tarde. Esse cenário que já está ficando comum na praia da Taíba é bem diferente do que encontraríamos se chegássemos lá há uns sete anos. Cansados, depois de um dia de depoimentos intensos, já entrávamos no carro para partir daquela bela praia. Foi quando avistamos Dona Mozarina, uma senhora que aparentava ter vivido 75 anos, e que, naquele momento, se encontrava sentada na calçada de sua casa, na rua da praça, olhando para os que passavam, esperando o sol se pôr. Fomos lá conversar com ela. Na conversa, Dona Mozarina nos contou despretensiosamente que morava na Taíba desde que era mocinha e que não lembra mais onde nasceu porque sua mãe, que tinha essa informação, já morreu há muito tempo. Essa tímida senhora nos disse ter 60 anos, porém, a pele queimada pelo sol aparentava bem mais. Perguntamos sobre os gringos que lá habitavam, ela disse não conhecer nenhum deles. - E a Claudine? Perguntamos. - Ah, ela eu conheço, é gente boa!
eu pertenço ao Brasil Claudine Tintillier veio para Taíba em 1990. A visão da praia naquela época não era muito
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mais do que dunas de areia e plantas. Os pais e amigos olharam com estranheza a francesa que largava a Normandia, no norte da França, para se aventurar na América do Sul. Em 1995, Claudine abriu o restaurante em que almoçamos naquele sábado, no fim do mês de setembro: Le Petit. Depois de casar e se separar de um nativo da Taíba, Claudine, que fala português perfeitamente, diz que não voltaria para a França. “Eu pertenço ao Brasil”, diz orgulhosa. Nadia e Jean Luc Cristofari, outro casal originário da França, estão há 18 anos no Brasil, 11 deles na Taíba. Até chegar nesse vilarejo, passaram por lugares como Jijoca, onde abriram “Chiclete com Banana”, o primeiro restaurante da região, junto com o hoje famoso chefe francês Olivier Anquier. Alguns anos depois, fizeram uma viagem ao continente americano, passando por 17 países. Trouxeram souvenirs, areias de cada lugar e centenas de fotos. Essa decoração compõe o restaurante do casal, que não por acaso se chama “Volta ao Mundo”. Hoje eles têm dois filhos – Dylan e Lana, de 12 e 15 anos respectivamente. Nascidos e criados na Taíba, estudam na escola local. Dentro de casa, eles só falam francês, fora dela, português. Nadia se diz muito feliz por morar no Brasil, enxerga o país como um lugar acolhedor e cheio de oportunidades para quem
vem de fora. Diz que não teve dificuldade de aprender o português, e com seis meses já dominava bem o nosso idioma. “Acho que a língua portuguesa hoje é mais rica do que a atual língua francesa, cheia de gírias”, opina. Bronzeada, de biquíni, espontânea e com um português afiado, a única coisa que denuncia que o casal vem de outro país é o sotaque tipicamente francês do marido, que nunca foi perdido por completo. Perguntamos em qual dos dois países ela se sentia mais em casa. A resposta veio rápida e certa: nos dois. “Passei metade da minha vida na França e metade no Brasil, os dois lugares são minhas casas agora”, declara, feliz. O casal usa temperos brasileiros na cozinha do seu restaurante, tendo que aliar iguarias da culinária francesa ao paladar brasileiro, como é o caso de acompanhamentos como o arroz. Alane Elle, que é garçonete do lugar, diz que conheceu o casal quando eles iam até a casa de sua mãe, utilizar um dos únicos telefones disponíveis da cidade. Lucimar Rodrigues, que é auxiliar de cozinha de Nádia há 10 anos, reflete, assim como Alane, que apesar deles serem estrangeiros, o estranhamento cultural no ambiente de trabalho já é mínimo, devido a convivência diária. Estas diferenças, para ambas, já estão conciliadas pela junção de elementos de uma cultura “estranha” atrelada à local.
Adaptações e mudanças Logo na entrada da vila, encontramos o “Mercantil da Taíba”. Há sete anos, o casal Irene e Eretilde Timbó administra o lugar e acompanha a transição da praia. Começam tímidos, mas depois falam e se queixam muito da nova estrutura da praia, que mudou. “Aqui era uma praia de veraneio”, diz Eretilde, inconformado com a especulação imobiliária estrangeira que vem mudando o cenário não só da Taíba, mas de todo o litoral brasileiro. O casal se refere aos novos estrangeiros, que vem principalmente do continente europeu e investem cada vez mais no litoral cearense. Esses efeitos têm sido cada vez mais visíveis, através da construção de resorts, pousadas e hotéis, bem como a promoção da prática de esportes aquáticos, devido a privilegiada posição geográfica do estado, que tem ventos fortes quase o ano inteiro, além de uma temperatura da água marinha sempre por volta dos 27ºC. “Costumávamos vender em média 26 caixas de cerveja por fim de semana. Hoje em dia, vendemos em média quatro, quando muito. Esse pessoal que está aqui agora não compra nem arroz, e contratam o mínimo de gente possível, porque eles fazem tudo”, queixa-se o casal. Perguntamos sobre os estrangeiros que moram há mais de uma década lá, como Jean Luc, Nádia e Claudine. “Esse pessoal que já está aqui há 20 anos veio e teve que se adaptar à
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Nádia ao lado de sua assistente de cozinha, Lucimar: cozinha francesa aliada ao gosto brasileiro
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gente. Com esse pessoal novo que veio para cá, é diferente. A gente tem que se adaptar a eles”, nos responde o casal.
Hoje é só gringo Outro comerciário que não vê com bons olhos a vinda desses novos estrangeiros é o lendário Francisco Nativo. “O Nativo”, como é conhecido seu restaurante, foi o primeiro da praia da Taíba. Inaugurado há mais de 30 anos, tem uma vista de tirar o fôlego: o sol forte reflete nas ondas do mar, à beira do restaurante. Quando a maré enche, as ondas batem nas pedras e invadem as dependências do local. Conhecido pelo seu delicioso pastelzinho de arraia, Nativo e sua mulher Jucilene nos contam que as coisas já foram diferentes. Antes, famílias inteiras vinham para a Taíba e passavam o fim de semana se divertindo e dando lucro para os comércios locais. Quando alugavam suas casas, era para outras famílias brasileiras, que também tinham o costume de veranear. Hoje, isso mudou. As casas foram vendidas para estrangeiros, por valores muito superiores aos que eram oferecidos no mercado nacional. O comerciante nos conta que é o único nativo a ter um terreno de frente para o mar. “Aqui era tudo casa de pescador”, diz ele, apontando para o litoral. “Hoje, é só gringo, eles compraram tudo. Além de vir poucas vezes por
ano, pagam um vigia pra tomar conta de várias casas e quase nunca alugam para ninguém. As casas ficam vazias”, lamenta. Em seu terreno, já ofereceram 380 mil reais, mas Nativo não vendeu, pois achou um valor injusto. Ele e sua mulher têm planos de vender o restaurante. No entanto, Nativo diz que só se desfaz do estabelecimento por um preço justo. Sobre suas razões para fechar, ele relata: “Já trabalhei há mais de 30 anos e já estou cansado do ramo”. Seus olhos experientes também mostram um cansaço evidente de quem tenta lutar contra mudanças inevitáveis ocorridas no lugarejo, especialmente nos últimos anos.
nem tudo é prejuizo Mas nem todo mundo acha essa presença negativa. Ao invés da opinião majoritária de comerciantes e donos de negócio tradicionais, os pescadores têm motivos para comemorar a vinda destes estrangeiros. Dono de uma pescaria no centro da vila, há 20 anos Assis Viana compra e fornece pescados para as proximidades do município de São Gonçalo. “Tá cada vez melhor, estou vendendo cada vez mais. Por enquanto está ótimo, vendo para restaurante, barracas e outros lugares”, nos fala o comerciante sobre a sua atual situação comerciária. Ele diz que essa vinda dos estrangeiros, na verdade, melhorou o
Homens voltam para casa depois de um dia de trabalho na construção do “Taíba Beach Resort”
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negócio, já que muitas vezes o peixe é aproveitado nos restaurantes locais e vendido até em Fortaleza. Para ele, estes recentes investimentos na área hoteleira e de serviços, ao invés de prejudicar, irão aumentar consideravelmente a oferta de empregos e a melhoria da qualidade de vida de todos. Nalcir e Júnior, dois jovens pescadores que estavam sentados na jangada na beira da praia, também não se incomodam com a presença dos novos estrangeiros. “Eles se entrosam, porque o povo daqui é muito comunicativo”, dizem. A nossa conversa se dá enquanto olhamos para um ponto mais adiante, quando vimos alguém mexendo na vela de um Kite, se preparando para entrar no mar.
esperança Dessa maneira também pensa Leomar Rocha, que é vigia da obra “Taíba Beach Resort”, um conjunto hoteleiro que está sendo construído por noruegueses na beira da praia, através da companhia imobiliária brasileira Taíba Investe. O vigia, que começou trabalhando em serviços gerais para a construtora, acredita que com esta nova empreitada, a qualidade de vida da população local irá melhorar bastante. Segundo ele, a empresa, desde o começo, deu prioridade de emprego aos trabalhadores locais. “Antes de começarem as construções, colocaram placas aqui
chamando os moradores para trabalhar na obra. Eles deram preferência ao povo”, relata. Além desta geração de empregos, ele espera que a empresa também traga cursos profissionalizantes para gerar trabalhadores qualificados e preparados para receber este novo público. Quando indagado sobre a opinião contrária dos comerciantes locais, Leomar diz: “O povo tá achando bom. Quem tá achando ruim é porque já tem dinheiro. Todo mundo aqui tá esperando uma oportunidade”. Ele acredita que os beneficiados são aqueles que agora podem ter oportunidades profissionais sem ter de se deslocar para regiões maiores, como Fortaleza. Com essa diversidade de idéias e pensamentos, podemos chegar apenas uma conclusão: a praia da Taíba não é mais a mesma. Hoje, vendo a transformação da praia que outrora era predominantemente veranista, não sabemos que mudanças ela ainda sofrerá com a sua nova cara: possivelmente um novo destino de prática de esportes, férias e comércio internacionais. Para uns, essas mudanças trazem benefícios, para outros, nem tanto. Com tantas visões divergentes, é inegável que a presença do estrangeiro trouxe modificações significativas no dia-a-dia dos que lá vivem. Eretilde, o dono no mercadinho, reflete: “não é que necessariamente esteja atrapalhando, mas é que realmente está mudando”.
