o pasto anula-se em centros lilases
o pasto anula-se em centros lilases (por fernanda boaventura)
1. Um quarto. Duas mulheres sentadas. LÍDIA Os caminhões descarregaram hoje de manhã. ELISA (espantada) Hoje? LÍDIA Sim. Sem sinal dela. ELISA E você perguntou? LÍDIA (irritada) Não importa. ELISA E as couves? LÍDIA Não importa.
ELISA Se chovesse… LÍDIA Se chovesse teria água. (Silêncio) ELISA Não é como se entendessem mesmo… LÍDIA Que os meus olhos ardem? (Silêncio) ELISA Houve fogo? LÍDIA Não. ELISA Houve vento?
Lídia Não. ELISA Houve ouro? LÍDIA Houve.
2. Uma mulher toca na pedra. É uma mulher gigante. Seus dedos vestem anéis. Suas tranças negras são estátuas nuas. Ela pensa no castelo. No salão, há uma porca de prata do tamanho de um soldado. Em seu estômago, há fantasmas dos homens que conjuram feitiços em batalha. Urtiga cresce sobre as espadas da mulher gigante, seu heroísmo é leite nas tetas da porca de prata, doce como uma aldeia. A seus pés, os peixes tornam-se verões. É o mês dos suicídios. Cordeiros descem de suas mãos para o triunfo de uma árvore morta. Abatem-se elefantes para a manutenção dos milênios e ela tem mirra em seus lábios de entoar hinos. Suas palavras intocadas de mulher são um armistício ao sol a pino.
A mĂŁo invariavelmente fechada sobre a sĂŠtima concha.
3. Sonhei com heróis que limpavam as botas sujas de lama em véus de linho branco. Estávamos todos no quarto. À porta da casa, amarrados aos troncos, os cavalos tinham as crinas trançadas. E quando relinchavam, lembravam-me de um lago muito cinza e calmo. À janela, eu fitava o sol e a luz era uma náusea. Basta calar, disse a eles. Disse aos estádios nos olhos deles. Afundar o rosto na terra e ouvir os rumores das águas. As jarras estáticas de leite no fundo da noite. Bendizer o vazio, a pelagem castanha, os túneis. Sei que a única inocência em mim é a dor. Sei que a única inocência em mim é a dor, repeti. Sentamo-nos no tapete, as roupas reverberando quentes e impenetráveis,
os terços em mãos, tudo muito muito muito alÊm de nossas botas limpas, e oramos a uma pequena raposa ausente.
4. Os reis do Norte não nos escutam. Têm os lábios cobertos de cal e inumanos como um poema, e eu posso sempre perdoá-los. Posso sempre inventar tanques e ferver a água e então perguntar onde, ó cúpulas de ferro? Aqui, as cadelas guardam as casas. E se fechares os olhos, verás o que os homens sonham quando a luz os cega, o deserto os ama, e a mãe batiza a cidade, etc. Mas a teus pés há a espada incognoscível de uma palavra que eles, os reis, não escutam. Vês, as minhas mãos estão sujas, e posso sempre enterrálas no mármore de um fantasma e então dizer aleluia aleluia sem jamais ensiná-los como assoprar a neve dos cílios uns dos outros. E a isso chamarias vingança se eu não lhes perdoasse como perdoo os absortos milagres da poesia.
5. Amam-nos com as mãos cobrindo o rosto, as noites E humilham-se Porque os anúncios são remotos mas familiares E à minha altura De todo modo
6. Quando pensares em um corpo, As folhagens não se mexerão um milímetro Os teus amigos dirão que não espernearão certamente gritarão mas este será o momento em que pensarás no quarto de um rei que jamais jamais sente febre E tudo tudo tudo será gigante e limpo como a cama branca do rei que jamais sente febre Mas dormirás eventualmente na eternidade dourada de um homem e seu medo, e este será o momento em que tuas mãos se sujarão segurando um copo muito limpo Tu, súdita do rei que jamais sente febre, quando pensares em um corpo, não recebas as tuas medalhas, não jogues as tuas tranças, não concedas o teu sono, acima de tudo, não concedas o teu sono Do alto de seus milagres, são irredutíveis as mariposas e os ursos
7. (soterrada por pessoas) oh Deus o que quer que principie das minhas mãos ressuscitará uma mulher oh Deus o que quer que principie das minhas mãos fulminará um mamífero oh Deus o que quer que principie das minhas mãos terá uma infinidade de galhos oh Deus o que quer que principie das minhas mãos será o imperador dos ladrões de espadas oh Deus o que quer que principie o que quer que seja me terá como filha e odiará profundamente o fundo azul de sua maternidade
la bodeguita edições – março de 2017 “the copy of a copy of a copy of a”
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