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A palavra da vez: sustentabilidade Sustentabilidade é uma palavra central no discurso do Secretário de Turismo do Estado, Bismarck Maia, ao ser provocado a comentar o caso da especulação imobiliária na praia da Taíba. “Tudo na vida que não é ordenado quebra um ciclo que poderia ser harmônico, saudável. Isso serve para o turismo, para nossa casa, empresas e organizações. Tudo tem que ser feito com sustentabilidade”, diz o secretário. Maia faz a mesma relação quando fala da prática de esportes aquáticos, que tanto atrai estrangeiros para o nosso litoral. “O esporte é uma promoção que o Ceará tem que fazer, o turismo de esportes, de aventura. Mas isso tem que ser feito com sustentabilidade, porque se não vai degradar”, diz o secretário, que ainda se posiciona positivamente sobre a vinda de resorts para o estado, “contanto que haja um plano diretor sustentável”, insistindo mais uma vez na palavra-chave. “Eu defendo que venham resorts, porque é uma lacuna que o Ceará tem. Precisamos construir hotéis de lazer, porque aqui é tudo verticalizado”, declara. Segundo ele, o governo vem acompanhando a construção de dois novos empreendimentos nos municípios de Aquiraz e na praia do Cumbuco, que teriam o diferencial da sustentabilidade. Para os nativos que vendem ou pretendem vender suas casas aos que chegam de fora e aos comerciantes insatisfeitos, o secretário diz que “é necessário continuar com os estabelecimentos, não vender para os gringos. Fortaleceremos o comerciante com capacitação profissional, para ele ficar apto a participar desse novo fluxo de turismo. É preciso não se entregar ao estrangeiro”. Sobre essa inegável e constante presença, o secretário acrescenta: “que venha o estrangeiro, mas que venha como humano e não como degradador da natureza”.
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Dança e t r adição na praia do Iguape ·
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· amanda nogueira · thays oliveira lavor · fotos · eduardo mont’alverne ·
Maneira faceira machuca e maltrata o chão. Rodopia o salão, quebra de lá, quebra de cá, entra ele, sai ela, embaixo e em cima, na palma da mão e na ponta do pé. Praia, sol, coco. Toda a geração salta ao toque do caixão. Balança a morena, balança o irmão, o primo e o pai. Os Costa, os Cabral, no baque, na embolada, no coco daqui, no coco de lá, no que vira o mundo, roda, roda e deixa dançar ABrIL 2009
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Durante a brincadeira pode-se ver a alegria com que os participantes salteiam na praia. O mestre do coco e embolador, Seu Raimundo, começa o verso e dá espaço para que os outros cantadores respondam à melodia. Vai tu, vai tu, vai tu ô mulher, vai tu, mas não precisa se avexar... vai tu, vai tu, vai tu, ô mulher, tu fazer café pra nós tomar. A dança acontece em círculo e é acompanhada por instrumentos de percussão – o ganzá, o caixão, o triângulo, e, como não podia deixar de ter, as mãos dos brincantes, que acompanham todo o ritmo com suas palmas. Apenas dois participantes dançam dentro do círculo. Um é convocado a acompanhar o outro, que o chama de dentro da roda. É uma espécie de desafio sem rivalidade. Os dois pinotam, brincam e não deixam de conservar o ritmo dos batuques. Enquanto os dois dançam no centro, os outros esperam a hora em que serão chamados. Mulheres e homens podem dançar. Aqui todo mundo é convidado a conhecer o Coco do Iguape.
Voa andorinha branca, voa andorinha no mar, voa andorinha branca e bateu asas pra voar... Nessa embolada, seguem alguns pescadores, que além do amor pelo mar, têm na dança do coco sua razão de viver. “Quando eu começo a dançar, quando esquenta, por mim eu passaria três dias dançando, por mim eu não parava nunca”, conta Seu João Anastácio, conhecido
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por Gatinho dentre os brincantes, que tem mais de 40 anos dedicados à brincadeira. É de quem tem, além das mãos calejadas pelas redes de pesca e pelas cordas que puxam os barcos do mar, os pés grossos de dançar, de rodopiar e mostrar para o mundo a sua arte, o seu canto, o seu lugar. Não se sabe quanto tempo tem o Coco do Iguape. Muito se fala entre os brincantes atuais que “o coco tem pra lá de 100 anos”. O grupo nasceu na praia do Iguape, localizado no município de Aquiraz, a 40 quilômetros de distância de Fortaleza. Atualmente conta com 16 integrantes, a maioria parentes do atual mestre do coco. O mestre da brincadeira é seu Raimundo Cabral, que na verdade se chama Raimundo José da Costa. “Pode chamar de Cabral que todo mundo conhece, mas tente chamar de Costa”, diz. O mestre Cabral começou a dançar com oito anos de idade e já conta 64. São mais de 50 anos dedicados ao coco. Raimundo conta que quando criança, o mestre de coco da época, Paulino, chamou-lhe para fazer a brincadeira. “Eu só era dançador. Mas aí ele (Mestre Paulino) viu que eu encostei, fiquei encostado dele e nos ensaios, quando ele embolava, eu acompanhava o embolamento dele. Aí ele disse: ‘rapaz, com certeza esse cara vai dar um bom embolador!’”, contou. Após ver o menino, com seu jeito único de embolar, o mestre lhe antecipou que Raimundo Cabral ainda seria o mestre do Coco do Iguape. Hoje, Raimundo é mesmo mestre e seus quatro filhos brincam também, “Um já me representa quando eu num tô. Ele que dá os versos e faz a brincadeira”, relata. A família Cabral está dentro do Coco do Iguape assim como o coco nunca deixou de fazer parte dessa família.
Mulher, história e dança Klévia Cardoso, brincante e presidenta do Grupo de Dança de Coco do Iguape, iniciou o processo de organização documental da tradição e história do Coco do Iguape. Hoje o grupo viaja pelo Brasil e já gravou um disco. Sua história, suas tradições e seu lugar são levados para o mundo por meio dos brincantes, pelo balançar do ganzá, pelo toque do caixão e pela alegria dos integrantes que do grupo fazem parte. Ainda no ano de 2008, os brincantes do Coco do Iguape tingiram as roupas herdadas de seus antepassados e utilizadas até hoje na hora da brincadeira. Este ritual é realizado de 100 em 100 anos. O mestre Cabral é peça fundamental para o rito. Ele irá tirar a casca do cajueiro e fazer a tintura das roupas. Primeiro será tirada a goma do tecido, depois ele será lavado em água corrente, a casca do cajueiro é cozida para extrair a tintura, e assim as roupas serão tingidas para serem finalmente expostas ao sol. Todo o ritual será em Traiuruçu, terra dos indígenas Genipapo Canindé. Segundo os moradores daquela região do Iguape, muita gente, dentre eles crianças, mulheres, e eles próprios, adora assistir aos ensaios do grupo. No dia em que visitamos a colônia de pescadores, o céu estava claro, aberto e não se via muitas nuvens. Eram mais ou menos três da tarde. Os homens do mar se juntavam entre as redes, madeiras, camburões de guardar peixe e balanças, tanto para jogar conversa fora, rir um pouco, ou apenas para encontrar algum amigo. Até que um deles lançou a pergunta “e vai começar o ensaio assim tão cedo?” para Klévia. Ela,
como se ignorasse a pergunta, olhou para nós, cumprimentou-nos, e após esse gesto respondeu ao curioso pescador: “É que hoje tem gravação”. Os ensaios acontecem todos os sábados às 19 horas e chegam a virar a noite. Neste dia, todos que estavam no local permaneceram para ver o coco, mesmo sendo tão cedo. Alguns até foram chamados de suas casas às pressas. Costume dos pescadores, até mesmo para os que não dançam, é um prazer ver a brincadeira. “Eles representam a gente. Eu não danço, meu filho também não, mas a gente se anima em ver! Mexe comigo. Tem muitos amigos nossos que pescam e dançam também”, conta José Helson, 33 anos doados à pesca. Muitos dos que trabalham no mar e moradores do local também se vêem no Coco do Iguape. A vila de pescadores fica perto do centro do Iguape. As ruas que compõem o cenário têm várias casinhas, uma ao lado da outra. Em um quarteirão próximo à igreja, que serve de referência para chegar à vila e à maior parte dos destinos do Iguape, vê-se um pequeno mercantil e ao seu lado uma bodega. As casas do local não parecem ser habitadas. Enquanto procurávamos o galpão dos trabalhadores, não víamos qualquer pessoa, apenas alguns que passeavam de bicicleta por lá. Em conversa com habitantes do distrito de Jacaúna – nome verdadeiro da então conhecida Iguape –, uma delas destacou que, na hora em que passamos, era muito difícil encontrar alguém, “Às 15 horas, ainda mais do sábado, todos ainda estão descansando. Precisa ver é de noite, as calçadas se enchem de cadeiras e todos conversam com os vizinhos”, contou.
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Origem do Coco Para Ninno Amorim, sociólogo e pesquisador do Coco do Iguape, em sua etnografia Em cima da hora: uma etnografia da dança do coco, defendida pelo autor em junho de 2005, na Universidade Estadual do Ceará, a maioria dos folcloristas concorda que o coco foi primeiro um canto de trabalho dos tiradores de coco e que somente depois foi transformado em ritmo dançado. Alguns afirmam que ele nasceu nos engenhos, indo mais tarde para o litoral. A dança parece ser de origem africana, herança dos negros de origem banto – habitantes de Angola – da região do Congo-Angola. Com eles veio a tradição da umbigada, que serve, entre outras coisas, para “convidar” outro brincante à dança. As pessoas contam que o coco pode ter surgido dos escravos que quebravam coco com pedras para a manufaturação. Existem também relatos de que tenha havido a mistura desse povo com elementos indígenas, principalmente na marcação do ritmo, na instrumentalização e, ainda, da intervenção dos portugueses com seu formato de roda, muito comum nas danças do folclore daquele povo. Klévia Cardoso relatou para Ninno Amorim que “os antigos, em época de escassez na pesca, enchiam os caçuás (depósitos artesanais) de frutas, dentre estas o coco, e se dirigiam a pé pelo litoral de Iguape até Mucuripe, em Fortaleza (cerca de 40km). Com o objetivo de poupar a sola dos pés, devido ao tratamento dado pelo calor na areia da praia, eles saíam de madrugada. Mas isso não era suficiente para evitar o encontro com o sol em grande parte do caminho. À noite, ao regressar da longa jornada, aquelas pessoas tocavam seus instrumentos (caixão – “caçuá de madeira” – e ganzás). Enquanto uns improvisavam versos sobre a vida no mar e suas aventuras amorosas, outros entravam na roda e imitavam (na maioria das vezes zombando!) o saltitar de seus colegas na areia quente”. Segundo Klévia, é justamente desse saltitar que surgiram os primeiros passos de coco.
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ensaio
Ambiguidades ·
ensaio e texto
· nathália bernardo ·
Eu precisava que uns largassem por alguns minutos a identidade masculina. Eu lhes queria femininos diante da câmera. Mas identidade não é assim, instável. Desajeitados, rasgaram as meias, despentearam-se, borraram a maquiagem e caíram dos saltos. Também não adiantava tentar mostrar o lado masculino daqueles que não o possuíam. Em bermudas e camisetas, continuavam femininos. Eu desistiria se não tivesse percebido que a graça estava aí. Assim, um ensaio sobre ambiguidades
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E C RE A mas não é
Singular
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· átila lopes · pedro victor · fotos · suzana campos ·
Eles se vestem iguais, cantam iguais e, algumas vezes, até provocam frenesi semelhante. Eles homenagei am o artista e sua obra respeitand o-a impecavelmente, reproduzindo-a sem deixar passar um passo ou nota errada. Eles fazem os fãs can tarem e se emocionarem, como se estivessem em algum show dos seu s ídolos. Eles são os artistas covers “Menino, tu é muito bonito. Desde pequena eu compro teus discos. Nunca pensei que fosse assistir um show teu” – dizia uma senhora empunhando um LP de Elvis Presley em um show, querendo autógrafo. O fato de o ídolo estar morto há tantos anos não impedia que Gerard Presley fosse confundido com ele. Claro que a tiete acima não deveria ter recebido a notícia de que Elvis estava morto há muito tempo, mas o curioso é a impressão que o artista cover passa: de que você está, de fato, assistindo ao show do cantor. Gerald Presley (ou Geraldo Euram, na certidão de nascimento, é profissional a 8 anos). Começou a carreira exatamente no dia 31 de Dezembro de 2000. “O primeiro show foi meio precário, mas foi muito válido, pois perdi a inibição e tinha muito medo de pagar mico, tinha medo de não conseguir”, conta.
Antes de fazer apenas um show cover de Elvis Presley, Gerard trabalhava cantando em bares, em várias bandas e também só voz e violão. Quando começou a colocar músicas do Rei do Rock em seu repertório, começaram os pedidos frequentes que o fizeram pensar em apresentar um show somente com músicas do Elvis. “É muito difícil imitar Elvis. Ele tem um timbre de tenor. Quando decidi realmente fazer esse trabalho, tive que fazer uma readaptação vocal, estudo sobre respiração como autodidata e atualmente sou professor de inglês”. Paulo Soriano era um radialista, fã e amigo do cantor Waldick Soriano. Em um show que Waldick foi fazer no Centro Operário do Montese, em 1982, cantou junto com ele. Em 1984, entrou em um concurso de cover do cantor no programa Irapuã Lima e ganhou
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Geraldo Euram se caracteriza como ídolo, Elvis Presley
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cantando a música “Perfume de Gardênia”. Começaram os shows em várias cidades fazendo parte da caravana do programa Irapuã Lima. “No tempo me chamavam de sósia. Eu tinha raiva desse nome. Depois que foi cover. Me chama de Paulo Soriano mesmo”. O nome é só uma homenagem, apesar de considerar o ídolo “um irmão. Tenho dez irmãos e o Waldick foi meu décimo primeiro”. Um fato curioso: tanto Paulo quanto Gerald aparecem cantando juntos no documentário de 2008 feito sobre Waldick Soriano e produzido por Patrícia Pillar: Waldick – Sempre no meu coração. Quem deu sua contribuição no documentário também foi o cover do Roberto Carlos, mais conhecido como Roberto Arruda que há 10 anos representa o rei. Como o seu timbre de voz era muito semelhante ao do ídolo, vá-
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rias pessoas o motivaram a cantar as músicas e de lá para cá ele nunca mais parou. Sempre de camisas azuis, em seus shows muitas emoções são repassadas ao público, com direito a rosas e mensagens de amor. Lembra que certa vez foi confundido em um show do rei, sendo assediado pelo público que tirava fotos. Arruda ainda não teve a oportunidade de conhecer Roberto Carlos. Quando perguntado sobre o que ele falaria para o ídolo quando o conhecesse, ele disse: “Eu diria: ‘Eu te amo!’”. O que levou esses artistas a representar no palco aqueles cantores? Existe uma admiração tão grande que faz com que a perfeição na homenagem cover seja cada vez mais fiel em tudo? “Eu soube da existência do Elvis no dia em que ele morreu. Eu tinha doze anos. Eu morava no interior do Maranhão. Cid Moreira anunciou na televisão ‘Morre o rei do Rock’. Foi quase o jornal inteiro sobre Elvis. Naquele dia, me tornei fã. Antes nunca tinha ouvido falar”. Depois disso, Gerald passa a procurar mais e mais material sobre o seu ídolo e descobre a dificuldade que era encontrar alguma coisa sobre o cantor. “Eu só vim realmente conseguir coisas do Elvis quando entrei no fã clube através dos fãs. Porque não é fácil conseguir material do Elvis”. O seu trabalho é apreciado por fãs no Brasil inteiro, mas seu grande sonho na carreira é fazer um show no país de origem do ídolo. “Um grande sonho meu é fazer show nos EUA. Não pensando em ganhar dinheiro, mas para poder fotografar, filmar e fazer shows aonde o Elvis fez shows. Las Vegas, Memphis, aonde ele residia. E conhecer a mansão do Elvis, que hoje virou museu”. Já Paulo Soriano teve a sorte de conhecer e se tornar amigo do seu ídolo. Ele conta como conheceu o cantor. Um belo dia, quando ainda nem sonhava em cantar, avistou no seu bairro Waldick Soriano e falou: “Seu Waldick, como está?” e depois cantou duas músicas. Os dois caíram na risada e desde então Paulo virou fã mesmo. “Eu disse pra ele: Waldick, eu te imito
por aí. E ele disse ‘continue!’”. O trabalho de um artista cover é bastante difícil. Ele precisa ter um timbre de voz semelhante ao ídolo, além de cantar, se movimentar no palco e se vestir igual ao artista. Gerald Presley fala que “é um trabalho caro. As roupas não duram muito e elas são caras. Tem que estar fazendo manutenção, comprando óculos, anéis, além do trabalho de voz que deve ser feito para se chegar no ponto perfeito. Enfim, é um trabalho como qualquer outro que exige dedicação e paciência”, conta. “Eu não misturo as coisas. Quando saio do show, vou pra casa, tiro minha fantasia e vivo minha vida normal. Tem nos EUA a igreja Elvisteriana. Jamais faria parte de uma igreja dessa. Tenho minha crença religiosa. É o meu trabalho, eu sou fã também, mas tudo tem limite. Elvis tinha a vida particular dele e eu tenho a minha e tem um muro bem grande nessas coisas que eu acho que é importante senão você começa a pirar”, declara. Os artistas covers trabalham em vários lugares, desde festas de aniversário até casamentos. É um mercado que cresce bastante e, com isso, aumenta o profissionalismo, a seriedade e, também, o número de profissionais. Existem vários outros artistas Brasil afora que se dedicam ao cover. O público parece adorar a homenagem e, às vezes, parece agir como se fosse o próprio artista de verdade no palco. Não existe preconceito com esse tipo de profissional como se poderia pensar: eles não copiam a obra do artista, se aproveitando da criatividade alheia para o seu benefício. É um duro trabalho de homenagem que parece ser mais reconhecido a cada dia pelo grande público. Que melhor honra para o artista do que ter alguém fazendo esse tipo de homenagem? Trabalhando com uma dedicação como essa, os covers inspiram os artistas a continuarem criando, além de nos trazerem de volta a obra de grandes cantores que já se foram.
Roberto Arruda se apresenta como rei Roberto Carlos a mais de 10 anos. Abaixo, Paulo Soriano encarna o ícone cearense.
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Paixões ·
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· michel renan · allana alves · fotos · jeferson chaves · natália kataoka · joão luís
Duas histórias. Duas vidas. Dois personagens que são reflexos de suas paixões. O futebol, que cativa milhares de pessoas e influencia a cultura de vários cantos do mundo, é o eixo central da vida apaixonada de dois homens, torcedores e sacerdotes das cores e dos símbolos de suas instituições. Família, vestuário, profissão, política, economia e sua vida particular. Tudo sofre influência da identificação com o time de futebol
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Já passa das sete horas da manhã de sexta-feira, décimo dia de outubro de 2008, quando Carlos Barbosa Filho se levantou. Sua mulher Denise Maia Barbosa já estava em pé, tomando uma ducha para sair para sua rotina médica, era pediatra. “Bom dia, meu amor” disse o sorridente e bem humorado Carloto, como sempre fora conhecido Carlos. “Bom dia, querido”, respondeu a mulher saindo do box e apressando-se para se vestir e sair para o trabalho. “Preciso de um banho”, pensou. Tomou-o. Escovou seus dentes. Foi ao guarda-roupa e ao abrir, lá estava um armário completamente preto e branco. Calças, camisas de sair e de descanso. Puxou uma das gavetas que ao ter contato com a liberdade estufava o enorme número de camisas do Ceará Sporting Club assim como um bolo estufa e cresce ao ser aquecido pelo forno. Um chinelo preto estilo havaianas que exibia o símbolo em suas hastes, uma cueca com o nome do time, uma bermuda branca e uma camisa preta, com uma frase publicitária do seu time circulada por uma listra branca, como se estivesse sendo marcada: “Nosso amor faz a diferença”, estava escrito. “Agora sim, estou novo”, pensou Carloto. Mais que um time, ou mais ainda do que uma paixão, o Ceará Sporting Club era um espírito divino que tinha se apossado daquele corpo. Depois de 2000, quando o arque rival Fortaleza foi campeão quebrando um jejum de mais de sete anos sem um título sequer, um dos primos de Denise foi até sua casa com um grande quadro do time campeão. “Aê Carloto trouxe esse presente para você”. Uma raiva súbita abateu Carloto, que nada disse, apenas pegou o quadro e colocou de lado. Então ele pegou seu carro, sua carteira e saiu. Demorou na rua cerca de quatro horas. A visita já havia ido embora. Uma semana depois Carloto liga para o homem e pede para pendurar o quadro do Fortaleza em algum lugar da casa. Quando o homem chegou, foi recebido por um Carloto completamente alvinegro. Dos pés à cabeça, passando pela intimidade, tudo remetia ao Ceará Sporting Club. Admirado, o primo da mulher entrou e passeou pela casa. O que ele viu o deixou assustado. Carloto havia comprado mais de
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30 quadros do Ceará, e umas 10 camisas. “Pronto, agora, procure um lugar para colocar o seu quadro” disse, sorridente e vingativamente. O homem, encabulado deixou a casa e Carloto prometeu que dali em diante, por todos os dias do ano, usaria uma peça do vestuário que remetesse ao Ceará. Hoje, são mais de 50 quadros e mais de 30 camisas, passando por 15 relógios, cinco cuecas com o nome do time estampado e sandálias. No café da manhã que tomava junto com seus dois filhos, Carlos José Maia Barbosa, o Cazé e Carlos Victor Maia Barbosa, Carloto lembrou que era dia de pagar o cartão de sócio torcedor. Os filhos não podiam acompanhá-lo, pois teriam que cuidar da lan house, que ficava no segundo andar na parte da frente da casa. O lugar fora uma vez sede da produtora de vídeos que Carloto teve durante muito tempo de sua vida. Fechou-a e montou o negócio para os filhos, que precisavam ganhar asas. “Pois bem, vou só e pago o de vocês”, disse. Desceu, entrou no carro e foi até a loja sede. O estabelecimento estava lotado. Ao chegar, a grande maioria de pronto já se pronunciava. “Grande Carloto, tudo bom?”, diziam alguns. A loja era pequena, mas aconchegante. Balões pretos e brancos enfeitavam a parede e o teto, que eram das cores branca e cinza, respectivamente. Carloto se aproximou e sentou em uma cadeira que estava vazia. “Bom dia”, disse animadamente um senhor que estava ao seu lado. Carloto não fazia idéia de quem era, mas respondeu como se o conhecesse há mais de 10 anos, “Bom dia, meu irmão”. No dia seguinte, o sábado era dia de clássico-rei, como é denominado o confronto entre Ceará e Fortaleza. Uma partida com 90 anos de tradição, 439 jogos disputados, com 144 vitórias do Ceará e 137 do Fortaleza, somando-se assim 156 empates. A empolgação da torcida alvinegra era grande. Um de seus maiores ídolos da década de 90, Sergio Alves, agora com 38 anos, voltava ao time. Sergio tinha uma competência incrível quando a partida era contra o Fortaleza, jogou 20 clássicos com a camisa do Ceará e marcou 22 vezes, sendo assim apelidado pela torcida de “o carrasco dos tricolores”.
“Vamos afundar os tricolores de aço”, dizia Carloto sorridente. Apesar de pouco ou nada conhecer as pessoas, falava como se estivesse na reunião de casais de sua igreja, ou em um encontro familiar. “Vão direto para a terceira divisão, de onde nunca deveriam ter saído”, dizia. “Com o carrasco em campo é melhor o jogo começar logo um a zero para nós”, alguns outros falavam. Nesse momento, o saudosismo tomou conta de Carloto. O ano era 1969, final da Copa Norte/Nordeste. O estádio Presidente Vargas recebia um público sensacional. O Ceará precisava vencer o Clube do Remo do Pará para provocar uma terceira partida, pois havia perdido a primeira em Belém. A expectativa era grande, estava em campo aquele que é, até os dias de hoje, considerado o maior ídolo da história do clube: Gildo. Nas arquibancadas estava o jovem Carloto de 20 anos de idade. Mas tudo parecia ir por água a baixo, pois aos 20 minutos do 2° tempo, os paraenses venciam por dois gols a zero. A torcida já deixava as dependências do estádio, Carloto estava cabisbaixo e revoltado, pois o time não estava jogando mal. Sua tristeza deu um suspiro de esperança quando Magela, aos 22 minutos fez o primeiro tento do Ceará. Os que estavam no estádio permaneceram em seus cantos, alguns voltaram e dali em diante Carloto não sentara mais. Ficou de pé, tamanha era a adrenalina em seu corpo. Não queria beber nem comer nada. Seu coração palpitava de ânsia. Aos 37, em um ataque fulminante, Chiclets empata a partida. Carloto quase não vibrou, tamanha a apreensão. “Será que vai dá? Meu Deus, nos ajude, nós merecemos essa alegria”, pensava concentrado Carloto. Uma multidão voltava às arquibancadas. Uma barulheira ensurdecedora empurrava o time para frente. Carloto e quase todo o estádio estava de pé, era um gol para provocar a 3ª partida. Foi quando aos 44 minutos, a bola sobrou para ele, o eterno ídolo, Gildo empurrar para o fundo das redes. “Gol?”, se perguntava incrédulo, “GOL” gritava Carloto. Uma alegria que contagiou a todos. Era como um título, esse que veio na partida seguinte, essa com um placar mais elástico de três tentos a zero.
“Senhor” chamou a jovem e bela atendente da loja. Carloto havia voltado no tempo e seus olhos cheios de lágrima voltaram a 2008. A moça cobrou a quantia dos três cartões de sócio, ele deu o dinheiro, e ela, notando seus olhos lacrimejantes perguntou se estava se sentindo bem. “Claro”, respondeu Carloto, “sempre que lembro do meu Ceará, me emociono” disse sorridente. “Até a vitória, companheiros”, falou Carloto, se despedindo de todos. “Até mais Carloto”, responderam todos os presentes. O dia passava depressa. Carloto ocupavase com contas de casa, aguava as plantas do jardim, brincava com seus cachorros cocker spaniel. À noite, Carloto e Denise se arrumaram para ir ao encontro de casais da igreja que ficava próximo a sua casa. Ele se vestiu, claramente com roupas nos tons preto e branco e com o seu colar de prata com um desenho bem arquejado por um joalheiro com o símbolo do Ceará e um terço. Lá ele brincava com os conhecidos e se divertia
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Carloto, sempre de preto e branco, se prepara para o clássico
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contando as histórias dele e de sua esposa. “Essa é a minha eterna namorada. Ela só tem um defeito, é tricolorida, mas tenho que respeitar”, falava ele. Após a reunião, ele conversava com um grupo de amigos sobre o jogo do dia seguinte, e lembrou de sua viagem à Europa, onde, na França, estendeu a bandeira alvinegra no topo da Torre Eiffel. “Estendi uma bandeira alvinegra em terras tricolores”, brincava Carloto. Portugal, Espanha e a Terra da Rainha, a Inglaterra também receberam a desfraldada bandeira do Ceará. Amanhecera o sábado. Cedo da manhã, Carloto se vestira como de rotina, com a blusa do time. Uma calça social preta, um sapato e um grande anel de ouro. Pronto estava, foi para a igreja para a missa de cedo do Padre Gotardo. Ao seu lado estava um candidato a vereador identificado com a torcida do Ceará. “Grande Carloto, à vitória, hoje” cumprimentou o político em quem Carloto votaria. Ao término da cerimônia, Carloto foi até o capelão e disse “Padre abençoe o anel do Papa”, o padre olhou para o anel desconfiado e viu que lá tinha um símbolo do Ceará. Apesar de o padre também ser identificado com o alvinegro, ele olhou assustado para Carloto, que sorrindo disse, “Calma Padre, é o Papa títulos”. Os dois riram e o padre benzeu o anel.
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A hora do jogo se aproximava, e a emoção tomava conta de Carloto. Agoniado, ele deu a ordem aos filhos, “Ao estádio”. Foram. Enfrentaram um trânsito grande até o estádio Plácido Aderaldo Castelo, o Castelão. No caminho, viram alguns homens que se enfrentavam como animais que defendiam territórios. “Isso é um absurdo” falou pensativo. “No meu tempo, nem divisória existia direito”. Estacionaram o carro, e lá escutavam o estádio gritar e entoar gritos de guerra. A multidão que avisava que ali uma aura de emoções tomava conta do lugar. Gritos que lembravam exércitos medievais antes das batalhas memoráveis. Carloto foi para a entrada das cadeiras inferiores. O barulho era ensurdecedor. “Vozão, ê ô”, gritava a torcida do Ceará, “Leão”, gritava a torcida do Fortaleza. O estádio, com suas emoções, contrastes, paixões, amores e ódios, parecia um ser vivo, aquele ser vivo que Carloto sempre fora, movido e organizado por emoções que sempre sentia ao lembrar de quem era, e de quem foi. Um símbolo das arquibancadas alvinegras.
por michel renan
Vida de três cores Edilberto Campelo, 33 anos, economista, faz parte da diretoria de uma torcida organizada e administra uma loja de artigos esportivos. Esse seria o resumo da vida de um cidadão comum da cidade de Fortaleza. Porém sua vida tem um sentido a mais, e a melhor forma de descrevê-lo é declarando que Edilberto vive Fortaleza Esporte Clube. Diretor comercial da Torcida Uniformizada do Fortaleza (TUF) desde que foi fundada em 17 de fevereiro de 1991, ele se orgulha em fazer parte de uma das maiores torcidas do Brasil, conhecida pela festa nas arquibancadas e também por projetos sociais. Ao recordar sobre o que deu início a sua paixão pelo clube, ele sorri e ressalta a admiração pelas cores do time, que tanto lhe chamavam a atenção. Cresceu participando ativamente dos jogos, acompanhando sempre todos os resultados, e essa dedicação logo viria a se tornar o seu dia-a-dia. Sempre acorda cedo, e sua primeira obrigação do dia é ficar por dentro das atividades voltadas ao Fortaleza. Depois de informado, Edilberto se dedica às duas lojas de artigos do time pelas quais é responsável. Espaço que pode ser notado de longe por quem freqüenta o Shopping Benfica, pois se destaca pelas cores vermelho, azul e branco das camisas expostas na vitrine. Ele se encarrega também das compras paras as outras nove lojas oficiais da torcida, além da distribuição e prestação de contas de ingressos vendidos antecipadamente para jogos do tricolor, nas lojas. Em dia de jogo, antes de exercer papel de torcedor, seu trabalho ainda é de diretor comercial, administrando a distribuição e compra de ingressos, um trabalho que realiza com dedicação para que os torcedores possam comparecer aos jogos. Mas quando termina, sua atenção é inteiramente voltada para a partida e a única coisa que lhe interessa é “a vitória do meu Leão”, garante orgulhoso. É inevitável que as pessoas de seu convívio não o associem ao Fortaleza, e afirma “sempre que encontro com meus amigos, a primeira
conversa que sempre surge é sobre os resultados do time”. Ele não se sente incomodado com essa permanente ligação, pois foi uma escolha que fez, e carrega com orgulho o escudo da equipe no peito. A torcida é livre para opinar nas decisões tomadas pela diretoria do Clube, “isso faz com que a ligação entre torcedor e torcida seja fortalecida” garante Edilberto. Essa relação possibilita que a identificação se firme cada vez mais. Quando se tem um grande número de torcedores juntos, eles se sentem muito mais fortalecidos, e esperam que além das vitórias, o clube tenha uma ótima estrutura que o possibilite crescer.
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Edilberto transformou a paixão pelo Fortaleza em trabalho
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Ele nunca enfrentou problemas por causa de sua paixão tricolor. Já teve a oportunidade de viajar várias vezes para acompanhar partidas em outros estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Questionado sobre excessos de alguns torcedores nos estádios ele garante que os casos de briga e até morte, são isolados de pessoas que não entendem a filosofia real das torcidas organizadas, que é dar força ao time em todas as horas.Porém, ele reconhece que a violência no futebol tem crescido muito nos últimos anos, “mas não considero que isso seja problema específico do futebol, mas sim da sociedade como um todo”, esclarece. “Não pretendo deixar de acompanhar o Fortaleza em jogos fora de casa, mas admito que hoje em dia penso bem e analiso os riscos antes de me decidir. No geral, as viagens são
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boas, bastante divertidas, proporciona novas amizades, passeios, situações curiosas, troca de informações com torcedores do tricolor de outros estados e de outros clubes. Essa experiência é sempre válida, pois estou tendo a possibilidade de ver meu time de coração em ação”, conta Edilberto. Edilberto procura manter sempre uma relação de respeito com torcedores de outros times. A relação com torcedores de seu maior rival, o Ceará Sporting Club, ele garante que é tranquila, “aceito algumas brincadeiras na esportiva, só não dou tanta liberdade para as pessoas que não conheço”, afirma. A TUF mantém alianças com alguns times de todas as regiões do Brasil, garantindo força maior para os torcedores fiéis e apaixonados. por allana alves
Corpo
Outro corpo,
outra identidade ·
texto
· wânyffer monteiro · thiago jorge · altair cruz · fotos · waleska santiago ·
A obesidade pode trazer limitações físicas e problemas emocionais. O processo de emagrecimento é uma opção para melhorar a auto-estima e renovar a personalidade. Tarciana, Demis, Ana Angélica e Janaina contam um pouco de suas histórias em busca da satisfação pessoal e da melhoria da qualidade de vida
Um computador e um violão são parte do mundo de Tarciana Lessa, uma jovem de 21 anos. Curvada ao instrumento, toca suavemente as cordas como se fossem o corpo do amado anônimo, sussurrando uma melodia incompreensível, suave e macia, mergulhada nas notas que aprendeu a tocar sozinha. Ela dedilha como se não houvesse mais ninguém no quarto e o violão fosse o diário adolescente no qual derrama todo dia seus sentimentos e suas forças. Tarciana gosta de tocar. Ela toca para os amigos virtuais através do microfone do computador e canta com uma voz terna que não é compatível com a feição séria de seu rosto. Canta de uma forma tão profunda que dá sentido às letras das músicas. Os ombros curvados não escondem a difícil jornada de Tarciana contra a obesidade e o peso que ela teve (e ainda tem) que carregar. Os olhos sinceros e o sorriso bonito transparecem sua vitória. Uma vitória de quem emagreceu 85 quilos com a cirurgia bariátrica,
Ana Angélica mudou de forma após a cirurgia de redução de estômago
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saindo dos 150 quilos para seus presentes 65 quilos, e ela quer perder mais. O sorriso de Demis traduz sua vida. Sentado sobre a perna, jogado no sofá, ele faz da clínica sua casa, à vontade para falar sobre a sua vida como se ela fosse uma eterna anedota. Ele faz graça da própria vida. Um jovem namorador, apegado à mãe, que gosta de sair e, acima de qualquer coisa, ama vaquejada. Engordou 52 quilos. Por causa da vaquejada, resolveu emagrecer. Segundo as estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em dados de 2006, cerca de 40% da população adulta do país está acima do peso considerado ideal, sendo 8,8% dos homens e 12,7% das mulheres brasileiras ditos obesos. Uma pessoa é considerada obesa quando a quantidade de tecido adiposo aumenta em uma extensão tal que a saúde física e psicológica são afetadas e a expectativa de vida é reduzida. Para fazer a cirurgia de redução de estômago, nomeada bariátrica, é necessário ter Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 40 quilos/m2 e ser acompanhado por uma junta médica especializada: cirurgião, fonoaudiólogo, cardiologista, fisioterapeuta, psicólogo, anestesista e nutricionista. Todos são importantes
para que a operação proceda com sucesso. O fonoaudiólogo cuida para que o obeso aprenda a mastigar, logo, a digerir melhor os alimentos; o fisioterapeuta não permite que o corpo fique flácido com a perda de peso; o nutricionista é essencial para melhorar a qualidade da alimentação dos pacientes e o psicólogo cuida da mente e da mudança brusca de identidade que acontece não só no corpo, mas no interior do indivíduo. A psicóloga Karine Moura de Farias diz que a cirurgia certamente muda a identidade da pessoa. O ex-obeso passa a comer menos, há uma reorganização alimentar e uma mudança total de comportamento. A identidade do corpo está se modificando e, portanto, o acompanhamento é imprescindível para manter a saúde mental e a auto-estima elevada, evitando problemas acarretados pela falta de atendimento médico prévio, como a bulimia e a depressão. A telefonista Ana Angélica Freire, de 32 anos, pesava 111 quilos e confessa que sua vida mudou após a operação. “Quando se é gorda, a gente é só um ponto de referência, ‘sabe, fica ali perto daquela gordinha’, ou então de chacota, quando chega uma pessoa gorda, todo mundo olha, às vezes com pena ou até mesmo nojo. No ônibus então era horrível, o pessoal pensa logo,
PERFIL
Ana Angélica Rocha Freire Data: 13.09.2006 Peso: 111kg Altura: 1,54m 2 anos após a redução Data: 06.10.2008 Peso: 65kg Altura: 1,54m
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‘ai! Tomara que essa baleia não sente do meu lado’. Agora não! É tudo diferente! As pessoas olham pra mim por causa da minha beleza e isso é maravilhoso!”, conta. Atualmente, ela pesa 65 quilos e conta que faz questão de sair de casa e comprar roupas da moda. “Posso até participar da corrida de São Silvestre se quiser!”, diz. A potiguar Tarciana foi obesa durante toda a sua adolescência. Sem namorados e com poucos amigos, ela confessa que as pessoas a apontavam na rua e não se aproximavam. Julgada pela aparência, poucos enxergavam a inteligência dessa futura administradora de empresas graduanda pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “Se eu pudesse escolher hoje, eu faria nutrição, sabia?”, comenta. Quando era obesa, Tarce, como gosta
de ser chamada, não era obsessiva por comida. O processo engordativo foi gradual e fez várias dietas frustradas. Aos 150 quilos e com 18 anos, a idade indicada, ela fez a tão esperada cirurgia bariátrica. Demis era um adolescente comum que foi aos Estados Unidos fazer intercâmbio e deixou a família aqui. Lá, apaixonou-se por um dos esportes mais populares do país, o futebol americano. Entretanto, na posição que lhe foi atribuída, a defesa, é necessário pesar mais de 100 quilos e ele teve que engordar. Naquela época, ele pesava cerca de 78 quilos e conseguiu chegar aos 108 quilos. Engordou porque quis, sem arrependimentos imediatos ou posteriores. Quando voltou ao Brasil, continuou engordando e chegou a pesar 130 quilos antes de passar pelo processo cirúrgico.
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Ana Angélica, agora com 65 quilos, leva uma vida saudável praticando exercícios
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Uma motivação fez Demis querer reverter a situação. “Corro vaquejada desde pequeno. É uma paixão”, diz. Ao subir no cavalo de novo, com 52 quilos a mais, o animal não o aguentou e Demis, enfim, se sentiu mal. Por um momento, parte de sua constante alegria se foi, dando lugar à angústia de não poder “correr vaquejada” e à determinação de emagrecer. Impulsionado pela sua própria força de vontade e pela mãe, Paulina Diógenes, ele procurou a ajuda do cirurgião Luis Moura. Segundo Dr. Moura, cirurgião do Núcleo do Obeso do Ceará, a cirurgia bariátrica tem riscos como qualquer outra, mas é “tranquila” e, para a obesidade mórbida, a intervenção cirúrgica é a melhor opção. Foi isso que Janaina Lima, 19 anos e 128 quilos, ouviu em sua primeira consulta antes de ser operada. A feição doce e o sorriso iminente que emolduram sua bela face deram lugar ao maxilar travado e aos olhos arregalados. As palavras “obesidade mórbida” pronunciadas pelo médico e pelos seus pais em um coro quase uníssono a deixaram notavelmente desconfortável. Tensa, ela gravava tudo em seu MP3 para mostrar ao marido, contrário à cirurgia, porém, o que ele ouviu foram palavras de incentivo e uma detalhada explicação do procedimento cirúrgico. De acordo com a fisioterapeuta Dayse Lima, integrante da junta médica que acompanha os obesos nos processos pré e pós-operatório, a pessoa que vai se submeter a uma redução de estômago tem que ser orientada para alguns exercícios a serem feitos. “Todo paciente obeso pode ter alguma complicação após a cirurgia”, conta. Se o paciente, por exemplo, não tem fator de risco ou não tem um IMC muito alto, os exercícios podem ser feitos em casa. Para que tudo saia como o planejado pelos médicos, ele tem que continuar com a dieta, acompanhado de um nutricionista e tomar as medicações prescritas. Um ponto a ser ressaltado é o de que quanto mais se perde peso antes do processo operatório, menor é o risco. A falta de dinheiro não deixa Tarciana fazer a cirurgia plástica necessária para tirar a flacidez causada pela perda excessiva de peso e, embora o plano de saúde tenha dado a ela direito a abdominoplastia gratuita, ela diz que
“se fosse para escolher, eu preferia fazer no braço, saca? Para poder usar blusinhas regata”. Entretanto, a operação em um dos membros superiores custa quatro mil reais, enquanto na barriga custa de seis mil a oito mil reais sem somar o custo do hospital. Demis está cada dia mais feliz e não vê a hora de subir em um cavalo de novo. “Sempre meu foco foi mais voltado para cavalo, animal, às vezes eu achava que estava na profissão errada, era pra ter feito Veterinária, mas estou fazendo Direito”, conta. Pensando na vaquejada, ele está seguindo à risca as instruções médicas e, pelo sucesso do seu pós-operatório, isso não vai demorar muito. Poucos meses após a operação, ele já pesa 94 quilos. Já Tarce ainda sofre com a aparência e, dois anos após a operação, está pré-diabética. A obsessão pelas calorias ingeridas durante o dia aumentou com a iminência da doença. Preocupada, ela calcula tudo o que come e ainda se acha gorda, mesmo sempre emagrecendo devido à severa dieta. Mas ela não sofre mais com a falta dos doces que tanto gostava. “Já estou acostumada e sou mais feliz como sou hoje”, desabafa. Entretanto não esmorece ou se conforma, ela luta a cada dia para chegar à aparência desejada e para melhorar a saúde, pois não quer voltar a ser chamada na rua de “a gorda” ou ser apontada pelo excesso de pele e, assim como as notas musicais que desvendou sozinha em um violão alheio, ela pretende seguir o caminho do sucesso pessoal andando com suas próprias pernas. Karine Moura, psicóloga especializada em obesidade, diz que adquirir obsessões é normal, pois a mudança de identidade é muito brusca na vida de quem passa pela cirurgia bariátrica. “Na gastroplastia não se opera a cabeça, só o estômago. A identidade corporal que a pessoa passou a vida toda para introjetar é mudada em meses. Há pessoas que não se percebem da mesma forma, que não se encontram, que não se reconhecem. Quando o acompanhamento é feito de forma correta, ele aceita melhor a sua nova identidade”, diz. Segundo ela, com uma boa preparação psicológica, o ex-obeso aceita melhor sua “nova vida de humor, de hábitos e de escolhas” e, assim, firma sua nova identidade.
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· aline farias · gabriela carvalho · fotos · haroldo saboia ·
No ano em que é eleito Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, investigamos a presença dessa etnia no Ceará. Os cabelos trançados e o orgulho de pertencer a uma cultura bela fazem parte do cotidiano das estudantes cabo-verdianas que inspiram o povo cearense. Por outro lado, o medo e o esquecimento ainda são vivenciados pelas comunidades quilombolas no Estado
─ O pai tá com 69, né pai? – pergunta animado Antônio da Costa: “Antônio Quilombola pro meu povo”. ─ 69 anos e bem uns quatro mês. – retruca orgulhoso o pai, Isídio da Costa. ─ Mostra pra eles o instrumento que o sinhô criou, pai! ─ Pois é, ó. Isso aqui foi uma inteligença que deu na minha cabeça e eu fui juntando uns pedaço de tralha no mei da rua e fiz isso que dá pra fazer música. ─ Isso aí é um reco-reco tradicional que os escravos faziam. Eles juntavam os entulhos que encontravam no caminho e criavam instrumentos. Isso já mostra a preocupação ambiental que eles tinham. Meu pai é um descendente de quilombola, tá no sangue, né pai? ─ Eu num sabia que existia essa famia quilombó. Eu descobri que era da famia quilombó faz pouco tempo. Meu fio estudou muito, leu aí muitos livros e através desses direito que tá acontecendo no mundo foi que eu fiquei sabendo que existe a famia quilombó.
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─ Eu fui líder da comunidade aqui de Lagoa do Ramo e Goiabeiras, aqui em Aquiraz, por quase três anos e a nossa maior dificuldade foi e ainda é conscientizar o povo sobre as origens deles. Mas meu pai já aprendeu, num foi pai? Em Aquiraz, a 57 Km de Fortaleza, na comunidade quilombola de Lagoa do Ramo e Goiabeiras, que já está em sua quarta geração, nasceu Isídio da Costa, pai de Antônio da Costa ou Antônio Quilombola, como ficou conhecido por ter sido líder da comunidade durante quase três anos. Hoje com mais de 700 habitantes a nova liderança é de Leuda da Rocha, que se destaca por ter a pele alva queimada pelo sol e olhos esverdeados. Aliás, o lugar já conheceu a miscigenação, apesar de ainda possuir uma maioria absoluta de negros. Dona Leuda, ainda pouco recuperada do baque da morte de uma cunhada no dia anterior, nos recebeu abatida, mas disposta a dar informações. Chamou a atenção o momento em que ela disse que ia ser difícil nós conseguirmos depoimentos da população local, porque eles teriam medo de falar. Ao vizinho de Dona Leuda, Raimundo Nonato, perguntamos o que faltava para que a comunidade melhorasse. “Falta tudo. Falta um posto de saúde, falta emprego, mas eu já falei demais”, contou. Perguntamos se ele tinha medo de falar, ele balançou a cabeça afirmativamente e saiu repetindo que já tinha falado demais, que nem deveria ter falado. O que antes era resistência virou conformismo, talvez receio de perder o pouco que conquistaram. *** Já em Fortaleza, outros negros, ao contrário de Raimundo Nonato, conhecem e reivindicam seus direitos, escancaram sua cultura. Hilário Ferreira é sociólogo e historiador. Por ser negro, ele se identificou com a pesquisa sobre a cultura e história do seu povo no Estado. Para ele, “a realidade na qual essas pessoas de pele escura, que são identificadas geralmente por negras desde a implantação do Regime Republicano, foi e é uma realidade socialmente construída”. ─ Nós estamos aqui pra estudar, mas todo mundo sente muita saudade de casa, de Cabo
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Verde. – conta Lia Cardoso, 21, moradora da Casa dos Estudantes de Cabo Verde no Ceará e estudante de direito. ─ A cantora Cesária Évora tem uma música que diz muito do que eu sinto. – Lembra Ainda Teixeira, 20, companheira de morada de Lia e estudante de contabilidade. ─ Pois é. Ela é uma louca, parece uma esponja, bebe e fuma muito, só canta descalça, mas ela sabe exatamente o que a gente sente... ─ Vou pegar o CD.
Quem mostra’ bo / Quem te mostrou Ess caminho longe? / Esse caminho longe? Quem mostra’ bo / Quem te mostrou Ess caminho longe? / Esse caminho longe? Ess caminho / Esse caminho Pa São Tomé / Para São Tomé Sodade, sodade / Saudade, saudade Sodade, sodade / Saudade, saudade Dess nha terra Sao Nicolau / Dessa terra São Nicolau Também conhecida como a “diva dos pés descalços”, Cesária Évora é uma cantora cabo-verdiana que, por meio de músicas interpretadas em crioulo, representa toda uma nova geração de negros. O estilo forte e as apresentações irreverentes, além de cativar os jovens, fizeram dela a cantora internacional mais popular de seu país. Outra fã de Cesária Évora é Manuela Fernandes, 28, negra, baixinha, tímida e “triste, porque longe da minha família eu já não sou feliz”. Nascida em Cabo Verde, ela veio para o Brasil estudar Psicologia e, para ela, a cor negra é igual a qualquer outra, ela se diz “indiferente”. Apesar disso, a saudosa estudante faz questão de lembrar da sua terra trazendo para o Ceará costumes típicos da etnia, das tradições de seu país, que, como ela lembra, “são muito parecidas com as do Ceará e de todo o Brasil”. Em Cabo Verde as mulheres aprendem a trançar os cabelos desde cedo, elas valorizam o que os negros têm de mais característico e também a fonte de sua vaidade. As vistosas tranças, chamadas por elas de “rego”, “enroladinhos” ou “dreads”, assim como o
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“rastafári”, são utilizados e feitos por Manuela desde os 16 anos, apesar de ela garantir que “o normal é aprender aos seis”. É por meio da estética que ela se deixa perceber como pertencente à raça negra. Para Manuela, esse tipo de auto-afirmação é natural, entretanto negros do mundo inteiro passaram por diversas represálias até poderem mostrar-se como verdadeiramente são. Para o estudioso das questões negras do Ceará, Hilário Ferreira, atitudes assim vão variar de acordo com “a consciência política e étnica de cada pessoa”. E ele acrescenta: “vive-se em uma realidade onde culturalmente somos educados a perceber que tudo que é bom e positivo vem da cultura branca européia. Negro, preto, afrobrasileiro e afrodescendente: estes termos são criações de intelectuais e de uma sociedade racista que procura fazer com que os de pele escura, vistos como sucessivamente indefinidos etnicamente ou na cor, sempre se percebam como sem uma identidade definida”. Produtos para alisar o cabelo e, até mesmo, clarear a pele, começaram a ser disseminados na década de 1960, especialmente nos Estados Unidos. Alguns negros, enxergando as novas tendências como uma forma de repulsa às características naturais da raça, resolveram assumir a negritude e fizeram isso, principalmente, por meio da estética. Nesse cenário, surgiu o movimento Black Power e o slogan Black is beautiful. Para o historiador, “isso prova que as pessoas de pele escura, engajadas em um movimento organizado oficialmente conhecido como Movimento Negro, perceberam essa estratégia da sociedade racista brasileira e procuraram desconstruir o sentido negativo implícito em alguns desses termos e usaram como bandeira política de auto-afirmação. Daí o uso da frase: Negro é lindo!”. Não é de hoje, portanto, que os negros assumidos, mesmo aqueles que nem são tão negros assim, mostram pelo cabelo, dança, vestimenta e, principalmente, pelas atitudes que pertencem a uma raça forte, bela e, principalmente, na moda. Se a identidade positiva do negro é feita da beleza por alguns, na comunidade quilombola de Lagoa do Ramo e Goiabeiras ter uma
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origem histórica é o que faz com que os negros se sintam parte de um povo que merece ser reconhecido. ─ Eu sou Luiz José da Costa Filho. Tenho 17 anos e faço a 5ª série. Sou quilombola e tenho orgulho da minha pele. Eu me sinto muito feliz sendo um quilombola, eu. Meu sonho é ser jogador de futebol. As coisa que eu queria era que tivesse umas coisa pro pessoal trabalhar, os pessoal pobre, que o emprego aqui é muito difícil pras pessoa. Ao falar de quilombolas, o pesquisador Hilário Ferreira, lembra um fato que o marcou. Ele conta que “um amigo que estava fazendo uma pesquisa para o seu mestrado e que pertencia a uma das entidades do movimento negro no Ceará, chegou para a líder da comunidade e a interrogou: como vocês se identificam aqui, vocês se reconhecem como negros, afrobrasileiros, pretos... Com qual desses termos se identificam mais? A pessoa parou, pensou e respondeu: Bem, me identifico pelo meu nome. Mas, quando eles, os de pele mais clara, chegaram na comunidade, passaram a nos chamar de negros”. A comunidade de Lagoa do Ramo e Goiabeiras ainda passa por grandes dificuldades para demarcar e regularizar seu terreno, permanecendo sob o controle de grandes proprietários de terras. Para Lucielma Costa, “essa luta não vai nos levar a nada se a gente não disser: eu sou quilombola, sim, com muito orgulho, e é preciso que o governo olhe para a gente com um pouquinho de atenção. Nós não podemos perder mais do que já perdemos antes”. Grasiele da Silva, educadora, que só descobriu que era descendente de quilombola quando começou a ensinar na comunidade, conheceu parentes em Lagoa do Ramo e Goiabeiras e passou a lutar pela causa que considera “justa”. A jovem professora de História e Geografia, que ensina às crianças a cultura de seu povo, acredita que somente “quando a gente tiver no papel tudo certinho, quando as terras forem nossas, pode ser que essa valorização cresça e que a gente possa lutar pelo desenvolvimento da nossa comunidade”. Apesar de estar comprovada a existência de negros no Estado, Hilário Ferreira ressalva que “as pessoas de pele escura não têm chance
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de se verem de forma positiva. Algumas, para serem aceitas na sociedade, já que a mesma as nega, manipulam sua identidade”. *** Enquanto isso, outros não só assumem a negritude, como gastam muito dinheiro para se produzir de acordo com a moda black. ─ Meu cabelo é ondulado. Existe muita tecnologia para o cabelo ficar liso, mas eu fiz essa escolha porque sempre gostei da cultura afro. Eu acho que é uma questão de opção e vaidade. Já fiz trança raiz umas 10 vezes e, depois de ter feito tanto, isso virou uma necessidade. Eu me sinto mais bonita – comenta Raquel Diógenes, 24 anos. Ela é publicitária e assessora um salão étnico no centro de Fortaleza. Lá encontramos Rodrigu Silveira, 15 anos, que chegou sem o consentimento dos pais. Ele juntou dinheiro e foi para o salão disposto a fazer a trança raiz. De cabelos levemente cacheados e loiros, olhos verdes e pele bronzeada, ele optou pelas tranças porque, além de achar bonito, queria que seu cabelo crescesse. No Ceará, existem algumas opções para quem deseja conhecer esse tipo de trabalho. Até mesmo as meninas de Cabo Verde fazem as tranças por um preço bem acessível, embora o único local especializado que localizamos seja o Estúdio de Beleza Jardim Elétrico. O que se observa no registro de todo esse movimento é que o século XXI já é um novo marco para a história dos negros. Hoje os comerciais, mesmo que para serem politicamente corretos, costumam ter a figura do negro presente. Nas novelas nacionais essa etnia não é mais evidenciada apenas como subalterna. A raça negra tem sido mostrada em ascensão. Não é mais raridade encontrar casos de negros bem sucedidos, orgulhosos da cor da pele e expostos em igualdade com o branco. A valorização dessa estética negra natural se tornou presente no Ceará e no Brasil desde o período da ditadura militar. Não só o estilo Black Power, mas também outros movimentos provenientes especialmente da América do Norte chegaram à população afrobrasileira por meio, principalmente, dos grandes ícones musicais da
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época. A adesão ao estilo afro era tida como uma forma de demonstrar o descontentamento pelos diversos tipos de preconceitos e massacres sofridos ao longo da história do país. Tratavase de algo além da beleza. Assumir a estética afro era tomar também um posicionamento político, modificar paradigmas sociais. Rodrigu sequer tem conhecimento de toda essa História por trás da cultura afro que ele tanto admira, entretanto sua atitude é prova de que os negros conseguiram conquistar um estilo próprio, sincero e, como mostra o adolescente, livre de quaisquer estereótipos. Para alguns é provável que Rodrigu seja um exemplo maior de desobediência do que de resistência, mas o fato é que o posicionamento dele ajuda a romper tabus. Apesar de seu fenótipo negar, o garoto de poucas palavras e ansioso para mostrar aos amigos o novo visual, tem sangue negro nas veias. Não se trata da árvore genealógica de sua família, porém da forma como ele enxerga a cultura negra e adere a ela. O sociólogo Hilário concorda: “A luta pelo fim do racismo e da discriminação racial no Brasil e no Ceará, não é uma responsabilidade exclusiva dos negros e negras. Ela diz respeito a todos aqueles que acreditam que possa existir uma sociedade diferente da que vivemos, onde não exista a exploração de um ser humano por outro. Uma sociedade onde pessoas não sejam julgadas por sua cor, credo e opção sexual.”
Serviço Casa dos Estudantes de Cabo Verde no Ceará 9655.8983 (Manuela Fernandes) Estúdio de Beleza Jardim Elétrico 3253.4180 / 3254.6086 (Raquel Diógenes)
SAIBA MAIS Aderir à moda negra custa caro. São diversos os modelos de penteados disponíveis nos salões especializados, que vão desde os rastafáris até a trança raiz ou a de nove pontas e os dreadlocks. Com cabelo natural ou com fibra é possível realizar esse prazer que, segundo a responsável pelo estúdio, Raquel Diógenes, “é totalmente estético”.
Trança raiz: Concluída em duas horas, ela precisa ser refeita mensalmente e pode custar de R$ 70 a R$ 100.
Rastafári: Com o próprio cabelo o penteado pode custar a partir de R$ 500. Já com a utilização de fibra, o preço é reduzido pela metade. São seis horas de duração e, quanto mais fina a trança, mais caro. Para os vaidosos, a manutenção é trimestral. Para os demais, o tempo que quiser.
Dreadlocks: A única forma de desfazer desse penteado é raspando o cabelo. Caso contrário, ele permanece no estilo por toda a vida, pois o trabalho feito com agulhas e cera compromete o cabelo desde a base. Em cada mecha de cabelo é possível fazer um dread, que custa, em média, R$ 10.
Trança de nove pontas: Esse é o estilo mais trabalhoso para se fazer e quem opta por ele precisa de um dia inteiro no salão. Pode custar de R$ 600 a R$ 700 para os que utilizam fibra, variando entre R$ 1.200 e R$ 1.700 quando o cabelo é natural.
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Eu sou dono do meu corpo ·
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· ivy ariane · fotos · natália guerra ·
Identificar grupos, reconhecer pessoas, conhecer gostos, tudo isso e mais um pouco a tatuagem transmite. Vários processos ao longo do tempo influenciaram nesta arte milenar. Motivos não faltam para uma pessoa tatuar seu corpo, além da facilidade de se fazer e da visibilidade que a tatuagem possui. Conheça um pouco dessa história de identificação e auto-afirmação que esta arte proporciona
Amor à família, à religião, à amizade, a uma cultura, a um namorado, por motivos estéticos ou apenas pela simples vontade de fazer. O que leva uma pessoa a se tatuar e permanecer com aquela imagem no seu corpo o resto da sua vida? Diversos são os motivos. Variam da auto-afirmação ao puro desejo de mudança. Para a estudante de jornalismo Aline Pedrosa, 23, bons motivos não faltaram para marcar seu corpo com seis tatuagens. “Gosto de tatuagens, me identifico. As seis tattoos que tenho significam muito para mim, representam algo”, conta. Ela tatuou o rosto do seu pai na batata da perna e diz que “uma vez uma senhora reconheceu meu pai e veio perguntar se era filha dele”. A tatuagem sempre esteve ligada ao contexto de identificação de grupos e por muito tempo pessoas tatuadas foram perseguidas e marginalizadas. Ela é uma forma de comunicação não verbal onde, por meio da imagem, é possível identificar algo sobre determinada pessoa. “Nem que seja de forma arquetípica, mas ela te passa alguma coisa. Por mais que você não entenda, ela acaba passando alguma mensagem mesmo que seja de forma inconsciente”, afirma o tatuador e
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produtor cultural Moacir Júnior, mais conhecido no mercado da tatuagem por “Júnior Animal”. Segundo Moacir, a modificação corporal é uma vontade inata do ser humano. Qualquer tipo de modificação, seja um simples corte de cabelo, uma maquiagem, tatuagens ou piercings, é uma forma de buscar identidade. Qualquer modificação “reforça a questão de que eu sou dono do meu corpo”, afirma o tatuador. Essa vontade do indivíduo de mudar seu corpo fortalece a idéia de busca da identidade. O que levou o estudante de publicidade Leonardo Kenji, 24, a fazer sua primeira tatuagem aos 14 anos de idade foi justamente a formação de sua identidade e a harmonia com seu gosto musical. Para Leonardo, as tatuagens são espécies de “diários”, onde o indivíduo lembrará para sempre daquele momento. Hoje ele possui cinco tatuagens e já decidiu fazer a sexta. A modificação corporal sempre foi utilizada em todas as regiões do mundo, estando presente em diversas culturas. Estudiosos afirmam que a prática de tatuar data de 5.300 anos antes de Cristo. Ela é caracterizada por
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expressar a personalidade de um indivíduo e de pessoas de uma mesma comunidade. Muitos primitivos utilizavam essa arte como ritos de passagens, fatos que marcam tanto a vida biológica quanto a vida social. Todas eram registradas por meio de pinturas definitivas em seu corpo. A história da tatuagem expressa o contexto sócio-religioso. “Costumo dizer a meus clientes que quando você vem marcar o corpo com uma tatuagem, você não marca só o corpo, você marca a alma também”, afirma Moacir. No Ocidente, apesar de cada tatuagem ter seu próprio significado, a questão dos ritos de passagens quase não existem mais, se fazem tatuagens mais por cunho estético, para ficar bonito. Já no Oriente, além do fator estético existem também o religioso e o sociológico. A estilista Zahra Castanha, 23, possui sete tatuagens em seu corpo, “uma borboleta, um anel no dedo, o nome da minha mãe, a palavra ‘evoluir’ no pé, duas mandalas (uma em cada ombro) além das costas toda”. Para ela, cada tatuagem tem seu significado. Zahra já possuiu na rede mundial de relacionamentos “Orkut” uma comunidade virtual para suas tatuagens chamada “Eu adoro as tatuagens da Zahra”. Zahra conta como foi que surgiu o seu interesse em tatuar as costas. “Sempre achei lindo desenhos grandes e percebia que poucas mulheres tinham as costas fechadas. Conheci o Dado (tatuador) e conversamos sobre o meu desejo de fazer uma tatuagem grande e que tivesse a ver comigo. Ele queria uma mulher para fechar as costas para participar do campeonato de tatuagens no Fortattoo (convenção de tatuagem que acontecia em Fortaleza todo ano), eu aceitei na hora e fomos montando o desenho”, contou a estilista. Há também as pessoas que querem ser tatuadas, mas não sabem o que fazer. Elas somente querem. Vontade de mudar? Se auto-afirmar dentro do seu grupo? Moda? Há inúmeros motivos. O universitário Rafael Castelo, 19, afirma ter várias idéias, mas não tem certeza de nenhuma. Para ele, “ainda falta um momento forte o suficiente que justifique a tatuagem”. Outra questão que aponta é o não conhecimento do atual mercado de tatuagem em Fortaleza. Rafael alega
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não ter informações o suficiente sobre as lojas que apresentam as condições de higiene apropriadas e dos melhores tatuadores da cidade. Para quem tem vontade de ter uma tatuagem, o primeiro passo é pensar muito antes de fazê-la. Há muitos casos de arrependimento. Outro fator importante na decisão de se tatuar é a “escolha de um bom profissional, porque tem gente que procura a tatuagem pelo preço e não pela qualidade e às vezes o barato sai caro”, diz Zahra. Na hora do arrependimento, o “tatuador é psicólogo”, afirma Moacir Júnior. O caso mais comum de arrependimento são as tatuagens de nomes, letras e desenhos do companheiro como prova de amor. A maioria dos tatuados retorna à loja para “tirá-la” ou cobri-las. Hoje já existem técnicas para remoção, mas não são totalmente eficientes e geralmente doem mais do que fazer a própria tatuagem. Apesar de achar bonito, a estudante de Jornalismo Aline Farias, 20, afirma não ter vontade de se tatuar. “É um desejo que eu nunca tive e apesar de em alguns casos eu achar bonito não me submeteria à dor da tatuagem em nenhuma hipótese. Não só pela dor, mas porque simplesmente não me desperta interesse. Mas o principal mesmo é que é para o resto da vida”, conta. Aline acha que só um desejo muito grande leva uma pessoa a fazer algo que não tem como voltar atrás. “Eu não possuo esse desejo”, afirma. A mídia de certa forma influencia a moda, as tatuagens de modelos e de famosos acabam por ditar os desenhos mais tatuados em uma determinada época. Moacir recorda o período da minissérie “Presença de Anita”, onde a atriz principal, Mel Lisboa, possuía três estrelinhas tatuadas em seu corpo, “nossa, naquela época eu fiquei milionário”. Segundo ele, o desenho de borboleta é recorde em sua loja Kaleidoscope Studio. Em média é feita uma tatuagem por dia por cada um dos quatro tatuadores que a loja possui. A faixa etária varia de 16 a 60 anos. E, o tatuador ressalta, “menor só com autorização dos pais autenticada em cartório”. Por muito tempo, a tatuagem sofreu perseguição político-religiosa na Europa, principalmente durante os séculos XV e XVI. Qualquer pessoa com cicatriz, má formação ou marcas no corpo não era vista com bons olhos pela Igreja
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Católica. A Igreja afirmava de forma ditatorial que era “coisa do demônio” e as julgava nos tribunais da Inquisição. Isso acabou gerando certo preconceito com pessoas tatuadas. A tatuagem retorna à Europa por um caminho marginal, por meio das grandes navegações que permitiram a troca de culturas entre os povos dos mares do sul e navegantes. A tatuagem sempre esteve presente na história da sociedade, passando por civilizações antigas, aborígenes, índios, marinheiros e presidiários. Na década de 1940, dois fatos tornaram o caráter marginal da tatuagem ainda mais forte na sociedade, a identificação conforme o crime cometido pelos presos e os grupos mafiosos que tinham sua própria identificação marcada na pele. A tatuagem aos poucos está perdendo o estigma negativo fortemente ligado a ela. Cada vez mais as pessoas vêm aderindo a essa arte para a formação da sua identidade, por meio de imagens que cativam, polemizam e embelezam seus corpos. A “arte da pele” vem ganhando adesão de várias classes sociais e diferentes idades. Para Moacir, a dor da tatuagem é extremamente importante e faz parte do processo de autoconhecimento e superação. “Bem ou mal, você esta passando por um teste de virilidade, se você vai agüentar a dor ou não, porque dói”, afirma Moacir. Para quem está faltando coragem de se tatuar por causa de medo da dor, Moacir aconselha que “a tatuagem não vai ter só a função estética, vai ter a função ritualística. Por isso que tem que doer”.
Serviço
Kaleidoscope Studio Rua Franklin Távora; Nº 604 (em frente ao campo de futebol do Colégio Militar) - Aldeota (funciona de segunda a sexta-feira, de 13h às 20h; aos sábados, de 10h às 17h) Fone: (85) 3253.1806 Freedom of Tattoo Rua Carolina Sucupira; Nº 07 - Aldeota Fone: (85) 3231 5675 e (85) 3494 9897
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· valentino kmentt ·
As cores alaranjadas dos postes ainda tomam conta da cidade. Ao fundo bem longe dali, no horizonte, já podemos perceber um certo tom de roxo meio alaranjado no céu. Neste momento Maria se arruma e prepara os últimos detalhes da casa antes de sua jornada de trabalho. Banho gelado, vestido comprido, penteia o cabelo, faz uma trança única e prende com dois grampos a frente do penteado. Seu quarto é apertado, já faz calor, à frente de sua cama de casal a televisão de 17 polegadas ao lado do pequeno microsystem vão dando forma ao cenário juntamente com um simples armário de madeira brilhosa e de cor vinho, tudo isso contornado por paredes de tom esbranquiçado, pintadas com tinta de massa azul.
Busca sua bolsa, conta as moedas da passagem e parte em espera do Planalto, ônibus que levará a faxineira da zona onde vive, chamada de periferia, até a zona burguesa, parte comercial da cidade. No trajeto, o céu ainda avermelhado já inicia sua rotina e, em poucos minutos, os postes alaranjados se apagam e a faxineira Maria observa a cidade. Assim como Maria, outros trabalhadores deixam suas casa no fim da madrugada para iniciar seus trabalhos na manhã do dia. Os carros tomam conta da cidade, o trânsito junto com as construções se ocupam de quebrar o silêncio da noite e o canto dos pássaros e, em pouco menos de uma hora, os lugares de passagem lotam. O som do forró nas rádios, o rugido do motor Mercedes dos
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Olhar Estrangeiro
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coletivos, o café bem quente e doce, o salgado com suco de cajá, óculos escuros, o cheiro forte de perfume barato, o caldo de carne. Nas sombras das paredes, os meninos de rua dormem em cima de papelões, os cabelos encaracolados das mulheres ainda úmidos, vendedores ambulantes de balas circulam, evangélicos, comerciantes, bêbados, operários, estudantes, seres humanos... Nos olhos de Maria não se vê muros com números de candidatos políticos, nem outdoors coloridos vendendo oportunidades, não existem as fachadas das marcas de grife, não se vê o semáforo nem os carros amontoados, não se vê os ambulantes e muito menos as pessoas ao redor. Atrás desse véu ilusório, Maria vai além do que seus olhos podem ver, vai além das fronteiras dessa realidade. Ela está cansada, esgotada. As imagens a enganam, não é algo que se possa ter o controle, elas estão por ai espalhadas. Para Maria, ver as coisas não tem mais graça.
Deixa nas mãos de Deus Se tem alguém que merece um bem na vida essa é Maria. Quando a gente se pega chorando pelos cantos, se perguntando por que as coisas são do jeito que são, bate aquele desespero, aquela raiva. Desce aquela lágrima bem pequena e depois acorda, abre os olhos e corta o sentimento, termina a distração. Ali bem que tentou, mas nem o choro tem seu
Lembro como se fosse ontem quando minha professora da quarta série nos pediu para escrever no quadro negro o que queríamos ser quando nos tornássemos adultos. Ao ver o quadro todo rabiscado com os diversos sonhos do restante da classe, encontrei um pequenino espaço na quina. Lá escrevi, Astronauta. Minha mãe brincando sempre dizia: “Esse menino vive no mundo da Lua...”. Sempre gostei do mundo da Lua. Era meu mundo, um lugar onde poderia ter tudo e ser o que quisesse, não tinha regras, um espaço que dominava e que aos poucos ia
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tempo, fica tudo guardado para depois. Um momento que nunca chega, que nunca acaba, que é sempre adiado. Assim vamos sobrevivendo, sem tempo para choro nem mágoa, formando uma pedra que não se abala e uma frieza contínua. Com esses olhos, Maria vai observando a cidade, vai vivendo a luta do dia-a-dia sem novas perspectivas, deixando que o tempo se encarregue de esquecer as desventuras vividas para que possa voltar para o ciclo, acordar, trabalhar, dormir. Se essa sensação for algo compartilhado por muitas pessoas, talvez tenha alguma coisa errada nessa vida. Em meio a esse ritmo da vida, ter tempo para ser um pouco humano é um luxo para poucos, As pessoas estão sempre querendo alguma coisa. O fato é que não temos oportunidades para mais nada, o tempo corre e corremos ao lado dele, desejando coisas, pagando as contas, trabalhando e trabalhando. Nos muros da cidade, ela vê a fila do hospital com a mãe doente, no outdoor vê sua comunidade morrer na violência, no sorriso do político vê as crianças perdidas e com fome, nas marcas das fachada vê o consumo distante, nos semáforos vê o abandono, a desigualdade e nos ambulantes vê seu marido desempregado. Nas pessoas vê a tristeza de mais um dia de batalha. Ela sente esse sofrimento e para não sofrer mais é melhor não ver nada.
crescendo e crescendo. No mundo da Lua eu podia ver o planeta terra com mais clareza. Dentro daquele universo desconhecido, porém tão excitante, me escondia atrás de algumas estrelas e ficava a observar lá de longe os seres humanos. Nessa viagem de ver as coisas tão de longe, criei alguns costumes, mas a mania de bisbilhotar o que o povo faz aqui na terra continuou, agora alem de ver o que acontece eu também escrevo, faço perguntas, busco compreender o que acontece, e o que são aqueles seres tão pequenos que sobrevivem todos os dias atrás de coisas.
N° 11
ANO VI
Revista do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza Semestre 2008.2 - Abril de 2009
Universidade de Fortaleza - UNIFOR Comunicação Social
Jornalismo Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz CEP 60.811-905 - Fortaleza-CE, Brasil Fone 55 (0**85) 3477.3105 equipelabjor@yahoo.com.br